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INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO FILOSÓFICO JOSÉ AUGUSTO FIORIN (ORG.) Filosofia (do grego philos - amor, amizade + sophia - sabedoria) modernamente é uma disciplina, ou uma área de estudos, que envolve a investigação , análise, discussão, formação e reflexão de idéias (ou visões de mundo) em uma situação geral, abstrata ou fundamental. Originou-se da inquietação gerada pela curiosidade humana em compreender e questionar os valores e as interpretações comumente aceitas sobre a sua própria realidade. As interpretações comumente aceitas pelo homem constituem inicialmente o embasamento de todo o conhecimento. Estas interpretações foram adquiridas, enriquecidas e repassadas de geração em geração. Ocorreram inicialmente através da observação dos fenômenos naturais e sofreram influência das relações humanas estabelecidas até a formação da sociedade, isto em conformidade com os padrões de comportamentos éticos ou morais tidos como aceitáveis em

Introdução a Filosofia II

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Pensamento Filosofico II

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Filosofia (do grego philos - amor, amizade + sophia - sabedoria)

modernamente é uma disciplina, ou uma área de estudos, que

envolve a investigação, análise, discussão, formação e reflexão

de idéias (ou visões de mundo) em uma situação geral, abstrata

ou fundamental.

Originou-se da inquietação gerada pela curiosidade

humana em compreender e questionar os valores e as

interpretações comumente aceitas sobre a sua própria

realidade. As interpretações comumente aceitas pelo homem

constituem inicialmente o embasamento de todo o

conhecimento.

Estas interpretações foram adquiridas, enriquecidas e

repassadas de geração em geração. Ocorreram inicialmente

através da observação dos fenômenos naturais e sofreram

influência das relações humanas estabelecidas até a formação

da sociedade, isto em conformidade com os padrões de

comportamentos éticos ou morais tidos como aceitáveis em

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HOMEM

"... Que é o

homem, para que faças

caso dele, para que te

ocupes dele, para que o

inspeciones cada manhã

e o examines a cada

momento?" "O homem

é a medida de todas as

coisas." "Muitas são as

coisas grandiosas

dotadas de vida, mas a

mais grandiosa de todas

é o homem." A primeira

dessas três frases é

uma das perguntas que

Jó dirige a Deus; a

segunda, uma reflexão

do pensador grego

Protágoras; e a terceira, uma fala da tragédia Antígona, de

Sófocles. A elas poderiam reunir-se milhares de outras sobre o

mesmo tema, de todas as épocas e civilizações, o que mostra que

nada preocupa tanto o homem quanto a condição humana, e

nenhum espetáculo é mais atraente para o homem do que o próprio

homem.

Em sentido amplo, homem é qualquer membro da espécie

humana. Assim ele é entendido pela filosofia e abordado, em cada

um de seus aspectos particulares, pela biologia, antropologia,

história, medicina e outras disciplinas que o têm por objeto. A tarefa

de definir homem, consiste em procurar respostas para algumas

perguntas essenciais: qual a natureza ou a essência do homem?

Como se distingue ele dos outros seres orgânicos, especialmente

dos animais superiores? Essa distinção é essencial e absoluta, ou

apenas uma variação de grau? Qual o lugar do homem no mundo?

Qual sua missão ou seu destino? Como se relaciona com Deus ou

com absoluto?

Abordagem filosófica

A noção ocidental de

homem como indivíduo tem

como ponto de partida o

pensamento grego. Para

Sócrates e Platão, cada ente só

pode ser definido se todos os

seres do universo estiverem

classificados segundo certas

articulações lógicas e

ontológicas. Definir um ente

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INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO FILOSÓFICO JOSÉ AUGUSTO FIORIN (ORG.) 3

consiste então em tomar a categoria à qual ele pertence e situar

essa categoria no lugar ontológico que lhe corresponde. Esse lugar

ontológico é determinado por dois elementos de caráter lógico: a

categoria próxima e a diferença específica. Por eles se chega à

definição de Aristóteles: o homem é um animal racional. Animal é a

categoria próxima, na qual se inclui o homem; racional é a

diferença específica, por meio da qual se distingue conceitualmente

os homens dos outros animais. Para a filosofia grega, o homem é

um "ser racional", ou melhor dito, um animal que possui razão. Essa

definição implica dizer que o homem é uma coisa cuja natureza

consiste em poder dizer o que são as outras coisas. Ou seja, a razão

permite ao homem definir-se e definir o conjunto do universo.

Os gregos admitem que o homem tenha sido "formado", e

também que sua formação tenha obedecido a condições especiais

em relação aos demais seres, mas rejeitam a hipótese da criação. A

visão do homem como ser criado é comum ao judaísmo e ao

cristianismo e exerceu forte influência sobre todas as concepções

filosóficas relacionadas com essas religiões e também com o

islamismo. O homem seria, então, uma criatura, ou seja, um ser

cuja realidade não é própria, mas que foi criado "à imagem e

semelhança de Deus", o que lhe confere superioridade em relação

aos outros seres. Para os gregos, o homem vive em dois mundos: o

mundo sensível, que ele apreende pelos sentidos, e o mundo

inteligível, que apreende pela razão, e onde se confirma sua

realidade como ser racional.

Na concepção judaico-cristã, o homem também se acha

suspenso entre dois mundos: o finito e infinito, o que opõe em uma

mesma natureza a insignificância e a imensa grandeza. Afirma

Pascal que "... a natureza do homem pode ser considerada de duas

maneiras: uma, segundo seu fim, e então é grande e incomparável;

outra, segundo a multidão, como se aprecia a natureza do cavalo e

do cão, e então é abjeto e vil. Esses são os dois caminhos que

levam a julgamentos tão diversos do homem, e a tantas discussões

dos filósofos."

Abordagem biológica

Para as ciências naturais, a dificuldade de definir o que

seja "homem" consiste em escolher entre dois pontos de vista: o da

estrutura anatômica e o que se refere às faculdades reflexivas. No

primeiro caso, o homem encontrar-se-ia imerso em sua

animalidade; no segundo, estaria pairando sobre o mundo, isolado

da natureza. Uma definição mais abrangente e completa de homem

deveria levar em conta, portanto, tudo o que nele seja suscetível de

constatação positiva, isto é, além da conformação anatômica, é

preciso considerar a faculdade de pensar. Dessa dupla abordagem

se depreende a originalidade do fenômeno humano.

O mais exterior dos caracteres humanos é sua tênue

diferenciação morfológica, dada por especializações anatômicas (a

face menor que o crânio, a postura vertical etc.) e fisiológicas (o

desamparo em que se encontra o ser humano nos primeiros meses

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de vida, a sexualidade aperiódica etc.). Mesmo assim, dentro dos

critérios adotados pela biologia para classificar os seres vivos, pode-

se dizer que, por sua estrutura orgânica, o homem não pode aspirar

senão a um lugar modesto na taxionomia animal: ele pertence ao

subfilo dos vertebrados, à ordem dos primatas e a uma família

formada por um único gênero, Homo. Mas outra característica

zoológica do homem evidencia prontamente sua originalidade: a

capacidade de expansão e conquista. Apesar da homogeneidade do

grupo humano, o homem conquistou em relação ao conjunto do

globo um sucesso vital sem precedentes, que se explica, pelo

menos em parte, pela aparição, com o homem, de uma nova fase

na história da vida: o uso de instrumentos artificiais, mais uma

característica do fenômeno humano.

As tentativas de inserir o homem dentro da ordem dos

primatas não primam pela precisão, uma vez que as diferenças de

detalhes são complexas e controversas. O tamanho, e mais ainda, a

complexidade do cérebro humano em relação ao dos primatas não-

humanos constitui o principal ponto de diferenciação anatômica. A

postura ereta é também um aspecto importante. Outras

características anatômicas que distinguem o homem dos outros

primatas, seja dos macacos antropóides, seja dos primatas

inferiores, além do tamanho absoluto e relativo do cérebro, são: o

pé, que serve de suporte e não é preênsil; o primeiro dedo do pé,

que não é oponível; os maxilares, de tamanho reduzido e pouco

salientes; a ausência de caninos salientes e interpostos; curva

lombar, bacia e pelve formadas ou modificadas para atender às

funções de equilíbrio e suporte do corpo na posição ereta; membros

inferiores hipertrofiados, adaptados para o andar bípede; membros

superiores mais curtos e aperfeiçoados, com mãos grandes e

preênseis, dotadas de dedos curtos e polegar oponível; nariz

saliente com pontas e asas bem desenvolvidas; ausência completa

de pêlos táteis ou tentáculos; escassez acentuada de pêlo

secundário no corpo, exceto na cabeça, regiões axilares e púbica e

no rosto dos adultos masculinos; e presença de lábios cheios,

evertidos e membranosos.

Abordagem antropológica

A classificação dos seres vivos proposta por Lineu e

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George-Louis Leclerc Buffon, no século XVIII, permitiu pela primeira

vez integrar o homem numa série zoológica e estudá-lo pelo

método das ciências naturais. A espécie Homo sapiens faz parte do

gênero Homo, o que deixa aberta a possibilidade de existência de

outras espécies. O próprio gênero Homo pertence à família dos

hominídeos, à ordem dos primatas, à classe dos mamíferos, ao

subfilo dos vertebrados e ao filo dos cordados. Dentro da espécie,

pode-se distinguir os grupos (negro, branco, pigmeu etc) e dentro

de cada grupo as raças (nórdica, alpina, australiana etc), depois as

sub-raças, os tipos etc.

A classificação do homem a partir do modelo zoológico

introduziu o conceito diferencial de raça e, ao mesmo tempo, tornou

possível definir a espécie por outros aspectos que não a

racionalidade. Homo sapiens não é necessariamente sinônimo de

animal racional. Os critérios anatômicos e fisiológicos é que foram

considerados com maior rigor para a diferenciação da espécie. A

antropologia preocupou-se também com os problemas da origem e

da filiação da espécie. O Homo sapiens não é senão o elo atual de

uma ou várias longas cadeias de ancestrais hominídeos e pré-

hominídeos e talvez símios. Mas a reação à taxionomia positivista

acabou por impor um modelo que, sem desprezar os traços

anatomo-fisiológicos, restituiu à antropologia geral as dimensões

mentais do homem -- psicológicas, culturais etc.

Outra contribuição ao aprofundamento da perspectiva

antropológica foi o estudo da herança cultural. Em muitos aspectos,

é ela que permite ao homem moldar uma vida adaptada à

variedade de ambientes naturais e possibilita, dentro das limitações

ambientais, tipos de vida que tanto podem resultar de uma escolha

como de uma determinação psicológica interna. A herança cultural é

a transmissão das características culturais pelo ensino e

aprendizagem. A cultura se transmite sob forma de padrões

explícitos e implícitos de comportamento e em suas materializações.

O homem é, portanto, um animal portador de cultura, seja pelo

domínio da linguagem, seja pelos padrões de organização familiar,

pelo uso de ferramentas, enfim, pelo controle de um vasto domínio

de conhecimento empírico e pela presença de elementos de ordem

simbólica, como tabus, mitos, rituais religiosos etc.

Abordagem psico-sociológica

Permanece vaga e ambígua a correlação entre as

dimensões física e cultural do homem. Tal ambigüidade levanta a

dúvida quanto ao problema de ser o homem causa ou resultado,

criatura ou criador de seu patrimônio cultural. A questão do

determinismo ou da liberdade da condição humana extrapola o

âmbito da antropologia e convoca a uma perspectiva inovadora no

campo das ciências humanas, trazida pela psicologia: o conceito

psicanalítico de inconsciente. Essa noção, que foi a principal

descoberta de Sigmund Freud, veio mostrar que o psiquismo não é

redutível ao consciente e que certos conteúdos psíquicos só se

tornam acessíveis à consciência depois de vencidas certas

resistências.

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Para a sociologia, o homem, como ser social, é resultado

de processos sociais e de cultura que antecedem ao aparecimento

do indivíduo. O homem nasce com uma base orgânica, que o

permite desenvolver-se em pessoa. Seus órgãos e sentidos

estabelecem o contato entre o que é verdadeiramente hereditário,

natural e individual, e a vida social e a cultura. O comportamento

humano dá-se num quadro de circulação permanente de

informação. Cada homem recebe ininterruptamente estímulos

diversos e diversamente organizados, aos quais responde por

comportamentos. Se isso é verdadeiro para qualquer ser vivo, no

homem se distingue pelas propriedades de sistematização, de

transferência e de significação.

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INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO FILOSÓFICO JOSÉ AUGUSTO FIORIN (ORG.) 7

POLÍTICA

O choque de interesses entre indivíduos e grupos na

sociedade provoca a luta pelo poder e seu exercício em diferentes

configurações institucionais. Ao longo de séculos, grandes

pensadores tentaram estabelecer os elementos universais de uma

ordem justa nos negócios humanos, o que deu origem a teorias

políticas numerosas e, freqüentemente, contraditórias.

Política, em sentido estrito, é a arte de governar a polis, ou

cidade-estado, e deriva do adjetivo politikós, que significa tudo o

que se relaciona à cidade, isto é, tudo o que é urbano, público, civil

e social. Em acepção ampla, política é o estudo do fenômeno do

poder, entendido como a capacidade que um indivíduo ou grupo

organizado tem de exercer controle imperativo sobre a população

de um território, mesmo quando é necessário o uso da força.

O conceito de política é estreitamente vinculado ao de

poder em três esferas básicas: (1) a luta pelo poder; (2) o conjunto

de instituições por meio das quais esse poder se exerce; (3) e a

reflexão teórica sobre a origem, estrutura e razão de ser do poder.

O poder político se caracteriza pela exclusividade do direito do uso

da força em relação ao conjunto da sociedade, que lhe confere a

legitimidade desse uso. O exercício do poder se justifica como a

solução para regular e equilibrar a ordem e a justiça na sociedade;

e o uso da força, inerente a todo poder político, indica a presença

de interesses antagônicos e conflitos no corpo social que devem ser

controlados para preservar a ordem social ou buscar o bem comum.

Ciência política

Disciplina recente, a ciência política surgiu da necessidade

de formar gestores públicos e oferecer uma estrutura de reflexão

sobre as questões públicas. Seu objetivo é estudar o poder político,

suas formas concretas de manifestação e tendências evolutivas.

Cabe assim à ciência política explicar os motivos das relações que

existem entre os poderes políticos e a sociedade, as diversas formas

de organização do estado e sua dominação por classes ou grupos, a

formação da vontade política do povo e as diferentes teorias

relativas à prática política.

A ciência política utiliza métodos de ciências empíricas,

como a física e a biologia, e metodologias e especificidades de

outros ramos do conhecimento, como filosofia, história, direito,

sociologia e economia, e sua finalidade é descrever aquilo que é e

não o que deveria ser. Nesse sentido, distingue-se da filosofia

política, área normativa voltada para conceitos como direito e

justiça; da antropologia política, que estuda o fenômeno político

como uma constante em todas as sociedades humanas ao longo de

sua história; e da sociologia política, que estuda os fenômenos

sociais a partir de uma visão política.

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INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO FILOSÓFICO JOSÉ AUGUSTO FIORIN (ORG.) 8

Luta pelo poder

A história humana é basicamente uma história da política,

isto é, das lutas travadas por indivíduos, grupos ou nações para

conquistar, manter ou ampliar o poder político. Essas lutas podem

ser violentas, na forma de assassínio de dirigentes, guerras,

revoluções e golpes de estado, ou pacíficas, por meio de eleições e

plebiscitos.

A luta violenta é uma das formas mais primitivas de

conquista e manutenção do poder, embora ainda seja adotada em

algumas nações modernas. São numerosos os exemplos, ao longo

da história das nações, de assassínios de dirigentes por uma pessoa

ou um grupo de pessoas para a tomada do poder; e de insurreições

e revoluções populares, uma forma de luta política violenta que visa

não só conquistar o poder mas transformar de modo radical as

condições sociais ou a organização do estado. Nesses casos, a

violência se manifesta também na defesa daqueles que detêm o

poder e querem manter a situação social tradicional. As revoluções

francesa e russa mudaram a história do mundo moderno.

A mudança de um regime político pode se dar ainda pelo

golpe de estado, forma de ação política violenta comum na história

das nações da América Latina. As guerras são o modo mais extremo

e violento da luta política, já que o objetivo é destruir o adversário,

e podem ser externas, entre duas ou mais nações, ou internas ou

civis, entre facções de uma nação.

Os meios pacíficos de luta pelo poder indicam estado

avançado de civilização e a racionalidade das concepções políticas.

As formas básicas de luta pacífica, própria dos sistemas

democráticos, são as eleições e plebiscitos. Nas democracias,

reconhece-se que a soberania popular é o princípio de legitimação

do poder e portanto a direção do estado cabe à facção ou partido

que obtiver a maioria dos votos livremente expressos pelo povo.

Trata-se de um procedimento racional, que pressupõe a igualdade

dos cidadãos perante a lei e que tende a harmonizar os conflitos de

interesse, embora eles continuem a existir e muitas vezes se

manifestem de forma violenta.

Instituições políticas

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Órgãos permanentes por meio dos quais se exerce o poder

político, as instituições políticas evoluíram de acordo com o grau de

racionalidade alcançado pelos homens. Nas antigas civilizações

orientais, em Roma e na Europa medieval, os sistemas políticos

tinham como característica comum a personalização do poder,

justificada por instâncias mágicas, religiosas ou carismáticas. Faraó

egípcio, imperador romano ou rei cristão, o detentor do poder se

confundia com o próprio poder. Sua justificativa era a força,

traduzida pelo poder militar, poder de curar ou poder sobre as

forças da natureza. Constantemente desafiado por aqueles que se

julgavam possuidores das mesmas credenciais, o poder

personalizado gerou a instabilidade política e o uso da violência

como forma de solução de conflitos.

No final da Idade Média, mudanças políticas, econômicas e

sociais determinaram o surgimento de novas concepções sobre o

estado. O progresso da burguesia e da economia favoreceu a

centralização do poder nas monarquias absolutas. O estado tornou-

se racional e suas estruturas se institucionalizaram, de acordo com

as novas necessidades sociais. A vitória da burguesia sobre a

sociedade feudal, na revolução francesa, desmistificou o poder por

direito divino e consagrou o princípio da soberania popular. O povo,

única fonte de poder, podia transferir seu exercício a representantes

por ele eleitos.

Os sistemas liberais, cuja representatividade era

inicialmente restrita, aperfeiçoaram os mecanismos democráticos e,

ao incorporarem o sufrágio universal, reconheceram de forma plena

a igualdade de todos os cidadãos perante a lei. A institucionalização

do poder exigiu a adoção de constituições que, como expressão da

vontade popular, devem reger a ação do estado. Nos sistemas

democráticos, a legitimidade do poder deriva de sua origem na

vontade popular e de seu exercício de acordo com a lei.

A doutrina da clássica divisão do poder político, elaborada

por Montesquieu, é comum a quase todos os sistemas políticos dos

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estados modernos. O poder legislativo, formado por parlamentares

eleitos pelo povo, elabora as leis e controla os atos do poder

executivo; o executivo, também eleito pelo povo, executa a lei e

administra o estado; o judiciário interpreta e aplica as leis e atua

como juiz nos conflitos entre os outros poderes. A divisão de

poderes ajuda a evitar o abuso de poder por meio do controle

recíproco dos vários órgãos do estado.

Nas modernas sociedades democráticas, além dos poderes

institucionalizados existem organizações que participam do poder ou

nele influem: partidos políticos, sindicatos de classe, grupos de

interesse, associações profissionais, imprensa, freqüentemente

chamada de quarto poder, e outras. Nos regimes totalitários, a

existência de um partido único no poder diminui as chances de

participação da sociedade nos assuntos políticos nacionais.

História das idéias políticas

Além de lutar pelo poder e de criar instituições para

exercê-lo, o homem também examina sua origem, natureza e

significado. Dessas reflexões resultaram diferentes doutrinas e

teorias políticas.

Antiguidade

São escassas as referências a doutrinas políticas dos

grandes impérios orientais. Admitiam como única forma de governo

a monarquia absoluta e sua concepção de liberdade era diferente da

visão grega, que a civilização ocidental incorporou -- mesmo

quando submetidos ao despotismo de um chefe absoluto, seus

povos consideravam-se livres se o soberano fosse de sua raça e

religião.

As cidades da Grécia não se uniram sob um poder imperial

centralizador e conservaram sua autonomia. Suas leis emanavam

da vontade dos cidadãos e seu principal órgão de governo era a

assembléia de todos os cidadãos, responsáveis pela defesa das leis

fundamentais e da ordem pública. A necessidade da educação

política dos cidadãos tornou-se, assim, tema de pensadores políticos

como Platão e Aristóteles.

Em suas obras, das quais a mais importante é A república,

Platão define a democracia como o estado no qual reina a liberdade

e descreve uma sociedade utópica dirigida pelos filósofos, únicos

conhecedores da autêntica realidade, que ocupariam o lugar dos

reis, tiranos e oligarcas. Para Platão, a virtude fundamental da polis

é a justiça, pela qual se alcança a harmonia entre os indivíduos e o

estado. No sistema de Platão, o governo seria entregue aos sábios,

a defesa aos guerreiros e a produção a uma terceira classe, privada

de direitos políticos.

Aristóteles, discípulo de Platão e mestre de Alexandre o

Grande, deixou a obra política mais influente na antiguidade clássica

e na Idade Média. Em Política, o primeiro tratado conhecido sobre a

natureza, funções e divisão do estado e as várias formas de

governo, defendeu como Platão equilíbrio e moderação na prática

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do poder. Empírico, considerou impraticáveis muitos dos conceitos

de Platão e viu a arte política como parte da biologia e da ética.

Para Aristóteles, a polis é o ambiente adequado ao

desenvolvimento das aptidões humanas. Como o homem é, por

natureza, um animal político, a associação é natural e não

convencional. Na busca do bem, o homem forma a comunidade, que

se organiza pela distribuição das tarefas especializadas. Como

Platão, Aristóteles admitiu a escravidão e sustentou que os homens

são senhores ou escravos por natureza. Concebeu três formas de

governo: a monarquia, governo de um só, a aristocracia, governo

de uma elite, e a democracia, governo do povo. A corrupção dessas

formas daria lugar, respectivamente, à tirania, à oligarquia e à

demagogia. Considerou que o melhor regime seria uma forma

mista, no qual as virtudes das três formas se complementariam e se

equilibrariam.

Os romanos, herdeiros da cultura grega, criaram a

república, o império e o corpo de direito civil, mas não elaboraram

uma teoria geral do estado ou de direito. Entre os intérpretes da

política romana destacam-se o grego Políbio e Cícero, que pouco

acrescentaram à filosofia política dos gregos.

Idade Média

O cristianismo introduziu, nos últimos séculos do Império

Romano, a idéia da igualdade entre todos os homens, filhos do

mesmo Deus, uma noção que contestava implicitamente a

escravidão, fundamento social econômico do mundo antigo. Ao

tornar-se religião oficial, o cristianismo aliou-se ao poder temporal e

admitiu a organização social existente, inclusive a escravidão. Santo

Agostinho, a quem se atribui a fundação da filosofia da história,

afirma que os cristãos, embora voltados para a vida eterna, não

deixam de viver a vida efêmera do mundo real. Moram em cidades

temporais mas, como cristãos, são também habitantes da "cidade

de Deus" e, portanto, um só povo.

Santo Agostinho não formulou uma doutrina política, mas a

teocracia está implícita em seu pensamento. A solução dos

problemas sociais e políticos é de ordem moral e religiosa e todo

bom cristão será, por isso mesmo, bom cidadão. O regime político

não importa ao cristão, desde que não o obrigue a contrariar a lei

de Deus. Considera, pois, um dever a obediência aos governantes,

desde que se concilie com o serviço divino. Testemunha da

dissolução do Império Romano, contemporâneo da conversão de

Constantino ao cristianismo, santo Agostinho justifica a escravidão

como um castigo do pecado. Introduzida por Deus, "seria insurgir-

se contra Sua vontade querer suprimi-la".

No século XIII, santo Tomás de Aquino, o grande pensador

político do cristianismo medieval, definiu em linhas gerais a

teocracia. Retomou os conceitos de Aristóteles e os adaptou às

condições da sociedade cristã. Afirmou que a ação política é ética e

a lei um mecanismo regulador que promove a felicidade. Como

Aristóteles, considerou ideal um regime político misto com as

virtudes das três formas de governo, monarquia, aristocracia e

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INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO FILOSÓFICO JOSÉ AUGUSTO FIORIN (ORG.) 12

democracia. Na Summa teologica, justifica a escravidão, que

considera natural. Em relação ao senhor, o escravo "é instrumento,

pois entre o senhor e o escravo há um direito especial de

dominação".

Renascimento

Os teóricos políticos do período caracterizaram-se pela

reflexão crítica sobre o poder e o estado. Em O príncipe, Maquiavel

secularizou a filosofia política e separou o exercício do poder da

moral cristã. Diplomata e administrador experiente, cético e

realista, defende a constituição de um estado forte e aconselha o

governante a preocupar-se apenas em conservar a própria vida e o

estado, pois na política o que vale é o resultado. O príncipe deve

buscar o sucesso sem se preocupar com os meios. Com Maquiavel

surgiram os primeiros contornos da doutrina da razão de estado,

segundo a qual a segurança do estado tem tal importância que,

para garanti-la, o governante pode violar qualquer norma jurídica,

moral, política e econômica. Maquiavel foi o primeiro pensador a

fazer distinção entre a moral pública e a moral particular.

Thomas Hobbes, autor de Leviatã, considera a monarquia

absoluta o melhor regime político e afirma que o estado surge da

necessidade de controlar a violência dos homens entre si. Como

Maquiavel, não confia no homem, que considera depravado e anti-

social por natureza. É o poder que gera a lei e não o contrário; a lei

só prevalece se os cidadãos concordarem em transferir seu poder

individual a um governante, o Leviatã, mediante um contrato que

pode ser revogado a qualquer momento.

Baruch de Spinoza prega a tolerância e a liberdade

intelectual. Temeroso dos dogmas metafísicos e religiosos, justifica

o poder político unicamente por sua utilidade e considera justa a

rebelião se o poder se torna tirânico. Em seu Tratado teológico-

político, afirma que os governantes devem cuidar para que os

membros da sociedade desenvolvam ao máximo as suas

capacidades intelectuais e humanas.

Montesquieu e Jean-Jacques Rousseau destacam-se como

teóricos da democracia moderna. Montesquieu exerceu influência

duradoura com O espírito das leis, no qual estabeleceu a doutrina

da divisão dos poderes, base dos regimes constitucionais modernos.

Rousseau sustenta, no Contrato social, que a soberania pertence ao

povo, que livremente transfere seu exercício ao governante. Suas

idéias democráticas inspiraram os líderes da revolução francesa e

contribuíram para a queda da monarquia absoluta, a extinção dos

privilégios da nobreza e do clero e a tomada do poder pela

burguesia.

Pensamento contemporâneo

No século XIX, uma das correntes do pensamento político

foi o utilitarismo, segundo o qual se deve avaliar a ação do governo

pela felicidade que proporciona aos cidadãos. Jeremy Bentham,

primeiro divulgador das idéias utilitaristas e seguidor das doutrinas

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INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO FILOSÓFICO JOSÉ AUGUSTO FIORIN (ORG.) 13

econômicas de Adam Smith e David Ricardo, teóricos do laissez-

faire (liberalismo econômico), considera que o governo deve limitar-

se a garantir a liberdade individual e o livre jogo das forças de

mercado, que geram prosperidade.

Em oposição ao liberalismo político, surgiram as teorias

socialistas em suas duas vertentes, a utópica e a científica. Robert

Owen, Pierre-Joseph Proudhon e Henri de Saint-Simon foram alguns

dos teóricos do socialismo utópico. Owen e Proudhon denunciaram a

organização institucional, econômica e educacional de seus países e

defendem a criação de sociedades cooperativas de produção, ao

passo que Saint-Simon preconizou a industrialização e a dissolução

do estado.

Karl Marx e Friedrich Engels desenvolvem a teoria do

socialismo científico, que deixou marcas profundas e duradouras na

evolução das idéias políticas. Seu socialismo não é um ideal a que a

sociedade deva adaptar-se, mas "o movimento real que suprime o

atual estado de coisas", e "cujas condições decorrem de

pressupostos já existentes". O socialismo sucederia ao capitalismo

assim como o capitalismo sucedeu ao feudalismo e será a solução

das contradições do capitalismo. Assim, sua realização não seria

utópica, mas resultaria de uma exigência objetiva do processo

histórico em determinada fase de seu desenvolvimento. O estado,

expressão política da classe economicamente dominante,

desapareceria numa sociedade sem classes.

Depois da primeira guerra mundial, surgiram novas

doutrinas baseadas nas correntes políticas do século XIX. O

liberalismo político, associado nem sempre legitimamente ao

liberalismo econômico, pareceu entrar em dissolução, confirmada

pela depressão econômica de 1929, e predominaram as visões

totalitárias do poder.

A partir do marxismo, Lenin elaborou uma teoria do estado

comunista e comandou na Rússia a primeira revolução operária

contra o sistema capitalista. Sobre a base marxista-leninista, Stalin

organizou o estado totalitário para estruturar a ditadura do

proletariado e alcançar o comunismo. Entre os pensadores

marxistas que discordaram de Stalin e acreditaram na diversidade

de vias para atingir o mesmo fim destacam-se Trotski, Tito e Mao

Zedong (Mao Tsé-tung).

A outra vertente do totalitarismo foi o fascismo, baseado

na crítica aos abusos do capitalismo e do comunismo. Formadas por

elementos heterogêneos e muitas vezes incoerentes, as ideologias

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INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO FILOSÓFICO JOSÉ AUGUSTO FIORIN (ORG.) 14

fascistas deram fundamento intelectual aos regimes que tendiam a

sobrepor o poder absoluto do estado aos indivíduos, como o

fascismo na Itália de Benito Mussolini e o nacional-socialismo na

Alemanha de Adolf Hitler.

Após a segunda guerra mundial, a democracia liberal, já

dissociada do liberalismo econômico, ressurgiu em diversos países

europeus e americanos. Em suas instituições, as democracias

acrescentaram os direitos sociais, como o direito ao trabalho e ao

bem-estar, aos direitos individuais. No final da década de 1980, a

dissolução da União Soviética levou ao desaparecimento dos

regimes comunistas no leste europeu e ao predomínio da

democracia liberal.

Poder político no Brasil

O absolutismo foi a base das concepções políticas que

vigoraram no Brasil colonial, regido pelas leis e o sistema político de

Portugal. Ao longo do século XVIII, ocorreram movimentos

autonomistas com fundo republicano e liberal, inspirados nos

modelos das repúblicas veneziana e americana. As idéias que

inspiraram a revolução francesa disseminaram-se pela colônia nas

obras de Voltaire, Rousseau e Montesquieu mas o liberalismo só se

manifestou de modo mais concreto nos episódios da inconfidência

mineira, que evidenciaram as contradições entre a crescente

burguesia e as classes agrárias dominantes.

O processo separatista ganhou consistência com a chegada

de D. João VI em 1808 e culminou com a independência. A primeira

constituição brasileira, outorgada pelo imperador D. Pedro I,

baseou-se no despotismo esclarecido e inovou na doutrina da

divisão de poderes, ao incluir o poder moderador do monarca ao

lado dos clássicos poderes executivo, legislativo e judiciário.

As elites brasileiras, compostas de grandes senhores

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INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO FILOSÓFICO JOSÉ AUGUSTO FIORIN (ORG.) 15

agrários e comerciantes, instalaram-se no poder e competiram com

o imperador pelo controle da nação. O cunho liberal da constituição

foi amenizado pela adoção de mecanismos como o voto censitário,

que excluiu a maioria da população do processo eleitoral, e a

vitaliciedade dos senadores e dos membros do Conselho de Estado,

que assegurou a permanência das elites no poder. O confronto

permanente entre essas elites e o imperador e a oposição dos

liberais radicais, que se ressentiam da centralização excessiva do

poder e defendiam o federalismo, culminaram na abdicação do

soberano em favor de D. Pedro II, então menor de idade.

O período da regência foi marcado pela pressão

permanente das aristocracias locais, que exigiam maior autonomia

de ação política, e por conflitos entre liberais e conservadores, que

se traduziram em rebeliões regionais e levantes populares, em

alguns casos de inspiração separatista e republicana. Pouco depois

de assumir o trono, D. Pedro II estabeleceu o regime

parlamentarista e abriu mão de seus poderes executivos,

transferidos para um primeiro-ministro escolhido entre os membros

do partido majoritário nas eleições. Preservou, porém, o poder

moderador, o que na prática manteve o governo sob seu controle.

Os primeiros anos do governo do segundo reinado foram

marcados por revoltas regionais e, ao mesmo tempo, pela

consolidação das instituições nacionais e pelo aprofundamento do

sentimento de nacionalidade em todo o território brasileiro. Os

liberais, que se alternaram com os conservadores no governo ao

longo do segundo reinado, pertenciam também às classes

dominantes e esqueciam seu radicalismo assim que assumiam o

poder. As elites agrárias e comerciais mantinham-se como a única

força política e dominavam o cenário nacional. Entretanto, os

grandes temas da república e da abolição da escravatura ganhavam

espaço e apoio crescentes, principalmente na burguesia urbana, que

se ressentia das dificuldades de implantação plena do capitalismo

numa economia atrasada, que buscava se modernizar. Republicanos

e abolicionistas inauguraram um estilo novo na política brasileira e

convocaram as populações das cidades à defesa de suas idéias.

Apesar dessa mobilização, a república foi instaurada pela elite, sem

participação popular.

A abolição da escravatura em 1888 marcou o fim do

império brasileiro e o início da república, instalada no ano seguinte,

mas permaneceu o autoritarismo do poder central, profundamente

entranhado na cultura política nacional. A constituição liberal de

1891 estabeleceu um presidencialismo forte e centralizado, que não

resolveu as contradições políticas herdadas do império nem excluiu

do poder as elites, acrescidas então de novas forças econômicas,

como os produtores de café, que determinavam os caminhos da

nação. Na fase que se seguiu, conhecida como República Velha,

predominaram as oligarquias de São Paulo e Minas Gerais, os

estados economicamente mais avançados.

Durante a primeira guerra mundial, o país conheceu

notável expansão industrial, mas o poder político continuou

dominado pelos interesses das oligarquias rurais e da burguesia

mercantil. As contradições entre uma economia que se modernizava

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INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO FILOSÓFICO JOSÉ AUGUSTO FIORIN (ORG.) 16

e um modelo político retrógrado geraram inquietações políticas que

se expressaram em movimentos como o tenentismo. O processo

eleitoral, marcado pela fraude e a exclusão de vasta parcela da

população, mostrou-se incapaz de solucionar as distorções do

sistema, agravadas por dificuldades financeiras e do comércio

exterior que a crise mundial de 1929 aprofundou, com a queda

drástica das exportações de produtos primários.

Com a revolução de 1930, a burguesia industrial teve

maior participação no poder, mas as contradições do regime não

foram solucionadas. Conflitos entre as oligarquias e os tenentistas e

a ausência de mudanças estruturais necessárias levaram à

implantação da ditadura do Estado Novo, que se prolongou até

1945.

A constituição de 1946 deu início a um período de

crescimento econômico e aprofundamento dos mecanismos

democráticos. Houve mudanças no sistema eleitoral e participação

efetiva do povo no processo político. Os partidos políticos se

fortaleceram e representaram efetivamente os diversos segmentos

políticos e ideológicos da nação. O modelo econômico e social,

porém, não se alterou, especialmente na estrutura agrária

dominada pelas elites obsoletas. O choque entre avanços políticos e

econômicos e a manutenção de um modelo social ultrapassado

levaram setores progressistas e conservadores à radicalização.

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INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO FILOSÓFICO JOSÉ AUGUSTO FIORIN (ORG.) 17

CIDADANIA

Foi de um discurso do

dramaturgo Pierre-Augustin

Caron de Beaumarchais, em

outubro de 1774, que surgiu

o sentido moderno da

palavra cidadão -- que ganharia maior ressonância nos primeiros

meses da revolução francesa, com a Declaração dos Direitos do

Homem e do Cidadão.

Em sentido etimológico, cidadania refere-se à condição dos

que residem na cidade. Ao mesmo tempo, diz da condição de um

indivíduo como membro de um estado, como portador de direitos e

obrigações. A associação entre os dois significados deve-se a uma

transformação fundamental no mundo moderno: a formação dos

estados centralizados, impondo jurisdição uniforme sobre um

território não limitado aos burgos medievais.

Na Europa, até o início dos tempos modernos, o

reconhecimento de direitos civis e sua consagração em documentos

escritos (constituições) eram limitados aos burgos ou cidades. A

individualização desses direitos a rigor não existe até o surgimento

da teoria dos direitos naturais do indivíduo e do contrato social,

bases filosóficas do antigo liberalismo. Nesse sentido, os privilégios

e imunidades dos burgos medievais não diferem, quanto à forma,

dos direitos e obrigações das corporações e outros agrupamentos,

decorrentes de sua posição ou função na hierarquia social e na

divisão social do trabalho. São direitos atribuídos a uma entidade

coletiva, e ao indivíduo apenas em decorrência de sua participação

em um desses "corpos" sociais.

O termo cidadão tornou-se sinônimo de homem livre,

portador de direitos e obrigações a título individual, assegurados em

lei. É na cidade que se formam as forças sociais mais diretamente

interessadas na individualização e na codificação desses direitos: a

burguesia e a moderna economia capitalista.

Ao ultrapassar os estreitos limites do mundo medieval --

pela interligação de feiras e comunas, pelo estabelecimento de rotas

regulares de comércio, entre regiões da Europa e entre os

continentes --, a dinâmica da economia capitalista favorece a

imposição de uma jurisdição uniforme em determinados territórios,

cuja extensão e perfil derivam tanto da interdependência interna

enquanto "mercado", como dos fatores culturais, lingüísticos,

políticos e militares que favorecem a unificação.

Em seus primórdios, a constituição do estado moderno e

da economia comercial capitalista é uma grande força libertária. Em

primeiro lugar, pela dilatação de horizontes, pela emancipação dos

indivíduos ante o localismo, ante as convenções medievais que

impediam ou dificultavam a escolha de uma ocupação diferente da

transmitida como herança familiar; libertária, também, ante as

tradições e crenças que se diluíam com a maior mobilidade

geográfica e social; mas libertária, sobretudo, pela imposição de

uma jurisdição uniforme, que superava o arbítrio dos senhores

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INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO FILOSÓFICO JOSÉ AUGUSTO FIORIN (ORG.) 18

feudais e reconhecia a todos os mesmos direitos e obrigações,

independentemente de seu trabalho ou condição socioeconômica.

Além do sentido sociológico, a cidadania tem um sentido

político, que expressa a igualdade perante a lei, conquistada pelas

grandes revoluções (inglesa, francesa e americana), e

posteriormente reconhecida no mundo inteiro.

Nessa perspectiva, a passagem do âmbito limitado - dos

burgos - ao significado amplo da cidadania nacional é a própria

história da formação e unificação dos estados modernos, capazes de

exercer efetivo controle sobre seus respectivos territórios e de

garantir os mesmos direitos a todos os seus habitantes. É

fundamentalmente uma garantia negativa: contra as limitações

convencionais ao comportamento individual e contra o poder

arbitrário, público ou privado.

Rumo à universalização. A cidadania é originalmente um

direito burguês. Contudo, quando reivindicada como soma de

direitos fundamentais do indivíduo, estes se tornam neutros quanto

a seus beneficiários presentes e potenciais.

Vista como processo histórico gradual, a extensão da

cidadania é (1) a transformação da estrutura social pré-moderna no

quadro da economia capitalista e do estado nacional moderno e (2)

o reconhecimento e a universalização de toda uma série de novos

direitos que, em parte, são indispensáveis ao funcionamento da

economia capitalista moderna e, em parte, são resultado concreto

do conflito político dentro de cada país. Portanto, trata-se de um

conceito ao mesmo tempo jurídico, sociológico e político: descreve a

consagração formal de certos direitos, o processo político de sua

obtenção e a criação das condições socioeconômicas que lhe dão

efetividade.

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INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO FILOSÓFICO JOSÉ AUGUSTO FIORIN (ORG.) 19

Cidadania e democracia

A cidadania tem dois aspectos: (1) o institucional, porque

envolve o reconhecimento explícito e a garantia de certos direitos

fundamentais, embora sua institucionalização nunca seja constante

e irredutível; (2) e o processual, porque as garantias civis e

políticas, bem como o conteúdo substantivo, social e econômico,

não podem ser vistos como entidades fixas e definitivas, mas

apenas como um processo em constante reafirmação, com limiares

abaixo dos quais não há democracia. Democrático, no sentido

liberal, é o país que, além das garantias jurídicas e políticas

fundamentais, institucionaliza amplamente a participação política.

Direitos e garantias individuais

A necessidade de certas prerrogativas que limitem o poder

político em suas relações com a pessoa humana são, muito

provavelmente, criação do cristianismo, que definiu o primeiro

terreno interditado ao estado: o espiritual.

No campo do direito positivo, foi a revolução francesa que

incorporou o sistema dos direitos humanos ao direito constitucional

moderno. A teoria do direito constitucional dividiu, de início, os

direitos humanos em naturais e civis, considerando que a liberdade

natural, mais ampla, evolui para o conceito de liberdade civil, mais

limitada, visto que seus limites coincidem com os da liberdade dos

outros homens.

A primeira concretização da teoria jurídica dos direitos

humanos foi o Bill of Rights, de 1689 -- a declaração de direitos

inglesa. Só depois da independência dos Estados Unidos, porém, as

declarações de direitos, inseridas nas constituições escritas,

adquirem o perfil de relação de direitos oponíveis ao estado, e dos

quais os indivíduos são titulares diretos. Dada sua importância, o

direito constitucional clássico dividia as leis fundamentais em duas

partes: uma estabelecia os poderes e seu funcionamento; outra, os

direitos e garantias individuais.

No Brasil, é clássica a definição dada por Rui Barbosa às

garantias, desdobramento dos direitos individuais: "Os direitos são

aspectos, manifestações da personalidade humana em sua

existência subjetiva, ou nas suas situações de relações com a

sociedade, ou os indivíduos que a compõem. As garantias

constitucionais stricto sensu são as solenidades tutelares de que a

lei circunda alguns desses direitos contra os abusos do poder." É o

caso do direito à liberdade pessoal, cuja garantia é o recurso do

habeas corpus.

Direitos sociais

Na antiguidade, considerava-se que o trabalho manual não

era compatível com a inteligência crítica e especulativa, ideal do

estado. Daí o reconhecimento da escravidão, que restringia

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consideravelmente os ideais teóricos da democracia direta. A

revolução social do cristianismo baseou-se principalmente na

dignificação do trabalho manual. Por conseguinte, durante a Idade

Média, o trabalho era considerado um dever social e mesmo

religioso do indivíduo.

Com o declínio das corporações de ofício, que controlavam

o trabalho medieval, e o surgimento das oficinas de trabalho, de

características diferentes, entre as quais a relação salarial entre

operário e patrão, estão dadas as condições propícias ao capitalismo

mercantilista da época do Renascimento e da Reforma.

Mais tarde, a burguesia, que dominara a revolução

francesa, viu-se diante dos problemas sociais decorrentes da

revolução industrial. Assim, tornou-se indispensável a intervenção

do estado entre as partes desiguais em confronto no campo do

trabalho, para regular o mercado livre em que o trabalhador era

cruelmente explorado.

Atualmente não se pode conceber a proteção jurídica dos

direitos individuais sem o reconhecimento e a proteção dos direitos

sociais do homem, que são oponíveis não ao estado, mas ao capital,

e têm na ação do estado sua garantia.

Hoje existe um grande movimento pelo reconhecimento,

definição e garantia internacionais dos direitos humanos. Em 10 de

dezembro de 1948, a assembléia geral da Organização das Nações

Unidas (ONU) adotou em Paris a Declaração Universal dos Direitos

Humanos, que só terá força obrigatória quando for uma convenção

firmada por todos os países membros da ONU.

Os regimes de governo são justos na medida em que as

liberdades são defendidas, mesmo em épocas de crise. Os princípios

gerais de direito são sempre os mesmos: processo legal, ausência

de crueldade, respeito à dignidade humana. As formas de execução

desses princípios também não variam. Resumem-se em leis

anteriores, em garantias eficazes de defesa e, como sempre, acima

de tudo, em justiça independente e imparcial.

Suspensão das garantias constitucionais. No Brasil, a

instabilidade do poder político e as lutas oligárquicas durante a

primeira república fizeram do estado de sítio e da intervenção

federal os centros de convergência dos debates jurídicos e das

ações políticas. Também o Supremo Tribunal Federal defrontou-se

freqüentemente com o problema. No entanto os fatos mais de uma

vez atropelaram o direito ao longo da história do Brasil.

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INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO FILOSÓFICO JOSÉ AUGUSTO FIORIN (ORG.) 21

RELIGIÃO

O medo do desconhecido e a necessidade de dar sentido ao

mundo que o cerca levaram o homem a fundar diversos sistemas de

crenças, cerimônias e cultos -- muitas vezes centrados na figura de

um ente supremo -- que o ajudam a compreender o significado

último de sua própria natureza. Mitos, superstições ou ritos mágicos

que as sociedades primitivas teceram em torno de uma existência

sobrenatural, inatingível pela razão, equivaleram à crença num ser

superior e ao desejo de comunhão com ele, nas primeiras formas de

religião.

Religião (do latim religio, cognato de religare, "ligar",

"apertar", "atar", com referência a laços que unam o homem à

divindade) é como o conjunto de relações teóricas e práticas

estabelecidas entre os homens e uma potência superior, à qual se

rende culto, individual ou coletivo, por seu caráter divino e sagrado.

Assim, religião constitui um corpo organizado de crenças que

ultrapassam a realidade da ordem natural e que tem por objeto o

sagrado ou sobrenatural, sobre o qual elabora sentimentos,

pensamentos e ações.

Essa definição abrange tanto as religiões dos povos ditos

primitivos quanto as formas mais complexas de organização dos

vários sistemas religiosos, embora variem muito os conceitos sobre

o conteúdo e a natureza da experiência religiosa. Apesar dessa

variedade e da universalidade do fenômeno no tempo e no espaço,

as religiões têm como característica comum o reconhecimento do

sagrado (definição do filósofo e teólogo alemão Rudolf Otto) e a

dependência do homem de poderes supramundanos (definição do

teólogo alemão Friedrich Schleiermacher). A observância e a

experiência religiosas têm por objetivo prestar tributos e

estabelecer formas de submissão a esses poderes, nos quais está

implícita a idéia da existência de ser ou seres superiores que

criaram e controlam o cosmos e a vida humana.

Aquelas características, que de certa forma não distinguem

uma religião de outra, levaram ao debate sobre religião natural e

religião revelada, o que recebeu significação especial nas teologias

judaica e cristã. O americano Mircea Éliade, historiador das

religiões, denominou "hierofania" a essa manifestação do sagrado,

ou seja, algo sagrado que é mostrado ao homem. Seja a

manifestação do sagrado uma pedra ou uma árvore, seja a doutrina

da encarnação de Deus em Jesus Cristo, trata-se sempre de uma

hierofania, de um ato misterioso que revela algo completamente

diferente da realidade do mundo natural, profano.

Por mais que a mentalidade ocidental moderna possa

repudiar certas expressões rudimentares ou exóticas das religiões

primitivas, na realidade a pedra e a árvore não são adoradas

enquanto tais, como expressões de algo sagrado, que

paradoxalmente transforma o objeto numa outra realidade. O

sagrado e o profano configuram duas modalidades de estar no

mundo e duas atitudes existenciais do homem ao longo de sua

história. Contudo, as reações do homem frente ao sagrado, em

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INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO FILOSÓFICO JOSÉ AUGUSTO FIORIN (ORG.) 22

diferentes contextos históricos, não são uniformes e expressam um

fenômeno cultural e social complexo, apesar da base comum.

Embora não seja fácil elaborar uma classificação

sistemática das religiões, pode-se agrupá-las em duas categorias

amplas: religiões primitivas e religiões superiores. Nessa divisão, o

qualificativo superior refere-se ao desenvolvimento cultural e não ao

nível de religiosidade.

Religiões primitivas

A importância do culto aos antepassados levou filósofos e

historiadores -- como Evêmero, no século IV a.C. -- a considerá-lo a

origem da religião. As sepulturas paleolíticas corroboram essa

opinião, pois comprovam já haver, naquele período, a crença numa

vida depois da morte e no poder ou influência dos antepassados

sobre a vida cotidiana do clã familiar. Os integrantes do clã

obrigavam-se a praticar ritos em homenagem a seus defuntos pelo

temor a represálias ou pelo desejo de obter benefícios ou, ainda,

por considerá-los divinizados.

No século XIX, os estudos realizados pelo antropólogo

britânico Edward Burnett Tylor deram origem ao conceito de

animismo, aplicado desde então a todas as religiões primitivas.

Tylor sustentou que o homem primitivo, a partir da experiência do

sonho e do fenômeno da respiração, concebeu a existência de uma

alma ou princípio vital imaterial que habitava todos os seres

dotados de movimento e vida. O temor diante dos fenômenos

naturais ou a necessidade de obter seus benefícios impeliu-o a

render-lhes veneração e culto.

O fetichismo e o totemismo podem ser considerados

variantes do animismo. O fetichismo refere-se à denominação que

os portugueses deram à religião dos negros da África ocidental e

que se ampliou até confundir-se com o animismo. Consiste na

veneração a objetos aos quais se atribuem poderes sobrenaturais

ou que são possuídos por um espírito. Mais que uma religião, o

totemismo seria um sistema de crenças e práticas culturais que

estabelece relação especial entre um indivíduo ou grupo de

indivíduos e um animal -- às vezes também um vegetal, um

fenômeno natural ou algum objeto material -- ao qual se rende

algum tipo de culto e respeito e em relação ao qual se estabelecem

determinadas proibições (uso como alimento, contato etc.).

Religiões superiores

À medida que o homem passou a organizar sua existência

numa base racional, a multiplicidade de poderes divinos e sobre-

humanos do primitivo animismo não conseguiu mais satisfazer a

necessidade de estabelecer uma relação coerente com as múltiplas

forças espirituais que povoavam o universo. Surgiram assim as

religiões politeístas, panteístas, deístas e monoteístas, expressões

das condições sociais e culturais de cada época e das características

dos povos em que surgiram.

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INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO FILOSÓFICO JOSÉ AUGUSTO FIORIN (ORG.) 23

As religiões politeístas afirmam a existência de vários

deuses, aos quais rendem culto. Existem duas teorias contraditórias

sobre a origem do politeísmo: para alguns, é a forma primitiva da

religião, que mais tarde teria evoluído até o monoteísmo; para

outros, ao contrário, é uma degeneração do monoteísmo primitivo.

O politeísmo reflete a experiência humana de um universo no qual

se manifestam diversas formas de poder sobre-humano; no

entanto, nas religiões politeístas ocorre com freqüência uma

hierarquia, com um deus supremo que reina e que, em geral, pode

ser a origem dos demais deuses. O problema do politeísmo seria

delimitar o que se entende como deus ou como algo sobre-humano.

Politeístas foram a religião grega e a romana.

O panteísmo é uma filosofia que, por levar a extremos as

noções de absoluto e de infinito, próprias do conceito de Deus,

chega a considerá-lo como a única realidade existente e, portanto, a

identificá-lo com o mundo. É clássica a formulação do filósofo

Baruch Spinoza, no século XVII: Deus sive natura (Deus ou

natureza). Alguns filósofos gregos e estóicos foram panteístas,

doutrina que também é a base fundamental do budismo.

Também uma corrente filosófica, o deísmo reconhece a

existência de Deus enquanto constitui um ser supremo de atributos

totalmente indeterminados. Essa doutrina funda-se na religião

natural, que nega a revelação. O que o homem conhece a respeito

de Deus não decorre apenas das deduções da própria razão

humana. Se o universo físico é regulado por leis segundo a vontade

de Deus, as relações entre Deus e o mundo moral e espiritual

devem ser similares, reguladas com a mesma precisão e, portanto,

naturais. O período do Iluminismo (séculos XVII-XVIII) proclamou o

culto à deusa razão e a revolução francesa ajudou a organizá-lo.

As religiões monoteístas professam a crença num Deus

único, transcendente -- distinto e superior ao universo -- e pessoal.

Um dos grandes problemas do monoteísmo é a explicação da

existência do mal no mundo, o que levou diversas religiões a

adotarem um sistema dualista, o maniqueísmo, fundado nos

princípios supremos do bem e do mal.

As grandes religiões monoteístas são o judaísmo, o

cristianismo -- que professa a existência de um só Deus, apesar de

reconhecer, como mistério, três pessoas divinas -- e o islamismo.

Elementos característicos dos sistemas religiosos. Os

princípios elementares comuns à maioria das religiões conhecidas

na história podem agrupar-se nos seguintes capítulos: crenças,

ritos, normas de conduta e instituições.

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INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO FILOSÓFICO JOSÉ AUGUSTO FIORIN (ORG.) 24

Toda religião pressupõe algumas crenças básicas, como a

sobrevivência depois da morte, mundo sobrenatural etc., ao menos

como fundamento dos ritos que pratica. Essas crenças podem ser

de tipo mitológico -- relatos simbólicos sobre a origem dos deuses,

do mundo ou do próprio povo; ou dogmático -- conceitos

transmitidos por revelação da divindade, que dá origem à religião

revelada e que são recolhidos nas escrituras sagradas em termos

simbólicos, mas também conceituais.

Os

conceitos fundamentais organizam-se, de modo geral, em um credo

ou profissão de fé; as deduções ou explicações de tais conceitos

constituem a teologia ou ensinamento de cada religião, que enfoca

temas sobre a divindade, suas relações com os homens e os

problemas humanos cruciais -- a morte, a moral, as relações

humanas etc. Entre as crenças destaca-se, em geral, uma visão

esperançosa sobre a salvação definitiva das calamidades presentes,

que pode ir desde a mera ausência de sofrimento até a incógnita do

nirvana ou a felicidade plena de um paraíso.

A manifestação das próprias crenças e anseios mediante

ações simbólicas é inerente à expressividade humana. Da mesma

forma, as crenças e sentimentos religiosos têm se manifestado

através dos ritos, ou ações sagradas, praticados nas diferentes

religiões. Até no budismo, contra o ensinamento de Buda,

desenvolveram-se desde o começo diversas classes de rituais. Toda

religião que seja mais do que uma filosofia gera uma série de ritos

ao ser vivida pelo povo. Existem ritos culturais em honra à

divindade, ritos funerários, ritos de bênçãos ou de consagração e

muitos outros.

Observa-se em geral, nas diversas religiões, a existência

de ministros ou sacerdotes encarregados de celebrar os principais

rituais e, em especial, o culto à divindade. Os atos mais importantes

desse culto são oferendas e sacrifícios praticados em conjunto, com

invocações e orações. Com freqüência celebram-se os ritos em

lugares e épocas considerados sagrados, especialmente dedicados à

divindade, e observados com escrupulosa exatidão através dos

tempos.

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INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO FILOSÓFICO JOSÉ AUGUSTO FIORIN (ORG.) 25

O terceiro elemento característico de toda religião é o

estabelecimento, mais ou menos coercitivo, de normas de conduta

do indivíduo ou do grupo no que se refere a Deus, a seus

semelhantes e a si mesmo. O primeiro comportamento exigido é a

conversão ou mudança para um novo modo de vida. Com relação a

Deus, destacam-se as atitudes de veneração, obediência, oração e,

em algumas religiões, o amor. Na conduta no âmbito da esfera

humana entra, em maior ou menor medida, um sistema de normas

éticas.

Quase todas as religiões cristalizam-se em algumas

instituições dogmáticas (doutrinárias) e cultuais (sacerdócio,

hierarquia). Muitas delas chegam a institucionalizar a conduta, com

a criação até mesmo de tribunais de justiça e sanções e a organizar

administrativamente as diversas comunidades de crentes e suas

propriedades. Essas instituições dão forma e coesão aos crentes

como um grupo social -- religião, povo, igreja, comunidade; a elas

somam-se outras instituições voluntárias de tipo assistencial ou de

plena dedicação religiosa, que correspondem a grupos informais

dentro do grupo institucionalizado. As instituições consideram

imprescindível a forma externa, enquanto que a fé considera o

espírito interno como essencial à religião.