Internet e história do tempo presente: estratégias de memória e mitologias políticas - Denis Rolland

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    Internet e histria do tempopresente: estratgias de mmria e

    mitologias polticas *

    Denis Rolland**

    A histria tem uma vocao poltica ou, diramos hoje, cvica. Mas to-dos os autores esto conscientes disto? Percebem eles, na sua justa medida,as questes envolvidas em sua publicao, sobretudo quando virtual e, pois,doravante, freqentemente sem filtro exterior, editorial, ideolgico, econ-mico? A socializao est, alm disto, inteiramente descontrolada, selva-gem, sem a mediao da compra, do emprstimo ou da reproduo do livroou da revista...

    As instituies tm uma memria, e uma memria que tem uma rela-

    o muito varivel com a histria do tempo presente.H uma fonte nova, ainda pouco estudada, em rapidssima expanso,totalmente inscrita no tempo presente e que deu ensejo a muito poucos exa-mes crticos: a internet. Ora, a internetprope histria, apresentada com ou sementusiasmo, com escalas histricas muito variadas, tempo longo ou muito cur-

    * Este trabalho o resultado de pesquisas na internet, realizadas durante o segundo semestrede 2001 e apenas reflete a situao destes sites nesta data.**

    Universidade Robert Schuman, IEP Institut Universitaire de France Pesquisador Associa-do ao CHEVS, FNSP Diretor de Estudos, Institut dEtudes Politiques, Paris.

    Tempo, Rio de Janeiro, n 16, pp. 59-92

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    trios da Frana e do Brasil. Sem dvida, h povos que se interessam me-nos do que outros por histria (e por suas histrias). Mas existiria uma nor-ma ou um ideal a ser atingido e partilhado pelos ministrios homlogos deum mundo globalizado? Deveriam os casos francs e brasileiro, muito volta-dos para seu passado, por razes sensivelmente diferentes, ser consideradoscomo situaes especiais de referncia ou como extremos3?

    H gradaes no pntano situado entre estas duas opes. Entre osMinistrios das Relaes Exteriores que, em sua apresentao na rede, nofazem da histria um assunto seu, sem por isto negligenci-la completamen-te, h o Foreign and Commonwealth Office britnico e, embora um pouco mais

    reservado, a Farnesina, Ministrio italiano das Relaes Exteriores; e, entreos que oferecem alguns elementos descontnuos de histria, o Departamen-to Federal das Relaes Exteriores (DFAE) da Confederao Helvcia. Entreos que do informaes detalhadas e teis, sem por isto desenvolver longa-mente sua histria diplomtica, h o State Department(EUA), o MID (Rssia),o Palcio das Necessidades (Portugal), o Ministrio das Relaes Exteriores daRepblica Popular da China e, em medida reduzida, o Ministrio belga dasRelaes Exteriores. O exame detalhado de 14 sites, simplesmente classifi-

    cados em funo da ausncia ou da presena de rubrica(s) histrica(s), tercomo objetivo fundamental avaliar o peso da memria nacional e/ou institu-cional na redao de uma rubrica, implicando particularmente a imagem desi que um Estado quer difundir.

    Relaes exteriores: a amnsia histrica total ou parcial

    Alguns sites no tratam de histria ou apenas o fazem ligeiramente.O interesse menor de certos pases em dar uma viso retrospectiva de

    suas relaes internacionais uma explicao um pouco sucinta, mesmo quecomplementada pelo argumento dos recursos financeiros, eventualmentepouco importantes para a construo do site. De fato, parece que a difcil ges-to de um passado recente teria influenciado a deciso dos promotores dosite. Em outras palavras, como explicar, num quadro institucional, um passa-

    3 Este trabalho foi preparado entre junho de 2001 e fevereiro de 2002. Reflete a consulta aos

    sites, freqentemente durante o inverno de 2001-2002, e no leva em conta as modificaesposteriores. Ora, se alguns sites se completam por acrscimo (Mxico), outros so amplamen-te revistos (Frana).

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    do recente gerador de conflitos, violncias e feridas, cujos atores por vezesainda esto vivos e at mesmo em atividade?

    Tal , sem dvida, a dificuldade no superada que contribui para ex-plicar por que nem Espanha, nem Argentina introduziram uma rubrica his-trica em seus respectivos sites ministeriais, j que ambos os pases apreciama celebrao da grandeza de seu passado, o imprio, num caso, as lembranasdo desenvolvimento econmico ou de certos cones polticos, no outro.

    Para a Espanha, o franquismo um passado ainda vivo. No precisoser um grande historiador para perceber isto em mltiplas ocasies. Mas deve-se acrescentar a este dado geral a idia de que a transio democrtica com-

    pletada brilhantemente pelo pas repousa sobre uma ausncia deliberada equase total de vontade de depurao, em nome do apaziguamento e daconcrdia civil. A maior parte dos funcionrios do Ministerio de Asuntos Exte-riores da poca do franquismo permaneceram em seus postos. Como, nestascondies, apresentar, em termos cientficos e, no entanto, oficiais, a histriada Guerra Civil, da cruzada franquista e do franquismo de guerra e desta lon-ga ditadura que perdurou at a ltima parte do sculo XX? Sob muitos pon-tos de vista, no escrever histria, quando isto no se faz necessrio, facilita a

    gesto do presente. Ento, nas 13 rubricas da pgina principal, nenhuma falade histria (www.mae.es) 4.

    Para a Argentina, a situao pode ser apreendida a priori com hipte-ses semelhantes (mesmo se os recursos financeiros tenham talvez pesado).A Cancillera no fala de histria na internet. No entanto, ao pas agrada bus-car, em passado no to distante, as manifestaes de um crescimento acele-rado e de uma possvel potncia maneira dos pases do norte. Nada de his-tria no site do ministrio e tampouco de evocao de gestes diferenciadas

    das relaes exteriores pelos grandes partidos polticos nacionais; nenhumamudana de regime a se relatar e, portanto, nenhuma referncia a um passa-do militar muito recente, difcil e mortfero; nenhuma utilidade em tratar dapoltica exterior argentina, um tanto errtica com relao aos EUA... Se ohistoriador no sabe exatamente as razes que levaram a esta ausncia dehistria, pode compreender as dificuldades que fizeram com que a histria

    4 Informao aos viajantes, Bolsas, subvenes e leitores, Resumos da imprensa cotidiana,

    Informao geral, Entre na MAE, Embaixadas e consulados, Novidades, A OID informa, Con-ferncias e publicaes, Concursos, Contatos, Organismos dependentes, Informaes paraos funcionrios do MAE.

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    ali no fosse escrita, e at mesmo as vantagens que o referido ministrio podeter em no abordar uma questo delicada em um site a bem dizer no muito

    desenvolvido5 (www.mrecic.gov.ar). Estes dois sites, sendo o espanhol o maisdetalhado (13 entradas contra 4), so, assim, exclusivamente funcionais eprticos, sem razes no passado.

    H casos diferentes: um ministrio que, sob uma trama histrica bas-tante ligeira, esquece um quarto de sculo de sua histria; outro que no re-monta sua histria seno at a ltima troca de regime...

    A Itlia exibe muito pouco da sua histria institucional no site de seuMinistrio de Relaes Exteriores, a Farnesina (www.esteri.it); um pouco dos

    edifcios do ministrio (www.esteri.it/lafernesina/luoghi/index.htm), um pou-co na rubrica Servizio Storico, mas apenas para evocar a histria dos arquivosdo ministrio em alguns pargrafos (www.esteri.it/archivi/servsto/archivsto/archiv1.htm) E nada, em todo caso, que mencione os anos do fascismo, nemMussolini, nem qualquer dos Ministros das Relaes Exteriores do pero-do, mesmo que, por exemplo, o imponente edifcio principal do ministrio,no Foro Italico, no seja absolutamente estranho poltica arquitetural dofascismo. O passado parece no ser assumido, nem considerado apresent-

    vel ao exterior (malgrado os evidentes traos de continuidade na sociedadecontempornea) ou, enfim, simplesmente considerado necessrio. O exem-plo expressivo de um tempo profundamente desorientado, para retomara bela expresso de Franois Hartog.

    Esta seletividade no prpria dos regimes democrticos com relaoao seu passado autoritrio: a China comunista, colegialmente autocrtica, temo mesmo reflexo de desconfiana e ocultao em relao a seu passado di-ferente.

    A verso inglesa do site do Ministry of Foreign Affairs of the PeoplesRepublic of China consagra uma parte modesta de sua arquitetura hist-ria (www.fmprc.gov.cn/eng). Apenas uma das 34 rubricas efetivamente re-servada Diplomatic History (www.fmprc.gov.cn/eng/c698.html). Mas, por trsdesta entrada nica, 58 artigos varrem os temas e as reas geogrficas dasrelaes exteriores de uma poltica externa chinesa bastante voltada parapequenas snteses do tipo The Long-term Stable Constructive Partnership BetweenChina and the European Union6,Establishment of Sino French Diplomatic Relations7

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    A Chancelaria, Servio ao viajante, Comrcio exterior, A Repblica argentina.6 A parceria de longo prazo, estvel e construtiva entre a China e a Unio europia.7 Estabelecimento das relaes diplomticas sino-francesas.

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    (www.fmprc.gov.cn/eng/5689.html), China and Brazil (www.fmprc.gov.cn/eng/4320.html)... No entanto, compreende-se, esta histria diplomtica da Chi-na estritamente limitada era comunista: a China imperial ou republicanaanterior a Mao no tem espao, por menor que seja, nesta representao ex-terna da histria chinesa. A amnsia histrica, parcial, repousa numaseletividade poltica deliberada.

    O caso do MOFAjapons sensivelmente diferente. O site em in-gls do ministrio japons (www.mofa.go.jp) tambm muito detalhado, comum sistema notvel de dupla entrada: 13 ou 55 rubricas iniciais, apresenta-das na pgina principal! A histria, porm, no aqui uma preocupao vis-

    vel (nenhuma entrada imediatamente oferecida), nem tratada de uma pers-pectiva mais ampla (nada de histria geral do ministrio). A partir das rubri-cas Postwar Issues (www.mofa.go.jp/policy/postwar/index.html) ou Culture,chegamos ao Bluebook(publicao de documentos diplomticos dos ltimosanos, acessvel na rede desde 1994); todavia, no h nada ali de um passadomenos recente. Procurando bem, entretanto, a rubrica Regional Affairs abrigamuitas pequenas notas histricas sobre as relaes exteriores do Japo(www.mofa.go.jp/region), mas com uma profundidade histrica bem vari-

    vel: assim, se, com o Oriente Mdio, o autor faz as relaes remontarem ao ca-minho da seda (www.mofa.go.jp/region/middle_e/relations/history.html), comos EUA o histrico comea com a derrota japonesa (www.mofa.go.jp/region/n-am/us/relation.html) e, com a Unio Europia, s em 1991 (www.mofa.go.jp/region/europe/eu/overview/history.html)

    Relaes exteriores: a necessria memria

    H pases cujos Ministrios das Relaes Exteriores comunicam par-

    cimoniosamente a sua histria atravs da rede.H, enfim, quem faa histria aparentemente por necessidade (Su-

    a). H quem parea reservar histria um lugar deliberadamente limitado,visando construir uma imagem do pas voltada para o futuro (Gr-Bretanha)e, por vezes, tambm por falta de interesse e at mesmo para evitar episdioscomplexos (Blgica). H quem conceda histria um lugar de mediana im-portncia (Rssia, Portugal, EUA, Alemanha), gerindo seu passado com al-guns rodeios, artifcios ou acertos.

    A julgar por seu site na internet, o Departamento Federal das Rela-es Exteriores (DFAE) da Confederao Helvcia no tem grande in-

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    teresse pela histria (www.dfae.admin.ch). Fornece ao internauta longaspginas de histria, porm, com freqncia, por meio de remisses a outrossites e somente para definir sua neutralidade (Comisso independente deespecialistas, dita Comisso Bergier, questes histricas (www.switzerland.taskforce.ch/W/W2/W2a/a1_fn.htm) ou para responder s crticas internacio-nais, em particular em torno da Segunda Guerra Mundial (sub-rubrica Su-a-2a Guerra Mundial). Assim, a histria intervm principalmente quandoparece indispensvel para a imagem nacional. Do contrrio, desconsiderada.

    O Reino Unido procura oferecer uma imagem de si decididamentevoltada para o futuro. O site do Foreign and Commonwealth OfficeLondon colocado simbolicamente no item Creativity, innovation and quality(www.fco.gov.uk). Atravs do que parece uma relao de causa e efeito, ahistria existe, ento, em doses homeopticas, nas muito breves History No-tes (www.fco.gov.uk/news/keythemehome.asp?9), apresentando em algumaslinhas os FCO Historians, trs sries de publicaes histricas e alguns dadosprticos, aos quais so adicionados nove pequenos artigos pontuais, todosrelativos ao sculo XX, desde Britains entry into the ECou Nazi Goldat Womenin Diplomacy Encontram-se tambm certos elementos de histria nacional

    por trs da apresentao dos edifcios do ministrio (www.fco.gov.uk/directory/dynpage.asp?Page=62 e www.fco.gov.uk/directory/tour.asp). Isto no querdizer absolutamente que o ministrio no tem interesse por sua histria, lon-ge disto: no h nenhuma recusa da histria nesta discrio, como o atestamos trabalhos cientficos publicados direta ou indiretamente sob os auspciosdos FCO Historians. Mas, na sua promoo pblica, a histria no julgadanem determinante, nem prioritria.

    O sitedo Ministrio belga das Relaes Exteriores, do Comrcio

    Exterior e da Cooperao para o Desenvolvimento (www.diplobel.org,www.diplobel.fgov.be) no esquece a histria; mas sem muito dela se ocu-par. Na rubrica Guia do Ministrio, encontra-se um claro e breve Obser-vaes histricas (www.diplobel.org/Ministry/gids%20-%20fr/2.htm). Redi-gido por vezes para o pblico interno (nosso pas), divide-se em quatroperodos cronolgicos: 1830-1875, 1875-1914, entre duas guerras,ps-1945. Ao menos segundo estes ttulos, as duas guerras saram dahistria do ministrio: uma frase para evocar a neutralidade rompida du-

    rante a Primeira Guerra Mundial; nada sobre a Segunda Guerra. A ocupaodo territrio nacional durante a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais no

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    explica muita coisa (a nacionalidade das foras de ocupao jamais men-cionada): no entanto, houve governos em atividade no exlio e, no interior dopas, certas instituies ao menos permaneceram funcionais. Assim, no necessrio insistir que existem elementos de uma sndrome belga, comoexiste na Frana uma sndrome de Vichy, talvez menos importante, estu-dada e reconhecida do que na Frana. E o site do Ministrio belga das Rela-es Exteriores um reflexo deste aggiornamento no realizado da histriainstitucional do pas.

    O sitemexicano da Secretara de Relaciones Exteriores (www.sre.gob.mx) reserva um espao importante para a histria (5a rubrica em 14)

    (www.sre.gob.mx/acerca/sre/historiasre.htm). Mas trata-se de uma longa ex-posio (21 pginas) apenas aparentemente linear. dada uma grande pre-ponderncia ao sculo XX e, mais precisamente, aos ltimos anos (8 pgi-nas). Para um pas que tem uma excelente historiografia e com uma histriadas relaes internacionais bem desenvolvida, a terminologia do recorte cro-nolgico, em seis perodos bastante desiguais, algo surpreendente; e osrecortes sugerem que o site foi atualizado no tanto por reviso global quantopor acumulao. Aps um sculo XIX lgico, segue-se uma elptica auro-

    ra do sculo XX ali, onde se esperava a palavra Revoluo. Segue-se umaetapa ps-revolucionria, espantosamente precoce, de 1917 a 1946 e, de-pois, uma etapa moderna, de 1946 a 2000. Mas a rubrica prossegue com ofim do sculo XX, evocando as reformas de 1998, seguindo-se ainda umnovo milnio, que aborda, sem formular explicitamente, o fim da hege-monia do Partido Revolucionrio Institucional e, por outro lado explicitamen-te, a alternncia poltica com a chegada ao poder do Partido de Accin Nacio-nal (PAN): esta ltima parte que, isoladamente, surge na tela em negrito,

    insiste no fato de que hoje podemos promover a imagem de um Mxicodemocrtico. Em outras palavras, a Revoluo , seno apagada, ao menosnitidamente reapropriada nesta representao do passado mexicano, forte-mente voltado para o presente e deliberadamente aberto para o futuro.

    O site do Ministrio russo das Relaes Exteriores (MID8) bas-tante completo (www.ln.mid.ru/website). Mas somente na sua verso emrusso, sendo as verses em ingls, francs, espanhol ou alemo, alm de idn-ticas, pobremente constitudas por trs rubricas referentes atualidade. Caso

    8 Em 1991, decidiu-se cham-lo Relaes Exteriores. Mas este artigo ainda assinado emdezembro de 2001 por um departemento do MID. E, em toda parte, aparece a meno MID.

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    descartemos a hiptese de esta diferena decorrer somente de imperativosfinanceiros, preciso considerar outras duas explicaes possveis e comple-mentares: uma espcie de recompensa nacionalista; e um tratamento di-ferenciado do acesso informao por parte do pblico nacional (ou russfono)e pelo pblico estrangeiro (no russfono).

    Em russo, portanto, a histria no est ausente das dez rubricas iniciais:o servio dos arquivos apresenta principalmente um histrico global, umacronologia dos Ministros das Relaes Exteriores e artigos de sntese sobrealguns temas (www.ln.mid.ru/website/ns-arch.nsf). Trs caractersticas sedestacam. Por um lado, a histria da Rssia dos xsares mais longamente

    desenvolvida (4/8 pginas) do que a da URSS (3,5/8 pginas); e, na rubricahistrica, o site no se detm na poltica da nova Rssia (0,5/8 pginas), apre-sentada exclusivamente atravs de algumas cifras eloqentes (nmero deembaixadas, pessoal); entretanto, ela bem desenvolvida mais adiante, gra-as a numerosos artigos temticos. Por outro lado, a idia claramente afirma-da a de uma continuidade da poltica externa entre todos os regimes (umpouco maneira dos brasileiros, mesmo que, neste caso, as mudanas tenhamsido apenas polticas), desde bem antes da Rssia dos Romanov at a Rssia

    de Putin, passando pela URSS; ou da monarquia xsarista quase democraciaatual, passando pela era comunista. Diferentemente da ocultao chinesa,esta maneira de escrever ou apresentar a histria da poltica externa russa,apagando as mudanas de regime poltico, no isolada: trata-se de um m-todo amplamente partilhado pelos sites italiano, brasileiro e at mesmo fran-cs. Enfim, e esta a terceira caracterstica deste site, o MID inscreve suapoltica numa bastante longa durao, remontando poltica externa russa e formao poltica da Rssia: a primeira parte da exposio comea no scu-

    lo IX (mesmo a Frana, to ciosa de sua histria e da antigidade da mesmano ousa recuar tanto), uma data, de fato, comumente identificada com onascimento da Rssia (o MID foi institudo com este nome somente em 1802).A Rssia apresentada como partcipe, h mais de um milnio, das grandesquestes mundiais, uma Rssia sempre ativa em poltica externa, presenteem Bizncio como nos atuais processos de globalizao, promotora da lutaantifascista, parteira decisiva do degelo...

    Portugal oferece, atravs de seu Ministrio dos Negcios Estran-

    geiros, um site ilustrado e bem detalhado, onde a histria encontra um bomespao (www.min-nestrangeiros.pt/mne), na terceira das sete rubricas, mas

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    de forma modesta (2 sub-rubricas em 28). A parte denominada Aspectos His-tricos se decompe em trs elementos: a muito breve Histria da Instituio,em meia folha (www.min-nestrangeiros.pt/mne/historia), Sinopse da HistriaDiplomtica Portuguesa , de fato, uma simples lista de soberanos sem data,seguida por uma longa e detalhada cronologia, incluindo, com suas respecti-vas datas, os Ministrios das Relaes Exteriores e os principais fatos que umdiplomata acreditou dignos de se selecionarem (www.min-nestrangeiros.pt/mne/histdiplomatica/principal.html); enfim, uma srie de Discursos encerrama apresentao. Porm, centralizando precisamente sua cronologia bastantedetalhada (36 pginas) no ministrio, nos ministros e nas relaes diplomti-

    cas, esta parte do site alcana um resultado notvel (www.min-nestrangeiros.pt/mne/histdiplomatica/sino36.html): no mencionar nem uma nica mudanade regime, nem mesmo o nome de Salazar at 1936, para simplesmente assi-nalar que ele assume provisoriamente o ministrio, sem revelar ao leitor asua funo principal9... Assim, no h quaisquer referncias troca de regi-me nos anos vinte, alis, no mais do que quela na metade dos anos setenta!

    O site alemo da Auswrtiges Amt , neste sentido, bem mais exitoso(www.auswaertiges.amt.de). H, de imediato, uma entrada histrica

    (www.auswaertiges.amt.de/www/de/aamt/geschichte/index.html) e umaoutra para certos arquivos (www.auswaertiges.amt.de/www/de/infoservice/politik/index.html). O site de histria delineia um histrico geral do minist-rio desde 1870, no contornando, por exemplo, o nazismo. Aqui, no estamosfora do regime de historicidade corrente a nvel nacional na Alemanha atual.No mximo, certas pginas tendem a sublinhar, alis no sem fundamento,que a diplomacia tradicional e o ministrio perderam (um pouco) sua impor-tncia, seu poder e, implicitamente no que mais importa para o site e a ima-

    gem do ministrio de sua responsabilidade, medida que o poder nacional-socialista transferiu competncia no campo internacional, seja ao partido na-cional-socialista, seja a outros ministrios (da Propaganda, em particular).

    O State Departmentnorte-americano , como o alemo, um site claroe sem grandes lacunas (www.state.gov). Se o comparamos a um site como ode Portugal, vemos que dispe, com efeito, de maiores recursos financeiros,tcnicos e cientficos, mas ele tem, sobretudo, menos transformaes polti-cas a explicar, justificar ou esquecer. A parte histrica (History, Education &

    Culture, uma das nove entradas do site) acessvel atravs do Office of the9 O nome aparece em seguida em 1942, 1943, 1957.

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    Historian, que , antes de tudo, o domnio das fontes, da resposta s interro-gaes do pblico ou, mais particularmente, s dos pesquisadores. Vincula-do ao Bureau of Public Affairs do State Department,o site inclui, em sua rubricahistrica, onze janelas, entre as quais uma cronologia detalhada das viagenspresidenciais e das do Secretrio de Estado (www.state.gov/r/pa/ho/trvl/c4388.htm), uma rubrica especial sobre a documentao referente ao Holo-causto e uma cronologia de histria diplomtica nacional (Timeline of USDiplomatic History): aqui, em modelo bastante comum (que encontramostambm no site francs), uma galeria de retratos (www.state.gov/r/pa/ho/c1799.htm)permite passar, selecionando a imagem escolhida, para mais

    amplas informaes (histria diplomtica no site americano, biografias no fran-cs) ; mas, no incio de maro de 2002, este trabalho est completo apenaspara o perodo da Independncia (enquanto o site francs , deste ponto devista, realmente completo).

    Relaes exteriores: a estratgia de visibilizao ou a instrumentalizao da histria

    H outros pases para os quais a estratgia institucional parece ser exa-tamente inversa da Espanha ou da Argentina. Tais so os casos do Brasil eda Frana. Aqui, deparamo-nos com uma abundncia de histria.

    O site do Ministrio brasileiro das Relaes Exteriores (Ministriodas Relaes Exteriores) (www.itamaraty.gov.br) um dos que mais valorizama histria nacional e, em particular, a histria das relaes internacionais. Umdos quinze itens (Temas de Poltica Externa) leva-nos a um breve Panoramada Poltica Externa ou para A construo da nao (http://www.mre.gov.br/cdbrasil/itamaraty/web/port/index.htm). Acima de tudo, uma das trs entra-das apresentadas como centrais, A Diplomacia Brasileira, oferece quatro ru-

    bricas essencialmente histricas, sendo a segunda, Histria da Diplomaciabrasileira (http://www.mre.gov.br/acs/diplomacia/portg/h_diplom/menu_hd.htm)um notvel livro de histria completo, em duas verses, em lngua portugue-sa ou inglesa, cada uma com, ao menos, cem pginas (http://www.mre.gov.br/acs/diplomacia).

    Por um lado, a importncia da histria est, sem dvida, ligada exis-tncia e antigidade (em relao maior parte dos pases do continente) daEscola Diplomtica, o Instituto Rio Branco. Por outro lado, est ligada ao de-

    senvolvimento de uma notvel histria das relaes internacionais no pas.Mas estes so elementos limitados para uma explicao, mesmo se a analo-

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    ses externas ao objeto analisado alimenta toda representao do passado.Neste sentido, tal como a memria, a permeabilidade dos dois campos, me-mria e histria, tornou-se, h tempos, um objeto da histria.

    O norte-americano Robert O. Paxton publicou, h quase trinta anos,La France de Vichy13, abalando algumas certezas de uma parte da historiogra-fia francesa. Quase quinze anos transcorreram desde a publicao de umahistria da memria da guerra, a Syndrome de Vichy14. Desde ento, o Estadoreconheceu oficialmente na Frana a sua responsabilidade na poltica discri-minatria, aplicada em seu territrio durante a Segunda Guerra Mundial. E,no campo da cultura, os MNR (Museus Nacionais de Recuperao, produ-

    tos das espoliaes) saram da sombra publicamente; at mesmo o Museu dasArtes e Tradies Populares pensa em discutir sua relao com valores pro-movidos pela direita nacionalista e o governo de Vichy.

    Porm, o trauma ligado Ocupao ainda profundo. Particularmen-te o vinculado s divises internas, a esta cultura de confrontao interna, aesta guerra franco-francesa, que possui vrias caractersticas de uma guerracivil15 certamente com uma diferena de escala e de massa crtica com rela-o Espanha de 1936, ou Grcia durante e aps a guerra, mas, ainda as-

    sim, com carter letal e radical16. Como na Grcia e na Espanha, o passadoainda no passou e, por questes de justificao, limites (da adeso a Vichy,da colaborao) ou passagens (para a resistncia) retrospectivas continuam aser criadas. Assim, certas administraes e instituies francesas, ligadas srelaes internacionais, ainda propalam sua resistncia durante a guerra,esquecendo ou quase Vichy e uma parte importante de seu passado. Es-tariam alguns aspectos da histria institucional, ainda bastante pobres, at hojeressentindo-se do passado, do seu passado?

    A encenao das relaes exteriores pela internet: uma construo confusa deliberada?

    As histrias das instituies de relaes internacionais privilegiampara o perodo da Segunda Guerra Mundial duas frmulas comprovadas:

    13 Robert O. Paxton, La France de Vichy, Paris, Le Seuil, 1973 (1972 para a edio americana).14 Henry Rousso, Le syndrome de Vichy de 1944 nos jours, Paris, Le Seuil, 1987.15 Cf.Les guerres franco-franaises, Vingtime Sicle, Revue dhistoire, n 5, especial, janeiro de 1985

    e J.-C. Martin (Dir.), La Guerre civile entre histoire et mmoire, coll. Enqutes et Documents,Centre de Recherche sur lhistoire du monde atlantique, n 21, Nantes, 1995.16 Cf. Henry Rousso, Le syndrome de Vichy, op. cit., p. 15.

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    o continuum cronolgico o procedimento mais correntemente utili-zado, estabelecendo uma ligao direta entre a III Repblica ou o que seriaapenas um comeo de Vichy (como se o regime de Vichy, do outono de1940 ou de 1941, fosse totalmente estranho a Vichy dos anos seguintes, ou-tro problema de limites17) e a Resistncia; assim, para o Ministrio das Rela-es Exteriores, obras cientficas como a Histria Geral da AdministraoFrancesa18, publicada sob os auspcios do CNRS, reproduzem o que no seno a vulgata, a saber, esta continuidade (sem dualidade) entre a III Rep-blica, o comeo de Vichy e a Resistncia;

    mas a lacuna cronolgica no est abandonada, ela permite passar,

    sem mediao, da III Repblica Libertao; a ltima obra publicada sobrea Ao Artstica da Frana no mundo utiliza este segundo procedimento: umamemria coletiva bastante hegemnica e praticamente nica, uma culturafrancesa universal, uma mensagem homognea a ser difundida para o exte-rior, por indivduos de mesma opinio, nenhum conflito incontornvel e, so-bretudo, nada de guerra civil...

    Em ambos os casos, como nos limites entre memria e histria, o estu-do histrico ento seguramente simplificado.

    Convm esclarecer que no h, realmente, nada de novo nas linhas quese seguem. Aqui, a explicao mais simples do texto manifesta, antes de tudo,a propenso para o discurso unnime da Frana sobre ela mesma, quando setrata de sua cultura; esta Frana que tradicionalmente atribuiu uma consi-dervel importncia aos fatores culturais na estruturao da nao bem comona afirmao de sua grandeza19. Ela sublinha tambm a dificuldade de es-crever uma histria tendo em conta as principais conquistas da cincia, con-seguindo gerenciar a memria, sobretudo quando se trata da cultura france-

    sa e da imagem que a Frana pode oferecer de si mesma ao exterior20.A nica e muito preciosa sntese recente sobre a histria do Minis-

    trio das Relaes Exteriores foi, portanto, publicada em 1984, na coleoHistria Geral da Administrao Francesa, pelo CNRS. Trata-se do prin-

    17 A depurao administrativa geralmente manteve como limite a invaso da zona sul aps odesembarque anglo-americano na frica do Norte: ter-se mantido funcionrio de Vichy de-pois disto podia acarretar perseguies. As principais leis de excluso so bem anteriores.18Les Affaires trangres et le corps diplomatique franais, tome II, Paris, CNRS, 1984.19

    Pascal Ory, Le mythe de Paris, Ville-Lumire, dans les annes 1900, op. cit., p. 135.20 Cf. Denis Rolland, La crise du modle franais, Rennes, Presses Universitaires de Rennes,2000.

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    cipal instrumento disposio dos pesquisadores. Apoiando-se na autorida-de dos maiores nomes universitrios do momento21, esta obra fornece res-postas mais ou menos claras para trs problemas de limites srios e muitocomuns, todos ligados memria da guerra:

    Se desejamos incluir, numa periodizao global, a que perodo deve-mos associar Vichy: antes ou depois da III Repblica ou da IV e da V?

    Teria havido em algum momento duas Franas? Quando uma instituio se torna parte de uma resistncia?O primeiro problema pode ser resolvido de maneira bem simples. Os

    autores do plano da obra adotam 1940 como cesura: propem como ltima

    parte cronolgica 1940-1980; e abrem-na com um captulo preliminartimidamente intitulado perodo de 1940-1944. Certamente, preciso en-contrar limites, quando se quer estabelecer um plano cronolgico e os limi-tes permanecem sempre arbitrrios. Este plano pode, todavia, conduzir o lei-tor a duas concluses precoces: compreender que o fim da III Repblica seriao fim de um mundo sem continuidade ulterior (cf., por exemplo, a recente eviolenta polmica em torno da obra de Grard Noiriel, Les origines rpublicainesde Vichy22); e, sobretudo, admitir que a Resistncia sucede III Repblica e

    contribui para fundar a IV to rapidamente que todo o perodo da guerraparticiparia efetivamente, via Londres e Argel, da segunda fundao da Re-pblica. De passagem, e talvez esta seja a questo principal, praticamenteelimina-se Vichy.

    O segundo problema a priori mais complicado de se resolver: teriahavido, no perodo da Ocupao, duas administraes francesas paralelas, umaem Vichy, outra em Londres e, em seguida, em Argel23? A complexidade daresposta a dar transcrita pelo fato de que a obra oferece duas proposies

    paralelas.A cronologia dos Ministros e dos Secretrios de Estado, apresentada

    ao final do volume, prope, em princpio, esta frmula comum da memria,

    21Les Affaires trangres et le corps diplomatique franais, tome II, Paris, CNRS, 1984. Colabora-ram destacadamente na redao deste volume, dirigido por Jean Baillou, Jean-BaptisteDuroselle, Jacques Barity, Jean Gaudemet, Pierre Guillen, Antoine Mars.22 Grard Noiriel, Les origines rpublicaines de Vichy, Paris, Hachette, 1999.

    23 Simplificamos ns mesmos, ao no considerarmos o momento em que o desembarque anglo-americano na frica do Norte contribui para criar, em 1943, uma terceira estrutura adminis-trativa.

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    Francesa de Ao Artstica prope aqui uma verso minimamente modifica-da como veremos mais adiante). O site do ministrio na internet(www.diplomatie.gouv.fr) prope igualmente, em 2000, uma cronologia in-teiramente de acordo para a 2a Guerra Mundial (no sendo o termo dos maismodernos) e agora indicando bem o que no queremos compreender deVichy prolongando de um semestre a III Repblica com Paul Baudoin, defato ministro do governo de Vichy27, mas, ao mesmo tempo, ministro daIII Repblica28. Percebe-se isto, com efeito, na rubrica Arquivos diplom-ticos, prefaciada por uma renomada acadmica que certamente sem ter vistoo site lembra a utilidade destas pginas para estudantes e historiadores:

    www.diplomatie.gouv.fr/archives/archives/expo/140/39_45/index.htmlA contradio interna, ademais, no incomoda. Se Laval est ausente

    como Ministro das Relaes Exteriores durante a Segunda Guerra Mundial,aparece, contudo, na rubrica dedicada ao entre-duas-guerras, ocupando, defato, este ministrio por cinco vezes entre 1932 e 1936; e, quando seleciona-mos o retrato de Laval (teria a foto sido escolhida deliberadamente comoretrato encarregado de manifestar a hipottica anomalia desta nomeao?),ele reaparece, ento, como ministro durante a Ocupao: mas somente de

    abril de 1942 a agosto de 1944, e no de outubro de 1940 a dezembro de 1941,como se o incio de Vichy (de fato, includo segundo este site na III Repbli-ca), no entanto to expressivo da colaborao e da poltica de excluso, de-vesse ser dissociado de Laval29!

    e tornando-se, assim, uma direo numericamente considervel. Outorgou-se uma placa deaspecto bastante tcnico, dando pouco espao histria, exceto num ttulo A cooperaofrancesa: tradio e renovao, que ignora o velho Servio das Obras e comea apenas em1945, com a criao da Direo Geral das Relaes Culturais.27 Respectivamente no endereo www.diplomatie.gouv.fr/archives/archives/expo/140/39_45/04.html e em www.diplomatie.gouv.fr/archives/archives/expo/140/39_45/index.html. O tra-tamento da Segunda Guerra Mundial por este site parece ter ensejado amplos debates inter-nos no ministrio, mas a tradio que nega qualquer limite entre a III Repblica e a Franalivre decididamente predominou.28 Alm disto, ele se demite aps Montoire, Laval assumindo as relaes Exteriores; depoisele apenas Ministro Secretrio de Estado na Presidncia do Conselho (Jean-BaptisteDuroselle, LAbme 1939-1944, Imprimerie Nationale, 1986, p. 269).29 LAVAL (Pierre),Senador, Presidente do Conselho, falecido em 15 de outubro de 1945.Quatorze de janeiro-21 de fevereiro de 1932 ; 13 de outubro-7 de junho de 1935, trs vezes

    ministro; 7 de junho de 1935-24 de janeiro de 1936, Senador, Presidente do Conselho, Mi-nistro pela quinta vez. 18 de abril de 1942-agosto de 1944, Ministro do governo de Vichywww.diplomatie.gouv.fr/archives/archives/expo/140/2guer/08.html.

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    H tambm uma sensvel diferena entre a cronologia proposta pelaobra publicada pelo CNRS e seu texto. O texto em si no faz Vichy desapa-recer. O captulo preliminar, dedicado ao perodo da guerra, distingue as-sim trs itens: O departamento na poca de Vichy, O Comissariado Na-cional para as Relaes Exteriores (Londres, 1940-1943) e, em seguida, OComissariado para as Relaes Exteriores do Comit de Libertao Nacio-nal (Argel, 1943-1944). O plano detalhado pode-se justificar pela existnciade trs estruturas administrativas diferentes, mas leva a negligenciar a cro-nologia e exagera o desenvolvimento das estruturas da Resistncia (2 partesem 3).

    Temos, com isto, uma idia do tratamento do terceiro problema, aquesto da passagem de uma instituio para a resistncia. O primeiro de-senvolvimento do captulo consagrado guerra intitula-se, verdade, Odepartamento na poca de Vichy30. Porm, ele obscurece a tal ponto passa-gens para a resistncia pessoal ou poltica31 que o leitor passa a se perguntarqual foi a consistncia da instituio fiel ao governo (apenas um diplomatarompeu, todavia, com o governo Ptain, que pediu o armistcio32).Os exem-plos que no cabe contestar se multiplicam e estes elementos isolados

    no deixam de dar a impresso de um ministrio com ares de resistente: oSecretrio Geral coloca o cargo disposio aps Montoire: o governo de Vichyprocede a transferncias e demisses, afetando particularmente os assun-tos polticos e o Servio das Obras(assuntos culturais); um dos responsveispor este ltimo servio, primo do general Leclerc, recusou-se a prestar jura-mento ao Marechal Ptain e foi demitido; a apreenso da documentao doMinistrio pelos alemes e a reduo dos circuitos de comunicao utiliz-veis colocam grandes dificuldades, mas a mala [...] serviu mais de uma vez

    resistncia, especialmente rede Aliana, sobretudo aps a instalaodo Comit Francs de Libertao Nacional em Argel, com a rede Martial;

    30Les Affaires trangres, op. cit., pp. 541-561.31 Apenas tardiamente esclarecido (p. 557) que, at novembro de 1942, o ritmo dasdefecesfoi modesto; na pgina seguinte, porm sublinhado que elas eram j sens-veis desde o retorno de Laval ao poder (p. 558). Este pargrafo d a impresso de uma he-morragia quase global de pessoal entre 1942 e 1944.32 Brugre, em Yougoslavie. Cf Jean-Baptiste Duroselle, LAbme, op. cit., p. 187.33 Deve-se ainda, no obstante, mesmo enquanto a anglofobia de Vichy destacada (pp. 553-

    554), falar de agresso de Mers-el Kbir (p. 549), sobretudo numa obra sobre as RelaesExteriores, onde as questes estratgicas so percebidas como mais bem compreendidas doque em outros espaos?

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    os contatos mantidos com a Inglaterra33 e os governos no exlio em Londresso bastante ativados, assim como as presses alems para romper com cer-tos Estados ou denunciar diplomatas partidrios da Frana livre; o Serviodas Obras com a Sra. Bidault ajuda companhias teatrais34 e intelectuais,que podiam ser perturbados pelos Alemes, a sair da Frana; e, depoisde novembro de 1942, dois Departamentos haviam-se instalado de algumaforma; um, oficial, continuava funcionando em Vichy, pela necessidade demanter a fico do Estado francs; o outro uma espcie de Departamentofantasma destinado sobretudo a preparar a Libertao, em acordo com oCFLN.

    Na ausncia de uma leitura cuidadosa, a impresso extrada de umarelativa confuso cronolgica de conjunto35 contribui para a idia de que, afi-nal, a resistncia emerge cedo e maciamente em um Ministrio das Rela-es Exteriores, cuja lealdade ao governo teria declinado rapidamente.

    Este captulo distingue pouco, ou at mesmo amalgama, sem dificul-dades, as convergncias (a princpio raras, depois mais freqentes) com DeGaulle (antes de 1943) e, aps a operao Torch, que liberta a frica do Norte,as (mais numerosas) com Darlan, Giraud e o CFLN; e um dos leit motiv a

    defesa da experincia dos quadros do Quai dOrsay frente inpcia dos v-rios diplomatas de circunstncia da Frana livre. J sensvel onipresena dapassagem para a resistncia, a apologia do pessoal e do corpo diplomtico clara, reforada pela meno de uma certa desconfiana [do governo de Vichy]com relao ao pessoal da diplomacia36. Ela paralela a uma descrio recor-rente das dificuldades37 que caminham, de maneira cronologicamente muitofluida, para a paralisia da atividade material das relaes exteriores deVichy38: e leva a considerar globalmente que tais relaes, marcadas pelo si-

    lncio, consistiam mais em informao do que em ao39. Em outras pala-vras, por um lado, a passagem para a resistncia, em diversos momentos, seria

    34 No conhecemos seno uma, o Ateneu-Louis-Jouvet. O testemunho da Sra. Bidault e suaatividade posterior a 1941 no so estranhas construo do memorial resistente da misso doAteneu.

    35 O plano detalhado exato, mas contribui para retomar tema aps tema o conjunto do pero-do, conduzindo a este amlgama no momento da leitura.36Les Affaires trangres, op. cit., p. 555.37

    Ibidem, pp. 539-547.38Ibidem, pp. 548, 551.39Ibidem, p. 552.

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    macia; por outro, os que no fizeram este movimento no poderiam traba-lhar. Se queremos admitir que as relaes exteriores so, com efeito, uma dasadministraes que mais viram seu campo geogrfico de ao restringir-sedurante a guerra, antes do episdio Darlan, mais de quinze anos de pesqui-sas em arquivos das relaes exteriores no produzem esta impresso de umapassagem rpida e importante do ministrio para a resistncia, mas sim prin-cipalmente para o pessoal ativo no estrangeiro de uma disperso discretaantes da entrada dos EUA na guerra, um pouco mais visvel em seguida, maisimportante no dia seguinte ao desembarque anglo-saxo na frica do Norte;que pensemos, por exemplo, nos pedidos de perda do direito nacionalidade

    francesa que transitaram bastante pelo ministrio, antes de serem decididose transmitidos. A primeira concluso, que nos leva a este desenvolvimentosobre I. O Departamento na poca de Vichy, clara e esperada: Podemosperguntar-nos se poderamos falar de um Quay dOrsay a respeito de um pasem perodo de armistcio40. A segunda, ainda mais: terminando com um de-senvolvimento sobre o Bir clandestino de Paris41, sem dvida fundado, aobra produz no esprito do leitor a idia de que, em todas as terras, a resistn-cia diplomtica era mais importante, antes mesmo da leitura das pginas de-

    dicadas resistncia organizada em Londres (II) e Argel (III).O que se prope no , ento, uma verso renovada da antiga teoria do

    jogo duplo de Ptain ou da solidariedade: Ptain, internamente, De Gaulle,no exterior; Ptain para proteger neste momento os franceses, De Gaulle,pelo futuro da Frana; uma viso globalmente resistencialista que passapela continuidade de uma funo pblica, a das relaes exteriores, global-mente clarividente ou de imediato impotente.

    O historiador ou quem pretende s-lo, nesta matria, distingue-se, no

    mnimo insuficientemente, do memorialista. Mais que isto, ele valida a au-sncia de limite ou a construo de limites artificiais. Valida, com sua autori-dade, o discurso de uma memria que adapta, em benefcio prprio, os ele-mentos de informao: uma memria funcional para uma instituio e umcorpo e, conforme o clima de um ps-guerra que, rapidamente, quis negar aexistncia de conflitos entre franceses42.40 [e ]reduzido, aps novembro de 1942, a uma subordinao completa: Les Affairestrangres, op. cit., p. 558.41Les Affaires trangres, op. cit., p. 559.

    42 Deve-se notar que os funcionrios das Relaes Exteriores, mais ligados informao ex-terna que a mdia da populao francesa, foram sem dvida menos sensveis informao e propaganda de Vichy. Os quadros em atividade no estrangeiro, fora da Europa nazista e fas-

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    Na aurora do sculo XX, com a crescente influncia de outras naes,europias sobretudo a Alemanha em primeiro lugar e dos EUA, surgiu aidia de uma interveno governamental francesa no campo da ao cultu-ral. Em 1910, a iniciativa administrativa em matria de cultura fez uma es-tria discreta no Ministrio das Relaes Exteriores com o Departamento dasEscolas e das Obras Francesas no estrangeiro, com um ou dois funcionriosapenas. Apesar do desdm pela arte propagandstica, a Primeira GuerraMundial reforou a idia de uma necessria ao concertada: um escritriode relaes pblicas e de propaganda foi criado em 1915, logo timidamentedenominado Casa da imprensa. Tal servio (ou departamento) das Esco-las e das Obras das Relaes Exteriores reaparece em 1918, sendo reorgani-zado em 1920 e, transformado em Servio das Obras Francesas no estrangei-ro, foi incumbido de questes concernentes expanso intelectual da Franafora do pas43. Antes de 1939, este pequeno servio nunca teve mais de dezpessoas44, mas conservou suas prerrogativas culturais intactas at a guerra45 etrabalhou ativamente. At o dia seguinte ao armistcio de 1940, at a mudan-a do regime, a palavra propaganda, considerada inconveniente, foi toda-

    via cuidadosamente evitada na Frana nas denominaes oficiais. Uma pro-paganda que podemos aqui definir muito amplamente como um esforo paratransmitir os valores sociais e polticos46.

    Para o perodo da guerra, sem falar das placas nas quais a abreviaoesclarecedora um imperativo e os limites polticos totalmente deslocadosno cerne da conciso, a Associao Francesa de Ao Artstica (AFAA) e aDireo Geral das Relaes Culturais, Cientficas e Tcnicas (DGRCST),convertida, em 1999, na DGCID (aps a absoro do Ministrio da Coopera-

    o), do Ministrio das Relaes Exteriores, construram para si uma histria

    cista, estavam ainda mais expostos a fontes de informao contraditrias, at mesmo e sobre-tudo anglo-saxs e, freqentemente, obtiveram com rapidez a medida da evoluo dos acon-tecimentos.43 Citado por Les Affaires trangres et le corps diplomatique franais, tome II, Paris, CNRS, 1984,p. 393.44 Freqentemente brilantes, claro; ao lado de Giraudoux, j citado, pode-se citar Paul Morand(subchefe da seo artstica), que muito se interessou pelas questes americanas.45

    Cf. os exemplos citados por Gilles Matthieu, op. cit., pp. 68-69.46 Cf. P. Kenez, The Birth of the Propaganda State: Mass mobilization in Russia, 1917-1929,Cambridge, CUP, 1985.

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    altamente resistente e que o tempo pouco altera47. Em 2000, entretanto, aplaca de apresentao da DGCID, de aspecto bastante tcnico, abandonouo essencial das referncias histria.

    Uma bela obra, indispensvel e pioneira, a respeito das Histrias dediplomacia cultural das origens a 199548, constri sem ambigidade esta me-mria resistencialista da guerra. Nenhum dos autores historiador: o ni-co citado na apresentao da obra, na contracapa, Alain Decaux49. E o plu-ral nas Histrias previne, de alguma forma, o leitor esclarecido. Enfim, umacitao de De Gaulle, utilizada na capa, menciona j a Resistncia do pen-samento francs durante a guerra... O perodo da guerra abordado num

    segundo captulo, intitulado 1939-1945: na tormenta50. De imediato, naintroduo deste captulo, antes de enunciar a palavra Vichy, os autores su-blinham em dois pargrafos a existncia de um segundo Servio das Obras,ativo em Londres51, e a ateno dispensada questo cultural no mbito daFrana livre52: Vichy surge depois! E isto para invocar a ao indubitavel-mente resistente de certos funcionrios.

    O desenvolvimento construdo em duas partes: Vichy: do Marechal Resistncia; em seguida, Londres, Argel, Paris: a ao da Frana livre.

    O primeiro subttulo bastante eloqente sobre a ausncia de limites, sobrea transio percebida como inevitvel. Por trs de um contedo inspirado pelaobra citada acima, sobre As Relaes Exteriores e o corpo diplomtico francs53, aquesto central so as conseqncias das leis anti-semitas sobre a direodestas instituies, posteriormente sobre a (boa54) vontade dos diplomatasremanescentes nos cargos para manter viva a cultura francesa, todavia afeta-da cedo pela paralisia progressiva do aparelho diplomtico. E passamos

    47 N.T.: As expresses histria resistente, verso resistente, etc., empregadas pelo autor,aparecem a partir daqui para designar vises da histria que generalizam artificialmente aparticipao dos franceses no movimento de resistncia ocupao alem durante a guerra.48 Franois Roche, Bernard Piniau, Histoires de diplomatie culturelle des origines 1995, Paris,ADPF-La Documentation franaise, 1995.49 De fato, presidente de honra da AFAA.50 Franois Roche, Bernard Piniau, op. cit., pp. 57-72.51Ibidem, p. 58.52Ibidem, p. 58.53

    Porm citado, anteriormente (nota 4), com um duplo erro: o captulo atribudo a ClaudeLvy, que no parece ter participado da obra, e o nmero de pgina falso (p. 241 para 542-54).54 Franois Roche, Bernard Piniau, op. cit., pp. 60-62.

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    diretamente a 1943, para a chamada hora do lobo, quando vigorou a viaintermediria que Vichy encarnava55. No preciso aqui contestar com ar-gumentos capciosos esta indefensvel via intermediria, pois os autoresabandonam rapidamente a dimenso oficial deste servio para evocar umaespcie de infiltrao da dissidncia na administrao de Vichy... Antes deabrir a parte sobre a Frana livre, como em As Relaes Exteriores e o corpo di-plomtico francs, estes so os mesmos procedimentos retricos utilizados,embora com numerosas simplificaes, para, conscientemente ou no, infun-dir os arqutipos da memria na histria.

    A Associao Francesa de Expanso e Intercmbios Artsticos, criada

    em 1922, torna-se, em 1934, a Associao Francesa de Ao Artstica (AFAA).Trata-se de um organismo de execuo do Ministrio das Relaes Exterio-res e do Ministrio da Educao Nacional56. Destina-se a facilitar a sua tare-fa: autonomia financeira e maior flexibilidade dos meios de ao57 fazem deleum organismo dotado, em princpio, de maior eficincia. Deve assegurar adifuso da arte francesa e o bom acolhimento dos artistas estrangeiros naFrana, [...] organizar em todas as circunstncias oportunas exposies, con-certos, representaes lricas ou dramticas, [...] informar [...]58.

    A ltima obra publicada at o presente momento sobre a AFAA59 reto-ma e amplia a soluo da lacuna utilizada pelas j evocadas cronologias dasrelaes exteriores: os autores desta obra, com plano cronolgico dividido emtrs partes, A ao artstica da Frana no mundo,fecham uma primeira parteem 1939 e retomam a segunda em 194560. Sem nenhuma explicao, a guer-ra inteira (Drle de guerre, Vichy, a Libertao) desaparece da obra. Na bro-chura de apresentao, publicada pela AFAA em 2000, uma cronologia apagaa guerra da mesma maneira: os presidentes e os diretores nomeados por Vichy

    desaparecem sob uma continuidade artificial que vai dos anos 30 aos 50(1935-1950, Albert Sarrault) ou 60 (1938-1968, Philippe Erlanger, no

    55Ibidem, p. 64.56 Desde 1932, membros diplomados em Direito representam os dois ministrios no conse-lho de administrao.57 Ver AMAE-N, EA, d. 141, notcia sobre a AFAA, s. d. (conjunto dspar 1933-1940/1941?).58Idem.59 A histria de uma aventura conduzida pelas instituies, mesmo se [elas] tiveram [...] par-

    ceiros privados, p. 16.60 Bernard Piniau et Ramon Tio Bellido, Laction artistique de la France dans le monde, Paris,LHarmattan, 1998.

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    entanto afastada pelo primeiro decreto estabelecendo o estatuto dos judeusdesde o outono de 1940).

    O papel da reproduo cientfica

    Quando alargamos o ngulo de viso da histria interna destas institui-es para uma histria incluindo sua obra, fenmenos similares de ausnciade limite entre a memria e a histria do tempo presente so identificveis.Certos acontecimentos so, ento, retirados de seu contexto de origem eutilizados para reforar ou construir a idia de uma resistncia institucional.

    Isto , sem dvida, o que acontece em duas exposies de arte francesa, or-ganizadas antes da guerra no continente americano (norte e sul) e que nocruzaro novamente o Atlntico at o fim da guerra. O mesmo ocorre com aextraordinria excurso latino-americana de Louis Jouvet e seu teatro, oAteneu, entre 1941 e 1945. Um episdio romanesco amplamente instrumen-talizado na maior parte dos impressos, narrando a histria do Servio das ObrasFrancesas no Exterior e, sobretudo, a da AFAA.

    Hoje, numerosos trabalhos, freqentemente realizados em torno do

    Instituto de Histria do Tempo Presente, permitem apreender precisamen-te a vida cultural na Frana durante a guerra61. Porm, os aspectos externosdo edifcio permanecem na sombra e dispersos. A ao cultural de Vichy emesmo a da Frana livre, o ensino francs e da lngua francesa (na encruzi-lhada religio-poltica, em funo da importncia das congregaes de ori-gem francesa), o exlio francs ( exceo de um estudo norte-americano sobreo exlio francs nos EUA62, nada comparvel aos teis volumes de Weimar enexil63), as manifestaes da cultura francesa (livro, teatro...) aguardam ainda otrabalho histrico64: as snteses, como diversos estudos de detalhe, fazem falta.61 Serge Added, Le thtre dans les annes-Vichy, 1940-1944, Paris, Ramsay, 1992; Jean-PierreBertin-Maghit, Le cinma sous lOccupation, Paris, Olivier Orban, 1989; Laurence BertrandDorlac, Lart de la dfaite, 1940-1944, Paris, Seuil, 1993; Laurent Gervereau et DenisPeschanski (orgs..), La propagande sous Vichy 1940-1944, Nanterre, BDIC, 1990; Pierre Laborie,Lopinion franaise sous Vichy, Paris, Seuil, 1990; Dominique Rossignol, Histoire de la propagandeen France de 1940 1944, Paris, PUF, 1991; Dominique Veillon, La mode sous lOccupation, Paris,Payot, 1990; Jean-Pierre Rioux org..), La vie culturelle sous Vichy, Bruxelles, Complexe, 1990.62 Colin W. Nettelbeck, Forever French, Exile in the United States, 1939-1945, New York, Berg,1991.63

    Jean-Michel Palmier, Weimar en exil, 2 vols., Paris, Payot, 1988.64 Sobre a evaso da Frana: Roger Belot, Aux frontires de la libert, Vichy-Madrid-Alger-Lon-dres, Svader de France sous lOccupation, Paris, Fayard, 1998.

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    Ento, sob a cobertura da histria, a impreciso favorece as apologias insti-tucionais ou pessoais.

    Em 1990, os autores do catlogo de uma exposio sobre A propagandasob Vichy reproduziram para Louis Jouvet o que ele mesmo afirmou a respei-to de sua longa permanncia no estrangeiro, a saber, a idia de um longoexlio65; muito logicamente, no contexto do imediato ps-guerra, Jouvet nopronunciou a palavra Vichy no texto de uma conferncia feita ao retornar;declarou Eu parti. assim que, durante quatro anos de exlio, representan-do ao acaso em pases da Amrica Latina, nos vimos, eu e meus camaradas,nas condies primitivas dos antigos comediantes...66.

    O que mais escrever no incio dos anos 1990 tendo, em vista as pesqui-sas? Alm-mar, considerou-se, s vezes, que Jouvet estava, por acaso, emtemporada no estrangeiro, quando da invaso de junho de 194067. Mas, naFrana, o autor da melhor sntese apresentada at hoje sobre O cinema sob aOcupao sinaliza que, para no trabalhar com os invasores, Jouvet esco-lheu o exlio68. Seu homlogo no teatro assinala que a censura foi a causadireta da partida de Jouvet69. Enfim, para o perodo 1914-1940, o nico his-toriador francs a se aproximar um pouco das questes de poltica cultural

    francesa na Amrica do Sul no escreve outra coisa: ele evoca Louis Jouvete sua companhia, confinados no exlio por quatro anos, representando ao acaso

    65 Louis Jouvet mencionado entre os membros da Continental Filmes e uma nota assinala:Este ltimo escolheu o exlio que o leva primeiro a Genebra para filmar A Escola de Mulherese, depois, Amrica do Sul, Jean-Pierre Berthin-Maghit, Le cinma et les actualits filmes,La Propagande sous Vichy, Paris, La Dcouverte-BDIC,1990, p. 196. Mesma nota em Le cinmasous lOccupation, Paris, Olivier Orban, 1989, p. 36.66 Louis Jouvet, Prestiges et perspectives, op. cit., p. 11. Nestas palavras, Jouvet engloba, todavia,realidades diferentes, das quais duas tournes distintas: quando deixa Paris, trata-se apenas de

    uma tourne na Sua e de uma srie de representaes na zona livre. A temporada americana apenas um projeto bastante avanado, mas para o qual nada est garantido. E, de qualquerforma, difcil falar de um exlio em 1941 e 1942: como se escreveu a propsito das Cartasalemes no exlio, hesitamos em incluir nesta categoria do teatro no exlio um certo n-mero de peas, de encenaes e de companhias que conseguem (na Europa) trabalho no es-trangeiro (Jean-Michel Palmier, Weimar en exil, 2, Exil en Amrique, Paris, Payot, 1988, p. 87).Ora, quando Jouvet deixa a Frana, os teatros do Rio, de Buenos Aires e de Montevideo con-trataram o Athne para a temporada de 1941 e o retorno programado.67 Em 1941, com a chegada em plena guerra de Louis Jouvet (que estava acidentalmente emtourne quando seu pas foi ocupado), Ernesto Scho, Escenarios: las dos caras del teatro,

    Francia en la Argentina, Buenos Aires, Manrique Zago ed., 1995.68 Jean-Pierre Bertin-Maghit, op. cit., p. 36 (autor do texto do catlogo j citado).69 Serge Added, op .cit., pp. 100 e 131.

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    dos convites70. O bigrafo de Jouvet, sem economizar elogios quanto com-panhia americana, ele mesmo bastante discreto quanto s origens destedeslocamento71. Somente um historiador norte-americano, constatando arelativa pobreza do teatro francs no exlio em Nova York e a estrita recusaoposta por Washington vinda de Jouvet aos EUA, por razes que perma-necem obscuras, no reproduz o discurso comum e leva a algumas interro-gaes72. Como ficamos?

    Louis Jouvet volta, no outono de 1940, com A Escola de mulheres emseu teatro, o Ateneu. Depois, frente da sua companhia, saiu da Paris ocupa-da para uma tourne na Sua. Instalou-se em seguida em zona livre e ali atuou

    de cidade em cidade. Os teatros helvticos o acolheram uma segunda vez.Posteriormente, via Espanha e Portugal, alcanou e percorreu a AmricaLatina de 1941 a 1945. Cruzando dezesseis pases, Jouvet atuou com uns vintee cinco companheiros em duas temporadas no Brasil, na Argentina e no Uru-guai. Saindo dos espaos previamente estabelecidos, passou ento pelo Chi-le, Peru, Equador e, atravessando os Andes, pela Colmbia e Venezuela.Enfim, a companhia vai representar em Cuba e no Haiti, antes de chegar,num cargueiro, em nmero de vinte apenas, tendo em vista os vrios recru-

    tamentos acontecidos no caminho, ao Mxico. Difcil, atravs do Caribe e,em particular, das Antilhas francesas, o retorno Frana se d, desta vez, comapenas doze. Em quatro anos de guerra, o comediante e diretor realizou, as-sim, muitas centenas de apresentaes73, continuando sua obra de criao emoutros lugares.

    De volta a Paris em 18 de fevereiro de 1945, no momento em que amemria resistente da companhia j est largamente garantida por uma

    70 Gilles Matthieu, Une ambition sud-amricaine, politique culturelle de la France (1914-1940), Paris,LHarmattan, p. 190.71 Jean-Marc Loubier, Louis Jouvet, biographie, Paris, Ramsay, 1986, 5o captulo, Dieu vousbnisse... M. Jouvet.72 Colin W. Nettelbeck, op. cit., p. 72.73 Pelo menos 191, de julho de 1941 a dezembro de 1942, segundo a teatrografia fornecida,em anexo, de Loubier, que, feita com o material ento disponvel, no parece confivel (AEscola de mulheres no aparece ento na temporada sul-americana); 376, segundo Jouvet eKarsenty, de junho de 1941 a fevereiro de 1945, em 13 pases diferentes (Marcel Karsenty,Les promeneurs de rve, Cinquante ans de tournes thtrales travers le monde avec les Galas Karsenty,

    Paris, Ramsay, 1985, p. 187) das quais 14 em benefcio da Cruz Vermelha ou das obras deguerra, para um nmero aproximado de 700.000 espectadores (Louis Jouvet, Prestiges etperspectives du thtre franais, Paris, Gallimard, 1945, p. 19).

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    imprensa unnime74, o autor e seus fiis (alguns se recusaram a retornar)so acolhidos como heris. Em 12 de maro, Jouvet recebido pelo generalDe Gaulle. O chefe do governo provisrio felicita-o, ento, pela notvel einigualvel embaixada itinerante que ele, com sua companhia, fora para aFrana e a imagem que dela difundiu75. Pois se trata exatamente de umaembaixada.

    Este carter oficial, os EUA identificaram com preciso. Washingtonnegou mesmo a Jouvet qualquer facilidade, recusando-lhe, assim, a passa-gem por um de seus portos para que fosse atuar no Canad. Melhor, o FBI eo Departamento de Estado dificultaram seus deslocamentos no Caribe, pri-

    meiro areos, depois martimos, em seguida, em 1944, recusaram-lhe indire-tamente a entrega de filme...

    A companhia reconstituda do teatro do Ateneu havia sado de Paris, comsuas bagagens, com um documento alemo: deixava a zona ocupada para umatourne subvencionada na Sua. Aps algum tempo na Frana no ocupada,evitando as proibies legislativas concernentes emigrao, partiu de Lyon,em maio de 1941, para uma temporada oficial na Amrica Latina: seu res-ponsvel no era o nico titular de um passaporte semidiplomtico, dito de

    servio. Vichy financiava, em 1941 como ainda em 1942, a tourne com so-mas considerveis, sobretudo nestes tempos de penria de divisas. O que logo designado pela expresso misso Jouvet hipotecou qualquer outro pro-jeto exterior importante ou distante empreendido pela AFAA durante estesdois anos76.

    Os arquivos da tourne no deixam dvidas sobre o carter oficial damisso organizada por Vichy, em 1941, para o Ateneu-Louis Jouvet77. Jouvet

    74 Cf. Denis Rolland, Le thtre, la mmoire et lhistorien, la troupe de Louis Jouvet entreVichy et la France libre 1940-1945, Coups de thtre, Paris, n 3, junho de 1995, pp. 47-69, eLa construction dune mmoire au lendemain de la guerre: Louis Jouvet et le thtre delAthne en Amrique latine 1941-1945, Matriaux pour lhistoire de notre temps (BDIC), 1-1996, pp. 42-45.75 Lo Lapara, Dix ans avec Jouvet, Paris, France Empire, 1975, p. 172.76 O nico outro projeto de envergadura comparvel, a tourne dos Pequenos Cantores na Cruzde Madeira, garantido por um financiamento direto com fundos do prprio chefe de Esta-do. , alm disto, um projeto financeiramente muito menos pesado, pois no h nem cen-rio, nem figurinos para transportar; como as crianas no viajam em primeira classe, so aco-

    lhidas nas casas dos habitantes, o que no se trata de per diem.77 Cf. Denis Rolland, Louis Jouvet et le Thtre de lAthne 1939-1945, Promeneurs de rves enguerre, Paris, IUF-LHarmattan, 2000.

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    deve aceitar condies ainda obscuras para o historiador; um membro dacompanhia, o representante de imprensa, foi encarregado de enquadrar po-liticamente a companhia, talvez tambm de uma misso de polcia das em-baixadas ou de colaborao; e outros so encarregados de distribuir propa-ganda. As Administraes das Relaes Exteriores, do Interior, da InstruoPblica e mesmo o Comissariado para as questes judaicas so todos avisa-dos sobre a misso, inscrita na continuidade das tournes, contando com opatrocnio governamental (1939, Comdie Franaise; 1940, Vieux-Colombier). Ea imprensa, assim como a opinio pblica, no o ignoram absolutamente.Entre outros numerosos documentos, esta entrevista de Jouvet com um jor-

    nalista do Figaro, na hora da partida, em Lyon, testemunha o fato: O Sr. deve ter sentido muita dificuldade para organizar esta tourne

    fora do continente? Claro! Imagine os problemas de uma tourne comum multiplicados

    por cem. E eu sou otimista!78. E claro uma tourne oficial? Naturalmente. Do contrrio nada teria sido possvel79.H, todavia, limites para esta misso oficial.

    Em primeiro lugar, um limite vinculado motivao de cada um dosmembros da companhia. Nem todos aderem Revoluo nacional. O pr-prio Jouvet tem um interesse medocre pela poltica, preocupado apenas emfazer teatro de qualidade, seu teatro, e nas melhores condies materiaispossveis. Pelo teatro, ele aceitou participar da poltica teatral da Frente Po-pular; aceitou tambm participar das reformas das corporaes de Vichy nooutono de 1940.

    Em seguida, limites cronolgicos:em 1941, como em 1942, o Ateneu-

    Louis Jouvet representa sob os auspcios de Vichy, com cartazes que anun-ciam o patrocnio, manifesta seus laos com as representaes diplomticasde Vichy, recusa qualquer contato com os franceses livres e mostra distnciapara com estes agitadores; ainda em 1941, a embaixada alem assiste aos es-petculos; em 1942, salvo no Rio de Janeiro, o sucesso bem menor do queem 1941. O outono de 1942 marca o fim da misso oficial: Jouvet no maissubvencionado por Vichy; decide ficar, mas nem por isto adere Frana li-vre, que considera parcialmente responsvel pelo fracasso da temporada de

    78Le Progrs, Lyon, 28-05-1941.79Le Figaro, Lyon, 27-05-1941 (grafia de origem).

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    1942 na Argentina e no Uruguai. A passagem pelo Chile, com apenas umaparte da companhia (uma parte havia retornado em 1941, outra no continuouaps a segunda temporada), acontece num clima melanclico e de crise fi-nanceira: com excees, a Amrica Latina acompanhou a entrada dos Esta-dos Unidos na guerra (ao menos pela ruptura das relaes com o Eixo 80) eVichy contestada em toda parte. No Chile, porm, em algumas apresenta-es81, os representantes alemes comparecem, o que mostra, no mnimo, queo Ateneu-Louis Jouvet no rotulado como dissidente. somente duranteo ano de 1943, na Colmbia e na Venezuela particularmente, que a Franalivre deixa de boicotar Louis Jouvet e passa a auxiliar a organizao material

    das temporadas. A passagem entre Vichy e a Frana Livre se d no primeirosemestre de 1943.

    Rapidamente abordada pelo bigrafo de Jouvet82, a tourne se impe,no entanto, em algumas publicaes de lembranas dos seus participantes83.Mas a memria da tourne se construiu, no essencial, independentemente daslembranas do ps-guerra. No segundo semestre de 1944, a imprensa divul-ga esta verso resistente a partir de dois elementos principais: a morte supos-tamente em campo de concentrao de uma secretria de Louis Jouvet, que

    participou da primeira temporada sul-americana, e o testemunho de um re-sistente de primeira hora (Paul Rivet), afirmando que o Ateneu fez na Amri-

    80 De novembro de 1941 a janeiro de 1942, Cuba, Mxico, Colmbia, Venezuela, Peru, Uru-guai, Paraguai, Brasil, Bolvia e Equador romperam relaes com o Eixo (apenas Chile e Ar-gentina foram excees), ao passo que o essencial da Amrica Central e do Caribe estava emguerra ao lado dos EUA desde o fim de 1941.81 O Chile somente rompe suas relaes com a Alemanha em janeiro de 1943.82 Jean-Marc Loubier, Louis Jouvet,op. cit.83 Madeleine Ozeray, A Toujours, Monsieur Jouvet, Paris, Buchet-Chastel, 1987 (relato muitoimpressionista de uma companheira de Jouvet que o abandona e abandona a companhia em1943).

    Wanda Krien, Louis Jouvet, notre Patron, Paris, Editeurs Franais Runis, 1963 (relato deuma atriz da companhia, inspirado em testemunhos preexistentes, cronologia incerta).

    Catherine Moissan, Pampa, Samba, Vaudou, Paris, Fasquelle, 1947.

    Marcel Karsenty, Les promeneurs de rve, op. cit. (testemunho pesado do organizador).

    Lo Lapara, op. cit. (francs, casado com a filha de um diplomata brasileiro, parte para oBrasil em junho de 1941; com sua mulher, reencontra a companhia quando da preparao da

    segunda temporada no Rio de Janeiro, em 1941, ator e, depois, co-organisador da tourne). Louis Jouvet, Prestiges et perspectives..., op. cit.

    Agradecimentos a Luc Capdevila (Universit de Rennes 2) por sua leitura.

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    ca Latina um excelente trabalho de propaganda cultural para a Frana li-vre: Rivet estava na Colmbia quando Jouvet chega, em 1943, sendo emseguida Adido Cultural da Frana livre no Mxico, no comeo de 1944, anoem que Jouvet chega quele pas; e precisamente o momento em que acei-ta o apoio da Frana livre. O mrtir e o selo de resistente varrem Vichy e osanos de 1941-1942. Assim, no outono de 1944, quando Jouvet ainda se en-contra no Mxico, a Frana escuta, com o relato da aventura do Ateneu, oque ela deseja escutar. Que, durante a tempestade dos anos de guerra, a cul-tura francesa continuou se propagando pelo mundo e atravs de indivduosconsiderados no comprometidos. A amnsia de Vichy, comum, , neste

    caso, ainda mais compreensvel. Mas a instrumentalizao, pelos autores dehistria das instituies culturais francesas, dispondo de fontes de conte-do unvoco, coloca outros problemas metodolgicos. Extremamente atento temporalidade, s evolues de representaes institucionais e pessoais,complexas para se determinar, mas que devem ser integradas sua reflexo,o trabalho do historiador, em princpio, consiste tambm em colocar certoslimites reproduo e difuso de uma memria que no tem razes nasfontes.

    Para o Abismo da poltica externa francesa, escreve-se ainda uma lite-ratura com pretenses histricas, destinada a apagar certos pretensos aca-sos da histria, validando a amnsia longamente dominante no que concerneao Estado francs. A autopromoo de certas instituies (AFAA, DGRCST)por muitos anos transitou por uma corrente do tempo simplesmente retoma-da, de uma maneira ou de outra, por sobre a guerra, entre a III Repblica ea Libertao: ela permite tanto fazer desaparecer a guerra como afirmar que,setorialmente, nada se passou de importante em outros lugares, salvo do lado

    da Resistncia. A histria aqui escrita deve, talvez, ser considerada com umacerta indulgncia, quando se trata de autopromoo ou, at mesmo, de pu-blicidade. Ela no pode s-lo, quando se d sob a marca da cientificidade e,mais ainda, quando fisicamente prxima das fontes com base nas quais otrabalho escrito. Certos limites cientficos no podem ser transgredidos.Mesmo se podemos compreender bem que no se deseja questionar a hist-ria da instituio, que lhe fornece sua principal fonte, o historiador no se podecontentar em reproduzir, sem comentrio, um discurso comum que faz parte

    tambm de seu material de estudo: h aqui, por outro lado, um limite artifi-cial entre objeto e no objeto de histria que convm abolir, como j fizeram

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    outras reas da histria. Sessenta anos depois da supresso brutal e quaseunnime das instituies republicanas, sessenta anos depois da implemen-tao de polticas tragicamente discriminatrias, a sndrome de Vichy aindano pertence ao passado. E, sob o vocbulo de histria, a despeito de deba-tes internos que, sem dvida, aconteceram, transpomos sem hesitar os limi-tes elementares da deontologia do ofcio de historiador. Por questes de ima-gem, de identidade, produz-se, segundo as palavras de Paul Ricur, umamemria manipulada. Para fazer crer, convencer e agradar, trafica-seconscientemente, ento, a memria pelo vis da narrativa com [...] suasnfases e seus silncios84. Neste caso de representao do passado, no h

    nenhum problema de limite entre o voto de fidelidade da memria e o dese-jo de verdade em histria: o que dado ao leitor no tem a ver com uma coisanem outra.

    O site do Ministrio francs das Relaes Exteriores foi amplamentereformulado e aperfeioado em 2001. Um prefcio a esta rubrica de arquivos(de Hlne Carrre-dEncausse) foi suprimido. O site conserva, todavia, o traoprofundo da sndrome de Vichy na Administrao das Relaes Exteriores.O aggiornamento promovido por Jacques Chirac em 1995 no irrigou todas as

    estruturas do Estado: freqentemente a partir de trabalhos cientficos dehistoriadores parasitados por inrcias memoriais, o site manifesta exemplar-mente a poluio da histria por estratgias (deliberadas) de recusa da evo-luo da memria. Nisto, o exemplo francs , sem dvida, menos ligado auma vontade poltica que a uma mitologia institucional, defendida por cer-tos autores que, sob a alegao da prudncia, se mostram pouco preocupa-dos em fazer concesses ao seu ambiente social ou a considerar o movimen-to historiogrfico.

    Concluso

    O uso desta histria convocada na internetpara e por instituies go-vernamentais muito distante, por exemplo, da caada ilcita da histriadesenvolvida por Marilyne Crivello, no que se refere s festas histricas.Estamos, contudo, na presena de dois exemplos de democratizao dahistria, duas representaes que garantem um novo consumo do passado (edestituem um pouco mais os intelectuais do monoplio da histria) e que tm

    84 Paul Ricur, artigo citado, p. 735.

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    em comum, ao menos, a volatilidade e um crescimento to recente quantorpido. Duas representaes, cuja relao com a histria culta no defini-tivamente mais colrica em um ou outro caso, apesar das garantias ou dasaparncias cientficas de bom grado mais numerosas no caso da internet, e aidia atual, para as festas populares, de viver e fazer viver a verdadeirahistria, e que a mais freqente a do povo. Certamente, a apresentaode uma histria institucional na internettem muito a ver com questes iden-titrias, como se pode tambm constatar local ou regionalmente com certosdesenhos animados de amadores e com certos diretores do patrimnio85.Mas, atravs de uma relao com o passado muito diferente, a histria re-

    composta das instituies responde, por exemplo, a lgicas muito distanci-adas do campo econmico ou turstico explicitamente muito inventivo: nes-te ltimo caso, necessria, ento, uma histria emocionante, uma histriaque fala.

    Atravs dos quatorze sites estudados, observam-se estratgias variadasde apresentao da histria, por vezes utilizadas de forma complementar.

    H, com freqncia, a histria como dificuldade no superada, com estessites para os quais ela pe em evidncia um certo nmero de problemas (Bl-

    gica). As respostas ou as tergiversaes so, ento, variveis: da amnsia total(Argentina e Espanha) ou parcial (Japo e Chile), da diminuio um poucorpida de certos perodos (Blgica) a um polimento poltico ou a uma re-construo largamente simplificadora (Portugal), at mesmo por vezes pon-tualmente acrobtica e contraditria (Frana) a atualidade poltica francesamostra a inconseqncia desta gesto deliberada da histria.

    H tambm a histria como manifestao de antigidade e at mesmo deanterioridade: os sites em que a histria deve mostrar a antigidade ou at a

    anterioridade da potncia regional (Rssia e Frana, notadamente).H, enfim, a histria como afirmao ou memria da grandeza nacional,

    sensvel por intermdio destes sites, que manifestam implicitamente, atra-

    85 Nota do tradutor Aqui h um trocadilho intraduzvel: o autor utilizou sucessivamenteanimation e animateur: animation, em francs, quer dizer desenho animadoe animateurquerdizer diretor, lder, empreendedor, animador.86 Esta anlise deve certamente ter seqncia. Seria preciso estudar, em detalhe e com umaequipe de especialistas de cada uma das zonas geogrficas, muitos outros aspectos destes sites:sua gnese e, em particular, a escrita por diplomatas ou historiadores, da instituio ou no,

    destas pginas de histria; a gesto das mudanas de regime poltico; a construo, ainstrumentalizao ou o desaparecimento por vezes dos heris da histria nacional; a presen-a do estrangeiro nestas histrias...

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    vs de uma histria abundante e at transbordante, esta aspirao (Brasil eFrana)86. Neste aspecto, h ainda uma certa especificidade brasileira e fran-cesa, com manifestao bastante forte de uma afeio pela histria que con-duz ao menos alguns responsveis polticos e burocrticos a crer na necessi-dade de imaginar e transmitir o passado, em particular o tempo presente, parao grande pblico.

    No campo das relaes internacionais conhecidas oficialmente (apre-sentadas, portanto, por grupos memoriais reduzidos e muito fortementeestruturados), o contedo do passado raramente negociado; a palavra deEstado no , e est longe de ser, nica; enfim, o discurso liberado se preten-

    de, caracterstica da diplomacia, ainda muito distanciado de alguma alimen-tao da demanda social por polmica, no entanto comum. Esta prudnciapoltica (sem embargo muito diversificada nos usos do passado) permite fa-zer opes no presente. Para retomar as propostas de Jean-Clment Martin,a exibio e a dissimulao so traos recorrentes das estratgias das institui-es de Estado, encarregadas de fazer e mostrar as relaes exteriores numaperspectiva histrica. A Frana, no obstante to segura de seu passado e desua tradio historiogrfica, , neste caso, emblemtica de um uso poltico

    do passado em sombras chinesas, amide bem claras, mas, por vezes, fluidasou, pelo menos, ambguas.

    Finalmente, o problema da histria assim apresentado na internetmos-tra-se duplo. Aos olhos do historiador contemporneo, a representao maisou menos linear ou acrobtica da histria, pelos diversos Ministrios dasRelaes Exteriores do planeta, grave, visto que consumida sem instru-mento de discriminao acessvel. Mas talvez mais preocupante quando,situao extrema, alguns colegas, historiadores ou pretensos historiadores,

    ultrapassam insensivelmente o limite entre sua eventual funo de especia-lista e a de corteso de uma instituio; ou quando, mais simplesmente, ga-rantem uma histria sobre a qual no tm domnio.