17
3 KANT E HEGEL: A RACIONALIDADE MODERNA E A RELIGIÃO Sem menosprezar a importância histórica de uma das figuras centrais da filosofia moderna, Immanuel Kant (1724-1804), de- vemos reconhecer que o verdadeiro giro histórico-filosófico veri- ficou-se com Descartes. Kant realiza o giro copernicano no campo da teoria do conhecimento enquanto diz que doravante nosso co- nhecimento não se orientará mais nos objetos, mas esses devem orientar-se em nosso conhecimento (prefácio à segunda edição da Crítica da razão pura). A reviravolta kantiana caracteriza-se pela palavra transcendental. Em primeiro lugar, com esta palavra de- signa a tematização das condições a priori do conhecimento hu- mano. Neste sentido escreve na introdução à Crítica da razão pura: "Chamo transcendental a todo o conhecimento que em geral se ocupa menos dos objetos, que do nosso modo de os conhecer, enquanto este deve ser possível a priori" (p. 53). Em segundo lugar, transcendental refere-se àquilo que é desco- berto. Por isso Kant fala, p. ex., de lógica e analítica transcen- dental. Enfim, transcendental pode referir-se às conclusões das duas significações anteriores como uso transcendental etc. Assim podemos dizer que pensar transcendentalmente é indagar pelas condições de possibilidade do conhecimento de objeto determina- do no próprio sujeito deste conhecimento. Em outras palavras, indagar transcendentalmente é mostrar como o material recebido de fora, pelos sentidos, é transformado mediante a atividade do sujeito cognoscente em objeto do conhecimento. Este não é re- presentação ou reprodução do real, mas uma constituição do objeto através de diferentes elementos, ou seja, uma espécie de produção da atividade criadora do homem. Assim o ponto de partida do conhecimento humano, segundo Kant, é a razão que imprime suas

Introdução ao estudo filosófico

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Introdução ao estudo da filosofia, a partir de uma perspectiva holística.

Citation preview

Page 1: Introdução ao estudo filosófico

3

KANT E H E G E L : A R A C I O N A L I D A D E MODERNA E A RELIGIÃO

Sem menosprezar a importância histórica de uma das figuras centrais da filosofia moderna, Immanuel K a n t (1724-1804), de­vemos reconhecer que o verdadeiro giro histórico-filosófico ver i ­ficou-se com Descartes. K a n t realiza o giro copernicano no campo da teoria do conhecimento enquanto diz que doravante nosso co­nhecimento não se orientará mais nos objetos, mas esses devem orientar-se em nosso conhecimento (prefácio à segunda edição da Crítica da razão pura). A reviravolta kantiana caracteriza-se pela palavra transcendental. E m primeiro lugar, com esta palavra de­signa a tematização das condições a priori do conhecimento h u ­mano. Neste sentido escreve na introdução à Crítica da razão pura:

"Chamo transcendental a todo o conhecimento que em geral se ocupa menos dos objetos, que do nosso modo de os conhecer, enquanto este deve ser possível a priori" (p. 53).

E m segundo lugar, transcendental refere-se àquilo que é desco­berto. Por isso K a n t fala, p. ex., de lógica e analítica transcen­dental. En f im , transcendental pode referir-se às conclusões das duas significações anteriores como uso transcendental etc. Assim podemos dizer que pensar transcendentalmente é indagar pelas condições de possibilidade do conhecimento de objeto determina­do no próprio sujeito deste conhecimento. E m outras palavras, indagar transcendentalmente é mostrar como o material recebido de fora, pelos sentidos, é transformado mediante a atividade do sujeito cognoscente em objeto do conhecimento. Este não é re­presentação ou reprodução do real, mas uma constituição do objeto através de diferentes elementos, ou seja, uma espécie de produção da atividade criadora do homem. Assim o ponto de par t ida do conhecimento humano, segundo Kant , é a razão que imprime suas

Page 2: Introdução ao estudo filosófico

4 6 K A N T E H E G E L : A R A C I O N A L I D A D E M O D E R N A E A RELIGIÃO

forças puras (categorias) nos objetos para assim constituí-los. Kant parte do a priori transcendental, ou seja, pergunta pelas condições de possibilidade do conhecimento em geral . Sua obra é essen­cialmente crítica, pois questiona a perspectiva objetivista. N a questão da existência de Deus tenta u m caminho entre a af irma­ção dogmática e a demonstração racional concludente.

N a lógica a f irma que a verdadeira filosofia consiste em res­ponder a quatro perguntas: a) que posso saber? b) que devo fazer? c) que posso esperar? d) que é o homem? Segundo ele, a metafísica, a moral , a religião e a antropologia ocupam-se dessas perguntas. A última resume as três primeiras.

3.1. K a n t : razão crítica e religião

Immanuel K a n t interessou-se, desde a juventude, de maneira especial, por duas questões. De u m lado, o tema moral e religioso, profundamente vivido desde a infância e, de outro, a ciência físi-co-matemática como a explicara Newton e havia estudado na universidade. Diz, na Crítica da razão pura, que Deus, liberdade e imortalidade sempre foram "objetivos supremos de nossa exis­tência" e, por isso, são problemas importantes para sua filosofia. No prefácio à segunda edição da Crítica da razão pura diz:

"Só a crítica pode cortar pela raiz o materialismo, o fatalismo, o ateísmo, a incredulidade dos espíritos fortes, o fanatismo e a superstição, que podem tornar nocivos a todos e, por último, também o idealismo e o ce­ticismo que são sobretudo perigosos para as escolas e dificilmente se propagam no público" (p. 30). «

3.1.1. A crítica da razão pura

A filosofia de Kant , como a de Descartes, parte de uma teoria do conhecimento. E, antes de mais nada, uma teoria do conheci­mento. Segundo Kant , o conhecimento é constituído por juízos. Do ponto de vista lógico, os juízos podem ser divididos em analíticos e sintéticos. Os juízos analíticos são aqueles em que o predicado está contido no conceito do sujeito. Por exemplo: o triângulo t em três ângulos. Tal juízo é analítico porque se tomo mentalmente o

K A N T E H E G E L : A R A C I O N A L I D A D E M O D E R N A E A RELIGIÃO 47

conceito de triângulo e o analiso, logicamente, nele encontro i m ­plícita a idéia de três ângulos. Tais juízos são explicativos: "Os juízos analíticos nada dizem no predicado que não esteja pensado realmente no conceito do sujeito, embora não de modo claro e com consciência uniforme" (Prolegômenos para toda a metafísica fu­tura, p. 25).

Juízos sintéticos são aqueles em que o conceito do predicado não está contido no conceito do sujeito. Por exemplo: o calor di lata os corpos. Os juízos sintéticos consistem em u n i r sinteticamente elementos heterogêneos no sujeito e no predicado. Trata-se de juízos extensivos no sentido de aumentarem o conhecimento dado.

Os juízos analíticos fundamentam-se no princípio de ident i ­dade e de contradição:

"Todos os juízos analíticos baseiam-se inteiramente no princípio de contradição e são, por natureza, conhecimentos a priori, quer os con­ceitos que lhes servem de matéria sejam ou não empíricos. Pois, assim como o predicado de um juízo analítico afirmativo está já pensado ante­riormente no conceito do sujeito, não pode ser negado por ele sem con­tradição, assim também o seu contrário, num juízo analítico, mas ne­gativo, será negado necessariamente pelo sujeito e, sem dúvida, em conseqüência do princípio de contradição" (Prolegômenos, p. 25).

Nos juízos analíticos repete-se, no predicado, aquilo que já está implícito no sujeito. São juízos de identidade. Pode chamar-se t a l juízo analítico de tautologia. Enquanto os juízos analíticos são verdadeiros, universais e necessários, o contrário t em que ser necessariamente falso. Como não têm origem na experiência, são a priori ou independentes da experiência e devem ser pensados como anteriores. Os juízos sintéticos baseiam-se na experiência ou percepção sensível. A experiência realiza-se aqui e agora. A validez desses juízos limita-se à experiência sensível, que é singular. São, por isso, juízos particulares, pois sua verdade está restringida ao lugar e ao tempo e são contingentes, pois seu contrário não é i m ­possível. Porque oriundos da experiência também podem ser chamados juízos a posteriori.

Ora, com juízos analíticos não se pode constituir uma ciência, pois as tautologias nada acrescentam ao nosso saber. Da mesma forma, juízos sintéticos a posteriori não constituem o conheci­mento científico, pois são juízos particulares e contingentes. K a n t

Page 3: Introdução ao estudo filosófico

48 K A N T E H E G E L : A R A C I O N A L I D A D E M O D E R N A E A RELIGIÃO

postula, então, juízos sintéticos a priori que sejam universais e necessários e que acrescentam algo de novo aó conhecimento. A tais juízos chega-se pela intuição evidente, u m a intuição não sensível. N a matemática e na física encontramos tais juízos. Por exemplo: a l inha reta é a mais curta entre dois pontos. Nesse juízo os conceitos de curto e magnitude não estão incluídos no conceito de l inha reta, nem vêm da experiência. Também na física encon­tramos juízos sintéticos a priori: " E m todo o movimento que se transmite de u m corpo a outro, a ação é igual à reação".

E m que se fundamentam os juízos sintéticos a priori na ma­temática? Fundam-se nas formas de intuição: espaço e tempo. Espaço e tempo são formas puras a priori, não conceitos de coisas reais, mas intuições. Assim espaço e tempo fundam a possibilidade de juízos sintéticos. Espaço e tempo independem da experiência sensível. São intuição p u r a , forma de apreensão, ou seja, são condição de possibilidade do conhecimento das coisas, condição transcendental para essas serem objetos do conhecimento. Para conhecer, inserimos, nos objetos reais, os caracteres do espaço e do tempo. Projetamos neles, a priori, o caráter de espaciais, por exemplo, na geometria. Da mesma maneira , na aritmética, o tempo é u m a condição de possibilidade dos juízos sintéticos a pr ior i . Para somar, div idir , subtrair e tc , eu preciso i n t u i r o tem­po a pr ior i . Espaço e tempo são, pois, formas da sensibilidade, ou seja, da faculdade de ter percepções sensíveis. O espaço é a forma da experiência ou das percepções externas; o tempo é a forma das vivências ou percepções internas. Desse problema K a n t t r a t a na pr imeira parte da Crítica da razão pura sob o título de estética transcendental, entendendo por estética a teoria da percepção, teoria da faculdade de ter percepções sensíveis.

N a segunda parte da Crítica da razão pura t r a t a de analítica transcendental onde mostra como são possíveis juízos sintéticos a priori na física. Mostra que aí as categorias são as condições da possibilidade dos juízos sintéticos a priori. Como? Conclui esta parte:

"A analítica transcendental alcançou, pois, o importante resultado de mostrar que o entendimento nunca pode a priori conceder mais que a antecipação da forma de uma experiência possível em geral e que, não podendo ser objeto da experiência o que não é fenômeno, o entendimen-

K A N T E H E G E L : A R A C I O N A L I D A D E M O D E R N A E A RELIGIÃO 49

to nunca pode ultrapassar os limites da sensibilidade, no interior dos quais unicamente nos podem ser dados objetos. As suas proposições fundamentais são apenas princípios da exposição dos fenômenos e o or­gulhoso nome de ontologia, que se arroga a pretensão de oferecer, em doutrina sistemática, conhecimentos sintéticos a priori das coisas em si (por exemplo, o princípio da causalidade) tem de ser substituído pela mais modesta denominação de simples analítica do entendimento puro" (p. 263-64).

E m outras palavras, a coisa em si , o númeno, escapa à possi­bilidade do conhecimento. Só podemos conhecer os fenômenos.

K a n t tentara responder a três perguntar na Crítica da razão pura: a) Como são possíveis os juízos sintéticos a priori na mate­mática? b) Como são possíveis os juízos sintéticos a priori na fí­sica? c) São possíveis os juízos sintéticos a priori na metafísica? Nas duas primeiras partes responde as duas primeiras perguntas. N a dialética transcendental (terceira parte) tenta responder à terceira.

Segundo a metafísica tradicional, a razão busca três conheci­mentos fundamentais: a) a alma (síntese das vivências subjetivas); b) o universo (síntese das vivências objetivas) e c) Deus (síntese f ina l e suprema). K a n t constata que nenhum desses objetos pode ser conhecido pela razão pura, pois todos eles estão além da ex­periência possível, de acordo com as condições acima expostas. Por isso K a n t af irma que os juízos sintéticos a priori não são possí­veis na metafísica. Portanto, a metafísica como ciência é impos­sível. Nos Prolegômenos af irma simplesmente:

"Se existisse realmente uma metafísica que pudesse afirmar-se como ciência, poder-se-ia dizer: aqui está a metafísica, deveis aprendê-la e ela convencer-se-á irresistível e invariavelmente de sua verdade" (p. 31).

Segundo K a n t , a metafísica quer conhecer o incognoscível. Concluirá K a n t que, então, é simplesmente impossível falar de

realidades metafísicas como Deus e alma? Absolutamente não. Para K a n t existe não apenas a ciência, mas também a consciência moral, não só a razão p u r a , mas também a razão prática. A metafísica é impossível como conhecimento teorético ou espe­culativo. Mas pode haver outros caminhos de acesso aos objetos da metafísica.

Page 4: Introdução ao estudo filosófico

60 K A N T E H E G E L : A R A C I O N A L I D A D E M O D E R N A E A RELIGIÃO

Kant desenvolveu sua doutrina sobre Deus no confronto com Leibniz e Wolff, ainda no período pré-crítico. Nesse período rejeita o argumento cartesiano fundado no conceito de universalidade da realidade mediante a distinção tradicional entre existência pen­sada e existência real . Mais tarde, ainda no período pré-crítíco, refuta mais uma vez o argumento cartesiano: a existência não é predicado, nem determinação de alguma coisa, mas é a posição absoluta de algo. Distingue três elementos: a) o passo desde u m existente que experimentamos até uma coisa independente; b) esta última mostra-se simplesmente como necessária; c) esse necessário identifica-se com o infinitamente perfeito. K a n t considera que não se prova o passo ou trânsito de uma causa independente até a necessidade da mesma, mas apenas sua possibilidade.

No período crítico (depois de 1770), realiza mudança em sua concepção. Aquilo que considerava como fundamento da possibi­lidade real converte-se em ideal transcendental puramente sub­jetivo, que é a condição para compreendermos a possibilidade de coisas l imitadas. N a Crítica da razão pura diz: "Só há três for­mas possíveis de p r o v a r a existência de Deus pe la razão especulativa", ou seja, a) a prova ontológica (da idéia do Ser perfeitíssimo deduz-se analiticamente a existência); b) a prova cosmológica (da contingência do mundo infere a existência do Ser necessário); c) a prova físico-teleológica (da ordem e da harmonia existentes no universo infere a existência de Deus como mente ordenadora). Para K a n t , as duas últimas pressupõem a prova ontológica, isto é, a passagem da idéia do Ser necessário à sua existência. Examina as três e mostra que não são concludentes.

K a n t diz que o argumento ontológico considera a propqsição "Deus existe" como analítica, ou seja, admite que o predicado da existência esteja contido na essência do sujeito. Observa:

"Já tereis cometido uma contradição, quando no conceito de uma coisa a que vós desejásseis pensar unicamente na sua possibilidade, teríeis in ­troduzido, seja mesmo sob nome oculto, o conceito de sua existência".

No uso lógico, ser não é predicado real, mas cópula de u m juízo. Assim dizer que Deus é não é af irmar u m predicado novo do con­ceito de Deus e, por conseqüência, "o real não contém nada além do simples possível". No caso do ser perfeitíssimo ou Deus, a

K A N T E H E G E L : A R A C I O N A L I D A D E M O D E R N A E A RELIGIÃO 61

existência não pode ser acrescida sinteticamente, porque de Deus não há conteúdo sensível, pois está além da experiência. Como a experiência é o l imi te do conhecimento humano, a razão pura não pode demonstrar a existência de Deus.

O argumento cosmológico, que parte da contingência do mundo para a necessidade do ser supremo, segundo Kant , deixa de provar dois elementos: a) Da experiência do ser contingente conclui-se a necessidade do ser necessário como causa. Ora, esta passagem é ilegítima, pois o princípio de conexão causai só t em validade e sentido no mundo dos fenômenos, ou seja, no mundo da experiência empírica, b) Além disso, caberia provar que esse necessário é o ser perfeitíssimo e realíssimo ou Deus. Se o conceito de Deus implica t a l necessidade, dele infere-se a existência do Ser supremo. Ora, essa prova baseia-se na prova ontológica e não na experiência. Parte do empírico para concluir fora da experiência, querendo provar algo fora das premissas. Com isso nada prova.

O argumento teleológico ou da finalidade, embora digno de respeito, também é falaz. Segundo K a n t , passa-se da ordem do mundo até seu ordenador. Mas este argumento também carece de valor objetivo, de modo que as provas da existência de Deus re­dundam em idéia ou ilusão transcendental.

Para K a n t , é impossível demonstrar racionalmente a exis­tência de Deus. Somos incapazes de juízos científicos sobre Deus porque ele não ocorre no espaço e no tempo. Juízos científicos devem dizer uma verdade que é, ao mesmo tempo, necessária (a priori) e nova (sintética), ou seja, "juízos sintéticos a p r i o r i que, embora não fundados na experiência sensível (a priori), contudo ampl iam nosso conhecimento (sinteticamente) e não apenas ex­plicam (analiticamente)". Segundo Kant , apenas são possíveis na matemática e na ciência natura l e não na metafísica tradicional, que é apenas metafísica das aparências.

Negando as provas da existência de Deus, K a n t a f i rma que Deus não existe?

Absolutamente não. K a n t não quer firmar uma posição de agnóstico ou de ateu. A crítica de K a n t não significa resignação da razão, e s im a convicção ético-religiosa de que devem ser res­peitados os l imi tes da razão. Ass im a distinção das provas da existência de Deus não destrói a fé em Deus nem funda o ateís-mo. Kant af irma que a razão humana tem a tendência natura l de

Page 5: Introdução ao estudo filosófico

62 K A N T E H E G E L : A R A C I O N A L I D A D E M O D E R N A E A RELIGIÃO

ultrapassar esses l imites. E m outras palavras, af irma uma ne­cessidade metafísica arraigada no ser do próprio homem. Nesta perspectiva, a idéia de Deus permanece como ideal, como concei­to teórico necessário e l imite . Mas como pode corresponder a esta idéia puramente reguladora de Deus uma realidade? K a n t res­ponde que pela razão prática, ou seja, não o sei pela ciência, mas pela moral . Pela razão pura conheço o que é, pela razão prática o que deve ser. Diz que moralmente é necessário aceitar a existência de Deus. Assim o que não se pode provar pela razão pura torna-se u m postulado da razão prática. Depois de el iminar Deus da ordem do pensamento e da realidade, postula a existência de u m Deus justo que fundamente a relação entre virtude e felicidade.

3.1.2. A crítica da razão prática

Se na Crítica da razão pura K a n t chega à conclusão de que a metafísica é impossível como ciência teorética, conclui, outrossim, que o conhecimento científico é apenas uma atividade ao lado de outras como é o viver, o trabalhar, o produzir etc. Assim pode haver outro caminho de acesso aos objetos metafísicos. Se a razão teorética não chega aos mesmos, também não os poderá negar.

K a n t pergunta: existem outros caminhos e quais são? Entre as muitas atividades do homem existe uma forma que

se chama de consciência moral. Essa é u m fato tão indiscutível como o próprio conhecimento e contém certo número de princípi­os que orientam a vida dos homens. Nesse conjunto de princípios que constituem a consciência moral , encontra a base para apre­ender os objetos metafísicos. Com Aristóteles, K a n t chama a consciência moral e seus princípios de razão prática para' mos­t r a r que, na consciência m o r a l , a tua algo que não é a razão especulativa, mas são princípios racionais. Trata-se de princípios aplicados à ação.

Através da análise desses princípios da consciência mora l , Kant chega aos qualificativos morais: bom, mau, moral etc. Esses qualificativos, a rigor, não se podem predicar das coisas, mas só da pessoa humana. Por que só se podem predicar esses qual i f i ­cativos do homem? Porque o homem prat ica atos e neles pode distinguir-se o que faz efetivamente daquilo que quer fazer. U m a vez feita essa distinção, vemos que os predicados morais originam-

K A N T E H E G E L : A R A C I O N A L I D A D E M O D E R N A E A RELIGIÃO 53

se daquilo que o homem quer fazer. E m outras palavras, o que pode ser realmente bom ou mau é a vontade humana.

E m que consiste essa vontade? K a n t diz que todo o ato voluntário se apresenta à consciência

sob a forma de mandamento ou imperativo: tem que fazer isto, isto deve ser feito. Tais imperativos podem ser hipotéticos ou categó­ricos. Os primeiros são condicionais: "Se quiseres viver , deves alimentar-te" . Os segundos são incondicionais: "não mates o se­melhante". A moralidade corresponde aos imperativos categóricos, pois se não mato por causa do medo das conseqüências de parar numa cadeia, minha conduta, na consciência, não é moral ; pois a vontade íntima não age de maneira moral . Na interioridade do sujeito, o imperativo tornou-se imperativo categórico. E m síntese, uma ação é mora l , para K a n t , quando feita simplesmente por respeito ao dever, independentemente de seu conteúdo empírico. Esta é a le i moral universal: o imperativo categórico.

E m que se fundamenta esta le i universal e, de outro lado, a vontade pura?

K a n t distingue entre autonomia e heteronomia da vontade. A vontade autônoma é a que dá a s i mesma sua própria l e i ; heterônoma é a vontade quando recebe a le i passivamente de algo ou de alguém. K a n t propõe uma moral autônoma, isto é, a lei moral originada na vontade. Tal l e i só pode ser formal, ou seja, sem con­teúdo empírico, nem metafísico. Trata-se de ordem da razão.

A p a r t i r desta autonomia da vontade encontra o postulado da liberdade. Sem ser l ivre, a vontade não poderia ser autônoma, nem ser moralmente meritória, boa ou má. Se a consciência moral é fato tão indiscutível como a ciência, desse fato pode-se infer ir a l iber­dade como condição de possibilidade da própria consciência moral , que é ato de valorização, não de conhecimento de coisas em si mesmas. Entramos no mundo das coisas supra-sensíveis através de intuições de caráter moral . Assim o nosso eu não se põe a si mesmo apenas como sujeito cognoscente mas, ao mesmo tempo, como consciência mora l n u m a at i tude valoradora. O pr imeiro postulado metafísico é, pois, a liberdade.

O segundo postulado da razão prática é a imortalidade. Se o mundo inteligível não está sujeito às formas do espaço e do tempo nem das categorias, a vontade pura justif ica a crença na imorta­lidade da alma.

Page 6: Introdução ao estudo filosófico

54 K A N T E H E G E L : A R A C I O N A L I D A D E M O D E R N A E A RELIGIÃO

Como, no mundo da consciência moral , não há diferença entre o ideal e o real, entre o que efetivamente sou e o que queria ser, ao contrário do mundo fenomênico, no qual os valores morais —justiça, bondade etc. — não estão realizados, é necessário que além deste mundo haja u m mundo metafísico no qual o que é seja idêntico com o que deve ser. Este é u m postulado que requer uma unidade s in­tética superior entre esse ser e o dever ser. A essa síntese unitária Kant chama Deus. Além do mundo fenomênico deve haver, pois, u m ente no qual nossa aspiração se realize. Ta l ente é Deus. En f im , a primazia da razão prática sobre a teorética permite-nos o acesso à verdade metafísica. Enquanto a razão teorética nos permite co­nhecer este mundo real fenomênico, a razão prática nos conduz até Deus, ao reino das almas livres e imortais .

Como valorizar a at itude de K a n t em relação às provas da existência de Deus?

A teoria do conhecimento de Kant só em parte foi aceita. Não se pode aceitar que toda a determinação do mundo depende só da subjetividade humana, das condições transcendentais. Por outro lado, também não existe conhecimento puramente objetivo. O conhecimento sempre está condicionado pelo sujeito.

N a questão da existência de Deus, K a n t apela à razão prática, que se manifesta na ação moral do homem. Compreende o homem não apenas como ser, mas como dever ser. Rejeita as provas p u ­ramente racionais da existência de Deus. Fala da existência de Deus como postulado da razão prática. Mostra que, pela razão crítica ou pura, não se demonstra a existência de Deus nem sua não-existência. Deus é, para Kant , a condição (transcendental) de possibilidade da moral e da felicidade.

A pergunta a ser feita a K a n t é se o imperativo categórico do dever moral , que postula o "sumo bem" ou a existência de Deus, no fundo, não é u m resto da tradicional fé cristã na existência de Deus? Não poderia igualmente o imperativo categórico, " t u deves", conduzir "para além do bem e do m a l " de Nietzsche ou para o absurdo de Camus? Não se deveria levar mais a sério a alternativa do ni i l ismo de valores como possibilidade? Por que o bem tem preferência sobre o mal?

Se, com Kant , admitimos que todos os homens desejam a fe l i ­cidade, contudo não podemos pressupor que t a l desejo se realiza­rá. Donde sei que há felicidade? Não pode o anseio do homem por

K A N T E H E G E L : A R A C I O N A L I D A D E M O D E R N A E A RELIGIÃO 5 5

felicidade desembocar no vazio? Não se deve pressupor Deus para dar sentido à vida? K a n t compreende Deus como condição de pos­sibilidade de autonomia moral do homem. Mas pode separar-se tanto a razão pura da razão prática! Ou é a razão pura totalmen­te neutra, sem pressupostos e interesses? E a razão prática sem conhecimento teórico? É irrelevante a confiança na realidade como realidade? Ou é a razão prática complemento da razão pura?

A razão prática, segundo Kant , depende apenas do imperat i ­vo categórico ou incondicional. Tal imperativo não é ordem exterior que massacre a liberdade, mas algo que brota da le i moral interior que postula a liberdade do homem. Assim o primeiro postulado da razão prática, que garante a moralidade, é a liberdade humana. O segundo postulado é a imortalidade da alma. O terceiro postu­lado é a existência de Deus, o bem supremo. Esses três postulados são exigências necessárias, embora não demonstráveis. Neles baseia-se toda a ética de Kant .

Sendo o caminho da razão pura insuficiente, K a n t opta pela prova moral da existência de Deus. Estuda "a existência de Deus como u m postulado da razão prática". O suporte, para esta prova, está no bem supremo, que reúne em si moralidade e felicidade e que constitui o objeto adequado da lei moral . Formalmente o nú­cleo desta prova está, como vimos, no imperativo: "Nós devemos comentar o bem supremo (qualquer seja)". Assim, de fato, a ar­gumentação de K a n t se funda na capacidade de sentido da exis­tência humana e da realidade em geral, ou seja, a moralidade está em concordância com a realidade. A razão não tolera alguma se­paração definitiva entre virtude e felicidade, porque o valor moral enquanto valor absoluto e a dignidade desejada são materialmente idênticos. Confirma esta interpretação do postulado de Deus pela nova concepção na crítica do juízo (§§ 86-91). A visão teleológica da realidade é t a l que a subordinação da natureza à realização do bem supremo conduz a uma teologia moral. A palavra de Deus não é revelação divina, mas o imperativo moral dentro de nós.

Qual o valor do postulado kantiano e do conhecimento com ele adquirido?

O fundamento de nossa fé não depende das provas da exis­tência de Deus, nem coincide com o fundamento da demonstração. Este último é teórico-especulativo e o pr imeiro é ético-prático. Neste sentido K a n t diz: "Tive, pois, de supr imir o saber (de Deus)

Page 7: Introdução ao estudo filosófico

56 K A N T E H E G E L : A R A C I O N A L I D A D E M O D E R N A E A RELIGIÃO

para obter lugar para a fé" (Prefácio à 2 S ed. da Crítica da razão pura, p. 27). O argumento de K a n t , baseado na necessidade da razão prática, conduz a " u m conhecimento de Deus, mas só numa relação prática". K a n t estabelece uma metafísica de fundamento prático. Entretanto , a realidade dessas idéias metafísicas per­manece problemática para a razão pura.

Se o problema do sentido úitimo da realidade só pode receber resposta no campo ético, justifica-se o passo seguinte de K a n t para a religião: "Assim a le i moral conduz, através do conceito de bem supremo, à religião; isto é, ao conhecimento de todos os deveres co­mo mandamentos divinos". O conceito genuíno de Deus conduz à moral. Essa perspectiva é a chave para seu importante escrito sobre a religião dentro dos limites da razão. Esta obra nasceu no contex­to imediato do i luminismo alemão. Pressupõe os princípios r e l i ­giosos já obtidos à manifestação histórica do cristianismo da época.

De u m lado, a crítica da razão prática honra a consciência do homem. Mas por que Kant nega à razão pura o que concede à razão prática? Trata-se de dois diferentes tipos de conhecimento? Como se relacionam entre si? O que justi f ica o privilégio outorgado à razão prática de at ingir a realidade, negando-o à razão pura? Ba­seado em que, a t r i b u i maior evidência à ordem prática? Como provar que o imperativo categórico exige o postulado da existência de Deus? Por que as provas morais valem mais que as especu­lativas? K a n t diz que Deus existe porque sem ele a virtude h u ­mana não poderia ser definitivamente feliz. Mas se o homem pode existir sem Deus, por que não pode ser feliz sem ele? E m outras palavras, o que permite e just i f ica infer ir , na razão prática, da simples possibilidade de sermos felizes, o que não é permitido a part i r da contingência do universo? Se é forte o aspecto destrutivo da crítica kant iana , certamente não o é, da mesma maneira, o aspecto construtivo. Não seria o ateísmo uma conseqüência lógica possível? Enf im, por que K a n t continua sendo cristão?

Podemos agora perguntar: como seria a religião kantiana na prática?

3.1.3. A religião dentro dos limites da razão

N a obra A religião dentro dos limites da razão (1793) t r a t a de quatro aspectos: na pr imeira parte t ra ta do m a l radical (pecado

K A N T E H E G E L : A R A C I O N A L I D A D E M O D E R N A E A RELIGIÃO Í.7

de origem); na segunda, vida e obra de Cristo, sem nunca men­cionar o nome de Jesus Cristo; na terceira, da Igreja invisível; na quarta, da Igreja como instituição. E m lugar do Jesus histórico põe a humanidade como ser moral ; converte a Igreja em ser ético co­m u m que deve congregar todos os homens numa "república sob leis virtuosas". Está clara a tendência a dissolver a religião na mora­lidade, tentat iva que culmina em idéias como "Deus não é u m ser fora de m i m . . . Deus é a razão moral prática". A religião ident i f i ­ca-se com a consciência, sem necessidade do conceito de Deus.

Kant quer interpretar a "religião da razão pura" e a par t i r dela a "religião revelada". Ambas são como dois círculos concêntricos, sendo o inter ior e mais restrito o da religião da razão. Tenta re­duzir a religião revelada a seus conceitos morais para conciliá-la com a da razão, para conciliar razão e Escritura, de maneira que, seguindo a pr imeira , se vá de encontro à revelada.

A concepção moralista de religião evidencia-se no próprio es­quema da obra, pois a religião aparece como símbolo da l u t a en­tre o bem e o ma l como dois princípios no homem. N a pr imeira parte faz longas elucubrações do mal na natureza e do mal radical. Bem e m a l pertencem não à natureza, e s im ao ato l ivre e res­ponsável do homem. N a natureza, como princípio subjetivo da liberdade, funda-se a possibilidade do mal e da inclinação a ele. Confronta-se com a disposição para o bem.

N a segunda parte do l ivro insere a pessoa de Jesus Cristo (sem nomeá-lo), os dogmas cristãos da encarnação e redenção, no con­texto dialético da l u t a entre o bem e o mal . O princípio bom tem o direito de dominar sobre o homem. Cristo é o ideal personificado do princípio bom, no qual se cumpriu a perfeição moral . Todos os homens devem elevar-se a este ideal.

N a terceira parte diz que o homem deve proteger sua liberdade e tornar possível o t r iunfo do bem, mediante uma sociedade go­vernada pelas leis da virtude. Esta será sociedade ético-civil ou república moral . T a l república moral é uma Igreja que, enquanto não é objeto de experiência possível, se chama Igreja invisível. Deve ser universal, fundada na fé religiosa pura. Tudo o que Deus exige dos homens é conduta moralmente boa. Como os homens são impotentes para conhecer as coisas não sensíveis, tendem a con­siderar a religião como culto, serviço a Deus, baseado em pres­crições externas e leis. Organizam a Igreja visível que só se pode

Page 8: Introdução ao estudo filosófico

58 K A N T E H E G E L : A R A C I O N A L I D A D E M O D E R N A E A RELIGIÃO

fundar numa revelação t ransmit ida pela Tradição e Escr i tura . Atribui-se, então, autoridade divina a esta Igreja organizada. A fé religiosa pura é inteiramente fundada na razão. Só esta se pode reconhecer como necessária e caracteriza a verdadeira Igreja. A fé numa religião de culto, ao contrário, é a fé de escravo e merce­nário, pois o culto em si não tem valor moral , mas é imposto pelo medo e pela esperança. As religiões reveladas, como o cristianis­mo, apenas são meio para introduzir uma religião moral pura.

Na quarta parte, Kant fala do verdadeiro e falso culto, religião e sacerdócio. Para ele, a única verdadeira religião é a moral . A revelada é imposta e servil. A verdadeira religião apenas encerra leis ou princípios práticos de necessidade absoluta. Seu único culto é cumprir o dever moral como mandamento de Deus. Fora da boa conduta, para Kant , tudo o que os homens crêem poder praticar para se tornarem agradáveis a Deus é pura ilusão religiosa e f a l ­so culto.

De maneira análoga, Kant vê o sacerdócio, consagrado ao falso culto do princípio bom, ligado ao despotismo espir itual sobre os fiéis. Define:

"O sacerdócio é a constituição de uma Igreja em que reina o culto fetichis-ta, isto é, onde, em lugar de princípios morais, são leis estatutárias, regras de fé e observância o que constitui a base e essência do culto" (p. 176).

Na comunidade ética da Igreja invisível todos são ministros ou servidores que t raba lham livremente. N a Igreja de culto falso, porém, os doutores convertem-se em oficiais ou funcionários, dignitários eclesiásticos que transformam o ministério em impé­rio. Esses pastores apresentam-se a si e a tudo como le i divina, sacrificando a liberdade própria da religião natura l . A este culto falso chama de fetichismo.

Com clareza, K a n t erige o princípio da consciência como fio condutor no domínio da fé. Segundo ele, há três formas de fé i l u ­sória quando ultrapassamos os l imites da razão: a) a crença nos milagres como superação das leis da experiência empírica; b) a ilusão pela qual se admitem realidades além dos conceitos racio­nais ou a crença nos mistérios; c) a ilusão que nos leva a empregar meios naturais para produzir o efeito de provocar a influência sobrenatural de Deus sobre nossa moralidade ou a crença nos meios da graça.

K A N T E H E G E L : A R A C I O N A L I D A D E M O D E R N A E A RELIGIÃO 59

K a n t assume atitude negativa em relação à oração como culto formal e interior de Deus. E a simples declaração de nossos desejos a alguém que não precisa dela. Julga, todavia, conveniente alguma freqüência às Igrejas para estreitar a comunhão dos fiéis. Mas a fé supersticiosa logo introduz cerimônias idolátricas de adoração de Deus. Apesar disso ju lga também conveniente a consagração solene de ingresso na comunidade dos fiéis que, no cristianismo, é o batismo. Mas fazer dele u m meio de graça é superstição. Coi­sa semelhante diz da Eucaristia ou ceia.

A questão da essência do cristianismo esvazia-se em simples idéia humana, n u m cristianismo sem Cristo e sem Igreja, sem história da salvação. A perspectiva puramente moral da religião está na conhecida definição: "religião é (do ponto de vista subjetivo) o conhecimento de todos os nossos deveres como mandamentos". Assim mesmo, Kant , já com 74 anos de idade, na polêmica entre as faculdades de filosofia e teologia, escreve: "E bom que não sa­bemos, mas cremos que existe u m Deus".

3.1,4. Crítica à crítica de Kant

Sob a aparência de crítica moderada, Kant faz crítica demo­l idora da religião. Tem-se a impressão de que está totalmente alheio à fé cristã. Reduziu a religião simplesmente à moral autô­noma e racionalista. Mas a crítica kantiana da religião também é vulnerável sob alguns aspectos fundamentais. O que permite ao homem a d m i t i r a realidade do eu, da l iberdade humana e da existência de Deus? Se K a n t des t ru iu a lógica das provas da existência de Deus, certamente não el iminou seu conteúdo religio­so. Deus não pode ser conhecido como simples objeto. Não se pode demonstrar sua existência em simples silogismo lógico. Mas com isso não está dito que admi t i r a existência de Deus seja ato i r ­responsável perante a razão, que esta só pode a d m i t i r o que é imediatamente verificável através da experiência? Poder-se-á perguntar: t em sentido a existência de Deus? Até quem não crê, pode compreender a proposição "Deus existe" como se pode com­preender "uma montanha é de ouro". E Deus uma realidade? Desde que se admite que a realidade não se reduz ao mundo empírico e nele se admite uma dimensão de profundidade, não se pode negar simplesmente a existência de Deus. Podemos admit i r

Page 9: Introdução ao estudo filosófico

60 K A N T E H E G E L : A R A C I O N A L I D A D E M O D E R N A E A RELIGIÃO

uma confiança (fé) original no homem todo que, na atitude práti­ca, mas racionalmente plausível, me permite admit i r a realidade metafísica.

Concordamos com Manfredo Araújo de Oliveira quando no seu excelente estudo sobre Filosofia transcendental e religião resume a contribuição de Kant para o problema de Deus:

"a) A reviravolta transcendental, que significou a tematização da me­diação subjetiva no conhecimento humano. Kant libertou, apesar de sua parcialidade, o pensamento humano da ingenuidade objetivista de um pensamento puramente voltado para o objeto, esquecido de que o objeto só é objeto para um sujeito e que, portanto, a subjetividade é um mo­mento essencial no processo do conhecimento; b) o resultado de sua fi­losofia teórica, isto é, a impossibilidade de um conhecimento de Deus, o que vai abalar uma das convicções fundamentais de todo o pensamento ocidental até então e tornar possíveis posições novas posteriores a res­peito do problema de Deus; c) o tratamento em filosofia da problemática de Deus a partir do problema da liberdade, que também já antecipa, de certo modo, a questão fundamental, que se vai pôr, posteriormente, com clareza cada vez maior, da relação do homem enquanto ser livre (au­tônomo) e Deus. De certa maneira, Kant antecipa o cerne da questão" (p. 16).

E m síntese, K a n t p r i v a a religião de todo o fundamento especulativo, instalando-a na esfera moral . Ele a reduz ao metro das normas éticas da razão prática. Fora disso tudo é superstição e imposição eclesiástica (dogmas, ritos, hierarquia etc) . Resta to ­davia a pergunta: não é a própria posição kant iana uma nova posição dogmática sob aparência crítica? Apesar disso, o pensa­mento crítico de Kant foi uma oportunidade, infelizmente perdi ­da, para o cristianismo entrar no mundo da modernidade.

3.2. Hegel : D e u s como fundamento d a religião

N a religião, o homem sabe-se determinado por Deus (deuses) e a ele relacionado. Por isso Deus é o princípio a par t i r do qual se constitui religião. Ora, isso pressupõe que, de alguma forma, Deus seja acessível ao homem. Entretanto esse acesso não é evidente já pelo simples fato de muitos homens de nosso tempo não crerem nele.

K A N T E H E G E L : A R A C I O N A L I D A D E M O D E R N A E A RELIGIÃO C l

Na história da filosofia, grandes pensadores tentaram mostrar o acesso a Deus pela vida racional. Tais tentativas foram chama­das erroneamente de provas da existência de Deus, pois certa­mente não se t r a t a de provas no sentido dado a este termo pelas ciências modernas. As chamadas provas da existência de Deus, depois de Kant , parecem definitivamente refutadas. Surge, então, a pergunta : como pode ou deve o homem pensar Deus? Essa questão adquir iu conotação crítica desde Descartes e Pascal.

A questão de Deus não é apenas confronto com a ciência mo­derna, mas também com a filosofia moderna. Nos tempos mo­dernos, a questão chegou ao auge no sistema filosófico de Georg Friedrich Hegel (1770-1831), u m dos maiores gênios da filosofia de todos os tempos. E m A gaia ciência, Nietzsche disse que "sem Hegel não haveria D a r w i n " . Sem Hegel também não haveria a crítica da religião de Feuerbach e Marx , Ernst Bloch, R. Garaudy, G. Lukács e muitos outros.

Hegel nasce e vive no meio do i luminismo. Sua religiosidade jovem alimenta-se do espírito i l u m i n i s t a da época. Conduz o idealismo alemão ao ápice da sistematização. Hegel, todavia, é atual não só por seus seguidores, mas também através de seus inimigos, como Kierkegaard e Marx . Roger Garaudy, em sua obra Para conhecer o pensamento de Hegel, escreve:

"É sobretudo por isso que o pensamento hegeliano foi particularmente destruidor para a religião revelada: se é falso dizer que Hegel era ateu, é incontestável que a esquerda hegeliana, depois Feuerbach e Marx, encontrou nele os princípios metodológicos de uma crítica religiosa que conduzia necessariamente ao ateísmo" (p. 192).

3.2.1. O jovem Hegel: teólogo

Hegel é, sem dúvida, o pensador mais difícil entre os difíceis pensadores alemães. Cedo percebeu os l imites do i luminismo. Os intelectuais alemães, em sua época, haviam aderido com entu ­siasmo à revolução francesa de 1789. Entretanto , com a cruel d i ­t a d u r a revolucionária dos jacobinos (1792-93), começaram as restrições. Os alemães preferiam uma evolução ou "revolução do espírito" à revolução político-social. Ao contrário dos franceses, que excluíram a religião, para os alemães, a religião exercia papel

Page 10: Introdução ao estudo filosófico

89 K A N T E H E G E L : A R A C I O N A L I D A D E M O D E R N A E A RELIGIÃO

importante. Hegel preferiu a atitude crítica em relação à religião. Não queria terminar com a religião, mas renová-la na sociedade moderna como autêntica religião do povo, fundando-a na razão, sem eliminar fantasia e sentidos. A posição crítica do jovem Hegel é a seguinte: não quer uma tradição acrítica, mas também não quer uma razão sem tradição. Nisso parece s inte t i zar Descartes e Pascal.

O jovem Hegel recebeu muitas influências: "o espírito do povo" de Montesquieu e Herder , Rousseau e outros. N a família foi educado no cristianismo protestante, no qual o acento era o aspecto racional e moral da religião. Cedo interessou-se por problemas religiosos e pela filosofia sob o aspecto religioso. Com 18 anos de idade começou a estudar teologia no seminário protestante de Tubinga. Aí conviveu com Hoelderlin e Schelling. No seminário l i a muito Rousseau, Schiller, Herder e Lessing.

Os escritos do jovem Hegel versam problemas de conteúdo teológico ou político-religioso. Suas reflexões concentraram-se no problema religioso.

No escrito Religião popular e cristianismo (1793) vê a religião não como assunto privado, e s im com valor educativo. Na sua Vida de Jesus (1795) mostra a influência da religião ética kant iana , livre de dogmas e da letra bíblica. A pessoa de Cristo perdeu sua transcendência. Jesus aparece como personificação do ideal da virtude, como pregador da religião da razão, hostil à religião j u ­daica. E m A positividade da religião cristã (1796-1799) apresen­ta Jesus como sábio, como Sócrates, mestre que ensinava uma religião puramente moral. Segundo Hegel, foram os discípulos que transformaram o ensinamento de Jesus n u m sistema eclesiástico e dogmático, em religião positiva. Desenvolve o tema da alienação do homem como busca de apoio no além quando o próprio homem se torna incapaz de construir a vida moral por si mesmo. Sente, então, necessidade de sinais e milagres, de fundar sua fé numa pessoa (Cristo). O indivíduo, entrando no cristianismo, renuncia ao direito de determinar por si mesmo o que é verdadeiro, bom e justo, assumindo o dever de aceitar o que lhe é imposto pela fé, ainda que em contradição com a razão. A alienação é, para Hegel, sinônimo de escravidão e de opressão. Hegel passou a caracterizar a concepção religiosa judaico-cristã como relação senhor-escravo. O Deus transcendente é o senhor dominador; o homem é o escravo,

K A N T E H E G E L : A R A C I O N A L I D A D E M O D E R N A E A RELIGIÃO 68

sob o jugo de seu senhor. Nesta relação, os homens se nadificam e s i tuam o eterno, o divino, totalmente fora de si. E m síntese, o jo ­vem Hegel foi teólogo, mas teólogo secularizador.

A teoria da alienação, segundo Hegel, é aplicada ao campo moral . O homem situa-se numa dependência absoluta de Deus dominador. A l e i é simples expressão da vontade de Deus. Ao homem cabe então apenas obedecer. Essa atitude, para Hegel, é imora l . Considera inaceitável a perspectiva filosófica de K a n t referente ao imperativo categórico. O princípio kant iano , como toda a mora l k a n t i a n a , segundo ele, procedem de pessimismo antropológico luterano. Por isso K a n t aniqui la o homem, sepa­rando radicalmente a sensibilidade da razão, estabelecendo, na interioridade do homem, uma nova sujeição do indivíduo à do­minação universal (da razão). Decorre daí não o homem l ivre , e sim o mártir do dever. Hegel, espírito otimista, não sujeita s im­plesmente o particular ao universal, a sensibilidade à razão. Quer o homem l ivre da l e i e do dever para praticar o bem espontanea­mente. O homem deve tornar-se universal concreto.

Durante sua estada, como professor particular , em F r a n k f u r t (1796-1800) situa o caráter fundamental da realidade na noção de vida. Esta é o in f in i to , a totalidade divina que abrange tudo, que mais tarde chamará idéia. O ideal que se manifesta na realidade, que se realiza no múltiplo, é a vida. Apresenta a oposição entre f inito- inf inito , a unidade e a multiplicidade e a reintegração dos seres múltiplos na unidade. O uno ou o todo pluraliza-se ou con­cretiza-se numa série de modos nos quais vive a vida que é o todo. O pensamento, que em si é uma forma de vida, pensa a unidade das coisas como u m inf in i to , como vida criadora l ivre da mor ta l i ­dade dos indivíduos. Esta vida criadora Hegel a chama Deus. Ta l vida deve ser concebida como espírito.

N a juventude, Hegel acentua que o f i m e a essência de toda a religião verdadeira é a moralidade do homem. Mas não se l i m i t a à experiência religiosa do indivíduo. Torna-se-lhe importante o fato da religião positiva. Rejeita, contudo, a positividade de cada r e l i ­gião, indagando pela sua origem ou fundamento. Para além da religião positiva indaga pelo fundamento da experiência religiosa no sentido de atingir o vínculo imediato entre o divino e o humano. Desta maneira supera a interpretação puramente moral da r e l i ­gião no sentido de Kant . Diz que, no sentido,puramente moral , a

Page 11: Introdução ao estudo filosófico

64 K A N T E H E G E L : A R A C I O N A L I D A D E M O D E R N A E A RELIGIÃO

religião só serve para ser "religião privada" porque só respeita a razão. Hegel exige o empenho do homem global: sentidos e razão.

A porta de entrada no pensamento hegeliano é o fenômeno do amor. Nele, por primeiro, descobre o caráter dialético da realidade. O ponto de part ida é o fato da auto-alienação na realização do amor: o amor, esquecendo-se a si mesmo, sai da existência amorosa e vive no outro. No amor, o homem perde-se a si mesmo e encon­tra-se no outro. Mas, no amor, há ainda o separado, não como separado, mas como unidade.

Hegel conclui que aquilo que acontece no amor só é possível de compreensão a par t i r de u m todo. N a dialética do amor realiza-se a vida. O amor é modificação da vida. E a vida é o que anima todo o vivente e no qual radica tudo que vive. Esta vida abrangente mostra a mesma estrutura do amor. Também a vida, a par t i r de sua essência, é dialética. N a origem é una; divide-se na m u l t i p l i ­cidade dos viventes para, finalmente, reencontrar-se na unidade. Identificando, explicitamente, esta vida global com Deus, Hegel encontrou o princípio de sua teologia filosófica. Se o divino é pura vida, também a divindade tem caráter dialético. O fato de at ingir o divino, permite-lhe tomar posição no absoluto. Deus não é con­clusão de seu sistema, mas ponto de part ida.

Hegel não tenta demonstrar a existência objetiva de Deus. Antes indaga como o homem chega a pensar Deus. Interpreta isso a p a r t i r da confluência das possibilidades humanas. A raiz é a consciência da própria divindade. Com isso só chega a Deus como presente, na imanência, não ao Deus transcendente. Ousa, então, a tese de que o Deus transcendente resulta da fantasia humana como hipostatização do amor.

N u m fragmento da juventude , no qual explica o dogma da Trindade, já delineia a dialética do absoluto. O pai significa a totalidade divina, ou seja, a vida da criança em união inconsciente com o todo; o filho designa o homem comum, o homem que se desenvolve n u m estado de separação no seu eu f inito , no meio do mundo das deterannações; o Espírito Santo significa a condição do homem que superou o estado de alienação e fez o retorno cons­ciente à totalidade divina. Esse restabelecimento da unidade é no espírito e na vida, não no conceito ou na obediência à le i . Assim o dogma trinitário serve a Hegel como p a r a d i g m a dos três momentos de sua genial dialética: a) concepção da realidade una

K A N T E H E G E L : A R A C I O N A L I D A D E M O D E R N A E A RELIGIÃO 6 5

(das Einige); b) as real idades separadas (die Getrennten) e c) a r e a l i d a d e o u t r a vez u n i f i c a d a ou r e c o n c i l i a d a (das Wiederverreinigte).

Segundo o jovem Hegel, a religião reconcilia a reflexão e o amor, unindo-os no pensameno. A vida religiosa, que é a vida do amor, realiza a exigência da filosofia de reconciliar as oposições: o f inito e o in f in i to . O objetivo racional de Hegel é sempre a re­conciliação dos contrários: religião privada e religião popular, l i ­berdade e necessidade, f inito e inf ini to . A forma mais elevada da reconciliação é a identidade sujeito-objeto do espírito cognoscente.

3.2.2. O Hegel maduro: filósofo

Depois de 1800, depois da fase explicitamente teológica, Hegel quer compreender, pela filosofia, como a religião realiza t a l exi­gência. Tenta realizar o que antes declarara impossível. Subordina a religião à filosofia. Busca nova lógica do movimento da vida. E a transição do Hegel teólogo para o Hegel filósofo. Doravante vê, como tarefa da filosofia, a construção do absoluto pela consciência, superando oposições. O f inito , segundo ele, não pode ser pensado sem pensar o in f in i to , pois não é conceito isolado e com conteúdo próprio. O f inito consiste em ser momento do verdadeiro inf ini to . O f inito é atingido de negação, mas não é simples negação, uma vez que é l imitado por outro que não é ele mesmo. Por isso devemos negar a negação e af irmar que o f inito é mais que f inito , ou seja, que é momento da vida do inf ini to . Encontra o processo lógico que resolve a oposição entre o f inito e o in f in i to , ou seja, o processo dialético. F in i to e inf in i to não são dois mundos separados.

Hegel parte do idealismo de Fichte e Schelling. O tema próprio de sua filosofia é o inf in i to e sua relação com o finito, relação de unificação de ambos os termos no princípio absoluto. Este é ident idade, mas não ident idade indi ferenciada (como quer ia Schelling), mas contendo dentro de si a oposição (identidade nas diferenças), que se resolve na reconciliação dos contrários. A identidade e harmonia acontecem no fim do processo dialético. O absoluto é o pensamento que se pensa a si mesmo, o que eqüivale a dizer que o absoluto é espírito, o sujeito autoconsciente.

Segundo Hegel, Deus deve ser visto como aquele que passa por uma história e nela se revela. Este é o tema de sua obra filosófica

Page 12: Introdução ao estudo filosófico

66 K A N T E H E G E L : A R A C I O N A L I D A D E M O D E R N A E A RELIGIÃO

fundamental, a Fenomenologia do espírito (1807). Para Hegel, em todos os problemas do homem e do mundo, em última análise, se t r a t a do próprio Deus. Quer repropor a questão de Deus no come­ço da filosofia como único fundamento de tudo, como único p r i n ­cípio do ser e do conhecer. Ironiza a posição daqueles que querem reduzir a problemática de Deus à problemática do homem.

Talvez a Fenomenologia do espírito seja a sua obra mais ge­n ia l , mas também a mais obscura. É sua pr imeira obra sistemá­tica. Hegel vem de Descartes: o caminho que a razão natura l do homem tem a seguir, é o da dúvida ou até do desespero. Quer do ponto de vista da razão natura l , quer do ponto de vista autent i ­camente científico, ou seja, da impressão sensível imediata a t ra ­vés de todas as formas da consciência, a razão deve elevar-se até o espírito consciente de si mesmo. Trata-se, pois, de caminho que introduz o indivíduo desde seu estado inculto do conhecimento comum, ou das formas inferiores da consciência sensível até o plano do saber filosófico, ou saber do absoluto. Este processo pode ser chamado de "autobiografia do espírito" ou "experiência da consciência". Nessa obra aparecem os postulados fundamentais do idealismo hegeliano: o absoluto como espírito que se desenvolve em três momentos: o absoluto em si, por si e retorno a si, a dialética triádica deste devir, na qual cada momento é superação do ante­r ior , a identificação do real e do ideal na consciência etc. Como o espírito absoluto, também a religião tem uma história fenomeno-lógica, uma história cronológica e ideal. São três os momentos da evolução do fenômeno religioso: a) a religião natura l ou dos povos orientais (dos persas, hindus e egípcios); b) a religião estética (gregos); c) a religião revelada ou cristã com a interpretação hegeliana. A arte e a religião são formas inferiores da autocons-ciência que prepara o saber absoluto. Através de suas diversas manifestações, o espírito finalmente conhece-se a si mesmo. Chega ao conhecimento absoluto que é o conhecimento do absoluto.

Para Hegel, não tem sentido uma teoria do conhecimento, pois nunca se sai do conhecimento. O absoluto sempre já está em nós. Com isso a relação sujeito-objeto encontra-se numa síntese global: o espírito é a síntese de toda a realidade. Para conhecer-se a si mesmo, o espírito precisa da história. Toda a experiência singular encontra-se em contexto histórico.

Como Hegel relaciona religião e filosofia?

K A N T E H E G E L : A R A C I O N A L I D A D E M O D E R N A E A RELIGIÃO 67

Nos fragmentos deixados pelo jovem Hegel, ele fala de "eleva­ção à vida i n f i n i t a " e esta elevação é a religião. Hegel a t r ibu i t a l elevação não à filosofia, e s im à religião. A filosofia é a reflexão compreensiva porque reflete sobre idéias, pensa em termos de oposição. A ela se opõe a religião que pensa em termos de t o ta l i ­dade. Na religião, a vida finita se eleva à vida in f in i ta . Isso, se­gundo Hegel, só é possível porque o próprio finito é vida. Por isso pode elevar-se à vida in f in i ta .

O jovem Hegel dá, pois, preferência à religião. Na maturidade não mais a t r i b u i o acesso ao in f in i to à religião, mas à filosofia. Tenta superar a oposição entre filosofia e religião, reconciliando-as. Essa tentativa já aparece clara no prefácio da Fenomenologia do espírito. O intelecto analisa ou separa. No e pelo pensamento sempre já acontece a mediação entre pensante e pensado. Assim, no próprio pensamento da vida in f in i ta , realiza-se a reconciliação que une pensante e pensado. Nessa síntese Hegel estabelece nova unidade entre Deus e homem. O espírito é o todo a par t i r do qual Deus e homem, ambos espíritos, se tornam compreensíveis. E n ­quanto, na juventude, situa a possibilidade de pensar o absoluto na elevação religiosa, na maturidade parte da própria filosofia. A part i r deste absoluto tenta recolocar Deus no início da filosofia. A razão ocupa o lugar que, nos fragmentos da juventude, era ocupado pela elevação religiosa.

A religião agora marca o segundo momento do devir do espírito absoluto. Além de alguns parágrafos da Fenomenologia do espí­rito, Hegel minis trou quatro cursos (1821-1823) sobre a filosofia da religião. Aí tomou posição menos crítica e mais conciliadora em relação ao cristianismo. N a discussão com os teólogos diz que

"Deus não é espírito vazio, mas o espírito. E o espírito não é o só puro nome, determinação superficial, mas um ser cuja natureza se desenvolve, concebendo a Deus como essencialmente tríplice na unidade" (El concepto de religión, pp. 95-96).

Diz que

"religião e filosofia coincidem em um só e mesmo objeto porque o conteúdo da religião é a verdade universal e absoluta, e a filosofia chama de idéia ao ser supremo e absoluto. Deus é a verdade absoluta. Deve ser repre­sentado como universal absolutamente concreto".

Page 13: Introdução ao estudo filosófico

68 K A N T E H E G E L : A R A C I O N A L I D A D E M O D E R N A E A RELIGIÃO

Este Deus é uno e há u m só Deus. Deus como ser universal, não tem l imite , nem finitude, nem particularidade. Deus é a substância absoluta. Identifica o Deus da religião com o espírito absoluto.

E m Lições sobre a filosofia da religião, Hegel examina o as­pecto fenomênico da consciência religiosa. Primeiro as formas da consciência religiosa: o sentimento, a intuição e a representação. Sendo a religião necessária ao homem, sendo essencial à religião a relação entre Deus e a consciência, a pr imeira forma de religião é a imediaticidade dessa relação, própria do sentimento, que em­bora dê certeza da existência de Deus, não a justifica. O sentimento é indiv idual , acidental e mutável. A intuição que se tem de Deus na arte, é momento mais elevado. Mas a intuição apresenta u m dualismo entre o sujeito in tu inte e o objeto intuído. A religião, ao contrário, exige a unidade da consciência religiosa e de seu objeto. Esta acontece na representação (Vorstellung). A contradição re­solve-se à medida que a religião se transforma em verdadeiro saber. A este saber o homem deve chegar pela fé. E m E l concepto de religión lemos:

"A religião enquanto fé, sentimento e intuição ingênuos consiste, em geral, no saber e na consciência imediatos. Em outra parte, verifica-se o abandono da imediaticidade do espírito, o ponto de vista da reflexão, a relação da religião e do conhecimento como sendo algo externo, um em frente ao outro. A filosofia da religião consiste, ao contrário, no conhe­cimento pensante, compreensivo da religião; nela identifica o conteúdo absoluto, a substância e a forma absoluta (conhecimento)" (p. 115).

A religião situa-se no nível do pensamento e não só do senti­mento. Quando u m conteúdo se dá no nível do sentimento, cada u m fica preso do seu ponto de vista subjetivo. Reduzir o conteúdo divino (a revelação de Deus, a relação do homem com Deus, a existência de Deus para o homem) a mero sentimento, significa limitar-se ao ponto de vista da subjetividade particular, ao arbítrio. Para Hegel , "o verdadeiro é algo em si un iversa l , essencial, substancial; e o que é assim, só existe para o pensamento". Deus é exatamente a verdade substancial que só pode ser concebida pelo pensamento. A verdade é o todo e o todo é o absoluto e este é Deus. Como todo, só é pensável e atingível pela mente humana.

Quando a fé procura esclarecer-se e tornar-se consciente deve interv i r a reflexão religiosa. Nesta fase encontram sua função as

K A N T E H E G E L : A R A C I O N A L I D A D E M O D E R N A E A RELIGIÃO 69

provas da existência de Deus, que Hegel analisou em seu curso em 1829. Aí tenta reabi l i tar as provas condenadas por Kant . Entre ­tanto Hegel não defendeu as provas da existência de Deus porque as considerasse provas racionais. Deus é o ser absoluto. As provas nascem da necessidade de satisfazer à razão e representam a elevação da mente a Deus.

E m Lições sobre a filosofia da religião, Hegel diz que a dou­t r i n a sobre Deus só pode ser concebida como a doutrina sobre a religião. Por religião entende a relação do sujeito, da consciência subjetiva, com Deus. Nesta definição fala-se de Deus. Hegel diz ainda que a religião tem como único objeto Deus. Assim a filosofia da religião só se refere a Deus através da religião. Imediatamente refere-se à atitude religiosa do homem para com Deus.

Por outro lado, Hegel acentua o lado objetivo de Deus. Quer falar não só da religião, mas de Deus. Tem como objetivo o co­nhecimento de Deus. A religião é ação da consciência humana, mas esta brota de ação originária de Deus. A religião é produto do espírito divino, não invenção humana. Ação humana e ação d i v i ­na encontram-se na religião. Deus está presente na ação humana. Para Hegel, até a lógica é "apresentação" de Deus, é a "teologia metafísica", pois em todo o saber humano Deus está presente. Para ele, há uma série de sinônimos para designar Deus. Deus é "a vida in f in i ta " , "o absoluto", "a verdade". Deus é também "o conceito" (Begriff), "a idéia", é, enfim, "o espírito absoluto".

Hegel escreve:

"Para nós, que temos religião, o que é Deus é algo conhecido, um conteúdo que pode ser pressuposto na consciência subjetiva. Cientificamente, Deus é inicialmente um nome geral e abstrato que ainda não recebeu nenhum conteúdo (Gehalt) verdadeiro; porque só a filosofia da religião é o desen­volvimento científico e conhecimento daquilo que é Deus e só através dela se experimenta cognoscitivamente o que Deus é; do contrário absoluta­mente não necessitaríamos da filosofia da religião; somente esta deve desenvolver-nos aquele tema" (Lições sobre a filosofia da religião, p. 250).

3.2.3. Como Hegel chega a Deus?

Para Hegel, é insuficiente a consciência imediata de Deus. E m Lições sobre a filosofia da religião diz que há dois caminhos para conhecer a Deus: o empírico e o especulativo. No caminho empírico

Page 14: Introdução ao estudo filosófico

70 K A N T E H E G E L : A R A C I O N A L I D A D E M O D E R N A E A RELIGIÃO

partimos do fato de que o homem sabe de maneira imediata de Deus. Segundo Hegel, todos os homens .têm consciência de Deus. Mas, como há também a negação de Deus, torna-se problemática a prova da existência de Deus a par t i r da universalidade da idéia de Deus. Se há certeza sobre a existência de Deus, na consciência dos homens, ainda não se provou que esta é verdadeira. Além disso, não existe imediaticidade absoluta da consciência, pois na m i n h a consciência de Deus existe u m a relação entre m i m , o cognoscente e o objeto, Deus. A s s i m , segundo Hegel , toda a imediaticidade é mediata. Apesar disso diz que a proposição "nós sabemos de maneira imediata de Deus é grande princípio, que na sua essência devemos manter". Diz ainda que é o simples princí­pio filosófico do próprio conhecimento que nossa consciência sabe de maneira imediata de Deus, que o homem tem certeza de saber de Deus, de seu ser. Mas a filosofia só pode tomar t a l proposição como ponto de part ida.

Hegel critica a filosofia da religião de seus contemporâneos F. D. E. Schleiermacher (1768-1834) e Fr iedr i ch H . Jacobi (1743-1819). Diz que não reconheceram a necessidade de transcender a certeza imediata de Deus. Entretanto essa consciência imediata do saber sobre Deus, para Hegel, é apenas o ponto de par t ida empírico. A insuficiência está em permanecer no saber imediato de Deus. Quando se diz que não se pode conhecer a Deus, a filoso­fia reduz Deus a abstrato vazio. Nesse caso, a atitude religiosa reduz-se à subjetividade: "Só sabemos de nossa relação com Deus, mas não o que Deus é". Esse recuo à subjetividade tota l , Hegel designa-o "o último degrau da degradação do homem". Segundo ele, não se t ra ta de permanecer na certeza imediata de Deus, mas de conhecê-lo verdadeiramente. Isso significa ter conceito deter­minado e concreto de Deus.

Hegel diz:

"A religião é para todos os homens; a religião não é filosofia, a qual não é para todos os homens. A religião é o modo como todos os homens se fazem conscientes da verdade, e estes modos são especialmente o senti­mento, a representação e também o pensamento intelectual. O conceito da religião há de ser considerado deste modo geral segundo o qual a verdade chega a todos os homens, e deste modo o segundo momento nesta consideração é constituído pela relação do sujeito enquanto sente, re­presenta e pensa" (El concepto de religión, p. 121).

K A N T E H E G E L : A R A C I O N A L I D A D E M O D E R N A E A RELIGIÃO 71

Hegel mostra a insuficiência do sentimento de Deus. Reflete sobre o sentimento e a representação de Deus. O primeiro é sub­jetivo, o segundo refere-se mais ao aspecto objetivo do conteúdo. Mas para Hegel, importa indagar: pode-se dizer algo com certeza a p a r t i r do sentimento? Este certamente é indiv idual . E m outras palavras, não encontramos o Ser de Deus no sentimento, com certeza objetiva. N e m tudo que está no sentimento subjetivo é verdadeiro. Segundo Hegel, tomar a Deus como produto do sen­t imento acaba em ateísmo. Contudo não despreza o sentimento, pois a religião deve ser sentida, deve estar no sentimento, do contrário não é religião. Nem por isso o sentimento pode ser c r i ­tério decisivo para a verdade do saber sobre Deus, pois o senti­mento não aduz razões e não fala por razões. Por isso deve-se i r além dos sentimentos: "Trata não do sentimento como sentimento, mas do conteúdo envolto nessa forma para ver se u m sentimento é de natureza verdadeira e autêntica".

A forma de representação (Vorstellung) diz respeito ao aspec­to objetivo, ao conteúdo da certeza. Nessa objetividade, a verdade é "para todos os homens". Hegel diz que a representação é a ma­neira como Deus está primariamente na consciência. Mas também o conteúdo, por estar numa representação, não é ipso facto ver­dadeiro. A representação de Deus ainda está vinculada aos senti­dos. Temos imagens de Deus. Temos consciência de que são ape­nas imagens e não a realidade. A representação não abrange a verdade, mas transcende para o pensamento, para o conceito, para libertar-se do sensível. A representação situa-se entre a percepção sensível imediata e o próprio pensamento. Como a necessidade da filosofia é a penetração pelo pensar, também a representação é insuficiente para o saber de Deus na religião.

Segundo Hegel, Deus só é verdadeiramente no e para o pen­samento. Por isso as formas do sentimento e da representação se movimentam para a esfera do pensamento, no qual a consciência religiosa chegará a si em seu conceito. E aqui é preciso dist inguir o pensar como reflexão e o pensar como conceito. No caminho empírico só se t r a t a do pensar reflexivo. Para o pensamento não há imediato, pois tudo é mediado dialeticamente. E a mediação não se refere às determinações internas de u m objeto, e s im à relação dos objetos entre s i . No pensamento reflexivo, o conteúdo não se apresenta como casual, mas necessário.

Page 15: Introdução ao estudo filosófico

72 K A N T E H E G E L : A R A C I O N A L I D A D E M O D E R N A E A RELIGIÃO

Para o pensamento, segundo Hegel, o finito não é algo para si. Exige o outro para ser; é através do outro. Assim o finito tem como necessário o conceito oposto de inf ini to . A f i r m a o Ser, negando-o. Ora, o pensamento reflexivo é finito. Mas o objeto da filosofia da religião é Deus, inf ini to . Este é uma definição do absoluto. Como o finito se relaciona então com o infinito?

Primeiro a reflexão distingue finito e in f in i to . Se parte do i n ­finito, desaparece o finito. Este é superado, pois o inf inito não seria mais inf ini to , se fora dele houvesse u m finito, que o limitasse. N a religião ta l contradição manifesta-se, segundo Hegel, nos seguintes termos: "A oposição é absoluta; enquanto eu sou, Deus não é e, quando Deus é, desaparece o eu finito". Este é o fim do pensamento reflexivo encontrado na contradição irreconcil iada e absoluta. Neste horizonte diz-se, segundo Hegel, que o finito não pode co­nhecer o inf ini to . Há, então, duas saídas: ou o finito se dissolve no inf inito ou permanece como eu finito em oposição ao inf ini to . No último caso até se pode atr ibu i r ao finito o ser absoluto. Acentu­ando o f inito de t a l maneira, o inf in i to permanece transcendente puro: "Deus determina-se aqui apenas como transcendente ao f inito" . Mas o transcendente é apenas a negação do f inito posto como real. Separa-se o finito e o inf inito . Tal é o postulado de K a n t e Fichte, para os quais a idéia do absoluto como o transcendente assume a forma do dever. E m t a l concepção, o próprio homem não participa do infinito. No dever inicia a abertura para o inf inito , mas o pensamento reflexivo fixa-se no finito. Assim não se consegue compreender o in f in i to como presente no próprio finito. Como o in f in i to transcendente é inacessível, o absoluto reduz-se a puro anseio do homem: "Deus, para nós, não passa de uma busca no sentimento de nossa finitude". Ta l busca permanece sem pers­pectiva enquanto o intelecto se prende totalmente à finitude. Este é o ponto de vista da consciência subjetiva. O eu finito absolutiza-se e a reflexão se autodestrói.

Do ponto de vista da consciência finita, ou seja, no caminho empírico, que parte do saber imediato pelo sentimento e pela re­presentação até o pensamento reflexivo, não se pode conhecer Deus. A subjetividade impede t a l acesso. Por isso é preciso pro­curar novo caminho, o especulativo do conceito. Aí se situa o lugar próprio da religião. A forma do pensamento é a absoluta e nela a verdade aparece como é em si e para si. O pensamento puro não

K A N T E H E G E L : A R A C I O N A L I D A D E M O D E R N A E A RELIGIÃO 73

tem o sentimento e a representação como condição. Só no caminho especulativo pode-se conhecer Deus, segundo Hegel. O pressuposto de todo o sistema hegeliano é que, desde o começo, o espírito ab­soluto se manifesta em toda a realidade e em todas as ciências. Entretanto Hegel af irma que este absoluto se revela melhor na arte, na religião e na filosofia, ou seja, na filosofia da religião.

O caminho especulativo do verdadeiro pensamento filosófico começa precisamente onde o pensamento empírico se perdeu, ou seja, na oposição entre f i n i t o e i n f i n i t o . Hegel desenvolve a dialética, entendendo os dois momentos separados. A essência da oposição é, então, a unidade da identidade e da diferença. Assim finito e in f in i to , embora diferentes, indicam u m para o outro. Se se disser o que é in f in i to , seja a negação do f in i to , diz-se o próprio finito. Da mesma forma, o inf inito só é inf inito em relação ao finito. Cada u m dos termos só pode ser definido em relação a seu oposto.

A par t i r dessa situação, segue que cada u m — finito e inf in i to — só é o que é porque existe o oposto. Cada qual , sob este aspecto, funda-se no outro. O f inito tem seus l imites no in f in i to . U m é a negação do outro, sendo apenas através do negado. O in f in i to só é o que é pela negação do f inito . O inf in i to , por outro lado, só é como finito porque há no finito o infinito. A conseqüência, para a questão de Deus, é que Deus é igualmente o finito e o in f in i to , não se po­dendo isolar u m momento do outro. Ambos formam uma unidade dialética. Nesta unidade permanecem, todavia, as diferenças. O finito é momento do processo do inf ini to . Deus entra no finito e retorna a si mesmo. Deus é Deus vivo através deste processo eterno: "Deus é o movimento para o finito e, através dele, como superação do finito, o movimento em si mesmo". O espírito abso­luto se finitiza para tornar-se saber em si mesmo. Da mesma forma a auto-superação do finito o eleva ao inf in i to , pois a essência do f inito é o inf ini to . Por isso o resultado do processo de auto-supe­ração do finito é o ser do inf ini to .

O acontecimento essencial em todo o processo da dialética finito-infinito é a auto-superação do f inito no inf ini to . Por isso o inf inito é o conceito fundamental na filosofia hegeliana. Como pode acontecer isso? Como pode Hegel assumir o ponto de part ida no absoluto, o ponto de vista do absoluto?

No começo está o eu finito. Como este chega ao absoluto, a Deus? Hegel responde: só porque sempre.já ultrapassa seus l i -

Page 16: Introdução ao estudo filosófico

74 K A N T E H E G E L : A R A C I O N A L I D A D E M O D E R N A E A RELIGIÃO

mites. E isso mostra-se no fenômeno da consciência. Quem sabe alguma coisa, sabe ao mesmo tempo a deteraiinação do saber pelo objeto. Sabe isso a p a r t i r do objeto. Sabendo sua f initude, u l t r a ­passa-a. É o que acontece na elevação do f inito para o inf inito , como elevação do homem a Deus. Trata-se de elevação do espírito', que é a elevação como espírito pensante. O eu aliena-se da finitude. A elevação, de fato, realiza-se a par t i r de uma tendência inter ior do homem. O eu renuncia a si mesmo, libertando-se de si mesmo, renunciando à sua particularidade.

A essência do homem, como espírito, é ser espelho de Deus, diz Hegel. O pensar é elevar-se do part icular ao geral. No pensamen­to desaparece todo o part icular . O espírito eleva-se do casual e temporal para o inf in i to e eterno. O geral, no qual a ind iv idua l i ­dade imerge, é, para Hegel, "a idéia divina". A elevação orienta-se para Deus. No saber de Deus tenho Deus como objeto, nele me fundo e afundo. No fim do processo está o saber que o homem é unidade com Deus. Na elevação descobre-se a si mesmo como d i ­vino. En f im , Deus é a verdadeira realidade e, na elevação, o ho­mem se experimenta como participante da mesma. A consciência finita é momento do próprio espírito ou a verdade do espírito finito é o espírito absoluto. Por outro lado, o próprio Deus desce ao ho­mem e possibilita a elevação do homem até ele. Por isso é neces­sário que o divino, para ser espírito, se finitize no humano.

A elevação pensante tem como momentos preparatórios a de­voção, o culto e a fé. Hegel designa a devoção também de "união mística" como sentimento da unidade do divino e humano. É uma pré-forma da elevação filosófica. O culto também pode ser descri­to como elevação a Deus. Trata-se de elevação para além dò finito, para a união com Deus. Hegel até chega a af irmar que a filosofia se just i f i ca pela devoção e pelo culto, pois a elevação religiosa pertence ao fundamento da experiência do filosofar.

Outro momento do culto é a fé. Hegel a define como "a consci­ência da verdade absoluta, daquilo que Deus é em si e para si" . Chama-a "o testemunho do espírito sobre o espírito absoluto". Trata-se, em resumo, da divindade do espírito humano. Hegel pensa a fé, o culto e a devoção não a par t i r do homem, mas a par­t i r de Deus. A fé não é, para ele, a maneira mais elevada de o ho­mem ter certeza de Deus, pois esta pertence à filosofia.

K A N T E H E G E L : A R A C I O N A L I D A D E M O D E R N A E A RELIGIÃO 75

3.2.4. A existência de Deus

Que diz Hegel a respeito das tradicionais provas da existência de Deus?

Hegel considera o i lumin i smo o maior in imigo da filosofia. Tenta recuperar a demonstração da existência de Deus. A t r i b u i à crítica de K a n t o descrédito dado às provas. Entretanto não ignora t a l crítica e critica a crítica de K a n t por ter desconhecido o fun ­damento daquelas provas. O problema, segundo Hegel, é que K a n t levanta a questão da capacidade de conhecer Deus sem considerar a essência de Deus. Esta é maneira abstrata que permanece p r i ­sioneira do saber f in i to . Hegel busca novo caminho, ou seja, o caminho da elevação pensante até Deus.

Hegel vê como importantes as provas da existência de Deus porque nelas o verdadeiro consiste em mostrarem a elevação do homem a Deus, u m caminho obscurecido enquanto atribuído à razão. Para ele, trata-se de caminho necessário do pensamento. Deriva t a l necessidade da natureza do homem, fundada na es­sência do espírito.

Como K a n t , também Hegel distingue a prova ontológica, a cosmológica e a fisico-teleológica. Ressalva, contudo, que essas não são as únicas possíveis. A prova cosmológica e a físico-teleológica partem do finito e a ontológica da idéia de Deus. Isso significa que também a elevação do espírito deve ser entendida de dupla ma­neira: partindo ou do ser f inito ou do ser inf ini to (El concepto de religión, pp. 247ss).

Hegel analisa em pormenores a prova cosmológica tradicional da existência de Deus. Parte de u m ser casual para fundá-lo n u m ser necessário. Dá-lhe a formulação: "Porque existe f in i to , existe inf inito" . A meta da prova é Deus, como necessidade absoluta, que também pode ser chamada infinito. Busca o inf inito , a necessidade absoluta de Deus. Segundo ele, a prova tem o caráter de conclu­são da casualidade para a necessidade absoluta. Reconhecendo a formulação tradicional como insuficiente, tenta reabilitá-la me­diante a dialética. Mostra que está fundada na experiência da "elevação do espírito até Deus", pois "transcender para o inf in i to está no próprio f inito como negação de si mesmo" e, por isso, "o não ser do finito é o ser do irif inito". Também o necessário deve ser visto em seu processo dialético.

Page 17: Introdução ao estudo filosófico

76 K A N T E H E G E L : A R A C I O N A L I D A D E M O D E R N A E A RELIGIÃO

Enquanto Hegel mostra a insuficiência da prova cosmológica e da teleológica, diz que a ontológica é a única verdadeira. Diz que

."a prova ontológica parte do conceito". O conceito é considerado a l ­go objetivo e é determinado como se opõe ao objeto e à realidade. O começo e o interesse está em m o s t r a r que a este conceito corresponde ser. O caminho é o seguinte: coloca-se o conceito de Deus e mostra-se que não pode ser concebido a não ser como inc lu ­indo em si o Ser. Enquanto se distingue o conceito de ser, só existe subjetivamente em nosso pensamento; subjetivamente é o imper­feito que só cai no espírito finito. Quer mostrar-se que não é ape­nas nosso conceito, que também existe independentemente de nosso pensamento (Lecciones sobre filosofia de la religión, pp. 306-311).

Hegel distingue entre conceito f inito e conceito inf ini to . E da essência do conceito f inito que nele o conceito e ser são separados. Nesta esfera concede razão à crítica de Kant . Mas, segundo Hegel, na prova ontológica não se t ra ta de conceito f inito , pois "o conceito absoluto, o conceito em s i e para s i " é o "conceito de Deus". Nele está superada a f initude da subjetividade. Por Kant não ter feito t a l distinção, af irma que "do conceito não se pode concluir a rea­lidade". No conceito absoluto há unidade entre conceito e ser, diz Hegel. Por isso o conceito de Deus é idêntico com o ser. Também aqui Hegel põe o absoluto ou Deus no começo de sua filosofia. N a verdade a prova ontológica expressa o próprio sistema hegeliano enquanto o f inito é absorvido no inf in i to , enquanto Deus se faz consciente na autoconsciência humana:

"O homem conhece a Deus só enquanto Deus se conhece a si mesmo nos homens. Este saber é a autoconsciência de Deus, mas também o saber que Deus tem dos homens, e tal saber é o saber que os homens têm de Deus" (Enciclopédia, § 564)

N a l e i t u r a da história das religiões distingue pr imeiro três momentos da consciência religiosa abstrata: a) a universalidade: Deus é concebido como universal indiferenciado, como a realidade in f in i ta e verdadeira; b) a particularidade: Deus é concebido como objeto oposto, que implica a consciência de m i m mesmo como se­parado e alienado dele, como pecador; c) a individualidade: o re­torno do part icular ao universal , do f in i to ao in f in i to , sendo su­perados a separação e a alienação. Vê o desenvolvimento históri­co das religiões no esquema dialético em três etapas:

K A N T E H E G E L : A R A C I O N A L I D A D E M O D E R N A E A RELIGIÃO 77

a) a religião natural: a idéia de Deus aparece como a potência ou substância absoluta da natureza, ainda não se revelando como espírito. Nesta fase distingue, em três etapas, a religião mágica, a religião da substância e as religiões da Pérsia, Síria e do Egito. Segundo Hegel, são religiões que correspondem à consciência abstrata do universal indiferenciado;

b) a religião da individualidade espiritual: Deus é concebido como espírito, como pessoa individual ou pessoas individuais. Aqu i Hegel situa a tríade: judaísmo, religião grega e romana. Esta úl­t ima , com seu panteão, significa reduzir o politeísmo ao absurdo;

c) a religião absoluta ou cristianismo: Deus se revela como espírito absoluto. Corresponde ao terceiro momento da consciên­cia religiosa, como síntese ou unidade dos primeiros. O espírito inf ini to ou Deus é transcendente e imanente ao homem. Fini to e inf ini to são vistos como unidos. Por isso o conteúdo da religião cristã é a unidade do divino e do humano na encarnação de Deus em Jesus Cristo.

Hegel diz:

"A religião consumada é aquela na qual o conceito de religião retornou a si — onde a idéia absoluta, Deus, enquanto espírito segundo sua verdade e seu caráter manifesto, constitui o objeto da consciência. As religiões anteriores nas quais a determinabilidade do conceito é menor, mais abstrata e defeituosa, são religiões determinadas que constituem etapas de transição do conceito de religião até seu acabamento. Esta religião revelada é, pois, a cristã. A religião cristã mostra-se-nos como a religião absoluta" (El concepto de religión, p. 126).

Entretanto , para Hegel, como já vimos, o centro do mistério cristão não é Jesus Cristo, mas a Trindade. Como o espírito abso­luto é o pensamento e como t a l se distingue de si mesmo, também Deus não é u m a unidade indiferenciada, mas tr indade de pessoas em sua inf in i ta vida espiritual. Essa trindade corresponde aos três momentos da dialética da idéia do espírito: o Pai é o permanecer imutável de Deus, como idéia em si; o Fi lho ou deus-homem, é a manifestação de Deus fora de si na natureza; o Espírito Santo é o retorno do mundo a Deus e sua reconciliação com ele.

Como avaliar o sistema hegeliano quanto à questão de Deus e da religião?