Intrigas Na Arqueologia Brasileira

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    Intrigas na arqueologia brasileira

    Luciana Christante de Mello (*)

    A matria publicada no cadernoMais! daFolha de S. Paulo em 19 de maro[leia em Aspas, abaixo] bem que poderia se transformar em instigante roteiro

    para o cinema. Assinada pelo editor de Cincia, Marcelo Leite, a histria repleta de polmicas, desafetos, dvidas e achados controversos sobre achegada do homem s Amricas. H personagens e fatos interessantes: uma

    pesquisadora arrojada e empreendedora, disposta a lutar at o fim por suasconvices, uma dupla de adversrios cticos, uma disputa judicial e uma

    bisneta do ex-presidente americano Theodore Roosevelt, o qual, aps tercumprido o mandato, se aventurou pelas selvas brasileiras ao lado do nosso

    marechal Cndido Rondon.Em meio a tantas bajulaes em torno dos 500 anos do Brasil (descoberto,invadido ou o que for), essa histria me parece bem mais interessante porqueremonta a um passado bem mais longnquo, escondido nas irregularidades da

    pedra e desgastado pelo efeito do tempo; porque coloca interrogaes nocalendrio arqueolgico sobre o povoamento da Amrica e sugere a existnciade uma grande civilizao amaznica anterior chegada das caravelas aolitoral baiano.

    O grande mrito da reportagem foi ter exposto que a cincia tambm tem suasintrigas, que muitas vezes (mas muitas mesmo) extrapolam a esferaprofissional e se transformam em inimizades pessoais. importante que sesaiba isso. Por ser humano, o mundo cientfico est cheio de rivalidades, comoqualquer outro mundo, dos executivos, dos polticos e dos jornalistas, paracitar alguns exemplos. Parece que Marcelo Leite quis deixar bem evidenteesse contorno social em torno do fato cientfico, mas se equivocou ao sugerirque esses entraves poderiam estar impedindo o avano do conhecimento. Naverdade, as grandes polmicas so as verdadeiras alavancas da cincia. Assolues para discusses deste calibre s podem surgir com novas pesquisas,

    novos fatos e evidncias, no com acordos pessoais.

    Precisamos dos dois

    H que se dizer ainda que quando a atividade cientfica delimitada por umespao geogrfico, a rivalidade pode se tornar mais intensa. O ser humano uma espcie territorial, e o conhecimento confere poder. Do mesmo modo queum bioqumico no vai admitir a entrada de um rival em seu laboratrio, umarquelogo no permitir a invaso de seu territrio, e um antroplogo noadmitir um semelhante observando a "sua" tribo. O curso da histria podemudar medida que as pessoas forem substitudas, depois que outras

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    linhagens de cientistas assumirem o posto; isso demora algumas dcadas,como quase tudo no mundo cientfico.

    A descrio que Marcelo Leite faz da arqueloga Nide Guidon exige de mimum outro comentrio. H diversos tipos de cientistas, cada qual com um tipode talento. Segundo o que foi contado, Nide se enquadra perfeitamentenaquele perfil que chamo de cientista-empreendedor. So pessoas queapresentam grande talento para levantar coisas, criar grandes centros de

    pesquisa, organizar congressos, agregar pessoas competentes, presidirsociedades, dirigir institutos, chefiar departamento etc.

    Esses talentos no esto presentes em qualquer cientista. Muitos deles no sesentem hbeis para se meterem nesses assuntos, preferindo permanecerdebruados sobre suas pesquisas, orientando de perto seus ps-graduandos,

    publicando seus artigos. Em geral, o cientista-empreendedor, para se manterprodutivo do ponto de vista acadmico, acaba se cercando de orientandos maisindependentes, capazes de crescer com uma superviso mais espordica deseu orientador, que est sempre muito ocupado com seus diversoscompromissos; se esse cientista no souber escolher bem sua equipe detrabalho, acabar tendo produo acadmica medocre. O outro tipo decientista, o que se dedica mais integralmente pesquisa, mergulha com mais

    profundidade no assunto que domina, est mais perto de seus orientandos e setorna mais crtico e mais exigente em relao aos resultados da pesquisa

    prpria e da alheia.

    Precisamos dos dois tipos de cientistas: essas diferenas na conduo daatividade cientfica so saudveis, embora nem sempre sejam pacficas. Nocaso da arqueologia brasileira, no que se refere especificamente a essa

    polmica, o clima no ameno, os territrios so bem marcados e o fogo cruzado, o que rende uma bela histria.

    (*) Farmacutica, aluna do curso de Jornalismo Cientfico da Unicamp

    http://www.observatoriodaimprensa.com.br/ofjor/ofc05042000.htm

    ASPAS

    Marcelo Leite

    "A falha arqueolgica do Brasil", copyright Folha de S.Paulo, 19/3/00

    "A voz de Nide Guidon soa divertida, ainda que cansada, quando fala de seus

    desafetos nos feudos da arqueologia brasileira. Estava certa a agente deturismo Rosa Trakalo ao dizer que a melhor hora para entrevistar a doutora

    http://www.observatoriodaimprensa.com.br/ofjor/ofc05042000.htmhttp://www.observatoriodaimprensa.com.br/ofjor/ofc05042000.htm
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    seria de carona com ela em suas andanas por So Raimundo Nonato, nosudeste do Piau. Guidon, 67, dirigindo uma picape Nissan Frontier cabinedupla, conta com trao nas quatro rodas para enfrentar qualquer atoleiro dacaatinga verde de inverno (estao de chuvas), e no tem travas na lngua.

    Ar condicionado ligado, garrafa de gua mineral Perrier acondicionada entre obanco e o freio de mo, a arqueloga dispara tranquila seus ataques aadversrios como Andr Prous, da Universidade Federal de Minas Gerais,contra o qual move processo por danos materiais: Eu s fiz isso porque assimele gasta dinheiro com advogado, para aprender a falar besteira.

    O recurso Justia em meio a uma disputa cientfica -as polmicas dataesdo stio piauiense Boqueiro da Pedra Furada, no Parque Nacional da Serra daCapivara-pode parecer drstico, mas sintomtico. Autoritarismo uma

    qualificao corriqueira, quando se trata de caracterizar esse campoacadmico, que s vingou depois da Segunda Guerra. Um setor de pesquisaaparentemente sem estatura para enfrentar duas das questes mais importantesda arqueologia mundial, suscitadas pela pr-histria americana: quando,afinal, o homem chegou ao Novo Mundo; e qual o grau de densidade

    populacional e de complexidade cultural na Amaznia antes da colonizao.

    Para o bioarquelogo Walter Neves, 42, da USP, o caso Guidon versus Prousrepresenta a ponta do iceberg de uma comunidade de arquelogos que autoritria. Ele descarta uma interpretao corrente, que atribui esse trao a

    duas dcadas de governos militares, preferindo apontar razes endgenas paraas arbitrariedades -despreparo e mediocridade.

    De bermuda e camiseta, cabelos compridos, a figura de Neves contrasta nacantina do Instituto de Biocincias da USP com a do historiador e arquelogoAndr Prous, 55, em suas calas e camisa sociais. De comum tm a barbagrisalha e um paciente trabalho sobre ossos humanos escavados do stio deLapa Vermelha, em Lagoa Santa, MG, provavelmente os mais antigos dasAmricas. No momento, dividem ainda a curadoria de duas exposiesarqueolgicas que sero montadas no Parque Ibirapuera, em So Paulo, a

    propsito dos 500 anos de colonizao do Brasil. Prous se nega a dardeclaraes sobre o processo.

    A ao foi desencadeada por um artigo seu sobre o povoamento da Amricana Revista da USP de agosto de 1997, como parte de um dossi por Walter

    Neves e Marta Mirazn Lahr, hoje na Universidade de Cambridge (ReinoUnido). Segundo Neves, Nide Guidon foi convidada a escrever no mesmonmero e declinou. Em seu texto, Prous alinhavava certezas e dvidas sobrevrios stios arqueolgicos sul-americanos candidatos a derrubar a chamada

    barreira de Clvis (11.200 anos, idade dos restos encontrados nesse stio doNovo Mxico, na dcada de 30). De um modo geral, a grande discusso sobre

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    tambm critica afirmaes precipitadas e nunca verificadas e as tentativassistemticas de apresentar Pedra Furada como o lugar onde qualquer tipo devestgio mais antigo. Para o arquelogo francs radicado em Minas,mesmo achados que mereceriam melhor crdito e um exame criteriosoacabam sendo colocados a priori sob suspeita. Seu texto continha, ainda,uma espcie de premonio: No Brasil, particularmente, onde cadaarquelogo costuma ser dono de um territrio de pesquisa e onde no existeuma tradio de debate aberto e crtica mtua e pblica, os pesquisadorescostumam apresentar sobretudo relatrios incompletos, fazendo afirmaesque no so sustentadas pela documentao e nem podem ser verificadas.

    Mesmo as propostas que parecem absurdas comunidade cientficageralmente no so respondidas nas revistas ou nos congressos cientficos,fazendo com que os pr-historiadores estrangeiros acreditem que todos os

    brasileiros endossam sem restries as teses mais discutveis. Numa tentativade ganhar o reconhecimento estrangeiro, em dezembro de 1993, Nide Guidoncolheu resultados amargos. Entre dzias de arquelogos levados a SoRaimundo Nonato para um seminrio sobre Pedra Furada estavam os norte-americanos David Meltzer, James Adovasio e Tom Dillehay, alguns dos maisdestacados questionadores do paradigma de Clvis, por seu envolvimento nasescavaes de stios aceitos como mais antigos, Monte Verde, no Chile, eMeadowcroft, nos Estados Unidos (veja mapa na pg. 8). Mesmoconsiderando o encontro um marco da arqueologia americana -estimulante,intenso, iluminador e por vezes inteiramente desconfortvel, escreveuMeltzer em 24 de junho de 1995 na revista de divulgao New Scientist-, devolta ao Norte os trs redigiram um paper desalentador para a publicaotcnica Antiquity (edio de dezembro de 1994). Eles no aceitavam aanlise morfolgica e estatstica de 595 artefatos lticos (de pedra) efetuada

    por Fabio Parenti, um italiano que dedicara a Pedra Furada seu doutorado pelaUniversidade de Paris-1, sob orientao de Guidon.

    Motivos pessoais e utilitrios

    Na direo da picape Nissan, a arqueloga passa pela entrada da grutacalcrea da Toca do Garrincho, onde afirma ter encontrado dentes humanos de15 mil anos (4.000 a mais que a Luzia de Prous e Neves), e comenta comdesdm o juzo dos colegas estrangeiros. No temos nada a aprender com osamericanos, diz. Eu tenho uma formao de primeira classe e no so osmeus colegas americanos que vo poder me dar lio. Afirma que s noBrasil se endeusa toda e qualquer universidade dos Estados Unidos e insinuaque seus crticos tm motivao utilitarista: Eu vi o prprio Dillehayapresentando num congresso a data de 33 mil anos (para o stio de MonteVerde), mas ele mesmo disse depois que preferia no falar mais, porque levou

    muita porrada na cabea e ficou com medo de ficar sem dinheiro.

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    Quanto a Andr Prous, Guidon diz acreditar que a motivao de ordempessoal, pois ela, uma brasileira, o teria superado em seu prprio pas(Frana), ao obter o posto oficial de pesquisadora que ele nunca ocupou. Da oquestionamento na Justia, e no pela via normal das revistas e doscongressos. O efeito colateral, no entanto, parece ser o de desestimular odebate cientfico, como deixou claro Walter Neves em arguio pblica deconcurso para livre docncia na USP, em 7 de janeiro, quando o examinadorJoo Stenghel Morgante o questionou sobre dataes mais antigas que a deLuzia, vale dizer, sobre as discutveis datas obtidas por Guidon em PedraFurada: No sou um homem rico, por isso tenho sido extremamentecauteloso.

    A cautela de Walter Neves mais retrica que prtica. Ele repete para quemquiser ouvir que as datas de So Raimundo Nonato e a hiptese de migraes

    martimas no passam de pirotecnias arqueolgicas. Com sua reputao degosto pela polmica, dias antes do concurso de livre docncia na USPcomentava-se nos corredores do Instituto de Biocincias que correria sanguena arguio, desta vez entre ele e geneticistas de populaes humanas. Doisrenomados professores de universidades federais compunham a banca,Francisco Salzano (RS) e Srgio Danilo Pena (MG), cujos estudos decomparao estrutural de DNA (a molcula-cdigo dos genes) de populaesatuais indicam que o Ado americano migrou da sia (Sibria Central) paraa Amrica, numa nica leva. O trabalho mais famoso de Neves, uma anlisemorfolgica do crnio de Luzia, aponta concluses divergentes: pelo menosuma entrada mais antiga no continente, anterior ao limite de Clvis (12 milanos), realizada por grupos aparentados com africanos e australianos, no comasiticos. O debate entre ele e Pena teve momentos de genuna picuinha, comoa grafia do nome deste numa referncia daquele e a pronncia do nome dofilsofo da cincia Karl Popper (tanto Pena quanto Neves estavam errados),mas se manteve dentro dos limites do aceitvel, em matria de malcia emaledicncia acadmicas. No ano 2000, ainda se fala de fsseis versusmolculas, lamentava o arguidor. tpico de geneticistas fazer afirmaessem base etnogrfica, retrucava o candidato, de gravata e rabo-de-cavalo.

    New archaeology

    Neves no economizou crticas aos arquelogos, tampouco. Esse campo depesquisa, diagnostica, tem quatro dcadas de atraso no Brasil. A maior partedo trabalho desenvolvido ainda segue a escola descritiva europia, quecomeou a ser questionada nos anos 60 pela new archaeology norte-americana, depois conhecida como arqueologia processual -aquela que se

    preocupa em reconstituir dedutivamente, a partir dos stios, processos sociaisglobais dos grupos que o ocuparam, e no apenas colecionar e classificar

    fragmentos. Segundo o bioarquelogo, o pior ano da reao contra essa novaarqueologia se deu em 1985, quando foram escorraados de suas instituies

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    quatro pesquisadores que ensaiavam os mtodos modernizados: o prprioNeves e Solange Caldarelli, do Instituto de Pr-Histria da USP, TaniaAndrade Lima, do Museu Nacional, e Irmhild Wst, da PUC de Gois.

    O pesquisador da USP rende homenagens em um de seus artigos sobre Luziaao francs Paul Rivet, que reinou sobre o Museu do Homem de Paris e foi umdos primeiros a especular sobre semelhanas fsicas entre o homem de LagoaSanta e aborgenes australianos. Rivet era o modelo de Paulo Duarte, tidocomo um dos pais da arqueologia brasileira (ao menos na USP) e ponto dedivergncia de uma rede que at hoje marca essa rea.

    Depois de trabalhar com o antroplogo francs em Paris, Duarte recebeu deRivet subveno de 1 milho de francos para criar no Brasil um laboratrio de

    pesquisa sobre o homem americano. Em 1952 surgia a Comisso de Pr-

    Histria de So Paulo, presidida por Duarte, que daria origem a um importantetrabalho de identificao e preservao de sambaquis (stios com conchas eossos) que culminaria na primeira legislao federal especfica para proteodo patrimnio arqueolgico, a lei 3.924, de 1961. Antes disso, em 1959,fundara e dirigira o Instituto de Pr-Histria (IPH).

    Por obra de Rivet e Duarte vieram pesquisar no Brasil dois jovens franceses,Joseph Emperaire e Annette Laming-Emperaire. Paulo Duarte tambm foiresponsvel pela iniciao em arqueologia de duas professoras secundrias dointerior paulista, Nide Guidon e Luciana Pallestrini (diretora do IPH quando

    saram Neves e Caldarelli). Mais frente, Guidon e Andr Prous trabalhariamsob a orientao de madame Emperaire, autora da escavao que descobriuem 1975 os ossos de Luzia em Lagoa Santa (MG).

    A arqueloga francesa morreu em 1977, envenenada por gs num hotel deCuritiba, quando se dirigia do Uruguai para novos trabalhos de campo emMinas. Duarte terminou cassado por motivos polticos, em 1969, fato quelevaria Srgio Buarque de Holanda a pedir sua aposentadoria, emsolidariedade.

    O historiador e arquelogo Pedro Paulo Abreu Funari, 40, correlaciona adecadncia da arqueologia humanista de Paulo Duarte com a ascenso deum outro casal estrangeiro na arqueologia brasileira, desta vez de norte-americanos: Betty Meggers e Clifford Evans, que j haviam escavado na fozdo Amazonas na dcada de 40. Coincidncia ou no, eles aportaram de voltaao pas em abril de 1964 e, em seis meses, tinham travado contato com muitasautoridades de Braslia, o suficiente para render-lhes a fama de trabalhar paraa CIA, famigerada agncia de informaes dos Estados Unidos. O fato queforam incumbidos de montar um plano para cinco anos (1965-1970), logo

    batizado de Pronapa (Programa Nacional de Pesquisas Arqueolgicas). Nasciaa confraria dos pronapistas, cujos membros se tratavam por irmos e viriam

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    a dominar a arqueologia brasileira por dcadas, por meio do CNPq, me detodas as verbas.

    Arqueologia ocupao de espao, reconhecimento de territrio,geoestratgia, conhecer o territrio onde pode haver guerrilha, interpretaPedro Paulo Funari. Mas o historiador no exclui a hiptese de que Meggers eEvans tenham apenas se aproveitado da imagem confivel, aos olhos de umgoverno militar, de neutros pesquisadores americanos para tomar posse de umgigantesco feudo ao sul do Equador. Como lembra o prprio Funari, Meggersse dava muito bem com intelectuais de esquerda, como o antroplogo DarcyRibeiro. O reinado de Betty Meggers abrangeu sobretudo a Amaznia.Terminado o Pronapa, veio o Pronapaba (Programa Nacional de PesquisasArqueolgicas da Bacia Amaznica), que teve no ex-militar Mrio FerreiraSimes um fiel continuador do determinismo ambiental de Meggers, no

    Museu Paraense Emlio Goeldi.

    A americana, at hoje ativa e influente no Instituto Smithsonian, deWashington, marcou toda uma gerao de especialistas em floresta amaznica-no s arquelogos- com um livro clssico de 1971, Amazonia: Man andCulture in a Counterfeit Paradise (Amaznia: homem e cultura em um falso

    paraso). Os escritos de Meggers fazem muitas referncias s pssimascondies para trabalho de campo na floresta -calor, umidade, insetos. Hquem acredite que essa experincia negativa conformou sua viso daAmaznia como um ambiente inspito para o homem. Por essa concepo

    pessimista, a floresta acomodada sobre solos pobres no teria como darsustentao a populaes maiores, com agricultura desenvolvida.

    O padro atual dos povoamentos teria sido a norma desde sempre: pequenosgrupos, alguns seminmades, dependentes de agricultura rudimentar baseadana mandioca, assim como da caa e da pesca escassas. A exceo seriam asvrzeas, em que os sedimentos provenientes dos Andes fertilizam a faixaalagvel de rios barrentos. Nessas regies teriam vicejado umas poucasculturas mais complexas, como as produtoras das cermicas Marajoara e

    Santarm, mas ainda assim de forma instvel e por incurses de povos de forada Amaznia, provenientes do Caribe ou dos Andes.

    O rio da dvida

    Segundo Eduardo Goes Neves, 33, do Museu de Arqueologia e Etnografia(MAE-USP), o controle do acesso aos stios era exercido por Mrio Simes,at sua morte em 1985, por intermdio do Instituto do Patrimnio Histrico eArtstico Nacional (Iphan), de cuja autorizao depende legalmente cadaarquelogo, para poder iniciar suas escavaes. Um dos primeiros a sofrer

    restries, por no rezar pelo credo pronapista, foi Jos Proenza Brochado

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    (alis desligado da PUC do Rio Grande do Sul, em 1999, medida que outrosarquelogos interpretaram como politicamente motivada).

    Mas quem furou o cerco foi outra americana, com um sobrenome ilustre:Anna Curtenius Roosevelt, bisneta de Theodore Roosevelt, que, em 1914,depois de ter sido presidente dos Estados Unidos, se aventurara pelas selvasde Mato Grosso com o coronel Cndido Rondon, para mapear o rio daDvida. Eram muitas as pistas de que a ocupao da Amaznia pr-colonizao no ocorrera exatamente segundo o figurino empobrecido deBetty Meggers. Havia relatos de cronistas do sculo 16, como Gaspar deCarvajal, que acompanhara o espanhol Francisco de Orellana numa expedioem busca do Eldorado e falava de cidades nas margens amaznicas e dehordas de guerreiras (as amazonas que emprestariam mais tarde o nome aorio). A elaborao das cermicas sugeriam sociedades capazes de comportar

    tal especializao, muito mais complexas e hierarquizadas do que gruposesparsos no Falso Paraso.

    A prpria Anna Roosevelt, em escavaes anteriores na regio venezuelanado Orinoco, havia topado em Parmana com indcios de agricultura de milho,cujo teor nutritivo mais compatvel com o sustento de grandes agrupamentoshumanos. Havia, ainda, os grandes aterramentos (tesos) da ilha de Maraj,encontrados s dzias. E as famosas terras-pretas, manchas de solo frtil em

    plena terra firme (ou seja, longe de vrzeas), resultantes da acumulao dedejetos durante longas fases de ocupao humana, um alvo preferencial de

    escavaes arqueolgicas. As densidades dos agrupamentos indgenas ps-colonizao no foram mais capazes de dar origem a jazidas de terras-pretas,o que faz supor populaes muito mais densas nos sculos precedentes.

    Segundo Goes Neves, do MAE-USP, o gegrafo norte-americano WilliamDenevan, da Universidade da Califrnia em Berkeley, chegou a calcular emat 5,6 milhes de pessoas a populao teoricamente possvel da Amaznia.Aos poucos, o paradigma sobre a ocupao da Amaznia parece pender para olado de Anna Roosevelt. Seu maior trunfo at o presente so dataes de

    fragmentos cermicos dos stios de Taperinha e Pedra Pintada, no Par, queestavam dormindo nas gavetas de instituies norte-americanas como oSmithsonian, pois no combinavam com os dogmas do determinismoambiental. Alguns haviam sido escavados pelo gelogo Charles Frederic Hartt-em 1885.

    Por meio do mtodo de termoluminescncia, Roosevelt estabeleceu quealguns daqueles cacos tinham mais de 7.000 anos, a mais antiga cermica jencontrada nas Amricas, constatao irreconcilivel com a noo de que associedades que as produziram eram incurses provisrias e instveis de outras

    partes, mais desenvolvidas. As teses de Meggers so mais adequadas para odiscurso de preservao da Amaznia do que as de Anna Roosevelt e as

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    nossas, afirma Goes Neves, aduzindo mais um argumento contra oalinhamento de Betty Meggers aos governos militares, perodo em que foram

    plantadas as bases da devastao da floresta nos anos 80. Amazonino(Mendes) e (Gilberto) Mestrinho podem ler e dizer que j foi (intensamente)ocupada no passado. O pesquisador narra j ter atrado a ira de antroplogos

    por ter apurado, com mtodos arqueolgicos, que um grupo indgena ocuparatradicionalmente rea menor do que a que lhe estava sendo atribuda paraefeitos de demarcao de terras.

    Sem milho em Maraj

    Roosevelt sofreu seus reveses, porm. Segundo Goes Neves, ela baseou suasescavaes na ilha de Maraj sobre a premissa de que os vrios tesos eramcontemporneos e construdos por uma sociedade de milhares de pessoas,

    organizada como um cacicado e provavelmente sustentada pela agricultura domilho. Em uma apreciao da arqueologia amaznica escrita para umacoletnea recente (Archaeology in Latin America, de Gustavo Politis eBenjamin Alberti, 1999), Goes Neves afirma que o relatrio preliminar dotrabalho no Teso dos Bichos no traz prova conclusiva do cultivo intenso demilho, ou mesmo de que o milho fosse um gnero alimentcio importante emMaraj durante o perodo da Fase Marajoara.

    Assim como a arqueloga Roosevelt j se deu mal em uma de suas batalhas,apesar de no atacado estar vencendo o conflito de paradigmas com Betty

    Meggers, seria tambm equivocado concluir que ela est do lado do Bem eque usa somente recursos e mtodos civilizados.

    Nessa espcie de guerra santa, Roosevelt j demonstrou disposio dedefender com garras e dentes seu territrio acadmico, como sentiu na peleeste reprter quando estagiava na revista alem de divulgao cientfica Bildder Wissenschaft. Aps sucessivas entrevistas com Meggers e sua adversria,em que uma era solicitada a responder s objees da outra, Roosevelt deu porinterrompida a colaborao com a investigao e enviou carta ao diretor da

    revista denunciando o que considerava incompetncia, vis e desinformaodo jornalista. A reportagem foi publicada em novembro de 1989, sem novascontestaes da arqueloga.

    Nada se conhece de comparvel, entre os mtodos de Roosevelt, a outradenncia feita por ela em 1995 e citada por Goes Neves no volume de 1999.Ela revelou que Mrio Simes, o colaborador de Meggers, havia obtido datasde at 5.500 anos para cermicas encontradas em sambaquis prximos da fozdo Amazonas, da chamada Fase Mina. Publicadas apenas em portugus, essasdataes realizadas nos laboratrios da Smithsonian teriam sido descartadas

    por Simes e Meggers porque no combinavam com sua perspectivaconceitual.

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    A crnica de arbitrariedades, golpes baixos e fofocas da arqueologia brasileira rica, com vrias camadas de compadrio, paroquialismo e truculncia.Denunciar e pedir a punio de peixes menores em busca de guas prprias

    parece ser procedimento comum. O prprio Eduardo Goes Neves, que emjaneiro de 1995 assinou com Walter Neves (nenhum parentesco) carta Folhaelogiando reportagem de Ricardo Bonalume Neto sobre crticas aos achadosdo stio Boqueiro da Pedra Furada, viu o diretor de sua instituio -o Museude Arqueologia e Etnografia da USP- receber fax agressivo de NideGuidon, que tambm havia enviado fax diretamente para Walter Neves, doInstituto de Biocincias da USP, notificando-o de sua inteno de entrar naJustia com uma ao por difamao. Por mais que essas disputas-evidentemente menores- meream ficar de fora das exposies sobre os 500anos do Brasil, o fato que elas emperram o avano da investigao sobreduas questes cientficas importantes, ambas relevantes para a identidade

    nacional. Curioso que a maioria dos envolvidos parece concordar nodiagnstico de que as questes s sero solucionadas com mais e melhortrabalho de campo.

    Melhorar as amostras

    Guidon, por exemplo, acusa seus adversrios de falar muito e fazer pouco: Oque eu acho que no temos ainda informaes suficientes para dizer que foiassim ou no foi assim. Ns temos de ter a cabea aberta para pesar tudo quetem. O que est faltando mais trabalho de campo. A arqueologia americana

    perde muito tempo com discusses e trabalha pouco no campo. Seu desafetoAndr Prous conclui seu artigo na Revista da USP com outra exortao:Quem quiser trabalhar o problema das origens do homem nas Amricasdever procurar novos locais que ofeream condies melhores para ainterpretao, ou descobrir novos mtodos para resolver as dvidas surgidasnos velhos stios. So frustrantes o tempo e os esforos despendidos paratentar obter, nas mesmas condies, resultados sempre duvidosos. A nfasedeve ser na melhoria qualitativa e no na multiplicao quantitativa das

    pesquisas.

    Sobre a questo amaznica, Eduardo Goes Neves fecha seu texto no volumede 1999 dizendo que o valor heurstico da dicotomia vrzea/terra firme

    precisa ser testada com trabalho arqueolgico adicional em reas de terrafirme, considerando os dados etnogrficos que indicam que algumassociedades de vrzea subexploram consistentemente os recursos de seushbitats. Walter Neves, em seu concurso de livre docncia na USP, afirmouque as hipteses sobre povoamento das Amricas esto baseadas em umnmero muito pequeno de esqueletos. Precisamos melhorar nossa amostra.Vou voltar a ser arquelogo, avisou.

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    Mos obra, ento. O Brasil no pode esperar outros 500 anos para saber oque acontecia por aqui antes de encontrar-se com o colonizador europeu."

    ***

    "Arqueloga a alma do parque", copyrightFolha de S.Paulo, 19/3/00

    "Sem Nide Guidon e sua disposio para a guerra, apesar dos 67 anos e dosdois pinos nos joelhos rodos pelo sobe-e-desce de barrancos, no haveria oParque Nacional da Serra da Capivara, a 30 km de So Raimundo Nonato(sudeste do Piau). Tambm no existiria a Fundao Museu do HomemAmericano (Fumdham), maior empregador e contribuinte da cidade. Nem oHotel Serra da Capivara, o melhor da regio, escolas rurais, estradastransitveis, oficinas de cermica, projetos de apicultura...

    Apesar de arqueloga, Guidon no est escavando no presente nenhum dos420 stios identificados na rea do parque e ao seu redor. Quem visita a regios encontrar vestgios de trabalho arqueolgico no abrigo de rocha conhecidocomo Toca do Coqueiro, cujo assoalho escavado em 1998-99 est coberto por

    plstico preto e madeiras. Dali saiu o esqueleto feminino batizado de Zuzu,que aos 11 mil anos estimados rivaliza com a Luzia de Lagoa Santa (MG).

    Toda a energia de Guidon e seu squito de pesquisadoras e auxiliares, apstrs dcadas de Piau, parece estar voltada para a preservao do parque, sob

    constante ameaa de caadores e exploradores de calcreo. O que maispreocupa a escassez de tamandus, predador natural dos cupins queconstroem galerias sobre as paredes de pedra, muitas vezes sobre as pinturasrupestres que Guidon acredita serem mais antigas que as das famosas grutaseuropias de Lascaux e Altamira.

    Para repovoar o parque com a fauna local, a Fumdham comprou a fazendados Oitenta (nome que ningum sabe explicar), contgua ao parque, paracriar animais silvestres (tamandus, tatus, emas e caititus), projeto de R$ 1,5milho obtidos por meio de emprstimo. Um lote de 50-60 emas deveria

    chegar propriedade em fevereiro.Guidon passa a maior parte dos dias fiscalizando obras. Diz que odeia bodeassado e cerveja, as grandes diverses locais. Seu orgulho maior est naconteno da eroso que come as encostas do parque, nos poucos perodos dechuva."