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INTRODUÇÃO 1 - O momento histórico Nos tempos da redação dos At (80-90) Roma domina a Pa- lestina e todas as regiões circunvizinhas. Israel está sob o jugo romano desde 66 a.C. O domínio romano se dá da se- guinte maneira: a) Território metropolitano: Itália. b) Províncias senatoriais: dependentes do senado e eram governadas por um procônsul (ex-cônsul). c) Províncias imperiais: dependiam diretamente do impe- rador. Eram governadas por um legado do imperador: pró- pretor. d) Províncias procuratórias: pequenas províncias de di- fícil governo, confiados a um procurador. A Judéia era des- ta categoria. e) Reinos aliados: reinos vassalos. Herodes, Agripa go- vernavam assim a Galiléia, a Decápole, etc. O poder político era assim exercido na Palestina: a) Sinédrio: conselho de judeus presidido pelo sumo sa- cerdote (papa judeu). Este governava religiosa e politica- mente. Era assistido por 71 membros da nobreza e do sacer- dócio. Resolvia assuntos internos. b) Procurador (Judéia), reis vassalos (Galiléia e ou- tros). Mantinham a ordem, proferiam sentenças capitais e cobravam tributo. Fora isto deixavam aos judeus resolver seus próprios assuntos, mas intervinham em épocas de crise, depunham sumo sacerdotes e nomeavam outros. Devido à firmeza monoteísta dos judeus o todo-poderoso império romano teve de fazer concessões a eles: a) Isenção do culto ao imperador. b) Isenção do serviço militar. c) Judeu não podia ser intimado a julgamento durante o sábado. d) Os militares romanos não podiam usar insígnias com figuras proibidas para os judeus. e) Os judeus podiam receber tributos para o templo 1 . 1 GALBIATI, E. R e ALETTI, A. Atlas Histórico da Bíblia e do Antigo Ori- ente. Petrópolis: Vozes, 1991. p. 208-216.

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INTRODUÇÃO 1 - O momento histórico Nos tempos da redação dos At (80-90) Roma domina a Pa-lestina e todas as regiões circunvizinhas. Israel está sob o jugo romano desde 66 a.C. O domínio romano se dá da se-guinte maneira: a) Território metropolitano: Itália. b) Províncias senatoriais: dependentes do senado e eram governadas por um procônsul (ex-cônsul). c) Províncias imperiais: dependiam diretamente do impe-rador. Eram governadas por um legado do imperador: pró-pretor. d) Províncias procuratórias: pequenas províncias de di-fícil governo, confiados a um procurador. A Judéia era des-ta categoria. e) Reinos aliados: reinos vassalos. Herodes, Agripa go-vernavam assim a Galiléia, a Decápole, etc. O poder político era assim exercido na Palestina: a) Sinédrio: conselho de judeus presidido pelo sumo sa-cerdote (papa judeu). Este governava religiosa e politica-mente. Era assistido por 71 membros da nobreza e do sacer-dócio. Resolvia assuntos internos. b) Procurador (Judéia), reis vassalos (Galiléia e ou-tros). Mantinham a ordem, proferiam sentenças capitais e cobravam tributo. Fora isto deixavam aos judeus resolver seus próprios assuntos, mas intervinham em épocas de crise, depunham sumo sacerdotes e nomeavam outros. Devido à firmeza monoteísta dos judeus o todo-poderoso império romano teve de fazer concessões a eles: a) Isenção do culto ao imperador. b) Isenção do serviço militar. c) Judeu não podia ser intimado a julgamento durante o sábado. d) Os militares romanos não podiam usar insígnias com figuras proibidas para os judeus. e) Os judeus podiam receber tributos para o templo1.

1 GALBIATI, E. R e ALETTI, A. Atlas Histórico da Bíblia e do Antigo Ori-ente. Petrópolis: Vozes, 1991. p. 208-216.

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Em síntese, o Império Romano tolerava o judaísmo como Religio Licita "religião lícita". O povo estava insatisfeito e esperava a restauração da realeza de Israel (At 1,6). Alguns judeus se organizaram em lutas de resistência e levantes (66 d.C.). Roma reagiu vio-lentamente, em 67 d.C matou 40 mil judeus. João de Giscala (67-68 d.C.) e Simão Bar Quiora (69) comandaram a resistên-cia em Jerusalém. Em 70 Tito, general romano, ataca Jerusa-lém arrasa tudo, cidade e templo. Os judeus se reorganizam nos anos 90 em Jâmnia a partir do farisaísmo, ou seja, o judaísmo rabínico2. 2 - O livro dos At O livro dos At foi escrito nos anos 80-90 e reflete o seguinte quadro: a) A maioria dos apóstolos já estava morta. b) Muitos pagãos aderiram à fé provocando crise de i-dentidade. c) O cristianismo começa a se distanciar do judaísmo. d) Os judeus perseguem os cristãos, tachando-os de he-reges e traidores. Os romanos os perseguem, vendo-os como subversivos. e) Alguns se perguntam: as comunidades cristãs são ain-da a continuação do antigo povo escolhido (AT)? Outros questionam: as comunidades continuam a caminhada de Jesus? O autor quer provar a fidelidade das comunidades a Je-sus e ao AT, bem como contornar os problemas com judeus e romanos. Lc não é historiador, mas teólogo. Desta forma pinta um Paulo bem mais adocicado do que o real que se co-nhece pelas cartas. Lc quer legitimar a missão paulina, pa-ra isto apela a Pedro. Até o Pedro dos At é paulino (prega aos gentios - comparar At 10 com Gl 2,7-10. Lc vincula suas comunidades paulinas com a comunidade de Jerusalém. O se-guinte gráfico ilustra a intenção de Lucas: Antigo Tes-tamento

⇔ Jesus Cristo

⇔ Comunidade de Jerusalém

⇔ Comunidades Paulinas: Lc

2 PIXLEY, Jorge. A história de Israel a partir dos pobres. Petrópolis: Vozes, 1989. p. 119-134. METZGER, Martin. A história de Israel. São Leopoldo: Sinodal. 1984. p. 193-213. MYERS, Ched. O evangelho de São Marcos. São Paulo: Paulinas. 1992. p.84-101.

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O ponto de partida são as comunidades Paulinas que Lc defende. Ele as coloca em sintonia com a comunidade de Jerusalém, esta, por sua vez segue a Jesus e este está em perfeita sintonia com o AT. Assim os judeus de suas co-munidades não se sentem cortados de seu povo (Paulo cortou demais). Lc harmoniza as diversas igrejas (Doze - 1-5, Sete 6-8, Cinco - 13). O autor não deu título à sua obra, apenas lhe dá um destinatário (At 1,1-2; Lc 1,1-4): Teófilo. Isto é comum na literatura grega da época, portanto, o destinatário são co-munidades, não uma pessoa. O autor não assina. Pelo texto não se sabe quem o escreveu, só se sabe ser o mesmo que es-creveu o evangelho de Lucas. Desde o séc. II ele é atribuí-do a Lucas. Era comum atribuir livros a pessoas importan-tes. O título Atos dos Apóstolos vem do séc. II. Os manus-critos mais antigos dizem: "Atos dos apóstolos", "Os atos dos apóstolos", "Atos dos apóstolos por Lc o evangelista". O título não faz jus ao conteúdo, pois não conta os atos dos apóstolos, mas somente os de Pedro e os de Paulo. Deve-ria se chamar corretamente de Atos de Paulo, pois tudo gira em volta dele. O que vem antes prepara o caminho de Paulo. Os manuscritos mais antigos que se possui vêm do séc. IV. 1º - Texto corrente: tem duas formas muito próximas: - Sírio ou antioqueno - Egípcio ou alexandrino 2º - Texto ocidental: faz 400 adições, aperfeiçoa a lingua-gem, anti-judeu. Não há concordância entre os manuscritos. Deve-se isto às cópias e recópias manuais e às cópias de partes para as liturgias. O livro de At entrou no cânon em fins do séc. II ou início do séc. III. 2.1 - Situação nas comunidades Lc escreve para comunidades paulinas uns 10 ou 20 anos após a morte de Paulo. Os principais problemas que ele en-frenta, são: a) O desafio da comunidade de mesa

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Nas comunidades cristãs conviviam cristãos-judeus e não-judeus (Prosélitos e tementes a Deus3). Os judeus não podem aceitar que pagãos sentem com eles à mesa para a re-feição ou eucaristia (At 11,1ss; 15,19ss). Até Pedro é ví-tima deste preconceito (At 10,16-18.28; Gl 2,11-14). Lc, para resolver este problema que diminuía os pagãos, vendo ameaçado seu espírito missionário, mostra que Paulo comia com os pagãos: Lídia (16,14-15), carcereiro (16,34), Justo (18,6b), no navio (27,33-38). Até Pedro já comia com eles (10,16ss; 11,1ss). No entanto, At 10,16ss; 11,1ss e 15,7ss não combinam bem com Gl 2,1-14. Se Paulo é acusado de ter introduzido pagãos no templo (21,29), Lc o defende dizendo que isto já Pedro e Tiago o permitiram antes dele (At 10;11;15,20.29). Lc faz com que a prática de Paulo seja le-gitimada por Pedro e Tiago. Os At se referem muito aos prosélitos e adoradores de Deus (ver Bíblia de Jerusalém, nota a At 2,11). Estes se sentiam excluídos do templo e do convívio com os judeus. Agora, no cristianismo, se verificava o mesmo. Lc que tam-bém é prosélito quer resolver este problema, obstáculo da evangelização. b) Judeus se distanciando de Israel Os cristãos vindos do judaísmo se sentem expulsos das sinagogas. Não conseguem conciliar judaísmo e cristianismo. Depois da tragédia de 70 os judeus (fariseus) se reorgani-zam em Jâmnia. Acentuam a ortodoxia e pressionam os cris-tãos a voltarem ou seriam traidores. Lc quer encorajar es-tes cristãos judeus. Os traidores do AT são os chefes de Israel, os doutores e sacerdotes e não Jesus e seus segui-dores. Ele pinta negativamente os líderes judeus. Neste tempo a igreja está em fase de transição. Já não é bem ju-daísmo, mas também ainda não tem estrutura de igreja. Quase só se fala da fundação das igrejas, mas nunca de sua estru-tura. Tem resquício de Israel (Os Doze), mas já tem estru-tura helênica (Os sete At 6, e os cinco At 13). c) Os gregos e sua fidelidade ao Império Muitos funcionários do Império aderiram à fé. Será pos-sível ser fiel a Jesus e ao Império? Como aderir a Jesus e ter Paulo por missionário importante se os dois foram eli-minados pelo Império? Lc é muito simpático ao Império Roma-no. Assim ele sempre empurra a culpa pela morte de Jesus e de Paulo aos chefes dos judeus, enquanto os romanos são

3 Ver nota da Bíblia de Jerusalém sobre At 2,11

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bonzinhos (Lc 23,22; At 3,13), o centurião romano re-conhece que Jesus é justo (Lc 23,47), os chefes romanos protegem a Paulo (13,13; 16,30-34; 18,16). Paulo é perse-guido pelos judeus e salvo pelos romanos (21,27ss; 23,10ss; 24,25; 26,31s). Os culpados sempre são os judeus. Lc nem sequer menciona o martírio de Pedro e Paulo em Roma, pois quer atrair as benesses do Império. d) Convivência de ricos e pobres Nas comunidades lucanas convivem ricos e pobres. No mundo grego isto era inimaginável. Havia os bem ricos e os quase mendigos (+ de 50% são escravos). Lc mostra a convi-vência (2,42ss; 4,32ss e 5,12ss), insiste em acabar com a escravidão ao dinheiro (Lc 3,13s; 12,33; 14,14). Em At o dinheiro é visto de forma negativa (Judas 1,18; Ananias e Safira 5,1-11; Simão, o mago 8,20; Os amos da moça possuída 16,19; o lucro dos ourives 19,24). Os apóstolos não têm di-nheiro (3,5), Paulo não quer prata (20,33). Lc tem mensagem concreta para os pobres: Magnificat (Lc 1,46-55), Discurso inaugural em Nazaré (Lc 4,18) e na pará-bola do banquete (Lc 14,12-24). At realiza este programa do Magnificat e do discurso de Nazaré nas comunidades de Jeru-salém. Não há necessitados entre eles. e) Conclusão Em meio a todos estes problemas, Lc quer mostrar que a Palavra de Jesus, movida pelo Espírito Santo, avança. O nú-mero de fiéis aumenta (2,41.47; 6,7, etc. Se o evangelho de Lc é o livro de Jesus, o dos At é o livro do Espírito San-to. O Espírito produz a Palavra (2,4.17; 4,31; 19,6). Exis-tem muitos obstáculos, mas a Palavra vence. 2.2 - Período de transição At reflete um período em que a Igreja ainda não é bem definida, mas já se distingue do judaísmo. Ela quer ser o verdadeiro Israel, não se pensa como separação do judaísmo, mas pensa que o judaísmo se separou da antiga tradição. Não tem ainda estrutura formada, tudo é muito carismático. O livro fala muito da fundação das comunidades, mas pouco de sua estrutura. O fato de colocar a base da Igreja em Jeru-salém (At 1-5) mostra que o cordão umbilical da Igreja não está totalmente cortado.

"A obra de Lucas aparece como representando uma fase de transição entre dois estados sociológicos. O ponto de partida é um cristia-

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nismo que constitui apenas um movimento religioso dentro do judaísmo, não muito diferente do partido dos fariseus, dos es-sênios, dos zelotes, dos saduceus."4

2.3 - O projeto de Lc Lc quer animar comunidades paulinas dos anos 80-90 onde o evangelho foi anunciado a judeus e a pagãos (tarefa de Paulo). Os judeus olham com desprezo para Paulo (morto há uns 20 anos) por ter misturado tudo. Lc quer justificar Paulo, por isto ele olha para trás e escreve os At. Ou me-lhor, Lc escreve os atos de Paulo (At 13-28) justificando os pelo Espírito Santo. Paulo anunciou o evangelho aos pa-gãos movido pelo Espírito Santo. Para justificar melhor a atitude de Paulo, ele escreve os capítulos 1-12 como prepa-ração à missão de Paulo. Assim, em 1-5 temos a comunidade referência, de Jerusalém (comunidade ideal que mais reflete os desejos das comunidades lucanas dos anos 80 do que as comunidades de Jerusalém), temos em 6-8 um novo modelo de igreja emergente (helenista) e a partir de então Pedro é o preparador do caminho de Paulo. Pedro vai aos pagãos (10). Os apóstolos legitimam a missão (15). Isto na prática não foi bem assim. Lc não conheceu bem a Palestina, o judaísmo nem a teo-logia de Paulo. Muito do que diz sobre Paulo não concorda com o Paulo das cartas. Pinta um Paulo bastante adocicado, bem diferente do auto-retrato que Paulo faz nas epístolas. Conhece a LXX. Conhece bem o mundo grego e romano. Despreza a religião popular grega como magia e idolatria. Fala muito de prosélitos (2,11; 6,5; 13,43 etc. Alguns têm destaque: Nicolau (6,5), Cornélio (10), Lídia (16,14), Justo (18,7). Cita também muitas mulheres que têm papel im-portante (1,14; 2,17; 12,12; 21,9). Lc reflete missionários carismáticos ambulantes (At 13,1-5) que andam de cidade em cidade anunciando o evange-lho5, igualmente a Paulo. Tempo em que ainda não se tem mui-tos líderes locais. 2.4 - Redação

4 COMBLIN, José. Os Atos dos Apóstolos. v.1, p.47. 5 THEISSEN, Gerd. Sociologia do movimento de Jesus. Vozes/Sinodal, p.16-22.

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Lc se valeu de diversas fontes que não nos são conhecidas. Provavelmente, em parte, antigos relatos, usa-dos e retocados conforme sua intenção: 1-5 Tradição de Jerusalém. Reintepretada por Lc. 6-15 Tradição de Antioquia. Lc a conheceu nesta cidade? 16-28 Diário de viagem (algum companheiro: Teófilo?). São a parte mais histórica. A certa altura usa "NÓS". Paulo já está morto, por isto é idealizado. Estrutura 0 - Introdução 1,1-11 I - Jerusalém, comunidade de referência 1,12-7,60 - Os Doze (judaica) 1,12-5,42 - Os Sete (helenista) 6,1-7,60 II - Rumo a Antioquia, abertura aos pagãos 8,1-15,35 - De Jerusalém a Antioquia 8,1- 12,25 - Antioquia inaugura a missão 13,1-15,35 III - A grande Missão de Paulo 15,36-19,20 IV - O Processo de Paulo 19,21-28,31 - Viagem para Jerusalém 19,21-21-14 - Jerusalém 21,15-26,32 - Roma 27,1-28,31 0 - O prólogo 1,1-11 At 1,1-11 repete Lc 24,13-53 em perspectiva diferente: Lc 24 é coroamento At 1 é abertura, portanto, há diferen-ças, já que não é história. Inicia-se nova fase da missão, a fase do Espírito Santo. No início da missão de Jesus está o batismo de João, no início da missão dos apóstolos está o batismo do Espírito, pois ele é, doravante o movedor da missão. A missão parte de Jerusalém (Mt 28,16ss e Mc 16,7 relatam estes acontecimentos na Galiléia). Com isto Lc quer ligar a missão de suas comunidades (anos 80) com Jesus e com o AT. Lc sempre parte de Jerusalém (apresentação do me-nino no templo: Lc 2,22sss; o menino entre os doutores: Lc 2,41ss; a tentação é em Jerusalém: Lc 4,9). Isto tudo indi-ca que Jesus continua o Antigo Testamento. Também a missão dos apóstolos, movida pelo Espírito Santo, parte de Jerusa-lém, pois continua Jesus e o AT. De lá vai para os confins. Pode-se dizer, Lc 1-2 coloca Jesus em continuidade com Is-rael. At 1,1-11 colo as comunidades em continuação com Je-sus.

Comparação entre Lc 24,50 e At 1,6-11

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Lc 24,50-53 At 1,6-11 - No dia da ressurreição - 40 dias depois - Em Betânia - Em Jerusalém - Durante a bênção - Durante a exortação - διεστη "se elevou" - επηρθη "foi alçado" - Os 12 se prostram - Os 12 fitam o céu - Os 12 vão ao templo - Jesus voltará

Onde Lc se inspirou para fazer este relato? Gn 5,24 Enoque; Ex 13,21-22; 14,19-20; 19,16ss Nuvem 2Rs 2,1-18; Eclo 48,9,12 Elias; Dn 7,13 O Filho do Homem. Além das cenas bíblicas existem as lendas romanas, onde du-as ou mais pessoas viam os imperadores subir para o céu. Esperava-se que pessoas importantes subissem ao céu: impe-radores, sábios, etc. Síntese: A ascensão não é fato histórico na maneira atual de en-tender. É testemunho de que Jesus está vivo, que sua obra continua nos apóstolos movidos pelo Espírito Santo. Os cristãos das comunidades lucanas se espelham neste relato: vêem Jesus vivo, mas não podem esperar dele uma ação mágica de instauração do Reino, nem devem imaginar que agora está tudo perdido, pois Jesus já não está fisicamente presente. Tudo o que se esperava desde o AT se realiza em Jesus, mas agora são os cristãos, movidos pelo ES que farão o que Je-sus fazia. A realeza (v.6-8) não cairá do céu, mas os dis-cípulos, movidos pelo ES o anunciarão até os confins da terra. Os v.6-8 são como o programa de todo livro dos At. A missão sai de Jerusalém e se expande até os confins do mun-do. Os v.9-11 representam o espaço de ação dos discípulos, isto é, entre a subida e a volta de Jesus. I - PRIMEIRA PARTE - JERUSALÉM (At 1-7) A primeira parte se divide em dois blocos: 1 - Os apóstolos (1,12-5,42) 2 - Os Sete ou os helenistas (6-7). 1 - OS APÓSTOLOS(1,12-5,42).

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Neste bloco, antes de se ver um retrato da comunidade de Jerusalém, deve-se ver os sonhos das comunidades luca-nas. Jerusalém, que nos anos da redação (80) já não existe mais como centro do judaísmo, é idealizada e se torna a ex-periência fundante para as igrejas lucanas.

"Em primeiro lugar temos aqui uma utopia, uma visão de sociedade humana projetada como um ideal, uma meta."6

Jerusalém é o ponto de referência para todas as igre-jas, ela é sinal de continuidade e por isto também modelo. a) κοινονια /koinonia "mesa comum" (partilha). A comuni-dade de Jerusalém, idealizada, realiza Lc 1,46ss; 4,18; 6,20-21. At 1-5 é crítica a todos os modelos econômicos, mas principalmente uma crítica as comunidades lucanas que esqueceram a partilha. É uma reatualização do jubileu: re-distribuição. b) A comunidade de Jerusalém (idealizada) é fermento. Seus membros são poucos, mas despertam entusiasmo (2,47; 3,9-10, etc.). Estão no meio do povo, não separados. c) Seu testemunho se expressa em sinais. Eles anunciam o nome de Jesus. Testemunham a paixão, morte e ressurreição e ascensão. Os fenômenos carismáticos são a materialização da ação do Espírito Santo. São a cobertura da missão e não satisfação pessoal. d) A comunidade de Jerusalém e os Doze são paradigma da firmeza nas perseguições. O conflito é entre os cristãos e os judeus. Os chefes judeus estão errados, pois mataram Je-sus, o povo adere. 1.1 - Os Doze esperando em Jerusalém 1,12-26 Os destinatários deste texto são os fiéis lucanos e não os de Jerusalém. Lc quer animar seus fiéis, por isto, em Jerusalém são mencionados os Doze. O discurso de Pedro (v.16-22) é claramente para os lucanos. Para Jerusalém ele não precisaria dizer o caso de Judas nem mesmo explicar o termo hacéldama "na língua deles". Por que Lc faz este relato? Ele tem a resolver dois problemas comunitários do seu tempo: a) A tradição: com a morte dos apóstolos surgem novos missionários que deturpam a mensagem de Jesus. Lc quer co-

6 COMBLIN, José. op. cit. p.76.

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locar balizas. Então, a igreja de Jerusalém se torna a referência. Lá estão os Doze, eles têm autoridade para definir, pois eles testemunharam "Desde o batismo de João até o dia em que foi levado ao céu" (At 1,22). Mais tarde também Paulo precisa do aval deles (At 15). A igreja de Je-rusalém (dos Doze) será norma para todas as demais. Só ela tem autoridade, pois os Doze são testemunhas oculares. Se bem que nenhum deles esteve com Jesus desde o batismo de João até a ascensão, pois ele os chamou mais tarde e, ainda mais, Matias não podia ter estado com eles, pois os evange-lhos nos dizem que Jesus levou os Doze a um lugar afastado e os instruiu. b) Sucessão apostólica (At 20,17-38): Nas comunidades lucanas surge a necessidade da institucionalização. Os lí-deres carismáticos e ambulantes como Pedro e Paulo desapa-receram e as comunidades cresceram muito e não podem depen-der sempre de líderes itinerantes. Formam-se líderes locais (anciãos = πρεσβυτερος). Estes devem ser confirmados pelos Doze. Por isto Lc dá tanta ênfase aos Doze e aos anciãos de Jerusalém, formando um conselho (At 15,2ss). Os anciãos (presbíteros) receberam sua missão dos Doze. Conclusão: percebe-se a intenção de Lc que quer preve-nir os membros de suas comunidades: - caminhada de um sábado (v.12) = O cristianismo se en-quadra no judaísmo. - piso superior = lugar preferido dos rabinos (1Rs 17,19s). - 120 pessoas = 10 por apóstolo lembra Ex 18,21. - Pedro = tem papel preponderante, é o cabeça. - o testemunho ocular = luta contra a gnose ou uma re-ligião apenas espiritual. - Matias = reflete as eleições dos tempos lucanos. Para Lc os quesitos do apostolo são: testemunha ocular de Jesus, da ressurreição, escolhido por Jesus (sorte) e que tenha recebido o Espírito Santo. 1.2 - O Pentecostes 2,1-13 Mais uma vez devemos pensar na comunidade de Lc antes de pensar em Jerusalém. O Espírito Santo motiva a Palavra e o testemunho que fundam a igreja. Por isto, mais uma vez, a origem devia estar em Jerusalém. O Espírito Santo é o motor do testemunho: profecia. A igreja ainda não é racionalizada nem estruturada. Por isto o Espírito e suas manifestações são materializadas. A

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ação do Espírito Santo é experimentada na vida con-creta dos fiéis. O fenômeno do Pentecostes é uma ilustração procedente, de no mínimo, duas tradições. Há dificuldades no relato. Como pode o povo afluir se os apóstolos estavam numa casa (v.2)? Há contradição entre os v.4 e 11.

"No v.4 parece que os apóstolos falam línguas diversas. Mas no v.11 parece que o milagre estava na audição e não na emissão."7

Supõe-se que este texto venha de duas fontes: a) 2,1-4.6a.12-13, bem como At 4,31 = Glossolalia, en-tusiasmo da fé, fenômeno comum na igreja primitiva. Pré-lucano. Este texto não fala de testemunho nem de missão. Os apóstolos estão falando em línguas, ou seja, louvores. Glossolalia = louvor, entusiasmo da fé, situação primitiva do cristianismo. b) 2,5-6b-11 reflete a missão entre as nações. Prova-velmente lucano. Atribui ao Espírito efeitos proféticos. Os apóstolos falam como galileus, mas cada um os entende em sua língua. Estes versículos refletem a Profecia = pregação aos muitos povos. Lc, como Paulo (1Cor 13; 14) privilegia a profecia so-bre os louvores frenéticos, mas estes ainda estão presentes no seu tempo. Assim, uma antiga experiência meramente ca-rismática de louvor é superada por uma experiência onde o Espírito anima a profecia (missão). Os fenômenos carismáticos estão narrados no gênero apo-calíptico e encontram eco no AT: Ex 3,1-3; 13,21; 19,16-19; 20,18; 1Rs 19,11; Is 66,15. lembra também Lc 3,16 (Batismo de fogo, cf. também At 11,16). Na tradição rabínica a Pala-vra de Deus é apresentada como fogo. Portanto, o fenômeno do Pt lembra as comunidades lucanas ao invés de Jerusalém. É remédio contra o embrião da gnose (religião abstrata). Contra este abuso, deve-se tornar o Cristo e todas as teo-fanias materializadas. O mesmo fenômeno aparece ainda em 4,8.31; 9,17; 13,9. O Pt reflete a continuidade entre as comunidades luca-nas e o AT (cf. textos acima). No judaísmo tardio o Pt lem-bra o dom da aliança (Sinai - Ex 19-24).

7 COMBLIN, José. op. cit. p.87-88.

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Concluindo, pode-se dizer, o Pt é a materializa-ção da ação do Espírito Santo na marcha da Palavra. Não de-ve ser visto como um fato histórico um dia acontecido, mas algo que acontece desde a partida de Jesus até o fim dos tempos e não só em Jerusalém, mas em todo mundo. 1.3 - Os discursos de Pedro a) 2,14-41:Tanto At 2,14-41 como 3,11-26 e ainda 4,8-12 estão na mesma perspectiva. Reflete a crise judeu-cristã com os judeus ortodoxos das comunidades lucanas dos anos 80-90. É a briga dos chefes das sinagogas. Reflete a sepa-ração da igreja do judaísmo. "Vocês mataram Jesus...usando serviço de pagãos" (2,23). O fato se dá em paralelo ao templo. Pedro assume o lu-gar de chefe (Pedro não faz parte da chefia judaica). Os outros chefes são "geração corrompida". A igreja, segundo Lucas, é o verdadeiro Israel, os outros rejeitara Jesus. São os mesmos que rejeitaram Paulo. Os cristãos têm Jesus e o Espírito Santo, são fiéis ao AT, não precisam dos chefes judeus, pois eles se desviaram. Nos tempos da redação havia briga entre os judeus de Jâmnia e os cristãos. Lc mostra que eles são falsos. Lc, de forma inteligente, coloca Pedro neste papel e não Paulo. Na realidade, estes conflitos se deram com Pau-lo. Nos tempos de Pedro, em Jerusalém, estes conflitos não existiam. O discurso se dirige primeiramente aos judeus (2,14b) e só depois aos demais. Esta lógica perpassa o livro dos At. Pedro fala para todo Israel como superador do velho judaís-mo (2,36). Isto tudo era conveniente aos tempos lucanos. O discurso é teologicamente arcaico. Apenas narra a paixão, morte e ressurreição que os apóstolos testemunham. Não tem o caráter expiatório da morte de Jesus, como Paulo mais tarde ensina (1Tm 2,6; Gl 1,4; 1Cor 6,20). Lc não co-nhecia tal doutrina (comparar Mc 10,42-45 com Lc 22,24-27. Há uma exceção em Lc 22,19-20 e At 20,28). b) 3,11-26: Novamente Pedro anuncia Jesus. Os chefes judeus o mataram. Ele morreu, mas ressuscitou. O discurso de Pedro mostra a fidelidade da igreja ao AT, bem como a traição dos chefes à antiga aliança. A I-greja é o verdadeiro Israel. Pedro, o chefe do novo Israel

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desbanca o velho Israel e pede conversão a estes. No discurso de Pedro pensa-se Israel sem suas instituições: sacerdotes, sinédrio, escribas, etc., que nestes anos esta-vam em crise. Os cristãos dos anos lucanos tomaram posse de Israel e descartaram o velho Israel. Toda culpa pela morte de Jesus é dada aos judeus. Esta tática é usada por Lc em todo livro. c) 4,8-12: O discurso é semelhante aos anteriores: a-núncio da paixão, morte e ressurreição de Jesus. Novamente a culpa é dos chefes judeus. Transparece bem a questão do testemunho. 1.4 - A comunidade ideal Três textos idealizam Jerusalém, que é referência para as comunidades lucanas (2,42-47; 4,32-37 e 5,12-16). Na co-munidade ideal também tem exceções (5,1-11). Estes três relatos são também chamados de sumários e representam a utopia do cristianismo desde o princípio. Ha-via similares no mundo grego e também em Qumram. Porém, tanto no mundo grego como em Qumram a comunhão de bens se dá entre iguais. Nas comunidades cristãs se dá entre cama-das diferentes. Tanto em Jerusalém como nas comunidades lu-canas há sinais desta κοινονια "mesa comum". a) 2,42-47: A comunhão (v.42) era algo real. Não era pobreza espiritual, sentimento. Alguns ricos vendiam os seus bens e os colocavam em comum (Barnabé, Lucas ?). Ensino dos apóstolos (v.42). O testemunho dos apóstolos é a força da missão nos tempos lucanos. Deve-se testemunhar um Jesus de carne e osso para certos desvios gnósticos. Fração do Pão (v.42). Reflete a eucaristia que era ce-lebrada em refeição (1Cor 10,16; 11,25). Orações (v.42). Costumes judaicos repetidos pelos cris-tãos (Lc 11,2-3). Milagres e prodígios (v.43). O livro de At traz muitas referências a milagres (3,1-10; 5,12-16; 9,32-43, etc.). At quer ser a continuação do Evangelho, ou seja, a comunidade lucana quer continuar Jesus.

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b) 4,32-37: Este texto reflete um pouco a filo-sofia de Platão (República), mas também reflete Dt 15,4. Certamente tem algo de concreto nisto, pois os apósto-los e discípulos vindos da Galiléia não podiam subsistir em Jerusalém, pois lá não tem pesca nem agricultura. E os com-panheiros de Jesus eram, na sua maioria, pobres. Certamente este grupo de miseráveis foi amparado por alguns ricos de Jerusalém. Nem todos partilhavam tudo (5,1-11). Lc quer motivar a partilha em suas comunidades à parti-lha. Por isto se refere a Jerusalém, ou seja, as comunida-des realizam o que Jesus ordenara (Lc 1,46ss; 12,33; 18,22). Resta uma dúvida: se Barnabé era levita (v.36), então não podia ter propriedades (Nm 18,20; Dt 10,9). c) 5,12-16: Os discípulos reproduzem a missão de Jesus. A Igreja de Jerusalém é o retrato fiel, o modelo que serve de base para todas as igrejas. A Igreja de Jerusalém, mode-lo para a de Lucas, vive em harmonia total, ou seja, encar-na o projeto de Jesus plenamente. d) 5,1-11: Mas, nem tudo é perfeito. Uma antiga lenda popular que narra uma excomunhão (1Cor 5,2) é estilizada para ilustrar a gravidade de se trair a comunidade. Lc se vale desta lenda para advertir os membros de sua comunidade contra a mentira ao Espírito Santo que anima as comunida-des. O dinheiro e a mentira são o primeiro passo para sola-par as comunidades lucanas, por isto Lc mostra como o mesmo já ocorreu na comunidade ideal.

"As malversações financeiras geram mentiras."8 A partir da fraude financeira contra a comunidade tudo pode acontecer. A lenda de Ananias era um remédio assusta-dor para cortar o mal pela raiz. O maior pecado é o que se faz contra a comunidade, pois Lc quer que suas comunidades sejam autênticas. Mentir para a comunidade em assuntos fi-nanceiros destrói a comunidade. Ananias e sua mulher peca-ram contra a comunidade, isto é, contra o Esp. Santo, pois a comunidade (igreja) é obra dele. Havia crença de que a morte era castigo (At 12,23; 1Cor 5,5; 11,30). 1.5 - Conclusão

8 COMBLIN, José. Op. cit. v.1, p.132.

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As cenas da cura do paralítico (3,1-10), os apóstolos diante do conselho (4,1-22), a oração da comunidade (4,23-31) refletem como a Igreja continua a obra de Jesus. O que ele fazia (curar paralíticos), também os apóstolos fazem e são confirmados por Deus neste sinal. Como Jesus foi ao tribunal, também os apóstolos o são. Jesus já havia alerta-do (Lc 12,1-12; 21,12-19). Na oração Deus confirma os após-tolos (At 4,31). Em 5,17-42 se mostra como a jovem igreja enfrenta obs-táculos, mas nada a pode deter. As autoridades se vêem frustradas e a igreja cresce (v.42). Ninguém pode impedir a marcha da Palavra. O conflito se dá contra a nobreza sacer-dotal e a defesa é feita por um fariseu: Gamaliel. Este re-lato é estratégico: nos tempos de Lc os saduceus e a nobre-za já não existiam mais, apenas o fariseus existiam. Lc quer ganhar sua amizade, por isto mostra o bondoso Gamali-el, fariseu. 2 - OS SETE (HELENISTAS) (At 6-7) Os cap.6-7 ainda refletem Jerusalém. No entanto, a e-leição dos Sete reflete algo diferente: a passagem do cris-tianismo de cultura hebraica para a cultura grega. Este foi o fator determinante para a ocidentalização da Igreja e o primeiro passo para a missão de Paulo. Com os helenistas (judeus de fala grega) surgiu a uni-versalização da Igreja. Eles, os Sete passam a ter uma es-trutura própria. Não são dirigidos diretamente pelos Doze. Ainda que Lc diga que os Doze impuseram as mãos aos Sete, estes certamente têm outra orientação e, provavelmente ge-raram conflitos na comunidade, tanto com a Igreja nascente, como também com os judeus. O primeiro mártir é o helenista Estêvão (At 7). Os Doze lembram os patriarcas das 12 tribos de Israel. Os Sete lembram os dirigentes das sinagogas (consoe-lho). Logo, estão aqui dois modelos de igreja que têm visão diferente. A igreja dos helenistas começa a questionar as instituições judaicas (discurso de Estêvão -7,48). Os Doze iam ao templo e lá rezavam, mas os helenistas dão um passo à frente. Dos helenistas saem as primeiras missões para o estrangeiro: Samaria (At 8,5ss), Etiópia (8,26ss), Antio-quia (11,19ss). A igreja dos helenistas está separada até financeiramente da igreja dos Doze.

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Aqui Lc, com mão hábil, coloca os Sete sob a tu-tela dos Doze. Eles é que os ordenam, lhes impõem as mãos. Lc os submete aos Doze para mostrar a continuidade apostó-lica, questão dos anos 80. A Palavra avança a partir de Je-rusalém (esquema lucano). Lc não demonstra o conflito, pa-rece que tudo se deu pacificamente, o que parece pouco pro-vável. Lc coloca todo problema numa questão de mesa, mas pare-ce que a questão é mais doutrinal. Os helenistas desprezam a lei e o templo (7,48). Os helenistas são perseguidos ao passo que os Doze nada sofrem.

"Naquele dia explodiu contra a igreja de Jerusalém violenta per-seguição. Todos, com exceção dos apóstolos, se dispersaram nas regiões da Judéia e da Samaria" (At 8,1b).

Estêvão é o primeiro mártir e é helenista. Isto mostra que a diferença não é só financeira, mas doutrinal. Além do mais, os Sete não aparecem cuidando da mesa, mas pregam co-mo os Doze. O grande conflito é o templo e a Lei (6,13). Junto com os helenistas vinham os prosélitos e estes eram excluídos do templo (At 21,28-30). Isto desagradava profundamente aos pagãos. Outro problema era a mesa. Um judeu não sentava à mesa com um incircunciso. Tais exclusões preocupavam os he-lenistas que levavam seus amigos pagãos e suas viúvas. Ven-do estas excluídas pelos hebreus, sentiam emperrado seu processo de evangelização. Por isto lutam contra esta in-justiça (Estêvão). Desta forma os Sete, por meio de uma crise, desafiaram a igreja a se abrir aos povos pagãos. Os hebreus teriam deixado a Igreja eternamente como seita judaica, pois bar-ravam o processo de evangelização dos pagãos. As comunida-des helenistas, devido ao fato de conviverem com os pagãos, eram mais abertas e bem mais proféticas, enquanto os he-breus se atinham à instituição. Os Sete não se fixam na continuidade de Israel, como o fazem os Doze. Sua novidade é Jesus. Jesus supera o templo e a Lei: os dois grandes obstáculos para os pagãos. Os he-lenistas supõem um Israel sem templo e sem lei. Estêvão faz aparecer a diferença entre cristianismo e judaísmo. Enfati-za Jesus e relativiza a Lei. Desta forma acelera a separa-ção do judaísmo.

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O discurso de Estêvão provoca a ira dos sacerdo-tes, pois mexendo no templo, tira seu chão debaixo dos pés. Acaba com o lucro da religião. A cena do apedrejamento de Estêvão (7,54-60) é artifi-cial. Lc cita o processo, mas não a sentença, mostra a res-ponsabilidade dos chefes. Não parece lógico que num lincha-mento houvesse tempo para o condenado proferir um discurso e terminá-lo, só depois ser morto. Estêvão olha para o céu. Seria este tribunal ao ar livre? II - SEGUNDA PARTE - RUMO À ANTIOQUIA (At 8-15) Esta unidade pode ser entendida como o prelúdio da mis-são de Paulo. Fala-se da:

a) Dispersão dos helenistas (8,1ss). A evangelização se expande até a Antioquia (11,19ss). Neste processo de expan-são se evangeliza povos pagãos.

b) Vocação de Paulo (9,1ss). Paulo é o grande fruto do modelo de igreja dos Sete, ou melhor, de Antioquia.

c) Intervenção de Pedro (10,1ss). Este gesto prepara a missão de Paulo aos gentios.

d) Fundação da comunidade de Antioquia (11,19ss). Esta cidade será a base da missão de Paulo e foco da expansão missionária. Todos estes elementos preparam a missão universal de Paulo. Mesmo descrevendo gestos de Pedro, Lc quer descrever e legitimar Paulo. A segunda parte se divide em duas partes: 1 - De Jerusalém a Antioquia (8,12) 2 - Antioquia inaugura a missão (13,1-15,35). 1 - De Jerusalém a Antioquia (8-12). Os capítulos que compõem esta transição têm o claro ob-jetivo de mostrar como a Palavra vai vencendo os obstáculos e vai se abrindo para os povos. Nestes capítulos a abertura ainda é bastante tímida, mas já acontece. 1.1 - Transição 8,1-4)

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A perseguição contra todos, menos contra os a-póstolos indica para o fato de que os helenistas incomoda-vam tanto aos judeus como aos romanos. Por isto os Doze não entram nesta perseguição. 8,1 é continuação de 1,8. É o a-vanço pela Judéia e Samaria até os confins. 1.2 - Filipe e a missão na Samaria 8,5-25 Este texto tem objetivos claros:

a) Os helenistas espalharam o evangelho na Samaria. É a primeira vez que alguém vai em missão para fora da Judéia.

b) Harmonização entre os sete e os Doze. Os Doze vão confirmar a missão dos Sete (v.14ss) pela imposição das mãos. Se levarmos em conta Gl 2,1-14 e mesmo At 15 pode-se supor que a questão não foi bem assim. A confirmação é lu-cana dos anos 80. Os Doze aparecem como autoridade e refe-rência para as Igrejas lucanas, por isto eles legitimam a missão dos Sete que está na raiz de Paulo. Aqui o Espírito Santo sucede o Batismo. Em Jerusalém ele antecede (2,38). Mas aqui a questão é outro, os apósto-los confirmam a missão dos diáconos. Isto é uma artifício literário de Lc. A figura de Simão é a imagem que Lc faz da religião po-pular grega. Tudo aí gira em torno do dinheiro. Lc mostra o contraste entre a religião cristã e a pagã. Os cristãos não agem pelo dinheiro (3,6; 8,20). Daí vem simonia. Tanto Si-mão como Ananias são amaldiçoados por dinheiro. Simão rece-be admoestação e pode invocar perdão, Ananias não teve esta chance. É a primeira vez que se fala de perdão depois do batismo. 1.3 - O primeiro africano na Igreja 8,26-40 Continua o projeto de 1,8. Os Doze evangelizam na Ju-déia, Filipe foi à Samaria e agora levam o evangelho até os confins da terra. Etiópia era conhecida por este título. Lucas diz que o anjo do Senhor, ou seu Espírito está na base desta evangelização (v.26 e 29). Portanto, o que Paulo faz mais tarde não é traição, é obra do Espírito. A intro-dução de gentios na igreja não é invenção paulina, mas é vontade de Deus. A esta altura se tem um cristianismo iti-nerante sem estrutura eclesiástica. Os convertidos são in-dividuais, não tem comunidade estruturada. Não se sabe o eunuco fez depois.

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Lc se inspirou em Is 18,7; 60; Sf 3,9-10;Sl 68,32. Logo, o etíope é figura literária. O batismo do eu-nuco é legitimação da missão de Paulo. Há uma dificuldade no texto: Samaria não fica na estrada de Jerusalém para Ga-za. O arrebatamento de Filipe segue Ez 3,14; 2Rs 2,16-18. 1.4 - A conversão de Paulo 9,1-21 Este texto apresenta problemas: - Paulo diz ter recebido uma visão (1Cor 15,8). Em At 9 não se fala de visão, apenas de intervenção. - Paulo diz que a visão lhe deu vocação de apóstolo (Gl 1,16). At não fala de vocação, mas de conversão. Lc se inspira nos grandes personagens do AT. Antes de assumirem sua missão, aparecem com algum sinal na história, depois desaparecem, para mais tarde reaparecer: Moisés, Sa-muel, Saul, Davi, etc. Paulo também age assim, depois da conversão desaparece e mais tarde volta a todo vapor. Com Paulo a Palavra tem mais uma vitória. Lembra Ex 3 e 2Mc 3. Tanto Paulo como Moisés sentem o apelo de Deus em elementos comuns: Fogo Luz Cobre o rosto Cegueira (divindade) Aarão Ananias Por que Paulo se converte? Paulo era fariseu e os fari-seus eram populares, acreditavam na ressurreição. Ele foi aluno de Gamaliel (22,3), homem aberto e liberal. Paulo certamente se comoveu diante a persistência dos cristão di-ante martírio (Estêvão). Esta persistência mexeu com a consciência de Paulo. 1.5 - Paulo em Jerusalém 9,23-31 Texto problemático, não fecha com Gl 1,16-24. Gl deve ter mais valor histórico, pois vem da mão do próprio Paulo. Mas Lc não quer fazer história, se não colocar Paulo em co-munhão com os Doze. Em todas as viagens paulinas, a mensagem antes é desti-nada aos judeus, mas diante da rejeição destes, Paulo se dirige aos gentios.

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"Paulo ensinou primeiro em Jerusalém e depois foi para as nações porque foi expulso de Jerusalém."9

Esta viagem certamente é forjada para ilustrar a inten-ção de Lc que quer mostrar aos seus fiéis dos anos 80 que Paulo também anunciava o evangelho aos judeus. Parece que isto não é verdade (Gl 2,7-8). 1.6 - Pedro em Cesaréia 9,32-43 Lida (v.32-35) e Jope (v.36-43) são a ante-sala de Ce-saréia (At 10). Temos aqui duas lições: 1º) A continuidade da ação dos apóstolos em relação a de Jesus. Jesus continua agindo por meio de Pedro. Enéas (9,32-35) = Mc 2,1-12 Tabita (Gazela) (9,36-43) = Talita (ovelinha) Mc 5,36-43; 1Rs 17,17ss. 2º) Pedro, em nome dos apóstolos visita as comunidades como o faz Paulo mais tarde e além disto entra na casa do curtidor e da tecelã. Entrar na casa do curtidor quebra a lei da pureza. Lc habilmente coloca esta missão paulina em Pedro, pois os judeus tinham mais consideração com ele. Deste curtidor (impuro) até os pagãos só havia um passo. 1.7 - Pedro e Cornélio 10,1-11,18 O batismo de Cornélio (pagão) ocupa lugar de destaque em At. Interrompe o curso normal. É uma antecipação do Con-cílio de Jerusalém (At 15) e da missão de Paulo. Lc faz com que Pedro abra a missão de Paulo. Em outras palavras, a missão de Paulo ainda é continuação dos Doze. Cornélio prepara a missão de Paulo. Objetivos: 1º) Lc vê com simpatia os chefes romanos em todo livro de At, por isto destaca sua benevolência e conversão. Po-rém, Pedro não se submete a ele, mas ele se submete a Pe-dro. É um caminho para conquistar autoridades.

2º) Cornélio é prosélito. Em Lc quase todos os que ade-rem à fé já são prosélitos. Lc detesta as religiões gregas. Aprecia a cultura grega e a religião judaica, pois a reli-giões gregas eram demais fantasiosas.

9 COMBLIN, José. op. cit. v.1, p.184.

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3º) Na origem deste ato de Pedro está a o Espí-rito de Deus (10,2-6; 10,9-16; 10,44-45).

4º) Os gentios também podem ser salvos, também eles re-cebem o Espírito (10,45).

5º) Pode-se comer junto (10,14-15; 11,2-18), nada é im-puro. Na realidade, este gesto de Pedro reflete os problemas originados por Paulo e que Lc agora quer resolver. Compa-rando este texto com Gl 2,12 e com At 15, nota-se certa di-ficuldade. Por que fazer o Concílio de Jerusalém se Pedro já tinha resolvido o problema? Por que Paulo diz ser ele apóstolo dos gentios e Pedro dos circuncisos? O caso Cornélio certamente reflete a conversão de tan-tos oficiais romanos que de fato aconteceram, mas Lc retoca o fato para ilustrar a prática paulina. 1.8 - Fundação da igreja de Antioquia 11,19,30 A igreja de Antioquia foi fundada por helenistas expul-sos de Jerusalém (8,1-2), logo obedece ao esquema de At 1,8. A visita de Barnabé (At 11,22) é mais um artifício li-terário para dizer que há legitimação pelos Doze da nova missão. Barnabé não era dos Doze e nem volta a eles para prestar conta. Para Lc toda nova igreja precisa legitimação dos Doze. Lc coloca Antioquia pacificamente dentro do pro-cesso de evangelização que parte de Jerusalém, no entanto, deve ter havido problemas (Gl 2). Talvez em Antioquia te-nha-se batizado os primeiros pagãos não circuncidados. Lc não o cita, pois já colocou Cornélio como modelo. Por causa disto Lc cala sobre a reação de Barnabé (At 15,36-39; Gl 2,13), já que para ele isto tudo estava resolvido desde Cornélio (At 10). Na realidade, tem-se a impressão de que em Antioquia houve conflitos (Gl 2). Lc não faz menção dis-to. Paulo trabalhou um ano em Antioquia (11,26). Provavel-mente foi aí que ele formou sua mentalidade anti circunci-são Encontram-se, neste bloco referências a profetas (11,27; 13,1ss). Isto lembra um cristianismo mais carismá-tico, sem muitas estruturas. Este tipo de igreja espontâ-nea, aos poucos perde seu espaço, pois os apóstolos e pres-bíteros aos poucos ocupam seu lugar, isto é, a igreja se institucionaliza no fim do 1º século. Assim, pode-se falar em: Apóstolos como fundadores e referência das comunidades Presbíteros como organizadores das comunidades

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Profetas como a parte espontânea da comunidade. Aos poucos, os profetas perdem seu lugar, pois os pres-bíteros se declaram herdeiros da tradição apostólica. Assim o papel dos profetas vai se empalidecendo, sua função apa-rece como prever o futuro (11,28). Isto é depreciação do papel dos profetas (13,1-5). 1.9 - Herodes vencido por Pedro - 12 É a última narração sobre Pedro. Ele reaparece no Con-cílio (15), mas só para legitimar os trabalhos de Paulo. Também este relato sobre Pedro prepara a missão de Paulo. Paulo foi preso (16,16ss), mas já Pedro passou por isto, ou seja, Lc coloca Paulo em continuidade com Pedro. A marcha da Palavra avança, ninguém a pode barrar, os apóstolos são presos, mas isto não significa derrota. O presente relato parece uma costura de três antigos textos: a morte de Tiago (12,2), a prisão de Pedro (12,3-19) e a morte de Agripa (12,20-23). Chama a atenção como Lc só dedica um versículo para descrever o martírio do primeiro apóstolo aí pelos anos 43-44 (12,2), quando ele dedicou um capítulo inteiro para nar-rar o martírio de Estêvão (7). Isto já mostra que, com Lc estamos num outro modelo de Igreja. No relato da libertação de Pedro, Lc deve ter usado uma velha tradição de Jerusalém que mostra como Deus interveio nos momentos difíceis. A prisão de Pedro lembra a de Jesus. Também ela aconteceu na Páscoa (ázimos). Jesus foi vigiado na sepultura; Pedro, na prisão. Jesus ressuscita e os guar-das ficam; Pedro escapa e os guardas nem percebem. Pedro vai e encontra a mulher que não consegue comunicar; Jesus ressuscita, mas os apóstolos pensam que as mulheres deliram (Lc 24,1). Jesus pede que avisem os irmãos (Jo 20,17b; Mc 16,7); Pedro também diz: "Contem isto a Tiago e aos irmãos" (12,17b). A fuga de Pedro na Páscoa lembra também a fuga do Egito, quando Deus interveio na libertação. Assim, a liber-tação de Pedro é continuidade do povo de Israel e de Jesus, mais tarde Paulo continua sua obra. O relato sobre a morte de Agripa certamente vem do mun-do judaico. Herodes morre, não por ter perseguido Pedro, mas por não ter dado glória a Deus, e por ter aceito honras divinas. Flávio Josefo fala de Agripa I que se sentiu mal numa festa e cinco dias depois morreu. Lc fez uma costura e aplicou à morte de Agripa a punição de Deus.

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Em suma, o capítulo é uma advertência aos perse-guidores: não conseguem parar a Palavra e ainda correm o risco de serem castigados. Esta advertência se dirige aos judeus que são ameaça aos cristãos. Ainda há bem mais ju-deus do que cristãos, e apesar da destruição dos anos 70, eles ainda têm certo poder. Lc anima os cristãos vindos do judaísmo a não temer seus antigos companheiros, agora per-seguidores, pois Deus os protege. Neste texto transparece a Igreja doméstica, isto é, a Igreja se reunia na casa da mãe de Marcos (12,12). Isto in-dica que as Igrejas eram domésticas e que as mulheres, ti-nham nelas, papel preponderante. 2 - Antioquia inaugura a missão - Os Atos de Paulo 13,1-15,35 No capítulo 13 começa o verdadeiro tema do livro: os atos de Paulo.

"Tudo o que foi narrado até aqui tinha por finalidade mostrar a continuidade entre Paulo e a Igreja de Jerusalém, a Igreja dos apóstolos e, por intermédio desta, a história de Israel, o povo de Deus"10. "O objeto do livro dos At consiste em mostrar que Paulo, e, com ele, as comunidades de fundação paulina, constituem a continuação e a realização acabada do povo de Deus preparado através de toda a história de Israel, da história de Jesus e da comunidade de Je-rusalém”.11

Paulo não é bem visto pelos judeus. Conseqüentemente suas comunidades são vistas como abortivas. Paulo é visto como traidor do judaísmo por sua abertura aos pagãos. Os judeus de Jâmnia pressionavam os judeu-cristãos a voltarem para o redil.

“Lucas escreve a sua obra para persuadi-los a permanecer no cris-tianismo. Longe de trair o seu povo Israel, encontrarão o seu perfeito acabamento”.12

Lucas tinha que provar que Paulo era fiel ao judaísmo, apesar de vê-lo expulso das sinagogas e rejeitado pelas au-toridades judaicas. Lc vê dois grupos em questão:

10COMBLIN, José. Os Atos dos apóstolos. V. 2, p.7. 11COMBLIN, José. Op. Cit. p.7. 12COMBLIN, José. Op. Cit. p.7.

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a) Judeu-cristãos; b) Prosélitos - gentios apegados ao judaísmo. Como manter fiéis os cristãos vindos destas duas cor-rentes se elas sabem que o cristianismo de Paulo é uma traição ao judaísmo? Lc mostra que os traidores são as au-toridades judaicas e não Paulo. Os atos de Paulo constam de duas partes (cópias de Je-sus): a)As viagens missionárias de Paulo b)O processo (centro). 1) As viagens de Paulo 13,1-19,20: Lc reconstitui as viagens de Paulo de forma artificial. Seu objetivo não é biografar Paulo, mas preparar seu processo.

“Oferecer em forma de narração os dados que permitem desmentir e reformar o processo de Paulo”.13

É mais um trabalho de advogado do que de historiador. Neste caso Lc relê o passado para preparar a justificativa do processo.

“A história das missões de Paulo é seletiva, reorganizada e in-tencionalmente orientada”.14

Pode-se percebê-lo: a) A cronologia: A cronologia de At não concorda com as

epístolas paulinas (Gl 1,5-2,14). Supõe-se que Gl merece mais fé por se tratar da mão de Paulo. Lc não se preocupa com exatidão cronológica.

Também, no que diz respeito ao Concílio de Jerusalém (At 15), existem dúvidas. Certamente este fato ocorreu de-pois de At 19,20 (viagem à Galácia). Mas Lc quer justificar a atitude de Paulo que foi aos pagãos à revelia dos Doze, por isto antecipa o Concílio. b) Doutrina do Concílio de Jerusalém: Se comparar At 15,1-35 com Gl 2,1-10, perceber-se-á algumas diferenças:

- Paulo só trata da circuncisão (Gl 2,6) e nada mais. Lc, além da circuncisão, impõe Lv 17-18 (cf. At 15,20.29).

Lc ajuntou duas coisas historicamente separadas, que Paulo certamente não aceitava. É um retrato de Paulo mais aceitável para os judeus. Talvez At 15,20.29 seja uma con-

13COMBLIN, José. Op.cit. p.10. 14COMBLIN, J. Op.cit. p.10.

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veniência para tornar possível a convivência entre judeus e pagãos. Lc vai além de Paulo.

c) O retrato lucano de Paulo: Lucas pintou um Paulo a-ceitável aos judeus que o detestavam. O Paulo de Lc, isto é, dos At, é bem mais judaico que o Paulo das epístolas. Em At ele é bem açucarado. Enquanto o Paulo real era quase vi-olento. O Paulo de Lc é bem fariseu, acredita na ressurrei-ção e com isto não fere os fariseus. Sempre se dirige por primeiro aos judeus e só depois aos tementes. Quase sempre as conversões são de prosélitos e de tementes, e raramente de pagãos. Quando Paulo vai aos gentios, ele o faz por obra do Espírito Santo (16,9). Além do mais, quando Paulo vai aos gentios ele simplesmente segue a Pedro e a Igreja de Jerusalém. Antecipando o Concílio, Lc inocenta Paulo: Ele só fez o que foi aprovado por Pedro e por Jerusalém. Isto dava ânimo aos judeus assustados com a fama de Paulo. Lc coloca Paulo na esteira de Pedro, mas não menciona o conflito entre os dois (cf. Gl 2,11-14). Para Lc este pro-blema já foi superado (At 10 e 15). Mas para não irritar os judeus, fez um aparte: 15,20.29. Alegrou a gregos e troia-nos. Lc também silencia o conflito entre Paulo e Barnabé (Gl 2,13). Diz que a causa do desentendimento entre os dois foi Marcos (At 15,39), isto seria um problema puramente organi-zacional e não doutrinal. O que parece pouco verossímil. Nos At tudo corre pacificamente a partir de Cornélio (At 10). Paulo só seguiu os Doze.

d) A seleção de episódios: É clara a intenção de Lc: mencionar um fato dos mais importantes (certamente havia muito mais): - Um discurso aos judeus (13,16ss) - Um discurso aos gregos (17,22ss) - Uma prisão (16,16-40). Certamente havia muito mais exemplos, mas Lc não os menciona. Faz parte do seu estilo literário selecionar epi-sódios. Em At Paulo faz os mesmo milagres que Pedro: - cura um aleijado 3,1-10 = 14,8-10 - Ressuscita defunto 9,36-42 = 20,7-12 - Castiga o mago 8,18-24 = 13,4-12 - Libertado da prisão 12,1-19 = 16,16-40 - Desce o Espírito Santo 8,14-17 = 19,6

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02 - O processo de Paulo O centro dos At é o processo de Paulo. Como nos evange-lhos, tudo se orienta para o processo final. Paulo, como Jesus, são executados pelos romanos, mas o interesse de Lc é outro: os culpados são as autoridades judaicas. Lc não condena Roma, mas os chefes judeus. O que conta não é a morte real sofrida em Roma, mas o processo levantado em Je-rusalém.

Na literatura da época ;e comum colocar um discurso de despedida para personagens importantes antes da morte: Só-crates, Jesus, Moisés, Tc. Lc coloca o discurso de despedi-da de Paulo (20,17-38) antes do processo em Israel e não em Roma diante da morte real. Neste discurso as autoridades de Israel são acusadas e responsabilizadas.

Jerusalém é responsável pela morte de Paulo. Roma ape-nas executa. O processo começa em Jerusalém. Os culpados são as autoridades judaicas. Elas mataram Jesus e também Paulo.

Os cristãos se preocupavam: se as autoridades judaicas condenaram Jesus e também Paulo, estes certamente deviam ser maus. Havia respeito para com as autoridades. Podem, Jesus e Paulo merecer crédito? Lc quer desmistificar o pro-cesso. Jesus e Paulo foram injustamente condenados pelos chefes judeus.

Lc mostra Paulo como um homem bem fiel à voz de Deus. Sempre obedeceu à Lei e aos profetas e também às tradições judaicas.

“Quando se afastou delas, foi por uma ordem direta de Deus que lhe veio por vozes celestiais”.15

Enquanto Lc mostra habilmente a inocência de Paulo, ele mostra claramente a malícia das autoridades judaicas. Até os romanos percebem isto. 03 - As comunidades lucanas Os At não dão pormenores sobre as igrejas paulinas, co-mo formação e estrutura. Falam muito de discursos, mila-gres, conflitos. Pouco sobre viagens e quase nada sobre as comunidades. O pouco que resta reflete as comunidades de Lc e não as de Paulo.

15COMBLIN. Op. Cit. p.9.

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As comunidades de At são: - mistas - comunidades de mesa (16,4). - convertidos são prosélitos ou tementes a Deus. - poucos ricos (13,12; 16,14; 17,4, etc. Se Lc cita es-tes ricos, certamente o faz para pessoas de igual posição. - buscam agradar às elites. O discurso de Atenas (17,22ss), bem diferente dos discursos de Paulo, agrada à elites sociais de Lc, ou da cultura grega. As elites gosta-vam de uma religião monoteísta, diferente das religiões vulgares gregas. O monoteísmo combinava mais com a filoso-fia da elite. Lc dá lugar especial a eles.

“Eram poucos mas chamavam a atenção.... As Igrejas lucanas já não são mais igrejas de pobres. Os pobres são certamente os mais nu-merosos, mas não configuram necessariamente o estilo das comuni-dades”.16

04 - Antioquia É a terceira cidade do Império Romano, superada apenas por Roma e Alexandria. É uma cidade avançada do helenismo (500 mil hab.). Havia elites gregas e legiões romanas, po-bres de origem síria, uma importante minoria judaica, que chegava até 10% da população.

Os judeus eram privilegiados, formavam uma πολιτευµα (gueto que gozava de reconhecimento e de personalidade ju-rídica e tinham o direito de seguir suas próprias leis e de preservar a sua identidade religiosa17. Possuíam várias si-nagogas e um conselho de presbíteros (anciãos). Estes judeus eram bastante abertos ao helenismo, o que fez muitos prosélitos. Esta realidade se tornou terreno fértil para o cristianismo. Formou a igreja de Antioquia, centro irradiador da fé. Em seu seio há dois pontos a des-tacar: a) Fundada por helenistas, portanto, agentes diferen-tes dos de Jerusalém. B) Nela nasceu a organização missionária (At 13). Em Antioquia, pela primeira vez se pode falar de comu-nidades cristãs mistas: judeus e gentios comem à mesma me-sa. Esta situação, da qual até Pedro participou (Gl 2,12),

16COMBLIN. Op. Cit. p.14. 17COMBLIN. Op. Cit. p.15).

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foi interrompida quando alguns enviados de Tiago vie-ram de Jerusalém. Então a mesa passou a ser separada. Pedro permitiu que as comunidades se separassem, mas Paulo reagiu violentamente (Gl 2,11-14). Provavelmente isto aconteceu depois do Concílio de Jerusalém (At 15), onde fora resolvi-do o problema da circuncisão, mas não o da mesa comum. Paulo interpretava o Concílio como tendo permitido esta liberdade (Gl 2,6) Tiago via a questão de forma diferente (At 15,13ss). Antioquia abriu as portas da igreja para os gentios, com direitos iguais. Por isto se criou um clima que permi-tisse a organização missionária. Jerusalém, pelo fato de ser uma igreja fechada sobre si mesma, esperava que os po-vos viessem a ela (Am 9,11-12; At 15,16ss). Os cristãos de Jerusalém não procuravam os povos, os povos é que deviam procurara a igreja. Nesta perspectiva eclesiocêntrica não se fazem projetos missionários. Em Antioquia a mentalidade é diferente (13,2). Ela ia ao povo, nascendo assim os projetos missionários, até aqui desconhecidos. Antes só havia missões isoladas. Agora se atravessam as fronteiras, e Paulo se tornará seu principal mentor. De lá o cristianismo se expande rapidamente. Paulo é fruto de Antioquia, mas é também mentor. Paulo mantém fortes laços com esta igreja e dela recebe apoio. A partir do envio organizado (13,1-5) inicia uma nova fase da missão. Sempre Paulo, seu principal agente, se di-rige antes aos judeus e depois aos gentios. Neste primeiro envio, o caráter da missão ainda é judaico, dirige o dis-curso aos judeus (13,16ss). Porém, já acontece a entrada de pagãos. Já se menciona a passagem aos pagãos (13,46-47). Também, nesta etapa, se começa a organizar comunidades (14,22). Mas, todas estas novidades causaram conflitos, provo-cando assim, o Concílio de Jerusalém (15) para harmonizar as diferenças entre as duas igrejas. Também aqui se percebe a comunidade de Jerusalém como referência. 2.1 - O envio 13,1-3 Os v.1-3 refletem novo modelo de igreja, diferente da dos Doze, bem com da dos Sete. Agora são os Cinco. Ali e-xistem doutores e profetas. Isto representa um caráter ca-rismático que aos poucos desaparece, dando lugar à estrutu-ra institucionalizada. A estrutura dos cinco parece não ter

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propriamente um líder, ou seja, os cinco são líderes animados pelo Espírito. Os cinco formam um colégio. Não são ainda itinerantes. - Profetas exortam e fortalecem - Doutores ensinam

Agora a missão começa organizada, antes era acidental e individual. 2.2 - Missão em Chipre - 13,4-12 Novamente aqui, o Espírito Santo está na origem. O re-lato apresenta três paralelos: - Cornélio (10) = Sérgio Paulo - Simão, o mago (8,18ss) = Elimas - Ananias e Safira (5,1-11) = Elimas Bar-Jesus (Elimas) tira proveito da religião (falso profeta). Vê em Paulo e Barnabé seus concorrentes. Lc des-preza a religião popular como interesseira que só visa lu-cro. Bar-Jesus (filho de Jesus) é falso. Por isto Paulo lhe dá um nome novo: filho do diabo. A função do mago é ilumi-nar, mas ele mesmo é cego. Os ministros de Jesus são mais fortes. A Palavra marcha para a vitória. Para Lc, descrever a conversão do procônsul era o máxi-mo. Ele era apegado à filosofia grega e desprezava as reli-giões vulgares. Por isto era preciso realçar a conversão de pessoas importantes para mostrar que o cristianismo não era vulgar. No v.5 aparece uma forma que se repete até o fim: Paulo se dirige antes aos judeus e só depois aos pagãos. No v. 9 Lc muda Saulo para Paulo, isto é a romanização. Saulo sai do judaísmo e vai aos pagãos. Neste texto mostra-se a benevolência do funcionário ro-mano. Este fato se repete muitas vezes até o fim do livro. Lc quer se mostrar amigo aos romanos para conquistá-los. 2.3 - Missão em Antioquia da Pisídia 13,13-52 Em Antioquia da Pisídia, pela primeira vez Paulo se di-rige diretamente aos gentios (v.46-48). Tem-se a impressão de que Paulo só se dirige aos pagãos por causa da má vonta-de dos judeus (v.46), mas logo cita a frase de Is 49,6 que mostra a universalidade da missão. Isto reflete o estilo de Lc que sempre faz Paulo se dirigir primeiro aos judeus. O próprio trecho traz o discurso aos judeus (13,16ss). Mesmo

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que os judeus aceitassem Paulo, ele haveria de levar o Evangelho aos gentios. Paulo fala e é bem aceito 13,42. Depois é perseguido 13,45. Isto lembra Lc 4,16-30. O discurso aos judeus (13,16ss) reflete os tempos de Lc. Quer ser apologia para os judeu-cristãos.

“Os seus chefes não reconheceram a esse Jesus”(v.27).

O discurso de Paulo é igual aos de Pedro. Na verdade, todos são lucanos. Fundamentalmente anunciam a Paixão, Mor-te E Ressurreição e fazem apelo à conversão. O discurso aos judeus é um Midrash de 2Sm 7,6-16. 2.4 - A missão de Icônio 14,1-7 Neste texto, e somente aqui, Lc chama Paulo e Barnabé de apóstolos (14,4.14).Supõe-se ser este texto um resquício de uma antigo texto que Lc copiou sem mudar. O texto não é claro. Se ficaram longo tempo em Icônio (v.3), o que lá fizeram? 2.5 - Missão em Listra 14,8-20 Parece que este relato costura três tradições: a) A cura de um paralítico e a oferenda pagã (v.8-14). b) Discurso aos pagãos - fruto do redator. (V.15-18). c) A cura milagrosa de Paulo (v.19-20). O milagre do paralítico é igual a 3,1-10 feito por Pe-dro. O culto dá primazia a Barnabé (Zeus - pai dos deuses). A reação dos pagãos diante da cura causa estranheza, pois havia muitos milagreiros nesta época. Os judeus apedrejam Paulo, mas seria mais lógico que os pagãos o fizessem já que os apóstolos não aceitaram suas oferendas. O discurso (v.15-17) reflete o pensamento de Lc e da elite intelectual de desprezava o politeísmo popular. A mensagem é de monoteísmo rigoroso. 2.6 - Retorno dos Missionários 14,21-28

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Lc, com mão hábil, acrescenta os v.22-23, que são uma exortação e organização. Na volta os missionários confirmaram as comunidades e estabeleceram presbíteros. Talvez a primeira organização local: a) Confirmar: assegurar a perseverança, isto é, evitar que as perseguições esfriem. Animar na fé. b) Designar presbíteros’(anciãos): estrutura para con-solidar as diversas igrejas. Os presbíteros colegialmente exercem a autoridade. É uma cópia das sinagogas. Lá também havia semelhante conselho. Nos escritos paulinos não aparece o termo ���������� “Ancião”. No seu tempo ainda não havia esta estrutura. Pa-rece que o conselho de presbíteros começou em Jerusalém. Já no tempo das epístolas pastorais aparece generalizado este conceito. Os At parecem ser do mesmo tempo das pastorais, também falam de presbíteros. Eles são representantes de uma igreja em vias de institucionalização. A pregação dos helenistas parece não ter estrutura, is-to é, deixava seus convertidos à mercê do individualismo. Com Paulo e Barnabé inicia-se novo modelo de igreja, a i-greja solidamente constituída, que se ocupa de organização interna e com a continuidade. Para isto constituem presbí-teros nas comunidades. A direção das igrejas lucanas é co-legial. Esta estrutura prevaleceu até o século II, quando foi substituída pelo episcopado monárquico. 2.7 - A conferência de Jerusalém 15.1-35 Melhor do que o termo Concílio fica o termo Conferên-cia, pois não se trata da reunião de muitas igrejas, mas somente de duas, a de Antioquia e a de Jerusalém. Lc coloca esta narração no centro do livro para lhe dar destaque e importância. A conferência estabelece a unidade entre a igreja Antioquia e a de Jerusalém. A conferência dá legitimidade e continuidade a Paulo. Ele continua a histó-ria de Israel, de Jesus e dos Doze. Paulo não fundou nova religião. O capítulo 15 é todo de Lc. Ele descreve admiravelmen-te, porém, 30 ou 40 anos depois. O discurso de Pedro refle-te a prática das comunidades lucanas, mas faz concessão aos judeu-cristãos (15,19.29). O texto apresenta problemas:

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a) Problemas históricos: há divergências histó-ricas entre At 15 e Gl 1,16-2,14. Porém há mais convergên-cias do que divergência. Estas últimas são relativas. B) Problemas de conteúdo: Gl 2,10 diz que os apóstolos pediram que Paulo se lembrasse dos pobres. At 15 não fala disso. O decreto apostólico (At 15,20.29) faz exigências, mas Paulo (Gl 2,6) diz explicitamente que os notáveis nada acrescentaram. Lc escreveu tarde, introduziu 15,20.29 que ele colheu alhures. Não fazia parte do original. Certamente acréscimo da ala judaizante que não podia assimilar a conferência na prática. O decreto apostólico (15,20.29) não tinha razão de ser no tempo da conferência. Este problema da mesa comum não existia em Jerusalém. O problema era a circuncisão. Je-rusalém podia admitir à distância que não mais se circunci-dasse, mas com o passar do tempo, quando em sua própria co-munidade surgiam incircuncisos, aí a questão da mesa se a-cendeu. Nasceu então o decreto apostólico, que foi acres-centado à conferência. Lc o recebeu assim. Talvez o choque de Antioquia (Gl 2,11-14) explique al-go. O decreto apostólico era coisa recente. A igreja de Je-rusalém o inseriu em At 15, tendo à frente Tiago. Estando Pedro em Antioquia, manda Tiago seus emissários para rece-ber o apoio de Pedro. Pedro, diante da pressão aceitou tal decreto. Paulo não aceitou o mesmo. Provavelmente Paulo é derrotado, e, para amainar o problema, o decreto entrou na igreja de Antioquia. Com esta tese também se poderia explicar a questão com Barnabé (At 15,39-40). Valeria a pena brigar por Marcos? Parece que o problema é outro (Gl 2,13). Barnabé aceita o decreto apostólico que Paulo rejeitou. Isto provocou a se-paração dos dois. Barnabé desaparece do cenário, pois um judaizante não faz sucesso missionário. Nos tempos de Lc este problema devia estar superado (At 10), por isto Lc nem se refere à briga apostólica. Aliás, Lc não quer apresentar um Pedro inconveniente às suas comu-nidades. III - A GRANDE MISSÃO - Terceira parte 15,36-19,20

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É a grande missão de fundação das igrejas paulinas, já sem Barnabé, que parece ter-se fechado na mentalidade juda-izante. O centro deste bloco é o discurso no Areópago (17,22ss). Que é uma síntese da missão de Paulo conforme a compreensão lucana. O discurso dirige-se ao grego culto, monoteísta, prosélito, próprio de Lc. Parece que Lc salien-ta os intelectuais. Os pobres não são mencionados. A grande missão é conseqüência da conferência de Jeru-salém, que deu plena liberdade a Paulo de ir aos povos. Ou talvez Lc colocasse o cap. 15 para legitimar a prática de Paulo. Talvez a conferência só tivesse lugar após a missão de Paulo (18,22-23). O que Paulo foi fazer em Jerusalém? Os projetos de Paulo envolvem o mundo conhecido de en-tão, a partir da Antioquia. Dá-se passagem da Ásia para a Macedônia (Europa) em 16,9ss novamente impelido por uma vi-são. 1 - Paulo independente 15,36-41 Desta vez Paulo não é um enviado de Antioquia com em 13,1ss. Paulo é confirmado pela conferência de Jerusalém. Paulo e Barnabé se desentendem. Lc dá um motivo banal (Mar-cos). Na realidade o problema deve ser outro. Gl 2,10-14 dá outra versão. Barnabé aceitou o fechamento dos emissários de Tiago. Ele não admitia a comunhão de mesa entre judeus e não judeus. Isto deve ter causado profundo desgosto a Pau-lo. Derrotado, ele parte com outros amigos, não aceitando as restrições de Tiago. Paulo vê em Marcos um fiscal de An-tioquia que iria vigiar seu trabalho missionário. Paulo a-cha que Marcos não interpreta bem a conferência de Jerusa-lém. Barnabé quis a companhia de Marcos, pois pensava dife-rente. Não se fala mais deles. Certamente se fecharam na postura judaizante e fracassaram. Paulo e Barnabé já não têm a mesma visão. Agora Paulo não é mais delegado de Anti-oquia como na primeira viagem (13,4). Inicia sua própria missão. A igreja de Antioquia, que provavelmente acolheu o de-creto apostólico (15,20.29), produziu mais tarde o evange-lho de Mateus. As comunidades paulinas desenvolvem uma teo-logia bem diferente. O projeto de Paulo (v.36) era voltar para onde já havia passado, mas o Espírito Santo os levou mais longe (16,6-11).

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2 - Rumo à Macedônia 16,1-10 Lc narra de maneira breve a viagem pela Ásia. Seu obje-tivo é a Macedônia (Europa). O Paulo de Lc não quer ir para lá, mas Deus o conduz a estas terras, numa visão, proibin-do-o de pregar a Palavra na Ásia. Em Trôade a visão muda o caminho rumo à Grécia. Certamente os hebreus não gostaram do fato de Paulo ter ido à Grécia (terra da idolatria), por isto Lc diz que Paulo foi para lá movido pelo Espírito San-to. Não foi iniciativa pessoal (16,6-11), mas imposição de Deus. Em 16,10 inicia uma seção, onde se usa o pronome “Nós”. Muitos biblistas pensam tratar-se da presença de Lc na via-gem. Hoje, no entanto, muitos pensam diferente, pois os blocos onde se usa Nós são bem impessoais e de pouca rele-vância. Antes parece que Lc tenha usado notas de um compa-nheiro de Paulo. O v.4 parece contraditório com as Epístolas, que não conhecem o decreto apostólico (15,20.29). Certamente é tra-balho de Lc que oculta tal conflito. 3 - Filipos 16,11-40 Filipos é a primeira cidade européia a evangelizada. Os frutos são poucos e o chicote se faz sentir. Os convertidos são apenas Lídia e o carcereiro. De 11-17 se usa Nós, mas depois se volta a falar deles. Parece que o anotador não foi junto para a prisão. Estão, neste relato, diversas camadas: a) v.11-15 notas de um diário de viagens feitas por um companheiro de Paulo e usadas por Lc. b) v.16-24 um exorcismo. c) v.25-34 libertação da prisão. O relato do exorcismo reflete o profundo desprezo que Lc tinha para com a religião popular. Esta parecia magia, adivinhação, posse do demônio. Ela existe em função do lu-cro. Lc, um grego intelectual, como muitos intelectuais desprezam o politeísmo e as religiões populares gregas. O evangelho suplanta tal aberração. O fato da libertação é um paralelo do texto de At 12, onde Pedro é liberto milagrosamente. Lc, que teve de admitir o papel odioso das autoridades romanas, tenta abrandar a situação. Elas não sabiam que Paulo era cidadão romano. Elas libertam os missionários. Na

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verdade parece duvidoso que Paulo só mencionasse sua condição de cidadão romano no fim, quando já havia sido castigado (16,37ss). Lídia parece ter sido a primeira líder da igreja na Eu-ropa. 4 - Tessalônica 17,1-9 Em Tessalônica se funda a segunda igreja européia. Os judeus provocam confusão. Neste relato aparece a forma cos-tumeira de Lc narrar a missão de Paulo, ou seja, alguns ju-deus e grande parte de gregos prosélitos se converteram. Novamente Paulo, primeiro se dirige aos judeus. Há também conversão de pessoas de alta sociedade (mulheres). Lc cita especialmente estas pessoas, pois a maioria não era destas condições. Citar senhoras de alta sociedade exasperava os judeus. Elas representavam proteção junto às autoridades e também apoio financeiro. Este apoio era subtraído às sina-gogas e passava aos cristãos. Tal citação é estratégica. 5 - Beréia 17,10-15 O relato é paralelo ao de Tessalônica. Paulo é expulso novamente e a culpa é dos judeus. Paulo, como sempre, vai à sinagoga (1º aos judeus). Novamente se destaca o papel de homens e mulheres de alta sociedade. No v.14 há uma discrepância com 1Ts 3,2-6. At 17,14 diz que Paulo viajou sozinho. 1Ts 3,2-6 diz que Timóteo foi com Paulo para Atenas. Lc pode não ter conhecido a verdade. 6 - Atenas 17,16-34 Agora Paulo está no centro histórico da cultura grega, lugar ideal para anunciar o evangelho. Lc coloca três grandes discursos na missão de Paulo: a) Discurso de Antioquia da Pisídia - 13,16ss, prepara-do por 9,20-22; b) Discurso de Atenas - 17,16ss, preparado por 14,15-17. c) Discurso aos presbíteros - 20,17ss, preparado por 14,22-23. No processo de Paulo (próxima unidade - cap. 19,21-28,31) também existem três grandes discursos: a) Diante do povo de Jerusalém - 22,1-21; b) Diante de Félix - 24,10,21; c) Diante de Agripa 26,2,23.

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O mesmo se constata no trabalho de Pedro: a) Discurso de Pentecostes - 2,14ss; b) Discurso no templo - 3,12ss; c) Discurso em Cesaréia - 10,34ss. Dos nove grandes discursos, o de Atenas está no meio. Isto revela sua importância. Atenas era a capital da cultura e da filosofia. O dis-curso no Areópago é marcado pela filosofia grega e tem como destinatários os filósofos, i.é, a elite cultural das comu-nidades lucanas. Poder-se-ia definir seus interlocutores como prosélitos que fazem síntese entre a filosofia grega e o monoteísmo bíblico. O discurso é um resumo de pregação aos pagãos, que não passa pelo AT. Isto é, os gregos não precisam primeiro pas-sar por toda Bíblia. Chegam a Deus por Jesus, que por ele foi ressuscitado. Há certa semelhança com 1Ts 1,9-10. Tanto 1Ts 1,9-10 como em At 17,16ss têm dois passos: a) Apelo a renunciar aos ídolos; b) Juízo do qual Jesus é juiz. A ressurreição é em vista de ser juiz, pois não podia demonstrar tal ressurreição a partir dos profetas, que os pagãos não conheciam. O discurso de Atenas não é para judeus, mas para pa-gãos. Porém, também em Atenas, Paulo se dirige antes aos judeus (17,17). Salvo o que foi dito acima sobre a semelhança com 1Ts 1,9s, o discurso de Atenas apresenta profundas diferenças em relação aos discursos paulinos das cartas. Abaixo serão listados conceitos nunca usados por Paulo: a) Deus desconhecido; b) Transcendência de Deus (Plutarco, Sêneca); c) “Viver, mover e ser” (Platão); d) Citação do poeta Aratos; e) Uso abstrato de 1g\@< “Divindade”. Os discurso de Atenas, como os demais, não é paulino, mas sim, lucano. Lc tinha certo conhecimento filosófico, mas convém lembrar que o discurso não é meramente filosófi-co. Lc não usa argumentos racionais, não apela à razão na-tural. Apresenta o Deus da Bíblia, da criação, bem diferen-te dos deuses racionais filosóficos. Lc apela à fé e não à

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razão. Os elementos filosóficos presentes não são ba-se racional. São meros elementos culturais. São um ponto de partida para a caminhada dos filósofos pagãos. Lc parte de elementos tirados da filosofia para orientar os gregos para o Deus verdadeiro. É fazer com que os gregos cheguem a Deus pela sua própria maneira de pensar. Lc parte da idéia de Deus da filosofia, mas conduz ao Deus da Bíblia. Lc procura tornar a mensagem cristã compreensível para os gregos. Por isto parte de referências do universo mental deles. Lc critica o politeísmo bem como o faziam os filósofos, porém o faz com critérios bíblicos, mas em todo relato não faz uma referência a Israel. O discurso tem estrutura con-cêntrica (quiasmo): A - Deus desconhecido - v.23 B - Deus transcendente - v.24-25a C - Deus criador - v.25b-26 D - Deus próximo - v.26b E - Deus se manifesta na criação - v.27a D’- Deus próximo - v.27b C’- Deus criador - v.28-29a B’- Deus transcendente - v.29b A’- Deus outrora desconhecido - v.30 O papel de Paulo na praça pública lembra o velho Sócra-tes. Ele ia à praça suscitar questões. 7 - Corinto 18,1-17 Tanto Lc como Paulo fornecem bastante material sobre a igreja de Corinto. Lc fala de quatro episódios: a) a colaboração com Áquila e Priscila - 18,2ss; b) a ruptura com a sinagoga - 18,6ss; c) a visão de Jesus - 18,9ss; d) os judeus diante de Galião - 18,12ss. Pensam os estudiosos que se trata de quatro tradições diferentes costuradas por Lc. A ruptura com a sinagoga é comum em Lc. A visão de Je-sus diante da evangelização dos pagãos é outro fato consta-tado no estilo de Lc. Esta visão mostra a importância da missão em Corinto. Também inocenta Paulo diante dos judeu-cristãos: evangelizar os pagãos é ordem do próprio Jesus. Lc, em At, dá pouca ênfase à questão do trabalho. Aqui, no entanto, ele narra que Paulo foi trabalhar com Áquila e Priscila na fabricação de tendas. Se Lc menciona tal coisa, isto deve provir da história real de Paulo, já que Paulo

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também se refere a isto e, além do mais, Lc como gre-go, não valorizar o trabalho. Lc mais uma vez destaca pessoas importantes: Crispo, Tício e Justo. É a maneira lucana de valorizar a igreja, que aceita pessoas destacadas e se distingue das religiões gregas populares. 8 - Entre Corinto e Éfeso - 18,18-28 Os v.18-28 preenchem um período de transição entre a evangelização de Corinto e Éfeso, duas metrópolis e princi-pais igrejas paulinas. Aqui Lc usou duas tradições: as viagens de Paulo e a missão de Apólo. J. Comblin não divide em 18,23a e 18,23b a 2º e 3º viagem missionária de Paulo como o fazem muitos bi-blistas. Pensa que estes versículos só preenchem um vazio entre Corinto e Éfeso. É estranho o itinerário de Paulo ao sair de Corinto. Ele permaneceu pouco tempo (18-19). Vai a Cesaréia, Jerusa-lém, Antioquia e volta a Éfeso, via terra. Teria Paulo ido a Jerusalém só para saudar a igreja (v.22)? É muito estra-nho, levando-se em conta a distância e o tempo. Provavelmente é aqui que Paulo vai a Jerusalém para a conferência (At 15). Lc teria supostamente deslocado a con-ferência por questões de legitimação. Mas aí teria proble-mas. Em At 15 se diz que houve problemas em Antioquia. En-tão a viagem de At 15 e a de 18,22 seriam uma só. Lc, que não quer fazer história, mas legitimação pastoral, não que-ria que Paulo tomasse tão grande decisão sozinho (evangeli-zar pagãos). Então teria antecipado a conferência para le-gitimar tal passo. Para Lc Pedro já fez o mesmo (10 e 15). O caso de Apolo entra nos atos de Paulo. Ele deve ter tido certa influência, mas parece que Paulo não gostava muito dele (1Cor). Lc coloca Apolo em certa dependência de Paulo. 9 - Éfeso - 19,1-20 Paulo passou longo período em Éfeso (2 anos). Parece que esteve preso (2Cor 1,8; Fl). Lc nada diz sobre isto, talvez por questões literárias. Não gosta de repetir fatos.

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Os v.1-7 mostram alguns remanescentes batistas (seguidores de João Batista). Lc, ao falar de Éfeso, combate os desvios religiosos que ameaçavam os cristãos: a) Os batistas (1-7): seguidores de João Batista. b) Os judeus (8-10): rompe com eles. c) Combate os falsos milagreiros (11-17). d) Combate a magia (18-20): religião do lucro. Os milagres de Paulo têm paralelo em Pedro (5,15). As-sim como a força de Deus estava com Pedro, ela também es-tava com Paulo. O mesmo ocorre com Jesus (Mc 5,27-29). IV - O PROCESSO DE PAULO - 19,21-28,31 Em 19,21 Paulo decide ir para Jerusalém e em 21,25 ele chega lá. Este período entre 19,21-21,15 é a transição. Es-ta etapa pode ser vista como conclusão da grande viagem de Paulo, ou também como introdução ao Processo de Paulo. Paulo, guiado pelo Espírito Santo (19,21), prenuncia sua ida para Jerusalém e posteriormente a Roma. A viagem que começa agora não é missionária, mas vai ao encontro do processo.

“Como Jesus, Paulo sobe a Jerusalém para ser preso, acusado, con-denado pelos chefes de seu povo”.18

Em 21,15 começa a paixão de Paulo. O processo é uma có-pia do processo de Jesus.

“Paulo como Jesus foi entregue aos pagãos para ser matado. Vai de um tribunal para o outro”.19

Pode-se ver a morte de Paulo ainda em Israel. Sua ida a Roma (naufrágio) parece uma ressurreição. Paulo em Roma é como um ressuscitado. O que devia ser morte, torna-se vitó-ria. Roma é o triunfo da missão de Paulo. De agora em dian-te, nem parece um condenado, pois exerce livremente sua missão junto a judeus e a pagãos. É uma ressurreição incom-pleta: livre-preso, mas sua missão triunfa.

18COMBLIN, J. Op. Cit. p.99. 19 COMBLIN, op. Cit. p.99.

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“Lucas sabe que Paulo morre mártir em Roma, mas prefere terminar a sua obra numa visão de ressurreição como terminou o seu evangelho”.20

Lc mostra a paixão de Paulo em Jerusalém em não em Ro-ma. Igual a Jesus. O inimigo da missão de Paulo foi o juda-ísmo e não Roma, que conscientemente protegeu a missão.

O último bloco se divide em três partes:

a) Subida para Jerusalém - 19,21-21,14; b) Processo - paixão em Jerusalém/ - 21,15-26,32 c) Chegada a Roma - quase ressurreição - 27,1-28,31. 1 - Viagem a Jerusalém - 19,21-21,14 1.1 - O plano de viagem 19,21-22 Paulo vai a Jerusalém, não sabe para que, é desígnio de Deus. Na realidade esta viagem coincide com a entrega da coleta, que Lc quase não menciona (11,27ss, cf. 1Cor 16,1ss). Por que Paulo iria de Éfeso a Jerusalém, passando pela Macedônia e Acáia? É fora de Rota. Isto prova a ques-tão da coleta (1Cor 16). Mas Lc vê nisto os desígnios de Deus. Assim como Jesus, Paulo sobe a Jerusalém. 1.2 - Últimos acontecimentos em Éfeso 19,23-41 Lc usa uma fineza impressionante quando critica a reli-gião popular e politeísta: tudo gira em torno do lucro. Em 2Cor 1,8 Paulo fala do perigo de vida por que pas-sou. Isto pode coincidir com a questão dos ourives, mas não há certeza. Lc apenas mostra o choque do cristianismo com o politeísmo. O episódio lembra bem o mundo grego com suas assembléias. 1.3 - Viagem de despedida 20,1-16 Esta viagem pela Macedônia e Acáia tem por finalidade fazer coleta (1Cor 16). Lc não o menciona. Aqui surge nova-mente o pronome Nós. Talvez sejam fragmentos de um diário de viagens, escrito por um membro da coleta. A ressurreição e Êutico é um paralelo de 9,40ss. Paulo continua a missão de Pedro e de Jesus.

20COMBLIN. Op.cit. p.99.

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1.4 - Discurso de despedida 20,17-38 Este é o único discurso em At dirigido aos cristãos. Não tem semelhança com os anteriores, não é de evangeliza-ção, mas é um discurso de despedida como o fizeram tantos personagens históricos, antes de morrer: Moisés (Dt 29-31), Jacó (Gn 49,1-33), Josué (Js 23,1-24,30), Samuel (1Sm 12,1-25), Tobias (Tb 14,3-11), Jesus (Lc 22,14-38; Jo 13-17).

Em todos estes discursos há algo em comum: o herói que pronuncia o discurso está no fim da vida. Está preocupado com a continuidade de sua obra. Defende sua obra, transmite orientações para assegurar a continuidade da obra.

Assim também é o discurso de 20,17-38. Ele exprime a intenção do livro dos At.

“O discurso de Mileto é como um resumo da mensagem do livro dos Atos dos apóstolos”.21

Aqui termina, propriamente, a missão de Paulo. É a transição para a paixão.

“O discurso tem o valor do discurso de despedida de Jesus: con-clusão da missão e significado da paixão assim como afirmação da continuidade entre o fundador e os seus continuadores”.22

Lc que viveu em comunidades paulinas, quer justificar sua herança paulina. Lc diz que o próprio Paulo encarrega os presbíteros de continuarem sua missão. Nos escritos de Paulo isto não acontece, salvo, talvez e Fl 1,1ss.

Nos tempos de Lc surgem muitos falsos missionários. Lc, pela boca de Paulo, os chama de lobos vorazes. Eles põem a herança paulina em perigo.

Nas comunidades lucanas aparece a preocupação pela fi-delidade ao passado. Por isto às vezes se esquece o amor fraterno. Mais uma vez Lc fala pela boca de Paulo e reco-menda o zelo pelos pobres (v.35). Deve ser uma preocupação com a ortodoxia que se faz necessária num momento conflitu-ado, mas que não deve ofuscar a ortopraxia.

O presente discurso não é dirigido ao povo, mas aos presbíteros, isto é, aos líderes. Eles devem zelar pela fi-delidade. Nem nas cartas é assim. É um eco da clericaliza-ção que já se faz sentir nos tempos de Lc.

21COMBLIN, op. Cit. p.109. 22COMBLIN, op. Cit. p.109.

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“O papel dos presbíteros consistirá justamente na missão de transmitir a herança paulina e de defendê-la contra os perigos de corrupção”.23

Diante dos presbíteros o discurso fala do trabalho de Paulo e do auxílio aos pobres. Provavelmente para eles es-tas atitudes já eram estranhas. Começa o pecado da hierar-quização.

O v.22 mostra Paulo, que vai a Jerusalém para o perigo. Isto tem algumas explicações: a) imita a subida de Jesus a Jerusalém (Lc 18,31ss). b) acusa os judeus. Nos tempos de Lc os judeus de Jâm-nia perseguem os cristãos. c) inocenta o Império Romano para conquistar adeptos. 1.5 - Fim da viagem 21,1-14 Paulo vai resolutamente para Jerusalém, onde a morte o espera. Muitos querem persuadi-lo a não ir, mas ele vai firme. Este relato tem seu paralelos na literatura grega: os heróis vão decididamente para a morte. Mas também lembra Jesus que anuncia sua cruz em Jerusalém (Mc 8,31ss; 9,32ss; 10,32ss). Pedro quer dissuadi-lo deste empreendimento, mas ele vai assim mesmo. Os muitos esforços para convencê-lo a não ir servem para salientar a grandeza de Paulo, que a e-xemplo de Jesus vai ao martírio. Felipe (v.8-9) representa outro modelo de igreja (pro-fecia). Neste modelo também as mulheres tinham participa-ção. No modelo de Lc, os presbíteros açambarcaram este pa-pel. Seguiram a tradição judaica e eliminaram as mulheres. 2 - Chegada em Jerusalém 21,15-26,32 2.1 - Encontro com a igreja de Jerusalém 21,15-26 Esta subida para Jerusalém deve ser para levar a coleta (Rm 15,25-28; 1Cor 16,1-4; Gl 2,10; 2Cor 8-9). Por que Lc não citou tal fato? Ele o faz mais tarde (24,17s). Alguns biblistas pensam que Jerusalém não aceitou a co-leta (cf. Rm 15,31), tendo com isto recusado todo trabalho missionário de Paulo.

“Lc não podia concluir os atos de Paulo mencionando este fracas-so”.24

23COMBLIN, op. Cit. p.111.

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Por isto Lc não teria se referido à coleta. Lc não podia narrar que a vida de Paulo terminou num fracasso diante de Jerusalém e que as igrejas das nações não foram acolhidas na comunhão com a igreja-mãe de Jerusalém. Lc justamente queria provar a continuidade de Paulo com a i-greja-mãe de Jerusalém. Lc tinha medo que os judeus de suas comunidades se escandalizariam se soubessem a verdade, por isto calou.

Talvez a rejeição se desse nos conturbados anos de Ne-ro, quando os judeus se revoltaram, provocando a guerra ju-daica (anos 66-70). Neste período, os fariseus caem numa histeria de pureza para restabelecer o reino. Todo contato com os pagãos era visto com traição. Neste momento nenhum cristão se sentia à vontade recebendo dinheiro dos pagãos.

Certamente, com a rejeição do dinheiro, por parte de Jerusalém, Paulo tenha insistido. Nasceu então a idéia de Paulo patrocinar as despesas de quatro judeus pobres que não podiam pagar suas promessas. Assim agradaria aos judeu-cristãos e estes aceitariam a coleta. Paulo aceitou tal proposta para não ver um fracasso total. Mas Paulo se deu mal e foi preso. 2.2 - A prisão 21,27-40 Seria difícil aceitar que nestas condições Paulo conse-guisse criar clima para um discurso. Nem mesmo é possível que um oficial romano conceda a um condenado o direito de discursar. Além do mais, o discurso não alude ao tumulto, mas aos leitores de At. Lc mostra a bondade dos romanos, que defendem Paulo. Os maus acusadores são os judeus, os romanos querem justiça. No v. 38 se mostra que Paulo não é sicário, pois tal fama facilmente podia cair sobre os cristãos. 2.3 - Discurso ao povo de Jerusalém 22,1-30 Esta texto narra pela segunda vez a conversão de Paulo. Apresenta algumas diferenças. Para Lc não importam os deta-lhes.

24COMBLIN, op. Cit. p.122.

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Os v.17-21 trazem problemas: a conversão teria acontecido em Jerusalém, no templo, ao passo que em At 9,3 sua conversão se deu na estrada de Damasco. Seria outra tradição sobre a conversão de Paulo. Nesta visão que Paulo tem no templo (v.18) ele recebe a incumbência de ir aos pagãos (v.21). É Deus quem manda Pau-lo aos pagãos. Outro problema é o fato de Paulo só no fim mencionar sua condição de cidadão romano. É bem possível que Paulo tivesse tal cidadania. Porém, nas epístolas ele não fala disto. Parece que a intenção de Lc é mais mostrar a benevo-lência dos romanos. O discurso é uma apologia de toda a vida de Paulo e não só contra as acusações a ele feitas. Lc quer mostrar que a evangelização ultrapassa o templo (v.21). Lá não há acolhimento. Os judeus interrompem o dis-curso (v.22), mas Paulo já estava pronto. Isto indica que ninguém consegue interromper a marcha da Palavra. Caberia um discurso num momento como este? Certamente não. Isto é apenas um artifício literário. 2.4 - Perante o conselho 23,1-11 Este trecho é difícil. Deve ser construído por Lc. Mos-tra a desintegração do Conselho de Jerusalém por não acei-tar Jesus. Dificuldades: a) Oficial romano não pode convocar o sinédrio (22,30). b) Oficial não podia assistir ao sinédrio. c) Oficial não entenderia o aramaico. d) Paulo não conseguiria dividir o conselho (23,7). e) O conselho nem discute a acusação feita contra Pau-lo. O texto vem de fragmentos: a) Os v.7-9 podem ser conclusão de 22,1-21; b) A briga com o sumo sacerdote (23,2-5) pode ser uma tradição que mostra como Paulo confronta a Lei; c) 23,1.6.10-11 são construção de Lc. Diante do testemunho de Paulo sobre a ressurreição de Jesus, as autoridades de Israel não têm argumentação séria. Paulo, como outrora os Doze (5,17-42), venceu o conselho pelo testemunho na ressurreição.

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Mais uma vez o Espírito (Senhor) aparece a Paulo (23,11) para mandá-lo ao mundo: Roma. 2.5 - Cesaréia 23,12-35 Este texto também apresenta dificuldades: a) Não havia testemunhas oculares; b) Número excessivo de guardas (470 homens - 23,23ss) para conduzir um réu sem maior importância. A carta de Lísisas reflete Lc e não Lísisa. Lc quer preservar o Império Romano. A questão é entre cristãos e judeus. O Império Romano não deve ceder às chantagens ju-daicas. A conjuração dos quarenta (23,12ss) pode ser verda-de. Havia sicários que julgavam que o conselho era muito brando. Julgando Paulo um traidor, amigo dos romanos, que-riam matá-lo, como era praxe entre os sicários. Mais tarde mataram o sumo sacerdote Ananias. O juramento feito pelos conjurados era comum, ou seja, existem formas semelhantes na literatura da época: “Que eu morra, se não matar...”. Lc mostra a podridão do conselho judaico e ao mesmo tempo a lisura da justiça romana, que se sobrepõe. Isto é mera descrição de Lc. A carta de Lísias (v.25-30) segue os costumes helenistas. Falta-lhe a saudação final. O texto é de Lc, pois nenhum cristão tinha acesso aos arquivos mili-tares para ler seu teor. 2.6 - Diante do governador Félix 24,1-27 Aqui estão em confronto Roma, o judaísmo e o cristia-nismo. a) Roma reconhece não haver motivo contra os cristãos; b) Os cristãos não são perturbadores; c) Judeus são a causa da briga. Induzem o poder romano a maltratar os cristãos. É clara a intenção de Lc: os judeus são os culpados. Apesar da mão de Lc, deve haver elementos históricos, como, a acusação do sumo sacerdote, a defesa de Paulo e o apego de Félix ao dinheiro. Mas a redação é bem lucana. Na acusa-ção a Paulo (v.5) há semelhança com a acusação feita a Je-sus (Lc 23,2). 2.7 - Paulo e Festo 25,1-17 Já Lísias e Félix declararam Paulo inocente. Mais uma vez Lc coloca na boca da autoridade romana (Festo) a ino-cência de Paulo (v.18-19). Para Lc o poder romano reconhece a inocência de Paulo.

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O apelo de Paulo ao Imperador é duvidoso. Teria, um ho-mem como Paulo, por motivos pouco convincentes, condições de pedir julgamento em Roma? O imperador teria condições de se ocupar com coisas desta natureza? Festo permitiria que Paulo fosse a Roma por sua própria iniciativa? Ou será mais lógico supor que houvesse deportação de revoltosos, ou ain-da, que Paulo tivesse ido a Roma por iniciativa própria e apenas lá fosse preso? Por que, neste relato entra a questão de Agripa (v.13ss)? Quem testemunho o fato? Parece ser criação de Lc para assemelhar o processo de Paulo com o de Jesus (Lc 23,6-12). 2.8 - Paulo e Agripa 26,1-32 Como Jesus, Paulo vai de um tribunal ao outro e é jul-gado inocente. Lc insiste, sem cansar, que Paulo é inocen-te, pois esta é sua tarefa diante dos cristãos gregos e ro-manos e mesmo judeus que olhavam com desconfiança para Pau-lo. Encontra-se, aqui, uma terceira narração da conversão de Paulo (v.12ss). Faltam alguns elementos, se comparar o texto com At 9,1ss: Não se fala de Ananias nem da visão do templo de Jerusalém (22,17ss). Para Lc não importam os por-menores. 3 - Roma 27-28 3.1 - A tempestade 27,1-28,10 Paulo, de fato, deve ter sofrido alguns naufrágios (2Cor 11,25-27), mas Lc não cita toda a vida de Paulo. Se-leciona alguns episódios entre os muitos. No entanto, Lc estiliza o escreve de Paulo. Existem, tanto na Bíblia, como na literatura grega relatos sobre naufrágios: Odisséia, Jo-nas 1-2, Sl 107,23-30; Mt 8,23-27; Lc 8,22-25. Lc não segue de perto nenhum dos relatos acima citado, mas, a seu bel-prazer cria um roteiro onde pinta uma imagem muito sobressalente de Paulo.

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“Pois historicamente é totalmente impossível que um pri-sioneiro tenha desempenhado durante a viagem o papel que Lc atri-bui a Paulo”.25

Há incoerências no texto:

- v.9b-11 a viagem continuou porque o piloto e o arma-dor não ouviram Paulo. - v.12 a viagem continuou por decisão da maioria. Lc acrescenta as interferências de Paulo para destacar sua personalidade Lc não trata da questão do naufrágio como seus parale-los: - Não há forças sobrenaturais. Os ventos são normais; - A cobra não é um deus ou demônio (paraíso, serpente de bronze, serpente do Apocalipse). Ela é só serpente. Os obstáculos da viagem, certamente não históricos, mas simbólicos, mostram a vitória da marcha da Palavra que deve chegar aos confins da Terra (1,8), isto é, Roma. Nesta mar-cha da Palavra, Lc apresenta um Paulo sábio, excepcional que entende de navegação. O que certamente não é verdade. Paulo, o arauto da Palavra, salva os viajantes, cura o pai de Públio (lembra a cura da sogra de Pedro). Também neste relato Lc mostra a face bondosa dos roma-nos. Júlio trata Paulo com bondade (v.3) e o salva da morte (v.43). Esta tempestade é como que uma morte e ressurreição de Paulo. O processo de Paulo em Jerusalém reproduzo o proces-so de Jesus e sua morte. Lc não narra a morte de Paulo em Roma. Ele enfatiza o processo em Jerusalém, assim a morte fora desta cidade perderia o sentido. Então: o naufrágio é a morte (Sl 42,8; 66,12; Is 43,2; Mt 12,40 = Jn 2,1). Malta e Roma são paralelos da ressur-reição de Jesus. Apesar da morte e do aparente fracasso, a Palavra continua. 3.2 - Paulo em Roma 28,11-31 Este texto é a conclusão do obra de Lc. Aqui Lc nova-mente apresenta as grandes teses de sua obra.

25COMBLIN, op. Cit. p.167/168.

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Os v.11-15 são a introdução à missão em Roma. Nada lembra um prisioneiro. Ele decide ficar sete dias em Putéoli (que prisioneiro!). Parece verdadeiro triunfo e não prisão. Os v.16-31 são a conclusão. Será possível tanta a coisa a um prisioneiro das longínquas terras do oriente?

Os v.17-25a são inclusão: os judeus chegam e os judeus saem livremente.

Os v.25b-28 são o núcleo da conclusão: Paulo se dirige primeiro as judeus, mas os judeus não escutam. As nações o escutarão (tese, na qual Lc insiste desde o cap.13). O v. 31 diz que Paulo recebe a todos (judeus e cristãos). Esta é a utopia de Lc. No início a boa nova só é dos judeus, de-pois também dos gentios. A perícope 28,16-31 é: - Conclusão do Processo de Paulo - At 19,21-28,31; - Conclusão dos atos de Paulo - At 13-28; - Conclusão do 2º tomo de Lc - At;

- Conclusão do conjunto da obra de Lc - Ev e At

Conclusão do Processo. Paulo vence, pois chega a Roma, novo centro irradiador da fé. Não importa o processo de Ro-ma, mas o dos judeus (v.17-22). Conclusão dos atos de Paulo. Paulo condensa todo seu ministério (v.23). Conclusão dos Atos dos Apóstolos. Paulo é testemunha até os confins da Terra (v. 16-31 cf. 1,8). Conclusão da obra de Lc (v16,31). Assim como Jesus (Lc 4,16-30) apresenta o evangelho aos judeus, mas privilegia os pagãos, assim também Paulo anuncia aos judeus, mas acaba indo aos gentios.

“O grande problema de Lc foi explicar com a Igreja , que doravan-te toma apoio cada vez mais os convertidos dos gentios, constitui a continuação do povo de Israel”.26

Depois de Lc, o conceito de igreja pode nascer.

“Na época de Lc os judeus excomungam os cristãos. Trata-se de mostrar que, apesar desta rejeição, o verdadeiro Israel são os cristãos”.27

Por que Lc não se referiu à morte de Paulo? Talvez Lc não quisesse atritar. Ele via em Roma uma grande possibi-lidade de expansão. A morte de Paulo não significava o con-

26COMBLIN, op. Cit. p.181. 27COMBLIN, op. Cit. p.182.

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fronto total do Império contra o cristianismo. Lc é por demais otimista diante o Império. Por que Lc não fala dos cristãos de Roma? Talvez 1Clem 5,2-4 ofereça uma resposta: “A morte de Pedro e de Paulo se deve a ciúmes e inveja”.

Houve partidos na Igreja de Roma. Paulo, supostamente foi contestado por cristãos petrinos. Lc não menciona con-flitos internos da igreja, pois fugia de seu objetivo.