Interpretação - · PDF fileInterpretação e Poder ... crítico o direito de falar sobre o texto, de maneira menos vaga, que assegura a alguém a legitimidade de sua interpre

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    Interpretao e Poder Lus Cos'ta Lima

    A crtica literria tem no sculo XX uma importncia que antes desconhecera. At ento, fora considerada um ornato, necessana apenas enquanto adorno, que tinha a funo de ressaltar o desenho da arte. Ajustava-se ao papel de mediadora entre a obra e o leitr, epcie de correia de transmisso entre a fonte e o usurio. Seu papel era comparvel ao que hoje concedemos msica no cinema, que deve existir para se disfarar, estar presente para ressaltar a presena do que no ela : a trama desenvolvida pelos personagens .

    Com a crtica contempornea, perde-se a cadeia visvel que unia o leitor, o crtico e a obra. Pouco posterior, enquanto movimento, ao surgir da poesia moderna com Baudelaire, sua diferena quanto crtica do passado tem a ver com as mesmas razes sociolgicas que W. Benjamin apontara como determinantes do carter de Fleurs du mal: a perda de uma Erlebnis comunitria, a que sucedera a experincia de choque, correlatas ao aparecimento das grandes metrpoles, na etapa de institucionalizao do capitalismo. Da resultava, quer o obstculo ao xito comunicativo da poesia lrica ( 1 ) , quer a dificuldade em a prosa manter a figura do Narrador, como mais adiante testemunharia a obra proustiana ( 2 ) , pois tanto o lirismo quanto o Narrador supem uma comu-

    nidade de sentimentos, de valores e de crenas que tornam o ato da leitura semelhante a uma cmara de ecos, que desdobrasse o som sem nunca tornar ininteligvel o claro timbre da voz originria, individual em sua recepo, coletiva em sua matria prima. A literatura moderna contempornea da anornia, do sentimento de desagregao, durkheimiana. Mas que significar uma crtica que nasce da constante experincia de choque, do anonimato e da desagregao, seno uma atividade que, j no contando com o endosso prvio dos leitores que reconheceriam a natureza (potica, literria) dos objetos de que ela tratava, necessita se indagar o que torna potico um recurso, o que transforma as frases em literrias, Enquanto o potico correspondeu expectativa do que se tinha por tal , a crtica podia ornar com suas letras um desenho de cuja natureza no se duvidava. Embora a histria da crtica antes mostre o atraso em que seus personagens geralmente permaneceram ( 3 ) , pode-se dizer que, a partir da segunda metade do sculo XIX, a anlise da literatura foi forada a olhar mais intensamente para

    ( * ) Introduo de A Perverso analtica ( sobre a obra Cornlio Penna ) , a ser proximamente lanado pela Editora Imago.

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    si mesma, com a pergunta de se ainda (ou j) seria capaz de cumprir o que se prope. A necessidade de auto-anlise s no se impe quando, de tal maneira confiamos em nossa prpria capacidade, que damos por certa a qualidade de nosso corpo. Seria estranha que esta fosse a situao da crtica contempornea, seja por sua relativa novidade, seja pela poca em que apareceu. Como diz Benedito Nunes, o tempo em que a crtica contempornea nasceu um "tempo infeliz". Isso no significa que seja mais decepcionante que outros, mas apenas exigir de ns o que se impe apenas no momento da infelicidade: a desconfiana que nos conduz ao auto-exame. Pressupondo ento esta necessidade, colocamos a pergunta: que d ao crtico o direito de falar sobre o texto, de maneira menos vaga, que assegura a algum a legitimidade de sua interpretao,

    Dentro de uma rbita estritamente jurdica, diremos que tal direito confiado a algum que tem o poder de execut-lo. A questo do direito ento se desloca para a do poder. Dentro da mudana, acrescentemos ser este poder determinado por um conjunto de normas historicamente mutveis, vigentes no interior do sistema literrio. Uma colocao esquemtica nos permite localizar trs camadas histricas diversas:

    L

    A que se estende da Ars poetica horaciana at ao fim da primeira metade do sculo XVIII. O poder era ento forjado pelo conhecimento das regras das preceptsticas. O direito da interpretao cabia ao gramtico e ao preceptis-ta, qualificaes normalmente preenchidas pela mesma pessoa. Este perodo, preparado pela chamada crtica helenstica, desenvolve um dos ramos que deriva da reflexo grega clssica sobre a arte.

    2.

    A segunda camada desenvolve, ao invs, o ramo propriamente interpretativo que florescera com Plato e Aristteles. Contempornea "crise da autoridade" que, no sistema literrio abala o prestgio das preceptsticas, o poder passa ento a ser estabelecido pela explicao esttica, que vem ocupar o vazio deixado pelo descrdito das normas impositivas (4) . Mais tarde, com o impacto do romantismo, quela fora geradora se acrescenta uma segunda: a fora dO' esclarecimento autoral. Combinados, estes geradores do novo poder se diferenciam porquanto suas normas fundadoras pretendem ser explicativas e no mais impositivas. conforme se dava na camada anterior. Hoje, contudo, quando se comea a sistematizar a crtica da esttica (cf. L. C . L. : 1973, capo 1) , reconhecemos que, em virtude da explicao esttica no conseguir se desvencilhar do espelhismo conteudista (5) , ela tendia tambm a se estabelecer como um princpio impositivo.

    O mesmo se dava quanto segunda fora geradora do direito de interpretao. Por fora do individualismo e do prestgio da concedido inteno autoral, a palavra do criador passava a desempenhar um papel igualmente impositivo. Em 1864, numa passagem cujo brilho hoje mais se destaca, Flauber

    escrevia: "Onde se conhece uma crtica que se inquiete com a obra em si, de uma maneira intensa? Analisa-se com

    muita sutileza o meio em que ela se produziu e as causas que a provocaram:

    mas a potica insciente? de onde resulta? sua composio, seu estilo? o ponto

    de vista do autor? Jamais!" (in Wellek:

    1956, 478) . O trecho de Flaubert

    mostra, ao lado de sua terrvel anteci

    pao - a pergunta pela "potique

    inciente" -, que o prestgio de "le point

    du vue de l'auteur" no era empregado

  • tanto como explicao da obra, mas sim como imposio de seu significado .

    3 . A terceira camada supe o xito do

    combate contra o culto romntico da voz do autor - culto, na verdade, de influncia muito mais prolongada do que o determinismo tainiano a que implicitamente se referia Flaubert -, empreendido em nome do melhor conhecimento da obra. Trata-se ento de propor, como faria Eliot em 1 9 19 , uma "teoria impessoal da poesia", que considerasse o poema, no como a expresso de uma personalidade ou como a busca de fixar novos matizes emocionais. mas sim como um trabalho especfico, que transforma um meio comum, a linguagem, em um veculo diferenciado.

    A proposta de Eliot - hoje um lugar comum para qualquer iniciante no estudo da literatura - partia da mesma pretenso que h cinquenta anos orientara a demanda de Flaubert : tornar a crtica uma atividade competente, menos interessada em persuadir o leitor das qualidades de seu comentrio do que em ser um modo de conhecimento. Postular esta exigncia, de aparncia banal, contudo imps a Eliot opor-se ao culto da personalidade do artista, comparando o trabalho deste ao realizado pela catlise, na qumica : "Quando ( . . . ) dois gases ( . . . ) se misturam na presena de um filamento de platina, formam o cido sulfrico. Esta combinao apenas se realiza se a platina estiver presente ; todavia o cido recm-formado no contm trao algum de platina e, efetivamente, a prpria platina no afetada; permaneceu inerte, neutra e no modificada. A mente do poeta o pedao de platina" (Eliot : 1 9 19 , 7 ) . Para que a crtica portanto se descartasse da segunda fora que gerava o poder do crtico na camada precedente, foi necessrio exilar a voz

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    do autor, distingui-la de seu produto, para ento recusar seu direito especial sobre a interpretao do que fizera. Da resultou o desprestgio do autor em tudo que diz respeito interpretao da literatura. (Consequncia que talvez tenha ido alm do propsito de' Eliot, mas qual ele prprio estoicamente aguentou, nunca se manifestando sobre o que se escrevia acerca de sua obra) .

    O poder do crtico contemporneo edificou-se sobre o exlio do autor. Para este, muito contribuiu, na frente anglo-saxnica, o prestgio da ensastica eliotiana, ao passo que, na frente continental, para tanto decisivamente concorreu a influncia do marxismo e da psicanlise.

    Antes de passarmos ao exame da legitimidade deste exlio, convm acentuar que a esttica, primeira fora geradora do poder de interpretao na segunda camada, no sofreu o mesmo questionamento. O ensaio de P. Valry, "Discours sur l'esthtique", de 1 937, no recebeu o favor que logo cercara o "Tradition and the individual talent" de Eliot. Em virtude desta diversidade de questionamento, a terceira camada veio a se caracterizar pela conjuno de duas foras geradoras de poder : a explicao direta ou indiretamente fundada em moldes estticos, cujo prestgio permaneceu portanto inabalvel, a anlise baseada no comportamento verbal do texto, da responsabilidade de um crtico.

    De posse destes esclarecimentos preliminares, avanamos nosso ponto de vista : a base sobre a qual se cria o poder do crtico contemporneo uma base equvoca. Nossa pea acusatria no ser aqui toda apresentada, pois j pressupe a discusso sobre a razo e os limites da esttica (cf. L . C . L . : 1973 , capo I e L . C . L . : 1 975, 1 55--203 ) . Concentramo-nos apenas na validade da substituio do autor pelo cr-

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    ti co, como intrprete eficaz. Mas o leitor que conhea a obra de E. Hirsch. Jr. poder supor que reencontrar os argumentos que tornaram famoso o terico norte-americano. Para no atrapalh-lo como uma falsa pista, digamos de incio que, embora venhamos a considerar e a aproveitar a reflexo de Hirsch, nossas posies so bem diversas.

    Para Hirsch, impe-se o retorno dos "exilados", pois sem o privilgio da voz autoral a crtica continuar a ser uma babeI de contrariedades : "De fato, se o significado de um texto no ci de