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2013 PENSAMENTO FILOSÓFICO E SOCIAL NO BRASIL Prof. Joel Haroldo Baade Prof. Joel Cezar Bonin

Pensamento FilosóFico e social no Brasil

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Page 1: Pensamento FilosóFico e social no Brasil

2013

Pensamento FilosóFico e social no BrasilProf. Joel Haroldo BaadeProf. Joel Cezar Bonin

Page 2: Pensamento FilosóFico e social no Brasil

Copyright © UNIASSELVI 2013

Elaboração:

Prof. Joel Haroldo Baade

Prof. Joel Cezar Bonin

Revisão, Diagramação e Produção:

Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI

Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri

UNIASSELVI – Indaial.

101B111p Baade, Joel Haroldo Pensamento filosófico e social no Brasil / Joel Haroldo Baade;

Joel Cezar Bonin. Indaial : Uniasselvi, 2013. 270 p. : il ISBN 978-85-7830- 688-5

1. Filosofia – Teoria. I. Centro Universitário Leonardo da Vinci.

Impresso por:

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III

aPresentaçãoA filosofia e a sociologia fazem parte do nosso cotidiano, embora

muitas vezes, não nos damos conta disso. Por essa razão, a presente disciplina tem como proposta aproximar a reflexão filosófica e sociológica daquilo que vivemos em nosso dia a dia, para que possamos compreendê-lo melhor. Além disso, o foco desta disciplina não é tanto que você, caro(a) acadêmico(a), “decore” os conteúdos, mas que participe da reflexão e, desse modo, exercite a capacidade de pensar filosófica e sociologicamente.

A trama de constituição desse Caderno de Estudos foi pensada para que a sua leitura e estudo possibilitem justamente o desenvolvimento dos objetivos traçados. Preferiu-se seguir uma ordem histórico-cronológica, pois a historicidade é própria da existência humana. Quando pensamos em nós mesmos e de quem somos, pensamo-nos como seres históricos. Por essa razão, iniciamos a reflexão com o surgimento do pensamento científico na Grécia Antiga através da filosofia. Ao longo da primeira unidade, é seguida a trajetória do pensamento filosófico até a atualidade, buscando-se identificar continuidades e rupturas em cada novo período do pensamento humano.

Na segunda unidade, faz-se exercício semelhante em relação ao pensamento social, como um desdobramento e especialização do pensamento filosófico a partir do século XVIII com as Revoluções Industrial e Francesa. O pensamento social surge como necessidade de as sociedades humanas compreenderem melhor a sua existência coletiva, seja pela necessidade de organização da vida em sociedade ou como forma de denúncia das injustiças que ela possa gerar.

Por fim, na terceira unidade, será analisada a construção do pensamento filosófico e social no Brasil. Por um lado, ele está na continuidade da reflexão filosófica e sociológica anterior. Mas, por outro lado, desenvolveu também as suas particularidades, conforme as necessidades da realidade brasileira.

Convidamos você, caro(a) acadêmico(a), a fazer esta reflexão conosco.

Bons estudos!

Prof. Dr. Joel Haroldo BaadeProf. Joel Boni

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IV

Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novidades em nosso material.

Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura.

O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo.

Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente, apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto em questão.

Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar seus estudos com um material de qualidade.

Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE. Bons estudos!

NOTA

Olá acadêmico! Para melhorar a qualidade dos materiais ofertados a você e dinamizar ainda mais os seus estudos, a Uniasselvi disponibiliza materiais que possuem o código QR Code, que é um código que permite que você acesse um conteúdo interativo relacionado ao tema que você está estudando. Para utilizar essa ferramenta, acesse as lojas de aplicativos e baixe um leitor de QR Code. Depois, é só aproveitar mais essa facilidade para aprimorar seus estudos!

UNI

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VII

UNIDADE 1 – PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL ..... 1

TÓPICO 1 – OS FILÓSOFOS ANTIGOS E MEDIEVAIS ................................................................ 31 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 32 A FILOSOFIA NA GRÉCIA ANTIGA .............................................................................................. 4

2.1 O SURGIMENTO DO PENSAMENTO FILOSÓFICO ............................................................... 52.2 OS FILÓSOFOS PRÉ-SOCRÁTICOS ............................................................................................. 82.3 OS SOFISTAS .................................................................................................................................... 102.4 SÓCRATES ........................................................................................................................................ 132.5 PLATÃO ............................................................................................................................................ 152.6 ARISTÓTELES .................................................................................................................................. 20

3 O PENSAMENTO FILOSÓFICO HELENÍSTICO ......................................................................... 243.1 A FILOSOFIA NA IDADE MÉDIA ............................................................................................... 253.2 SANTO AGOSTINHO E A PATRÍSTICA ..................................................................................... 253.3 TOMÁS DE AQUINO E A ESCOLÁSTICA ................................................................................. 27

LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 29RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 32AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 33

TÓPICO 2 – A REVOLUÇÃO FILOSÓFICA A PARTIR DA MODERNIDADE ........................ 351 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 352 CONTEXTO HISTÓRICO, O SÉCULO XVI E A RENASCENÇA ............................................. 36

2.1 NICOLAU MAQUIAVEL E A FILOSOFIA POLÍTICA.............................................................. 402.2 FILOSOFIA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO ................................................... 44

2.2.1 Racionalismo: René Descartes............................................................................................... 452.2.2 Empirismo: Francis Bacon, John Locke e David Hume .................................................... 482.2.3 Francis Bacon ........................................................................................................................... 492.2.4 John Locke ............................................................................................................................... 502.2.5 David Hume ............................................................................................................................ 512.2.6 Racionalismo ou empirismo? ................................................................................................ 52

2.3 ILUMINISMO ................................................................................................................................... 532.3.1 Immanuel Kant ....................................................................................................................... 542.3.2 Jean-Jacques Rousseau e Montesquieu ................................................................................ 55

LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 58RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................ 60AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 61

TÓPICO 3 – A FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA ............................................................................ 631 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 632 A FILOSOFIA NO SÉCULO XIX ....................................................................................................... 633 O IDEALISMO HEGELIANO ............................................................................................................ 64

3.1 O PENSAMENTO MATERIALISTA DE FEUERBACH ............................................................. 683.2 ANTECEDENTES DA CRISE DA RAZÃO .................................................................................. 693.3 A FILOSOFIA NO SÉCULO XX .................................................................................................... 71

sumário

Page 8: Pensamento FilosóFico e social no Brasil

VIII

3.3.1 O pragmatismo ....................................................................................................................... 733.3.2 A fenomenologia ..................................................................................................................... 733.3.2.1 Edmund Husserl .................................................................................................................. 743.3.2.2 Martin Heidegger ................................................................................................................ 753.3.2.3 Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir............................................................................. 76

4 A FILOSOFIA DA LINGUAGEM ..................................................................................................... 774.1 JÜRGEN HABERMAS E A TEORIA DA AÇÃO COMUNICATIVA ....................................... 78

LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 80RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................ 83AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 84

UNIDADE 2 – PENSAMENTO SOCIOLÓGICO ............................................................................. 87

TÓPICO 1 – DEFINIÇÕES E HISTÓRIA DA SOCIOLOGIA ........................................................ 891 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 892 A REVOLUÇÃO INDUSTRIAL ......................................................................................................... 903 REVOLUÇÃO FRANCESA ................................................................................................................. 954 O ILUMINISMO ................................................................................................................................... 995 POSITIVISMO ....................................................................................................................................1036 ESCOLA DE CHICAGO ....................................................................................................................1087 ESCOLA DE FRANKFURT E A REIFICAÇÃO DO SUJEITO ...................................................1118 A SOCIOLOGIA NA PÓS-MODERNIDADE ..............................................................................117RESUMO DO TÓPICO 1......................................................................................................................119AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................120

TÓPICO 2 – IMPORTANTES SOCIÓLOGOS E ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DO SEU PENSAMENTO

1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................1212 KARL MARX .......................................................................................................................................1223 ÉMILE DURKHEIM ...........................................................................................................................1284 MAX WEBER .......................................................................................................................................1325 MICHEL FOUCAULT ........................................................................................................................1376 NORBERT ELIAS, ERWING GOFFMAN, PIERRE BOURDIEU E ZYGMUNT BAUMAN E OS PROCESSOS DE DEFINIÇÃO DO “EU” NA SOCIEDADE ...........................................142RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................152AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................153

TÓPICO 3 – TEMAS SOCIOLÓGICOS ............................................................................................1551 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................1552 PROCESSOS SOCIAIS ......................................................................................................................156

2.1 STATUS E PAPEL SOCIAL ...........................................................................................................1602.2 ESTRUTURA E ORGANIZAÇÃO SOCIAL ..............................................................................1622.3 INSTITUIÇÕES SOCIAIS .............................................................................................................164

LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................1693 ESTRATIFICAÇÃO SOCIAL E MOBILIDADE ...........................................................................1714 MOVIMENTOS SOCIAIS ................................................................................................................174LEITURA COMPLEMENTAR 2 ..........................................................................................................176RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................179AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................180

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IX

UNIDADE 3 – PENSAMENTO FILOSÓFICO E SOCIAL NO BRASIL .....................................181

TÓPICO 1 – FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA HISTÓRIA DO BRASIL .............................. 1831 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................1832 DO PERÍODO COLONIAL ATÉ OS DIAS ATUAIS ...................................................................1843 IMIGRAÇÃO EUROPEIA E INDUSTRIALIZAÇÃO .................................................................1904 A REPÚBLICA VELHA ......................................................................................................................1995 A ERA VARGAS ..................................................................................................................................2016 A DITADURA MILITAR ...................................................................................................................206RESUMO DO TÓPICO 1......................................................................................................................212AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................213

TÓPICO 2 – FILÓSOFOS E SOCIÓLOGOS BRASILEIROS DE DESTAQUE .........................2151 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................2152 EUCLIDES DA CUNHA ....................................................................................................................2163 OLIVEIRA VIANA .............................................................................................................................2214 SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA .............................................................................................227LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................2315 FLORESTAN FERNANDES..............................................................................................................2336 DARCY RIBEIRO ...............................................................................................................................238RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................242AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................243 TÓPICO 3 – QUESTÕES SOCIAIS BRASILEIRAS NA ATUALIDADE: CRIMINALIDADE, SOCIOLOGIA RURAL, MOVIMENTOS SOCIAIS,

RELIGIÃO E LIBERTAÇÃO ........................................................................................2451 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................2452 CRIMINALIDADE E COMPORTAMENTO.................................................................................2463 SOCIOLOGIA DO MEIO AMBIENTE RURAL ...........................................................................2534 TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO .......................................................................................................2565 MOVIMENTOS SOCIAIS NO BRASIL ........................................................................................259LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................263RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................265AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................266REFERÊNCIAS .......................................................................................................................................267

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UNIDADE 1

Pensamento FilosóFico e a comPreensão Da ViDa social

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

PLANO DE ESTUDOS

Esta unidade tem por objetivos:

• conhecer a história e o desenvolvimento do pensamento filosófico no oci-dente a partir da tradição greco-romana;

• reconhecer os principais períodos da história da filosofia com os seus res-pectivos pensadores e tendências;

• compreender a relação entre produção filosófica e contexto histórico.

Esta unidade está dividida em três tópicos e em cada um deles você encontrará atividades visando à compreensão dos conteúdos apresentados.

TÓPICO 1 – OS FILÓSOFOS ANTIGOS E MEDIEVAIS

TÓPICO 2 – A REVOLUÇÃO FILOSÓFICA A PARTIR DA MODERNIDADE

TÓPICO 3 – A FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA

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TÓPICO 1UNIDADE 1

OS FILÓSOFOS ANTIGOS E MEDIEVAIS

1 INTRODUÇÃO

Prezado(a) acadêmico(a), o pensamento filosófico tem grande importância para o pensamento social, pois ele é reflexo e aprofundamento deste. Você já estudou a história da filosofia. Contudo, é necessário retomarmos alguns aspectos do pensamento filosófico ao longo da história da humanidade para entendermos em que medida eles contribuíram para a formação do pensamento atual, especialmente o pensamento social brasileiro.

No primeiro tópico deste Caderno de Estudos nós estudaremos o desenvolvimento do pensamento filosófico desde a antiguidade grega até a Idade Média. Em relação à filosofia grega, veremos que ela não surge do acaso e, tampouco, como invenção ou imaginação de algumas poucas pessoas. Mas ela surge justamente como uma maneira mais profunda de compreender e interpretar a realidade social em que a Grécia dos filósofos se encontrava.

Veremos que com a perda da autonomia política da Grécia, após ela ser invadida por vários impérios, também a filosofia sofre mudanças. Gradativamente, as preocupações dos filósofos se voltam para o sobrenatural, pois neste mundo já não havia muitas perspectivas para se viver uma vida em plenitude. Esse foi o período do helenismo.

Por fim, a respeito da Idade Média, veremos que a tendência do helenismo se aprofundou. A filosofia nesta fase da história será transformada em ferramenta da teologia e da igreja cristã. Os representantes principais da filosofia da Idade Média são Santo Agostinho e Tomás de Aquino.

Ao final da unidade, você, prezado(a) acadêmico(a), tem uma leitura complementar sobre a lógica aristotélica, que pode ser muito útil para que possamos desenvolver uma argumentação mais consistente e coerente.

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UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL

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2 A FILOSOFIA NA GRÉCIA ANTIGA

A Grécia Antiga é berço da Filosofia, mas isso você já viu em outras disciplinas do curso. Portanto, não cabe aqui retomar esse discurso. Mesmo assim, vamos retomar algumas ideias da antiguidade grega, procurando relacionar a reflexão filosófica do período com a realidade social onde ela surge.

Dessa forma, queremos entender como as ideias filosóficas são, por um lado, resultado do meio social onde surgem e, por outro, almejamos contemplar em que medida elas também são formadoras da realidade.

O salto qualitativo que possibilitou o surgimento da filosofia foi, em boa medida, a intensificação da vida social. Nesse sentido, o surgimento das cidades, das polis gregas, foi fundamental para o advento da filosofia.

Segundo Trigo (2009, p. 12):

[...] o surgimento das cidades-estados gregas (pólis) [...] significou o desenvolvimento de vários aspectos significativos da cultura grega (teatro, literatura, oratória), das formas de governo, da participação do povo nas tomadas de decisão (a antiga democracia grega) e nas questões mais práticas, como agricultura, construção civil, navegação, comércio, matemática e geometria.

Para ilustrar como a vida em sociedade exige dos indivíduos uma maior capacidade de articulação, é interessante fazer uma analogia com o programa Big Brother Brasil (BBB), da Rede Globo de Televisão. Enquanto os indivíduos estão vivendo de forma isolada, distantes um do outro, há pouca necessidade de esforço que possibilite a convivência.

Da mesma forma, no tempo em que a vida era predominantemente rural, em que as pessoas moravam longe umas das outras, pouco precisavam se preocupar em organizar as suas vidas ao lado de outras pessoas.

Contudo, quando no BBB diversas pessoas diferentes umas das outras são colocadas numa mesma casa, ou seja, quando elas repentinamente estão muito próximas umas das outras, surgem necessidades de organizar este local de convivência. Não demora e surgem os primeiros conflitos. É preciso criar leis e normas de convivência. Quando alguém desrespeita essas leis, é preciso criar formas de punição, correção, reparação...

Na Grécia antiga, quando as cidades cresceram, havia muitas pessoas ocupando um espaço físico limitado. Essa nova forma de vida humana precisava ser organizada. A grande dificuldade, por sua vez, estava no fato de que não havia precedentes, ou seja, era a primeira vez em que o ser humano se deparava com uma situação daquele tipo.

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TÓPICO 1 | OS FILÓSOFOS ANTIGOS E MEDIEVAIS

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No esforço de responder a esses novos problemas é que algumas pessoas se dispõem a pensar sobre eles. Estes primeiros pensadores e articuladores da vida social ainda não podem ser chamados de filósofos, mas contribuem de modo decisivo para uma mudança de mentalidade que viria a ser fundamental para o surgimento do filósofo.

Feita esta reflexão inicial, vamos nos ocupar a seguir com alguns fatores e mudanças na organização da vida social, que propiciaram o surgimento do pensamento filosófico e que serviriam de base para a estruturação de todo o pensamento racional humano posterior.

2.1 O SURGIMENTO DO PENSAMENTO FILOSÓFICO

Fundamental para o desenvolvimento do pensamento racional e filosófico foi a superação da mentalidade mítica. Segundo os mitos, a Terra era povoada por seres sobrenaturais, que habitavam os confins dos mares e os locais mais distantes do planeta. Como estes lugares longínquos ainda não haviam sido alcançados, eles representam um vazio que acaba sendo preenchido pelo imaginário humano.

Ocorreu que, com o desenvolvimento da sociedade humana na Grécia, o crescimento das cidades e o avanço do comércio daí decorrente, surge a necessidade de ir cada vez mais longe em busca de produtos para atender às necessidades das populações das cidades. Quando os povos viviam predominantemente em espaços rurais, tudo aquilo que era necessário para o sustento da vida era obtido nas proximidades. Mas quando a população se torna mais numerosa, o aumento da demanda faz com que as áreas de cultivo tenham que ser cada vez maiores.

Contudo, a geografia da Grécia não possibilita muita ampliação, pois ela é constituída de uma península e de várias ilhas no Mar Mediterrâneo. Observe a figura a seguir:

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UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL

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FIGURA 1– MAPA DA GRÉCIA ANTIGA

FONTE: Disponível em: <http://www.hipatia.com.pt/imagens_site/mapa_da_grecia_antiga_2.jpg>. Acesso em: 20 out. 2012.

E então, caro(a) acadêmico(a), o que restava aos gregos para que pudessem continuar se desenvolvendo como sociedade? Diante de tais condições, um elemento essencial é a navegação. Mas a navegação não contribuiu para o surgimento do pensamento filosófico apenas de modo indireto, na medida em que possibilita o avanço da sociedade.

Ela foi fundamental, isto sim, porque as pessoas puderam navegar para locais cada vez mais distantes na Terra e, aos poucos, foram se dando conta de que as criaturas mitológicas ou a própria imagem que se tinha do mundo, transmitidas através dos mitos, não correspondiam à realidade.

Em terras distantes ninguém encontrou ciclopes, serpentes marinhas, gigantes etc., apenas outras pessoas iguais ou, pelo menos, muito parecidas com elas mesmas. Nesse sentido, o desenvolvimento da navegação teve uma contribuição fundamental para o surgimento do pensamento filosófico.

Um segundo elemento fundamental para o desenvolvimento do pensamento filosófico foi a invenção do calendário. Assim como a navegação surge em atendimento a necessidades bem concretas da sociedade, também o calendário visava a este propósito. Com o aumento populacional, havia necessidade de mais alimentos, levando à expansão da agricultura.

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TÓPICO 1 | OS FILÓSOFOS ANTIGOS E MEDIEVAIS

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Para satisfazer a demanda por alimentos, esta agricultura precisava ser eficaz. Ou seja, não se podia correr o risco de perder safras, pois isto poderia desencadear crises de fome e outros problemas relacionados. Era preciso, portanto, saber quais eram as melhores épocas do ano para o plantio de determinada safra e quando havia os menores riscos de perda das lavouras devido a intempéries climáticas.

O calendário surge como registro dessas experiências e permite a sua

aplicação nas atividades humanas posteriores. Ele contribuiu para o surgimento do pensamento filosófico, na medida em que faz ver que a prosperidade da agricultura não dependia da vontade de entidades sobrenaturais e dos deuses, mas, sim, dependia em boa medida das condições climáticas de cada época do ano.

Nesse sentido, Marilena Chauí (2008, p. 37) acentua que, com o calendário, foi possível:

Calcular o tempo segundo as estações do ano, as horas do dia, os fatos importantes que se repetem, revelando, com isso, uma capacidade de abstração nova ou uma percepção do tempo como algo natural e não como uma força divina incompreensível.

Com o calendário foi possível observar que muitas das condições necessárias para o êxito da agricultura se repetiam, independentemente da fidelidade do povo a uma determinada divindade, de modo que a mentalidade retratada pelo mito passasse a ser posta cada vez mais em dúvida ou, no mínimo, perdesse importância.

O desenvolvimento das cidades e a complexificação da vida daí decorrente ainda levaram ao desenvolvimento do comércio e ao surgimento da moeda, que visou facilitar as operações de trocas de mercadorias entre as pessoas. Quando a sociedade era constituída de um número reduzido de indivíduos, havia pouca necessidade de troca de mercadorias. As que eram realizadas geralmente ocorriam de modo direto.

Ou seja, quem tinha maior quantidade de farinha do que necessitava para o próprio consumo, mas queria ter azeitonas em sua dieta, poderia procurar alguém que cultivava azeitonas e propor uma troca por alguma quantidade de farinha. A troca se concretizava pela entrega de um produto e o recebimento de outro.

Contudo, quando cresceram as cidades e o número de habitantes e a própria agricultura se tornou bem mais diversificada, também se tornou mais difícil encontrar alguém que estivesse disposto a trocar farinha por azeitonas. Dependendo do produto que se procurava ou que se tinha para oferecer, as trocas poderiam ser quase impossíveis.

Diante dessa necessidade, a moeda surge como possibilidade de troca, independentemente do que se procura de mercadoria. É possível se desfazer dos excedentes de produção, entregando-os a quem neles estivesse interessado, em

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UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL

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troca de algumas moedas, que correspondem a um determinado valor. Com as moedas, por sua vez, podia-se procurar quem estivesse vendendo os produtos que se deseja adquirir, que podem ser comprados mediante a entrega dos valores monetários.

Marilena Chauí (2008, p. 37) acentua a esse respeito:

[a moeda] permitiu uma forma de troca que não se realiza como escambo ou em espécie (isto é, coisas trocadas por outras coisas) e sim uma troca abstrata, uma troca feita pelo cálculo do valor semelhante das coisas diferentes, revelando, portanto, uma nova capacidade de abstração e de generalização.

Em virtude disso, o desenvolvimento da moeda e do comércio também contribuiu para o surgimento do pensamento filosófico. Essa nova situação fez com que a mentalidade dos indivíduos fosse gradativamente deslocada de uma esfera sobrenatural e mitológica para a dimensão do cotidiano.

No ponto seguinte vamos nos ocupar com o pensamento dos primeiros filósofos, procurando perceber de que modo as suas filosofias contribuíram para o entendimento da sociedade em formação e de que modo essas novas formas de pensar corroboram para o avanço da nova sociedade.

2.2 OS FILÓSOFOS PRÉ-SOCRÁTICOS

A classificação de "filósofos pré-socráticos" é recente e decorre da importância central que o filósofo Sócrates ocupa dentro da história da filosofia no Ocidente. Então, os pré-socráticos são os filósofos que viveram antes de Sócrates, cujo pensamento será analisado mais adiante.

A partir do que já estudamos anteriormente, Trigo (2008, p. 12-13) afirma que:

O desenvolvimento intelectual da civilização grega possibilitou a discussão de suas comunidades sobre problemas mais abrangentes, denominados cósmicos. Para os antigos gregos, o mundo era o cosmos, uma palavra que significa "ordem", "beleza", "harmonia", em oposição ao caos, a desordem que existia antes da criação do mundo. E a filosofia [...] nasce nesse contexto repleto de mudanças. Os filósofos, assim chamados por seguirem a postura de se relacionarem intensamente com o conhecimento, eram os "amantes da sabedoria", esta constituindo o objetivo final desses grandes pensadores.

Conforme Chauí (2008, p. 39), o trabalho dos pré-socráticos “é uma explicação racional e sistemática sobre a origem, ordem e transformação da natureza, da qual os seres humanos fazem parte, de modo que, ao explicar a natureza, a Filosofia também explica a origem e as mudanças dos seres humanos”.

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TÓPICO 1 | OS FILÓSOFOS ANTIGOS E MEDIEVAIS

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Assim, por exemplo, podemos citar os filósofos Heráclito e Parmênides. Estes dois pensadores elaboraram duas diferentes concepções de cosmologia. Ou seja, tentaram explicar, cada um a seu modo, qual a ordem fundamental e constitutiva do universo. Eles não se preocuparam em descrever o que ocorre do ponto de vista histórico, mas quiseram achar a arché (origem), entendido como aquilo que é o fundamento do ser.

Segundo Aranha e Martins (2003, p. 83), "buscar a arché é explicar qual é o elemento constitutivo de todas as coisas”.

Heráclito viveu entre os anos 544 e 484 a.C.. Ele nasceu em Éfeso, na Jônia, que nos dias atuais é a Turquia. A sua grande preocupação foi entender a multiplicidade do real. Ao olhar o mundo, percebia que ele não era uniforme, mas que tudo estava em constante transformação. Heráclito não rejeita as contradições do mundo e procura entendê-lo em sua dimensão de mudança, ou no seu devir.

Aquilo que está diante de nossos olhos em determinado momento é algo diferente do que foi no dia anterior, mesmo que, muitas vezes, as mudanças não sejam perceptíveis aos nossos olhos. Por essa razão, Heráclito afirmava que "nunca nos banhamos duas vezes no mesmo rio".

Ele tinha a convicção de que todas as coisas têm em si o germe da transformação; cada coisa possui contradições internas que levam à contínua mudança. A harmonia no mundo brota da síntese desses contrários.

ESTUDOS FUTUROS

Mais tarde, quando estudarmos o pensamento de Hegel no século XIX sobre a lógica dialética, veremos que muitas destas ideias serão retomadas. O mesmo acontecerá com Karl Marx, que enfatizará as lutas e as contradições de classe. (ARANHA; MARTINS, 2003).

Já o filósofo Parmênides acentuará em sua filosofia a imobilidade do ser. Parmênides viveu entre 540 e 470 a.C. em Eleia, uma cidade ao sul da região que então era chamada de Magna Grécia e que hoje forma a Itália.

Ele é o principal representante da denominada escola eleática. Segundo seu pensamento filosófico, era absurda a ideia de Heráclito, segundo a qual todas as coisas possuem em si o embrião da contradição e da mudança. Parmênides não conseguia entender como algo poderia "ser" e "não ser" ao mesmo tempo. Por isso, ele contrapõe à filosofia heraclitiana a imobilidade do ser.

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UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL

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Devido às suas convicções, Parmênides postula que o ser é único, imóvel, imutável e infinito. A essência de todas as coisas é sempre a mesma, apenas na aparência é que percebemos a mudança.

As diferenças são percebidas apenas no mundo sensível, que, segundo este filósofo, é falso, pois a percepção pelos sentidos é ilusória. Parmênides estava convicto de que somente o mundo inteligível é verdadeiro e que o pensamento corresponde à realidade. Esta correspondência entre pensamento e realidade será chamada na Filosofia de princípio da identidade. (ARANHA; MARTINS, 2003).

UNI

Mais adiante, no século XVI, esta ideia irá ser retomada por René Descartes, quando este acentuar o papel da razão na construção do conhecimento. Mas isto é assunto para o segundo tópico deste estudo.

Outros filósofos pré-socráticos ainda disseram que o fundamento de todas as coisas estava na água (Tales), no ar (Anaxímenes), no átomo (Demócrito) ou nos quatro elementos – terra, ar, água e fogo (Empédocles) (ARANHA; MARTINS, 2003). O trabalho dos filósofos pré-socráticos é distinto das narrativas mitológicas, pois eles discutem de maneira racional sobre a natureza e de que forma ela está organizada.

Essas primeiras formas de pensamento filosófico foram possíveis graças ao ambiente da cidade, do pensamento progressivamente concreto e racional. O contexto da cidade possibilitou que pessoas se ocupassem com esse tipo de questões.

A vida na cidade também fez surgir outro tipo de reflexão, preocupada com a convivência das pessoas na cidade, a sua organização e desenvolvimento. Quando havia pessoas pensando de formas diferentes sobre o progresso da cidade, era preciso convencer as demais para que seguissem um plano determinado.

Essas estratégias foram pensadas pelos chamados sofistas, sobre quem falaremos no próximo ponto.

2.3 OS SOFISTAS

A atuação dos sofistas destoa bastante da reflexão dos filósofos pré-socráticos. Isto se deve, em boa medida, porque os seus interesses são distintos.

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A atuação dos chamados sofistas ocorre no período áureo da cultura grega, no século V a.C. Em Atenas existe uma intensa atividade artística e cultural nesse período, que também se caracteriza pelo auge da democracia.

Ainda que as questões da natureza apareçam nas reflexões filosóficas, o foco se torna cada vez mais o próprio ser humano. Ou seja, a filosofia assume gradativamente um enfoque antropológico, envolvendo questões de ordem moral e política. (ARANHA; MARTINS, 2003).

Os sofistas surgem a partir dos novos desafios que o desenvolvimento das cidades e do comércio na Grécia geraram. Antes, a sociedade era regida por uma elite proprietária de terras e do poder militar. Esta classe baseava a educação dos seus filhos no modelo dos heróis mitológicos, especificamente dos guerreiros belos e bons. A beleza se caracterizava pelo corpo escultural formado pelos exercícios físicos, pela ginástica, pela dança e pelos jogos de guerra.

O ser bom era definido a partir das leituras de Homero e Hesíodo, por exemplo, que descreviam as características dos heróis, cujas virtudes eram admiradas pelos deuses, sendo a principal delas a coragem diante da morte na guerra. A coragem aparece como importante elemento na luta de Heitor e Aquiles, contada por Homero e retratada no cinema através do filme "Troia".

DICAS

Assista ao filme A Guerra de Troia.

FONTE: Disponível em: < monteolimpoblog.blogspot.com>. Acesso em: 15 dez. 2012.

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Conforme Chauí (2008, p. 40), "a virtude era a aretê (palavra grega que significa 'excelência e superioridade'), própria dos melhores, ou, em grego, dos aristoi." Daí deriva a palavra aristocracia, que quer dizer o governo dos melhores.

Quando se desenvolveram as cidades e o comércio, surgiu também uma nova classe social rica que estava igualmente interessada em ter influência política. Assim, desenvolveu-se a democracia grega, pela qual essa participação se tornou possível. As decisões concernentes à vida na cidade passaram a ser tomadas na praça pública, a Ágora. Das reuniões na praça pública participavam todos os cidadãos, expondo as suas ideias de modo a convencer os demais dos seus pontos de vista.

O modelo de educação aristocrático já não atendia mais às novas necessidades, por isso surgiu um novo modelo de educação, protagonizado pelos sofistas. Os sofistas eram membros da nova classe social que procurou ampliar a sua influência política, que poderia ser concretizada a partir dos debates na praça pública. Era preciso que houvesse conhecimento e argumentos para estas discussões.

Assim, os sofistas se tornam os primeiros educadores, pois contribuíram para a sistematização dos conhecimentos de tal forma que pudessem formar o cidadão que faz a sua voz ser ouvida na Ágora. Eles dão uma contribuição fundamental para a sistematização do ensino, ao formarem um currículo de estudos: gramática, retórica, dialética, aritmética, geometria, astronomia e música. (CHAUÍ, 2008).

Os sofistas se tornaram especialistas em retórica, que é a arte da argumentação. À medida que se dispõem a ensinar os filhos da nova classe rica, os sofistas iniciam os jovens na arte da retórica. Ao mesmo tempo, considerando o aspecto bastante prático de sua reflexão, ou seja, a preocupação com as discussões na praça pública, eles acabaram por elaborar o ideal teórico da democracia. Os cidadãos da nova classe rica tiveram especial interesse neste assunto, pois ele se contrapõe diretamente aos interesses da velha aristocracia rural. (ARANHA; MARTINS, 2003).

Através de sua atuação, os sofistas contribuíram ainda para a profissionalização da educação, pois muitos deles cobravam pelos serviços prestados. Essa prática lhes rendeu muitas críticas, como as feitas, por exemplo, por Sócrates, que os acusava de "prostituição".

Segundo o filósofo, o conhecimento não poderia ser vendido. Mas, conforme alertam Aranha e Martins (2003), mesmo que alguns sofistas poderiam ser chamados de "mercenários do saber", isto de modo algum pode ser aplicado a todos eles. Os sofistas deixaram uma contribuição muito valiosa para a filosofia posterior e, certamente, podem ser considerados entre os precursores dos modernos estudos da linguagem, que incluem a linguística, o jornalismo, marketing e outros.

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2.4 SÓCRATES

Como já vimos no ponto anterior, Sócrates não simpatizava com os sofistas. Em primeiro lugar, pelo fato de eles cobrarem pelo ensino que ministravam, mas também porque Sócrates não aceitava a possibilidade de se defender qualquer ideia somente para que se pudesse ganhar um debate em praça pública.

O filósofo estava convicto de que somente a verdade deveria ser defendida. E, antes de querer convencer os outros de alguma ideia, cada um deveria primeiro conhecer a si mesmo. Por outro lado, Sócrates concordava com os sofistas quando eles afirmavam que a educação aristocrática já não atendia mais às necessidades da cidade. Era preciso, portanto, que se criasse um novo modelo educacional, mais adequado aos novos tempos. (CHAUÍ, 2008).

Mas, quem foi Sócrates e quais foram as suas principais ideias filosóficas?

Sócrates viveu aproximadamente entre os anos 470 e 399 a.C., em Atenas, e não deixou nenhum testemunho escrito. Tudo o que se sabe sobre ele é transmitido por dois de seus discípulos, Xenofontes e Platão.

Platão apresenta Sócrates como um homem que andava pelas ruas de Atenas fazendo perguntas às pessoas, principalmente àquelas que discursavam em praça pública. Ele perguntava sobre os valores que os gregos consideravam fundamentais para a sua sociedade, tais como a coragem, a virtude, o amor, a honestidade, a amizade e a verdade. Para a sua surpresa, as pessoas sempre lhe respondiam com exemplos, ao que retrucava dizendo que não estava interessado nos exemplos e, sim, queria saber o que é o amor, a amizade etc. A atitude de Sócrates causava embaraço. As pessoas se sentiam constrangidas e percebiam que não tinham as respostas para as perguntas do filósofo. (CHAUÍ, 2008).

FIGURA 2 – SÓCRATES

FONTE: Disponível em: <http://ghiraldelli.pro.br/wp-content/uploads/2011/02/socrates.gif>. Acesso em: 20 out. 2012.

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Aranha e Martins (2003) ressaltam que, ao adotar esses procedimentos, Sócrates lança mão de um método próprio de reflexão filosófica, que chamam de ironia e maiêutica. Ironia é um verbo grego usado para "perguntar" e maiêutica significa "parto". O método socrático teria sido assim denominado em homenagem à mãe de Sócrates, que era parteira. Ou seja, enquanto ela ajudava as pessoas a vir à luz, o filho era um parteiro de ideias.

O pensamento socrático é, muitas vezes, identificado com a famosa afirmação "Só sei que nada sei". Em outras palavras, isto quer dizer que Sócrates não se considerava uma pessoa arrogante, pois tinha consciência de que não era possível conhecer tudo. Essencial para a reflexão filosófica é a capacidade de perguntar, de querer saber coisas novas. Quando alguém pensa que já sabe tudo, que já está pronta, então não há mais necessidade de aprendizado e também de reflexão, muitos menos de filosofia.

Portanto, o filósofo considerava a humildade como elemento essencial da pessoa que quer ser sábia. O sábio sabe reconhecer os seus próprios limites e não hesita em admitir que não é dono da verdade, que não possui todas as respostas. Quando Sócrates fazia perguntas às pessoas até lhes mostrar que aquilo que acreditavam ser a verdade não era realmente algo consistente, não queria dizer que ele mesmo possuía todas as respostas.

Sócrates introduziu na filosofia a necessidade de se fazer uma diferença entre aquilo que se apresenta aos nossos olhos, aquilo que assimilamos através dos nossos sentidos, e as essências das coisas. Ele não queria apenas saber a opinião dos cidadãos de Atenas sobre determinado assunto, mas estava disposto a procurar o conceito que oferecesse o acesso à própria verdade. Essa busca da verdade tem uma enorme força social e política, pois faz as pessoas perguntarem pelo real sentido do que está à sua volta.

Por essa razão, Sócrates logo passou a ser visto como um perigo pelos poderosos de Atenas e considerado alguém que estava corrompendo a juventude com as suas ideias. Ele foi levado perante a assembleia da cidade e foi julgado culpado, sendo obrigado a tomar veneno, a cicuta. Sócrates não se defendeu das acusações, dizendo que não as aceitava. Também não abriu mão de suas ideias e da liberdade de pensar e, dessa forma, preferiu a morte. (CHAUÍ, 2008).

Marilena Chauí (2008) faz uma analogia do trabalho de Sócrates com o personagem Neo do filme Matrix. Assim como Sócrates acreditava que a maioria dos gregos estava vivendo num mundo de ilusão, também em Matrix o mundo dominado pelas máquinas sujeitou a humanidade à escravidão. Era preciso, dessa forma, libertar-se das amarras que oprimem e não nos deixam ver a realidade como ela é de fato.

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DICAS

Caro(a) acadêmico(a), sugiro que assista ao primeiro filme da trilogia Matrix.

MATRIX

FONTE: Disponível em: <http://www.euniverso.com.br/Filmes/matrix01.jpg>. Acesso em: 20 out. 2012.

No ponto seguinte vamos analisar o pensamento do principal discípulo de Sócrates, que é Platão.

2.5 PLATÃO

Platão foi discípulo de Sócrates, como já referido acima, e desenvolveu o pensamento do seu mestre. Muitas vezes é difícil saber onde termina o pensamento de Sócrates e em que ponto começa o de Platão. Platão viveu em Atenas entre os anos 428 e 347 a.C., onde fundou uma escola chamada Academia. O seu pensamento pode ser mais bem compreendido a partir de uma análise do seu famoso "Mito da Caverna".

DICAS

A seguir vamos ler este trecho da obra de Platão, no livro VII de “A República”. Platão narra este mito como se fosse um diálogo entre Sócrates e alguém chamado Glauco.

Sócrates – [...] Pense em homens encerrados numa caverna, dotada de uma abertura que permite a entrada de luz em toda a sua extensão da parede maior. Encerrados nela desde a infância, acorrentados por grilhões nas pernas e no pescoço que os obrigam a ficar imóveis, podem olhar para a frente, porquanto as correntes no pescoço os impedem de virar a cabeça.

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Atrás e por sobre eles, brilha à distância uma chama. Entre esta e os prisioneiros delineia-se uma estrada em aclive, ao longo da qual existe um pequeno muro, parecido com os tabiques que os saltimbancos utilizam para mostrar ao público suas artes.

Glauco – Estou imaginando tudo isso.

S. – Suponha ainda, ao longo daquele pequeno muro, homens que carregam todo tipo de objetos que aparecem por sobre o muro, figuras de animais e de homens de pedra, de madeira, de todos os tipos de formas. Alguns dentre os homens que as carregam, como é natural, falam, enquanto outros ficam calados.

G. – Que visão estranha e que estranhos prisioneiros!

S. – Malgrado isso, são semelhantes a nós. Pense bem! Em primeiro lugar, deles mesmos e de seus companheiros poderiam ver algo mais do que sombras projetadas pela chama na parede da caverna diante deles?

G. – Impossível, se foram obrigados a ficar por toda a vida sem mover a cabeça.

S. – E não se encontram na mesma situação no tocante aos objetos que desfilam perante eles?

G. – Certamente.

S. – Supondo que pudessem falar, você não acha que considerariam reais as figuras que estão vendo?

G. – Sem dúvida alguma.

S. – E se a parede oposta da caverna fizesse eco? Quando um dos que passam se pusesse a falar, você não acha que eles haveriam de atribuir aquelas palavras à sua sombra?

G. – Claro, por Zeus!

S. – Então para esses homens a realidade consistiria somente nas sombras dos objetos.

G. – Obviamente haveria de ser assim.

S. – Vamos ver agora o que poderia significar para eles a eventual libertação das correntes e da ignorância. Um prisioneiro que fosse libertado e obrigado a se levantar, virar a cabeça, a caminhar e a erguer os olhos para a luz, haveria de sofrer ao tentar fazer tudo isso, ficaria aturdido e seria incapaz de discernir aquilo de que antes só via a sombra. Se a ele se dissesse que antes via somente as aparências e que agora poderia ver melhor porque seu olhar está mais próximo da realidade e voltado para objetos bem reais; se lhe fosse mostrado cada um dos objetos que desfilam e se fosse obrigado com algumas perguntas a responder o que era isso, como você acha que ele haveria de se comportar? Você não acha que ficaria atordoado e haveria de considerar as coisas que via antes mais verdadeiras do que aquelas que são mostradas agora?

G. – Sem dúvida, muito mais verdadeiras.

II.

Sócrates – Se fosse obrigado a olhar extremamente para a luz, não haveria de sentir os olhos doloridos e não tentaria desviá-los e dirigi-los para o que pode ver? Não haveria de acreditar que isto seria na realidade mais verdadeiro do que agora se quer mostrar a ele?

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Glauco – Certamente.S. – E se alguém o tirasse à força dali, fazendo-o subir pela áspera e íngreme subida, libertando-o somente depois de tê-lo levado à luz do sol, o prisioneiro não sentiria dor e ao mesmo tempo raiva por ser assim arrastado? Uma vez fora, à luz do dia, por acaso não é verdade que, com seus olhos cegados pelos raios do sol, não conseguiria contemplar sequer um só dos objetos que agora nós consideramos reais?

G. – Sim, pelo menos não de imediato.

S. – Acho que precisaria de tempo para habituar-se a contemplar essas realidades superiores. Primeiramente, haveria de ver com a maior facilidade as sombras, depois as figuras humanas e todas as outras refletidas na água e, por último, poderia vê-las como são na realidade. Após isso, seria capaz de filtrar os olhos nas constelações e contemplaria o próprio céu à noite, à luz das estrelas e da lua, mais facilmente que durante o dia, sob o esplendor do sol.

G. – Sem sombra de dúvida.

S. – Acho que, por fim, haveria de contemplar o sol, não sua imagem refletida na água ou em qualquer outra superfície, mas em sua realidade, assim como realmente é, em seu próprio lugar.

G. – Perfeito.

S. – Depois passaria a refletir que é o sol que produz as estações e os anos, que governa todos os fenômenos do mundo visível e que, de algum modo, é ele a verdadeira causa daquilo que os prisioneiros viam.

G. – Evidentemente que refletindo assim chegaria gradualmente a essas conclusões.

S. – E depois? Lembrando-se de sua antiga morada, da ideia de sabedoria que lá imperava e de seus velhos companheiros de prisão, não se consideraria afortunado pela mudança efetuada e não sentiria compaixão por eles?

G. – Obviamente.

S. – Se aqueles da caverna inventassem atribuir honras, elogios e prêmios a quem melhor visse a passagem das sombras e se recordasse com maior exatidão quais passavam primeiro, quais por último e quais passavam juntas e, com base nisso, adivinhasse com grande habilidade aquelas que passavam em cada preciso momento, você acha que ele ficaria com desejo e com inveja de suas honras e de seu poder ou se haveria de encontrar na condição do herói homérico e preferiria ardentemente “trabalhar como assalariado a serviço de um pobre camponês” e sofrer qualquer privação, antes que dividir as opiniões deles e voltar a viver à maneira deles?

G. – Sim, acho que aceitaria sofrer qualquer tipo de privação, antes de retornar a viver daquela maneira.

S. – Mais um ponto a ser considerado. Se aquele homem tivesse de descer novamente e retomar seu lugar, não haveria de sentir os olhos doloridos por causa da escuridão, vindo inopinadamente do sol?

G. – Certamente.

S. – Se, enquanto tivesse a vista confusa pelo tempo que se passaria antes que os olhos se acostumassem novamente com a obscuridade, devesse avaliar novamente aquelas sombras

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e apostasse com aqueles eternos prisioneiros, você não acha que passaria por ridículo e dele diriam que sua saída lhe havia arruinado a vista e que sequer valia a pena enfrentar essa subida? Não haveria de ser morto aquele que tentasse libertar e fazer subir os outros, bastando para isso que o tivessem entre as mãos para matar?

G. – Não há dúvida alguma.

FONTE: Adaptado de: <books.google.com.br/books?isbn=8561495014>. Acesso em: 15 dez. 2012.

No mito da caverna, Platão faz uma diferença entre o mundo sensível e o mundo das ideias. O mundo sensível é aquele que era percebido pelos sentidos dos prisioneiros como sombras refletidas na parede. A realidade, para aquelas pessoas que nunca haviam experimentado algo diferente, era um mundo de sombras e de ecos. Imaginar outro mundo, onde houvesse outras condições de luminosidade, de cores, de cheiros e formas, era algo que poderia ser comparado à loucura. Quem ousasse mencionar algo assim era ridicularizado.

A principal característica do pensamento de Platão é a dualidade entre o mundo ideal, ou das ideias, e o mundo sensível. O seu esforço maior foi o de tentar realizar a síntese entre os pensamentos opostos de Parmênides e Heráclito. O primeiro, como estudamos no ponto sobre os filósofos pré-socráticos, defendia a imutabilidade do ser; enquanto o segundo ressaltava a existência de um mundo em constante transformação.

Para Platão, as conclusões de Heráclito decorriam da experiência que fazemos com os nossos sentidos, mas que seriam enganosos. O filósofo ilustra isso no mito da caverna ao ressaltar que a vivência em diferentes ambientes leva à formação de diferentes concepções da realidade. A vivência na prisão da caverna durante toda a vida levou aquelas pessoas a acreditarem que o seu mundo, a realidade, era o que estava diante dos seus olhos. A verdade era associada às sombras que eram projetadas na parede.

A possibilidade de sair daquele lugar e experimentar a existência de outras formas de realidade provocou uma mudança na concepção de mundo. Os sentidos nos oferecem novos parâmetros para a compreensão do mundo. Mas o que Platão quer justamente mostrar é que não há garantia de que o que vemos corresponda efetivamente à realidade.

Portanto, segundo Platão, os nossos sentidos nos enganam e a verdade deveria residir em outra esfera, não na do mundo sensível. Assim, tanto o pensamento socrático como o de Platão ressaltam que o verdadeiro conhecimento não está na experiência sensível, mas na essência das coisas, que pode ser alcançada mediante o uso da inteligência. O mundo inteligível, da razão, é o que corresponde à verdade.

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DICAS

O cartunista Maurício de Souza fez uma representação moderna do mito da caverna de Platão.

FIGURA 3 – VERSÃO MODERNA DO MITO DA CAVERNA

FONTE: Disponível em: <http://3.bp.blogspot.com/_4TStK8uZrgU/TJT2SLWn6tI/AAAAAAAAFRI/NXprcpgW250/s1600/mitodacaverna.png >. Acesso em: 20 out. 2012.

NOTA

Portanto, Sócrates e Platão foram sérios críticos dos sofistas, que aceitavam como verdadeiros os conhecimentos formados pela experiência sensível. Segundo os filósofos, esta forma a mera opinião, ou dóxa em grego, que poderia variar de pessoa para pessoa, conforme cada circunstância particular. A preocupação da filosofia, por sua vez, deveria ser com o conhecimento verdadeiro, alcançável unicamente pelo pensamento. (CHAUÍ, 2008).

Vejamos, agora, como o pensamento de Sócrates e Platão foi desenvolvido pelo filósofo Aristóteles.

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2.6 ARISTÓTELES

O tempo de atuação de Aristóteles é caracterizado na história da filosofia como período sistemático. Isso se deve ao fato de que o filósofo tem um papel fundamental na organização e sistematização do pensamento filosófico desenvolvido até então e, ainda, ao seu aprofundamento.

Devemos a Aristóteles a organização do pensamento lógico através do qual elabora uma explicação da realidade a partir do princípio de causalidade, ou seja, para ele, todas as coisas têm uma causa, que pode ser estudada e compreendida.

Aristóteles viveu entre os anos de 384 e 322 a.C. Ele frequentou a Academia de Platão e a sua fidelidade ao mestre é relativa. O filósofo desenvolveu o pensamento de Platão e o aprofundou, mas também foi divergente em muitos aspectos. Entre os principais aspectos críticos estava a compreensão de um mundo separado das ideias.

Aristóteles não achava que seria possível conceber a realidade em duas esferas completamente distintas, independentes uma da outra. Se Platão apenas tentou realizar a síntese entre os pensamentos de Parmênides e Heráclito, Aristóteles funde definitivamente essas duas grandes proposições filosóficas num único sistema.

Para superar a dicotomia platônica, a teoria aristotélica está fundamentada

em três distinções fundamentais: substância-essência-acidente; ato-potência; forma-matéria. (ARANHA; MARTINS, 2003).

Vejamos a seguir de que forma Aristóteles propôs uma nova explicação da realidade a partir desses conceitos.

Segundo Aristóteles, toda a realidade é composta de substância. Para ele, a substância é "aquilo que é em si mesmo". Toda substância, por sua vez, possui atributos, que podem ser ou não essenciais. Se os atributos da substância não são essenciais, então eles podem ser chamados de acidentais. Se os atributos essenciais faltam a uma determinada substância, ela não poderia ser considerada o que é.

Vamos pensar em um exemplo para tornar mais compreensível a distinção de substância, essência e acidente feita por Aristóteles.

Aranha e Martins (2003) propõem que imaginemos um ser humano, que podemos considerar como sendo uma substância individual. Para que possamos considerar essa substância um ser humano e não outra coisa qualquer, é preciso que a substância tenha alguns atributos essenciais. Na história da filosofia, a característica essencial do ser humano sempre foi considerada a racionalidade.

Então, se não houver racionalidade, não podemos considerar uma substância como um ser humano. Por outro lado, há vários atributos no ser humano que não são essenciais para que ele seja considerado como tal. Se uma

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pessoa for velha, nova, obesa ou magra, ou então tiver cabelos longos ou nem sequer tiver cabelo, isso não faz com que ela deixe de ser um ser humano.

Contudo, com a distinção acima ainda não é possível resolver o problema das transformações dos seres e explicar a origem das diferenças. De que modo os seres humanos se tornaram diferentes uns dos outros? Para resolver este problema, Aristóteles recorre às noções de matéria e forma. A matéria é aquilo de que todas as coisas são feitas. Esse conceito é muito próximo à concepção que a física moderna tem de matéria.

A característica da matéria é a indeterminação. Desse modo, um amontoado de células não constitui um ser humano; tampouco uma porção de granito pode ser considerada uma estátua. Para que a matéria seja considerada algo é preciso que ela adquira forma. A matéria tem a forma apenas potencialmente. Várias células podem tornar-se um ser humano, mas não necessariamente. Do mesmo modo, uma semente possui a forma de árvore como potencial, assim como uma pedra pode vir a ser uma estátua.

A matéria é a parte constante e imutável da realidade e, nesse sentido, engloba as conclusões a que chegou Parmênides, de que o mundo é imutável. Já com a noção de forma, Aristóteles nos remete ao pensamento de Heráclito, que privilegiou a mudança como elemento constitutivo da realidade e do mundo.

Contudo, ainda é preciso entender como Aristóteles concebia a transformação da matéria para que ela viesse a adquirir uma forma determinada. Segundo o filósofo, como já referimos acima, toda a matéria tem a forma em potência. Quando a matéria adquiriu uma forma determinada, então ele dizia que se havia chegado ao ato. (ARANHA; MARTINS, 2003).

O ato é a forma adquirida. No exemplo do ser humano que tomamos acima, a matéria são as células logo após a fecundação do óvulo pelo espermatozoide. Estas células têm a forma humana somente em potencial. O ato é o ser humano formado.

FIGURA 4 – EMBRIÃO HUMANO

FONTE: Disponível em: <http://espectivas.files.wordpress.com/2009/03/embriao2.jpg>. Acesso em: 20 out. 2012.

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NOTA

Há uma discussão muito séria, atualmente, sobre qual seria o momento em que o óvulo passa a ser um ser humano. Esta polêmica, normalmente, está associada à discussão sobre o aborto. Então, caro(a) acadêmico(a), quando ocorre a passagem da simples matéria para a vida humana? Pense a respeito!

Segundo Aranha e Martins (2003), para explicar o movimento de passagem da potência ao ato, Aristóteles recorre à teoria das quatro causas:

a) A causa material: é aquilo de que uma coisa é feita. Ela é determinante, pois de um monte de pedras não se pode esperar um ser humano. Mas as pedras podem ser transformadas em uma estátua.

b) A causa eficiente: é aquilo com que a coisa é feita. Para que as pedras virem esculturas, é preciso que haja um escultor.

c) A causa formal: é aquilo que a coisa vai ser. No caso das pedras, a estátua é a causa formal, especificamente a imagem feita na mente do escultor. Quando ele vê a pedra, ele já é capaz de imaginar em seu lugar a estátua pronta.

d) A causa final: é aquilo para o qual a coisa é feita. A estátua pode ter a finalidade de servir de decoração ou homenagear alguma pessoa importante.

FIGURA 5 – ESTÁTUA DA JUSTIÇA NA PRAÇA DOS TRÊS PODERES EM BRASÍLIA

FONTE: Disponível em: <http://www.infopedia.pt/mostra_imagem.jsp?recid=20034>. Acesso em: 20 out. 2012.

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Desse modo, com uma única teoria, Aristóteles foi capaz de reunir os pensamentos de Parmênides e Heráclito e superar o mundo separado das ideias proposto por Platão. O sistema aristotélico contempla ao mesmo tempo a imutabilidade do mundo e as mudanças. Com Aristóteles se concretiza definitivamente a mudança na mentalidade da antiguidade de uma esfera sobrenatural e mítica para uma mentalidade racional e orientada exclusivamente para a esfera imanente. Não era mais necessária a recorrência à transcendência para explicar o cotidiano.

Ainda assim, o divino não se tornou completamente desnecessário para explicar a realidade como um todo. Ele não era mais essencial para entender a realidade presente, mas continuou a existir como princípio que deu origem a todo o universo.

Por isso, Aranha e Martins (2003, p. 124) dizem que "toda a estrutura

teórica da filosofia aristotélica desemboca no divino". Vejamos: se todas as coisas têm uma causa, como propôs Aristóteles, então nos restam duas possibilidades para explicar a origem do universo. Ou ele é infinito, de modo que não haja uma origem, mas cuja ideia é difícil de ser apreendida pela razão humana; ou então ele é finito e, nesse caso, é preciso que haja um princípio gerador. Como princípio primeiro, é preciso que seja diferente de todas as outras coisas, pois não pode ser fruto de uma causa anterior.

Aranha e Martins (2003, p. 124) dizem a respeito:

Ou seja, todo ser contingente foi produzido por outro ser, que também é contingente e assim por diante. Para não ir ao infinito na sequência das causas, é preciso admitir uma primeira causa, por sua vez incausada, um ser necessário (e não contingente). Esse Primeiro Motor (imóvel, por não ser movido por nenhum outro) é também um puro ato (sem nenhuma potência). Chamamos Deus ao Primeiro Motor Imóvel, Ato Puro, Ser Necessário, Causa Primeira de todo existente.

Além das questões acima, Aristóteles ainda se ocupou com o tema da ética, que é extremamente atual, se considerarmos os inúmeros escândalos políticos, financeiros e as recorrentes denúncias de corrupção (TRIGO, 2009). Se o mundo é organizado a partir do princípio de causas e efeitos, então o comportamento das pessoas produz efeitos, que podem ser bons ou ruins. Desse modo, a ação humana deve ser direcionada de tal forma a produzir os melhores efeitos possíveis. A ação humana exige responsabilidade, segundo a teoria aristotélica.

Podemos ver, então, que o pensamento aristotélico tem grande profundidade e capacidade de explicação da realidade em que vivemos. Não foi por acaso que ele se tornou modelo para toda a ciência ocidental até a atualidade. Vamos aprofundar isso ao longo dos próximos tópicos.

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3 O PENSAMENTO FILOSÓFICO HELENÍSTICOA filosofia posterior a Platão e Aristóteles se desenvolveu em um ambiente

político muito diferente daquele dos primeiros filósofos. Até então, Atenas era politicamente independente e havia experimentado a possibilidade da democracia. A partir da segunda metade do século IV a.C., Atenas perdeu a sua autonomia, quando foi conquistada, primeiro por Tebas e depois pelos macedônios. Todas as tentativas de libertação fracassaram e terminaram em grande derramamento de sangue. Embora a dominação macedônica tenha durado pouco, as pretensões de independência da Grécia não duraram, pois logo caiu sob o domínio do Império Romano. (MONDIN, 1981).

Por outro lado, segundo Mondin (1981), o pensamento e a cultura gregos conquistaram o mundo da antiguidade e o marcaram para toda a história posterior. Esse fenômeno de expansão da língua e da cultura gregas é chamado de helenismo. Helenismo provém de Hélade, que era o nome da Grécia na antiguidade. Com o helenismo surgiram alguns centros intelectuais de destaque, tais como Pérgamo, Antioquia e Alexandria.

No período helenístico não surgem ideias novas. De algum modo, tinha-se a impressão de que todas as grandes ideias e teorias a respeito do universo, de sua origem e de seu fundamento já haviam sido formuladas no período clássico da filosofia grega. Assim, para muitos restava a adesão a alguma dessas teorias e a sua repetição, quem sabe o seu aprofundamento. Nesse sentido, pode-se experimentar um desenvolvimento significativo dos conhecimentos específicos, tais como a matemática, a geometria, a astronomia, a geografia, as ciências naturais, a medicina e a história.

Diante de uma sociedade em que a perda de autonomia era crescente, as preocupações se voltaram gradativamente para o indivíduo. A antiga pólis, a cidade, na qual se debatia os interesses em praça pública, na ágora, já não existe da mesma forma. A vida coletiva estava sob a condução dos conquistadores e, nesse sentido, não oferecia grandes possibilidades para a reflexão filosófica. Por isso, no período helenístico, progressivamente a filosofia voltou as suas atenções para questões éticas. Diante das novas perguntas, especialmente a pergunta pelo Sumo Bem, ou o bem supremo, desenvolveram-se quatros tipos de respostas.

Segundo Bondin (1981, p. 109):

Quanto ao Sumo Bem, os estoicos fazem-no consistir na apatia (ou eliminação das paixões); os epicuristas colocam-no na ataraxia (ausência de preocupações e perturbações) e no prazer. Mas muitos espíritos não se sentem satisfeitos com nenhuma destas soluções, e em suas mentes ganha terreno um sentimento de desconfiança em relação a qualquer solução filosófica não só do problema do Sumo Bem, mas também do da verdade: esta é a solução dos céticos. Outros pensadores, ao contrário, julgam que para problemas tão árduos, que nenhuma inteligência humana pode resolver sozinho, seja mais recomendável reunir o que há de bom nos diversos sistemas filosóficos: é a solução dos ecléticos.

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TÓPICO 1 | OS FILÓSOFOS ANTIGOS E MEDIEVAIS

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Podemos perceber, a partir dessa breve caracterização do período helenístico, como a realidade social, econômica e política influenciara diretamente nas maneiras de pensar de pessoas e, dessa forma, contribuiu para o surgimento de novas reflexões filosóficas. Se, por um lado, a filosofia pretende contribuir para a mudança da realidade social, ela é, ao mesmo tempo, determinada por esta realidade que almeja alterar.

Ao longo da Idade Média, a mudança na sociedade foi ainda mais significativa. Vejamos esse desenvolvimento no ponto seguinte.

3.1 A FILOSOFIA NA IDADE MÉDIA

A Idade Média compreende um período histórico de mais de mil anos, estendendo-se desde a queda do Império Romano no século V até o século XV, com as expansões turcas. Durante esse longo período, o interesse da filosofia, que se desenvolverá estreitamente ligada à religião, terá o seu interesse voltado para o além, para o céu, para o divino. (TRIGO, 2009).

Ainda durante o Império Romano, o cristianismo já experimentou um crescimento bastante significativo, embora fosse uma religião perseguida durante quase três séculos, até o ano 313, quando o imperador Constantino a tornou uma religião legal. Em 390, o cristianismo se tornou a religião oficial do Império. Antes disso, porém, era visto como uma ameaça, pois os cristãos se recusavam a prestar o culto ao imperador, que era sinal de fidelidade ao Estado.

Esta realidade de perseguição, martírio e morte fez com que se desenvolvesse uma mentalidade muito particular, quase totalmente voltada para o além. O cotidiano dos cristãos no Império Romano não oferecia grandes perspectivas e as esperanças dessas pessoas foram sendo depositadas progressivamente numa vida depois da morte, no paraíso. Mesmo após a queda do Império Romano, as condições de vida nunca foram exatamente favoráveis. (TRIGO, 2009).

Dois movimentos filosóficos caracterizam a Idade Média: um no início, a Patrística, e outro no final, a Escolástica. Vejamos a seguir cada um deles.

3.2 SANTO AGOSTINHO E A PATRÍSTICA

A Patrística desenvolveu-se no período de decadência do Império Romano, no segundo século da era cristã. Nessa época, o cristianismo experimentou uma grande expansão e a preocupação desses cristãos foi a defesa da fé cristã diante das heresias. Esses defensores da fé são também chamados de pais da igreja e a sua forma de usar a filosofia é conhecida de apologética. Durante toda a Idade Média, aliás, a razão foi subordinada à fé; ela foi feita uma auxiliar da fé cristã.

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Segundo Aranha e Martins (2003, p. 125), disso decorre a expressão de Agostinho: "Credo ut intelligam", que significa "Creio para que possa entender".

O principal expoente da Patrística é Santo Agostinho, que viveu entre os anos 354 e 430, na cidade de Hipona, no norte da África (atual Argélia), onde foi bispo. A principal característica do pensamento dos pais da igreja é a síntese entre o pensamento filosófico grego e a doutrina cristã. Nesse sentido, o pensamento que mais parecia adaptável à fé cristã era a teoria platônica do mundo sensível e do mundo das ideias, sobre a qual falamos acima. A única alteração que Agostinho propôs foi a substituição do mundo das ideias pelo mundo das ideias divinas. Para Agostinho, a verdade está no recebimento das ideias divinas. Somente Deus poderia oferecer o verdadeiro conhecimento e apenas a fé seria a garantia do pensar correto. Esta teoria ficou conhecida como teoria da iluminação. (ARANHA; MARTINS, 2003).

A síntese feita pelos pais da igreja entre a fé e a filosofia levou a um afastamento profundo entre a razão e a realidade social e cotidiana. Desenvolveu-se, nesse contexto, um pensamento filosófico distante da vida, totalmente voltado para uma esfera sobrenatural. A preocupação desses pensadores era atingir a essência de Deus. Explicar como ele é e como funciona. Este esforço é visível, por exemplo, na obra "A Trindade", de Santo Agostinho.

FIGURA 6 – CAPA DO LIVRO "A TRINDADE", DE SANTO AGOSTINHO

FONTE: Disponível em: <http://www.paulus.com.br/images/products/G/9788534900980.jpg>. Acesso em: 25 out. 2012.

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TÓPICO 1 | OS FILÓSOFOS ANTIGOS E MEDIEVAIS

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Esta tendência foi aprofundada pelo movimento filosófico que se sucedeu, ou seja, a escolástica, sobre a qual falaremos no próximo ponto desse tópico.

3.3 TOMÁS DE AQUINO E A ESCOLÁSTICA

Caro(a) acadêmico(a), como vimos no ponto anterior, a primeira parte da Idade Média, conhecida como Alta Idade Média, foi caracterizada pelo pensamento neoplatônico-agostiniano. Na segunda parte da Idade Média, ou na Baixa Idade Média, pode-se destacar a influência da filosofia da Aristóteles na reflexão cristã. O que permanece inalterado nos dois períodos é a tentativa de conciliar a filosofia clássica com a fé cristã.

É importante ressaltar que, durante a Idade Média, o saber foi confinado aos mosteiros e somente os religiosos a ele tinham acesso. Depois que o Império Romano se esfacelou, as cidades gradualmente se tornaram um local de insegurança, miséria e fome. O comércio decresceu e, gradativamente, a população espalhou-se pelo território. Houve, assim, uma ruralização da população. Nesse contexto, os mosteiros se tornaram os únicos lugares onde se conservava livros e onde havia educação. As cidades voltariam a crescer somente a partir do século XI e, com elas, a vida cultural e intelectual sofreria novos impulsos. Entre essas inovações está a retomada do pensamento de Aristóteles.

Por um longo período, Aristóteles foi visto com desconfiança pelos filósofos cristãos, pois as suas ideias lhes pareciam pouco adaptáveis à fé cristã. Foi Santo Tomás de Aquino (viveu de 1225 a 1274) que resgatou o pensamento aristotélico e o combinou com a reflexão cristã. (TRIGO, 2009).

O trabalho desse filósofo cristão consistiu, em boa medida, na aplicação da lógica aristotélica às teorizações sobre a fé, o que levou à construção de uma doutrina cristã extremamente complexa. Entre as vantagens do seu trabalho está a construção de um sistema lógico e argumentativo muito consistente. Por outro lado, a lógica aristotélica reserva pouco ou nenhum espaço para a inovação. O pensamento tomista será reproduzido, principalmente, por padres dominicanos e jesuítas, que serão duramente criticados nos períodos posteriores pela sua intransigência e adversidade à inovação científica. (ARANHA; MARTINS, 2003).

Este é um assunto para o próximo tópico desta unidade.

A grande contribuição do pensamento de Tomás de Aquino para a reflexão filosófica e, posteriormente, para o pensamento sociológico, está no rigor que ele exige da pessoa que se dispõe a filosofar. Assim, embora as suas conclusões não sejam o foco de análise da filosofia posterior, o seu método servirá de referência e ponto de partida para toda a construção científica posterior.

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UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL

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DICAS

Há ótimos filmes sobre a Idade Média. Recomendamos assistir a um em especial: O Nome da Rosa, onde aparecem de modo bastante evidente as diferentes maneiras de se lidar com o conhecimento.

FIGURA 7 – O NOME DA ROSA

FONTE: Disponível em: <http://2.bp.blogspot.com/_Cyy4Qc4kSHA/TALSljRLRrI/AAAAAAAAAEc/5sTSpjvtKak/s1600/O_Nome_Da_Rosa.jpg>. Acesso em: 25 out. 2012.

UNI

Como Leitura Complementar para este tópico, caro(a) acadêmico(a), você tem à disposição uma breve apresentação da lógica aristotélica.

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TÓPICO 1 | OS FILÓSOFOS ANTIGOS E MEDIEVAIS

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A LÓGICA ARISTOTÉLICA

João Francisco Cabral

Para Aristóteles, a lógica não é ciência e sim um instrumento (órganon) para o correto pensar. O objeto da lógica é o silogismo.

Silogismo nada mais é do que um argumento constituído de proposições das quais se infere (extrai) uma conclusão. Assim, não se trata de conferir valor de verdade ou falsidade às proposições (frases ou premissas dadas) nem à conclusão, mas apenas de observar a forma como foi constituído. É um raciocínio mediado que fornece o conhecimento de uma coisa a partir de outras coisas (buscando, pois, sua causa).

Em si mesmas, as proposições ou frases declarativas sobre a realidade, como juízo, devem seguir apenas três regras fundamentais.

1- Princípio de Identidade: A é A.2- Princípio de não contradição: é impossível A é A e não-A ao mesmo tempo.3- Princípio do terceiro excluído: A é x ou não-x, não há terceira possibilidade.

Dessa forma, o valor de verdade ou falsidade é conferido às proposições, pois é imediatamente evidenciado. No entanto, a lógica trabalha com argumentos.

As proposições classificam-se em:

Afirmativas: S é P.Negativas: S não é P.Universais: Todo S é P (afirmativa) ou Nenhum S é P (negativa).Particulares: Alguns S são P (afirmativa) ou Alguns S não são P (negativa).Singulares: Este S é P (afirmativa) ou Este S não é P (negativa).Necessárias: quando o predicado está incluso no sujeito (Todo triângulo tem três lados).Não necessárias ou impossíveis: o predicado jamais poderá ser atributo de um sujeito (Nenhum triângulo tem quatro lados).Possíveis: o predicado pode ou não ser atributo (Todos os homens são justos).

O silogismo é composto de, no mínimo, duas proposições das quais é extraída uma conclusão. É necessário que entre as premissas (P) haja um termo que faça a mediação (termo médio sujeito de uma P1 e predicado da P2 ou vice-versa). Sua forma lógica é a seguinte:

LEITURA COMPLEMENTAR

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UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL

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A é B Logo, B é C (sempre os termos maior e menor).C é A

Observem que o termo médio é o termo A, que é sujeito numa frase e predicado na outra. Assim, ele não aparece na conclusão, evidenciando que houve mediação e que a conclusão é, de fato, uma dedução ou inferência, isto é, ela é realmente extraída da relação entre as premissas.

A relação entre as proposições acontece da seguinte maneira:

1 Proposições contraditórias: quando se diz que Todo S é P e Alguns S não são P ou Nenhum S é P e Alguns S são P.

2 Proposições contrárias: quando se diz que Todo S é P e Nenhum S é P ou Alguns S são P e Alguns S não são P.

3 Subalternas: quando se diz que Todo S é P e Alguns S são P ou Nenhum S é P e Alguns S não são P.

O silogismo, portanto, é o estudo da correção (validade) ou incorreção (invalidade) dos argumentos encadeados segundo premissas das quais é lícito se extrair uma conclusão. Sua validade depende da forma e não da verdade ou falsidade das premissas. Desse modo, é possível distinguir argumentos bem feitos, formalmente válidos, dos falaciosos, ainda que a aparência nos induza a enganos. Por exemplo:

P1 - Todo homem é mortal (V).P2 - Sócrates é homem (V).C - Logo, Sócrates é mortal (V).

O argumento é válido não porque a conclusão é verdadeira, mas por estar no modelo formal:

A é B Logo, B é CC é A

Outro exemplo:

P1 – Todos os mamíferos são mortais (V).P2 – Todos os cães são mortais (V).C – Logo, todos os cães são mamíferos (V).

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Ora, embora as premissas e a conclusão sejam verdadeiras, não houve inferência, já que por não estarem formalmente adequadas, as premissas não têm relação com a conclusão.

Formalmente o argumento é A é B C é B

Logo, A é C, argumento falacioso, já que o termo médio não faz ligação entre os outros termos.

São várias as combinações, o importante é atentar para a forma. É dela que se pauta a lógica.

FONTE: CABRAL, João Francisco P. A lógica aristotélica. Disponível em: <http://www.brasilescola.com/filosofia/logica-aristoteles.htm>. Acesso em: 10 out. 2012.

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• Não se trata de um curso de filosofia, mas é preciso resgatar as ideias dos principais pensadores de cada período para compreender, posteriormente, como estas ideias estão na raiz do pensamento filosófico e sociológico moderno.

• Começamos falando dos antigos gregos, expondo inicialmente o contexto histórico que possibilitou o surgimento do pensamento filosófico. Essa análise foi importante, porque ajuda a entender como a reflexão filosófica e sociológica não ocorre de modo independente da realidade política e social.

• Estudamos as principais características dos sofistas, de Sócrates, de Platão e de Aristóteles, que viveram no período clássico da história e cultura gregas. Pudemos perceber aqui a preocupação com duas questões distintas: os sofistas preocuparam-se com o aspecto formal do discurso, com a retórica. O seu esforço estava voltado especialmente para o cidadão grego que fala em praça pública e quer convencer os demais de suas ideias.

• Sócrates, Platão e Aristóteles, por sua vez, quiseram entender a essência das coisas e acusavam os sofistas de serem inimigos da verdade, pois usavam de todas as artimanhas para ter o apoio das outras pessoas. De Aristóteles, ainda herdamos os fundamentos do pensamento lógico.

• Vimos que no helenismo e, especialmente, durante a Idade Média, a filosofia e a razão são gradativamente subordinadas à religião. São utilizadas, particularmente, a teoria de Platão, sobre o mundo sensível e o mundo das ideias, das quais se apossou Agostinho, e a teoria de Aristóteles, empregada por Tomás de Aquino, que usa a lógica para a apresentação coerente da doutrina cristã.

• Todas essas matrizes de pensamento serão aprofundadas e reinterpretadas nos séculos seguintes, com o propósito de fazer da razão humana o centro da reflexão filosófica. Vamos falar sobre isto no próximo tópico desta unidade.

RESUMO DO TÓPICO 1

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1 Sobre os sofistas é verdadeiro afirmar. Analise as seguintes sentenças.

I- Os sofistas fazem parte dos filósofos pré-socráticos e a sua principal contribuição para a filosofia consiste na elaboração da teoria sobre a essência das coisas.II- Os sofistas ofereceram uma importante contribuição para a educação na medida em que elaboraram as primeiras sistematizações do ensino.III- Os sofistas foram filósofos da Idade Média, seguidores de Tomás de Aquino.IV- Os sofistas foram um grupo de filósofos do helenismo também chamados de céticos.

Considerando as proposições acima, assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) Todas as sentenças estão corretas.b) ( ) As sentenças I, III e IV estão corretas.c) ( ) As sentenças II e III estão corretas.d) ( ) Somente a sentença II está correta.

2 Caracterize alguns fatores que contribuíram para o advento da filosofia.

3 Qual foi a principal crítica de Sócrates aos sofistas? Assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) Sócrates discordava da afirmação de que tudo estava em constante mudança, ou seja, o ser é móvel.

b) ( ) Sócrates afirma que ele havia se prostituído ao cobrarem remuneração pelos serviços de educar os filhos das famílias ricas de Atenas. Sócrates estava convicto de que não se deveria cobrar pelo conhecimento.

c) ( ) Para Sócrates, a lógica dos sofistas era cheia de erros e, por isso, preferia a que havia sido desenvolvida por Aristóteles.

d) ( ) Sócrates era simpatizante dos sofistas, pois compartilhava muitas das suas convicções sobre a educação.

AUTOATIVIDADE

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TÓPICO 2

A REVOLUÇÃO FILOSÓFICA A PARTIR

DA MODERNIDADE

UNIDADE 1

1 INTRODUÇÃOAs palavras “moderno” e “modernidade” têm muitas significações e são

empregadas das mais variadas formas. Aqui, vamos usá-las para nos referirmos ao período histórico em torno do século XVI, que trouxe grandes mudanças para todas as esferas do conhecimento humano. Ao longo deste tópico vamos nos ocupar com estas mudanças e perguntar o que elas representaram e ainda representam para o pensamento filosófico e sociológico.

Para analisar o período, vamos iniciar com uma breve análise do contexto histórico do século XVI e ver quais foram as mudanças mais significativas desse período, ressaltando aquelas que foram decisivas para o surgimento de novas formas de pensar. Veremos que muitos dos fatores que contribuíram para o surgimento da filosofia lá na Grécia antiga irão se repetir na modernidade. Uma das características da modernidade é a recuperação da antiguidade grega, por isso o período também é chamado de Renascença.

Depois, vamos nos ocupar com os principais pensadores e filósofos da modernidade, tais como: Descartes, Bacon, Locke e Hume. Vamos ver quais são as principais características de seus pensamentos e determinar alguns elementos determinantes para o pensamento filosófico posterior.

Finalizando, convido você, caro(a) acadêmico(a), para uma reflexão sobre o Iluminismo. Aqui falaremos sobre dois pensadores de destaque, Rousseau e Kant. Mas Kant, certamente, merece atenção especial, pois será ele que levará a cabo a síntese entre as teorias empirista e racionalista, que dividiram as atenções durante os primeiros séculos da modernidade. Além disso, o pensamento kantiano é absolutamente determinante para a mentalidade no Ocidente, sendo marcante até nos dias de hoje.

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2 CONTEXTO HISTÓRICO, O SÉCULO XVI E A RENASCENÇA

Conforme Trigo (2009, p. 126), o contexto histórico do século XVI não resulta do acaso e tampouco representa uma mudança ocorrida da noite para o dia:

A modernidade não aparece na história como um portal que se abre repentinamente para novos mundos e estilos de vida. É um processo lento, que se inicia com o desenvolvimento da técnica das navegações, do comércio, do aperfeiçoamento dos métodos de construção civil, do cálculo matemático e, principalmente, da experimentação. O sentido da experiência foi um dos grandes saltos entre o mundo medieval e o mundo moderno. Está aí a origem do pensamento científico.

O século XVI foi um momento de grandes transformações na história da humanidade. Isso não quer dizer que, em outros momentos, não tenham ocorrido mudanças importantes, mas o advento da modernidade tem um destaque especial, pois é ali que se inicia mais especificamente a formação da sociedade na qual vivemos hoje.

Até então, acreditava-se que o mundo era plano e que, no oceano, além da linha do horizonte, ele acabaria num grande abismo. Além disso, achava-se que a Terra era o centro do universo. No século XVI, com as grandes navegações e com as novas descobertas das ciências que estão nascendo, comprova-se que a Terra é uma esfera e que ela, na realidade, ocupa lugar periférico e quase insignificante diante da vastidão do universo.

As navegações transoceânicas, longe da costa, onde não havia referência para que os barcos não se perdessem, exigiram métodos mais sofisticados de navegação. Consequentemente, houve a necessidade de cálculos matemáticos mais precisos, a fim de garantir a chegada ao destino planejado. Além disso, ao enfrentarem águas desconhecidas e, muitas vezes, turbulentas, os novos barcos precisavam ter estruturas e incorporar técnicas de construção melhores. (TRIGO, 2009).

As navegações ajudaram a comprovar através da experiência o que as ciências afirmavam na teoria.

Também os estudos científicos do período foram fundamentais para essa mudança de compreensão do universo. O modelo de universo que coloca a Terra em seu centro pode ser adequado à religião e à teologia, mas sugere uma série de problemas matemáticos difíceis de serem superados. Diante dessas questões, por exemplo, Nicolau Copérnico sugeriu que o centro do universo era o Sol e que os planetas giravam ao seu redor em órbitas circulares e uniformes. Copérnico era monge e sabia que a sua teoria representaria um escândalo para a Igreja.

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TÓPICO 2 | A REVOLUÇÃO FILOSÓFICA A PARTIR DA MODERNIDADE

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O problema não residia na teoria propriamente dita, mas ela implicava uma discussão sobre a autoridade. Ou seja, admitir que a teoria heliocêntrica, que coloca o Sol no centro do universo, estava correta e não as afirmações feitas até então pela Igreja, representava também a aceitação de outro princípio de verdade, alheio à Igreja. A religião afirmava que a verdade estava única e exclusivamente com ela. Por essa razão, Copérnico publicou os seus estudos somente à beira da morte. (TRIGO, 2009).

Conforme Trigo (2009), outra contribuição decisiva para a consolidação da teoria heliocêntrica foram os estudos dos astrônomos Tycho Brahe (1546-1601) e Johannes Kepler (1571-1630). Os dois viveram e trabalharam em Praga, capital da atual República Tcheca. A importância do primeiro está na geração de uma enorme quantidade de dados a respeito da localização de estrelas. Kepler, por sua vez, utilizou os dados de Brahe e determinou que os planetas viajam ao redor do Sol em rotas elípticas e não circulares, como havia afirmado Copérnico. As teorias de Brahe e Kepler também ajudaram a mostrar que o universo não é tão ordenado, preciso e harmônico quanto se imaginava.

As duas contribuições seguintes para a afirmação da teoria heliocêntrica foram os estudos de Galileu Galilei e Isaac Newton. Além dos movimentos dos planetas e da centralidade do Sol, Galileu (1564-1642) estabeleceu ainda que a Terra gira em torno do próprio eixo. Por causa dos seus estudos, ele foi duramente perseguido, julgado e condenado pela Santa Inquisição. Para preservar a própria vida, negou as suas teorias e comprometeu-se a nunca mais afirmá-las. Mesmo assim, as teorias de Galileu se espalharam rapidamente e acharam grande número de leitores.

NOTA

A Santa Inquisição era o tribunal da Igreja responsável pelo julgamento de todas as causas consideradas perigosas à religião.

Figura ainda mais central para a história da ciência é Isaac Newton (1642-1727) (TRIGO, 2009). O desafio que ele se propôs resolver foi determinar qual seria a força que mantém a unidade do universo. Nesse contexto, é famosa a história do pomar de maçãs, no qual um fruto teria caído na cabeça de Newton, levando-o a elaborar, anos mais tarde, a teoria da gravidade.

Perguntava-se ele: por que as maçãs caem para baixo, e não para cima ou para os lados? Newton revisou as teorias dos seus antecessores e, desse modo, ofereceu contribuição decisiva para a invenção do cálculo, em suas bases primordiais matemáticas; criou um sistema de física matemática e "traçou um quadro preciso do sistema solar na obra Principia", de 1687.

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DICAS

Há um documentário do canal americano BBC com o nome: “História da Ciência – que há lá fora”, no qual se fala bastante sobre o contexto histórico do século XVI e de como ele foi importante para o desenvolvimento da ciência moderna. Este documentário está disponível no site YouTube, através do link: <http://www.youtube.com/view_play_list?p=7FB70D635679D947>. Não deixe de assistir. Ele o(a) ajudará a entender o conteúdo deste tópico.

Mas não foi somente no âmbito das ciências que o século XVI representou uma mudança radical. No âmbito da própria Igreja cristã, as novas formas de pensar, as descobertas das ciências e as mudanças sociais e políticas levaram à formulação de novas perspectivas.

Os movimentos de reforma da Igreja, nesse período, comprovam isso. Também aqui a pergunta que se coloca diz respeito à autoridade: com quem está a verdade? Os reformados, tais como Lutero, Calvino, Melanchton e outros irão afirmar que a verdade está nos textos sagrados, e não com a tradição eclesiástica. As perguntas da nova teologia não serão mais sobre a essência de Deus, mas de que forma o ser humano contribui para chegar a Deus ou para a sua salvação.

DICAS

Caro(a) acadêmico(a), recomendamos assistir ao filme “Lutero”, lançado em 2002. Trata-se de uma biografia do reformador Martinho Lutero. O problema da autoridade aparece de forma muito evidente nesta obra.

FIGURA 8 – LUTERO

FONTE: Disponível em: <http://bimg2.mlstatic.com/s_MLB_v_F_f_180478408_8258.jpg>. Acesso em: 20 nov. 2012.

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Podemos perceber, a partir disso, caro(a) acadêmico(a), que a mentalidade sofre profunda transformação. Passa-se com a modernidade de uma mentalidade teocêntrica para uma mentalidade antropocêntrica. Esta mudança é comum, tanto para a religião como para as ciências. É o ser humano que passa a ocupar o centro do universo e das preocupações.

Isso até parece irônico, em vista das descobertas que colocam gradativamente o planeta Terra em posição insignificante diante da vastidão do universo. Vejam, então, o quanto são importantes o século XVI e as mudanças que ali acharam lugar.

Esta centralidade do ser humano nas novas formas de pensar foram representadas por Leonardo da Vinci através de uma figura: “O Homem Vitruviano”.

FIGURA 9 – O HOMEM VITRUVIANO

FONTE: Disponível em: <desenhoonline.com>. Acesso em: 12 nov. 2012.

Veja, caro(a) acadêmico(a), que o centro absoluto da imagem é o umbigo humano. Os quatro braços e as pernas representam o movimento e a liberdade humana. Com o círculo e o quadrado quer se expressar que tudo pode ser calculado e descrito pelo uso da razão humana.

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UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL

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IMPORTANTE

O pensamento moderno implica a formação e consolidação do pensamento científico, a reestruturação de uma visão de mundo e o surgimento de teorias filosóficas cada vez mais afastadas dos gregos clássicos e da Igreja Católica. Aliás, a própria hegemonia católica foi ameaçada por uma série de divisões dentro do cristianismo, possibilitada pela revolução de Martinho Lutero e seus seguidores, ou simplesmente pelo confronto materialista do mundo científico que nesse momento nasceu. (TRIGO, 2009, p. 127).

Depois de termos feito esta breve análise sobre as principais mudanças históricas no século XVI e início do século XVII, vejamos nos próximos pontos de que modo elas influenciaram mudanças também para o pensamento filosófico.

2.1 NICOLAU MAQUIAVEL E A FILOSOFIA POLÍTICA

Conforme Trigo (2009), Nicolau Maquiavel (1469-1527) concentrou as suas atenções na esfera política. Ele afirmava que os preceitos éticos religiosos, que até então eram determinantes para a organização política dos Estados, deveriam ser substituídos pelo pragmatismo político. Com isso, Maquiavel lança o fundamento sobre o qual serão edificadas mudanças sociais muito profundas nos séculos seguintes.

Aliado à modernidade, veio o fortalecimento dos Estados nacionais. Durante a Idade Média, a centralização do poder na Igreja Católica impedia que algum Estado se tornasse realmente soberano. Tudo era subordinado à Igreja, inclusive os reis, que temiam a excomunhão, caso contrariassem os preceitos da Igreja. A excomunhão, naquela época, representava a retirada da bênção de Deus e, assim, aquela pessoa poderia ser morta por qualquer um sem que lhe fosse imputada qualquer pena.

A partir dos séculos XIV e XV, o poder da Igreja decresce e o poder dos reis aumenta. Progressivamente, mais poder é concentrado nas mãos desses governantes. Dessa nova situação surge uma nova pergunta, de ordem político-filosófica: de que forma essa nova configuração de sociedade e especialmente a direção desses Estados deveriam organizar-se para que tudo transcorra da melhor maneira possível? A estas perguntas tentou responder Nicolau Maquiavel. Queria saber especialmente como era possível alcançar uma unidade nacional, independente da religião.

Maquiavel viveu em uma Itália que procurava se libertar das amarras da Igreja, mas, ao mesmo tempo, fazia isso de forma desarticulada. Cada governante local buscava concretizar as suas próprias ideias, formando os seus próprios

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exércitos. Por um tempo, Maquiavel foi um homem com grande circulação e influência política, mas, após algumas reviravoltas políticas que recolocaram a família Médici no poder na Itália, recolheu-se para escrever as suas obras. (ARANHA; MARTINS, 2003).

NOTA

“Maquiavel escreveu peças de teatro (como a famosa comédia Mandrágora), poesia e ensaios diversos, dentre os quais se destacam O príncipe e Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio.” (ARANHA; MARTINS, 2003, p. 234). Segundo Chauí (2008), O Príncipe é o livro que inaugura o pensamento político moderno.

Ao longo da história, Maquiavel foi muito mal interpretado. Esse engano normalmente decorre de uma leitura apressada e irrefletida de sua obra. Espero que você, caro(a) acadêmico(a), encontre aqui os subsídios para entender Maquiavel sem reproduzir o "mito do maquiavelismo".

IMPORTANTE

Na linguagem comum, chamamos pejorativamente de maquiavélica a pessoa sem escrúpulos, traiçoeira, astuciosa, que, para atingir seus fins, usa de mentira e má-fé, e nos engana com tanta sutileza que pensamos estar agindo livremente quando, na verdade, somos por ela manipulados. Como expressão dessa amoralidade, costuma-se vulgarmente atribuir a Maquiavel a famosa máxima (que ele nunca escreveu): “Os fins justificam os meios”. (ARANHA; MARTINS, 2003, p. 234).

Esse tipo de interpretação da obra de Maquiavel decorre da leitura de trechos como "É necessário a um príncipe, para se manter, que aprenda a poder ser mau e que se valha ou deixe de valer-se disso segundo a necessidade", que pode ser encontrada em O Príncipe. Rousseau, sobre quem falaremos mais adiante, dizia que esse livro não pode ser entendido de modo isolado, pois a sua chave de interpretação está no conjunto da obra do filósofo. Nessa perspectiva, entende que O Príncipe é, na realidade, uma sátira. O propósito real da Maquiavel seria mostrar às pessoas como as coisas estavam acontecendo e produzir assim a indignação e vontade de mudança social e política. (ARANHA; MARTINS, 2003).

Nos dias atuais, contudo, Aranha e Martins (2003) afirmam que a obra de Maquiavel é interpretada de modo distinto daquele sugerido por Rousseau.

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UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL

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Acredita-se que Maquiavel fazia distinção de duas circunstâncias específicas da ação política: primeiramente, seria justificável assumir o poder pela força, usando o poder absoluto, para, em seguida, implantar progressivamente a república. Neste segundo momento, o governante deveria buscar sempre mais o apoio do povo.

ESTUDOS FUTUROS

Veremos na segunda unidade desta disciplina o desenrolar da Revolução Francesa. Observe, prezado(a) acadêmico(a), que a consolidação da república na França tem justamente esses dois momentos caracterizados por Maquiavel no livro O Príncipe, um primeiro momento do poder absoluto e da força para que, somente mais tarde, o governo se torne republicano e democrático.

De algum modo, parece que Maquiavel já lança em suas obras a semente da ideia que viria a se tornar absolutamente central na teoria política moderna, que é o consenso. Antes, a organização e a ação dos Estados eram determinadas pela ética e moral cristã. Todo o restante a ela era subordinado, fizessem as medidas bem ou mal à coletividade. O que Maquiavel propõe é uma nova ética que mede as ações pelas suas consequências. Algo é bom ou ruim se promove o bem da coletividade ou não.

Aranha e Martins (2003, p. 235) afirmam, nesse sentido:

Não se trata de amoralismo, mas de uma nova moral centrada nos critérios da avaliação do que é útil à comunidade: se o que define a moral é o bem da comunidade, constitui dever do príncipe manter-se no poder a qualquer custo, por isso às vezes pode ser legítimo o recurso ao mal – o emprego da força coercitiva do Estado, a guerra, a prática da espionagem, o uso da violência.

De modo algum o filósofo defende todo e qualquer tipo de violência. Por isso, Maquiavel faz uma diferença entre o governante que é virtuoso e o tirano. O príncipe virtuoso é diferente da virtude cristã, que prega a justiça e a bondade. Para Maquiavel, a virtude é a capacidade do governante de entender o jogo e as forças políticas e empreender todas as forças para conquistar e manter o poder. O príncipe age de modo enérgico a fim de garantir o bem da comunidade a qualquer custo. Já o tirano é aquele governante que somente age por capricho e por vontade própria. (ARANHA; MARTINS, 2003).

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TÓPICO 2 | A REVOLUÇÃO FILOSÓFICA A PARTIR DA MODERNIDADE

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IMPORTANTE

Portanto, Maquiavel enfatiza que:“Os critérios da ética política precisam ser revistos conforme as circunstâncias e sempre tendo em vista os fins coletivos”. (ARANHA; MARTINS, p. 236).

Na busca dos fins coletivos nunca haverá unanimidade, sempre haverá pessoas com características e interesses distintos compondo a mesma sociedade. Maquiavel prevê isto e afirma que, por essa razão, é inerente a qualquer sistema político a existência do conflito. O conflito não é entendido aqui como acontecimento de violência, mas a coexistência de indivíduos diferentes entre si.

Além disso, Maquiavel inaugura uma nova forma de refletir sobre a realidade, diferente daquela herdada da Idade Média e também utilizada pelos seus contemporâneos. Estes recorriam aos antigos autores gregos e latinos para fundamentarem as suas teorias. Buscavam nas antigas democracias gregas e romanas os modelos para a nova sociedade que pretendiam construir. Maquiavel, por sua vez, não procura na antiguidade os elementos para a construção do seu modelo político, mas o funda na própria experiência que tivera enquanto homem político. (CHAUÍ, 2008).

ESTUDOS FUTUROS

Esse novo modelo de fazer ciência e filosofia será desenvolvido pelos chamados empiristas, sobre os quais falaremos mais adiante.

Portanto, a teoria de Maquiavel nada tem de maquiavélica, mas lança os fundamentos para um novo tipo de ética, que privilegia o bem da coletividade e a incorporação do conflito ou das diferenças como algo inerente às sociedades humanas e que deve ser assegurado para que se garanta a liberdade dos indivíduos de defenderem as próprias ideias.

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UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL

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2.2 FILOSOFIA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO

As mudanças em todas as esferas da sociedade durante o período da modernidade e especialmente a revolução científica empreendida nos mais variados campos do conhecimento quebraram o modelo de inteligibilidade baseado na filosofia aristotélica. O modelo explicativo baseado na lógica dedutiva não era mais suficiente para dar conta das novas descobertas científicas. Diante dessa nova realidade, surgiu a pergunta ou, mais precisamente, o receio de que haveria a possibilidade de se cair em novos enganos.

Por essa razão, uma pergunta-chave para a filosofia na modernidade firmou-se sobre a questão do método, ou seja, "como" seria possível a construção de conhecimentos e de novas teorias e "como" garantir a sua autenticidade. Em última análise, a grande dúvida continua sendo a questão da verdade, que sempre foi o alvo da filosofia. Filosofia, aliás, como já estudamos no primeiro tópico desta unidade, é o amor pela verdade.

Durante a Idade Média, o critério da verdade era a sua exposição, segundo a lógica de Aristóteles. Se todos os critérios do silogismo fossem atendidos, então ter-se-ia a verdade. Nessa perspectiva, nunca se colocou realmente em questão a correspondência entre pensamento e realidade/objeto. As exposições teológicas de Agostinho e Tomás de Aquino eram avaliadas pela lógica argumentativa sobre as quais foram elaboradas, sem que se perguntasse se as conclusões realmente correspondiam à verdade, mesmo que nenhuma experiência pudesse ser feita em relação a elas.

Nessa perspectiva, a atenção dos filósofos anteriores à modernidade estava completamente pautada sobre os objetos que se propuseram analisar. Citamos, como exemplo disso, o trabalho de Agostinho na obra "A Trindade".

Com a modernidade e a pergunta pelas garantias de correspondência entre o pensamento do filósofo e a realidade do mundo, acontece uma inversão. Assim como nos outros âmbitos, também na filosofia a preocupação volta-se para o ser humano, que é o sujeito do conhecimento. O objetivo da ciência não é mais dizer o que é e como são as coisas, mas descobrir um meio seguro de se chegar a elas. Como o ser humano aprende? Como os novos conhecimentos se formam em nossa mente?

A tentativa de responder a essas perguntas deu origem a duas correntes filosóficas distintas: o racionalismo e o empirismo.

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2.2.1 Racionalismo: René Descartes

O principal expoente do racionalismo é o filósofo René Descartes, que viveu entre 1596 e 1650. Ele também é conhecido pelo seu nome latino, que é Cartesius, razão pela qual também se chama o seu pensamento de "cartesiano".

NOTA

Escrevemos o nome “Descartes”, mas pronunciamos ele como se não houvesse o “s”, ou seja, “Decartes”. Dos seus estudos de matemática deriva o plano cartesiano, que estudamos na escola.

A sua preocupação foi encontrar uma verdade primeira, que não pudesse ser posta em dúvida e sobre a qual todos os demais conhecimentos poderiam ser assentados. Por essa razão, fez da dúvida o seu método investigativo.

Conforme nos dizem Aranha e Martins (2003, p. 131):

Descartes começa duvidando de tudo, das afirmações do senso comum, dos argumentos da autoridade, do testemunho dos sentidos, das informações da consciência, das verdades deduzidas pelo raciocínio, da realidade do mundo exterior e da realidade do seu próprio corpo.

Segundo esse raciocínio, praticamente tudo podia ser posto em dúvida, pois de nada se tinha garantias que assegurassem a realidade do que se apresentava. Mas Descartes concluiu o seu pensamento com a afirmação de que havia apenas uma única coisa da qual não se podia duvidar.

Antes de oferecermos a resposta a esta pergunta, vamos fazer uma pequena atividade prática. Você, caro(a) acadêmico(a), saberia responder do que não podemos duvidar? Qual foi a resposta de Descartes? Experimente fazer esta pergunta a alguém que esteja próximo de você neste momento.

Enumere algumas possíveis respostas no espaço a seguir:

AUTOATIVIDADE

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Você deve ter encontrado várias respostas à pergunta. Vamos ler um breve trecho da obra "Discurso do método", de Descartes. Veja se consegue descobrir a resposta.

Não sei se deva falar-vos das primeiras meditações que aí realizei; pois são tão metafísicas e tão pouco comuns, que não serão, talvez, do gosto de todo mundo. E, todavia, a fim de que se possa julgar se os fundamentos que escolhi são bastante firmes, vejo-me, de alguma forma, compelido a falar-vos delas. De há muito observara que, quanto aos costumes, é necessário, às vezes, seguir opiniões, que sabemos serem muito incertas, tal como se fossem indubitáveis, como já foi dito acima. Mas, por desejar então ocupar-me somente com a pesquisa da verdade, pensei que era necessário agir exatamente ao contrário, e rejeitar como absolutamente falso tudo aquilo em que pudesse imaginar a menor dúvida, a fim de ver se, após isso, não restaria algo em meu crédito, que fosse inteiramente indubitável. Assim, porque os nossos sentidos nos enganam, às vezes, quis supor que não havia coisa alguma que fosse tal como eles nos fazem imaginar. E, porque há homens que se equivocam ao raciocinar, mesmo no tocante às mais simples matérias de geometria e cometem aí paralogismos, rejeitei como falsas, julgando que estava sujeito a falhar como qualquer outro, todas as razões que eu tomara até então por demonstrações. E enfim, considerando que todos os mesmos pensamentos que temos quando despertos nos podem também ocorrer quando dormimos, sem que haja nenhum. Nesse caso, que seja verdadeiro, resolvi fazer de conta que todas as coisas que até então haviam entrado no meu espírito não eram mais verdadeiras que as ilusões de meus sonhos. Mas, logo em seguida, adverti que, enquanto eu queria assim pensar que tudo era falso, cumpria necessariamente que eu, que pensava, fosse alguma coisa. E, notando que esta verdade: eu penso, logo existo, era tão firme e tão certa que todas as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de a abalar, julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulo, como o primeiro princípio da filosofia que procurava. (DESCARTES, 1973, p. 54).

Essa primeira constatação Descartes chamou de intuição primeira e a partir dela distinguiu várias ideias, selecionando aquelas que eram duvidosas de outro grupo, que chamou de ideias inatas. Segundo o pensador, essas ideias inatas são tão confiáveis quanto a certeza do ser que pensa. Uma dessas ideias é o que denominou cogito, ou racionalidade. O ser humano tem a racionalidade/razão através da qual pode pensar sobre o mundo em que vive. Também seriam ideias inatas a infinitude e a perfeição de Deus, bem como as ideias de extensão e movimento, que são constitutivas do mundo físico. (ARANHA; MARTINS, 2003).

Até aqui, no entanto, ainda não conseguiu uma garantia de que o seu pensamento efetivamente corresponda à realidade. Descartes se perguntava de que modo poderíamos ter certeza de que a nossa vida e o mundo como um topo não seriam apenas um sonho. O que garante que o meu raciocínio corresponde à realidade ou que as coisas de nossa mente têm existência e não são mera imaginação? Para resolver este problema e provar que o mundo tem realidade, lançou mão do que ficou conhecido como "prova ontológica da existência de Deus".

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NOTA

Ontologia: “Ciência que investiga a natureza do ser enquanto ser, considerado em si mesmo, independentemente da matéria e das especulações acerca da essência, substância a acidentes”. (MENDES, 1987, p. 1594).

Como Descartes queria demonstrar que a razão humana tem uma capacidade gigantesca, propôs-se a provar com ela a existência de Deus, que seria a coisa mais difícil de se provar. Se pudesse provar que Deus existe com o uso da simples razão, então todas as outras coisas poderiam ser explicadas com a razão da mesma forma.

Conforme Aranha e Martins (2003, p. 131), a prova ontológica da existência de Deus, segundo Descartes, pode ser formulada da seguinte forma:

O pensamento deste objeto – Deus – é a ideia de um ser perfeito; se um ser é perfeito, deve ter a perfeição da existência, senão lhe faltaria algo para ser perfeito. Portanto, ele existe. Se Deus existe e é infinitamente perfeito, não me engana. A existência de Deus é a garantia de que os objetos pensados por ideias claras e distintas são reais. Portanto, o mundo tem realidade. E, dentre as coisas do mundo, o meu próprio corpo existe.

ATENCAO

A partir de Descartes, tem-se uma enorme valorização da razão. A partir dela pode-se entender e explicar a realidade e, portanto, não se precisa mais de crenças sobrenaturais.

A filosofia cartesiana deixou duas heranças fundamentais para o pensamento posterior:

a) O ideal matemático.b) O dualismo psicofísico.

a) O ideal matemático: a partir da centralidade da razão estabelecida por Descartes, muitos pensadores se lançaram a explicar o mundo a partir dos princípios matemáticos. O objetivo era descobrir as leis que organizavam toda a realidade.

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UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL

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ESTUDOS FUTUROS

Na segunda unidade deste caderno veremos como esse ideal será incorporado também nas ciências humanas, especialmente na sociologia positivista de Augusto Comte. O princípio também terá forte influência no pensamento filosófico e sociológico brasileiro, que será assunto na terceira unidade.

b) O dualismo psicofísico: outra consequência da filosofia cartesiana é o dualismo entre mente e corpo. O corpo é uma realidade física e fisiológica e está limitado a todas as leis deterministas da natureza. A mente, por sua vez, não está sujeita a estas leis. Não há limites para as atividades da mente, tais como: recordar, raciocinar, conhecer e querer. Portanto, a mente passa a ser cada vez mais identificada como o âmbito em que se usufrui a liberdade. Não será por acaso que nos séculos seguintes as profissões intelectuais serão mais valorizadas do que aquelas que exigem a atividade física. Também as chamadas ciências exatas serão vistas como mais valiosas do que aquelas que têm caráter mais subjetivo.

UNI

Reflita sobre as profissões mais valorizadas na nossa sociedade e aquelas que recebem os menores salários.

Veremos, no seguinte item, qual foi a segunda forma de responder à pergunta pela origem do conhecimento. Trata-se do empirismo.

2.2.2 Empirismo: Francis Bacon, John Locke e David Hume

Os empiristas são os filósofos que ressaltam o valor da experiência como ponto de partida do pensamento e elemento essencial na formação do conhecimento. A valorização da experiência para a constituição do conhecimento era algo radicalmente novo, pois até então ela era vista com maus olhos, principalmente pela Igreja e teologia mais tradicionais.

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Nesse sentido, segundo Trigo (2009, p. 127): "experimentar podia significar duvidar e a dúvida era a porta de entrada da heresia, do pecado e da condenação pelos tribunais civis e religiosos da época". Para a teologia da Idade Média, todas as verdades já haviam sido reveladas pela Bíblia e, por isso, não havia necessidade de experimentos para fazer novas descobertas.

NOTA

A palavra empirismo vem do grego empeiria e significa “experiência”. (ARANHA, MARTINS, 2003).

A seguir, analisaremos brevemente o pensamento dos três principais representantes do empirismo: Francis Bacon, John Locke e David Hume.

2.2.3 Francis Bacon

Bacon viveu entre 1561 e 1626 e valorizava o saber instrumental que possibilitava a dominação da natureza. Também ele, assim como Descartes, estava interessado no método da ciência. O seu pensamento se caracteriza por uma forte crítica à lógica aristotélica, pois considerava ela extremamente limitante para a investigação científica. Por isso, enfatizará em sua obra o valor da indução como método científico válido. No método dedutivo de Aristóteles não era possível tirar uma conclusão que extrapolasse os pressupostos de pesquisa. Já na indução, permitia-se a generalização a partir de estudos determinados. (ARANHA; MARTINS, 2003).

Um exemplo de aplicação do método indutivo é a investigação de novos medicamentos pela indústria farmacêutica. Novos compostos são criados em laboratório, experimentados em um grupo limitado de indivíduos e, a partir disso, induz-se que eles serão eficazes para todos os demais. Segundo o método dedutivo, por sua vez, somente seria possível concluir que um novo remédio é eficaz na cura de alguma enfermidade se houvesse a possibilidade de testá-lo em todos os indivíduos. Criou-se, assim, com o método indutivo, uma possibilidade enorme para a ciência que estava se desenvolvendo. Por outro lado, a indução é menos precisa do que a dedução. Sempre haverá uma possibilidade considerável de a solução não ser eficaz para alguns indivíduos.

ATENCAO

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Segundo Bacon, há vários preconceitos e noções falsas que dificultam ou mesmo impedem a nossa apreensão da realidade, os quais ele chamou de ídolos. Com isso, ele afirmava que o nosso olhar sobre a realidade é determinado e enxergamos apenas algumas coisas e outras não, conforme a nossa educação, a sociedade em que vivemos, entre outros fatores.

2.2.4 John Locke

Locke (1632-1704) ressalta o valor da experiência para a formação do conhecimento seguindo uma via mais psicológica. Ele distingue duas fontes possíveis para a formação das ideias no ser humano: a sensação e a reflexão.

A sensação resulta das transformações que ocorrem em nossa mente a partir da experiência dos sentidos. Quando estamos em contato com a realidade do mundo, de alguma forma, essas imagens são gravadas em nossa mente na forma de ideias simples. Assim, através da sensação, forma-se no indivíduo um leque considerável de ideias simples.

A reflexão, por sua vez, consiste na associação de ideias simples que fazemos em nossas mentes, formando ideias complexas. As ideias complexas, conforme Locke, não possuem uma existência e validade objetiva. "São nomes de que nos servimos para denominar e ordenar as coisas". (ARANHA; MARTINS, 2003, p. 133).

Locke comparava a mente humana a uma tábula rasa, uma tábua sem inscrições, tal como uma forma de cera sem impressões. Poderíamos falar também num livro em branco. Quando o ser humano começa a experimentar a realidade do mundo, este vai sendo impresso dentro dele.

FIGURA 10 – LIVRO EM BRANCO

FONTE: Disponível em: <coronelbessa.blogspot.com>. Acesso em: 12 nov. 2012.

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Também foi característica de Locke a crítica a Descartes. Ele não aceitava a teoria das ideias inatas, afirmando que, se elas existissem, as crianças já as teriam. Além disso, refuta a prova ontológica da existência de Deus do pensamento cartesiano, pois, segundo Locke, a ideia de Deus não está presente em todas as sociedades, ou pelo menos não a ideia de um deus perfeito. (ARANHA; MARTINS, 2003).

2.2.5 David Hume

David Hume foi um filósofo escocês que viveu de 1711 a 1776. Ele aprofundou as teorias de Francis Bacon e John Locke. Hume aceita o princípio de Locke de que, a partir da experiência, ideias simples são formadas em nossas mentes. Contudo, não aceita a teoria de que as ideias complexas resultam da associação de ideias simples no interior da nossa mente. Segundo ele, somente a experiência é válida para o conhecimento e, como não podemos observar o processo de associação de ideias em nosso interior, esta não poderia ser uma conclusão científica válida.

Mas de onde vêm, então, os pensamentos mais complexos e as teorias? Para o filósofo, as ideias complexas se formam com o hábito que é criado nos indivíduos a partir da experiência repetida. Quando observamos muitas vezes os mesmos acontecimentos ou fatos parecidos, começamos a perceber os princípios de causalidade, as semelhanças e as contiguidades.

Ao mesmo tempo, Hume chamou a atenção para o fato de que nem sempre os fatos que observamos estão relacionados. Com isso, ele negou a validade universal do princípio de causalidade e da noção de necessidade a ele associada. Em outras palavras, Hume está dizendo que a realidade poderia ser diferente daquilo que se tornou. Ela não é resultado necessário da história que a antecede. A relação de causa e efeito é um princípio válido para a investigação científica, mas ela não é universal, válida para todos os fenômenos, pois existem fatos que não decorrem necessariamente do que havia antes.

Assim, a observação da sucessão de acontecimentos nos leva a crer que um determinado fato se comportará de forma análoga no futuro, sem, contudo, termos recursos para assegurar isto de modo inquestionável.

Disso decorre que, na teoria de Hume, segundo Aranha e Martins (2003, p. 134), "a única base para as ideias ditas gerais, portanto, é a crença de que, do ponto de vista do entendimento, faz uma extensão ilegítima do conceito”.

A teoria de David Hume é revolucionária para a sua época, principalmente se considerada sob o prisma da organização política. Quando negou o princípio universal da causalidade e necessidade, estava ao mesmo tempo dizendo que a organização política do Estado de seu tempo não era uma realidade fruto de um

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desenvolvimento histórico necessário, ou seja, que não havia possibilidade de ser de outra forma. Dito de outro modo, Hume afirmava que a história poderia ser outra, pois não há necessariamente uma lógica na sucessão dos acontecimentos.

Com a sua teoria, Hume estava lançando, juntamente com seus contemporâneos, as bases ideológicas necessárias para as revoluções que aconteceriam nos séculos seguintes. Nesse sentido, a Revolução Francesa é absolutamente central para a história do pensamento filosófico e sociológico no Ocidente e, consequentemente, no Brasil.

ESTUDOS FUTUROS

A Revolução Francesa foi uma reviravolta completa na sociedade francesa do final do século XVIII e princípio do século XIX, que levou à queda da monarquia e do regime feudal e à ascensão do capitalismo e da república. Estudaremos a Revolução Francesa na segunda unidade deste Caderno de Estudos.

2.2.6 Racionalismo ou empirismo?

E então, prezado(a) acadêmico(a), quem estava certo, os racionalistas ou os empiristas? O que é mais importante para a formação do conhecimento, a razão ou a experiência? Embora com alguma cautela, poderíamos falar também em teoria e prática. O que é mais importante para o aprendizado, a teoria ou a prática? De forma um tanto simples, esta foi a discussão entre empiristas e racionalistas. Os racionalistas enfatizavam a centralidade da razão na formação do conhecimento, que era devida principalmente às capacidades inatas do ser humano. Já para os empiristas, a experiência do mundo era mais fundamental. De qualquer forma, todos concordavam na centralidade do ser humano do processo do conhecimento. Este não é mais visto como tendo uma origem sobrenatural. O ser humano é o sujeito da ciência e da história.

Como você está vendo, caro(a) acadêmico(a), a formação do pensamento filosófico e sociológico não é fruto de uma única mente. Não é cada pensador que formula as suas próprias conclusões, mas ele bebe de toda a tradição que o antecede. Por isso, toda essa caminhada pela história do pensamento filosófico é essencial. Sem ela não seremos capazes de compreender de modo produtivo o pensamento brasileiro.

Veremos a seguir como as ideias empiristas e racionalistas foram absorvidas pelos seus sucessores: os iluministas.

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2.3 ILUMINISMO

Se as filosofias racionalistas e empiristas da modernidade foram importantes para a formação da mentalidade necessária para as revoluções sociais e políticas dos séculos XVIII e XIX, o Iluminismo foi absolutamente essencial. O Iluminismo não foi somente a concepção de algumas novas ideias ou a proposição de algumas reformas na sociedade, mas a criação de uma sociedade radicalmente nova, fundamentada na razão. O período ainda é conhecido como Século das Luzes, Ilustração ou Aufklärung, que em alemão quer dizer esclarecimento.

A partir das novas maneiras de pensar, o ser humano se vê potencializado a interferir na realidade e não apenas contemplá-la. Com a liberdade de pensamento e a experiência inaugurada pela modernidade, ele se lança à explicação, ao entendimento e transformação de todas as esferas da vida social, fundamentando a sua ação única e exclusivamente na razão. Por isso, um dos temas centrais na filosofia de Immanuel Kant, por exemplo, será a emancipação do indivíduo. Kant não queria nenhum tipo de tutela sobre os indivíduos; estes deveriam saber governar a si mesmos com o uso da razão.

O ideal iluminista tem grande influência em diversas partes do mundo, tanto na Europa como nas Américas. Desde os Estados Unidos, que declaram a sua independência em 1776, até o Brasil, com as conjurações Mineira e Baiana em 1789 e 1798, respectivamente, as ideias iluministas eram motivo de estudos, reuniões, debates e revoluções.

FIGURA 11 – REUNIÃO DE ILUMINISTAS

FONTE: Disponível em: <http://www.historiadomundo.com.br/upload/image/pensadores-iluministas.jpg>. Acesso em: 12 nov. 2012.

Analisaremos a seguir o pensamento de três representantes de destaque dentro do Iluminismo que marcaram a história do pensamento filosófico e sociológico: Immanuel Kant, Montesquieu e Jean-Jacques Rousseau.

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2.3.1 Immanuel Kant

Immanuel Kant (1724-1804) é o principal representante do Iluminismo na Alemanha, cujo movimento ali é conhecido como Aufklärung (esclarecimento). As características da Alemanha nesse período são distintas da França e Inglaterra, pois ela ainda não forma uma unidade nacional. Ela torna-se um país somente em 1871, antes disso é um aglomerado de pequenos reinos. Tudo isso contribui para que o desenvolvimento científico e intelectual chegasse mais tarde, sobretudo a partir da segunda metade do século XVIII.

O desenvolvimento intelectual é caracterizado pelas obras literárias de Lessing, Herder, Goethe e Schiller e pelas composições musicais de Bach, Haendel, Haydn, Mozart, Schubert e Beethoven. Na filosofia destacam-se os trabalhos de Wolff, Lessing, Baumgarten e, especialmente, Kant, cujo pensamento optamos por expor a seguir. (ARANHA; MARTINS, 2003).

A grande contribuição de Kant para a filosofia está na síntese entre o racionalismo e o empirismo. Em sua obra "Crítica da Razão Pura", Kant põe a razão num tribunal para ser julgada. O seu propósito é determinar se o conhecimento humano realmente pode ser construído a partir da simples razão, sem que haja a necessidade de derivá-lo de qualquer outra coisa. A sua conclusão é que o conhecimento deriva tanto de estruturas inatas como da experiência exterior. Afirma, com isso, que empiristas e racionalistas tinham parcela de razão em suas exposições filosóficas.

Kant argumenta que o conhecimento é constituído de matéria e forma. A matéria é composta pelas próprias coisas. De modo que, para conhecer, precisamos da experiência sensível, como defendiam os empiristas. A forma, por sua vez, somos nós mesmos. A partir das estruturas de pensamento inatas, somos capazes de entender e organizar a realidade.

Conforme Aranha e Martins (2003, p. 136), para Kant: “o nosso conhecimento experimental é composto do que percebemos por impressões e do que a nossa própria faculdade de conhecer de si mesma tira por ocasião de tais impressões”.

A partir disso, concluiu ainda que não temos a capacidade de conhecer a realidade em si, mas somente na medida em que ela aparece para nós. Para isso, emprega o conceito de fenômeno, que quer dizer "o que aparece". Então, se tudo de que dispomos para conhecer o mundo é o que aparece para nós, também de algum modo participamos da construção do conhecimento desse mundo. Há uma diferença entre os objetos em si e aquilo que pensamos sobre eles a partir das nossas experiências e estruturas inatas. A filosofia kantiana redunda em idealismo, pois, em última análise, a construção do conhecimento depende das estruturas inatas do ser humano.

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Aranha e Martins (2003) afirmam que Kant promoveu uma revolução copernicana na esfera do conhecimento. Até então, toda preocupação girava em torno do objeto do conhecimento, a coisa em si. A partir de Kant, somos levados a considerar o sujeito do conhecimento na equação da construção do saber. Todo conhecimento tem a marca do seu gestor e não pode ser compreendido independentemente dele. Somos sujeitos ativos e participantes na construção do saber. Com isso, é posto um poder ainda maior na racionalidade humana, que não apenas se apropria do conhecimento, mas literalmente o cria.

As afirmações de Kant têm profundas implicações para todas as esferas do conhecimento: educação, ética, política, cultura e ciência. Ao longo dos próximos tópicos veremos alguns dos desdobramentos e implicações do pensamento kantiano, bem como algumas das vozes que foram destoantes e críticas. Como leitura complementar a este tópico, transcrevemos um breve trecho da obra mais famosa de Kant, “A Crítica da Razão Pura”, no qual ele reflete sobre alguns aspectos das estruturas inatas que permitem o conhecimento humano.

2.3.2 Jean-Jacques Rousseau e Montesquieu

Jean-Jacques Rousseau e Montesquieu são representantes do Iluminismo francês, que se caracteriza, sobretudo, pelo caráter vulgarizador de seus representantes. O propósito era desconstruir todo o sistema político e social anterior, preconizado pela monarquia, pela Igreja e pelo sistema feudal. (ARANHA; MARTINS, 2003).

FIGURA 12 – MARIA ANTONIETA

FONTE: Disponível em: <http://1.bp.blogspot.com/_39ephwOkYhQ/THPqQdo6VKI/AAAAAAAAAos/uew0tD6B2oo/s1600/marie-antoinette-ship.jpg>. Acesso em: 12 nov. 2012.

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NOTA

Podemos perceber na figura acima uma das formas de ridicularizar os membros da realeza. A pessoa representada é Maria Antonieta, esposa de Luiz XVI, último rei da França antes da queda da monarquia com a Revolução Francesa. A extravagância da família real diante da miséria do povo é representada através do penteado e moda esdrúxulos protagonizados pela rainha. Devido aos gastos excessivos com superficialidades, a rainha foi também chamada de “madame déficit”.

O Barão de Montesquieu, cujo nome verdadeiro era Charles-Louis de Secondat, viveu na França entre 1689 e 1755. Alimentado pelas ideias iluministas, Montesquieu se propôs a estudar a estrutura das leis francesas, tentando esboçar um modelo legal que superasse o autoritarismo monárquico característico da família real francesa de seu tempo. Concluiu que somente o poder é capaz de frear o poder. Por isso, julgou necessária a existência de diferentes poderes na constituição do Estado, independentes entre si e exercidos por pessoas diferentes – Executivo, Legislativo e Judiciário. Com isso, assentou o fundamento sobre o qual estão organizadas as modernas democracias.

Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) deixou importantes contribuições para o campo da política e da educação. Para a teoria política, desenvolveu a filosofia do contrato social, que já havia sido mencionada por John Locke e Thomas Hobbes. Segundo Rousseau, para que fosse possível uma sociedade autêntica, era preciso superar os autoritarismos governamentais. Por isso, incialmente, faz uma diferença entre governo e soberania. A soberania em uma sociedade democrática é do povo, da coletividade. Para que esta soberania fosse preservada, era preciso inicialmente que cada indivíduo renunciasse aos interesses particulares. O contrato social, portanto, pressupõe o consentimento unânime em favor da causa coletiva.

A renúncia em favor da coletividade não seria uma perda da liberdade, mas justamente a forma de assegurá-la, pois a busca individual de satisfação dos próprios interesses faria com que somente os mais fortes dominassem e, desse modo, cerceassem as liberdades individuais. Era preciso, portanto, a ação ativa dos indivíduos na sociedade, zelando para que o poder não caísse nas mãos de alguém em particular; ao mesmo tempo, precisava-se reconhecer o governo legítimo que regia segundo a vontade da coletividade ou vontade geral, ao qual cabia obediência. A vontade geral é aquilo que é bom para todos. Rousseau diferencia a vontade geral da vontade de todos, que seria a soma das vontades ou interesses particulares. No Estado deveria prevalecer a vontade geral, não as vontades individuais. (ARANHA; MARTINS, 2003).

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TÓPICO 2 | A REVOLUÇÃO FILOSÓFICA A PARTIR DA MODERNIDADE

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Segundo Aranha e Martins (2003), se Kant provou uma revolução copernicana na esfera do conhecimento, Rousseau o fez em relação à educação. Até então, o centro da ação pedagógica era o mestre que ensinava as futuras gerações. Para Rousseau, ao contrário, o centro das atenções na educação deve ser a criança. Essa convicção decorre em boa medida da sua teoria política, pois colocou no indivíduo grande responsabilidade na constituição de uma sociedade justa. Então, para poder exercer essa cidadania, o indivíduo teria que ser capaz de decidir por conta própria os rumos da sua vida.

O filósofo argumenta que a educação tradicional não educava para a livre decisão, mas, antes, para a submissão. Se durante todo o estudo a criança tinha alguém diante dela lhe dizendo o que deveria fazer, na vida adulta continuaria a precisar de alguém que lhe dissesse o caminho que deveria tomar. Para expor a sua teoria pedagógica, Rousseau escreveu um romance chamado "Emilio". Trata-se da história de um menino que é educado por um preceptor, um professor particular, que nunca diz o que a criança deve fazer, mas organiza o ambiente de tal forma a predispô-la a decidir por si mesma aquilo que o mestre havia julgado como bom.

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UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL

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LEITURA COMPLEMENTAR

ESTAMOS DE POSSE DE DETERMINADOS CONHECIMENTOS A PRIORI E MESMO O SENSO COMUM NUNCA DELES É DESTITUÍDO

Immanuel Kant

Necessitamos agora de um critério pelo qual possamos distinguir seguramente um conhecimento puro de um conhecimento empírico. É verdade que a experiência nos ensina, que algo é constituído desta ou daquela maneira, mas não que não possa sê-lo diferentemente.

Em primeiro lugar, se encontrarmos uma proposição que apenas se possa pensar como necessária, estamos em presença de um juízo a priori. Se, além disso, essa proposição não for derivada de nenhuma outra, que por seu turno tenha o valor de uma proposição necessária, então é absolutamente a priori.

Em segundo lugar, a experiência não concede nunca aos seus juízos uma universalidade verdadeira e rigorosa, apenas universalidade suposta e comparativa (por indução), de tal modo que, em verdade, antes se deveria dizer: tanto quanto até agora nos foi dado verificar, não se encontram exceções a esta ou àquela regra.

Portanto, se um juízo é pensado com rigorosa universalidade, quer dizer, de tal modo que nenhuma exceção se admite como possível, não é derivado da experiência, mas é absolutamente válido a priori. A universalidade empírica é, assim, uma extensão arbitrária da validade, em que se transfere para a totalidade dos casos a validade da maioria, como, por exemplo, na seguinte proposição: todos os corpos são pesados.

Em contrapartida, sempre que a um juízo pertence, essencialmente,

uma rigorosa universalidade, este juízo provém de uma fonte particular do conhecimento, a saber, de uma faculdade de conhecimento a priori. Necessidade e rigorosa universalidade são, pois, os sinais seguros de um conhecimento a priori ,e são inseparáveis uma da outra.

Porém, como na prática é umas vezes mais fácil de mostrar a limitação empírica do que a contingência dos juízos e outras vezes mais conveniente mostrar a universalidade ilimitada, que atribuímos a um juízo, do que a sua necessidade, é aconselhável servirmo-nos, separadamente, dos dois critérios, cada um dos quais é de per si infalível.

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TÓPICO 2 | A REVOLUÇÃO FILOSÓFICA A PARTIR DA MODERNIDADE

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É fácil mostrar que há realmente no conhecimento humano juízos necessários e universais, no mais rigoroso sentido, ou seja, juízos puros a priori. Se quisermos um exemplo, extraído das ciências, basta volver os olhos para todos os juízos da matemática. Se quisermos um exemplo, tirado do uso mais comum do entendimento, pode servir-nos a proposição segundo a qual todas a mudanças têm que ter uma causa.

Neste último, o conceito de uma causa contém, tão manifestamente, o conceito de uma ligação necessária com um efeito e uma rigorosa universalidade da regra, que esse conceito de causa totalmente se perderia, se quiséssemos derivá-lo, como Hume o fez, de uma associação frequente do fato atual com o fato precedente e de um hábito daí resultante (de uma necessidade, portanto, apenas subjetiva) de ligar entre si representações.

Poder-se-ia também demonstrar, sem haver necessidade de recorrer a exemplos semelhantes, a realidade de princípios puros a priori no nosso conhecimento, que estes princípios são imprescindíveis para a própria possibilidade da experiência, por conseguinte, expor a sua necessidade a priori. Pois, onde iria a própria experiência buscar a certeza, se todas as regras, segundo as quais progride, fossem continuamente empíricas e, portanto, contingentes? Seria difícil, por causa disso, dar a essas regras o valor de primeiros princípios. Neste lugar podemo-nos bastar com ter exposto, a título de fato, juntamente com os seus critérios, o uso puro da nossa capacidade de conhecer.

Todavia, não é apenas nos juízos, mas ainda em alguns conceitos, que se revela uma origem a priori. Eliminai, pouco a pouco, do vosso conceito de experiência de um corpo tudo o que nele é empírico, a cor, a rugosidade ou macieza, o peso, a própria impenetrabilidade; restará, por fim, o espaço que esse corpo (agora totalmente desaparecido) ocupava e que não podereis eliminar. De igual modo, se eliminardes do vosso conceito empírico de qualquer objeto, seja ele corporal ou não, todas as qualidades que a experiência vos ensinou, não poderíeis, contudo, retirar-lhe aquelas pelas quais o pensais como substância ou como inerente a uma substância (embora este conceito contenha mais determinações do que o conceito de um objeto em geral). Obrigados pela necessidade com que este conceito se vos impõe, tereis de admitir que tem a sua sede a priori na nossa faculdade de conhecer.

FONTE: KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. 5. ed. Lisboa: Gulbenkian, 2001. p. 63-65.

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RESUMO DO TÓPICO 2

• Estudamos a filosofia do Renascimento até o Iluminismo. Vimos que o século XVI foi um momento histórico de grandes transformações científicas e filosóficas, que foram fruto das transformações da sociedade europeia da época. Ao mesmo tempo em que foram fruto do contexto social e político, as novas formas de pensar contribuíram para o surgimento de uma nova sociedade que baseou a sua organização sobre princípios racionais.

• Na política, estudamos o pensamento de Nicolau Maquiavel, que propôs ainda

timidamente o consenso como a forma legítima de organização do governo de um Estado. Este consenso deve ser buscado, segundo ele, a qualquer custo pelos dirigentes.

• Quanto ao aspecto da construção do conhecimento, nos ocupamos com o pensamento racionalista de René Descartes e com o empirismo de Francis Bacon, John Locke e David Hume. Os racionalistas enfatizaram a importância da razão em si para o saber. Já os empiristas acentuaram mais o aspecto da experiência como constitutiva do conhecimento. A partir de Kant, contudo, pudemos ver que ambas são essenciais para o conhecimento. A grande reviravolta promovida por Kant, entretanto, está em demonstrar que o ser humano participa da construção do conhecimento como sujeito e não como mero receptor de algo já pronto.

• Falamos do iluminismo francês de Montesquieu e Rousseau. O primeiro

preconizou a necessidade de que o poder fosse partilhado e exercido de forma independente. Com isso, Montesquieu antecipou a teoria dos três poderes nas modernas democracias. Já Rousseau contribui com o desenvolvimento da teoria do contrato social e da soberania do povo para a formação de uma sociedade melhor. Para isso, julgava essencial que o modelo educativo privilegiasse a criança e a ensinasse a tomar decisões por si mesma.

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1 Sobre o contexto histórico do século XVI, analise as seguintes sentenças:

I - Foi o período das grandes navegações, inclusive a descoberta das Américas, que contribuíram para uma mudança na visão do mundo da sociedade da época. Também a filosofia sofreu impulso a partir das descobertas feitas pelos navegantes.II - A grande contribuição de Kant para a filosofia está na síntese entre o racionalismo e o empirismo. Em sua obra “Crítica da Razão Pura”, Kant põe a razão num tribunal para ser julgada.III - Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) deixou importantes contribuições para o campo da política e da educação. Para a teoria política, desenvolveu a filosofia do contrato social, que já havia sido mencionada por John Locke e Thomas Hobbes. Segundo Rousseau, para que fosse possível uma sociedade autêntica, era preciso superar os autoritarismos governamentais.IV- Conforme Trigo (2009), outra contribuição decisiva para a consolidação da teoria heliocêntrica foram os estudos dos astrônomos Tycho Brahe (1546-1601) e Johannes Kepler (1571-1630). Os dois viveram e trabalharam em Praga, capital da atual República Tcheca. A importância do primeiro está na geração de uma enorme quantidade de dados a respeito da localização de estrelas, Lua e planetas ao longo de um longo período de tempo. Kepler, por sua vez, utilizou os dados de Brahe e determinou que os planetas viajam ao redor do Sol em rotas elípticas e não circulares, como havia afirmado Copérnico.

Agora, assinale a alternativa CORRETA:

( ) Somente a sentença IV está correta.( ) As sentenças III e IV estão corretas.( ) As sentenças I e IV estão corretas.( ) As sentenças I, II e IV estão corretas.

2 Qual das alternativas caracteriza o pensamento cartesiano?

Assinale a alternativa CORRETA:

( ) Segundo ele, somente a experiência é válida para o conhecimento, e como não podemos observar o processo de associação de ideias em nosso interior, esta não poderia ser uma conclusão científica válida.

( ) O seu pensamento se caracteriza por uma forte crítica à lógica aristotélica, pois considerava ela extremamente limitante para a investigação científica. Por isso, enfatizará em sua obra o valor da indução como método científico válido.

( ) Alimentado pelas ideias iluministas, propôs-se a estudar a estrutura

AUTOATIVIDADE

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das leis francesas, tentando esboçar um modelo legal que superasse o autoritarismo monárquico característico da família real francesa de seu tempo.

( ) A sua preocupação foi encontrar uma verdade primeira, que não pudesse ser posta em dúvida e sobre a qual todos os demais conhecimentos poderiam ser assentados. Por essa razão, fez da dúvida o seu método investigativo.

3 De que modo Kant propôs a superação da dicotomia Racionalismo versus Empirismo?

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TÓPICO 3

A FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA

UNIDADE 1

1 INTRODUÇÃO“Na medida em que avançamos na história, a filosofia vai assumindo

reflexões nos mais diversos campos da atividade humana. Ela vai influenciar profundamente áreas como a cultura, a ética, a educação, o prazer e a política”. (TRIGO, 2009, p. 39).

Para fins didáticos, optamos por dividir o último tópico da primeira unidade deste caderno em dois pontos principais: a filosofia no século XIX e a filosofia no século XX. Embora próximos historicamente, esses dois séculos estão muito distantes um do outro no que se refere aos modelos filosóficos dominantes.

O século XIX é fortemente marcado por um otimismo em relação à razão humana, o que, aliás, durará até parte do século XX. Mas os acontecimentos históricos significativos que marcavam o último século antes do novo milênio abalaram profundamente o otimismo do século anterior. Além disso, diante dos avanços da ciência, o ser humano se torna cada vez mais solitário e insignificante diante da vastidão do universo. Diante da própria história, da qual parece nunca conseguirmos chegar ao princípio, pois as novas descobertas sempre mostram a existência de períodos ainda mais antigos, e diante da física que desvenda partículas cada vez menores da matéria, tem-se a impressão de que, em todas as direções, tendemos ao infinito e, por conseguinte, não podemos encontrar a nossa origem e sentido nesse mundo.

Por fim, transcrevemos um texto sobre as características da sociedade atual, comumente chamada de sociedade pós-moderna.

2 A FILOSOFIA NO SÉCULO XIXA filosofia iluminista do século XVIII levou a vários desdobramentos no

século XIX. Entre as principais vertentes que surgiram, por exemplo, a partir da teoria kantiana, podemos citar o idealismo de Georg Wilhelm Friedrich Hegel, o materialismo de Ludwig Feuerbach e o positivismo de Augusto Comte. Este último não será abordado nesta unidade, mas sim na segunda unidade deste caderno, pois é constitutivo do pensando sociológico, que é assunto daquela unidade.

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UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL

Além disso, no século XIX ainda surgiu o materialismo dialético de Karl Marx, que fez uma síntese entre o materialismo de Feuerbach e a dialética hegeliana. E tivemos ainda o existencialismo, que rejeitou por completo o sistema hegeliano.

Segundo Trigo (2009, p. 139), “o século XIX é uma segunda fase da modernidade que foi inaugurada no século XVI”. Afirma o autor: “É a grande ruptura e transição entre um mundo clerical e aristocrático e um mundo profano, mais democrático e menos povoado de certezas, pleno de transformações ao longo do século XIX”.

ESTUDOS FUTUROS

O positivismo de Augusto Comte e o materialismo dialético de Karl Marx serão abordados na segunda unidade deste caderno.

3 O IDEALISMO HEGELIANOGeorg Wilhelm Friedrich Hegel viveu entre 1770 e 1831 e introduziu uma

noção nova na filosofia, a de que a razão é histórica. Como ressalta Koyré (2011), a teoria hegeliana é extremamente difícil, mas influenciou o pensamento filosófico e sociológico posterior como nenhuma outra. A sua grande preocupação foi a construção de um sistema filosófico que desse conta de explicar toda a realidade. A sua intenção primordial não é mudar o mundo, mas está mais interessado em dizer como ele funciona. Na medida em que oferece essa resposta, cria também a ferramenta que será utilizada por muitos de seus discípulos que almejarão mudá-lo, tais como Marx.

FIGURA 13 – GEORG WILHELM FRIEDRICH HEGEL

FONTE: Disponível em: <http://www.fansshare.com/community/uploads111/7458/georg_wilhelm_friedrich_hegel/>. Acesso em: 12 nov. 2012.

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TÓPICO 3 | A FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA

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NOTA

Hegel viveu num momento histórico conturbado, de profundas transformações na sociedade.

ESTUDOS FUTUROS

Falaremos sobre as transformações na sociedade europeia do século XIX na segunda unidade deste caderno, principalmente aquelas decorrentes da Revolução Industrial e da Revolução Francesa.

Essa experiência da contradição, segundo Koyré (2011), foi fundamental para a constituição do pensamento hegeliano. Na percepção de Hegel, o avanço científico protagonizado pela racionalidade não havia produzido os efeitos desejados, ou seja, a superação de todos os problemas. Entendia ele que, se a razão é produtora do conhecimento verdadeiro, então a sua aplicação em escalas progressivamente crescentes deveria levar à superação de todos os males da sociedade. Contudo, não era o que acontecia na prática. Antes de produzir soluções, o avanço da razão produzia novos problemas e novas contradições.

Aranha e Martins (2003, p. 143) sintetizam da seguinte forma o pensamento hegeliano:

Partindo da noção kantiana de que a consciência (ou o sujeito) interfere ativamente na construção da realidade, propõe o que se chama de filosofia do devir, do ser como processo, como movimento, como vir a ser. Desse ponto de vista, o ser está em constante transformação, donde surge a necessidade de fundar uma lógica que não parta do princípio de identidade (estático), mas do princípio de contradição para dar conta da dinâmica do real, a que chama de dialética.

Dessa forma, Hegel interpreta a história não como acumulação e justaposição de acontecimentos, mas como o resultado de um processo "cujo motor interno é a contradição dialética”. (ARANHA; MARTINS, 2003, p. 143). Até então, a história humana era vista como a soma dos acontecimentos, mas, a partir da dialética hegeliana, ela passou a ser vista como resultado de um processo de conflitos e contradições. Assim, os reinos não são fruto da evolução dos seus antecessores, mas resultado dos seus problemas, crises e acontecimentos que provocaram a sua ruína.

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UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL

A dialética de Hegel se realiza em três momentos: a tese, a antítese e a síntese. Todas as coisas são, em princípio, uma tese. Todas as coisas são o que são, mas elas não o serão para sempre. Essa é a diferença do pensamento de Hegel, pois antes se pensava em termos estáticos, ou seja, uma coisa era o que era para sempre. Para Hegel, as coisas não serão as mesmas para sempre porque elas possuem o germe da contradição. Em outras palavras, o filósofo nos diz que todas as coisas possuem algo em si mesmas que as fará mudar, deixando de ser o que são para se tornarem outra coisa.

Vamos pensar em um exemplo para deixar essa ideia mais explícita. Imagine uma carteira, daquelas usadas em sala de aula. Pense que a carteira tal como a vemos, hoje, é uma tese. Agora, pense no que fará com que a carteira deixe de ser uma carteira; qual a antítese de uma carteira escolar? Podemos pensar em várias coisas. Os alunos podem ser a antítese da carteira quando a riscam e danificam, mas o próprio uso dela já é suficiente para causar desgaste. Talvez não sejamos capazes de perceber a mudança de um dia para o outro ou mesmo de uma semana para a outra ao ocuparmos um lugar em sala de aula para nossos estudos, mas a carteira está em constante processo de transformação. A própria ação do tempo sobre os materiais faz com que a carteira lentamente deixe de ser uma carteira. Após anos de contradição, já não existe mais uma carteira. O que restou da carteira? Restou a síntese da tese (a carteira em si) e da antítese (ação dos usuários e a ação do tempo sobre a carteira).

ATENCAO

FIGURA 14 – CARTEIRAS DANIFICADAS

FONTE: Disponível em: <http://3.bp.blogspot.com/-fDOTs7bH8jw/TeWAZdo4SQI/AAAAAAAAE9U/Px02k6k8iOU/s1600/ESCOLA+B+SITIO+014.JPG>. Acesso em: 12 nov. 2012.

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TÓPICO 3 | A FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA

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Mas o movimento não termina com a síntese. Segundo Hegel, cada síntese é, por sua vez, uma nova tese, que terá as suas próprias contradições, produzindo novas sínteses, e assim sucessivamente até que todas as contradições sejam superadas. A mesma coisa vale para as nossas ideias, para os sistemas filosóficos, enfim, para toda a realidade.

A superação de todas as contradições é chamada por Hegel de Espírito Absoluto. Dessa forma, nós nos encontramos entre dois extremos. No princípio, segundo o filósofo, estaria a pura ideia, que gera a contradição para poder se realizar plenamente. A contradição da pura ideia é a matéria, o mundo concreto. Somente quando todas as contradições da pura ideia forem superadas é que se alcançará o espírito absoluto, que será o fim da história. Por ter colocado a ideia no princípio do seu sistema filosófico, Hegel é chamado de idealista e podemos nos referir a seu sistema como idealismo hegeliano.

Embora tenha sofrido muitas críticas, principalmente por ter posto a ideia como princípio gerador da realidade, o sistema hegeliano possui uma capacidade explicativa e interpretativa enorme. O movimento dialético realmente nos ajuda a entender e explicar muitos aspectos da nossa história. A partir do pensamento de Hegel também somos levados a entender que cada um de nós (e isso também vale para você, caro estudante) não é um ser pronto.

Quem acha que está pronto sempre será uma pessoa arrogante, pois crê

que não tem mais nada para aprender. Hegel nos diz que estamos em constante processo de mudança, o que quer dizer que sempre podemos mudar, viver de modo diferente, participar da construção do nosso futuro. Essas ideias tiveram uma força enorme na sociedade do século XIX. Muitas pessoas foram realmente levadas a acreditar que poderiam mudar a sociedade e resolver todos os seus problemas.

ESTUDOS FUTUROS

Na segunda unidade deste caderno vamos estudar o pensamento marxista e como ele se apropriou da dialética hegeliana para demonstrar como seria possível a superação da sociedade capitalista dividida pela separação de classes sociais.

A seguir estudaremos algumas ideias filosóficas que se caracterizaram pela crítica ao sistema hegeliano.

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UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL

3.1 O PENSAMENTO MATERIALISTA DE FEUERBACH

Ludwig Feuerbach (1804-1872) foi aluno de Hegel, mas desde muito cedo empreendeu críticas ao seu mestre, principalmente no âmbito da religião. O extremismo e radicalismo fizeram com que a carreira acadêmica dele terminasse prematuramente, mas isso lhe possibilitou dedicar mais tempo ao aprofundamento de suas teorias. As críticas de Feuerbach ao idealismo de Hegel foram decisivas para a reformulação do materialismo do pensamento hegeliano. (MONDIN, 1983).

FIGURA 15 – LUDWIG FEUERBACH

FONTE: Disponível em: <http://spe.fotolog.com/photo/46/32/27/gran_ducado/1220474293989_f.jpg>. Acesso em: 12 nov. 2012.

A principal obra de Feuerbach foi o livro "A essência do cristianismo", no qual afirma contra Hegel que o verdadeiro papel da filosofia seria por o infinito no finito, e não o finito no infinito. Ou seja, "a tarefa da filosofia não é provar que o homem é produzido por Deus, mas, inversamente, que Deus é produzido pelo homem: não foi a ideia (Deus) que criou o homem, mas o homem que criou a ideia (Deus)". (MONDIN, 1983, p. 93).

O princípio fundamental do materialismo é, portanto, que a matéria gera o pensamento quando atinge o seu mais alto estágio de desenvolvimento. Segundo Feuerbach, o ser humano criou a ideia de Deus como uma projeção daquilo que considera perfeito em vista da incapacidade de alcançá-lo por conta própria. (MONDIN, 1983).

As ideias de Feuerbach influenciaram profundamente o pensamento de Karl Marx, sobre o qual falaremos na segunda unidade deste caderno.

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3.2 ANTECEDENTES DA CRISE DA RAZÃO

Embora as raízes do pensamento existencialista estejam no século XIX, muitos dos seus defensores seriam ouvidos somente no século XX. O existencialismo é uma crítica ao idealismo de Hegel e um dos seus principais expoentes é Sören Kierkegaard (1813-1885).

FIGURA 16 – KIERKEGAARD

FONTE: Disponível em: <http://sorenkierkegaard.org/IMG/gallery/sk7.jpg>. Acesso em: 12 nov. 2012.

Kierkegaard foi um pensador e filósofo dinamarquês que empreendeu um ataque muito severo a toda a filosofia desenvolvida desde Descartes até Hegel. Segundo ele, em nenhuma das teorias desenvolvidas o ser humano aparecia como um ser que tem uma existência subjetiva. O ser humano era sempre apresentado como um ser completamente racional e objetivo. Para Kierkegaard, o ser humano é muito mais do que simplesmente a racionalidade. (TRIGO, 2009).

O filósofo dinamarquês ressaltou que a existência humana é permeada de contradições que a razão não é capaz de resolver (ARANHA; MARTINS; 2003). O movimento dialético defendido por Hegel não seria uniforme, levando a um desenvolvimento progressivo da vida humana. Kierkegaard ressalta que o ser humano é movido por paixões, sendo que estas seriam as responsáveis pelas mudanças. Além disso, a mudança não é processual e progressiva, mas ela é marcada por saltos qualitativos.

O desenvolvimento humano, portanto, resulta da ação de indivíduos que ousaram realizar este salto, uma mudança radical, movidos pela paixão, criando novas possibilidades de organizar a vida. O progresso não resultaria, dessa forma, de um desenvolvimento gradual, conforme protagonizava o sistema dialético hegeliano.

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UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL

Outro crítico da razão foi o filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900). Ele dizia que as verdades afirmadas pela razão não passam de ilusões.

Conforme Nietzsche (apud ARANHA; MARTINS; 2003, p. 148):

O que é a verdade, portanto? Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se esqueceu que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas.

As ditas verdades, sejam aquelas afirmadas pela razão ou as proposições teológicas, nada seriam além de invenções humanas para dar expressão à realidade. O trabalho da filosofia, portanto, não poderia ser pautado na busca por novas verdades, pois também estas não passariam de ilusão. Os conceitos, através dos quais a humanidade proclama suas supostas verdades, nada seriam além de construções históricas. O filósofo deveria, assim, estudar e esclarecer o processo pelo qual determinada afirmativa passou a ser reconhecida como verdade. A filosofia seria mais a genealogia dos conceitos e das teorias do que a construção de novos sistemas filosóficos. (TRIGO, 2009).

Segundo Nietzsche (1978), o único critério que se impõe para a construção da verdade é a vida. O que importa na interpretação e avaliação da realidade é determinar se uma afirmação, seja ela científica, teológica ou filosófica, favorece o desenvolvimento da vida ou não. Verdade para Nietzsche é o que promove a vida, pois a preocupação primordial do ser humano em toda a sua história foi garantir a vida a qualquer custo. (ARANHA; MARTINS, 2003).

Além disso, ainda podemos mencionar Sigmund Freud (1856-1939) no contexto de crítica à razão. A grande contribuição de Freud foi demonstrar que o ser humano possui algo que chamou de inconsciente. A ação humana não é determinada exclusivamente pela razão, mas muitos dos comportamentos humanos são movidos pelas mazelas do inconsciente, das pulsões e dos desejos.

ESTUDOS FUTUROS

Na segunda unidade deste caderno ainda estudaremos o pensamento do filósofo Karl Marx, que também estudou as ilusões da vida social, a que chamou de alienação e ideologia.

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TÓPICO 3 | A FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA

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Dessa forma, caro(a) acadêmico(a), pudemos ver que o século XIX foi marcado pela constituição de duas correntes filosóficas opostas. A primeira, da qual Hegel é o principal expoente, afirmava a crença no potencial da razão humana, considerando que ela levaria a humanidade para a formação de uma sociedade perfeita, livre de qualquer contradição. Por outro lado, houve pensadores como Kierkegaard, Nitzsche, Freud e Marx, que denunciaram as armadilhas da razão, ajudando a preparar o terreno para as reflexões filosóficas que seriam desenvolvidas no século XX.

3.3 A FILOSOFIA NO SÉCULO XX

O século XX se caracteriza por profundas modificações em todas as esferas da vida humana. Conforme Trigo (2009, p. 139), ele é a terceira e última fase da modernidade, inaugurada no século XVI, e compreende: “Um mundo altamente interligado e ao mesmo tempo fragmentado, sem muita nitidez de seus desafios e perigos, cujo sentido da própria existência humana se torna embaçado ou até mesmo desprovido de significado. Um mundo perigoso e estimulante”.

Em outras palavras, caro(a) acadêmico(a), podemos dizer que, na medida em que adentramos no século XX, enfrentamos também o que poderíamos chamar de "crise da razão". (ARANHA; MARTINS, 2003, p. 147). Até o final do século XIX, e mesmo no princípio do século XX, reinava um absoluto otimismo em relação à capacidade humana de, usando a sua racionalidade, resolver todos os problemas e criar uma sociedade perfeita através da ciência.

Esse otimismo antropológico se caracteriza, por exemplo, na frase que teria dito um dos construtores do Titanic, Thomas Andrews: "esse nem mesmo Deus afunda!". Contudo, ele afundou. Outros acontecimentos contribuíram para que fossem colocadas em cheque as certezas e a confiança excessiva na razão humana. Vamos ver quais foram alguns desses acontecimentos. As duas guerras mundiais representaram um abalo do otimismo na razão humana em virtude dos milhões de mortos que elas deixaram. A crença no desenvolvimento de uma sociedade mais humana e próspera desabou diante dos totalitarismos nazista e fascista, que culminaram nas guerras. (TRIGO, 2009).

Durante as guerras, toda a tecnologia foi empregada para a criação de armas de destruição em massa. O ápice dessa tecnologia foram as bombas nucleares, capazes de exterminar milhares de pessoas em alguns instantes. (JASPERS, 2010).

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UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL

FIGURA 17 – VISTA DE HIROSHIMA APÓS O LANÇAMENTO DA BOMBA ATÔMICA

FONTE: Disponível em: <http://veja2.abrilm.com.br/assets/images/2010/7/13761/hiroshima-01-size-598.jpg?1279836141>. Acesso em: 12 nov. 2012.

Por outro lado, o desenvolvimento não causou apenas efeitos negativos em relação à capacidade humana de compreender o mundo em que vive. Jaspers (2010) refere as descobertas de Einstein, especialmente a Teoria da Relatividade, como descobertas que abriram novas possibilidades de pesquisa praticamente infinitas. Também as descobertas na área de Biologia, com a criação de formas biológicas a partir de elementos não orgânicos, como a ureia, fizeram repensar as relações entre objetos e sujeitos no fazer científico.

O século XX, segundo Jaspers (2010), foi um tempo que demonstrou que a história humana é cheia de riscos e possibilidades. Tanto o início da história humana como o seu destino se tornam cada vez mais distantes diante das descobertas científicas, tanto da arqueologia no que se refere ao início da vida no planeta Terra, como da astronomia sobre a vastidão do universo. A fragilidade da vida também é aumentada diante dos avanços tecnológicos, sobre os quais não se tem controle absoluto.

A multiplicidade de situações e desafios ao longo do século XX levou ao desdobramento da filosofia em diversas correntes. As principais correntes filosóficas contemporâneas são: o pragmatismo, a fenomenologia, os estudos da linguagem e a teoria da ação comunicativa.

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3.3.1 O pragmatismo

O pragmatismo foi uma corrente filosófica que se desenvolveu principalmente nos Estados Unidos. Entre os seus principais expoentes estão: Charles Sanders Peirce (1839-1914), William James (1842-1910) e John Dewey (1859-1952). A principal ideia do pragmatismo é a de que "o conhecimento é uma atividade participativa (não impessoal) e consiste de explicações válidas, sendo o instrumento mais importante para nossa sobrevivência". (TRIGO, 2009, p. 175). Para os pragmáticos, o conhecimento válido é aquele que tem uma aplicação prática ou então quando "funciona”. (ARANHA; MARTINS, 2003).

O pragmatismo norte-americano também exercerá enorme influência na educação através do educador John Dewey. Os métodos educativos por ele influenciados enfatizarão a efetividade do aprendizado (TRIGO, 2009). Dewey também será precursor do método "aprender fazendo", utilizado até hoje em escolas do mundo inteiro. A escola tradicional era baseada no método unidirecional, o professor ensinava e os alunos aprendiam. Dewey defendia uma escola em que os próprios alunos eram sujeitos ativos do seu aprendizado. Para ele, a experiência escolar é aspecto essencial da educação. (ARANHA; MARTINS, 2003).

A principal contribuição do pragmatismo está em afirmar que as verdades não são imutáveis, mas que mudam com o passar do tempo. Cada nova situação histórica exige respostas distintas para que seja efetiva.

No Continente Europeu, por sua vez, desenvolveu-se a fenomenologia.

3.3.2 A fenomenologia

A fenomenologia é uma filosofia da vivência. Segundo Aranha e Martins (2003, p. 150):

A fenomenologia visa a descrição da realidade e coloca como ponto de partida de sua reflexão o próprio ser humano, no esforço de encontrar o que é dado na experiência, descrevendo "o que se passa" efetivamente no ponto de vista daquele que vive determinada situação concreta.

Os representantes dessa corrente filosófica criticam os racionalistas do século XVII ao afirmarem que não existe uma consciência separada do mundo. O conhecimento é sempre conhecimento de alguma coisa. Então, o saber está ligado com o mundo exterior. Ao mesmo tempo, são contrários à doutrina empirista, que afirmava que os objetos do conhecimento existiam por si só, sendo que o ser humano apenas tomava consciência deles na medida em que os vivenciava pela experiência. Afirmavam que os objetos sempre estão para um sujeito que lhes dá significado. (ARANHA; MARTINS, 2003).

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UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL

Podemos citar como exemplo um objeto em forma de cruz. O seu significado não existe independente de quem o enxerga. Para uma cultura que nunca conheceu um objeto naquele formato e tampouco sabe sobre o cristianismo, a cruz não terá o menor significado. Já para os cristãos, ela representa todo o conteúdo da sua fé. Até mesmo entre os cristãos ela terá significados diferentes, pois há cristãos mais comprometidos com a fé do que outros. Com isso, os fenomenologistas procederam a uma humanização da ciência, pois ressaltam o valor do indivíduo na construção dos significados das coisas. O ser humano e os objetos do conhecimento não existem de forma independente, eles são inseparáveis.

O conceito fenômeno, em grego, significa "o que aparece". Então, a fenomenologia estuda a formação do conhecimento e especificamente de que forma o ser humano atribui significado aos objetos do mundo na medida em que aparecem para ele. Ela quer elucidar de que forma o mundo aparece para nós e por quais razões damos explicações diferentes para aquilo que está diante de nós. (CHAUÍ, 2008).

3.3.2.1 Edmund Husserl

Edmund Husserl (1859-1938) foi o principal representante da fenomenologia e abriu caminho para as reflexões posteriores de Heidegger, Sartre e outros. Segundo ele, a crise da razão havia comprometido todo o empreendimento da ciência e, por isso, era preciso lançar mão de um novo fundamento sobre o qual pudesse ser edificada uma nova ciência. A sua proposta é um recomeço radical na ordem do saber. O que ele pretendeu foi a superação da dicotomia sujeito-objeto que havia sido o resultado da filosofia anterior.

Para isso, Husserl diz que toda consciência é intencional, o que significa que não há pura consciência, separada do mundo, mas toda consciência visa ao mundo (CHAUÍ, 2008). Segundo o próprio Husserl, "a palavra intencionalidade não significa outra coisa senão essa particularidade fundamental da consciência de ser a consciência de alguma coisa". (apud ARANHA; MARTINS, 2003, p. 206).

Jaspers (2010, p. 37), por sua vez, o refere da seguinte maneira:

E nós? Existimos verdadeiramente, enquanto sujeitos em busca de objetos que vêm a nosso encontro ou se colocam diante de nós? Antes que o busquemos, é preciso que o objeto exista para nós; com efeito, não temos consciência de nós mesmos senão a partir do momento em que nos encontramos tendendo para objetos. Não há eu sem objeto, nem objeto sem um eu. Em outras palavras, não há objeto sem sujeito, nem sujeito sem objeto.

Aranha e Martins (2003, p. 207) ainda nos oferecem um exemplo para ilustrar o pensamento de Husserl, que se refere ao estudo da criança manhosa:

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A manha não é, ela significa, ou seja, é pela emoção que a criança se exprime na totalidade do seu ser. Ela diz coisas com o choro, e esse choro precisa ser interpretado. Da mesma forma, a resposta dada a certos estímulos externos supõe que os próprios estímulos nunca sejam idênticos para todas as pessoas, mas que exercem influência à medida que são percebidos de maneira singular pela consciência que os atinge. À relação mecânica E – R (estímulo – resposta), estabelecida pelo comportamentalismo, a fenomenologia contrapõe o sinal e o símbolo. Enquanto o sinal faz parte do mundo físico do ser, o símbolo é parte do mundo humano do sentido.

Da teoria fenomenológica se desenvolverá, por exemplo, uma das principais correntes da psicologia, que é a Gestalt.

A reflexão fenomenológica foi continuada por um dos discípulos de Husserl, Martin Heidegger.

3.3.2.2 Martin Heidegger

O filósofo Martin Heidegger (1889-1976) retoma o conceito de intencionalidade de Husserl, ou seja, também para ele o sujeito não vive separado do mundo que o cerca. Além disso, ele ressalta que o indivíduo vive numa situação de facticidade, o que quer dizer que, além da herança biológica, este recebe toda a herança cultural, que depende do tempo e do lugar em que se nasce. O desafio de cada indivíduo é superar a pura facticidade, o simplesmente "estar aí" (Dasein em alemão), para alcançar a existência autêntica. Esta superação da facticidade Heidegger chama de transcendência. Alcançar a transcendência significa compreender a própria história, o que foi e para onde vai. Na concretização da transcendência surge uma angústia, que resulta da tensão entre aquilo que se é e aquilo que se virá a ser, como dono do próprio destino. (ARANHA; MARTINS, 2003).

Cada um de nós, na busca da felicidade e da realização da própria vida, não quer permanecer onde está ou do mesmo jeito que é por toda a vida. Aliás, mesmo que o quisesse, isto não seria possível, pois mudamos a cada dia que passa. Assim, a partir do que já vivemos e em função do lugar em que estamos hoje, pretendemos chegar a algum outro lugar no futuro. Portanto, além de existir uma relação das coisas com o sujeito que as apreende na forma de conhecimento, este mesmo sujeito está em constante processo de construção de sua própria existência, do sentido de sua vida. Diante disso, o indivíduo não pode ignorar a realidade da morte, pois é o destino certo de cada um. Viver a vida como se não houvesse a morte não faz parte de uma existência autêntica. A existência é então a consciência da própria limitação, de viver a vida sabendo que ela não durará para sempre. (JASPERS, 2010).

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UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL

3.3.2.3 Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir

O pensamento de Jean-Paul Sartre (1905-1980) e Simone de Beauvoir (1908-1986) foi profundamente marcado pelo contexto da Segunda Guerra Mundial e pela ocupação nazista da França. Tema absolutamente precioso para Sartre é a liberdade. E cada vez que se deixa de usar a liberdade para fazer boas escolhas, se cai em algo que o filósofo chama de má-fé.

Vejamos alguns exemplos de má-fé que são apresentados por Trigo (2009, p. 46):

Não cursei moda porque meus pais queriam que eu fosse contador, como eles.

Não fui trabalhar na Califórnia porque minha avó materna estava doente e não sabia quanto tempo ela viveria.

Tive que aceitar as condições de trabalho desgastantes porque devia favores ao meu chefe.

Acabei casando porque não tive coragem de falar, na última hora, que não queria mais ficar com aquela pessoa, tão meiga e inocente, mas que me consome a paciência.

Ela (ele) sempre acaba me obrigando a fazer o que não quero porque tem um poder de persuasão imenso.

Acabei não indo ao cinema e fui com eles ao teatro (assistir a uma peça que eu detesto) para não provocar um mal-estar no meu grupo de amigos.

Eu não concordo com nada do que vocês dizem, mas vou me calar para não ser o único "do contra".

A ênfase da teoria de Sartre está na responsabilidade do indivíduo diante das escolhas que precisa fazer. Estas escolhas não permitem a omissão diante dos problemas sociais e também não devem se basear em regras e convenções existentes.

A companheira de Sartre, Simone de Beauvoir, enfatizou em seus romances e reflexões o caráter único do indivíduo, constituído a partir das escolhas que faz ao longo da vida. Diante de infinitas possibilidades, podemos viver somente uma coisa de cada vez. Diante dessa responsabilidade, enfatiza que as escolhas precisam ser feitas com coragem e responsabilidade. (TRIGO, 2009).

ESTUDOS FUTUROS

Dentro dessa linha de pensamento se desenvolveu a Escola de Frankfurt, também chamada de Teoria Crítica, sobre a qual falaremos na segunda unidade deste caderno.

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TÓPICO 3 | A FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA

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4 A FILOSOFIA DA LINGUAGEMOs estudos da linguagem trouxeram uma reviravolta completa para a

Filosofia. Conforme Aranha e Martins (2003, p. 152):

A filosofia da linguagem ou filosofia analítica representa o esforço de pensadores de diversas tendências no sentido de rever o conceito de verdade, tal como outras correntes filosóficas também o fizeram no decorrer do século XX. A diferença é que se verifica uma crítica radical da tentativa tradicional de encontrar a verdade na relação sujeito e objeto, deslocando esse fundamento para a linguagem.

As correntes anteriores estavam preocupadas em descrever os objetos do conhecimento ou então elucidar de que forma os sujeitos se apropriam do conhecimento e dos objetos que analisam. Os estudos da linguagem, por sua vez, demonstraram que nada disso era relevante se não fossem levadas em consideração as formas através das quais esses sujeitos se expressavam, bem como as estruturas linguísticas utilizadas na descrição dos objetos da ciência. Os filósofos da linguagem defendiam a ideia de que o papel da filosofia não era fazer proposições, mas auxiliar para elucidá-las.

Um importante pensador e representante da filosofia da linguagem foi Michel Foucault (1926-1984).

FIGURA 18 – MICHEL FOUCAULT

FONTE: Disponível em: <http://revistaescola.abril.com.br/img/historia/0022-michel-focault.jpg>. Acesso em: 12 nov. 2012.

Foucault demonstrou em seus estudos que as noções de consciência, realidade, sujeito, objeto, que se empregava na filosofia até então, não passavam de formas discursivas. Ou seja, nem uma delas possuía uma realidade em

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si, mas eram recursos empregados pelos indivíduos para se comunicarem. Analisando as estruturas da linguagem, evidenciou que os sujeitos dos discursos e os interlocutores, bem como os objetos aos quais o discurso se referia, podiam mudar, dependendo do lugar do sujeito da oração.

Dessa forma, o "eu" poderia se transformar em "tu" de um momento para o outro, bastando que a pessoa do discurso mudasse. O mesmo vale para os significados atribuídos a objetos. Portanto, toda filosofia que pretendesse caracterizar o "eu" estava condenada ao fracasso, pois o "eu" nada mais seria, segundo Foucault, do que um recurso de linguagem.

4.1 JÜRGEN HABERMAS E A TEORIA DA AÇÃO COMUNICATIVA

Jürgen Habermas (1929) é um dos mais proeminentes filósofos do século XX. Ele dirige uma crítica muito séria às filosofias anteriores no que diz respeito à teoria da construção do conhecimento. Ele tem grande afinidade com as filosofias da linguagem. Na maior parte das abordagens filosóficas anteriores, o indivíduo é tomado de forma isolada, como se o conhecimento fosse uma coisa que dissesse respeito a cada um de forma independente. A razão era algo que dizia respeito a cada um em particular.

Para Habermas, ao contrário, a razão não é monológica, centrada apenas no indivíduo, mas ela é dialógica, como resultado de um entendimento intersubjetivo: "São os sujeitos, situados historicamente, que, pela fala, estabelecem uma relação interpessoal numa comunidade comunicativa”. (ARANHA; MARTINS, 2003, p. 152).

FIGURA 19 – JÜRGEN HABERMAS

FONTE: Disponível em: <http://clubemetafisico.com/wp-content/uploads/2012/01/J_rgen_Habermas_I.jpg>. Acesso em: 12 nov. 2012.

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Se a razão for entendida como resultado individual, então a pluralidade de vozes fará com que ela seja paralisada no relativismo. Em outras palavras, nada se poderá fazer porque, afinal, cada um terá a sua própria verdade. Habermas defende a ideia de que existem, sim, conhecimentos e verdades que possam ter validade para todas as pessoas. A questão filosófica central, nesse sentido, é como chegamos a essas verdades. Conforme o filósofo, essa busca ocorre por meio da ação comunicativa, ou seja, através do diálogo entre os diversos sujeitos. A verdade se alcança através do consenso. A verdade, assim, não é resultado de uma reflexão isolada, do interior de um único indivíduo, mas é resultado de um diálogo autêntico entre os indivíduos.

Para que o verdadeiro consenso possa ser alcançado é necessário que a condição de diálogo seja ideal, ou seja, que não haja coerções e que todos tenham efetivamente a possibilidade de manifestarem as suas próprias ideias. Assim, "o critério da verdade não consiste na correspondência do enunciado com os fatos, nem propriamente na ação comunicativa, mas sim no consenso discursivo". (ARANHA; MARTINS, 2003, p. 153).

A teoria da ação em comunidade é hoje empregada nas mais diversas esferas da atividade humana, desde a educação, administração, política, economia e outras. Os cientistas de hoje já não trabalham de forma isolada. Os resultados da pesquisa precisam ser compartilhados e aceitos pela coletividade, submetidos a diferentes testes. Isso é um indicativo de que o conhecimento é produzido a partir do diálogo entre os sujeitos e não por um deles isoladamente.

Num mundo que está cada vez mais conectado, interligado e no qual as distâncias são superadas pelas modernas tecnologias de comunicação, nada mais racional do que fazer da comunicação entre os sujeitos o meio para se alcançar conhecimentos válidos para a organização da vida em sociedade.

Diante disso, segundo Jaspers (2010, p. 33), "a filosofia deve fazer-nos conscientes dos horizontes do futuro, mostrando-nos os limites de toda a ação humana, por gloriosa que seja, e aumentando em nós, por essa forma, o sentimento de responsabilidade diante de qualquer situação nova".

UNI

Como Leitura Complementar ao tópico foi transcrito um texto que apresenta algumas características da assim chamada sociedade pós-moderna.

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UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL

LEITURA COMPLEMENTAR

O FUTURO

Luiz Gonzaga Godoi Trigo

Vejamos a seguinte afirmativa do autor Karl Jaspers (1986, p. 147):

Nossa época vive entre dois abismos. Compete-nos escolher: deixar-nos tombar no abismo da ruína do homem e do universo, com a consequente extinção de toda vida terrena, ou cobrar ânimo para nos transformarmos, dando surgimento ao homem autêntico, ante o qual se abrirão possibilidades infinitas.

Em tal contexto, qual o papel da filosofia?

Ensina, pelo menos, a não nos deixarmos iludir. Não permite que se descarte fato algum e nenhuma possibilidade. Ensina a encarar de frente a catástrofe possível. Em meio à serenidade do mundo, ela faz surgir a inquietude. Mas proíbe a atitude tola de considerar inevitável a catástrofe. Com efeito, apesar de tudo, o futuro depende também de nós.

Um breve sopro de dúvidas e angústias epistemológicas passou pelo final do século XX com o nome de pós-modernidade. Surgida na arquitetura e na arte em geral, seu ideário foi estruturado pelo francês Jean-François Lyotard e colocou em pauta a questão da produção do saber nas sociedades com novos recursos tecnológicos baseados na informática, na digitalização dos dados e na produção, armazenamento e transmissão eletrônica de informações e conhecimento.

Se a Revolução Industrial do século XIX deixou claro que sem riqueza não se desenvolvem ciência e tecnologia, a condição pós-moderna demonstrou o contrário, que sem ciência e tecnologia não se produz riqueza.

A informação passou a ser encarada como a mercadoria mais valiosa. Segundo Lyotard (1986), os pesquisadores trabalham não mais com a finalidade de preparar indivíduos aptos a levar às pessoas a noção de uma “verdade absoluta”, mas para preparar competências (palavra bastante utilizada em certas escolas pedagógicas e por técnicos e administradores em geral) capazes de assegurar o bom desempenho da dinâmica institucional, seja na administração privada ou na pública.

Lyotard (1986) se preocupou em analisar a posição do saber nas sociedades mais desenvolvidas tecnologicamente. Nessas sociedades, a cultura se transforma à medida que a literatura, as artes e a ciência foram influenciadas pelas transformações causadas pelas novas técnicas e tecnologias aplicadas à produção industrial, ao setor agropecuário e ao imenso campo de serviços em geral. A junção entre as empresas privadas, governos, instituições de pesquisa e universidades

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TÓPICO 1 | OS FILÓSOFOS ANTIGOS E MEDIEVAIS

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na produção do conhecimento é uma realidade global, assim como a crescente informatização do mundo. O poder da ciência vem do controle efetivo e eficiente do mundo possibilitado e ampliado pelo contínuo avanço científico e tecnológico. Essas novas condições influenciam de várias maneiras a filosofia e a educação. São necessárias novas respostas ou métodos para os novos problemas ou para os velhos desafios que permanecem insolúveis.

Qualquer pessoa habituada a refletir em termos de ciências sociais contemporâneas compreende que as transformações revolucionárias da ciência e da técnica, com as consequentes modificações na produção e nos serviços, devem necessariamente produzir mudanças também nas relações sociais. Só um cego não percebe as mudanças que estão ocorrendo nesse campo e suas óbvias conexões com a chamada segunda revolução industrial (da informática), que cada vez mais se intensifica. (SCHAFF, 1990, p. 21).

O saber científico não é todo o saber existente. Há também o saber que Lyotard (1986) denomina de saber narrativo, que concerne às artes, à instituição, aos sentidos, à religião e aos aspectos mais subjetivos do ser humano. Ambos os saberes – científicos e narrativos – são necessários, pois são formados por enunciados capazes de construir teias de conhecimento com as quais as pessoas tentam aprender e compreender o mundo.

Ao longo da história, essa produção do saber se estruturou em sistemas filosóficos, religiosos ou científicos que se propuseram a dar conta teoricamente de toda a problemática humana e universal. Muitas filosofias geraram relatos, discursos sobre a realidade pretensamente absolutos, denominados por Lyotard (1986) com o nome de metarrelatos, com a intenção de esgotar as dúvidas e lacunas da ciência. Com o desenvolvimento científico, os grandes sistemas filosóficos idealizados por Platão, Aristóteles, Tomás de Aquino, Kant, Hegel, Comte e Marx foram confrontados com realidades que transcendiam seus limites conceituais, confrontação que apontou certos “furos” dessas suas teorias aparentemente sólidas e monolíticas.

Os antigos metadiscursos ou metarrelatos filosóficos foram substituídos por uma pluralidade de sistemas formais e axiomáticos. Para parte da ciência atual, pós-moderna, não mais interessam as discussões metafísicas sobre o que é verdadeiro, justo ou belo, e sim a eficiência, nova palavra mágica do capitalismo pós-industrial. O pragmatismo e as críticas políticas e científicas de Karl Popper encontram guarida na pós-modernidade.

A modernidade estaria então superada? Alguns teóricos pós-modernos pensam que sim, outros pensam que não (a exemplo de Heidegger, dos marxistas etc.). Mas todos concordam que houve mudanças profundas nas relações de produção e na subjetividade de relações entre pessoas, empresas, governos e instituições.

Um quadro resumido sobre as principais diferenças entre modernidade e pós-modernidade reúne as seguintes oposições:

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UNIDADE 1 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E A COMPREENSÃO DA VIDA SOCIAL

Modernidade Pós-modernidadeSimplificação Complexidade, contradiçãoUnicidade Ambiguidade, tensãoExclusividade (ou, ou) Inclusividade (e, e)Purismo HibridismoUnidade óbvia Vitalidade emaranhadaLógica convencional ParadoxosContinuidade RupturaConservação, mudança SuperaçãoEstabilidade InstabilidadeCertezas ConsensosImutabilidade Transformação constante

O início do século XXI mostrou, mais uma vez, que não se pode ter posições dogmáticas e que a abertura é necessária para o diálogo entre as pessoas. O conhecimento é importante e gera riquezas, sim, mas a ética, a sustentabilidade ambiental, a justiça social e a satisfação e a felicidade dessas pessoas é igualmente importante. A sociedade não pode ser submetida a rígidos programas políticos, partidários, corporativos, religiosos ou institucionais que excluam o pluralismo, as liberdades individuais e os códigos de comportamento que possibilitem uma vida melhor.

O discurso único que permeou o mundo, desde a década de 1980-1990 até o início do século XXI, centrado na competência especializada, no sucesso a todo custo e na celebridade como prêmio máximo, mostrou suas falhas ao longo das guerras absurdas (Afeganistão e Iraque), dos atentados terroristas insanos, provocados pela ignorância dos criminosos fundamentalistas islâmicos e pela arrogância de impérios. Uma das faces mais cruéis de um pensamento centrado no egoísmo e no materialismo, acima de tudo, foram as crises econômicas cíclicas que afetaram o capitalismo monopolista-financeiro desde meados da década de 1990 e que mostrou seu poder destrutivo mais intenso ao longo do colapso econômico-financeiro de várias empresas e países em 2008-2009.

FONTE: TRIGO, Luiz Gonzaga Godoi. Pensamento filosófico: um enfoque educacional. São Paulo: IBPEX, 2009, p. 196-200.

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RESUMO DO TÓPICO 3

• Estudamos a filosofia dos séculos XIX e XX em suas principais correntes. A partir dos contextos históricos de cada século, caracterizados no início de cada ponto correspondente, pudemos verificar que há uma grande diferença entre eles, principalmente no que concerne à compreensão em relação à razão humana.

• No século XIX imperou uma abordagem extremamente otimista da razão, sobre a qual se acreditava poder construir uma nova sociedade, desprovida de quaisquer contradições, que superasse todas as suas dificuldades. Esta perspectiva perdurou até as primeiras décadas do século XX, mas de alguma forma teve continuidade no pragmatismo norte-americano.

• A principal característica do século XX, contudo, foi a crise da razão, protagonizada por diversos acontecimentos históricos relevantes e por diversas correntes filosóficas. As duas guerras mundiais e o emprego da tecnologia na fabricação das bombas nucleares contribuíram para demonstrar que o otimismo em relação à razão era enganoso, pois a razão havia empregado todas as suas energias para produzir a morte.

• As descobertas da ciência em relação à vastidão do universo, na área de história e da biologia, demonstraram que a complexidade da vida humana está muito além do que a ciência havia descoberto até então. Um novo leque de possibilidades se abriu praticamente ao infinito com essas descobertas.

• Sobre a pergunta pela verdade, que acompanhou a filosofia desde os seus primórdios, o século XX trouxe novas perspectivas para a reflexão. A fenomenologia, os estudos da linguagem e a teoria da ação comunicativa de Jürgen Habermas foram fundamentais nesse sentido. Diante das constantes mudanças da sociedade e das transformações na vida social, novas formas de verdade precisaram ser encontradas, destacando-se a função do diálogo como meio de construção de proposições válidas para uma coletividade bastante diversa.

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1 Sobre as características do contexto histórico do século XX, quais afirmações podem ser consideradas verdadeiras?

Analise as seguintes sentenças:

I - As duas guerras mundiais representaram um abalo para o otimismo antropológico reinante desde o século XIX.II - O desenvolvimento não causou apenas efeitos negativos em relação à capacidade humana de compreender o mundo em que vive. Jaspers (2010) refere as descobertas de Einstein, especialmente a Teoria da Relatividade, como descobertas que abriram novas possibilidades de pesquisa praticamente infinitas. Também as descobertas na área de Biologia, com a criação de formas biológicas a partir de elementos não orgânicos, como a ureia, fizeram repensar as relações entre objetos e sujeitos no fazer científico.III - A crença no desenvolvimento de uma sociedade mais humana e próspera desabou diante dos totalitarismos nazista e fascista.IV - Foi o século em que surgiram a dialética hegeliana, o materialismo e o existencialismo.

Agora, assinale a alternativa CORRETA:

( ) Somente a sentença IV está correta.( ) As sentenças II e III estão corretas.( ) As sentenças I, II e III estão corretas.( ) As sentenças I e II estão corretas.

2 Caracterize a teoria da ação comunicativa de Jürgen Habermas.

3 Sobre o pragmatismo norte-americano, assinale a alternativa CORRETA:

( ) Os representantes dessa corrente filosófica criticam os racionalistas do século XVII ao afirmarem que não existe uma consciência separada do mundo. O conhecimento é sempre conhecimento de alguma coisa. Então, o saber está ligado com o mundo exterior. Ao mesmo tempo, são contrários à doutrina empirista, que afirmava que os objetos do conhecimento existiam por si só, sendo que o ser humano apenas tomava consciência deles na medida em que os vivenciava pela experiência.

( ) O pragmatismo foi uma corrente filosófica que se desenvolveu principalmente nos Estados Unidos. Entre os seus principais expoentes estão: Charles Sanders Peirce (1839-1914), William James (1842-1910) e John Dewey (1859-1952). A principal ideia do pragmatismo é a de que “o conhecimento é uma atividade participativa (não impessoal) e consiste de explicações válidas, sendo o instrumento mais importante

AUTOATIVIDADE

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para nossa sobrevivência”. (TRIGO, 2009, p. 175). Para os pragmáticos, o conhecimento válido é aquele que tem uma aplicação prática ou então quando “funciona”. (ARANHA; MARTINS, 2003).

( ) A sua grande preocupação foi a construção de um sistema filosófico que desse conta de explicar toda a realidade. A sua intenção primordial não é mudar o mundo, mas está mais interessado em dizer como ele funciona. Na medida em que oferece essa resposta, cria também a ferramenta que será utilizada por muitos de seus discípulos que almejarão mudá-lo, tais como Marx.

( ) O movimento defendia a ideia de que “a tarefa da filosofia não é provar que o homem é produzido por Deus, mas, inversamente, que Deus é produzido pelo homem: não foi a ideia (Deus) que criou o homem, mas o homem que criou a ideia (Deus)”. (MONDIN, 1983, p. 93).

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UNIDADE 2

PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

PLANO DE ESTUDOS

Esta unidade tem por objetivos:

● despertar o pensamento crítico e a análise mais aprofundada e apurada dos acontecimentos sociais que atingem a nossa vida de modo direto ou indireto;

● compreender a importância da filosofia e da sociologia no processo de interpretação dos fatos sociais do Brasil e do mundo;

● incentivar a leitura de pensadores importantes para a História da Filosofia e da Sociologia como um todo.

● avaliar filosófica e socialmente a sociedade brasileira e mundial.

Esta unidade está dividida em três tópicos e em cada um deles você encontra-rá atividades visando à compreensão dos conteúdos apresentados.

TÓPICO 1 – DEFINIÇÕES E HISTÓRIA DA SOCIOLOGIA

TÓPICO 2 – IMPORTANTES SOCIÓLOGOS E ALGUMAS CARACTERÍS-TICAS DO SEU PENSAMENTO

TÓPICO 3 – TEMAS SOCIOLÓGICOS

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TÓPICO 1

DEFINIÇÕES E HISTÓRIA DA

SOCIOLOGIA

UNIDADE 2

1 INTRODUÇÃOA Sociologia é considerada uma das ciências mais recentes da história do

pensamento humano. Apesar de ser nova, ela sempre esteve ligada às contradições e contrastes da vida humana. Entretanto, alguns acontecimentos históricos contribuíram para que ela se tornasse uma ciência especificamente ligada aos fatos sociais. Seu primeiro pensador, Augusto Comte, antes mesmo de denominá-la como Sociologia, a declarou como sendo uma espécie de “Física Social”.

Seu principal intuito foi o de demonstrar que a ciência pura poderia tentar explicar os fatos que ocorriam na sociedade. Sua obra debruçou-se sobre uma Europa transformada pelas várias invenções e criações do homem do século XVIII. Tais invenções tiveram a intenção de melhorar a vida humana. A ideia de progresso e sucesso econômicos estava no menu do dia a dia.

A Revolução Científica, iniciada pelos principais pensadores da época, como Descartes e Francis Bacon, bem como a Revolução Francesa e a Revolução Industrial, são os grandes marcos que vão definir o surgimento desta ciência voltada para o mundo social. O pensamento sobre a sociedade será resultado das intensas modificações decorridas destes três grandes eventos que se sucederam na Europa.

Sendo assim, a Sociologia é uma ciência que tenta desvendar cientificamente os acontecimentos sociais, dando a eles explicações fundadas em métodos científicos e empíricos.

Caro(a) acadêmico(a), diante desta breve explanação, você está sendo convidado a compreender um pouco mais o impacto da História sobre a vida de todos os cidadãos do mundo. E não só os europeus da época, pois até hoje nosso modo de produção se assemelha ao do século XVIII. E de como a Sociologia nascida na França de Augusto Comte pode facilitar nosso modo de entendimento do mundo atual.

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UNIDADE 2 | PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

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2 A REVOLUÇÃO INDUSTRIALA Revolução Industrial foi um processo encetado em meados do século

XVIII, mas seu verdadeiro início deu-se já na Idade Média. Principalmente no final deste período histórico, via-se surgir uma nova classe social que conquistara dinheiro e poder por meio da produção e venda de bens manufaturados e de empréstimos fornecidos por meio de juros. Esta classe denominou-se burguesia.

FIGURA 20 – CIDADES MURADAS NA IDADE MÉDIA

FONTE: Disponível em: <http://rhistoriaz.blogspot.com.br/2011/02/revolucao-francesa-parte-ii.html>. Acesso em: 12 nov. 2012.

FIGURA 21 – DENTRO DAS CIDADES HAVIA O COMÉRCIO DOS PRODUTOS FEITO PELOS BURGUESES, DONOS DOS BURGOS

FONTE: Disponível em:<http://www.not1.xpg.com.br/renascimento-comercial-e-urbano-burguesia-e-producao-baixa-idade-media/>. Acesso em: 12 nov. 2012.

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Esta classe burguesa, na medida em que comercializava seus produtos, acumulava e gerenciava cada vez mais dinheiro (ou capital, como comumente falamos atualmente). Mas, a partir do século XVIII, os desenvolvimentos científicos tomaram um novo rumo, pois era preciso mudar o modo de produção que existia até então. Era necessário aumentar a produção de produtos manufaturados a fim de expandir o número de consumidores. Desta forma, foi necessário direcionar as pesquisas para uma área mais prática e concreta dos interesses humanos, pois era insuficiente, do ponto de vista econômico, investir em pesquisas que tinham resultados diretamente ligados ao lucro e ao enriquecimento. Aliás, é interessante perceber também que boa parte do enriquecimento dos burgueses não se deu de modo lícito (ver leitura complementar sobre gentry e yeomen). Contudo, o propósito burguês foi alcançado quando James Watt cria a primeira máquina a vapor da história e revoluciona enfaticamente o mundo do trabalho na Inglaterra.

O trabalho, a partir daí, toma outra direção: ele se torna racional, competitivo, opressor e explorado. No processo de produção artesanal, por exemplo, o artesão conhecia todo o processo de produção, do início ao fim. Ele era dono de todo o maquinário e de todo o produto produzido por ele. Agora, com a Revolução Industrial, o trabalhador é contratado para executar de modo ininterrupto uma única atividade que se repete durante toda a jornada de trabalho, que no início da Revolução extrapolava uma carga de 16 horas. O trabalhador agora não é mais dono de nada, apenas vende a sua força de trabalho para um empresário da indústria que “tira todo o suor de seu rosto” para transformar matéria-prima em manufatura.

ESTUDOS FUTUROS

Este tema, entretanto, será melhor aprofundado quando discutiremos sobre Marx e a luta de classes. Porém, há uma charge muito bem elaborada pelo cartunista Robert Thaves que ilustra bem esta ideia.

FIGURA 22 – LINHA DE MONTAGEM

FONTE: Disponível em: <http://escsunicamp.wordpress.com/2011/12/01/plano-de-aulas-sobre-trabalho/>. Acesso em: 10 jan. 2013.

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NOTA

LEITURA SOCIOLÓGICA

Moradias de trabalhadores em Manchester

"That was a memorable day to me, for it made great changes in me. But, it is the same with any life. Imagine one selected day struck out of it, and think how different its course would have been. Pause you who read this, and think for a moment of the long chain of iron or gold, of thorns or flowers, that would never have bound you, but for the formation of the first link on one memorable day."

- Charles DickensGreat Expectations

(DORÉ, Gustave. Over London by rail. 1872. 1 xilogravura: 25 cm x 19,5 cm. Londres)

Tradução do texto: “Foi um dia memorável, pois operou grandes mudanças em mim. Mas isso se dá com qualquer vida. Imagine um dia especial na sua vida e pense como teria sido seu percurso sem ele. Faça uma pausa, você que está lendo, e pense na grande corrente de ferro, de ouro, de espinhos ou flores que jamais o teria prendido não fosse o encadeamento do primeiro elo em um dia memorável”.

Numa depressão de terreno bastante funda, numa curva do Meldock (rio que corta a cidade de Manchester), e cercada pelos quatro lados por grandes fábricas e margens altas cobertas de casas e aterros, estão cerca de 200 casas repartidas em dois grupos, sendo frequentemente a parede de trás a divisória. Habitam aí cerca de 4000 pessoas, quase todas irlandesas. As casas são velhas, sujas e do tipo menor: as ruas são desiguais, cheias de saliências, em parte sem pavimento nem canais de escoamento; por todo o lado há uma quantidade considerável de imundícies, detritos e lama nauseabunda entre os charcos estagnados; a atmosfera está empestada com suas emanações, enegrecida e pesada pelos fumos de uma dúzia de chaminés de fábricas.

FONTE: ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Porto: Afrontamento, 1975, p. 96.

Isto quer dizer que, enquanto a burguesia enriquecia cada vez mais, os trabalhadores empobreciam. Trabalhavam em jornadas extenuantes, sem a menor diferenciação entre homens, mulheres e crianças. Aliás, era comum que crianças e mulheres trabalhassem mais do que homens, pois elas reclamavam menos e produziam mais. O salário de uma semana de trabalho era tão pífio que era inferior a uma libra esterlina, o que, em moeda atual, representava menos do que R$ 2,80.

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A vida miserável e degradante de inúmeros trabalhadores levou a Inglaterra a um caos social. Na medida em que as pessoas foram forçadas a sair do campo para viver na cidade, o inchaço populacional ocorria e o infortúnio crescia. Os salários baixíssimos não podiam oferecer um padrão de vida meramente aceitável ou condizente com a dignidade humana. As doenças e a prostituição eram comuns. A cidade de Manchester, no noroeste da Inglaterra, é um exemplo típico deste inferno social que surgira na época. A falta de infraestrutura e a ausência de políticas públicas em prol da população trabalhadora são fatos gritantes daquele período, mas que não deixaram de existir com o passar dos tempos no mundo capitalista contemporâneo.

Contudo (destacando ainda o século XVIII), o caos social presente na Inglaterra se expandiu para outros espaços do Continente Europeu, enquanto que a burguesia industrial se consolidava como uma classe forte e coesa. Não bastava mais dominar economicamente o mundo europeu, era necessário algo mais. Era preciso dominar também a política e o sistema de governo daquela época. Esta ideia serviu de base para uma nova revolução, a Revolução Francesa, que será o assunto principal do próximo ponto.

DICAS

SUGESTÃO DE FILME: TEMPOS MODERNOS

Modern Times (Tempos Modernos): é um filme de 1936 do cineasta britânico Charles Chaplin, em que o seu famoso personagem “O Vagabundo” (The Tramp) tenta sobreviver em meio ao mundo moderno e industrializado. É considerado uma forte crítica ao capitalismo, militarismo, liberalismo, conservadorismo, stalinismo, fascismo, nazismo e imperialismo, bem como uma crítica aos maus tratos que os empregados passaram a receber depois da Revolução Industrial.

Nesse filme Chaplin quis passar uma mensagem social. Cada cena é trabalhada para que a mensagem chegue verdadeiramente tal qual seja. E nada parece escapar: máquina tomando o lugar dos homens, as facilidades que levam à criminalidade, à escravidão. O amor também surge, mas surge quase paternal: o de um vagabundo por uma menina de rua. Tempos Modernos é, ao mesmo tempo, comédia, drama e romance.

FONTE: Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Tempos_Modernos>. Acesso em: 12 jan. 2013.

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AUTOATIVIDADE

Leia com atenção a letra da música “Capitão de Indústria”, da banda brasileira Paralamas do Sucesso e, logo após, responda à pergunta:

Capitão de IndústriaOs Paralamas do Sucesso

Eu, às vezes, fico a pensarEm outra vida ou lugarEstou cansado demaisEu não tenho tempo de terO tempo livre de serDe nada ter que fazerÉ quando eu me encontro perdido Nas coisas que eu crieiE eu não sei.Eu não vejo além da fumaça O amor e as coisas livres, coloridas Nada poluídas.

Ah, eu acordo pra trabalharEu durmo pra trabalharEu corro pra trabalharEu não tenho tempo de terO tempo livre de serDe nada ter que fazerEu não vejo além da fumaçaQue passa e polui o arEu nada seiEu não vejo, além disso, tudoO amor e as coisas livres, coloridas Nada poluídas.

(PARALAMAS DO SUCESSO, Capitão de Indústria. In: CD 9 Luas, EMI, 1996 (1 CD (ca. 37’51”). Faixa 5 (3’37”)

Explique se há alguma relação entre a letra da música e os problemas decorrentes da falta de identificação do trabalhador com o mundo do trabalho, depois da Revolução Industrial.

NOTA

Texto complementar: O cercamento dos campos comuns e os “carneiros comedores de gente”.

Durante o feudalismo, a terra era considerada um bem comum, destinada à produção camponesa para a manutenção dos feudos. Porém, na Inglaterra, a partir do século XVI, a terra passou a ser entendida como um bem de produção, como uma forma de obter lucro e acumular riquezas.

Parte dos senhores feudais, a gentry, e uma camada rica de pequenos e médios proprietários, os yeomen, passaram a cercar suas terras e impedir que os camponeses as utilizassem para o cultivo de alimentos e criação de animais para consumo próprio. Esse processo de cercamento era feito com anuência da autoridade real.

As terras cercadas eram, na maioria das vezes, utilizadas para a criação de carneiros e ovelhas para a produção de lã. Essa produção seria beneficiada nas manufaturas e depois vendida no mercado interno ou exportada. Como os camponeses não podiam mais plantar o próprio alimento, tiveram que se submeter ao trabalho nas manufaturas, onde recebiam salários baixíssimos.

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Uma expressão que se tornou comum entre os séculos XVII e XVIII foi “os carneiros se tornaram comedores de gente”. Isso porque os carneiros estavam sendo criados nas terras que antes serviam para a produção dos alimentos das famílias. Enquanto os camponeses padeciam na miséria, os grandes proprietários enriqueciam rapidamente. (LUI, 2012. p. 89).

3 REVOLUÇÃO FRANCESAComo vimos na Revolução Industrial, muitas mudanças ocorreram

na sociedade da época. Entretanto, estas mudanças beneficiaram apenas uma pequena parcela da sociedade (os burgueses). Esta classe social começou a assumir boa parte do domínio econômico na Europa dos séculos XVII e XVIII. Porém, aqui é pertinente destacar a importância da palavra "domínio", pois foi exatamente isso o que aconteceu. A burguesia conquistou um poder. Poder este fundado na exploração e alienação do trabalhador. Contudo, esta dominação era insuficiente para a burguesia. Era preciso algo mais, era preciso ampliar as raízes deste poder.

A Revolução Francesa, ao que parece e pelo que é ensinado na maioria dos textos didáticos, revela ter sido um momento histórico da emancipação das pessoas contra a tirania da nobreza e do clero, com o famoso slogan "Liberdade, Fraternidade e Igualdade para todos". Porém, se ampliarmos com uma lupa o contexto histórico e cultural da França do século XVIII, a verdade aparece com um outro rosto.

Um grupo social que assumiu o protagonismo desta fase de transição não foi o povo em geral (artesãos, trabalhadores, sans-culottes etc.), mas a burguesia. E qual seria o principal motivo desta insurreição? As taxas elevadíssimas de impostos e a manutenção do "status quo" de dois grupos sociais que até então estavam no poder do governo francês: a nobreza e o clero.

É importante que o leitor tenha ciência disso já de início, pois é fundamental que se tenha em mente que nada na história acontece por acaso ou por mero ato de caridade daqueles que estão no poder ou que querem assumir o poder. A burguesia do século XVIII estava cansada de manter a nobreza, por intermédio do pagamento de impostos. Estava exausta de garantir uma "vida boa" para todos "aqueles que não trabalhavam".

De fato, a nobreza vivia às expensas dos impostos. Aliás, é importante recordar aqui que o mundo europeu deste século, na verdade, viveu às custas do trabalhador. Mas o discurso da época escamoteava esta verdade, o que não mudou muito até hoje.

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Uma das grandes motivações que impingiram o desejo desta revolução nasceu no seio político da França moderna: o direito ao voto. Antes, porém, é muito importante destacar que os anseios de equidade despertos pela revolução tinham por base uma ideia bem clara: a tríade (igualdade, fraternidade e liberdade) não era uma preocupação de fato, mas uma preocupação legal e jurídica. A noção de que a Europa do século XVIII almejava ser civilizada e desenvolvida não é algo tão real assim, pois a pobreza e a miséria permaneceram após a revolução.

A questão que você, acadêmico(a), deve ter ciência é que a Revolução Francesa é uma revolução advinda do interesse dos burgueses em não pagar impostos, o que, de fato, se concretizou. Mas que isso não garantiu uma vida mais digna aos pobres, pois o princípio de que "alguns são mais iguais do que outros" perdurou. *A Revolução Francesa foi uma revolução de massa, mas com um sentido político bem definido: levou a burguesia ao poder.

Voltando à questão do voto, era inaceitável para um burguês contemporâneo do século XVIII que o rei possuísse ainda um poder absoluto e irrevogável, outorgado por Deus. Era loucura aceitar a divisão social da época, pois parecia ser um absurdo grotesco, como é apresentado nas figuras que seguem:

FIGURA 23 – DIVISÃO DA SOCIEDADE FRANCESA DO SÉCULO XVIII

1%

2%

97%

1º ESTADO: CLERO

2º ESTADO: NOBREZA

3º ESTADO: BURGUESIA + CAMPONESES + SANSCULOTES: obrigações e impostos.

Terras,cargosprestígio,privilégios e isenção fiscal.

FONTE: Disponível em: <http://combatespelahistoria.blogspot.com.br/2011/04/estrutura-social-na-franca-pre.html>. Acesso em: 12 jan. 2013.

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FIGURA 24 – SÁTIRA SOBRE A SITUAÇÃO DO 3º ESTADO NA SOCIEDADE FRANCESA DO SÉCULO XVIII

FONTE: Disponível em: <http://araoalves.blogspot.com.br/2011/11/questoes-discussivas-sobre-revolucao.html>. Acesso em: 12 jan. 2013.

UNI

Vê-se claramente nas figuras que a representação política dada à maior parcela da sociedade era desproporcional, pois, nas tomadas de decisões, cada Estado tinha direito a apenas um voto, o que significa dizer que 97% da população não era legitimamente representada e que, além disso, os dois primeiros Estados sempre venceriam as decisões por se colocarem sempre do mesmo lado, ou seja, ambos estavam sempre legislando ou decidindo em favor dos seus próprios interesses e nunca a favor da coletividade.

Neste ambiente de insatisfação e descontentamento, muitos pensadores da época começaram a se organizar para derrubar este sistema de governo que parecia ser profundamente desonesto. Um dos pensadores que vale ser destacado aqui se chamava Jean-Jacques Rousseau. Ele defendia que o poder governamental não poderia ser exercido por uma única pessoa ou por interesses de uma classe dominante sobre uma massa que deveria aceitar passivamente suas imposições. Ele foi um dos primeiros pensadores a defender, na Modernidade, a ideia da representatividade política. Segundo ele, a soberania é estabelecida como poder absoluto orientado pela vontade geral (esta vontade é convalidada pelo povo que elege um representante) e legitimado pelo pacto social para garantir a conservação do Estado, contrapondo-se à ideia de que a soberania surge como resultado da imposição da vontade de alguns grupos sobre outros, visando a conservar o poder do Estado. Neste caso, Estado monárquico. (ROUSSEAU, 1994).

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IMPORTANTE

“Não sendo o Estado ou a Cidade mais que uma pessoa moral, cuja vida consiste na união de seus membros, e se o mais importante de seus cuidados é o de sua própria conservação, torna-se-lhe necessária uma força universal e compulsiva para mover e dispor cada parte da maneira mais conveniente a todos. Assim como a natureza dá a cada homem poder absoluto sobre todos os seus membros, o pacto social dá ao corpo político um poder absoluto sobre todos os seus, e é esse mesmo poder que, dirigido pela vontade geral, ganha, como já disse, o nome de soberania”. (ROUSSEAU, 1994. p. 48).

Além de Rousseau, temos Charles-Louis de Secondat (o Barão de Montesquieu), que é visto, atualmente, como o grande articulador da criação dos três poderes de uma República (Legislativo, Executivo e Judiciário), já que o inglês John Locke teria sido o primeiro mentor desta ideia. Montesquieu reconheceu a igualdade e o sufrágio (voto, votação) como qualidades da democracia. Por isso, ele defendia a existência destes três poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário), ressaltando a necessidade de se garantir a distinção entre seus membros, a independência de cada um deles e a possibilidade de resistirem um ao outro. Segundo ele, o governante deveria executar os atos de governo (Poder Executivo), submetendo-se às leis civis (Poder Legislativo) e não poderia atuar como juiz (Poder Judiciário). Afinal, o governante não poderia julgar com total imparcialidade, visto que na monarquia o acúmulo de funções impediria o príncipe de conceder clemência após os julgamentos, uma vez que ele próprio os teria realizado, o que geraria um grave conflito de interesses e a ausência total de isonomia nas decisões dele advindas. (MONTESQUIEU, 2004).

Sendo assim, vemos, neste momento, com clareza e evidência uma coisa: os pensadores da época estavam interessados em defender a democracia, mas esta democracia não precisava ser tão equânime assim. Ela precisava, contudo, ser feita para que a nobreza e o clero fossem depostos. A burguesia jamais conseguiria expandir "o seu território" se o rei permanecesse com seu poder absoluto. Era necessário "decapitá-lo".

Diante disso, gostaríamos de destacar novamente ao(à) nosso(a) acadêmico(a) que o objetivo dos pensadores franceses não era outro senão o de defender o interesse da classe burguesa, pois não bastava mais possuir apenas o poder econômico. Era preciso aliar o poder econômico com o poder político. Absorver e assimilar este duplo poder. O pensamento "esclarecido" dos pensadores da época não foi o de legitimar "a igualdade entre todos", mas o de justificar que era preciso que a burguesia ampliasse o seu poder. O mundo político, depois de Maquiavel, se tornou o mundo da estratégia de dominação.

Boa parte destes pensadores pertencia à burguesia e, como tal, lutavam pelos seus interesses. Não havia outro motivo maior que fosse este. "Todos nós somos iguais perante a lei", todavia, somente perante a lei. O resto é história.

O aspecto histórico da Revolução Francesa e as consequências que ela trouxe para o Ocidente são evidentemente claras, pois boa parte das nações ocidentais segue os preceitos que foram criados neste período histórico. Nosso

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intuito não é o de aprofundarmo-nos demasiadamente neste ponto, mas o de despertar em você, caro(a) acadêmico(a), uma compreensão mais ampla da importância deste evento para uma análise sociológica mais abrangente. Ou seja, é necessário olharmos para o passado para entendermos o presente (e que na História nada acontece por acaso).

DICAS

Sugestão de filme: Os Miseráveis.

Adaptação da obra de Victor Hugo. A história é ambientada na França do início do século XIX, em meio à crise, à fome e à revolução. Liam Neeson vive Jean Valjean, um homem que roubou um pedaço de pão para alimentar a família e recebeu 20 anos de prisão. Ele foge, consegue nova identidade, reconstrói sua vida e passa a ser prefeito do vilarejo de Vigau. Mas o inspector Javert (Geoffrey Rush) continua atrás dele, ameaçando tudo o que conseguiu. O drama também se estende a outras personagens: Uma Thurman está no papel de Fantine, uma mulher marginalizada por ter uma filha ilegítima, Cosette, que será adotada por Valjean e mais tarde terá um romance com um revolucionário.

FONTE: Disponível em: <http://leiturasescritas.blogspot.com.br/2010/06/filme-os-miseraveis-espaco-da-critica.html>. Acesso em: 12 jan. 2013.

4 O ILUMINISMODepois de discorrermos sobre as duas grandes revoluções da Europa, é

preciso analisar e compreender como estas revoluções se deram, e por quê. Neste sentido, se faz necessário ver o contexto intelectual da época e quais os fundamentos que alicerçaram este período histórico.

Com o fim da Idade das Trevas (Idade Média), o poder religioso que pertencia à Igreja Católica Apostólica Romana foi reduzido. O Teocentrismo perdeu, em grande parte, o seu valor. As pessoas, contudo, precisavam reencontrar um novo horizonte, outra perspectiva para seguir. Nasce aqui o advento do indivíduo, isto é, aparece agora um novo substituto para a religião, a saber: o próprio ser humano. Ele agora está no centro dos debates e das atenções humanas. Ele saiu de sua pequenez e submissão a Deus para assumir o papel de protagonista de sua própria emancipação. Principalmente por este motivo, a palavra Iluminismo surgirá em oposição à ideia de trevas, característica atribuída à Idade Medieval.

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Aqui é muito importante destacar uma palavra da língua alemã que resume bem a ideia de Iluminismo: Aufklärung. Esta palavra é utilizada pelo filósofo Immanuel Kant para expressar a ideia de que o ser humano agora deve assumir plenamente a sua maioridade, abandonando a menoridade na qual vivera até então. Outro ponto importante da palavra Aufklärung é a sua composição: Auf, em alemão, significa literalmente "Alto", e klärung é derivado de klar, que quer dizer “claro”. Deste modo, numa tradução livre, Aufklärung significa estar esclarecido ou iluminado por uma luz que vem do alto, do alto da razão humana. Esta iluminação seria a libertadora de todas as amarras que a humanidade teve no passado. Agora, sua maioridade poderá ser alcançada, pois o indivíduo está livre e plenamente apto para usar a razão.

Este novo racionalismo será a base para que se atinja um novo patamar intelectual que, durante muito tempo, fora adormecido pelo excesso de regras impostas pela religião, que afirmava ou legitimava o que era certo ou errado, bom ou mau, sagrado ou profano etc. Os pensadores iluministas se opuseram, então, a diversos campos da sociedade que, no seu entender, estavam em trevas, como o domínio e os dogmas da Igreja Católica, as crendices populares, a intervenção do Estado no mercado, bem como o direito divino dos reis.

A charge que segue faz uma paródia bem-humorada da ideia principal do Iluminismo.

FIGURA 25 – SÁTIRA SOBRE ILUMINISMO E EMANCIPAÇÃO FEMININA

FONTE: Disponível em: <http://thirinhas.wordpress.com/2010/05/03/iluminismo/>. Acesso em: 15 jan. 2013

Por este viés, um dos principais quesitos que se atribui ao Iluminismo é o de esclarecer o mundo através da razão. Inúmeros são os pensadores que defenderam este atributo do período iluminista: de Francis Bacon (pai da ciência experimental) a Augusto Comte (pai da Sociologia). Todos corroboram com a

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ideia de que agora o ser humano conquistaria a plenitude que lhe fora negada pela religião. O Iluminismo aparece, então, como a insigne marca de um novo tempo. Todo misticismo deve ser negado ou superado. Toda explicação que não for fundada na experiência não pode nem mesmo ser cogitada. Somente aquilo que for percebido e experienciado pode ser realmente válido. Caso contrário, só o banimento lhe restará.

Nesta linha de pensamento, o papel da dúvida é assaz imprescindível. René Descartes, um dos principais precursores deste período, é considerado o pai da dúvida metódica na filosofia e na matemática. Para ele, a dúvida é o princípio de todo saber. Todo conhecimento adquirido deveria ser cuidadosamente esquadrinhado e analisado pelo critério da dúvida. Ao duvidar, far-se-ia uma revisão geral de tudo aquilo que se aprendera para, a partir daí, reconstruir o edifício do saber, repudiando tudo aquilo que é falso, enganoso ou dúbio. Em outras palavras, a dúvida possuía, para Descartes, uma curiosa função: auxiliar o ser humano a abdicar de tudo aquilo que aparentava ser duvidoso.

Francis Bacon, filósofo inglês deste mesmo período, afirmava que apenas as afirmações baseadas em observações empíricas eram aceitáveis como verdadeiras: o que não proviesse, de alguma forma, da observação direta dos cinco sentidos do corpo humano, não deveria ser visto como verdadeiro. (BACON, 2005).

Outrossim, vale lembrar a você, caro(a) acadêmico(a), que Deus não será abandonado por completo nesta fase histórica. Aliás, o ponto mais crucial do Iluminismo não é o debate sobre a existência ou não de Deus, mas o descredenciamento da instituição religiosa como porta única e exclusiva de acesso do indivíduo a Deus. Dito de outro modo: os iluministas defendiam o direito de cada pessoa acreditar ou seguir a vida religiosa que bem quisesse. Cada um deveria ter a liberdade de seguir ou, até mesmo, de não seguir a religião que desejasse.

Não obstante, nasce aqui uma cisão muito grande na História: religião e ciência tornam-se simetricamente opostas entre si.

FIGURA 26 – A OPOSIÇÃO ENTRE CIÊNCIA E RELIGIÃO

FONTE: Disponível em: <http://libertesedosistema.blogspot.com.br/2012/04/>. Acesso em: 15 jan. 2013.

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Além disso, como vimos na Revolução Francesa, os ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade foram inspirados no Iluminismo francês, bem como as ideias básicas do liberalismo econômico e da ciência moderna e contemporânea. Aliás, boa parte das descobertas científicas da modernidade e da contemporaneidade foi consequência do espírito inovador e revolucionário deste período histórico. Máximas como laissez faire, laissez passer (deixai fazer, deixai acontecer).

"Na natureza nada se perde, nada se cria, tudo se transforma" (Lavoisier) e

"Posso não concordar com nenhuma das palavras que você disser, mas defenderei até a morte o direito de você dizê-las" (Voltaire) são algumas das heranças deste momento histórico.

Por falar nisso, Augusto Comte, pai da Sociologia, bebeu muito desta fonte. Para ele, a ciência seria o estágio mais elevado da consciência humana. O ser humano, após ter passado por dois estágios de completo atraso intelectual, teria alcançado o seu ápice de desenvolvimento quando chegou ao Iluminismo. Segundo ele, o progresso da humanidade se daria por meio do progresso advindo pela ciência. O estágio mais alto da humanidade teria sido atingido com o empirismo (experiências concretas). Sendo assim, a dor e a miséria humanas seriam definitivamente eliminadas, o que, no fundo, não aconteceu. Mas isso é assunto para o próximo tópico.

DICAS

Sugestão de vídeo no YOUTUBE: O Lobo, de Pitty. Acesse o link indicado a seguir: <http://www.youtube.com/watch?v=cTd2Iecylt0>.

AUTOATIVIDADE

1 Estabeleça quais foram os aspectos mais importantes do Iluminismo que influenciaram a Revolução Francesa.

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2 Explique, com suas palavras, qual é a moral da história da charge que aborda a questão do ‘Iluminismo Feminino’, em nosso tempo.

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3 Pesquise sobre a expressão francesa laissez faire: o que ela realmente significa e quais são as suas aplicações na atualidade?

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5 POSITIVISMO

FIGURA 27 – AUGUSTO COMTE

FONTE: Disponível em: <http://dyyylon.blogspot.com.br/2010/11/o-pensamento-pedagogico-positivista.html>. Acesso em: 12 jan. 2013.

Augusto Comte é considerado o pai do pensamento positivo. Calma, caro(a) acadêmico(a), não é exatamente isso que você está pensando. É comum que muitas pessoas fiquem em dúvida sobre o real significado desta palavra. Na verdade, a palavra positivo, dentro do contexto do pensamento de Augusto Comte, possui um outro sentido. Aliás, é mais conveniente que usemos a palavra positivista, a fim de evitar novos conflitos de interpretação.

Para este pensador francês, a ideia de positivismo quer dizer algo científico, empírico ou concreto. Mas, para entender esta ideia se faz necessário compreender que, segundo Comte, existem alguns estágios pelos quais a humanidade precisou passar para chegar a este patamar positivista. Estes estágios são, por sua própria lógica, momentos de transição, nos quais a humanidade precisou evoluir para alcançar a perfeição do entendimento sobre si mesma e o mundo.

Contudo, antes de nos delongarmos sobre isso, vejamos um pouco a trajetória intelectual de Augusto Comte.

As principais obras de Comte chamam-se Curso de Filosofia Positiva e Sistema de Política Positiva. Nestas obras, o pensador repassou os principais métodos e resultados de cada uma das ciências para, então, fundar a sua própria, a Sociologia. Outrossim, é importante destacar que o nome Sociologia, na verdade, não foi o primeiro nome que Comte deu à sua ciência. O primeiro nome foi Física Social.

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Neste sentido, sua intenção foi a de estabelecer critérios científico-matemáticos para abordar os problemas sociais com a mais precisa exatidão (mais tarde, seu seguidor mais fiel, Émile Durkheim, usará este método para criar o conceito de 'fato social').

Entretanto, já havia outro pensador contemporâneo a Comte (o belga Quételét) que criara um sistema análogo, no qual estabelecia critérios matemático-estatísticos de compreensão da sociedade. Sendo assim, ao criar o nome Sociologia, Augusto Comte tentou estabelecer um critério próprio e adequado de compreensão da sociedade, pois não bastava adaptar os critérios da Matemática ou da Biologia para divisar a sociedade. Era preciso um método exclusivo de análise para a vida social.

Deste modo, essa filosofia afirma que é necessário conhecer cientificamente a sociedade, o que se dá por meio da descoberta das leis naturais que regulam a vida social. Diante disso, podemos inferir que a visão social não pode ser pautada em qualquer tipo de compreensão metafísica, sobrenatural ou teológica. É preciso usar restritamente a ciência para tal intento. Augusto Comte, com isso, reitera a importância da superação de uma visão teocêntrica ou de conceitos vazios e abstratos de compreensão, tais como: dinheiro, Estado ou Nação (o que ele vai denominar de metafísica) para analisar a sociedade. Isto nos revela, em outras palavras, que a ciência será o único critério válido de compreensão da realidade.

Com isso, ele afirma que só existem três elementos básicos para compreendermos a realidade social: o relativismo, o holismo e a historicidade. O relativismo é um dos conceitos mais importantes de Comte. Todo saber que possuímos é efêmero, fugaz e transitório, ou seja, o saber que possuímos sobre o mundo não é eterno, não é dogmático. Ele tem, assim como na ciência, uma validade provisória, isto é, o único princípio absoluto é que tudo é relativo.

Por outro lado, o holismo tem um papel igualmente importante na compreensão de Augusto Comte. Esta ideia pode ser resumida da seguinte maneira: tudo aquilo que é social só pode ser analisado dentro de um contexto total, a sociedade precisa ser vista como um todo. As partes só podem ser analisadas dentro de um contexto global ou total. Aqui podemos inserir uma frase de Aristóteles muito usada por Augusto Comte: a separação dos ofícios e a convergência dos esforços são essenciais para o sucesso social.

De outro modo, podemos analisar que, para Comte, as pessoas, separadas em suas atividades pessoais ou laborais, só podem ter importância dentro de um contexto social. Separadas ou isoladas, elas não têm nenhum valor em si mesmas. Elas só possuem valor se estiverem inseridas no todo. A ideia comteana se assemelha à noção de organismo ou de corpo (daí a noção importante de holismo como corpo social), pois cada membro só tem valor se estiver conectado ao corpo, pois fora dele o membro não tem valor algum.

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Por fim, a historicidade. Cada ato ou evento tem um caráter histórico. A vida social precisa estar conectada a estes três elementos imprescindíveis: o relativismo, o holismo e a história. A História, neste caso, mostra porque algumas sociedades evoluíram mais rápido e porque outras não. O texto precisa ser lido dentro de um determinado contexto. As sociedades possuem seu próprio processo de transformação e de desenvolvimento. Cada uma permanece ou cresce segundo suas particularidades específicas.

Entretanto, caro(a) acadêmico(a), não seja ingênuo: Comte tentou demonstrar que o mundo europeu era mais desenvolvido e evoluído por ter passado por tantas revoluções (bélicas ou não) e por ter deixado para trás o teocentrismo e o uso da espada para garantir sua expansão territorial e intelectual sobre o resto do mundo ocidental. Não é à toa que, mais tarde, ele acabará fundando a Religião da Humanidade (que parece ser, num primeiro momento, algo contraditório e sem sentido) como uma forma de cultuar o intelecto europeu em detrimento a qualquer divindade sobrenatural. Seu lema religioso era: O amor por princípio, a ordem por base e o progresso por fim. (COMTE, 1978).

As figuras a seguir ilustram a ideia central de um templo da Religião da Humanidade.

FIGURA 28 – ALTAR DE UMA IGREJA DA RELIGIÃO DA HUMANIDADE

FONTE: Disponível em: <http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Tpos6.JPG>. Acesso em: 15 jan. 2013.

As duas figuras apresentam bustos de personagens importantes da ciência moderna. Cada um deles contribuiu para o avanço da humanidade do estágio teológico até o estágio positivista.

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FIGURA 29 – BUSTOS DE PERSONALIDADES IMPORTANTES DA HISTÓRIA DA CIÊNCIA

Nas paredes laterais, nichos com os 'chefes do mês', figuras proeminentes que representam campos da atividade humana, períodos históricos, etc .

FONTE: Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-59701995000300006&script=sci_arttext>. Acesso em: 15 jan. 2013.

Com este lema, nota-se a influência de Comte sobre o pensamento republicano da recém-fundada nação brasileira do século XIX, que cunhou em sua bandeira a expressão: Ordem e Progresso.

AUTOATIVIDADE

Neste momento, gostaríamos de convidar você, caro(a) acadêmico(a), a responder à seguinte questão: “Será que os intelectuais brasileiros do século XIX tinham em mente que este lema provém de uma ideologia comteana, que almejava demonstrar a superioridade europeia sobre o resto do mundo?” Pense a respeito!________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Falta-nos apresentar agora a teoria dos três estágios da humanidade. Comte, ao criar esta nomenclatura, demonstrou que a evolução da humanidade precisou passar por estes estágios, sobrepondo um ao outro, até chegar ao patamar mais alto, que é o positivista. A humanidade, com o desenrolar do

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TÓPICO 1 | DEFINIÇÕES E HISTÓRIA DA SOCIOLOGIA

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tempo, buscava explicações para os acontecimentos que ocorriam à sua volta. Em cada momento histórico havia um modo acertado de explicar estes fatos. Comte assim os demonstra:

● Estágio Teológico: era preciso saciar a vontade dos deuses ou a vontade de algum Ser Sobrenatural. Tudo era feito ou desenvolvido para saciar os interesses desta entidade sobrenatural.

● Estágio Metafísico: Comte elabora a ideia de que os seres humanos, a partir deste estágio, precisavam saciar os interesses de abstrações vazias, tais como: a morte, o dinheiro, o Estado, a sociedade etc. Usemos o exemplo da morte: a morte não é uma coisa que se toca, mas é um processo que termina. Como a morte não é uma coisa, ela é uma abstração, mas se pensarmos que a morte tem vida, que ela age racionalmente, como uma coisa, atribuiremos vontade a uma abstração. Nesse sentido, a morte é uma ideia metafísica e não uma ideia científica.

● Estágio Positivo (Positivista): Comte afirma que, nos dois estágios anteriores, o ser humano se preocupou em descobrir o porquê das coisas, isto é, ele quis saber por que as coisas precisam funcionar de um determinado modo. Já no estágio positivo, o que importa é a questão de como as coisas funcionam e que relação podemos estabelecer entre elas. A visão agora é imanentista, empírica e concreta e não mais algo abstrato, teoricista e sobrenatural. (COMTE, 1978).

A charge a seguir explicita bem esta ideia.

FIGURA 30 – DUALIDADE ENTRE CIÊNCIA E FÉ

O Método Científico O Método Criacionista

Aqui estão os fatos. Quais conclusões podemos

tirar deles?

Aqui está a conclusão.Quais fatos podemos

usar para respaldá-la?

FONTE: Disponível em: <http://sala19.wordpress.com/2012/02/10/criacionismo-x-evolucionismo-origens-da-humanidade/>. Acesso em: 15 jan. 2013.

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Depois do positivismo, o modo de compreensão e de visão de mundo mudou drasticamente. Muitos pensadores foram influenciados por Augusto Comte. Aliás, é importante pensar que o advento científico teve origem neste mesmo período histórico: o século XIX. O progresso científico havia abraçado uma grande causa: solucionar todos os problemas do mundo. Agora, todas as pessoas gozariam de uma paz perpétua, pois a ciência havia assumido o papel de salvadora da humanidade. No lugar de Deus entrara a ciência. Segundo esta nova visão, as teorias científicas deveriam ter validade universal, na medida em que se mostrassem aptas a explicar todos os eventos do mundo.

Por este viés criou-se, contraditoriamente, um novo mito (algo que Comte sempre quis abolir): o mito do cientificismo. Ou seja, a ideia de que somente a ciência teria as respostas certas sobre os fenômenos da vida biológica ou social. Este erro talvez tenha sido o maior de Comte, justamente por ambicionar um propósito tão incomensurável como este, pois boa parte dos problemas socioambientais que vivenciamos hoje é decorrente desta superlativação da ciência como única resposta para os problemas da humanidade.

6 ESCOLA DE CHICAGOA sociologia a partir do próprio contexto social. Esta ideia é uma das

características mais marcantes desta escola. Seu principal propósito foi o de interpretar os eventos sociais que começaram a ocorrer a partir do século XX na cidade de Chicago e seus arredores, bem como em todo o território dos EUA. O advento da economia americana na primeira metade do século XX fez com que um levante enorme de imigrantes fosse levado a se transferir da Europa para os EUA.

O choque cultural e o processo de urbanização caótico e desorganizado fazem lembrar, em analogia, o processo de urbanização que vimos no início desta unidade, na Inglaterra da Revolução Industrial no século XVIII. Contudo, as mudanças históricas e sociais nos levam a pensar uma nova realidade. Neste caso, os pesquisadores desta Escola se propuseram a realizar um método novo de investigação social, muito utilizado por antropólogos: a observação participante. Os pesquisadores, ao invés de pesquisarem a realidade social pautados exclusivamente em livros acadêmicos, lançam mão de suas cátedras universitárias para viverem no meio das pessoas que vinham de outros países e continentes.

Este método visava atingir e compreender o mais diretamente possível o mundo das pessoas, abandonando critérios a priori de interpretação. Não bastava ler os livros, era necessário verificar empiricamente e ao vivo: compreender os guetos, analisar a vida nos prostíbulos, vivenciar a vida de um operário seriam formas de entender sociologicamente a vida das pessoas, a fim de dar respostas às indagações do funcionamento da vida social como um todo.

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Como afirmara Robert Park, um dos principais colaboradores da Escola de Chicago: hoje, o mundo inteiro ou vive na cidade ou está a caminho da cidade; então, se estudarmos as cidades, poderemos compreender o que se passa no mundo. Os conflitos sociais, os problemas da delinquência, da segregação, da prostituição, da economia ou do trabalho tinham agora um método adequado de estudo e de interpretação. Era preciso viver no meio das pessoas para compreendê-las, donde surge a famosa expressão de que "as pessoas são fruto do meio no qual elas vivem". (BECKER, 1996, p. 182).

Para tal, Park (conforme relato de Howard Becker):

Defendeu a ideia de que o espaço físico espelhava o espaço social de modo que, se fosse possível medir a distância física entre as populações, seria possível saber algo sobre a distância social entre elas. É uma metáfora interessante, que levou ao desenvolvimento de uma área chamada ecologia, não no sentido que usamos hoje, de preservação do meio ambiente, mas a noção de ecologia na forma usada pela biologia vegetal daquela época, e que se referia à competição pelo espaço. Em outras palavras, os biólogos, que estudavam a biologia no mundo e não em laboratório, estavam muito interessados na concepção darwinista da maneira como diferentes tipos de animais e plantas ocupavam o território, o espaço físico. (BECKER, 1996, p. 182).

Diante disso, Park investigou por que determinados fatos sociais (como a delinquência e a prostituição) ocorriam em determinados espaços físicos da cidade, ou seja, em que bairros isso ocorria e por que ocorria, pois, conforme esta perspectiva, o indivíduo, uma vez inserido em determinado ambiente, perderia o seu livre-arbítrio e receberia de maneira conformista as imposições dos elementos socioambientais.

Esta análise feita por Park deu início a uma aplicação mais empírica da Sociologia, isto é, a partir de agora a Sociologia assumiria verdadeiramente o seu papel científico de investigação, a saber, o de estudar cientificamente os fatos sociais, ao adotar um novo viés científico: o de compreender o espaço urbano das cidades, pois os EUA, a partir deste momento histórico, personificam três características de uma sociedade verdadeiramente contemporânea: a industrialização, a urbanização e a democratização.

Outrossim, é importante destacar que o modo como esta Escola desenvolveu os seus trabalhos de pesquisa tinha também como escopo o controle social, pois os resultados de suas pesquisas eram usados para criar políticas públicas intervencionistas, que corrigissem ou evitassem distúrbios sociais.

Sendo assim, era preciso deter tudo aquilo que rompesse com os critérios do american way of life (estilo de vida americano). As autoridades competentes da cidade de Chicago deviam saber agir de modo proativo, para frear todos os modos possíveis de desorganização social.

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FIGURA 31 – NÃO HÁ PADRÃO DE VIDA MAIS ALTO DO QUE O AMERICANO

FONTE: Disponível em: <http://modovestir.blogspot.com.br/2009/07/american-way-of-lifeeletrodomesticos-e.html>. Acesso em: 15 jan. 2013.

DICAS

Sugestão de vídeo no YOUTUBE: Minha alma - O Rappa. Acesse o link: <http://www.youtube.com/watch?v=vF1Ad3hrdzY>.Sugestão de filme: Gran Torino.

Walt Kowalski (Clint Eastwood) é um inflexível veterano da Guerra da Coreia, que está agora aposentado. Para passar o tempo ele faz consertos em casa, bebe cerveja e vai mensalmente ao barbeiro (John Carroll Lynch). Sua vida é alterada quando passa a ter como vizinhos imigrantes hmong, vindos do Laos, os quais Walt despreza. Ressentido e desconfiando de todos, Walt apenas deseja passar o tempo que lhe resta de vida. Até que Thao (Bee Vang), seu tímido vizinho adolescente, é obrigado por uma gangue a roubar o carro de Walt, um Gran Torino retirado da linha de montagem pelo próprio. Walt consegue impedir o roubo, o que faz com que se torne uma espécie de herói local.

FONTE: Disponível em: <http://posterdecinema.wordpress.com/tag/reservoir-dogs/>. Acesso em: 13 jan. 2013.

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AUTOATIVIDADE

FIGURA 32 – RICOS E POBRES DIVIDIDOS POR UM MURO (PARAISÓPOLIS X MORUMBI)

FONTE: Disponível em: <http://www.fabiocampana.com.br/2008/06/desigualdade-entre-pobres-e-ricos-no-brasil-diminuiu/>. Acesso em: 15 jan. 2013.

Algo que ocorre com frequência nos centros urbanos é o fato de que as pessoas são rotuladas de acordo com os lugares onde elas vivem. Com base nesta ideia, elabore uma redação abordando o problema da discriminação social, fundada na divisão geográfica da riqueza e da pobreza em um espaço urbano.

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7 ESCOLA DE FRANKFURT E A REIFICAÇÃO DO SUJEITOCaro(a) acadêmico(a), a escola de pensamento que nos propomos a estudar

agora pode ser considerada a mais pragmática do século XX. A Escola de Frankfurt é uma das mais respeitadas pelos professores de Filosofia e Sociologia de todo o mundo. Ela se debruçou sobre as dificuldades mais complexas e delicadas da sociedade contemporânea, no afã de tentar compreendê-las e interpretá-las.

Os temas mais recorrentes desta escola de pensamento visam abordar os dilemas da sociedade atual, isto é, o problema da alienação, da reificação, do fetiche da mercadoria, do mundo do trabalho, da indústria cultural, da desrazão e da falta de esperança em um futuro positivo (aqui no sentido bem comteano mesmo).

Bom, para começar é preciso situar um pouco o contexto histórico que fez surgir esta Escola. Início do século XX: 1ª Guerra Mundial, imperialismo econômico, dominação da máquina sobre as pessoas, além de outros fatos, formam o pano de fundo da crise existencial do ser humano desta época.

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A ausência de parâmetros e de identificação do indivíduo consigo mesmo fez com que o seu sonho dourado de viver uma vida boa calcada na ciência desse com os burros n'água. O homem vislumbrado com a ideia de que todos são iguais perante a lei (igualdade jurídica) e de que cada um pode conquistar para si tudo aquilo que conseguir com o suor do seu rosto (liberdade econômica) perdeu-se na doce ilusão de uma utopia tola. A realidade mostrou-se totalmente oposta ao sonho científico. A razão tornou (como já previra Rousseau) o ser humano um sujeito mesquinho e ganancioso, cego pelo poder do dinheiro e dos objetos.

Como afirma Rossano Pecoraro, "o suicídio da Europa, a catástrofe da Segunda Guerra, o horror de Auschwitz, da Shoah, de Hiroshima e Nagasaki arrastam ao banco dos réus a razão ocidental e, por conseguinte, a própria ideia de uma racionalidade na história". (PECORARO, 2009, p. 51-52).

Esta escola é composta por inúmeros pensadores que se destacaram na história do pensamento do século XX. Na sua maioria, são professores alemães de origem judaica. Dentre eles temos Adorno, Horkheimer, Benjamin e Marcuse. Os três primeiros pensadores podem ser considerados os de maior destaque internacional, pela densidade de suas obras.

Adorno e Horkheimer produziram muitas obras juntos. A que mais se sobressai chama-se Dialética do Esclarecimento. Nesta obra, ambos se preocupam em demonstrar uma terrível verdade: o ser humano se reificou, se coisificou. Ao contrário da proposta iluminista de Kant, o mundo racional não melhorou a vida das pessoas no século XX.

Passados dois séculos da morte de Kant, apesar dos avanços científicos advindos da razão, a desigualdade social se agravou muito e o ser humano se afeiçoou demasiadamente com o mundo das coisas, esquecendo-se por completo de que por detrás de todo objeto há trabalho humano.

Adorno e Horkheimer explicam, no trecho que segue, o quanto o ser humano se julga racional e o quanto ele subjuga os outros seres em virtude disso:

A falta de razão não tem palavras. Eloquente é a posse, que estende seu domínio através de toda a história manifesta. A terra inteira dá testemunho da glória do homem. Na guerra e na paz, na arena e no matadouro, da morte lenta do elefante, que as hordas primitivas dos homens abatiam graças ao primeiro planejamento, até à exploração sistemática do mundo animal atualmente, as criaturas irracionais sempre tiveram que fazer a experiência da razão. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 229).

Vale destacar aqui que boa parte da inspiração intelectual desta escola de pensamento é marxiana. O pensamento marxiano teve profunda influência no pensamento e na compreensão de mundo para os frankfurtianos. Sendo assim, podemos afirmar que este trecho do livro Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Karl Marx, serviu de base para a elaboração de muitos textos de Adorno e Horkheimer, no que tange ao problema da alienação humana no mundo do trabalho:

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A apropriação do objeto aparece como alienação a tal ponto que quanto mais objetos o trabalhador produz, tanto menos pode possuir e tanto mais fica dominado pelo seu produto, o capital. Todas essas consequências decorrem do fato de o trabalhador ser relacionado com o produto de seu trabalho como com um objeto estranho. Pois está claro que, baseado nesta premissa, quanto mais o trabalhador se desgasta no trabalho, tanto mais poderoso se torna o mundo de objetos por ele criado em face dele mesmo, tanto mais pobre se torna a sua vida interior, e tanto menos ele se pertence a si próprio. [...] Quanto maior for sua atividade, portanto, tanto menos ele possuirá. O que está incorporado ao produto de seu trabalho não mais é dele mesmo. Quanto maior for o produto de seu trabalho, por conseguinte, tanto mais ele minguará. A alienação do trabalhador em seu produto não significa apenas que o trabalho dele se converte em objeto, assumindo uma existência externa, mas ainda que existe independentemente, fora dele mesmo e a ele estranho, e que com ele se defronta como uma força autônoma. A vida que ele deu ao objeto volta-se contra ele como uma força estranha e hostil (MARX, 2012).

FONTE: Disponível em: <www.ilaese.org.br/.../Curso-ILAESE-Alienação-e-Socialismo-Apostil...>. Acesso em: 15 jan. 2013.

Adorno e Horkheimer são pensadores que se propuseram a afirmar que o mundo que nos circunda é manipulador e reificador. Entretanto, devemos ressaltar que o único culpado de tudo isso é o próprio ser humano, que deixou de fruir a vida para tornar-se escravo das mercadorias, que segundo o texto de Marx, se manifestam como entidades que possuem vida própria, deslocadas da própria vida humana ou até mesmo como fantasmas que assombram o desejo humano de as possuir, pois são portadoras de uma força estranha e hostil.

Outro conceito abordado por estes mesmos pensadores foi o problema da Indústria cultural. A ideia central é a seguinte: a produção de qualquer objeto cultural tem um único escopo: a sua venda. A valorização dos objetos produzidos com algum caráter cultural em si mesmo desapareceu. O advento de uma nova onda de mercantilização fez com que tudo aquilo que é feito pelo ser humano perdesse a sua aura.

O conceito de aura foi criado por Walter Benjamin. Segundo ele, a aura é aquilo que é feito apenas uma única vez na produção de um objeto. Contudo, isto deixou de existir, pois com a industrialização em massa tudo é feito com o intuito de ser reproduzido. O capitalismo extrapolou o espaço das fábricas e foi residir também no meio da cultura.

As formas modernas de entretenimento são um exemplo disso (TV, cinema e internet). Elas tornaram atualmente possível o acesso público a várias obras, a vários concertos de música clássica ou de grandes produções de histórias épicas etc., mas isto fez com que a beleza da exclusividade da obra de arte se perdesse e que a reprodutibilidade técnica entrasse no seu lugar.

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UNIDADE 2 | PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

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FIGURA 33 – FOTOGRAFIA DE MARYLIN MONROE, SEGUNDO O ARTISTA PLÁSTICO ANDY WARHOL

FONTE: Disponível em: <http://arteehistoriaepci.blogspot.com.br/2011/07/pop-art-de-andy-warhol-exposta-partir.html>. Acesso em: 15 jan. 2013.

FIGURA 34 – O ANGELUS NOVUS DE PAUL KLEE OBSERVA AS RUÍNAS

FONTE: Disponível em: <http://caminhos-historia.blogspot.com.br/2011/05/historia-contra-barbarie.html>. Acesso em: 15 jan. 2013.

Walter Benjamin criticaria severamente (se fossem contemporâneos) a obra pop de Andy Warhol, por reproduzir o rosto de Marylin Monroe de modo puramente comercial. Este trabalho seria visto como culturalmente industrializado e artisticamente vazio. Já na obra de Paul Klee, Benjamin aborda o problema da finitude e do caos. O anjo vê, por trás de seus ombros, as ruínas de um mundo coisificado e ausente de criatividade, um mundo apocalíptico marcado pela razão que vence e oprime o próprio homem, pois ele se sujeitou a ela.

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TÓPICO 1 | DEFINIÇÕES E HISTÓRIA DA SOCIOLOGIA

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Como reitera Pecoraro:

Nas teses sobre a Filosofia da História (1940), Benjamin denuncia as pretensões, a falsidade e os engodos de todas as teorias da história cujos fundamentos residem tanto nas noções de progresso, finalidade etc., como na ideia de um tempo homogêneo e linear. O curso das ações e dos fatos humanos, com efeito, não é um processo racional e orientado, mas o caótico desenrolar-se de uma violenta e opressora apologia do presente edificada pelos “vencedores”. O olhar do “anjo da história”, que o filósofo alemão comenta em uma de suas teses, a partir de um quadro de Paul Klee, revela o verdadeiro rosto da história. Virado para o passado, as asas abertas e os olhos escancarados, ele vê “uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína” lá onde o homem vê uma cadeia racional de acontecimentos. O anjo gostaria de deter-se para socorrer, juntar os cacos, “acordar os mortos”. Uma tempestade, porém, o atinge e o impele com força para longe daí, em direção ao futuro, enquanto o amontoado de ruínas aumenta. Essa tempestade, concluiu Benjamin, “é o que chamamos de progresso”. (PECORARO, 2009, p. 50-51).

Diante disso, o progresso apontado por Comte é refutado por Benjamin de modo veemente, pois o futuro não é igual como era antigamente, ao contrário, ele parece ser amargamente funesto.

Neste sentido, o ser humano alienou a sua vida de tal maneira que até o final de semana é tão igual quanto a semana. A própria vida comum (aos sábados e domingos) se aprisiona numa rotina semelhante à rotina dos dias da semana. A vida se repete, se reproduz sempre do mesmo modo. O indivíduo, preso ao trabalho, não consegue imaginar outra vida possível, pois a vida deixou de ser interessante para se tornar massificante, alienante, repetitiva. O espaço da rotina do trabalho se expandiu para todas as áreas da vida. Até mesmo o lazer se tornou um meio de ludibriar o indivíduo, pois já que no mundo do trabalho ele não se reconhece naquilo que faz, no mundo do lazer ele apenas almeja a mesma diversão/entretenimento: TV, cinema ou internet.

Diante disso, torna-se interessante pensarmos na ideia proposta pela música Caminho Pisado, da banda nacional Paralamas do Sucesso, que trata do problema da alienação da pessoa no mundo do trabalho, mas que não se circunscreve a ela.

O Caminho Pisado(Os Paralamas do Sucesso)

AUTOATIVIDADE

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Da cama p’ro banho, do banho p’rá sala. O sono persiste, o sol já não tarda. A vida insiste em servir um velho ritualQue sempre serve a tantos outros. O mesmo pão comido aos poucosSe senta e abre o jornal. Tudo parece normalUm dia a menos, um crime a mais. No fundo, no fundo, no fundo tanto faz. Já é hora de vestir o velho paletó surradoe caminhar sobre o caminho pisado queconduz rumo à batalha que inicia a cada diaConseguir um lugar p’rá sentar e sonhar na lotaçãoE é tudo igual, igual, igual...No fim dos dias úteis há os dias inúteis, que não bastam pra lembrar ou pra esquecer de quem se é.O ar pesado nesse bairro pesado emplena barra pesadaA mão pesada vem oferecer e conta os trocados contando vantagem.E toma uma bola, começa a viagem e enquanto não chegar a velha horaQue inicia cada diaEm várias partes da cidade, porLazer ou rebeldiaA mão pesada se abriráOferecendo a garantia barata deQue tudo vai mudar.

FONTE: PARALAMAS DO SUCESSO. O CAMINHO PISADO. IN: CD 9 LUAS, EMI, 1996 (1 CD (CA. 37’51”). FAIXA 6 (3’27”).

Diante da ideia central da letra da música, responda:

a) Relacione a ideia de rotina ligada ao mundo do trabalho com a primeira estrofe da música.______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

b) O final de semana apresentado na letra da música aparece como algo bom ou ruim? Justifique sua resposta.______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

c) Diante da monotonia do dia a dia, as pessoas tentam esquecer os problemas que enfrentam. Qual a maneira apresentada pela letra da música para ‘anestesiar’ esta monotonia? O que você pensa a respeito disso?______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

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8 A SOCIOLOGIA NA PÓS-MODERNIDADECaro(a) acadêmico(a), eis o problema mais intrigante da sociologia atual:

definir com exatidão o que é moderno ou pós-moderno. Sendo assim, para que você não fique perdido no alto-mar do conhecimento sociológico, gostaríamos de sucintamente definir este conceito da sociologia, a saber: o que é pós-modernidade?

Segundo Jean-François Lyotard, o fim da história começa com o início de um tempo novo, onde os grandes heróis ou grandes fins já não existem mais. A pós-modernidade tem por fim último afirmar que tudo aquilo que ambicionava ser universal já não tem mais a mesma importância. Segundo ele, vivemos em uma "nebulosa de elementos, um processo de fragmentação, regionalização (dos saberes e dos fins). [Vivemos uma nova] afirmação do plural e do multíplice; o desaparecimento do pensamento único e da perspectiva teleológica nas reflexões sobre a história humana”. (apud PECORARO, 2009, p. 52-53).

Enfim, é o desfecho do projeto kantiano e o sepultamento de uma visão positivista absoluta.

Outro pensador importante da sociologia e da história, Francis Fukuyama, define que "a queda do muro de Berlim e a dissolução dos regimes comunistas nos países do Leste Europeu demonstram que não é mais possível pensar em outras instituições que não sejam as da sociedade atual, liberal-democrática, industrial e capitalista". (apud PECORARO, 2009, p. 54-55).

Contudo, Fukuyama aponta estas três características como aspectos fundamentais do modelo estadunidense de sociedade. Modelo este que será repetido e imitado no mundo. Contudo, todos nós já sabemos que este padrão não é mais o mesmo. Após o 11/09 e a crise econômica pós-guerra terrorista (2008), os EUA já não são mais um país tão forte como o era antigamente nas décadas de 70, 80 e 90 do século XX. O american dream (sonho americano) não é o mesmo, o que, aliás, corrobora com a ideia de Lyotard, pois o arquétipo americano não serve mais como referencial de sucesso para todas as nações do mundo.

Outrossim, vivenciamos atualmente um certo deslocamento do centro econômico mundial, que até bem pouco tempo atrás estava fixado no Hemisfério Norte do planeta. A sigla BRICA tem muito a dizer sobre isso: Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul são considerados os países mais emergentes do ponto de vista econômico no mundo atual. Com isso queremos demonstrar que não existe mais um universalismo que deve ser copiado e colado, mas que, de fato, há uma descentralização do poder econômico, ou, nas palavras de Lyotard, há uma fragmentação, uma ruptura com os padrões universais, que agora são mais locais e regionais.

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A Sociologia atualmente se preocupa muito mais, por exemplo, com situações do cotidiano, com hermenêuticas culturais, com comportamentos e papéis sociais que assumimos em nosso mundo, do que com modos globalizantes de entendimento da sociedade. A antropologia cada vez mais vem ganhando espaço no mundo acadêmico e empresarial. A ideia da observação participante é tão difundida que até mesmo um reality-show foi criado nos EUA e na Inglaterra para exemplificar a ideia: Undercover Boss.

O programa apresenta o seguinte conceito: os chefes das grandes corporações devem abandonar os escritórios e suas escrivaninhas para trabalhar, de modo camuflado, no meio de seus funcionários. Ao fazerem isso, eles passam a sentir e a vivenciar os problemas que cada trabalhador sofre ao desempenhar as tarefas mais simples ou até mesmo as mais complexas dentro da empresa. Ele precisa literalmente colocar a mão na massa e receber ordens de seus próprios empregados. Esse abandono do escritório, por parte do chefe, para viver no meio dos trabalhadores, inspira-se claramente na ideia da observação participante, que é um dos métodos antropológicos de conhecimento da vida de outros povos, vistos como não ocidentais. É a incorporação de métodos não puramente científicos para assimilar e compreender o mundo contemporâneo, ou, em outras palavras, nosso mundo pós-moderno.

Esta visão pode ser considerada pós-moderna, pois não existem mais critérios exclusivos de entendimento do que seja a realidade. Seguir uma única resposta é muito pouco. O universo cultural não pode se restringir (e este é o aspecto mais interessante da pós-modernidade) a um anseio de categoria universal, pois aquilo que é realmente universal (e esta é a grande verdade do nosso tempo) é a multiplicidade, é a realidade vista em suas múltiplas facetas. Aceitar a pluralidade e compreender que esta é a nova chave de leitura e de interpretação do mundo é o caminho certo para entendermos o nosso tempo, tão confuso, difuso e complexo.

DICAS

Sugestão: Seriado Undercover Boss.Cartaz da série Undercover Boss.

Procure saber um pouco mais sobre o reality-show Undercover Boss e a busca por uma visão mais holística do mundo do trabalho.

FONTE: Disponível em: <http://www.imdb.com/title/tt1442553/>. Acesso em: 15 jan. 2013.

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RESUMO DO TÓPICO 1Neste tópico vimos:

• Uma abordagem sobre as principais revoluções sociais (Revolução Industrial e Revolução Francesa) que ocasionaram o surgimento da Sociologia como ciência.

• De que maneira, a Sociologia “aparece no mundo” e torna-se um método de investigação e análise dos acontecimentos sociais e o papel decisivo do Iluminismo neste processo de mudança de pensamento e ação.

• Vimos (brevemente) uma compreensão mais contemporânea da análise sociológica das Escolas de Chicago e Frankfurt, consideradas as mais importantes no entendimento das realidades sociais do nosso tempo.

• O papel atual da sociologia aplicada ao mundo dos negócios, pois atualmente há uma série de “reality show” que é exibida nos EUA, que aborda, em seus episódios, uma das técnicas da antropologia moderna (ramo de estudos da Sociologia): a observação participante.

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AUTOATIVIDADE

Qual é o autor que mais chamou a sua atenção: Fukuyama ou Lyotard? Explique o que cada um tenta demonstrar em suas análises?

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TÓPICO 2

IMPORTANTES SOCIÓLOGOS E

ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DO SEU

PENSAMENTO

UNIDADE 2

1 INTRODUÇÃOCaro(a) acadêmico(a), no primeiro tópico desta unidade o nosso principal

propósito foi o de abordar do modo mais amplo possível as principais teorias sociológicas do século XVIII ao século XX. Aliás, é importante relembrar que o pensamento sociológico surge no mundo especificamente após as grandes revoluções mundiais (Industrial e Francesa). Tais revoluções modificaram tão fortemente a vida das pessoas na Terra que foi necessário o surgimento de uma nova ciência para compreender e interpretar este novo modus vivendi (modo de vida), marcado pelo capitalismo, pela máquina e pelos ideais utópicos de liberdade, fraternidade e igualdade.

Para tal intento, muitos estudiosos assumiram o papel de analisar a sociedade. Por este viés queremos estudar, neste segundo tópico, os principais pensadores da Sociologia, denominados atualmente como os Clássicos da Sociologia, além de outros pensadores mais contemporâneos, como Norbert Elias, Pierre Bourdieu, Anthony Giddens, Michel Foucault e Zygmunt Bauman. Contudo, os mais importantes pensadores da Sociologia, após Augusto Comte, foram Max Weber, Émile Durkheim e Karl Marx. Cada um destes pensadores possui um modo específico de responder às inquietações que eclodiram no ambiente social dos séculos XIX e XX, principalmente. Os modos de análise de cada um deles não são uníssonos, não são nem mesmo semelhantes, pois a base de leitura não é a mesma.

Sendo assim, no nosso ponto de vista, o sociólogo mais próximo do primeiro pensador da Sociologia (Augusto Comte) é Émile Durkheim. Seu olhar sobre a realidade aproxima-se muito do ideal utópico de um mundo extraordinariamente coeso e harmônico, no qual cada um assume seu papel e, enquanto tal, deve fazer de tudo para se encaixar em um todo completo e perfeito, como peça indispensável do grande quebra-cabeça do mundo social.

Donde surge o conceito de solidariedade orgânica, por exemplo, como veremos logo mais adiante. Por outro lado, o pensador da classe operária, da luta de classes e do materialismo dialético se apresenta como o mais incisivo teórico da sociedade. Karl Marx, em 2005, foi considerado o maior filósofo de todos os tempos, por ter criticado veementemente o sistema capitalista e o seu modo usurpador e explorador de produção.

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UNIDADE 2 | PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

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Por fim, Max Weber é considerado o sociólogo mais compreensivo dos três, pois ao tentar analisar, por exemplo, o sucesso econômico dos EUA, Weber justifica que tal sucesso é fruto de uma ética oblativa, de uma ética severa com relação ao trabalho, algo que só seria possível graças à imigração de protestantes e puritanos que alicerçaram a construção da grande nação americana na vida religiosa e no famoso princípio do no pain, no gain (sem dor, sem ganho).

Caro(a) acadêmico(a), o nosso convite está feito. Venha junto conosco conhecer o vasto e, muitas vezes, contraditório mundo dos pensadores da Sociologia. Neste caso, o velho ditado de que cada cabeça tem uma sentença nos serve muito bem como guia de interpretação das teorias sociológicas destes pensadores modernos e contemporâneos.

2 KARL MARXPrezado(a) acadêmico(a), gostaríamos, de antemão, de iniciar a

apresentação das teorias marxianas sobre a sociedade, fazendo uma breve recapitulação. Como já vimos, Marx serviu de base para a Escola de Frankfurt. Quando Adorno e Horkheimer, por exemplo, escrevem sobre o novo encantamento da contemporaneidade (a mercadoria) em seu livro Dialética do Esclarecimento, vê-se claro o pensamento de Karl Marx como suporte:

A indústria cultural não cessa de lograr seus consumidores quanto àquilo que está continuamente a lhes prometer. A promissória sobre o prazer emitido pelo enredo e pela encenação é prorrogada indefinidamente: maldosamente, a promessa a que afinal se reduz o espetáculo significa que jamais chegaremos à coisa mesma, que o convidado deve se contentar com a leitura do cardápio. [...] Cada espetáculo da indústria cultural vem mais uma vez aplicar e demonstrar de maneira inequívoca a renúncia permanente que a civilização impõe às pessoas. Oferecer-lhes algo e ao mesmo tempo privá-las disso é a mesma coisa. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 130-132).

Karl Marx, como foi possível verificar, é realmente o pensador mais influente do século XX. Suas teorias podem ser condensadas nos seguintes pontos principais, todas ligadas à economia e à filosofia política: os conceitos de mais-valia, alienação, reificação (conceito já trabalhado na Escola de Frankfurt), luta de classes e socialismo.

O conceito de mais-valia, por exemplo, explica o modo como o sistema capitalista de produção expropria do trabalhador a sua força de trabalho para transformá-la em manufatura. O processo de produção faz com que, durante a jornada de trabalho (aqui não se inclui as horas-extras, pois mesmo neste caso há exploração), o trabalhador, sem se dar conta, produz para além das metas de produção.

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TÓPICO 2 | IMPORTANTES SOCIÓLOGOS E ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DO SEU PENSAMENTO

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O verdadeiro lucro do patrão não está no valor final do produto, mas na intensificação do processo de produção, o que é denominado por Marx como mais-valia relativa. O segredo do capitalismo não repousa na venda dos produtos, no estoque ou relação final entre a compra de matéria-prima e a venda de manufaturas. Isso seria, segundo Marx (1984), um ledo engano.

Vamos simplificar com o seguinte exemplo: um trabalhador, em média,

trabalha oito horas diárias em uma fábrica. Durante esta jornada ele precisa produzir X objetos (sapatos, suponhamos aqui), mas, porventura, digamos que ele, ao invés de levar oito horas para produzir tal meta, ele o faça em seis horas. Nas duas horas de trabalho que lhe sobram, ele não está dispensado para ir para casa assistir TV ou ler um bom livro. Ele deve permanecer na empresa. Ele deve continuar a produzir. O segredo do lucro está aí. O mais valor ou a mais-valia repousa sobre o excedente de produção que o trabalhador, que desconhece qual é a verdadeira meta, deve realizar. Neste caso, o número X de objetos a serem produzidos passa a se tornar X+1. (SELL, 2009).

Podemos compreender um pouco melhor tal teoria se utilizarmos o

seguinte esquema de compreensão.

QUADRO 1 – DEFINIÇÕES DAS SIGLAS DE MAIS-VALIA E DE TRABALHO

MVA

Mais-Valia Absoluta: toda a jornada de trabalho, envolvendo as oito horas diárias, proporcionando ao trabalhador uma remuneração mínima para que possa retornar no dia seguinte para produzir ainda mais.

MVR Mais-Valia Relativa: intensificação da produção, gerando mais mais-valia e aumentando significativamente maior produção.

TM Trabalho Manual: o chamado "chão de fábrica": os trabalhadores braçais que executam as tarefas mais pesadas.

TITrabalho Intelectual: os pensadores do trabalho. As pessoas que atuam nos escritórios e que, numa denominação de Taylor, representam os capatazes dos verdadeiros chefes das empresas.

M+D+M=D'

Nesta fórmula paira todo o segredo do capitalismo contemporâneo. A Mercadoria se transforma em Dinheiro, o que, por sua vez, gera a produção de mais Mercadorias, que resultam em mais Dinheiro (D'). E tudo isso acontece às expensas do trabalhador, que nada percebe.

VT e VU

Valor de Troca: a mercadoria só tem valor para o patrão por causa da fórmula supracitada. O patrão não produz sapatos porque ama sapatos, mas porque sabe que eles se converterão em dinheiro. Valor de Uso: todo consumidor, de modo geral, compra um sapato, por exemplo, por causa do valor de uso e de consumo pessoal.

FONTE: Marx (1988)

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UNIDADE 2 | PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

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DICAS

Sugestão de vídeo no YOUTUBE: “O Samba da Mais Valia”. Acesse o link indicado a seguir: <http://www.youtube.com/watch?v=l5Il0h5scIY>.

Estas siglas, resumidamente, exemplificam o pensamento de Karl Marx (1988) sobre o mundo do trabalho, mas isso não se encerra aqui. A última fórmula apresentada demonstra um ponto muito importante para Marx. O trabalhador, no trabalho capitalista, sempre está alienado. Mas o que é a alienação? Nas próprias palavras de Marx temos a seguinte resposta: Isso ocorre quando o homem não se reconhece mais naquilo que ele mesmo produz.

A maior alienação, do ponto de vista de Marx, ocorre porque o indivíduo não se vê mais naquilo que ele mesmo ajudou a fazer. Existe, no mundo contemporâneo, uma ausência de reconhecimento e de identificação entre o indivíduo e os objetos. Há uma separação absurdamente profunda entre os dois mundos. Aliás, vivemos em um mundo marcado pelos objetos e não pelo ser humano, o que se revela como um profundo paradoxo.

De um lado, nada que há no mundo possui vida própria. Em todo objeto há trabalho humano, há a presença de pessoas, mas ao vender sua força de trabalho para um terceiro (o patrão, no caso), o indivíduo-trabalhador se sujeita a receber um salário, uma remuneração e, com isso, este trabalhador aceita o fato de que ele não é dono da máquina de produção, além do fato de aceitar que ele jamais dominará todo o processo de produção.

FIGURA 35 – MAIS-VALIA E ALIENAÇÃO

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TÓPICO 2 | IMPORTANTES SOCIÓLOGOS E ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DO SEU PENSAMENTO

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FONTE: Disponível em: <http://www.lamentavell.com.br/2010/11/mais-valia.html>. Acesso em: 15 jan. 2013.

Sendo assim, a pessoa se aliena ao submeter sua força de trabalho de oito horas diárias a um salário infinitamente inferior ao verdadeiro valor de seu papel social. Esta alienação é tão forte e tão subliminar que ela não se dá conta disso, pois os AIEs (Aparelhos Ideológicos do Estado) a anestesiaram e a reduziram a uma marionete nas mãos do capitalismo.

Ela incorporou a sua condição de alienada a tal ponto que ideologicamente ela não encontra outra alternativa, a não ser trabalhar e obedecer às ordens que lhe são impostas cotidianamente no ambiente industrial e social.

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UNIDADE 2 | PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

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FIGURA 36 – O TRABALHADOR COMO MARIONETE DA BURGUESIA

FONTE: Disponível em: <http://historiaeculturandc.blogspot.com.br/2011/09/ideologia-e-alienacao-em-karl-marx.html>. Acesso em: 15 jan. 2013.

Trocando em miúdos: a TV, a Escola, a Igreja e os meios de comunicação em geral, isto é, os AIEs, transmitem sem cessar a ideia falsa de que o mundo sempre foi assim, de que o sucesso só pode ser alcançado por pessoas belas e ricas e que o trabalhador enquanto tal deve se contentar com as migalhas que lhe são dadas.

Neste mesmo sentido é preciso compreender que o Estado, quando apresenta as inúmeras propagandas televisivas sobre a construção de hospitais, creches ou escolas, tenta induzir o espectador à falácia de que está atuando em prol de todos os cidadãos brasileiros. Mas em nenhum momento fala-se sobre o valor acumulado dos impostos ou sobre o verdadeiro destino que lhes é dado. O que não passa de uma boa ideologia marqueteira.

Outrossim, surge a pergunta: mas o que é ideologia, afinal de contas? Ideologia é uma maneira distorcida de mostrar ou esconder a realidade dos fatos. Escamotear, camuflar, esconder são verbos que possuem o mesmo significado e se aplicam bem ao contexto da noção de ideologia. (MARX, 1984). Ideologia e alienação formam um par indissociável dentro do contexto capitalista de economia. Dito isso, gostaríamos ainda de destacar alguns pontos essenciais do pensamento de Karl Marx, que, não obstante, é muito vasto e complexo. Contudo, ousamos fazê-lo, tendo em vista que o nosso maior intento é despertar em você, estudante, o interesse pelo pensador e não induzi-lo à compreensão total do mesmo, o que, no fundo, só pode ser possível em partes e após vários anos de estudo.

Nesse sentido, cabe-nos aqui citar o próprio Marx para abordar o problema da luta de classes:

A história de toda sociedade até aqui é a história de luta de classes. [Homem] livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, burgueses de corporação e oficial, em suma, opressores e oprimidos, estiveram em constante oposição uns aos outros,

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travaram uma luta ininterrupta, ora oculta, ora aberta, uma luta que de cada vez acabou por uma reconfiguração revolucionária de toda a sociedade ou pelo declínio comum das classes em luta. (MARX e ENGELS, 1997).

Por este viés, Marx afirma que é preciso superar toda esta divisão social por meio da revolução do proletariado, dando fim aos três grandes pilares do mundo capitalista: a propriedade privada, o Estado (que, para Marx, sempre estaria do lado da burguesia, devido à clara defesa de interesses comuns) e a própria luta de classes.

O verdadeiro socialismo seria uma fase de transição entre o capitalismo selvagem e o comunismo humanitário. Não haveria mais exploração, coisificação ou mais-valia, pois agora os trabalhadores do mundo todo, ao se unirem, tomariam as rédeas da economia, emancipando-se da expropriação e da dominação da classe burguesa. Com isso, as relações sociais se equalizariam. Seria o fim da ganância pelo lucro, o fim das desigualdades sociais, o crepúsculo da luta de classes e o ponto final de uma história onde patrões e empregados se colocavam em lados opostos.

Seria o começo de um novo tempo, o que, infelizmente - a História mostra -, não se concretizou. E por que não? Talvez porque o ser humano, como afirma Thomas Hobbes, é, por natureza, ganancioso (o homem é o lobo do homem). Isto é, o ser humano prioriza muito mais os seus interesses pessoais do que os coletivos e, por esta via, muitos governantes ou representantes do povo lutaram sempre por aquilo que é seu, esquecendo-se daquilo que pertence à coletividade (basta ver a antiga URSS e seus regimes totalitaristas, mas isso é assunto para outro caderno).

MÚSICA: (Homem Primata - Titãs).

Desde os primórdiosAté hoje em dia

O homem ainda fazO que o macaco fazia

Eu não trabalhavaEu não sabia

Que o homem criavaE também destruía...

Homem PrimataCapitalismo Selvagem

Oh! Oh! Oh!...(2x)Eu aprendi

A vida é um jogo

AUTOATIVIDADE

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UNIDADE 2 | PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

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Cada um por siE Deus contra todos

Você vai morrerE não vai pro céuÉ bom aprenderA vida é cruel...

Homem PrimataCapitalismo Selvagem

Oh! Oh! Oh!...(2x)Eu me perdi

Na selva de pedraEu me perdi

Eu me perdi...“I’m a cave man

A young manI fight with my hands

(With my hands)I am a jungle man

A monkey manConcrete jungle!Concrete jungle!

Slave driver, the table is turn;Catch a fire, so you can get burn.

Slave driver, the table is turn;Catch a fire: so you can get burn”.

(TITÃS, Homem Primata. Faixa 18 (3’15”), in cd: TITÃS ACÚSTICO MTV - Gravadora WEA, 1997)

FONTE: Disponível em: < http://homemprimata.titas.letrasdemusicas.com.br/>. Acesso em: 15 jan. 2012.

Diante da letra da música e do pensamento de Karl Marx, estabeleça quais seriam os pontos de ligação mais marcantes entre os dois.________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

3 ÉMILE DURKHEIMÉmile Durkheim (2007) foi considerado o pensador mais ligado ao

fundador da Sociologia, Augusto Comte (como já fora dito na introdução deste tópico). Émile Durkheim faz uma análise social partindo do pressuposto de que todos nós devemos assumir os nossos postos de atividade, na intenção de manter a sociedade coesa e harmônica. Dito de outro modo: se cada um de nós ficar e assumir plenamente o seu quadrado, a sociedade sempre será perfeita.

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TÓPICO 2 | IMPORTANTES SOCIÓLOGOS E ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DO SEU PENSAMENTO

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Entretanto, lembramos aqui que Durkheim é um visionário e, como tal, acredita em uma sociedade ideal, na qual - pasme, caro(a) acadêmico(a) - todos os cidadãos ficarão livres de aborrecimentos, se fizerem aquilo que lhes for ordenado.

Sendo assim, para este pensador, a sociedade era formada por um conjunto de forças morais, que foram se justapondo com o decorrer dos tempos. Estas regras teriam uma força muito poderosa sobre a vida dos indivíduos, educando-os e orientando-os em suas ações particulares. Não obstante, estas regras teriam a finalidade, em última análise, de orientar a vida social.

O nome que Durkheim dá a este conjunto de regras recebe o nome de fatos sociais. Esta expressão possui um significado muito pontual. Os fatos sociais são, ao mesmo tempo, exteriores, coercitivos e gerais. Por esta perspectiva, todas as pessoas devem se submeter a eles e isto acontece primeiramente por meio dos processos educativos que recebemos no berço familiar e no ambiente público social. São gerais, pois todos nós nos debelamos a eles. Não há nenhum cidadão que não tenha sido contido por regras gerais de postura ou comportamento.

Estes processos são profundamente difundidos em todos os ambientes nos quais estamos inseridos. São coercitivos, mas não são necessariamente violentos. São formas de padronização de comportamentos e atitudes. São formas de enquadramento, de amoldamento das ações humanas. Aqui vale a pena ressaltar uma ideia de Durkheim: todos nós devemos nos libertar de toda espécie de anomia. A anomia ou caos, segundo este pensador, ocorre quando não temos mais regras.

O nomos (que quer dizer norma) nos direciona, nos orienta nas nossas ações particulares, e estas ações pessoais nos levam a um fim coletivo: manter o mundo social organizado e estruturado dentro de um método: a observância dos fatos sociais. Assim, as organizações ou instituições sociais podem medir, até mesmo cientificamente, o quanto a sociedade está no caminho certo ou não. Por fim, para Durkheim, os fatos sociais são exteriores, isto é, tudo aquilo que sabemos ou aprendemos nos veio de fora e, deste modo, a educação estabelece um caráter impositivo e não consultivo sobre nossas vidas. O nomos (que a educação familiar ou institucional teria o papel de ensinar) seria, então, o grande edifício que o ser humano construiu contra as forças malignas do caos. Como ele mesmo afirma neste trecho do livro Educação e Sociologia:

Mas, de fato, cada sociedade considerada em um momento determinado do seu desenvolvimento tem um sistema de educação que se impõe aos indivíduos como uma força irresistível. É inútil pensarmos que podemos criar nossos filhos como queremos. Há costumes com os quais temos que nos conformar; se os infringirmos, eles vingam-se nos nossos filhos. Estes, uma vez adultos, não se encontrarão em condições de viver no meio de seus contemporâneos, com os quais não estão em harmonia. (DURKHEIM, 2007, p. 47)

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DICAS

Sugestão de filme: Laranja Mecânica (A Clockwork Orange, 1971).

No futuro, o violento Alex (Malcolm McDowell), líder de uma gangue de delinquentes que matam, roubam e estupram, cai nas mãos da polícia. Preso, ele recebe a opção de participar em um programa que pode reduzir o seu tempo na cadeia. Alex vira cobaia de experimentos destinados a refrear os impulsos destrutivos do ser humano, mas acaba se tornando impotente para lidar com a violência que o cerca.

FONTE: Disponível em: <http://www.adorocinema.com/filmes/filme-260/>. Acesso em: 15 jan. 2013.

Contudo, há em Durkheim uma ideia realmente interessante no que se refere ao mundo do trabalho. Ele afirmava que no mundo medievo as pessoas estavam destinadas a desenvolver sempre as mesmas atividades laborais. Não existia nenhuma novidade no desempenho das profissões, pois, grosso modo, havia quatro ou cinco profissões diferentes e todas elas estavam vinculadas ao trabalho braçal e/ou de campo.

Ele denominou que nesta fase da História já havia uma solidariedade entre os trabalhadores, mas era uma solidariedade mecânica. Entretanto, com o advento da Revolução Industrial e da urbanização, o trabalho foi se dividindo e subdividindo em vários postos de atividade laboral, ou seja, em várias profissões. O desenvolvimento destas profissões fez aparecer um novo estilo de vida e de interdependência profissional. Esta divisão profissional não seria, como Marx aponta, algo negativo, porém, ao contrário, seria algo realmente profícuo e benéfico para a sociedade, pois, para Durkheim, surgiria agora um novo tipo de coesão por meio da solidariedade orgânica, onde todos os trabalhadores criariam entre si uma unidade orgânica, o que nos faz lembrar claramente o pensamento de Comte sobre a ideia de que a sociedade deve se organizar tendo por base a ordem e, como fim, o progresso. Aqui, aparece o conceito organicista/funcionalista de sociedade. Para Durkheim, a sociedade deveria funcionar assim como um corpo humano. Cada parte só faz sentido dentro do contexto do todo. Um órgão só pode funcionar dentro do conjunto do corpo, mas fora dele o órgão não tem utilidade. (DURKHEIM, 1973).

É neste sentido que o papel da escola terá uma importância ímpar no pensamento de Durkheim. As crianças recebem, por meio do sistema educacional, uma compreensão de que não há outro caminho para o sucesso pessoal e social que não passe pelo banco escolar. A escola deve socializar determinados princípios que extrapolem o caráter conteudista das disciplinas como Matemática, Língua Portuguesa etc. Seu papel é o de incutir nas crianças o respeito pelas autoridades

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TÓPICO 2 | IMPORTANTES SOCIÓLOGOS E ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DO SEU PENSAMENTO

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nacionais, pelo civismo, pela religião e pelos valores morais. A intencionalidade durkheimiana é criar nas pessoas uma certa mansidão diante do sistema social.

Dito de outro modo, seu propósito era o de criar em cada cidadão uma certa aceitação da vida como ela é, a fim de evitar conflitos e represálias entre os vários segmentos sociais. Vejamos um exemplo concreto: a educação teria como escopo introjetar nas crianças o bom comportamento. Este comportamento faria com que a delinquência e a marginalidade fossem freadas ou reduzidas. O que, no fundo, é bem mais complexo do que isso.

Durkheim não pondera em sua análise sociológica que a escola é reflexo do seu entorno social e que ela, por si só, não pode dar conta do recado. Os conflitos sociais não podem ser redimidos somente pela educação, mas pela mudança de pensamento e de atitude de toda a sociedade, pois, para que haja uma real redução da criminalidade é preciso reduzir as desigualdades sociais e aumentar ou, ao menos, equiparar as oportunidades de sucesso na vida.

DICAS

Sugestão de filme: O PREÇO DO AMANHÃ (In Time, 2011)

O tempo se tornou a maior moeda de todas. Os cientistas conseguiram descobrir uma forma de destruir o gene do envelhecimento. Então, quando uma pessoa chega aos 25 anos, para de envelhecer, mas possui apenas mais um ano de vida, a não ser que tenha dinheiro para pagar pelo tempo extra. Na busca por poder e tempo de vida, um homem (Timberlake) é acusado injustamente de homicídio e se vê obrigado a sequestrar uma bela jovem (Amanda Seyfried) para conseguir ganhar mais tempo e provar sua inocência.

FONTE: Disponível em: <http://www.cineclick.com.br/filmes/ficha/nomefilme/o-preco-do-amanha/id/17711>. Acesso em: 15 jan. 2013.

Em suma, o pensamento de Durkheim pode ser comparado, em nosso ponto de vista, como a um conto de fadas, pois sua perspectiva parte do princípio de que todas as pessoas são boas por natureza e por esta razão deveriam lutar por um mundo social melhor (o que já fora dito no final do ponto sobre Marx). Aliás, é curioso verificar que tanto Marx quanto Durkheim iniciam suas abordagens sociais falando sobre problemas similares e concluem suas análises chegando ao mesmo denominador: a sociedade só pode mudar ou se aperfeiçoar se todas as pessoas lutarem pelos mesmos ideais. A utopia de Marx e de Durkheim é a mesma, mas os caminhos trilhados pelos autores são bem antagônicos.

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UNIDADE 2 | PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

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Para justificar esta ideia fairy tale (conto de fadas) do pensamento de Durkheim, concluímos com um trecho publicado no artigo Émile Durkheim e Gabriel Tarde, aspectos teóricos de um debate histórico (1893-1904), de Márcia Consolim, no qual Tarde assim classifica seu opositor:

“O Sr. Durkheim, um hesitante excessivo, pensador circunspecto, aplicado, tenaz, penetrante não por brechas nem balanços bruscos, mas pela união amorosa e sucessiva com seu objeto, com facilidade imagina externamente o desenvolvimento fecundo e pacífico que sente em si mesmo”. (TARDE, 1893, apud CONSOLIM, 2010, p. 45). (grifos nossos).

Ou ainda, numa versão mais irônica, dois anos depois:

“O Sr. Durkheim, sonhador tenaz e tranquilamente excessivo, lógico imperturbável, mais profundo do que justo, capcioso ao ponto de abusar e de demonstrar que suas construções a priori são verdades de observação, com facilidade imagina externamente a continuidade de desenvolvimento lógico e de desenvolvimento pacífico que ele sente em si mesmo”. (CONSOLIM, 2010, p. 45). (grifos nossos).

1 Com base na leitura do texto sobre Durkheim, tente apontar quais seriam as maiores falhas do pensamento de Émile Durkheim, no que tange ao problema da educação e dos fatos sociais.

____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

4 MAX WEBERMax Weber (1989) é considerado o pensador mais compreensivo da

Sociologia. Essa denominação é dada a ele justamente porque seu modo de análise da realidade está mais ligado à noção de entendimento dos fatos do que de intervenção sobre a realidade dos fatos, como pensava Karl Marx.

Weber, outrossim, afirmava que o sociólogo teria o papel de intérprete, pois na ótica weberiana a sociologia é essencialmente hermenêutica, ou seja, ela está em busca do significado e dos motivos últimos que os próprios indivíduos atribuem às suas ações: é neste sentido que a sociologia é sempre compreensiva.

AUTOATIVIDADE

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Por este prisma, o pensamento de Weber se configura como um modo de interpretação da realidade que, a priori, se debruça sobre o advento do capitalismo e sua conexão com a ética religiosa, preponderantemente, a ética protestante nos EUA.

Weber, ao analisar o desenvolvimento capitalista nos EUA, descobriu uma grande ligação entre o comportamento religioso e o surgimento do capitalismo naquele país. Sendo assim, estudando de modo mais detalhado a vida dos protestantes e seu vínculo fervoroso com o trabalho, pôde concluir que a força motriz que impulsionava as pessoas ao trabalho não era meramente o afã pelo lucro ou pelo poder econômico, mas sim um suporte religioso que doutrinava e orientava as ações para o trabalho.

Partindo do princípio puritano de que quem não trabalha não come e de que mente vazia é oficina do demônio, as pessoas eram levadas a uma conduta rigidamente controlada de oblação e renúncia de si para o trabalho (que Foucault mais tarde criticará). A base desta ética, portanto, era o estímulo ao trabalho, controlado por uma disciplina ferrenha sobre o próprio corpo. Max Weber denominou esta prática de protestantismo ascético (conjunto de atos de controle austero e disciplinado do próprio corpo por meio do trabalho diário e metódico). Esta prática seria, em suma, a melhor maneira de realizar a vontade de Deus na Terra. O bom cristão seria uma pessoa devotada ao trabalho. O suor do seu rosto seria um desejo de realizar plenamente a vontade de Deus no mundo. A prosperidade americana e o american way of life não seriam resultado de métodos maquiavélicos de conquista e expropriação da mão de obra barata, mas consequência do sucesso empreendedor decorrente do trabalho. (WEBER, 1989).

FIGURA 37 – A PREGUIÇA É SINÔNIMO DE DESONRA, POIS, AO TÊ-LA, A PESSOA NÃO REALIZA AQUILO QUE DEUS QUER

FONTE: Disponível em: <http://profissaoreporterdejesus.blogspot.com.br/2010/08/ciencia-comprova-que-mente-vazia-e.html>. Acesso em: 15 jan. 2013.

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UNIDADE 2 | PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

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Essa ideia, aliás, é consequência do pensamento filosófico de John Locke, primeiro defensor do pensamento liberal: todos nós nascemos iguais e livres. Quem possui mais, é porque trabalhou mais. Esta noção lockeana ainda permanece. Porém, afirmar que uma pessoa é mais rica porque trabalhou mais é pressupor que vivemos em um mundo sem exploração ou usurpação. Mas deixemos este debate para outro momento, pois, como já vimos, Weber tenta interpretar os fatos e não determinar direcionamentos de interpretação.

É neste contexto que podemos inserir outra ideia muito importante de Weber, a saber, as formas de dominação. Segundo ele, existem três formas de dominação: a carismática, a tradicional e a racional-legal.

Dentre elas, a mais importante é a racional-legal. A carismática, como o próprio nome já diz, depende da força carismática do seu líder. Temos no Brasil os exemplos clássicos de Getúlio Vargas e Lula. O poder tradicional se pauta nos valores e princípios herdados pelas tradições sociais, religiosas e familiares.

O poder racional-legal, segundo Weber, é o poder da burocracia. Há uma grande legitimação deste poder dentro das instituições democráticas, pois, segundo ele, os governantes dentro dos regimes democráticos assumem temporariamente as suas funções através de mandatos. Mas o burocrata que, via de regra, é escolhido por concursos e processos seletivos, assume uma função mais duradoura. Aqui não estamos nos referindo ao prefeito (Executivo) ou ao vereador (Legislativo), mas ao funcionário que é selecionado e que deve assumir funções ou cargos específicos de execução ou manutenção da máquina pública.

Em suma, para Weber:

A burocracia moderna funciona da seguinte forma específica: I - rege o princípio de áreas de jurisdição fixas e oficiais ordenadas de acordo com regulamentos, ou seja, por leis ou normas administrativas [...]. II - Os princípios da hierarquia dos postos e dos níveis de autoridade significam um sistema firmemente ordenado de mando e subordinação, no qual há uma supervisão dos postos inferiores pelos superiores. Esse sistema oferece aos governantes a possibilidade de recorrer de uma decisão de uma autoridade inferior para sua autoridade superior, de uma forma regulada com precisão. (WEBER apud GERTH; MILLS, 1982, p. 229-230).

Por este motivo, o papel do burocrata é importantíssimo, porque é ele que tem a incumbência de zelar pelo funcionamento da res publica. Este papel tem um poder superior se comparado aos outros, apesar de ser visto, a priori, como meramente funcional.

Weber afirma que a burocracia, por mais incrível que isso possa parecer, tem a tarefa de manter a ordem e a paz social, visto que (como já dissemos) os papéis incorporados pelos burocratas são mais importantes do que o papel assumido pelo chefe político. Segundo este pensador, não haveria, com isso, nenhuma aliança entre burguesia e Estado, pois com o controle da burocracia nenhum tipo de conchavo ou estratagema se sucederia entre os dois grupos.

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FIGURA 38 – O PROBLEMA DA BUROCRACIA NO BRASIL

FONTE: Disponível em: <http://atualiarte.blogspot.com.br/2012/05/burocracia-nas-ultimas-decadas-no.html>. Acesso em: 15 jan. 2013.

Além da burocracia e da ética protestante, Max Weber analisou o comportamento das pessoas dentro dos vários contextos sociais. Segundo ele, existem quatro ações sociais que influenciam o nosso agir. Estas ações direcionam o comportamento das pessoas e determinam qual é a visão de mundo que elas possuem. Elas servem como modelos e sua principal finalidade é orientar a vida social dos indivíduos:

1. Ação social racional com relação a fins: na qual a ação é estritamente racional. Toma-se um fim e este é, então, racionalmente buscado. Há a escolha dos melhores meios para se realizar um fim.

2. Ação social racional com relação a valores: na qual não é o fim que orienta a ação, mas o valor, seja este ético, religioso, político ou estético.

3. Ação social afetiva: em que a conduta é movida por sentimentos, tais como orgulho, vingança, loucura, paixão, inveja, medo.

4. Ação social tradicional: que tem como fonte motivadora os costumes ou hábitos arraigados.

FONTE: Disponível em: <http://www.brasilescola.com/filosofia/a-definicao-acao-social-max-weber.htm>. Acesso em: 15 jan. 2013.

Estas ações teriam como escopo a intenção de determinar o modus operandi das pessoas, isto é, como as pessoas agem e porque agem. Estas ações não são estanques ou fechadas em si mesmas, mas servem de orientação e direcionamento dos comportamentos humanos. Um exemplo bem simples está ligado à ação social

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afetiva: num determinado momento, a nossa ação pode ser de afeto/amor e, num dado momento, pode ser de raiva/rancor. Este comportamento é consequência dos sentimentos que todos nós, seres humanos, possuímos, mas que naturalmente em si mesmos são contraditórios e confusos. Por outro lado, nossas atitudes, muitas vezes, são resultado de inúmeros costumes, nós os repetimos e não nos damos conta desta reprodução, de tão arraigada que ela é (ação social tradicional). Max Weber foi um pensador que contribuiu imensamente para o aprofundamento do pensamento sociológico, por abordar de modo mais compreensivo a realidade social. Dizer que a vida social se circunscreve a um pensamento só é muita pretensão. Contudo, Max Weber demonstrou que seu pensamento é fundamental para compreendermos de modo “imparcial” a sociedade na qual vivemos, ao vermos que luta de classes e mais-valia (Marx) ou anomia e organicidade (Durkheim) não são pressupostos dados a priori e aceitos por todos unanimemente. (WEBER, 1982).

AUTOATIVIDADE

Leia com atenção a charge que segue:

Com base nas ideias de Max Weber, é possível afirmar que:

a) ( ) Os critérios de avaliação da realidade usados pelo pai são extremamente burocráticos, pois o que mais importa é a lógica da linguagem presente no jornal.

b) ( ) A análise sociológica dos fatos emitida pelo pai é muito imparcial e plena de humanismo.

c) ( ) Ao ler o jornal, o pai faz uma avaliação totalmente desvinculada de uma preocupação sociológica real, pois o que mais importa para ele é o futebol e não a miséria alheia.

d) ( ) O futebol e a miséria são problemas semelhantes, pois dependem da avaliação geral da sociedade sobre o papel de ambos, na vida pessoal de todos os cidadãos.

e) ( ) Mafalda, ao afirmar que seu pai não se preocupa com as pessoas carentes, está corroborando com a ideia de que todos deveriam fazer o mesmo. Sua frase é isenta de deboche ou sarcasmo.

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DICAS

Sugestão de leitura: A ética protestante e o espírito do capitalismo, de Max Weber.

O estudo analisa a gênese da cultura capitalista moderna e sua relação com a religiosidade puritana adotada por igrejas e seitas protestantes dos séculos XVI e XVII: a partir de observações estatísticas, Weber constatou que os protestantes de sua época eram, de um modo geral, mais bem-sucedidos nos negócios do que os católicos. Os últimos ajustes ao estudo foram feitos no ano da morte do autor, quando o texto passou a fazer parte dos ensaios reunidos de sociologia da religião. (WEBER, 1989).

5 MICHEL FOUCAULTO pensamento de Michel Foucault (2007) é visto como um dos mais

contundentes do século XX. Suas ideias foram revolucionárias para a segunda metade do século XX, pois seu modo de entendimento da realidade não é em nada compreensivo. Aliás, suas ideias até hoje são profundamente perturbadoras, por tocarem em pontos indeléveis do nosso mainframe intelectual.

Sua análise filosófica e sociológica desmascara toda a estrutura social na qual estamos vivendo até os nossos dias. Dos pontos de análise de Foucault, os que mais inquietam são os que se referem à questão da sexualidade e do controle social. Os estudos de Foucault sobre a loucura e a clínica são igualmente muito interessantes; contudo, para delinear um horizonte de compreensão do pensamento de Foucault, consideramos que os temas sobre sexualidade e controle social são suficientemente interessantes para nossos estudos filosófico-sociológicos.

Ao pensar na ideia de controle social, Foucault tentou demarcar os espaços de poder e de exercício de poder. Neste caso, a disciplina assume um novo valor: o valor de manipular, educar e docilizar os corpos dos indivíduos, isto é, as pessoas, por meio de um processo complexo e ramificado de controle, se adequam a uma disciplina que tem como finalidade principal a preparação para a vida social ou o direcionamento para o trabalho. Nos espaços coletivos vemos uma complexa vigilância das atitudes, das ações e dos comportamentos. Cabe agora a cada um a função de vigiar e punir aqueles que não se encaixam nesse processo de controle.

Essa vigilância, afirma Foucault, ocorre de modo microfísico, pois ela acontece em todas as relações sociais, ou seja, na relação pai-filho, médico-

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paciente, criminoso-juiz, professor-aluno. Estas relações são a base do controle que, mais tarde, se estenderá ao mundo do trabalho. Essa vigilância não é de todo ruim, todavia o maior problema é o excesso do controle, pois ele gera uma alienação e uma sujeição das pessoas a um sistema marcadamente ostensivo, mas que não é em si autoritário, pois ele age de modo velado e não arbitrário. Um exemplo: ninguém o forçará a fazer algo que você não queira, mas você será levado paulatinamente (por ordens subliminares ou por uma educação repressora) a fazer as tarefas que lhe foram, ao fim e ao cabo, impostas.

Este exercício assumirá um papel mais demarcado com a criação dos códigos penais nos países ditos desenvolvidos. O sistema penitenciário adotará um método curioso de monitoramento dos criminosos, denominado panóptico, idealizado pelo filósofo Jeremy Bentham e utilizado pela primeira vez nos EUA, em 1800. Para Bentham, o conceito do desenho da penitenciária permite a um vigilante observar todos os prisioneiros sem que estes possam saber se estão ou não sendo observados. De acordo com o design de Bentham, este seria um design mais barato que o das prisões de sua época, já que requeria menos empregados.

O panóptico pode ser facilmente compreendido pela figura que segue.

FIGURA 39 – PENITENCIÁRIA CRIADA COM BASE NO PANÓPTICO

FONTE: Disponível em: <http://www.revistaon.com.br/materias/9834/a_sociedade_do_controle>. Acesso em: 15 jan. 2013.

Diante disso, Foucault afirma sobre o panóptico:

O princípio é conhecido: na periferia uma construção em anel, no centro, uma torre, esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o interior,

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correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar [...] Em suma, o princípio da masmorra é invertido, ou antes, de suas três funções - trancar, privar de luz e esconder - só se conserva a primeira [...] É visto, mas não vê; objeto de uma informação, nunca sujeito numa comunicação [...] Daí o efeito mais importante do panóptico: induzir no detento um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder. Fazer com que a vigilância seja permanente em seus efeitos, mesmo que descontínua em sua ação; que a perfeição do poder tenda a tornar inútil a atualidade de seu exercício; que esse aparelho arquitetural seja uma máquina de criar e sustentar uma relação de poder independente daquele que o exerce; enfim, que os detentos se encontrem presos numa situação de poder que eles mesmos são os portadores (FOUCAULT, 2007, p. 165-166).

A experiência do controle invisível do panóptico, mais tarde, será utilizada em todos os ambientes coletivos. Este controle nasce dentro das penitenciárias, dos hospitais e das escolas, mas logo será a base de controle dentro das fábricas e indústrias no período da Revolução Industrial. O esquadrinhamento e o controle de produção são exemplos fáceis de serem compreendidos dentro desta perspectiva. O taylorismo e o fordismo do início do século XX são formas simples de entender a aplicação do ver sem ser visto do panóptico. Essa vigilância pode ser entendida, atualmente, se colocarmos no lugar do vigilante principal os meios de comunicação, que controlam de modo muito melindroso as ações dos indivíduos, sem que os mesmos se deem conta disso. É uma contemporanização do Mito da Caverna de Platão.

DICAS

Sugestão de filme: O Show de Truman.

Neste filme, Turman é um homem que vive uma farsa. O lugar em que ele vive é, de fato, um grande estúdio com câmeras escondidas por toda parte e todos os seus amigos e pessoas à sua volta são atores que interpretam seus papéis no programa de TV mais popular do mundo: O Show de Truman. Truman pensa que é uma pessoa comum com uma vida comum, mas ele não faz ideia sobre o quanto a sua vida é explorada. Até que um dia... Ele descobre tudo. Mas, qual será sua reação?

FONTE: Disponível em: <http://www.imdb.com/title/tt0120382/>. Acesso em: 15 jan. 2013.

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Foucault, além de estudar os problemas do controle social (além de tantos outros assuntos), também se dedicou a estudar os problemas ligados à sexualidade em nosso mundo contemporâneo. De um modo geral, acreditamos que o não dizer sobre o sexo é uma forma de repressão ou de controle. Foucault desmistifica esta ideia ao afirmar que, no fundo, o não dito é mais prolixo do que o dito. Mas o que isso quer dizer?

De um modo geral, a educação repressora desperta em toda pessoa uma curiosidade, um interesse ou um desejo. Este desejo é iniciado quando nós, seres humanos, somos reprimidos ou negados em nossa vontade de saber sobre o sexo. Mas a repressão tem um duplo papel: determinar o que é certo ou errado nas práticas sexuais, mas também tem a função de modelar ou determinar o que a própria sexualidade é. Ao ensinar uma criança sobre aquilo que é lícito ou não sobre o sexo, os pais codificam uma gama de informações que a criança deve assimilar como verdade. Esta verdade, por sua vez, tem validade como código. Contudo, este código é restrito e não condiz com aquilo que é real na sexualidade. Exemplo: quando os pais afirmam que os bebês vêm da cegonha, a criança deve aceitar tal afirmação como verdadeira, mas esta regra será questionada, indagada e investigada pela criança com o decorrer de seu desenvolvimento mental e intelectual.

FIGURA 40 – DE ONDE OS BEBÊS VÊM?

FONTE: Disponível em: <http://blogdoconsa.blogspot.com.br/2012/08/cegonha-da-era-digital-humor.html>. Acesso em: 15 jan. 2013.

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FIGURA 41 – DE ONDE OS BEBÊS VÊM?

FONTE: Disponível em: <http://reengenhando.blogspot.com.br/2011/03/piada-de-segunda-na-quarta-cegonha.html>. Acesso em: 15 jan. 2013.

Este processo investigativo da criança em desenvolvimento é visto por Foucault como um desejo de querer saber. Por isso, a força do discurso, da palavra, da locução é sempre muito poderosa, pois engendra um controle, seja político, educacional ou interpessoal. Por isso, para Foucault, o poder do discurso é tão forte quanto o da ação. Mas é importantíssimo lembrar, caro estudante, que, para este pensador francês, o conceito do poder não se restringe a um grupo ou a uma pessoa especificamente. Ele perpassa todos nós. Como vimos anteriormente, o poder é microfísico, é melindroso, é astuto. Ele acontece nas nossas relações sociais mais básicas: entre pais e filhos, professores e alunos, entre patrões e empregados. Esse poder não se fecha nele mesmo, mas está em constante circulação e manifestação. No caso específico da sexualidade, Foucault chama de dispositivo da sexualidade todo o conjunto de diálogos, práticas e silêncios que envolvem a questão do sexo. Este conjunto é o método de controle que domestica e disciplina as pessoas para aquilo que pode ser considerado socialmente aceito como prática sexual. (FOUCAULT, 2006).

Foucault, ao tratar deste assunto, por vezes polêmico e complexo, inaugura uma nova maneira de entendimento da sexualidade. Ela não é a fonte de pecados ou abominações, mas é palco de interdições meticulosamente pensadas para controlar a vida pessoal e social. Não nos cabe delongarmo-nos demasiadamente aqui, mas é salutar a leitura das três obras da História da Sexualidade (Vol.1 - A vontade de saber; Vol. 2 - O uso dos prazeres; Vol. 3 - O cuidado de si), nas quais Foucault tenta demonstrar que a educação religiosa tolheu o verdadeiro sentido do autoconhecimento que o sexo pode ofertar ao ser humano na busca de uma vida mais estética e ética. Outrossim, apenas a título de ilustração, Foucault resgata e aprofunda o estudo da vida sexual dos gregos ao analisar o papel vital da sexualidade em suas vidas e de como a pastoral cristã baniu estas práticas ao demonizar a sexualidade humana.

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AUTOATIVIDADE

1 Explique o que significa panóptico. Dê exemplos de situações nas quais a ideia de panóptico pode ser aplicada.

2 Foucault é visto como um pensador controverso e polêmico. Aponte a sua opinião sobre a teoria de Foucault sobre a sexualidade.

____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

6 NORBERT ELIAS, ERWING GOFFMAN, PIERRE BOURDIEU E ZYGMUNT BAUMAN E OS PROCESSOS DE DEFINIÇÃO DO “EU” NA SOCIEDADE

De acordo com Norbert Elias (1994), a maneira como cada um de nós age no meio social é resultado da nossa socialização com o mundo que nos circunda, ou seja, todas as nossas ações são resultado da influência que recebemos da sociedade na qual estamos inseridos. Para ilustrar essa ideia, levemos em conta que até mesmo a noção de ser menino ou menina (e os comportamentos próprios de cada um) é resultado de um processo paulatino e contínuo de aprendizado.

Aliás, nós não nascemos como meninos ou meninas, mas nós nos tornamos na medida em que assimilamos certas atitudes que serão aprovadas ou reprovadas pelos demais. Um exemplo: um bebê-menino brasileiro não sabe, ao nascer, que será motivo de chacota se usar uma camiseta cor-de-rosa, mas, por um processo de aprendizado familiar, ele será ensinado a negar o uso de qualquer objeto rosa e de recriminar o uso desta cor por qualquer pessoa do sexo masculino. Na Coreia, provavelmente, não haverá tal recriminação. Isto mostra o quanto a cultura exerce um papel preponderante no nosso modo de ver o mundo.

A ideia do eu, segundo Elias, é uma construção social. (ELIAS, 1994). Esse processo é inconsciente, pois, de um modo geral, não nos perguntamos por que agimos de um modo e não de outro. Entretanto, essa construção é dinâmica, pois é modulada segundo o momento e o contexto histórico. Desta forma, quando afirmamos que gostamos ou odiamos alguma coisa, é bem provável que nossa escolha tenha sido fruto de uma influência externa (pais, atores, músicos, amigos, professores).

De um modo mais simplificado, podemos afirmar que nós somos aquilo que a cultura quer que nós sejamos.

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Por este viés, Marilena Chauí (1995, p. 62), analisa:

[...] que não há a Cultura, mas culturas diferentes. [...] Cada cultura inventa seu modo de relacionar-se com o tempo, de criar sua linguagem, de elaborar seus mitos e suas crenças, de organizar o trabalho e as relações sociais, de criar as obras de pensamento e de arte. Cada uma, em decorrência das condições históricas, geográficas e políticas em que se forma, tem seu modo próprio de organizar o poder e a autoridade, de produzir seus valores.

Dia 21 de maio é o Dia Mundial da Diversidade Cultural para o Diálogo e o Desenvolvimento, para conscientizar a população sobre a riqueza das diversas culturas do mundo, e aprofundar a reflexão sobre as oportunidades que a diversidade cultural pode trazer às sociedades.

FIGURA 42 – MULTICULTURALISMO

FONTE: Disponível em: <http://pescadordebrilhante.blogspot.com.br/2012/11/diversidade-cultural.html - adaptado>. Acesso em: 15 jan. 2012.

Contudo, é importante salientar que Elias (1994) reforça a ideia de que nossas atitudes ou comportamentos não são características inatas ou inerentes, mas aspectos assimilados pela experiência que adquirimos na convivência com pessoas de nossa localidade, cidade ou país.

Neste sentido, Clyde Kluckhohn (1963, p. 30) relata um fato interessante em seu livro de antropologia:

Há alguns anos, conheci em Nova York um jovem que não falava uma palavra em inglês e estava evidentemente perplexo com os costumes americanos. Pelo "sangue", era tão americano como qualquer outro, pois seus pais eram de Indiana e tinham ido para a China como missionários. Órfão desde a infância, fora criado por uma família chinesa, numa aldeia perdida. Todos os que o conheceram acharam-no mais chinês do que americano. O fato de ter olhos azuis e cabelos claros impressionava menos que o andar chinês, os movimentos chineses dos braços e das mãos, a expressão facial chinesa e os modos chineses de pensamento. A herança biológica era americana, mas a formação cultural fora chinesa.

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Com base nesse exemplo, é notório o alcance da educação cultural sobre nossos gestos corporais. Goffman (2002), neste sentido, apresenta a ideia de que o nosso corpo (gestos e expressões) é visto como um cartão de visitas. Ao adentrarmos em qualquer ambiente coletivo, nosso corpo (modo de andar, de vestir, de falar) é julgado pelos outros o tempo todo. De um modo geral, seremos aceitos ou não pelos outros, segundo a apresentação de nosso corpo. Para exemplificar sua ideia, Goffman apresenta a noção de persona como uma máscara que nós usamos para nos apresentar no mundo social, que é emoldurado como um teatro. Ao afirmar que as pessoas exercem um papel social, Goffman ressalta que somos atores sociais, que assumem várias máscaras com o decorrer da nossa vida. Em cada ambiente, uma determinada máscara. Esta arte da representação, segundo ele, é fundamental para que possamos nos sentir inseridos nos espaços que ocupamos na sociedade, seja na família, na escola ou no trabalho. Os papéis que avocamos são fundamentais para a formação da nossa personalidade, pois é de suma importância que sejamos capazes de controlar o que os outros pensam sobre nós. (GOFFMAN, 2002).

Neste ponto, Norbert Elias (1994) faz um apontamento curioso: a fofoca e o mexerico que fazem sobre nós, em contrapartida, também possuem um poder de coerção/controle muito forte, pois nós não queremos cair na boca do povo. Ele denomina este processo de controle social informal, pois sabemos que não seremos punidos na forma da lei, ao falarem sobre nós, mas que somos vigiados o tempo todo pelos deslizes, gafes e erros que cometemos na convivência social.

Atualmente, o exemplo mais evidente é o das comunidades virtuais (Orkut e Facebook, principalmente). Aquilo que é postado nestes sites (seja lá o que for, da foto mais inocente à frase mais ridícula), sempre é julgado e avaliado pelos outros e nem sempre esta avaliação é justa, pois as interpretações são parciais e múltiplas, o que gera um certo desconforto por parte daquele que postou, gerando, consequentemente, a fofoca. Segundo Elias, esse sistema possui uma certa eficácia, pois controla as ações dos indivíduos a fim de que eles se mantenham na linha.

FIGURA 43 – OS PROBLEMAS QUE A FOFOCA PODE GERAR

FONTE: Disponível em: <http://veja.abril.com.br/080807/p_104.shtml>. Acesso em: 15 jan. 2012.

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FIGURA 44 – OS PROBLEMAS QUE A FOFOCA PODE GERAR

ELES33% contam fofocasdiariamente

Na presença de mulheres, param de falar da vida alheiae conversam sobre política eoutros assuntos "elevados"

Os confidentes favoritos sãoos colegas de trabalho

ELAS26% contam fofocastodo dia

Em qualquer circunstância,o assunto predileto são os relacionamentosamorosos

Preferem fofocar com amigas e parentes

OS HÁBITOS DE INTRIGA

FONTE: Disponível em: <http://parapensarcertascoisas.blogspot.com.br/2010/10/fofoca.html>. Acesso em: 15 jan. 2013.

Retomando Goffman (2002), podemos concluir que o papel que o corpo assume nas relações interpessoais é muito intenso, haja vista que os atuais estereótipos de beleza são consequência desta ostensiva vontade hodierna de manter o corpo jovem e bonito. Atualmente, vivemos um fenômeno de rotulação exacerbada do que pode ser considerado belo: só se pode ser belo plenamente por meio de intervenções cirúrgicas. Em vista disso, inúmeras pessoas no Brasil e no mundo colocam em risco suas vidas em nome da eterna juventude. Além das cirurgias modificadoras, transtornos psiquiátricos como anorexia e bulimia (principalmente em mulheres) são fatos corriqueiros na vida de quem almeja conquistar a admiração e atenção dos outros.

Nesta linha de pensamento aparece Zygmunt Bauman (2004). Assim, ele escreve: atualmente, as relações sociais e amorosas perderam sua solidez. Hoje em dia, tudo é líquido. Talvez esta seja a grande novidade de Bauman sobre a nossa contemporaneidade: a eterna insatisfação nas relações humanas e sua respectiva fragilidade. O desejo de despertar o interesse do outro, a vontade de mostrar-se atraente, de ficar com o outro por um breve momento, revelam que as relações amorosas, após os anos de 1960/1980, tenderam a facilitar os contatos feitos e desfeitos imediatamente, gerando uma gama de possibilidades de parceiros e experimentos de prazer.

Essa forma de contato amoroso tem sido denominada pelos jovens como ficar. Assim, em uma festa, pode-se ficar com vários parceiros ou durante um tempo ir ficando em diferentes situações, sem que isso se configure em compromisso, namoro ou outra modalidade institucional de relação. Os processos sociais que provocaram as mudanças nas relações amorosas, bem como suas consequências para o indivíduo e para a sociedade, têm sido problematizados por vários cientistas sociais e, dentre eles, destacamos aqui Zygmunt Bauman.

FONTE: Disponível em: <www.cursoacesso.com.br/wp-content/.../SUPER2_SOCIOLOGIA.pdf>. Acesso em: 26 jan. 2013.

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FIGURA 45 – A FRAGILIDADE DO AMOR

FONTE: Disponível em: <http://mahlupinacci.tumblr.com/post/1094027719/certascoisas-cuidado-com-os-amores-passageiros>.

FIGURA 46 – AMOR SEM COMPROMISSO

"I'm not scared of commitment: I'm commilled to having at least 3 womem every week"

FONTE: Disponível em: <http://jacquelinerosa.wordpress.com/2011/04/21/amores-liquidos-x-amores-solidos-i/>. Acesso em: 15 jan. 2013.

Tradução: Eu não me assusto com compromissos. Eu me comprometi em ficar com três mulheres por semana.

Ele afirma em seu livro: Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos:

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Amar significa abrir-se ao destino, a mais sublime de todas as condições humanas, em que o medo se funde ao regozijo num amálgama irreversível. Abrir-se ao destino significa, em última instância, admitir a liberdade no ser: aquela liberdade que se incorpora no Outro, o companheiro no amor. "A satisfação no amor individual não pode ser atingida sem a humildade, a coragem, a fé e a disciplina verdadeiras”, afirma Erich Fromm – apenas para acrescentar adiante, com tristeza, que em “uma cultura na qual são raras essas qualidades, atingir a capacidade de amar será sempre, necessariamente, uma rara conquista”. E assim é numa cultura consumista como a nossa, que favorece o produto pronto para uso imediato, o prazer passageiro, a satisfação instantânea, resultados que não exijam esforços prolongados, receitas testadas, garantias de seguro total e devolução do dinheiro. A promessa de aprender a arte de amar é a oferta (falsa, enganosa, mas que se deseja ardentemente que seja verdadeira) de construir a “experiência amorosa” à semelhança de outras mercadorias, que fascinam e seduzem exibindo todas essas características e prometem desejo sem ansiedade, esforço sem suor e resultados sem esforço. (BAUMAN, 2004, p. 11-12).

Bauman, ao falar sobre a relação entre amor e mercadoria, resgata uma análise frankfurtiana sobre as relações entre pessoas e objetos. Se, no início do século XX, a Escola de Frankfurt abordava o problema da alienação e da reificação do ser humano pela indústria cultural ou no mundo do trabalho, atualmente Bauman analisa os problemas ligados à relação interpessoal e a visualização do outro como objeto. No livro “Amor Líquido”, Bauman verifica o quanto as pessoas, por meio dos modernos meios de comunicação, virtualizam tudo e todos. O fetiche da mercadoria é o outro, que agora pode ser, com naturalidade, consumido e descartado.

As relações amorosas ou de amizade, no seu entender, não se pautam mais em valores sólidos e verdadeiros. A fluidez, a liquidez é o novo horizonte de ação, pois "aqueles que não precisam se agarrar aos bens por muito tempo, e decerto não por tempo suficiente para permitir que o tédio se instale, são os bem-sucedidos". (BAUMAN, 2004, p. 32). No caso, o termo bens também se aplica às pessoas, pois, segundo ele, do mesmo modo que, passado um certo tempo, o objeto perde seu encanto e se torna obsoleto e, por conseguinte, tedioso, as relações interpessoais também se tornam tediosas.

DICAS

Sugestão de filme: Closer - Perto Demais

Anna (Julia Roberts) é uma fotógrafa bem-sucedida, que se divorciou recentemente. Ela conhece e seduz Dan (Jude Law), um aspirante a romancista que ganha a vida escrevendo obituários, mas se casa com Larry (Clive Owen). Dan mantém um caso secreto com Anna

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mesmo após ela se casar e usa Alice (Natalie Portman), uma stripper, como musa inspiradora para ganhar confiança e tentar conquistar o amor de Anna.

FONTE: Disponível em: <http://www.adorocinema.com/filmes/filme-51594/)>. Acesso em: 15 jan. 2013.

Além disso, o autor polonês afirma que nós estamos vivendo numa época de transvaloração daquilo que parecia ser concreto e real. Estamos vivendo em uma mutação entre real e virtual. Os princípios que pareciam óbvios já não existem mais. A conversa direta foi substituída pelo celular. A realidade virtual e a comunicação tecnológica são mais fortes e contundentes do que a conversa “olho no olho”.

Ele cita Durkheim para explicitar sua ideia:

A proximidade virtual e a não virtual trocaram de lugar: agora a variedade virtual é que se tornou a "realidade", segundo a descrição clássica de Émile Durkheim: algo que fixa, que "institui fora de nós certas formas de agir e certos julgamentos que não dependem de cada vontade particular tomada isoladamente"; algo que "deve ser reconhecido pelo poder de coerção externa" e pela "resistência oferecida a todo ato individual que tenda a transgredi-la". (BAUMAN, 2004, p. 39).

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FIGURA 47 – A TECNODEPENDÊNCIA

FONTE: Disponível em: <http://www.mobilepedia.com.br/noticias/mensagem-de-texto-e-a-principal-forma-de-comunicacao-entre-os-adolescentes>. Acesso em: 15 jan. 2013.

Por fim, gostaríamos de apresentar o pensamento do sociólogo francês Pierre Bourdieu (1992), que analisa as situações de estratificação social no mundo contemporâneo. Segundo ele, o critério mais importante de avaliação da posição social de um indivíduo não são as relações de produção ou o poder econômico em si mesmo, porém são as relações culturais que devem orientar a posição do indivíduo na pirâmide social.

O estilo de vida que cada grupo social assume determina o seu posicionamento nessa escala. Mas o que isso quer dizer, caro(a) acadêmico(a)? Isso significa, em breves palavras, que o padrão estético e os hábitos de consumo são uma forma de marcar e diferenciar uma classe social da outra. O padrão cultural determina, tal como uma insígnia, as idiossincrasias de um grupo social. Este padrão revela as características do grupo social e, assim, faz com que as pessoas que praticam ou possuem tais características se sintam pertencentes a ele.

Utilizando o exemplo de certas tecnologias, podemos afirmar que o uso de determinados aparelhos eletrônicos pode revelar a formação de certos grupos sociais: eu pertenço a um grupo seleto de pessoas que têm um Iphone, um MacBook; ou que viajou para Bahamas, ou que tem um carro importado na garagem. A posse do objeto pode representar a pertença ao grupo. A ideia de pertencimento está muito mais ligada à noção de capital simbólico do que de capital econômico.

Diante disso, alguém pode se perguntar: mas e se todos tivessem os mesmos aparelhos e fizessem as mesmas viagens, não haveria mais nenhum tipo de distinção entre as pessoas? Ao crer nessa ideia, poderíamos incorrer

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UNIDADE 2 | PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

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em um ledo engano, pois segundo Bourdieu (1992), tão logo certos hábitos de consumo, estilos de vida de uma classe, passem a ser incorporados por outra, a primeira tratará de reinventar novos estilos que delimitem a extensão do seu pertencimento. O que distingue um grupo do outro é a constante reinvenção e criação de estilos. Aliás, em uma única palavra, para Bourdieu, o que define um grupo é o seu estilo.

Outrossim, Bourdieu destaca que os jovens podem conquistar maior sucesso na vida na medida em que lhes é oportunizada a possibilidade de aumentarem a sua bagagem cultural.

Dito de outro modo, Bourdieu, baseado em estudos feitos nas escolas francesas de ensino médio nas décadas de 1960 e 1970, concluiu que os alunos com maiores probabilidades de sucesso na carreira acadêmica eram os oriundos de famílias cujos membros possuíam um elevado nível de escolarização e grande acesso a bens culturais. De um modo geral, ele finalizou que a performance de um estudante não dependia exclusivamente de seu intelecto, mas da posse de capital cultural (o termo pode se referir desde o conhecimento de escolas de arte até a produção de títulos acadêmicos). (BOURDIEU; PASSERON, 1992).

FIGURA 48 – A EDUCAÇÃO EM SALA DE AULA

FONTE: Disponível em: <http://letrasdespidas.wordpress.com/2010/10/16/meritocracia-ii-por-que-o-merito/>. Acesso em: 15 jan. 2013.

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TÓPICO 2 | IMPORTANTES SOCIÓLOGOS E ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DO SEU PENSAMENTO

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Não obstante, Bourdieu, ao afirmar que boa parte dos estudantes que teria sucesso na vida acadêmica era proveniente de famílias de intelectuais ou mais ricas, denuncia a visão vigente de que pessoas nativas de famílias mais carentes são, via de regra, fracassadas, pois o acesso aos bens culturais estaria restrito apenas às pessoas das classes mais ricas, o que vetaria a ideia de que a escolarização seria um caminho de ascensão social por meio do aprendizado e da instrução pessoal.

Em outras palavras: mesmo que um adolescente proveniente de uma família carente conquistasse o direito de frequentar uma escola privada em nosso país, tendo acesso a professores qualificados e a uma infraestrutura mais ampla e aperfeiçoada, ele teria dificuldades no processo ensino/aprendizagem, por, primeiramente, sentir-se excluído da vida extraescolar, e por não conviver no mesmo mundo de seus colegas mais ricos, pois, segundo Bourdieu, não basta ter acesso a uma escola de qualidade para garantir o sucesso escolar, é preciso ter capital cultural e simbólico para isso.

Diante disso, podemos compreender porque, em nosso país, a inclusão de cotas para pessoas portadoras de necessidades especiais, de negros ou de estudantes de ensino público nas universidades federais causa tanto desconforto entre as pessoas das classes mais abastadas. Isso sem contar com o fato de que o conceito de mérito é algo conturbado, pois, como afirma Adriano Senkevics:

Sem o mérito, seríamos muito mais injustos, mas se nos limitarmos a ele, em contrapartida, estaríamos mascarando todos os problemas enraizados fora da escola [...] pois não podemos crer na visão salvacionista de que uma escola “justa” seja capaz de solucionar as desigualdades sociais. Discutir igualdade, como tenho falado, é antes de tudo reduzir tais disparidades, por meio de medidas sistêmicas, estruturais, que vão muito além de uma escola. Essa apenas reflete as desigualdades e, não sendo capaz de rompê-las, as reproduz. Dubet enfatiza: “nenhuma escola consegue, sozinha, produzir uma sociedade justa”. Logo, independente do modelo que escolhermos, bem como a noção de justiça escolar, temos que ter em mente que o problema é muito maior, pois ele reside na própria sociedade. (SENKEVICS, 2012).

Por fim, enquanto Bauman, Goffman e Elias se preocupam em demonstrar os problemas da identidade da sociedade contemporânea e as agruras de estar-no-mundo, Bourdieu tenta revelar que o indivíduo moderno é um sujeito marcado pelo poder do capital simbólico da cultura, mas que, por outro lado, esta cultura está ligada muito mais ao poder econômico do que se possa imaginar.

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RESUMO DO TÓPICO 2

Neste tópico vimos que:

• Os pensadores mais influentes da Sociologia após Augusto Comte: Marx, Weber e Durkheim. Os três são chamados de “clássicos da Sociologia”. Cada um deles aborda os problemas da vida social de maneiras distintas. A visão de mundo de cada um deles revela interpretações, diríamos até mesmo, antagônicas entre si sobre o mundo que nos circunda.

• Para dar um exemplo, Marx é totalmente contrário ao capitalismo, enquanto que, por outro lado, Durkheim não vê problemas no sistema econômico, desde que todos estejam inseridos na “solidariedade orgânica”. Já Weber tenta compreender e demonstrar com o capitalismo e o protestantismo são indissociáveis.

• Vimos quais são os pensadores mais influentes do final do século XX e do início deste século: Bauman e a liquidez dos relacionamentos, Foucault e a vontade de poder, Goffman e as máscaras sociais, dentre outros.

• Conhecemos o papel sobremaneira preponderante da cultura na formação do imaginário coletivo e individual.

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AUTOATIVIDADE

1 Segundo Bauman (2004), vivemos em um mundo líquido, onde até mesmo as relações interpessoais se tornaram fluidas. Com suas palavras, tente demonstrar o que isso quer dizer.

__________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

2 O que significa, segundo Goffman, que vivemos assumindo máscaras no mundo social? O que ele quis dizer ao afirmar que o mundo é um teatro?

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TÓPICO 3

TEMAS SOCIOLÓGICOS

UNIDADE 2

1 INTRODUÇÃOFoi um longo caminho até aqui, já não sou mais quem eu era antes: talvez

esta seja a grande ideia que nós gostaríamos que cada estudante, ao entrar em contato com este material, pudesse experimentar. É impossível permanecermos impassíveis diante dos temas que a Sociologia e seus pensadores se colocam a questionar. A vida social é uma amálgama tão bem feita, que nos parece indispensável pararmos nossas atividades rotineiras para pensarmos um pouco sobre ela. Entretanto, para muitos de nós, exercitarmos o pensamento sobre a vida social parece ser um exercício vazio e sem o menor sentido. Contudo, para entendermos a nós próprios, julgamos necessário o estudo sociológico e filosófico do mundo, pois aceitar as coisas como óbvias é algo inadmissível.

O mundo é o que é porque o ser humano deposita sentido em suas ações. Ele nada faz sem direcionar um sentido, sem criar um “porquê fazer”. A vida é resultado deste direcionamento preestabelecido. Deixarmos ao “Deus-dará” tudo aquilo que acontece à nossa volta é puro fatalismo e é, por isso mesmo, uma grande irresponsabilidade. Nós somos determinados pelos hábitos e costumes sociais, como vimos no tópico anterior, porém, isso não quer dizer que sejamos incapazes ou reféns das determinações ou das imposições que a sociedade nos força a aceitar.

Aliás, este é um dos pontos mais importantes da vida moderna (que, aliás, já vimos neste material): sou livre para tomar decisões ou sou forçado constantemente a assumir coisas que nem eu mesmo fui consultado a pensar?

Neste terceiro tópico queremos analisar, baseados em tudo aquilo que lemos e vimos até aqui, qual é o papel hermenêutico do pensamento sociológico-filosófico, na compreensão dos fatos sociais que nos atingem invariavelmente todos os dias. O que a Sociologia pode fazer para nos ajudar a pensar? Ela pode nos ajudar quando demonstra as múltiplas formas de controle social que ocorrem sorrateiramente à nossa volta ou quando aborda os desafios dos movimentos sociais em defesa da diversidade sexual ou étnica.

Além disso, a Sociologia analisa os acontecimentos históricos, tendo como princípio a multiplicidade das opiniões, ideias e conceitos, sem se prender a uma única resposta aceita ou válida. A visão multifacetada e variada da Sociologia pode ser considerada como o ponto mais importante da sua própria razão de existir, pois, ao analisarmos a sociedade, não podemos olvidar o papel hermenêutico da Sociologia, a saber, o de tentar responder aos problemas e anseios de uma humanidade sempre em transição.

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UNIDADE 2 | PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

Sendo assim, caro(a) acadêmico(a), vejamos o que podemos aprender sobre estes temas da sociologia contemporânea.

2 PROCESSOS SOCIAISDe um modo geral, podemos considerar que existem cinco processos sociais

básicos e que estes processos determinam a convivência entre os indivíduos. Estes processos podem ser classificados em dois grupos: os processos sociais associativos e os processos sociais dissociativos. Os processos associativos são denominados assimilação, acomodação e cooperação, enquanto que os processos dissociativos são denominados como competição e conflito.

Iniciemos falando sobre o processo associativo da cooperação. A ideia de cooperação implica em uma ação comum que visa um fim social ou grupal. Segundo alguns autores, como Pérsio de Oliveira (2010), há a cooperação direta e a cooperação indireta. A indireta ocorre de modo corriqueiro nas nossas relações sociais, pois, sem nos darmos conta, agimos cooperativamente, pelo simples fato de que convivemos uns com os outros no espaço público das cidades. Durkheim (2007) denomina este processo, como já vimos, de solidariedade orgânica. Há uma complementaridade e uma colaboração indireta entre todas as profissões, mesmo que não exista aparentemente uma conexão entre elas. Há uma rede invisível que nos conecta. Exemplo: um médico e um gari não convivem diretamente, não trabalham no mesmo local, mas se ambos não fizerem bem os seus papéis sociais e as atribuições inerentes a eles, a cidade pode tornar-se um caos. A ausência da cooperação indireta geraria uma grande desordem, pois sem ela o convívio social seria insuportável. (OLIVEIRA, 2010a).

Por outro lado, a cooperação direta implica em uma ação entre pessoas que possuem uma finalidade comum a ser executada em benefício de um grupo. Um exemplo fácil de ser assimilado é quando determinadas pessoas de um bairro da cidade se organizam para, em mutirão, construírem casas populares. As pessoas agem pensando no benefício que estão proporcionando aos outros, na garantia de que serão favorecidas quando necessitarem da ajuda do beneficiado. Esta reciprocidade na ideia e na ação pode ser considerada como um exemplo de cooperação direta.

Resumindo em poucas palavras: a cooperação indireta acontece de modo inconsciente, na medida em que cada um executa o seu papel social dentro do âmbito social; enquanto que a cooperação direta é consciente e está sempre ligada a um fim específico.

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TÓPICO 3 | TEMAS SOCIOLÓGICOS

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FIGURA 49 – A VIDA COMUNITÁRIA

FONTE: Disponível em: <http://emefperola.blogspot.com.br/2012/02/mutirao.html>. Acesso em: 15 jan. 2013.

Além da cooperação, há o processo social associativo denominado de assimilação. Entretanto, este processo está vinculado, necessariamente, com o processo de acomodação. Mas, como assim? É simples: quando uma pessoa migra de um lugar para outro, ela sofre um certo choque cultural: um gaúcho, por exemplo, ao sair do Rio Grande do Sul para morar no Rio Grande do Norte, enfrentará uma série de mudanças, que vão desde o clima até os hábitos alimentares.

No início, o processo de adaptação será muito duro e exigente para ele. Sua postura diante deste mundo novo será de assimilação, ou seja, ele deverá paulatinamente absorver os novos costumes, os novos hábitos, o novo modo de viver, para que consiga se sentir inserido nesta nova realidade. Este exercício de assimilação é, por vezes, muito difícil, principalmente se a pessoa for adulta, pois na medida em que estabelecemos raízes e hábitos de um determinado local, o processo de aprender, desaprender e reaprender torna-se mais doloroso.

Contudo, passado este processo de assimilação, a pessoa se acomodará, pois já terá aprendido a conviver e a aceitar os hábitos da nova localidade. Os imigrantes de outros países, principalmente os asiáticos, que estabelecem residência no Brasil, enfrentam uma grande dificuldade de assimilação, pois o modo e o estilo de vida deles é muito diferente do estilo brasileiro. O processo de assimilação, em determinados casos, não ocorre, porque a pessoa continua, apesar de estar geograficamente no Brasil, presa aos hábitos orientais.

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UNIDADE 2 | PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

Por outro lado, os processos sociais dissociativos são muito frequentes na vida social. A competição é, de um modo geral, a disputa ou embate de certas pessoas por um bem exclusivo ou limitado. Em outras palavras, competição é uma disputa entre indivíduos, grupos ou sociedades por bens que não chegam para todos (bens escassos). A competição pode levar indivíduos a agir uns contra os outros em busca de uma situação melhor. Ela nasce dos mais variados desejos humanos, como ocupar uma posição social mais elevada, ter maior importância no grupo social, conquistar riqueza e poder, vencer um torneio esportivo, ser o primeiro da classe, passar no vestibular, vencer um concurso. (OLIVEIRA, 2010a).

Entretanto, a competição pode atingir um elevado nível de tensão e estresse entre os competidores, pois a insatisfação e a inconformação pela derrota ou pela perda do bem almejado podem ocasionar o conflito, seja ele entre pessoas, grupos ou nações. A escassez do bem ou a sua falta, justamente por ser limitado, pode gerar inúmeros conflitos que, ao fim, desencadeiam as guerras e discórdias no mundo social, religioso ou econômico. Em contraste com a competição, o conflito consiste em uma luta por bens, valores ou recursos escassos, na qual o objetivo dos contendores é neutralizar ou aniquilar seus oponentes. Dessa forma, ao contrário da competição, o conflito envolve, em maior ou menor escala, o emprego da violência. (OLIVEIRA, 2010a).

Além disso, é necessário que pensemos que a competição, via de regra, no mundo social, não é justa. Pensemos, como vimos anteriormente no Tópico 2, que a competição do vestibular no Brasil ainda é desleal, pois é injusto estabelecer um concurso democrático entre pessoas que não tiveram a mesma preparação. Ou, por outro viés, no mundo do trabalho não há competição justa entre patrões e empregados.

FIGURA 50 – EMBATE ENTRE PROFISSIONAIS

FONTE: Disponível em: <http://blog.kombo.com.br/empresa/2010/07/07/como-mediar-um-conflito-dentro-da-empresa/>. Acesso em: 15 jan. 2012.

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TÓPICO 3 | TEMAS SOCIOLÓGICOS

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A competição é indispensável no mundo social, ela é benéfica e seleciona os mais aptos, mas ela, em si mesma, não garante justiça ou honestidade na lisura das relações sociais. Ela é um indicador de que a sociedade ainda utiliza-se do critério meritocrático, entretanto, ela não assegura o bom funcionamento deste critério. E que, por fim, definirmos o que é realmente meritocrático em nosso país é uma luta de braço bem complicada.

AUTOATIVIDADE

1 Defina a principal diferença entre processos sociais associativos e processos sociais dissociativos.

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2 Qual é a principal diferença entre competição e conflito? ___________________________________________________________________

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DICAS

Sugestão de filme: Invictus

Invictus acompanha o período em que Nelson Mandela (Morgan Freeman) sai da prisão em 1990, torna-se presidente em 1994 e os anos subsequentes. Na tentativa de diminuir a segregação racial na África do Sul, o rugby é utilizado para tentar amenizar o fosso entre negros e brancos, fomentado por quase 40 anos. O jogador Francois Pienaar (Matt Damon) é o capitão do time e será o principal parceiro de Mandela na empreitada.

FONTE: Disponível em: <http://www.cineclick.com.br/filmes/ficha/nomefilme/invictus/id/16334>. Acesso em: 15 jan. 2013.

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UNIDADE 2 | PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

2.1 STATUS E PAPEL SOCIAL

Caro(a) acadêmico(a), este assunto é tão simples que vamos circunscrever este tema em apenas duas páginas. Vejamos:

Os conceitos de status e papel social, de um modo geral, são complementares. Iniciemos, então, verificando qual é o conceito de status, para depois compreendermos a ideia de status social.

Partindo desse pressuposto, podemos classificar a ideia de status de dois modos. Primeiramente, pensemos na ideia de status atribuído. Este status é inerente a todas as pessoas e às suas relações familiares ou sociais. Desse modo, nós não nos esforçamos para tê-lo. Basta, por exemplo, pertencermos a um grupo de pessoas com laços de consanguinidade, que naturalmente receberemos um status. Neste caso, todas as pessoas do grupo terão um determinado status. Como sujeito pertencente a uma família, eu posso ter o status de filho ou de pai. Em outras palavras: o conceito de status significa posição ou posto, como indicação de lugar dentro de uma coletividade já dada. Pensando assim, cada um de nós ocupa um determinado status dependendo do lugar ou grupo no qual está inserido. Não é algo intrínseco à nossa capacidade de decidir ou escolher, ou seja, isso não acontece de modo voluntário, mas ocorre como algo inato em nós.

Por outro lado, temos o status adquirido, que, diferentemente do status atribuído, depende exclusivamente das escolhas ou do empenho do sujeito que o almeja. Por este prisma, o status adquirido é resultado das capacidades e das habilidades do portador do status. No mundo competitivo no qual vivemos, o status adquirido é muito mais evidente do que o atribuído, pois o desejo de galgar postos mais altos nas empresas e no mundo social depende do interesse de cada indivíduo em conquistar novos cargos ou atribuições, que, por sua vez, estão atrelados ao ímpeto pessoal de adquirir sucesso e reconhecimento, ou seja, status. (OLIVEIRA, 2010a)

Neste caso, a noção de status, como evidentemente pudemos ver, não é algo estanque ou definitivamente fechado, visto que, de um modo geral, as pessoas consideram apenas o conceito de status adquirido e se esquecem com frequência do status atribuído. Durante muito tempo, atribuíram-se determinados rótulos a certos grupos sociais, que os impediam de saírem de uma posição social. Este estereótipo afirmava que era natural que as coisas fossem assim. Cada um no seu quadrado. Atribuir, por exemplo, a um negro ou a um operário a incapacidade de administrar um país era algo muito presente na visão de mundo de muitas pessoas. Contudo, muitas mudanças ocorreram e fizeram uma verdadeira revolução no modo de compreensão do mundo. Aceitar o status adquirido é defender a competência e a sadia competição entre as pessoas no âmbito social e coletivo. É dizer não ao nepotismo e ao apadrinhamento de pessoas.

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TÓPICO 3 | TEMAS SOCIOLÓGICOS

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Por outro viés, a ideia de papel social é algo que está ligado, como já dissemos, à noção de status. Um professor, por exemplo, possui determinadas funções em uma sala de aula, que são consequência do seu status de professor. De modo bem simplificado, o professor está exercendo o seu papel. A ideia de papel aqui representa a noção de comportamento. O professor deve ter uma postura, um comportamento que seja compatível com este papel que ele adquiriu, pois, via de regra, um professor não assume um cargo somente porque lhe foi atribuída tal tarefa. Espera-se que um professor de Matemática tenha as competências e o conhecimento necessário para exercer a função que lhe foi designada.

Deste modo, a ideia de papel está ligada à ideia de status adquirido ou atribuído, pois as ideias de status e de papel social são inseparáveis e só os distinguimos para fins de estudo, mas um depende necessariamente do outro. Outrossim, uma pessoa pode assumir vários papéis sociais simultaneamente, pois no ambiente familiar cada um de nós possui um status e, concomitantemente, um papel social. No trabalho, a mesma coisa. No esporte, idem. E assim por diante. Simples assim, caro(a) acadêmico(a).

AUTOATIVIDADE

1 Leia a charge e, em seguida, responda:

FONTE: Disponível em: <http://enigmasvalentim.blogspot.com.br/2011/11/mafalda-pequena-notavel.html>. Acesso em: 15 jan. 2013.

a) Vemos no 1º e 2º quadrinho uma relação clara de status e atribuições. Explique, com suas palavras, como isso se dá.

_____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

b) Analisando o último quadrinho, o que Mafalda quis dizer com esta frase? Relacione a ideia de status com o pensamento de Marx:

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UNIDADE 2 | PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

2.2 ESTRUTURA E ORGANIZAÇÃO SOCIAL

Outro assunto bem fácil de ser compreendido, caro estudante. No dito popular, é mel na chupeta. A ideia é simples e básica: se temos em mente o que papel social e status significam e representam no conjunto das relações sociais, entenderemos com facilidade os conceitos de estrutura e organização social.

Antes de tudo, é preciso recordar que status e papel social são coisas inseparáveis e indissolúveis. Sendo assim, dentro do contexto social, cada um de nós assume um papel, uma função. Cada função, quando bem executada e bem assumida, faz com que o todo social funcione, de modo harmonioso e coeso (como Durkheim afirmava). Se tudo funcionar como deve, podemos inferir que há um conjunto ordenado e conexo que executa de modo concatenado todas as ações da sociedade. A isso damos o nome de estrutura, ou seja, se todos nós, dentro de uma fábrica, executamos com precisão e perfeição as nossas atividades, é porque a estrutura está bem montada e bem definida. Não havendo falhas ou incorreções, a estrutura funcionará como base para o sucesso produtivo da fábrica. Mas é preciso lembrar mais uma vez a ideia principal: é necessário que cada um esteja no seu devido quadrado, na sua devida função, para que a vida social funcione bem. Como já afirmava Aristóteles, é preciso dividir os ofícios para a convergência dos esforços.

Ou como afirmara São Paulo: "De fato, o corpo é um só, mas tem muitos membros; e, no entanto, apesar de serem muitos, todos os membros do corpo formam um só corpo" (1Cor 12. 12). O que nos leva a dizer que a estrutura tem um papel tão totalizante quanto o corpo.

Por outro lado, diante da ideia de estrutura, nos vem a pergunta: E onde entra a organização? Simplificadamente, podemos dizer que a organização acontece na medida em que cada uma das pessoas ligadas à estrutura desempenha o seu papel. A organização ocorre na medida em que as coisas acontecem e, literalmente, funcionam. Como vimos no parágrafo anterior, na medida em que o corpo representa o todo e é um só, as partes são múltiplas e desempenham, por sua vez, múltiplas tarefas. Cada membro deve fazer acontecer o que é de sua competência.

Daí, podemos afirmar que enquanto a estrutura é estática, a organização é dinâmica, pois os papéis sociais estão em constante movimento. Aliás, é bom lembrar que nossos papéis são múltiplos, são diferentes e se modificam o tempo todo. Num mesmo dia podemos ser pais, professores, filhos e alunos. Em cada ambiente (em cada estrutura) assumimos estes papéis ou personas, como afirmava Goffman (2002, p. 11-20) isto é, a vida social é um constante teatro montado a céu aberto. “Em cada lugar eu assumo uma personagem. Esta personagem, por não ser única, precisa ser de fato dinâmica, pois não posso me comportar sempre do mesmo modo em todos os lugares”. Simples, não é?

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TÓPICO 3 | TEMAS SOCIOLÓGICOS

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Além disso, lembre-se de que a vida social é mutante. No mundo atual podemos ver isso com clarividência: tudo está em constante movimento, pois até mesmo as estruturas podem mudar. Até bem pouco tempo atrás, um homem jamais trocaria as fraldas de seu filho-bebê ou jamais dividiria com sua esposa a realização dos trabalhos domésticos; ou ainda, nenhuma mulher, há 30 anos, assumiria atividades profissionais de mestre de obras, de motorista ou mecânico, pois tais profissões eram rotuladas como exclusivamente masculinas. Isso evidencia que os papéis sociais e os status mudam e as organizações e estruturas também.

A charge a seguir demonstra que para cada dia da semana há uma máscara a ser usada.

FIGURA 51 – OS ROSTOS DA SEMANA

FONTE: Disponível em: <http://reflexoesquenaolevamalugarnenhum.blogspot.com.br/2012/07/papeis-sociais.html>. Acesso em: 15 jan. 2013.

Faça uma pesquisa na sua região e verifique quais são as profissões vistas como exclusivamente femininas (quais são os trabalhos que correspondem unicamente às mulheres). Diante disso, verifique se há homens que desempenham estas mesmas profissões e quais são as suas motivações. __________________________________________________________________

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AUTOATIVIDADE

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UNIDADE 2 | PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

2.3 INSTITUIÇÕES SOCIAIS

De um modo geral, o conceito mais amplo de instituição social é elaborado por Durkheim. A ideia é bem simples: a instituição social é um mecanismo de organização da sociedade. É o conjunto de regras e procedimentos padronizados, reconhecidos, aceitos e sancionados pela sociedade, cuja importância estratégica é manter a organização do grupo e satisfazer as necessidades dos indivíduos que dele participam. Contudo, é importante salientar a função controladora da instituição social. Por este motivo, a instituição detém dois aspectos fundamentais: normatizar e punir as ações pessoais de todos os indivíduos ligadas ao grupo social. (OLIVEIRA, 2010a).

Deste modo, as instituições possuem funções e atribuições bem claras: agir coercitivamente, determinar o espaço do aceitável e do inaceitável; vigiar moralmente as atitudes, perpetuar a história do grupo e das pessoas vinculadas a ele. Pensando assim, podemos concluir que as instituições possuem papéis determinantemente fortes no modo de ser, pensar e agir de todos nós, pois quando pensamos na ideia de família, Estado ou Igreja, estamos pensando em formas de existência e de demarcação da vida social. Por exemplo, quando pensamos em família, nos vem à mente a presença de determinadas pessoas: pai, mãe e filhos, mas este conjunto de pessoas que vivem sob o mesmo teto não preenche plenamente a noção de família.

Regras, atribuições, regulamentos, proibições, punições e premiações são ideias que completam a noção institucional de família. Esta normatização da vida familiar é que compõe, de fato, a ideia de instituição, pois as famílias, particularmente, grosso modo, utilizam-se destes preceitos e princípios para viver.

FIGURA 52 – FAMÍLIA

FONTE: Disponível em: <http://pastorsantos.no.comunidades.net/index.php?pagina=1135855144>. Acesso em: 15 jan. 2013.

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TÓPICO 3 | TEMAS SOCIOLÓGICOS

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Por esta linha de raciocínio podemos entender que as instituições dependem umas das outras, pois se uma não funcionar direito, todas as outras serão afetadas. O que isso quer dizer? Isso significa que as instituições estão interligadas e são interdependentes. Vejamos: se, porventura, todos os chefes de família de uma determinada região da cidade perderem seus empregos, é certo que a economia poderá entrar em colapso, pois, na ausência de rendimentos, as pessoas não poderão pagar suas contas ou fazer novas. A instabilidade social será resultado de um efeito cascata que, na verdade, poderá se tornar uma avalanche. Uma coisa será consequência da outra. A economia sofrerá o que as famílias sofrerão. É por este motivo que a família é sempre eleita como a instituição mais importante da sociedade, pois ela é, ao mesmo tempo, o seu núcleo mais estável, bem como o seu epicentro mais cataclísmico.

Analisemos neste momento o papel institucional da família: ela está presente em quase todas as sociedades do mundo. Sua estrutura é basicamente a mesma em todas elas e sua organização também. Os pontos mais variáveis se referem ao número de integrantes, à forma do casamento, ao tipo de família e às atribuições dos papéis familiares.

No universo ocidental, os casamentos socialmente aceitos são os monogâmicos, nos quais se estabelecem critérios bem definidos de respeito e fidelidade. Quando tais critérios são desobedecidos, ocorre a dissolução da união, ou seja, há o divórcio (é evidente que estamos partindo da ideia do casamento monogâmico perfeito).

Já no Oriente Médio, onde as tradições muçulmanas são mais fortes, o casamento poligâmico é aceito com mais naturalidade, em algumas regiões específicas.

Entretanto, é importante salientar uma diferenciação conceitual e factual na poligamia. Aqui podemos notar que a forma do casamento é definida pelas regras que são apropriadas em cada localidade. A ideia de família é a mesma em todos estes lugares, mas o modo como a instituição família funciona é bem diversificada e divergente. (OLIVEIRA, 2010a).

NOTA

Poliandria é quando uma mulher se casa com mais de um homem, o que ocorre apenas entre algumas tribos do Tibete ou de esquimós, o que, evidentemente, não acontece entre os muçulmanos.Poliginia é o casamento entre um homem e várias mulheres (que ocorre entre muçulmanos), mas que em determinados países árabes, como Turquia e Tunísia, vem diminuindo bastante nos últimos anos. (OLIVEIRA, 2010a).

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UNIDADE 2 | PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

DICAS

Sugestão de filme: Eu, tu, eles.

Darlene (Regina Casé), grávida e solteira, vai embora da sua região e retorna três anos depois ao trabalho pesado dos canaviais no Nordeste brasileiro com Dimas, seu filho. Logo que Osias (Lima Duarte), um homem mais velho e orgulhoso de sua casa ter sido construída por ele, lhe propõe casamento, Darlene aceita. Ele se aposenta, enquanto ela continua trabalhando duro nos canaviais e em poucos anos nasce um segundo filho, muito mais escuro que Osias. Então ele leva Zezinho (Stênio Garcia), seu primo que é quase da sua idade, além de ser um bom cozinheiro, para morar com ele. Darlene fica feliz com a chegada de Zezinho e logo nasce outra criança, esta bastante parecida com Zezinho. Pouco tempo depois, Darlene convida Ciro (Luiz Carlos Vasconcelos), que trabalha com ela nos canaviais e não tem onde dormir, para jantar. Zezinho é contra, mas Osias diz que a casa é dele e que o recém-chegado é bem-vindo e pode dormir lá. Ciro acaba morando lá, mas a chegada de outro filho, desta vez parecido com Ciro, obriga Osias a tomar uma decisão.

FONTE: Disponível em: <http://www.adorocinema.com/filmes/filme-24770/>. Acesso em: 25 jan. 2013.

Além disso, temos os casamentos endogâmico e exogâmico. O primeiro é permitido apenas entre os membros de um mesmo grupo social (tribo, etnia, poder econômico etc.). Já o segundo é resultado das várias interações que as pessoas podem estabelecer com os grupos sociais com os quais têm contato. Pressupõe-se, em cada uma das situações, que a relação matrimonial se dá entre pessoas de sexos diferentes. Contudo, nos últimos anos, os países desenvolvidos e em fase de desenvolvimento estão aprovando legalmente a união estável entre pessoas do mesmo sexo. Existem atualmente várias configurações matrimoniais, entretanto temos duas formas básicas: família conjugal e família consanguínea, sendo que ambas possuem três pertinências básicas:

a) ter filhos; b) garantir o bem-estar dos seus integrantes; ec) educá-los.

E o papel da Igreja? Do mesmo modo que em todas as sociedades o papel da família é indispensável, o papel da religião também o é. A religião representa, em todas elas, estabilidade, equilíbrio e obediência a certos preceitos e normas sociais. As noções de respeito, veneração e reverência também são decorrentes das religiões. Em cada religião há um local específico de culto e de adoração das

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suas divindades. As motivações e os anseios que levam as pessoas a procurar tais divindades são múltiplos e variados e, dentro de cada contexto social, possuem um sentido bem claro e definido.

Entretanto, é bom lembrar que o indivíduo religioso (genericamente falando) não procura necessariamente coisas concretas ou respostas definitivas, mas ele anseia por ordem e paz. De um modo geral, a religião funciona como abrigo e proteção diante das adversidades que a vida apresenta constantemente. Contudo, é importante ressaltar que a presença da religião no mundo ocidental é cada vez mais escassa, apesar dos vários movimentos ligados ao pentecostalismo. Por outro lado, os escândalos envolvendo pastores e padres (casos de desvios do dinheiro do dízimo, evasão de divisas ou de pedofilia) fizeram com que a credibilidade desta instituição diminuísse um pouco.

Apesar disso, a função da instituição religiosa prevalece e seu papel continua sendo o de orientar e admoestar as pessoas a agirem segundo valores e princípios morais, o que se caracteriza também como um sistema ideológico de controle social.

FIGURA 53 – DIVERSIDADE RELIGIOSA

FONTE: Disponível em: <http://pt.dreamstime.com/foto-de-stock-religi%C3%B5es-do-mundo-de-+eps,-pomba-image5820840>. Acesso em: 15 jan. 2013.

Além da família e da religião, há o papel do Estado. Todos nós estamos submetidos ao seu poder. Se, de um lado, podemos participar ou não de uma instituição religiosa, ou até mesmo nos declararmos ateus, não podemos escapar das obrigações e responsabilidades ligadas ao Estado ou à família. O mais interessante, no que se refere ao papel da instituição do Estado em nossa vida, é

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que sua presença é mais sutil, é invisível. Sabemos que estamos pagando, o tempo todo, vários impostos para que o Estado funcione e exerça a sua função. Mas o pagamento tributário quase sempre é imperceptível, pois quando adquirimos qualquer produto há uma carga embutida de impostos, que normalmente não nos é declarada.

Não obstante, é fundamental pensarmos que o Estado detém um papel importantíssimo, como afirma Durkheim, a saber, o de garantir a cada cidadão o devido amparo legal, na medida em que cada pessoa cumpre a sua parte. Segundo ele, "os principais deveres da moral cívica são, evidentemente, os que o cidadão tem para com o Estado e, reciprocamente, os que o Estado tem para com os indivíduos". (OLIVEIRA, 2010b, p. 131).

Ou seja, enquanto cada um de nós deve obediência ao Estado (pagar impostos, zelar pelos direitos pessoais e alheios e cumprir com seus deveres de cidadão), o Estado deve garantir a observância de nossos direitos básicos. Com base nesta ideia é que o CDC (Código de Defesa do Consumidor), a CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas) e o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), dentre outros, foram criados. Os órgãos que fiscalizam e zelam por estes direitos são responsabilidade do Estado. (DURKHEIM, 2002).

Já Weber (1989) afirma que o Estado, enquanto detentor do poder racional-legal burocrático, pode, para fazer valer o seu papel, utilizar-se da força coercitiva ou violenta para manter o seu status de mantenedor da ordem. Este poder, aliás, é legítimo, pois na ausência da paz ou da ordem será necessário o uso da violência, uma vez que a ideia weberiana de poder designa a probabilidade de impor a própria vontade dentro de uma relação social, mesmo contra toda resistência. Este poder é corroborado, como já dissemos, pelo próprio papel burocrático do Estado.

Em Marx, por outro lado, há uma clara ligação entre burguesia e Estado, pois na medida em que a burguesia se alia ao Estado, esta passa a comandar as suas ações. Sendo assim, a televisão e os outros órgãos de comunicação, por exemplo, servem à burguesia que, ideologicamente, comanda e ordena os órgãos de imprensa, outorgando-lhes o que é permitido ou proibido, isto é, vetando ou liberando o que pode ou não ser publicado nos meios de comunicação. A este estratagema Marx deu o nome de alienação, pois mesmo de modo involuntário, as pessoas consentem com esta ação arbitrária. (MARX, 1988). Além do aspecto ideológico, há o aspecto repressor do Estado. Neste caso, a polícia exerce um papel sobremaneira importante, pois sua ação está sempre voltada, como já afirmara Weber, a legitimar o seu papel de regulador da vida social. (WEBER, 1982).

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FIGURA 54 – FRASE DE TROTSKY

FONTE: Disponível em: <http://kdfrases.com/frase/129478>. Acesso em: 15 jan. 2013.

LEITURA COMPLEMENTAR

FAMÍLIA

A desigualdade entre homens e mulheres era intrínseca à família tradicional. Não me parece que se possa exagerar a importância disso. Na Europa, as mulheres eram propriedade de seus maridos ou pais - bens móveis, na forma definida pela lei. A desigualdade entre homens e mulheres se estendia obviamente à vida sexual. O duplo padrão sexual estava diretamente ligado à necessidade de assegurar continuidade na linhagem e na herança. Durante a maior parte da história, os homens fizeram um amplo, e por vezes, bastante ostensivo, uso de amantes, cortesãs e prostitutas. Os mais ricos tinham aventuras amorosas com servas. Mas os homens precisavam ter certeza de serem eles os pais dos filhos de suas mulheres. O que era exaltado nas moças respeitáveis era a virgindade e, nas esposas, constância e fidelidade.

Na família tradicional não eram só as mulheres que careciam de direitos: o

mesmo se dava com as crianças. A ideia de consagrar os direitos da criança na lei é, em termos históricos, relativamente recente. Em períodos pré-modernos, como hoje nas culturas tradicionais, as crianças não eram criadas no interesse delas próprias, mas para a satisfação dos pais. Poderíamos quase dizer que eram reconhecidas como indivíduos. Não é que os pais não amassem os filhos, mas importavam-se mais com a contribuição que eles davam para a tarefa econômica comum do que com eles próprios. Além disso, a taxa de mortalidade infantil era assustadora. Na Europa e nos Estados Unidos no século XVII, quase um quarto das crianças morria em seu primeiro ano. Quase 50% não chegavam aos dez anos de idade.

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Exceto para certos grupos cortesãos ou de elite, a sexualidade na família tradicional sempre foi dominada pela reprodução. Era uma questão de natureza e tradição combinadas. A ausência de contracepção eficaz significava que, para a maior parte das mulheres, a sexualidade estava, de maneira inevitável, estreitamente vinculada ao parto. Em muitas culturas tradicionais, inclusive na Europa Ocidental até o limiar do século XX, uma mulher podia ter dez ou mais gestações durante o curso de sua vida.

Por razões já apresentadas, a sexualidade era dominada pela ideia da virtude feminina. É comum pensar-se que o duplo padrão sexual é uma criação da Grã-Bretanha vitoriana. Na verdade, em uma versão ou outra, ele foi central em todas as sociedades não modernas. Envolvia uma concepção dualista da sexualidade feminina - uma clara distinção entre a mulher virtuosa por um lado e a libertina por outro. O aventureirismo sexual era considerado em muitas culturas um traço definidor da masculinidade. James Bond é, ou era, admirado pelo seu heroísmo tanto físico como sexual. As mulheres sexualmente aventureiras, em contraposição, foram quase sempre irrevogavelmente condenadas, a despeito do grau de influência que as amantes de certas figuras proeminentes possam ter alcançado. [...]

Em todos os países continua existindo uma diversidade de formas de família. Nos Estados Unidos, muitas pessoas, em particular imigrantes recentes, ainda vivem segundo valores tradicionais. A maior parte da vida familiar, porém, foi transformada pelo surgimento do casal informal e da união informal. O casamento e a família tornam-se o que denominei “instituições casca”: ainda são chamados pelos mesmos nomes, mas dentro deles seu caráter básico mudou. Na família tradicional, o casal unido pelo casamento era apenas uma parte, e com frequência não a principal, do sistema familiar. Laços com os filhos e com outros parentes tendiam a ser igualmente importantes, ou até mais, na condução diária da vida social. Hoje, o casal, casado ou não, está no cerne do que é a família. O casal passou a se situar no centro da vida familiar à medida que o papel econômico da família declinou e o amor, ou o amor somado à atração sexual, se tornou a base da formação dos laços de casamento.

Um casal, uma vez constituído, tem sua história própria e exclusiva, sua própria biografia. É uma unidade baseada em comunicação ou intimidade emocional. A ideia de intimidade, como tantas outras noções familiares que discuto neste livro, soa antiga, mas é de fato novíssima. Nunca, no passado, o casamento se baseou na intimidade - na comunicação emocional. Isso era sem dúvida importante para um bom casamento, mas não o seu fundamento. Para o casal, é. A comunicação é o meio de estabelecer o laço, acima de qualquer outro, e é a principal base para sua continuação.

Deveríamos reconhecer a notável transição que isso representa. As ideias de “união” e “não união” proporcionam agora uma descrição mais acurada da arena da vida pessoal que as de “casamento e a família”. Para nós a pergunta “você está tendo um relacionamento?” é mais importante que “você está casado?”

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A ideia de relacionamento é também surpreendentemente recente. Na década de 1960, ninguém falava de “relacionamentos”. Não se precisava disso, como não se precisava falar em termos de intimidade e compromisso. Na época o casamento era o compromisso, como o atesta a existência do casamento forçado.

Na família tradicional, o casamento se assemelhava um pouco a um

estado da natureza. Tanto para homens quanto para mulheres, era definido como um estágio da vida que se esperava que a ampla maioria atravessasse. Os que permaneciam de fora eram encarados com certo desprezo ou condescendência - em particular as solteironas, mas também o solteirão se o fosse por tempo demais.

Embora estatisticamente o casamento ainda seja condição normal para a maioria das pessoas, seu significado se transformou mais ou menos completamente. O casamento significa que um casal está vivendo uma relação estável, e pode na verdade promover esta estabilidade, uma vez que envolve uma declaração pública de compromisso. No entanto, ele não é mais a principal base definidora da união.

FONTE: GIDDENS, Anthony. Mundo em descontrole - o que a globalização está fazendo de nós. 6. ed. Rio de Janeiro: Record, 2007, p. 67-69.

3 ESTRATIFICAÇÃO SOCIAL E MOBILIDADEA palavra estrato significa camada. A ideia básica na qual a noção de

estratificação se assenta está na divisão social em camadas. Cada sociedade distribui ou define a posição de seus membros segundo critérios bem variados. Há vários tipos de estratificação (econômica, política, profissional) dentro de uma mesma sociedade, sendo que sua principal determinação se dá pela rentabilidade financeira (estratificação econômica).

Parece-nos evidente compreender que quando falamos em estratificação econômica, estamos falando do número de posses e bens que uma determinada pessoa ou grupo social possui. O critério de avaliação da posição do indivíduo é o acúmulo de bens. Quanto maior for o acúmulo, maior será a sua posição dentro do estrato social. Por outro lado, como já vimos em Marx, a estratificação política pode ser considerada como aquela que estabelece uma relação entre os que detêm o poder e os que se submetem a este poder.

Normalmente, o poder econômico e o poder político estão coligados. Já a estratificação profissional acontece na sobreposição entre as profissões, considerando que as de maior prestígio e salário possuem posições mais altas do que as de menor reconhecimento e salário. Sendo assim, podemos considerar, como vimos anteriormente, que um médico é mais respeitado e valorizado do que um gari, o que significa dizer, em breves palavras, que o médico é mais importante do que o gari. Não estamos aqui, de modo algum, desvalorizando o gari. Mas socialmente falando, o médico possui uma posição de maior destaque que o gari. E sobre isso não podemos discordar.

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Contudo, atualmente, há uma pergunta muito interessante a se fazer: a qual classe, estrato ou camada eu pertenço? De um modo geral, o montante de dinheiro acumulado e o grau de escolarização são critérios muito comuns usados na hora de definir a classe à qual se pertence.

Entretanto, Charles Mills (1976) afirma que as ideias de status social e poder também devem ser computadas no momento da fixação da posição social do indivíduo. Mas como isso acontece? Além do dinheiro e da escolarização, é essencial saber qual é o nível de autonomia do indivíduo no trabalho e seu respectivo poder de decisão e persuasão. Segundo ele, isso demarcaria o quanto uma pessoa pertenceria a uma classe e não a outra.

É por isso que, para ele, surge o conceito de nova classe média: profissionais que teriam uma formação intelectual que os habilitaria para o desenvolvimento de atividades mais complexas e, por conseguinte, mais bem remuneradas. Entretanto, esta classe não deixaria de ser assalariada, isto é, o trabalhador intelectual desenvolve outras funções, mas continua unido à classe dos trabalhadores. Porém, socialmente, os trabalhadores manuais e intelectuais não se veem como iguais. Muito pelo contrário, eles se observam, reciprocamente, como protagonistas e antagonistas da história. As próprias empresas estipulam hierarquias bem definidas entre os dois grupos, gerando, muitas vezes, desavenças e conflitos entre eles. (MILLS, 1976).

Apesar disso, esta ideia de estratificação se baseia, como acabamos de ver, em um princípio básico: a escolarização, o que nos leva a concluir que, de um modo geral, as pessoas tentam galgar novos e melhores postos de emprego na medida em que aperfeiçoam o seu conhecimento e o seu modo de compreender o mundo. Contudo, infelizmente, as competições dentro do mundo das empresas geram dicotomias gritantes na dualidade entre o trabalhador manual e o trabalhador intelectual. Concluindo esta ideia, verificamos que a estratificação no mundo capitalista não é estanque ou imóvel (como pode ser verificado no mundo medieval ou oriental ainda hoje), mas é claramente móvel, o que caracteriza a noção de mobilidade social.

Assim sendo, a mobilidade é uma característica própria do nosso tempo. Esta oscilação da posição social demonstra que as pessoas podem tanto ascender quanto descender socialmente, isto é, as pessoas podem tanto subir na vida quanto descer na vida, dependendo de seu empenho, bem como de outros fatores, tais como econômicos, sociais e trabalhistas. Todavia, é importante salientar que o sucesso desta mobilidade depende do indivíduo e não do grupo, até mesmo porque a ascensão social sempre ocorre de modo individual e não grupal. Dentro de um grupo de operários, determinadas pessoas podem desejar, por meio da educação formal, subir certos degraus dentro da empresa na qual trabalham, mas isso não significa que todos conseguirão e nem mesmo que receberão apoio dos chefes das empresas. (BAUMAN, 2010).

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Porém, no Brasil, pouco se fala sobre a questão do problema da mobilidade descendente, pois é um fenômeno que não desperta muito o interesse dos estudiosos da área. Normalmente, os problemas que desencadeiam tal "queda" são atribuídos a possível incompetência ou ingerência do “caído”, sem ponderar para os fatores externos, tais como: crises financeiras, altos impostos ou deslealdade comercial. (BERLATTO, 2011).

Diante disso, também não podemos nos esquecer dos vários mitos que envolvem a ideia de sucesso no mundo do trabalho, pois nem sempre esta ideia está ligada apenas à competência do sujeito. É preciso avaliar que fatores sociais de exclusão pesam muito nesta análise. Há, em nosso país, uma difusão de que vivemos sem discriminação, sem preconceito, que somos racialmente democráticos, que nosso país é bonito por natureza, que o Brasil é o país do futuro, que Deus é brasileiro.

Estes mitos falseiam a realidade, distorcendo-a ideologicamente. Vejamos o que Octávio Ianni afirma sobre isso:

A história do pensamento brasileiro está atravessada pelo fascínio da questão nacional. No passado e no presente, são muitos os que se preocupam em compreender os desafios que compõem e decompõem o Brasil como nação. E essa preocupação se revela particularmente acentuada nas conjunturas assinaladas e simbolizadas pela Declaração de Independência em 1822, Abolição da Escravatura (1888) e Proclamação da República (1889) e Revolução de 1930. Esse tema aparece nas produções de publicistas, cientistas sociais, filósofos, artistas. Em diferentes gradações, em várias linguagens, uns e outros passam por ele. A questão nacional está sempre presente, como desafio, obsessão, impasse ou incidente. (IANNI, 2004, p. 24) (grifo nosso).

Como vimos, afirmar que o Brasil é um país de todos nos parece demagógico demais, pois sabemos que, dentre os inúmeros fatores controversos da nossa história, a cor da pele ainda é um fator preponderante no momento em que avaliamos as pessoas. Piadas, chacotas e charges estão carregadas desta visão estereotipada do Brasil.

Como afirma Sírio Possenti:

Se você diz a alguém que estuda piadas, o primeiro efeito que produz ainda é o riso. É uma pena que seja assim, porque as piadas são de fato um tipo de material altamente interessante. Por várias razões. Em primeiro lugar, as piadas são interessantes para os estudiosos porque praticamente só há piadas sobre temas que são socialmente controversos. Assim, sociólogos e antropólogos poderiam ter nelas um excelente corpus para tentar reconhecer (ou confirmar) diversas manifestações culturais e ideológicas, valores arraigados. [...] Em segundo lugar, porque piadas operam fortemente com estereótipos. Assim, fornecem um bom material para pesquisas sobre "representações", por exemplo. Possivelmente, qualquer estudioso tenha o direito de afirmar que tais representações são grosseiras demais para revelarem qualquer fato significativo. Mas estará enganado. De fato, elas revelam que, frequentemente, discursos operam mesmo com

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representações grosseiras, estereotipadas. E que, portanto, muitas ações sociais são realizadas com esse frágil fundamento - não dar emprego a determinados tipos de pessoas por causa de seu sotaque ou da cor de sua pele ou do seu tamanho, por exemplo. [...] Em terceiro lugar, as piadas são interessantes porque são quase sempre veículo de um discurso proibido, subterrâneo, não oficial, que não se manifestaria, talvez, através de outras formas de coletas de dados, como entrevistas. Outra face da mesma característica é que as piadas veiculam discursos não explicitados correntemente (ou, pelo menos, discursos pouco oficiais). [...] (POSSENTI, 1998. p. 25-6.)

Lembremos de que a chacota racial existe há muito tempo no Brasil e no mundo. Mas ela se agravou no Brasil do século XIX, quando os negros foram alforriados e abandonados à sua própria sorte. As políticas de branqueamento foram propaladas, pois se almejava que o país imitasse o modelo civilizatório europeu de sociedade. O homem branco traria progresso, ordem, sucesso e emancipação para o Brasil. Era preciso riscar do mapa e da memória toda a atrocidade cometida contra os negros, através da torpe substituição da mão de obra escrava (agora liberta) pela mão de obra qualificada do europeu. Mas, ao invés de riscá-la, ela foi jogada para debaixo do tapete. E justamente por este motivo, somente em nossa atualidade (dos 1990 para cá) os debates acerca dos movimentos sociais (e das nossas heranças históricas) começaram a se intensificar. Rever o conceito que temos de estratificação e de mobilidade é algo inadiável para os nossos dias, pois o modo como elas se dão, genericamente falando, é, por sua própria raiz, injusto ou desonesto.

NOTA

Apesar de o preconceito racial ser, veladamente, muito comum no Brasil, ele é proibido por lei desde 1951, com a criação da Lei Afonso Arinos (Lei n◦ 1390/51, de 3 de julho de 1951).

4 MOVIMENTOS SOCIAISComo pudemos ver a partir das abordagens realizadas até aqui, a vida

humana é essencialmente coletiva e marcada pelos interesses e disputas dos indivíduos na busca de atingirem melhores posições dentro da sociedade em que vivem. Contudo, isto produz inúmeros distúrbios e contradições, o que pode provocar o descontentamento de muitos membros desta mesma sociedade, que eventualmente estarão dispostos a se organizar e a buscar a superação da situação na qual se julgam erroneamente colocados. A esta organização e busca de um objetivo comum, de modo relativamente duradouro, por parte de um número significativo de indivíduos de uma sociedade, dá-se o nome de movimento social.

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Em todas as sociedades é possível observar a existência de movimentos sociais, que têm as mais variadas reivindicações. Os movimentos sociais têm uma função determinante na transformação das sociedades e nas conquistas de direitos para os cidadãos, cujos perfis sofrem mudanças a cada dia, de modo que novas necessidades surgem constantemente. Em contrapartida, haverá indivíduos dispostos a perpetuarem o status quo, visto que a organização atual da sociedade lhes é favorável. Desse modo, também acabam constituindo um movimento social com a finalidade de manter a sociedade do jeito que está. Em vista do exposto, fica evidente que os movimentos sociais podem ter distintas motivações de organização.

Vejamos a seguir como os movimentos sociais podem ser classificados, segundo Lakatos (1999).

FIGURA 55 – INTERDEPENDÊNCIA SOCIAL

FONTE: Disponível em: <http://www.ufrgs.br/vies/comunicacao/a-globalizacao-os-movimentos-sociais-e-as-redes-de-comunicacao/>. Acesso em: 15 jan. 2013.

a) Migratórios: são constituídos a partir da migração de grupos de pessoas devido à insatisfação com o local de origem. Ex.: migração dos judeus para diferentes partes do mundo.

b) Progressistas: um segmento da sociedade que almeja mudanças positivas dentro das instituições nas quais atua. Ex.: sindicatos de trabalhadores.

c) Conservacionistas: grupos que estão dispostos a preservar o status atual da sociedade, pois a situação lhes é favorável. Ex.: Grupos contrários à legalização do aborto, divórcio, direitos feministas.

d) Regressivos: são movimentos descontentes com o resultado das mudanças, desejando um retorno à condição anterior da sociedade, pois as transformações lhes parecem desfavoráveis. Ex.: Ku-Klux-Klan, contrários aos direitos dos negros; movimentos religiosos contrários à tecnologia.

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e) Expressivos: organização de pessoas dispostas a mudanças de percepção e não da realidade propriamente dita. Elas estão dispostas a olhar o mundo de outro modo e não, necessariamente, transformá-lo. Ex.: movimentos religiosos que pregam o afastamento da realidade e a transformação interior dos indivíduos.

f) Utópicos: são movimentos que criam uma visão ideal da sociedade. O seu objetivo é a edificação de uma sociedade perfeita, levando os seus integrantes à fuga e constituição de comunidades isoladas ou ao conflito para a instauração da nova sociedade. Ex.: revoluções socialistas e movimento hippie.

f) Reformistas: os movimentos reformistas têm o propósito de introduzir modificações inclusivas no seio da sociedade. Os movimentos reformistas normalmente se confrontam com os movimentos conservacionistas ou regressivos. Ex.: movimentos feministas.

g) Revolucionários: os movimentos revolucionários propõem mudanças radicais na estrutura e organização da sociedade. Eles são motivados por descontentamentos e não consideram que simples reformas sejam suficientes para resolver os problemas sociais. Os movimentos revolucionários são uma reação a sistemas totalitários, como foi o caso da ditadura militar no Brasil e o stalinismo na antiga URSS. Quanto mais intensa é a ação autoritária, maior é o desejo de mudança que desencadeia o surgimento de movimentos revolucionários.

LEITURA COMPLEMENTAR 2

A SOCIEDADE ESTAMENTAL

Hans Freyer

O princípio estrutural "sociedade estamental" deve ser entendido (num sistema concreto de Sociologia) não como a lei fundamental e eterna de toda cultura humana - no sentido em que todos os românticos do passado e do presente querem fazê-lo, mas como uma fase determinada na história das formas sociais de dominação; como um elemento na série das estruturas sociais fundamentais.

Quando uma forma de dominação se afirma, convertendo-se num sistema duradouro, isto habitualmente se faz acompanhar da concessão, aos diversos grupos parciais, de determinados direitos, possibilidades de aquisição, bens culturais e atividades, tudo isso de acordo com um esquema fixo. As partes heterogêneas de que se compõe a sociedade vão crescendo num sistema fixo de privilégios e, sobretudo, num sistema fixo de atividades sociais necessárias, adquirindo, em razão desse fato, um sentido objetivo para o corpo social na sua totalidade.

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A firmeza do edifício social depende de que as funções atribuídas a esses grupos (que chamaremos "estados" ou "estamentos") sejam visivelmente necessárias para o todo; depende também de que a relação entre os estamentos e seus deveres sociais seja firme, orgânica, constitutiva de tradição e de força educadora [no feudalismo, o dever do estamento religioso, ou seja, do clero, era intermediar a relação entre Deus e os fiéis, o dever do estamento aristocrático era fazer a guerra e assim por diante].

Essa estruturação da sociedade, segundo privilégios específicos e atividades atribuídas, realiza-se naturalmente, "de cima para baixo"; ou seja, é estabelecida pelos que detêm a dominação. É um processo que começa em cima e se estende até embaixo. As forças ativas dentro do corpo social, os senhores, que são sempre a minoria, têm que delimitar-se, isto é, têm que configurar-se como "estamento", de modo a manter em vigor aquele mundo que fundamenta a sua dominação.

Todos os "estados" [estamentos] autênticos se delimitam; por isso, cuidam de seu hermetismo [isto é, de seu caráter fechado]. Basta considerar o papel relevante que desempenha, em todas as sociedades estamentais, o casamento e a luta em torno dele.

O meio típico para conseguir o hermetismo de um estamento consiste na monopolização de determinados encargos sociais. O serviço guerreiro e sacerdotal, o desempenho de cargos públicos e a propriedade territorial são, de ordinário, os setores que os estamentos dominantes reservam para si. Do mesmo modo, outras posições vitais, ou profissões (comércio, trabalho remunerado), são consideradas incompatíveis com esses estamentos.

Sobre a base dessas atividades e profissões reservadas aos diferentes "estados" se desenvolve também uma forma especial de vida, um conceito especial de honra e alguns costumes sociais também especiais. Esse fato, por sua vez, contribui para a concreção de um estrato social e para sua conversão em estamento. [...]

A longo prazo, nem os meros privilégios nem um simples predomínio econômico bastam para manter de pé uma ordem estamental. Estamentos de nível histórico só existem quando há tarefas autênticas e básicas que podem mobilizar determinadas energias e dar à luz um determinado tipo de homem. [...]

O princípio estamental pode penetrar todo o corpo social, desde cima, e só quando assim ocorre pode-se dizer que se realizou plenamente a lei estrutural da sociedade estamental. Nesse momento teremos diante de nós um claro sistema de estratos sociais, cada um dos quais se incumbe de sua função especial, dentro do todo, e cada um dos quais desenvolve, no desempenho desta incumbência especial, sua honra e sua atitude social específica [...].

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Não obstante a estrutura de uma sociedade estamental traz também em si, como toda realidade social, uma dinâmica histórica. [...] A dinâmica histórica consiste, em primeiro lugar, em que ocorram constantemente na sociedade estamental processos sociais de ascensão e deslocamento. Por mais que o hermetismo seja uma das características essenciais do estamento, os estamentos dominantes precisam receber em seu seio novas forças procedentes dos estratos inferiores. A sabedoria instintiva de uma aristocracia consiste em absorver somente, mas sempre, aqueles elementos que podem ser inseridos no estamento e aqueles em que pode imprimir sua forma peculiar de vida.

É muito importante ter em conta que esses processos de ascensão social, pelos quais penetram no espaço fechado dos estamentos dominantes a riqueza ou o talento de pessoas da burguesia, não dissolvem nem abalam a estrutura estamental; ao contrário, contribuem para fortalecê-la. [...] Todas as grandes aristocracias da história realizaram com habilidade essa prática de inserir em seu seio talentos ou riquezas de origem plebeia [Roma] ou burguesa [Inglaterra, França etc].

Além dessa dinâmica [ocorrem também lutas] entre "estados" [estamentos], nas quais os "estados" inferiores lutam unidos contra os privilégios dos "estados" dominantes. Todo corpo social que repousa sobre a desigualdade de direitos e sobre a dominação de um grupo sobre outro traz sempre, em si, o germe de distúrbios e rebeliões. Com respeito à forma e ao curso das lutas entre os "estados", é possível formular uma série de traços típicos e, inclusive, leis.

Tanto os objetivos da luta como a tática que nela se emprega, e as possibilidades de seu resultado, se repetem uma ou outra vez no curso da história; sob a única condição de que se trate verdadeiramente de luta entre estamentos, isto é, de movimentos sociais dentro de uma ordem social estamental [...] Quanto ao seu objetivo, as lutas entre "estados" tendem sempre a modificar, em pontos concretos, a atribuição de privilégios, a arrebatar ao estamento vizinho determinados direitos políticos ou sociais, e a recuperar direitos perdidos ou a ampliar os que se possuem.

Enquanto nos movemos no terreno da ordem estamental, as lutas sociais não têm nunca a intenção nem o efeito de contestar a estrutura estamental, ou de modificar o princípio que rege a estrutura social do todo. Na luta só se perseguem e só se conseguem correções de limites entre os estamentos.

FONTE: FREYER, Hans. A sociedade estamental. In: IANNI, Octávio. Teorias de Estratificação Social. SP: Cia. Editora Nacional, 1972, p. 168-171.

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RESUMO DO TÓPICO 3

Neste tópico vimos:

• Os conceitos básicos da sociologia na sua inter-relação com outras ciências e com a sociedade de um modo geral.

• Conceitos como globalização, estratificação social, status e papel social, instituições sociais são ímpares para o estudo e a análise da sociedade. Compreender estes conceitos é inteirar-se da sociologia.

• A assimilação destes conceitos facilitará ao(à) acadêmico(a) a visão de mundo que este material apostilar quer oferecer, pois mais do que tornar nosso(a) acadêmico(a) aficionado pela disciplina, queremos que ele compreenda o papel imprescindível desta ciência para a compreensão do nosso mundo contemporâneo, pois além da “tecnologia e da sua aplicabilidade”, é necessário que existam pessoas que questionem e argumentem sobre o papel da tecnologia em nossas vidas. E esta é uma função da sociologia.

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1 O conceito de movimento implica a ideia de mudança e transformação, de que algo precisa modificar-se, alterar-se. Entretanto, segundo a classificação que vimos, há movimentos que desprezam a ideia de alteração. Diante disso e de seus conhecimentos sobre a noção de movimento social, redija uma redação abordando a problemática da estatização (aquilo que não se altera) das mudanças sociais no Brasil e no mundo.

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AUTOATIVIDADE

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UNIDADE 3

PENSAMENTO FILOSÓFICO E SOCIAL NO BRASIL

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

PLANO DE ESTUDOS

Esta unidade tem por objetivos:

• estimular nosso(a) acadêmico(a) de Sociologia e Filosofia a pensar sobre a realidade nacional com “olhos mais críticos e atentos”, fazendo-o desco-brir o quão complexa e truncada é a nossa História Nacional;

• incitar um debate acadêmico mais aprofundado sobre o surgimento da so-ciologia no Brasil, perpetrando em nossos estudantes um interesse sincero pelo estudo de alguns pensadores nacionais, principalmente os da segun-da metade do século XX, tais como: Florestan Fernandes e Darcy Ribeiro;

• incentivar a aplicação de teorias sociológicas no entendimento da reali-dade nacional, ou seja, compreender que os estudos sociológicos podem ser aplicados em situações cotidianas, tais como: o impacto do uso da lin-guagem (e o entendimento de seus múltiplos sentidos), a interpretação de fatos sociais, a implementação de políticas públicas e a compreensão do impacto dos movimentos sociais para a definição de uma sociedade moderna e cidadã;

• fomentar o estudo da sociologia e da filosofia e a criação de grupos univer-sitários de estudos e debates sociofilosóficos.

Esta unidade está dividida em três tópicos e em cada um deles você encontra-rá atividades visando à compreensão dos conteúdos apresentados.

TÓPICO 1 – FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA HISTÓRIA DO BRASIL

TÓPICO 2 – FILÓSOFOS E SOCIÓLOGOS BRASILEIROS DE DESTAQUE

TÓPICO 3 – QUESTÕES SOCIAIS BRASILEIRAS NA ATUALIDADE: CRI-MINALIDADE, SOCIOLOGIA RURAL, MOVIMENTOS SO-CIAIS, RELIGIÃO E LIBERTAÇÃO

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TÓPICO 1

FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA

HISTÓRIA DO BRASIL

UNIDADE 3

1 INTRODUÇÃOCaro(a) acadêmico(a), seja bem-vindo(a) à Unidade 3.

Nesta unidade queremos fazer a você uma proposta que, num primeiro momento, pode aparentar ser um pouco inusitada: estudar a sociologia brasileira. Muitas pessoas desconhecem o fato de que existe uma grande produção intelectual no Brasil, pois normalmente, quando falamos de pensadores da sociologia, nos referimos a estrangeiros, como Marx, Durkheim, Bauman e Weber.

Contudo, é assaz necessário recordar que durante o período em que estudamos a Unidade 2, muitos pensadores brasileiros foram citados, dentre eles: Octávio Ianni, Pérsio de Oliveira, Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Euclides da Cunha e Darcy Ribeiro.

Nesta unidade, especificamente neste tópico, queremos estudar com você, caro(a) acadêmico(a), um pouco do entorno histórico que deu início à ideia de nação brasileira. Mas é importante salientar que a História do Brasil não é tão linda quanto afirma a canção do nosso Hino Nacional (lembrar-se dos mitos nacionais abordados na Unidade 2).

Não obstante, a experiência da emancipação do povo brasileiro do poderio português ocorreu sem luta, sem sangue e, talvez, até mesmo sem muita honra. Aliás, estudar a fundo a História do Brasil é uma tarefa um pouco desagradável, principalmente àqueles que se julgam ufanistas. Do período colonial até os nossos dias escancara-se uma história de usurpação e inglória, que não reflete o atual slogan de que “o Brasil é um país para todos”. As mesmas experiências vividas pelos trabalhadores na Inglaterra do século XVII (Revolução Industrial) e dos artesãos na França do século XVIII (Revolução Francesa) ainda estão presentes em nosso país.

Falar sobre o Brasil é uma provocação sempre latente, pois é muito difícil compreender tantas disparidades dentro de um único espaço territorial. Isso não significa dizer que tenhamos uma visão totalmente pessimista sobre a realidade nacional. Apenas queremos afirmar que um povo que não conhece, de fato, a sua história, jamais será totalmente livre e independente.

Tendo cunhado tal afirmação, é muito fácil assimilar porque as pessoas em nosso país adoram “copiar” modelos estrangeiros (não estamos esquecendo os

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UNIDADE 3 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E SOCIAL NO BRASIL

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efeitos da globalização), pois, ao desconhecer ou compreender a história nacional, as pessoas seguem estereótipos globais.

Além disso, é assaz necessário recordar o poder que a mídia dentro do Brasil exerce sobre todos nós enquanto indivíduos, principalmente porque as regras publicitárias são muito frouxas quanto à programação televisiva e seus “produtos comerciais”. Contudo, queremos despertar neste momento o interesse de você, caro estudante, pela leitura deste texto. Esperamos que ele aguce em você a mesma paixão pelo saber que ele sempre despertou em nós.

Bem-vindo(a) a bordo.

2 DO PERÍODO COLONIAL ATÉ OS DIAS ATUAISSegundo alguns historiadores, o Brasil enquanto colônia portuguesa, no

início dos anos 1500, não fora descoberto - como muitos costumam afirmar, mas, na verdade, fora "achado". O termo "achar" aqui se refere, de um certo modo, à ideia de que os navegantes da esquadra de Cabral, por mero acaso do destino, encontraram esta terra.

Este "achamento" é o princípio de uma invasão e apropriação indevida do povo português sobre uma terra que já possuía donos: os índios. Porém, há no raciocínio europeu da época uma interpretação muito curiosa sobre a noção de propriedade da terra: só pode ser dono de um determinado espaço territorial quem possuir uma "escritura" comprovando tal propriedade. Esta interpretação já ocorrera no processo de colonização dos EUA pelos ingleses, pois na medida em que os ingleses tomavam posse das terras americanas, os índios eram dizimados ou expulsos de suas propriedades.

Aqui nasce um debate sociológico muito profícuo: a noção de propriedade se baseia em sua exploração ou usufruto? A ideia indígena, de um modo geral, se fundamenta numa visão de usufruto e de aproveitamento da terra para a própria sobrevivência e subsistência. "O índio é uma planta do mundo. O índio é da terra e a terra é do índio". Os "dois mundos" são indissociáveis para o indígena. Não há sobreposição, há apenas correlação.

Por outro lado, a visão do europeu é de exploração. Os portugueses não vieram ao Brasil para construir um paraíso, uma vida nova, uma nova terra. Eles vieram apenas para "achar" o paraíso e, por meio de sua exploração, construir uma nova vida em Portugal.

Resumidamente, o primeiro século da "descoberta" do Brasil deu-se nestes modos:

a) O processo de escambo de mercadorias: como o índio desconhecia o valor real dos bens naturais, ele trocava o pau-brasil por espelhos, perfumes, armas de fogo etc. O português aproveitou-se da ingenuidade do índio para saqueá-lo.

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TÓPICO 1 | FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA HISTÓRIA DO BRASIL

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b) A submissão do índio à cultura europeia: o índio era um ser desprovido de "cultura, bons costumes, religião". O índio deveria ser catequizado, educado, cultificado. Ele deveria aprender a usar vestes, rezar em latim, falar em português.

c) A escravização do índio: além de toda imposição cultural, ele deveria "libertar-se do ócio improdutivo" e transformar o seu modo de vida, trabalhando dentro de um sistema escravista para o homem branco, principalmente na produção de cana-de-açúcar.

FIGURA 56 – ESCRAVIDÃO INDÍGENA NO BRASIL

Spix e Martius, Negociantes contando índios; Viagem pelo Brasil. 3º vols.

FONTE: Disponível em: <http://www.infoescola.com/brasil-colonia/escravidao-indigena/>. Acesso em: 15 jan. 2013.

DICAS

Sugestão de filme: A Missão

No final do século XVIII, Mendoza (Robert de Niro), um mercador de escravos, fica com crise de consciência por ter matado Felipe (Aidan Quinn), seu irmão, num duelo, pois Felipe se envolveu com Carlotta (Cherie Lunghi). Ela havia se apaixonado por Felipe e Mendoza não aceitou isto, pois ela tinha um relacionamento com ele. Para tentar se penitenciar, Mendoza se torna um padre e se une a Gabriel (Jeremy Irons), um jesuíta bem intencionado que luta para defender os índios, mas se depara com interesses econômicos.

FONTE: Disponível em: <http://www.adorocinema.com/filmes/filme-2152/>. Acesso em: 15 jan. 2013.

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UNIDADE 3 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E SOCIAL NO BRASIL

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Caro(a) acadêmico(a), o modus vivendi do indígena é o de subsistência, o seu modo de se relacionar com a Mãe-Terra é outro. Agora, a sua vida passa por uma total reviravolta. Ele é forçado a abandonar quem ele é para ser o que ele não quer ser. O sistema de trabalho é totalmente ultrajante e faz com que muitos índios prefiram a morte.

Outrossim, é interessante verificar que esta visão etnocêntrica não é algo que foi totalmente superado pelo homem branco em nossos dias.

Leia o texto que segue:

PROCURADORIA DENUNCIA EMPRESÁRIOS SUSPEITOS DE MANTER ÍNDIOS EM CONDIÇÃO DE ESCRAVIDÃO

O Ministério Público Federal em Joaçaba (SC) denunciou dois

empresários suspeitos de manter 60 trabalhadores indígenas em condições análogas à de escravos no município de Herval do Oeste.

Segundo o Ministério Público, os dois empresários utilizaram um aliciador de mão de obra para atrair vários indígenas da terra indígena Chapecó, no município de Ipuaçu-SC.

Os índios eram contratados para trabalhar com corte e desgalho de pinus e eucalipto em uma propriedade rural em Herval do Oeste. Os trabalhadores não tinham condições mínimas de higiene, segurança e alimentação.

Conforme a denúncia, os índios viviam em um barraco sem energia elétrica, sem camas e com goteiras. Para dormir, alguns utilizavam espumas sobre estrados de madeira e outros dormiam no chão. No inverno, passavam muito frio e no verão precisavam queimar panos dentro do barraco para espantar mosquitos e insetos.

Os índios kaingangs não tinham água tratada, sanitários ou chuveiro. Tomavam banho, lavavam a roupa e bebiam água do mesmo açude, que ficava próximo ao barraco. A comida era trazida semanalmente pelo aliciador.

Ainda segundo a denúncia, a jornada semanal imposta aos indígenas era de 53 horas. Eles também não possuíam nenhum equipamento de segurança e até mesmo as botas utilizadas no serviço eram cobradas dos trabalhadores.

De acordo com a Procuradoria, apesar de não serem impedidos de deixar o local, os índios que ficavam por último na fazenda somente recebiam quando aqueles que foram liberados retornassem ao local. Desta forma, os proprietários garantiam a permanência de um número mínimo de trabalhadores na propriedade.

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TÓPICO 1 | FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA HISTÓRIA DO BRASIL

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Os dois empresários e o aliciador foram denunciados pelo crime de redução de trabalhador à condição semelhante à de escravo, com a agravante de serem as vítimas integrantes de etnia kaingang. Os dois empresários foram denunciados, ainda, pelo crime de omitir anotação de contrato em Carteira de Trabalho. Juntas, as penas variam de cinco a 18 anos de prisão.

Os denunciados estão soltos e responderão o processo em liberdade. Os nomes dos acusados não foram divulgados pelo Ministério Público.

FONTE: Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u609919.shtml>. Acesso em: 5 jan. 2013.

Como você pôde perceber, a visão etnocêntrica de que o homem branco é

superior às outras etnias ainda perdura em nossos dias. Além disso, é importante verificar que o índio, no período colonial, não se adaptou ao sistema de trabalho imposto pelos europeus. Sendo assim, é preciso encontrar outro grupo de pessoas que estejam "dispostas" a trabalhar. É aí que surge um novo filão de negócios para um bom grupo de "empresários portugueses". Um negócio que durará séculos e que será a maior mancha na história da colonização portuguesa no Brasil: a escravidão africana.

DICAS

Sugestão de vídeo/música no Youtube: Racismo é burrice, de Gabriel o Pensador. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=j5UKCOGWacg>.

O sistema escravocrata era muito rentável para os portugueses, pois na medida em que os negros eram comprados como mercadorias na África a preços módicos, os mesmos eram vendidos por preços muito superiores no Brasil.

Os colonizadores adquiriam estes homens e mulheres para o desenvolvimento de atividades muito variadas. Contudo, a maior concentração deste pessoal era carreada para a atividade agrícola. Antes, porém, é importante destacar que dentro da África havia um sistema de escravização também, porém, bem diferente do sistema português.

Alguns negros eram prisioneiros de guerra e outros ainda trabalhavam como "escravos" para outros homens para a quitação de dívidas. Contudo, o tratamento dispensado a estes possíveis escravos não era tão desumano. É muito provável que a maneira de tratamento entre eles era "igual".

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UNIDADE 3 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E SOCIAL NO BRASIL

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Todavia, quando o português aportou em solo africano pela primeira vez, sua intenção era bem clara: utilizar o negro para o desenvolvimento de atividades laborais (as mais diversas possíveis), mas o negro não seria visto mais como um sujeito portador de direitos e deveres (ou seja, como um cidadão civil). Ele, ao contrário, será visto como uma mercadoria que pode ser posta no mercado e comercializada como qualquer outro objeto.

Sua vida como ser humano, a partir de então, será cancelada, negada e suprimida. A experiência de saída de sua terra natal e de seus costumes peculiares será violenta e criminosa. Atualmente, mesmo após 400 anos da ocorrência destes fatos, as marcas permanecem nos rostos de muitos negros "brasileiros".

A intenção de maximizar os lucros e limitar o número de proprietários foram as razões para utilização da mão de obra escrava. Foram escravizados os ameríndios e trazidos os negros africanos, que acabaram por compor a mão de obra predominante na economia açucareira. Além da exploração da força de trabalho, os portugueses lucravam com o tráfico dos negros para o Brasil. O negro chegava ao Brasil, depois de adquirido na África, pela prática do escambo com os chefes dos grupos tribais: em troca de quinquilharias, negros capturados de outras tribos eram entregues aos brancos. Os traficantes também, muitas vezes, incendiavam aldeias africanas, aprisionando tantos negros quanto pudessem. Trazidos em navios denominados de tumbeiros, cerca de 40% da "carga" perecia. Mesmo assim, os lucros com esse "negócio" eram muito vantajosos. (PRAZERES, 2008, p. 18).

FIGURA 57 – ESCRAVOS NEGROS DENTRO DOS TUMBEIROS

FONTE: Disponível em: <http://portaldoprofessor.mec.gov.br/fichaTecnicaAula.html?aula=7241>. Acesso em: 5 jan. 2013.

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DICAS

Sugestão de filme: Quanto Vale ou é por Quilo?

Uma analogia entre o antigo comércio de escravos e a atual exploração da miséria pelo marketing social, que forma uma solidariedade de fachada. No século XVII, um capitão-do-mato captura uma escrava fugitiva, que está grávida. Após entregá-la ao seu dono e receber sua recompensa, a escrava aborta o filho que espera. Nos dias atuais, uma ONG implanta o projeto Informática na Periferia em uma comunidade carente. Arminda, que trabalha no projeto, descobre que os computadores comprados foram superfaturados e, por causa disto, precisa agora ser eliminada. Candinho, um jovem desempregado cuja esposa está grávida, torna-se matador de aluguel para conseguir dinheiro para sobreviver.

FONTE: Disponível em: <http://www.adorocinema.com/filmes/filme-110753/>. Acesso em: 5 jan. 2013.

Este processo escravocrata perdurou por dois séculos em nosso país, até a iminência da Proclamação da República Federativa do Brasil. O fim da escravidão ocorre no Brasil por volta de 1888. Entretanto, alguns pensadores tiveram uma importância muito grande neste processo de abolição. No Brasil, Joaquim Nabuco pode ser considerado, quiçá, o de maior destaque, apesar de suas intenções nos levarem a possíveis interpretações duvidosas.

Segundo ele, o Brasil só se tornaria verdadeiramente independente e emancipado na medida em que imitasse o estilo europeu de civilização.

NOTA

Caro(a) acadêmico(a), abramos um parênteses. É possível perceber o quanto a nossa história é contraditória: os colonizadores europeus foram extremamente impositivos e destrutivos no seu método de posse da terra; ao mesmo tempo, o seu “estilo moderno de civilização” deve ser imitado, pois, por meio desta imitação, a sociedade brasileira será, de fato, autônoma e independente. É difícil engolir, não é mesmo? Mas os fatos assim se sucederam naquela época.

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UNIDADE 3 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E SOCIAL NO BRASIL

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Entretanto, esta ideia (da abolição) esteve muito presente neste momento da História do Brasil, pois a defesa de Nabuco pelos ideais europeus inspirou-se sobremaneira na Revolução Francesa que ocorrera no século XVIII. O negro era visto como mercadoria, como objeto, como propriedade do dono de engenho/fazendeiro, em suma, ele não era cidadão, não possuía direitos.

Deste modo, ele deveria passar por um processo de libertação concreta e jurídica. Ser considerado como igual perante a lei, ser tratado com dignidade e valor. Mas, como sabemos, isso ocorreu do ponto de vista jurídico, mas do ponto de vista concreto, não.

Como Nabuco afirma:

Escravidão e indústria são termos que se excluíram sempre [...] O espírito da primeira, espalhando-se por um país, mata cada uma das faculdades humanas, de que provém a indústria: a iniciativa, a invenção, a energia individual; e cada um dos elementos de que ela precisa: a associação de capitais, a abundância de trabalho, a educação técnica dos operários, a confiança no futuro. No Brasil, a indústria agrícola é a única que tem florescido em mãos de nacionais. O comércio só tem prosperado nas de estrangeiros. Mesmo assim, veja-se qual é o estado da lavoura [...]. Está, pois, singularmente retardado em nosso país o período industrial, no qual vamos apenas agora entrando. [...] A cada passo encontramos e sentimos os vestígios deste sistema que reduz um belo país tropical ao aspecto das regiões onde se esgotou a força criadora da terra [...]. Onde quer que se a estude, a escravidão passou sobre o território e os povos que a acolheram, a viram como um sopro de destruição. (NABUCO, 1999, p. 167, 178).

Deste modo, é importante lembrar que há um interesse muito grande pelo fim da escravidão por um motivo bem óbvio: o advento da industrialização no Brasil, já que a escravidão ocorre no fim do século XIX. Deixando claro, outrossim, que as intenções de Nabuco também não eram tão civilizatórias quanto pareciam.

3 IMIGRAÇÃO EUROPEIA E INDUSTRIALIZAÇÃONo sistema de produção industrial, há um novo critério de seleção dos

trabalhadores: eles não podem ser escravos, ao contrário, devem ser assalariados. O que, no fim das contas, não muda muita coisa. Todavia, os escravos devem ser libertos para que saiam do espaço de produção açucareira ou cafeeira e migrem para as cidades. E é, pois, justamente no início do século XX que as grandes cidades do Brasil se tornam grandes "metrópoles".

Aliás, é salutar destacar um ponto que por muitos é esquecido neste ínterim: a imigração europeia. Assim sendo, resta uma pergunta: por que ela ocorreu maciçamente no final do século XIX no Brasil? Eis algumas possíveis respostas:

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TÓPICO 1 | FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA HISTÓRIA DO BRASIL

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1 - Os negros não possuíam qualificação para atuar em atividades especializadas.

2 - Houve um grande colapso financeiro na Europa neste mesmo período. Muitas pessoas perderam suas esperanças de uma vida boa em suas próprias terras, especialmente os italianos, levando-os a abandonar suas terras.

3 - O advento das guerras mundiais forçou muitas pessoas à emigração.

FIGURA 58 – IMIGRAÇÃO EUROPEIA NO BRASIL

FONTE: Disponível em: <http://www.curitiba-parana.net/italianos.htm>. Acesso em: 5 jan. 2013.

É importante recordar, caro(a) acadêmico(a), que no início da imigração no Brasil houve um período no qual muitos fazendeiros e empresários brasileiros desejaram impor um sistema escravocrata aos imigrantes europeus. Porém, isso não ocorreu por muito tempo, pois a postura de entendimento destes trabalhadores era mais esclarecida. Sendo assim, os fazendeiros brasileiros tiveram que aceitar que, pelo menos, estes trabalhadores eram cidadãos.

AUTOATIVIDADE

Leia com atenção a letra da música “Mentiras do Brasil”, de Gabriel o Pensador, e, em seguida, responda o que se pede:

Era uma vez duas criancinhas Um mundo do faz de conta era onde eles viviam Seus nomes eram José e Maria E verde e amarelo era a bandeira que vestiam Queriam viver com felicidade mas pra isso era preciso saber sempre a verdade Os adultos hipócritas provocavam sua ira Pois quem é puro não gosta de conviver com a mentira

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UNIDADE 3 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E SOCIAL NO BRASIL

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Mas Zezinho e Maria eram puros porém sabidos Deixavam tapados um dos lados de seus ouvidos Pra não entrar por aqui e sair por ali O que escutavam e achavam importante refletir E na TV as histórias que os adultos contavam Eles gostavam de ver Mas nem sempre acreditavam Se revoltavam vendo coisas que até cego já viu E resolveram fazer uma lista com...As maiores mentiras do Brasil Vocês e suas mentiras vão pra... (primeiro de abril!) As maiores mentiras do Brasil Vocês e suas mentiras vão pra... (primeiro de abril!)E uma mentira absurda encabeçava o rol: Deus é brasileiro... (Só se for no futebol!) Certas frases conhecidas são mentiras e ninguém nega (por exemplo?) “A justiça é cega!” Quem prega isso é canalha (psh! Não espalha) Porque aqui a justiça tarda... E falha! E o Zezinho gargalha com outra mentira boçal (qual?) “O brasileiro é cordial” aha! Mas que gracinha, imagina se não fosse! Se o brasileiro é amável, Adolf Hitler é um doce Porque a lei de Gérson é o nosso evangelho Todos querem se dar bem e não se respeita nem os velhos Dizem também que o pobre é malandro Mas o povão tá só ralando e quem tá armando são os grandes empresários e empreiteiros Mas até hoje só prenderam o PC e os bicheiros No país da impunidade tudo é contraditório Deixam o resto em liberdade em troca de um simples bode expiatório Que situação patética É real ou ilusório o processo de restauração da ética? Será que é boato? Zezinho e Maria perguntavam E enquanto isso anotavam...RefrãoMentira tem perna curta e se desmente facilmente Zezinho estava em frente a uma loura linda e inteligente E tem gente que diz que toda mulher bonita é burra Quem acredita merece uma surra Dizem que o bebê vem da cegonha E que cresce pelo na mão se bater uma bronha Mas o pequeno Zé não acreditava E se crescesse ele raspava A lista de mentiras aumentava: Comunista come criancinha, Aids é doença de gay “Mentira!” (seu comunista, bota camisinha!)

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TÓPICO 1 | FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA HISTÓRIA DO BRASIL

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Mariazinha ficou mocinha e descobriu que era caô Que só existia sexo com amor Aprendeu a falar inglês e viu que não é só filme brasileiro que tem muito palavrão Pois foi no cinema e ouviu tudo o que eles cortam na legenda e na dublagem da televisão Queriam as verdades sem cortes Queria liberdade Queriam independência ou morte Perguntaram ao fantasma de Cabral a história real entre Brasil e Portugal: “Não foi sem querer que descobrimos vosso país Nós portugueses não somos burros como se diz!” Outra piada que não era nada séria era que a seca do Nordeste era a culpada da miséria Desculpa esfarrapada puro blá, blá, blá... Pois se os políticos quisessem eles faziam o sertão virar mar! Tem também a lenda eterna da falta de verbas As moscas mudam mas é sempre a mesma merda... E a lista continua sem parar Com mentiras que o Pinóquio teria vergonha de contarRefrãoDiziam que o Brasil é o país do futuro Mas eles viram que o melhor era viver o presente Zezinho e Maria decidiram mostrar pra todo mundo que é mentira que o Brasil não vai pra frente! Eram crianças Tinham muita esperança Mas não queriam esperar pois quem espera nunca alcança Acharam nojento todo aquele fingimento E começaram a ficar violentos (O brasileiro tá cansado de ser enganado Daqui pra frente os mentirosos serão enforcados) E começaram assim uma revolução Controlaram todos os meios de comunicação E revelaram sua lista com as milhões de mentiras Que atrasavam a ordem e o progresso da nação Só tinham uma saída pro país Acabar com as mentiras pela raiz E como toda revolução deixa cicatriz O sangue jorrou feito um chafariz Foi uma vitória do povo e no final da conquista Zezinho e Maria puseram fogo na lista das...RefrãoE ao voltarem pra casa encontraram seu pai emocionado por tudo que eles tinham aprontado Uma nova era tinha começado e não era à toa que os olhos do coroa estavam encharcados

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UNIDADE 3 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E SOCIAL NO BRASIL

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Uma lágrima desceu e Zezinho percebeu que descobria mais uma mentira nessa hora... Homem também chora

FONTE: Disponível em: <http://letras.mus.br/gabriel-pensador/96130/>. Acesso em 5 fev. 2013.

1 Diante da letra contundente de Gabriel o Pensador, elabore uma redação apontando quais são as maiores mentiras do Brasil atualmente (É importante destacar as mais variadas falácias ou mentiras que existem atualmente, desde a sua vida pessoal até a vida social).________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Além disso, não podemos nos esquecer de um momento muito peculiar da história da nossa colonização: a transferência da coroa portuguesa para o Brasil, no início do século XIX. O rei de Portugal transferiu a sede da monarquia para sua maior colônia, o Brasil. D. João VI, na época, transferiu residência para cá, por alguns motivos bem interessantes:

a) Napoleão Bonaparte queria invadir Portugal e apossar-se do país, mas D. João não queria enfrentar o poderio da armada francesa, ao mesmo tempo que, b) a coroa portuguesa possuía inúmeras dívidas com a monarquia inglesa e as principais imposições francesas colocavam em xeque a relação entre Portugal e Reino Unido.

Portugal teria que aderir ao bloqueio continental (fechar os seus portos à

navegação britânica), declarar guerra aos ingleses, sequestrar os bens dos ingleses em Portugal e deter todos os cidadãos ingleses residentes no país. D. João VI viu-se pressionado, numa "sinuca de bico", totalmente "sem saída". (WIKIPÉDIA, 2013).

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Deste modo, uma das possíveis soluções para a resolução dos conflitos com os vizinhos europeus era o abandono do controle da coroa em Portugal, ou seja, D. João VI deveria fugir de Portugal, para encontrar "asilo" em sua colônia mais próspera, o Brasil. O que, de fato, veio a acontecer. Assim, tem início, em 1808, a solidificação do Brasil enquanto império e sede da monarquia portuguesa. D. João VI permaneceu no Brasil por 12 anos, quando a Revolução de 1820, em Portugal, exigiu o retorno da Família Real portuguesa e da Corte a Lisboa. Além disso, Pedro de Alcântara (D. Pedro I), filho de D. João VI, que nascera em Portugal, continuou o mandato de seu pai no Brasil, assumindo o poder da colônia e, posteriormente, a sua independência da metrópole. (LUI, 2012).

FIGURA 59 – CHARGE SOBRE A FUGA DE D. JOÃO VI PARA O BRASIL (ATUALIZADA PARA OS DIAS DE HOJE)

FONTE: Disponível em: <http://comtudojuntoemisturado.blogspot.com.br/2011/04/twittadas-historicas.html>. Acesso em: 25 jan. 2013.

A vinda da família real trouxe alguns avanços culturais e econômicos para a colônia, mais especificamente para a cidade do Rio de Janeiro (que permaneceu como capital do Brasil até a criação de Brasília-DF), como a criação do Museu Nacional, do Jardim Botânico, de escolas, do primeiro Banco do Brasil etc.

Contudo, o custeio da "fuga" de D. João VI e os empréstimos que a corte portuguesa já havia realizado com a Inglaterra fizeram "engrossar" ainda mais a dívida que, mais tarde, o Brasil herdou de Portugal. Sendo assim, é importante salientar que é justamente no século XIX que Portugal e Brasil vão estreitar demasiadamente a sua relação com o Reino Unido, pois as principais dívidas que estes países contraíram se deram neste período.

Após o retorno da família real para Portugal, iniciou-se um processo de independência do Brasil, que levou um pouco mais de dois anos para acontecer (1822). Contudo, o que mais nos interessa destacar aqui é o “fato econômico” de como isso se deu.

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UNIDADE 3 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E SOCIAL NO BRASIL

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Pressionado pela Inglaterra, que tinha grande interesse pela independência brasileira e para quem a coroa portuguesa devia muito dinheiro (como já é sabido), Portugal finalmente outorgou a emancipação do Estado Brasileiro em 29 de agosto de 1825, impondo apenas duas "modestas" condições:

a) Receber uma indenização de dois milhões de libras esterlinas (o que equivale aproximadamente a R$ 6.320.000,00 hoje em dia). Mas, como seria possível pagar tamanha quantia? Emprestando da Inglaterra, o que não passou de uma simples "transferência de dívida bancária".

NOTA

Caro(a) acadêmico(a): é possível perceber a jogada? Assim, nasce a famosa dívida externa do Brasil. Não há guerra entre colônia e metrópole, mas ocorre uma “bruta alienação” da primeira para com uma terceira, a Inglaterra. “Saímos da frigideira e caímos no fogo”.

b) D. João VI, que havia recuperado o poder de Portugal, em 1824, recebeu o título de imperador honorário do Brasil, decisão que mantinha o vínculo entre os dois países e dava a D. Pedro I (imperador do Brasil) a possibilidade de assumir o reino de Portugal, caso isso fosse realmente necessário (o que, de fato, veio a acontecer) (LUI, 2012).

Contudo, a independência do Brasil não transformou a nossa nação em um lugar melhor para se viver. A primeira coisa que gostaríamos de sublinhar é que, mesmo com a emancipação brasileira, o sistema de governo permaneceu monárquico. Diferentemente de outros países latino-americanos, que adotaram o sistema democrático-republicano, o Brasil continuou sob o comando de um só.

Esta forma de governo não modificou as relações sociais, de tal modo que, como já vimos, não aboliu a escravidão e nem estabeleceu relações mais igualitárias entre nobreza e povo. Aliás, D. Pedro I, por não alterar o modo de governar o país, enfrentou inúmeras insurreições populares, que ultimaram por "expulsá-lo do país".

Das revoltas populares, a principal indignação era o uso, por parte de D. Pedro I, do poder moderador, que resultava em um centralismo administrativo, ou seja, ele tomava as decisões do governo e controlava todas as áreas administrativas e políticas sem consultar ninguém. Dito de outro modo: D. Pedro I estabeleceu um verdadeiro absolutismo monárquico em nosso país. Diante disso, uma grande insatisfação popular levou-o a abdicar do Império brasileiro para retornar a Portugal. (LUI, 2012).

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FIGURA 60 – RETORNO DE D. PEDRO I PARA PORTUGAL

FONTE: Lui (2012, p. 112)

Vê se agora sossega epara de renunciar!

D. Pedro I retorna a Portugal para assumir o trono português.

Num primeiro momento, parece que esta "estória" acaba por aqui, porém os absurdos ainda não findaram. Ao retornar para Portugal, D. Pedro I deixa seu filho de apenas cinco anos de idade para governar o Brasil. Veja, caro(a) acadêmico(a), D. Pedro II era um simples garotinho e foi-lhe confiada uma tarefa que muito "marmanjo" teria medo de enfrentar. Sendo assim, como ele não era maior de idade, fora composta uma equipe regencial liderada por José Bonifácio de Andrada e Silva, que, concomitantemente, fora o tutor mais importante de D. Pedro II.

Durante o processo de preparação do novo imperador do Brasil, novas revoltas ocorreram (Guerra dos Farrapos, Balaiada, Sabinada etc.), desabonando a autonomia e a isonomia da atuação da "Conjunta Regencial". Estas revoltas despertavam na população e, principalmente, na nobreza brasileira, um profundo desprazer com o desempenho daqueles que deveriam cuidar das coisas do novo imperador.

Mesmo assim, Pedro II permaneceu sob a tutela de José Bonifácio até completar 15 anos de idade, quando é dado o "Golpe da Maioridade", emancipando-o civil e politicamente. Esta emancipação, como pode ser concluído, é meramente ilustrativa, de fachada mesmo, pois quem continuou a mandar no país foi a própria nobreza. Algo que, na verdade, não deixou de existir até os nossos dias. (LUI, 2012).

Outrossim, logo mais, em 1889, haverá um novo movimento interno no Brasil, mas este agora será em nome da República e da abolição da monarquia. Contudo, antes de adentrarmos neste ponto, nos parece ser muito profícua a seguinte pergunta: "E o povo? Onde ele entra nesta história?" De uma maneira muito simplista, mas eficaz, podemos afirmar que o povo sempre "ficou a ver

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navios" (referência à charge acima), pois o modo como o Brasil foi "descoberto" e construído sempre se pautou nos interesses da nobreza ou da burguesia.

Este breve relato histórico, caro(a) acadêmico(a), tem a intenção de revelar a você o quanto a nossa história é truncada, complexa e cheia de "maracutaias". Aqui nada acontece por acaso, apesar de nos venderem a ideologia de que o Brasil é o país do futuro. E como podemos ver, a charge que segue debocha de tal afirmação:

FIGURA 61 – ONDE ESTÁ ESTE BRASIL?

FONTE: Disponível em: <http://blog.opovo.com.br/blogdoeliomar/e-no-pais-do-futuro/>. Acesso em: 10 jan. 2013.

Mas voltemos ao tema. Com o fim da Monarquia e com o nascimento da República, há uma nova esperança de que as coisas no Brasil vão melhorar. Mas isso, na verdade, não aconteceu. Outrossim, é importante lembrarmos que todo movimento em prol da República foi orquestrado pelos militares do Exército Brasileiro.

A criação do Exército Brasileiro teve início, enfaticamente, durante a Guerra do Paraguai, em meados do século XIX (1864-1870). Guerra, aliás, que trouxe maiores dividendos com a Inglaterra. Contudo, o movimento que deu origem à Proclamação da República teve o seu início decretado pelos militares em 1889, ou seja, em menos de 20 anos o Exército brasileiro já demonstrava o quanto queria comandar e dirigir o Brasil. Este domínio militar ocorreu através de um golpe de Estado. D. Pedro II é deposto e um novo sistema de governo é implementado. Entretanto, neste processo de mudança, mais uma vez o povo não é consultado, permanecendo novamente alienado, sem nada saber. Aliás, foi decidido que se faria um referendo popular, para que o povo brasileiro aprovasse ou não, por meio do voto, a República. Porém, esse plebiscito só ocorreu 104 anos depois, determinado pelo 2º artigo do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição de 1988. (WIKIPÉDIA, 2013).

ATENCAO

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Mais curioso ainda é notar que, no século XX, isso volta a se repetir com o período da ditadura militar em nosso país, só que de um modo invertido: rechaçando a democracia e impondo um absolutismo ditatorial e violento. (LUI, 2012).

O maior problema é tentar, diante de tudo isso, compreender se a História do Brasil é, realmente, uma história, pois, às vezes, tudo parece ser uma grande piada, de tal maneira que o filme "Carlota Joaquina, Princesa do Brasil" é uma comédia bem verossímil acerca desta hipótese. O filme faz uma sátira da vida de Carlota Joaquina, esposa de D. João VI, que veio ao Brasil no período da transferência da Corte Portuguesa para o Rio de Janeiro. Um dos pontos mais peculiares é a narração do filme, que é feita por um jovem e uma garota inglesa, demonstrando, quiçá, o olhar descrente e debochado de muitos estrangeiros sobre a nossa história.

DICAS

Sugestão de filme: Carlota Joaquina, Princesa do Brasil

Espanha, 1785 - Carlota Joaquina (Marieta Severo), uma infanta que foi prometida para D. João VI, aos 10 anos de idade recebe o retrato do seu futuro esposo e é obrigada a partir para Portugal, levando consigo somente sua herança familiar. Chegando em seu novo país, Carlota sofre uma grande decepção ao encontrar seu “prometido”... gerando muitas brigas, infidelidades e muitos filhos. Com a morte de D. José, herdeiro do trono português e a declarada insanidade de Maria, Carlota Joaquina e D. João VI herdam a coroa portuguesa. Porém, assustados com a Revolução Francesa e a aproximação do exército de Napoleão, resolvem fugir para sua colônia: o Brasil. “Carlota Joaquina” é uma produção esmerada que retrata a história do Brasil com requintes de época, sob direção de Carla Camurati, uma ótima revelação do cinema brasileiro.

FONTE: Disponível em: <http://www.filmesdecinema.com.br/filme-carlota-joaquina-princesa-brasil-799/>.

4 A REPÚBLICA VELHAMas a história não para por aqui. Há muito ainda para ser contado. Após

a Proclamação da República, houve um período no Brasil denominado República Velha, no qual o governo do país foi intercalado entre os barões do café e os agropecuaristas da região Sudeste do Brasil (a famosa política do "café com leite"). Neste período houve, ao mesmo tempo, uma grande transformação urbanista das cidades do Sudeste, principalmente do Rio de Janeiro. Esta mudança ficou conhecida como Belle Époque, que conceitualmente é compreendida.

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como uma fase de desenvolvimento cultural cosmopolita e moderna que, na Europa, começou por volta de 1870 e durou até a eclosão da Primeira Guerra Mundial, em 1914. Por essa expressão também podemos entender o clima intelectual e artístico do período, marcado por profundas transformações, sobretudo no âmbito da cultura, cuja ênfase recaía na valorização de uma era de beleza, inovação, paz e progresso. (BERLATTO, 2010, p. 30).

Apesar de ter início na Europa, os intelectuais brasileiros consideravam que era necessária a imitação deste estilo de vida europeu, haja vista que era preciso esquecer o passado de escravidão e monarquia e seguir os passos de países já desenvolvidos (o que se resume em três pontos cruciais: a defesa da democracia, o desenvolvimento das cidades e a criação de indústrias). Porém, neste processo, boa parte dos intelectuais brasileiros da época (vide Joaquim Nabuco) esqueceu totalmente do modo como estes países europeus alcançaram tamanho patamar de desenvolvimento, a saber, às expensas de suas colônias (principalmente Portugal, Espanha e França).

Contudo, a República Velha deu um novo impulso econômico ao Brasil, originando o investimento em estradas de ferro, usinas hidrelétricas e redes telegráficas, sem olvidar, entretanto, das revoltas que ocorreram neste mesmo período, sendo que uma das mais sangrentas da História do Brasil sucedeu no Estado de Santa Catarina: a Guerra do Contestado, onde se estima que mais de 20 mil mortes ocorreram no período de 1912 a 1916.

No final da década de 1920, Getúlio Vargas (que será o líder civil da Revolução de 1930) pôs fim à República Velha, depondo seu 13º e último presidente, Washington Luís, e impedindo a posse do presidente eleito em 1º de março de 1930, Júlio Prestes.

FONTE: Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Get%C3%BAlio_Vargas>. Acesso em: 6 fev. 2013.

Vargas chega ao poder no Brasil, mas isso não significa, de qualquer maneira, que grandes mudanças a favor do povo vão ocorrer. Aliás, diga-se de passagem, é muito acertado afirmar que Getúlio Vargas tenha sido o maior estrategista político do Brasil até os nossos dias. O método utilizado por ele para governar o país foi muito bem executado para a sua época, pois ele passava uma imagem de confiança e austeridade para o povo, ao promover alterações trabalhistas (como a criação de sindicatos e da CLT), ao mesmo tempo em que executava mudanças radicais no sistema de governo. (WIKIPÉDIA, 2013).

Do ponto de vista intelectual, a República Velha foi marcada pela busca da identidade nacional, sobre a qual deveria ser edificada a "nação Brasil". O espaço fundamental onde a cultura luso-brasileira ganhou expressão foi a "Semana de Arte Moderna", realizada em São Paulo em 1922, por ocasião do centenário da independência. O "modernismo" que se revelou nessa ocasião não evidenciou apenas o peso da "cultura do Brasil", mas também o "nativismo", que estava convicto de que as demais culturas deveriam ser absorvidas por aquela que tinha

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sido elevada à cultura padrão e normativa. O que, contudo, do ponto de vista sociológico e filosófico, é irrealizável, em decorrência da diversidade inerente a toda a sociedade humana, e principalmente a brasileira.

Nesse sentido, Oliveira (2005) analisa a tentativa de construção da identidade nacional ressaltando o seu caráter de "enxerto", ou seja, de tentativas de combinação das diferentes culturas que integram a sociedade brasileira, que, por fim, não passam de mito.

5 A ERA VARGASSendo assim, vejamos, caro(a) acadêmico(a), algumas estratégias de

governo usadas por Vargas durante seu governo: a industrialização progrediu de forma substancial, as cidades cresceram, o Estado se tornou forte, houve interferência na economia e foi instaurada uma nova relação com os trabalhadores urbanos. Enquanto permaneceu no poder, Vargas foi chefe de um governo provisório (1930-1934), presidente eleito pelo voto indireto (1934-1937) e ditador (1937-1945).

A grande virtude de Getúlio no poder foi reconhecer as transformações que vinham se processando no país, com a emergência de novas forças sociais e a necessidade do atendimento rápido dessas demandas, como as dos operários e as dos empresários. Por isso, Getúlio investiu na indústria, aumentando o poder da burguesia urbana, sem ceder, no entanto, o controle das decisões políticas. Concedeu direitos aos trabalhadores, mas, ao mesmo tempo, criou mecanismos de controle e "domesticação" bastante eficientes. (PRAZERES, 2008, p. 1).

Ao tomar posse em 1930, Getúlio Vargas discursou que o seu governo era provisório, mas tão logo começou a governar, tomou uma série de medidas que fortificaram o seu poder. Dissociou todos os segmentos que compunham o Poder Legislativo, exercendo assim o Poder Legislativo e o Executivo simultaneamente.

Vargas também suprimiu a Constituição estabelecida, exonerou os governadores e, para substituí-los, nomeou interventores de sua confiança. Vários deles eram militares ligados ao tenentismo, que foi um movimento de certos militares brasileiros que se colocavam contra a situação política brasileira anterior a Vargas.

Os tenentes no papel de interventores substituíram os presidentes de estados exonerados e cumpriram a tarefa de neutralizar as possíveis resistências dos velhos poderes locais ao novo governo, a fim de consolidar a revolução. A Era Vargas contou com uma política intervencionista ferrenha. Através disso, o poder público contemplou outros interesses sociais, superando a visão arcaica que a oligarquia tinha das funções do Estado. (AGUIAR, 2012).

FONTE: Disponível em: <http://www.brasilescola.com/historiab/era-vargas.htm>. Acesso em: 6 fev. 2013.

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FIGURA 62 – VARGAS, O PAI DOS POBRES?!

FONTE: Disponível em: <http://anaflaviaaideologias.blogspot.com.br/2011/05/era-vargas-governo-democratico.html>. Acesso em: 6 fev. 2013.

DICAS

Sugestão de filme: Olga

Berlim, início do século XX. Olga Benário (Camila Morgado) é uma jovem judia alemã. Militante comunista, é perseguida pela polícia e foge para Moscou, onde recebe treinamento militar e é encarregada de acompanhar Luís Carlos Prestes (Caco Ciocler) de volta ao Brasil. Na viagem, enquanto planejam a Intentona Comunista contra o presidente Getúlio Vargas, os dois acabam se apaixonando. Parceiros na vida e na política, Olga e Prestes terão de lutar pelo amor, pelo comunismo e, principalmente, pela sobrevivência.

FONTE: Disponível em: <http://www.adorocinema.com/filmes/filme-122446/>. Acesso em: 5 jan. 2013.

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AUTOATIVIDADE

Analise com atenção os principais acontecimentos históricos do país até aqui e verifique se há algum ponto importante e comum entre todos eles. Tente dissertar um pouco sobre isso: afinal, qual é o traço mais marcante da nossa história, principalmente no que se refere ao processo político de formação da nação brasileira? __________________________________________________________________

__________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Em 1951, Getúlio Vargas retornou ao posto de Presidente da República. Para voltar ao poder, o político gaúcho optou por deixar sua imagem política afastada dos palcos do poder. Entre 1945 e 1947 ele assumiu, de forma pouco atuante, o cargo de senador federal. Nas eleições de 1950, ele retornou ao cenário político utilizando-se de alguns dos velhos bordões e estratagemas (como é apresentado na charge acima) que elogiavam o seu antigo governo.

FONTE: Disponível em: <http://www.brasilescola.com/historiab/getulio-vargas.htm>. Acesso em: 6 fev. 2013.

Querendo buscar amplas alianças políticas, Getúlio abraçou setores com diferentes aspirações políticas. Em um período de Guerra Fria, onde a polarização ideológica era pauta do dia, Vargas se aliou tanto aos defensores do nacionalismo quanto do liberalismo. Dessa maneira, ele parecia querer repetir o anterior “Estado de Compromisso” que marcou seus primeiros anos frente à Presidência do Brasil.

Por um lado, os liberalistas, representados pelo empresariado nacional e militares, defendiam a abertura da economia nacional ao capital estrangeiro e a adoção de medidas monetaristas que controlariam as atividades econômicas e os índices inflacionários. Por outro, os nacionalistas, que contavam com trabalhadores e representantes de esquerda, eram favoráveis a um projeto de desenvolvimento que contava com a participação maciça do Estado na economia e a rejeição do capital estrangeiro.

Dada essa explanação, percebemos que liberalistas e nacionalistas tinham

opiniões diferentes sobre o destino do país e, até mesmo, antagonizavam em alguns temas e questões. Dessa forma, Vargas teria a difícil missão de conseguir se equilibrar entre esses dois grupos de orientação política dentro do país. Mais uma vez, a sua função mediadora entre diferentes setores político-sociais seria colocada à prova.

FONTE: Disponível em:<http://www.brasilescola.com/historiab/getulio-vargas.htm>. Acesso em: 6 fev. 2013.

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Outrossim, entre as principais medidas por ele tomadas, podemos destacar a criação de duas grandes estatais do setor energético: a Petrobrás (1953), que viria a controlar toda a atividade de prospecção e refino de petróleo no país; e a Eletrobrás (1954), empresa responsável pela geração e distribuição de energia elétrica.

FONTE: Disponível em: <historiasecxx.blogspot.com/>. Acesso em: 6 fev. 2013.

Além disso, Vargas convocou João Goulart para assumir o Ministério do Trabalho.

Em um período de intensa atividade grevista, João Goulart defendeu um reajuste salarial de 100%. O principal papel da criação destas estatais era a valorização do ufanismo nacional, e isso torna-se evidente se recordarmos o principal slogan da Petrobrás na época: "O petróleo é nosso". Contudo, estas medidas foram recebidas com grande desagrado pelas elites nacionais. Entre os principais críticos do governo estava Carlos Lacerda, membro da UDN (União Democrática Nacional), que por meio dos órgãos de imprensa acusava o governo de promover a “esquerdização” do Brasil e praticar corrupção política. (WIKIPÉDIA, 2013).

FIGURA 63 – CARLOS LACERDA

FONTE: Disponível em: <http://luizze1000.blogspot.com.br/2011/02/carlos-lacerda.html>. Acesso em: 6 fev. 2013.

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Essa rixa entre Vargas e Lacerda ganhou as páginas dos jornais quando, em agosto de 1954, Carlos Lacerda escapou de um atentado promovido por Gregório Fortunato, guarda pessoal do presidente. A polêmica sob o envolvimento de Vargas no episódio serviu de justificativa para que as forças oposicionistas exigissem a renúncia do presidente. Mediante a pressão política estabelecida contra si, Vargas escolheu outra solução.

Na manhã de 24 de agosto de 1954, Vargas atentou contra a própria vida disparando um tiro contra o coração. Na carta-testamento por ele escrita, Getúlio denunciou sua derrota perante os “grupos nacionais e internacionais” que desprezavam a sua luta pelo “povo e, principalmente, os mais humildes”.

FONTE: Disponível em: <http://professoragiedre.blogspot.com.br/2012/08/9-ano-aula-1_3.html>. Acesso em: 6 fev. 2013.

Maria Lígia Prado assim interpreta a prática governista de Vargas, assemelhada à prática de Eva Perón na Argentina:

[...] o populismo não pode ser explicado basicamente pela simples aparição de um líder que, demagogicamente, carrega e dirige as massas para a direção que lhe aprouver. Há inúmeras variantes que interferem no processo histórico e o conhecimento delas é que nos pode aproximar do real. O carisma de uma Eva Perón, por exemplo, é mais um dado que obviamente deve ser levado em conta por parte do analista, na compreensão do fenômeno populista. Mas não pode ser entendido como fator determinante, como se as massas caíssem nos braços do primeiro demagogo que se lhes surgisse à frente. [Entretanto], o fenômeno populista corresponde a uma manipulação das massas por parte do líder, mas também corresponde a uma satisfação de aspirações longamente acalentadas. Dessa maneira, o líder populista, em geral com forte dose de carisma, ao mesmo tempo em que procura manipular as massas para que elas se enquadrem dentro dos limites por ele impostos, também ativa mecanismos de satisfação de velhas aspirações - um exemplo, apenas, a legislação social - das massas trabalhadoras. (PRADO, 2002, p. 76-77).

Deste modo, depois da atitude trágica do suicídio de Vargas, a população entrou em grande comoção. Vargas passou a ser celebrado como um herói nacional que teve sua vida ceifada por forças superiores à sua luta popular. Com isso, todo grupo político, jornal e instituição que se opôs a Getúlio Vargas sofreu intenso repúdio das massas. Tal reação veio a impedir a consolidação de um possível golpe de Estado. Dessa forma, o vice-presidente Café Filho assumiu a vaga presidencial.

FONTE: Disponível em: <http://professoragiedre.blogspot.com.br/2012/08/9-ano-aula-1_3.html>. Acesso em: 6 fev. 2013.

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6 A DITADURA MILITARNão obstante, o referido golpe de Estado veio a ocorrer apenas em 1964,

quando as Forças Armadas do Brasil derrubaram o governo do presidente esquerdista democraticamente eleito João Goulart e só veio a se findar quando José Sarney assumiu o cargo de presidente, em 1985. O período da ditadura militar talvez tenha sido o pior de todos na nossa história. Mas antes de falarmos sobre isso, é necessário falarmos um pouco sobre os antecedentes da implantação da ditadura no Brasil.

FIGURA 64 – PRESIDENTE JOÃO GOULART, DEPOSTO PELO REGIME MILITAR

FONTE: Disponível em: <http://hid0141.blogspot.com.br/2009/03/era-joao-goulart.html>. Acesso em: 5 jan. 2013.

Em 1961, Goulart foi autorizado a assumir o cargo, sob um acordo que diminuiu seus poderes como presidente, com a instalação do parlamentarismo. O país voltou ao sistema presidencialista um ano depois, e, como os poderes de Goulart cresceram, tornou-se evidente que ele iria procurar implementar políticas de esquerda, como a reforma agrária e a nacionalização de empresas em vários setores econômicos, independentemente do consentimento das instituições estabelecidas, como o Congresso.

FONTE: Disponível em: <http://gruop3people.blogspot.com.br/2012/11/ditadura-militar-no-brasil.html>. Acesso em: 6 fev. 2013.

Na época, a sociedade brasileira tornou-se profundamente polarizada, devido ao temor de que o Brasil se juntasse a Cuba como parte do bloco comunista na América Latina sob o comando de Goulart. Políticos influentes, como Carlos Lacerda e até mesmo Juscelino Kubitschek, magnatas da mídia

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(Roberto Marinho, Octávio Frias de Oliveira, Júlio de Mesquita Filho), a Igreja Católica, os latifundiários, empresários e parte da classe média pediam uma "contrarrevolução" por parte das Forças Armadas para remover o governo.

FONTE: Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Regime_militar_no_Brasil>. Acesso em: 7 fev. 2013.

Diante disso, a oportunidade "bateu à porta" dos militares, que aproveitaram a ocasião para depor João Goulart.

FIGURA 65 – ROBERTO MARINHO E JOÃO FIGUEIREDO

FONTE: Disponível em: <http://beckerhistoria.blogspot.com.br/2011/02/os-personagens-da-udn-e-o-golpe-militar.html>. Acesso em: 5 jan. 2013.

Depois de este fato ter sido consumado, os militares governaram o país (de 1964 a 1985) com mão de ferro e impuseram inúmeras medidas de controle e manipulação da população em geral. Este controle ocorreu logo após o golpe militar. Muitas instituições foram reprimidas e fechadas, seus dirigentes presos e enquadrados, suas famílias vigiadas.

Na mesma época se formou dentro do governo um grupo que depois seria chamado de comunidade de informações. As greves de trabalhadores e estudantes foram proibidas e passaram a ser consideradas crime; os sindicatos sofreram intervenção federal, os líderes sindicais que se mostravam contrários eram enquadrados na Lei de Segurança Nacional como subversivos.

FONTE: Disponível em: <http://pensandoahistoria.wikispaces.com/06+-+IMAGENS>. Acesso em: 7 fev. 2013.

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Muitos cidadãos que se manifestaram contrários ao novo regime foram indiciados em Inquéritos Policiais Militares (IPM).

Aqueles cujo inquérito concluísse por culpa eram presos e torturados. Políticos de oposição tiveram seus mandatos cassados, suas famílias postas sob vigilância. Muitos foram processados e expulsos do Brasil e tiveram seus bens indisponíveis, sem falar nas aflições que inúmeros sofreram por se manifestarem contrários à ditadura. O conceito jurídico de liberdade de expressão ou de direitos humanos desaparecera totalmente, ao mesmo tempo em que o regime militar ufanizava a população brasileira com o slogan: "Brasil, ame-o ou deixe-o".

FIGURA 66 – SLOGAN "BRASIL, AME-O OU DEIXE-O"

FONTE: Disponível em: <http://geografiaetal.blogspot.com.br/2010/08/brasil-ame-o-ou-deixe-o.html>. Acesso em: 5 jan. 2013.

Portanto, o clima no país era tão tenso que Elio Gaspari assim descreve uma tentativa fracassada de atentado contra o presidente militar Costa e Silva, em 1966:

Na manhã de 25 de julho de 1966, algumas dezenas de pessoas esperavam-no [o candidato a presidente Costa e Silva] no aeroporto dos Guararapes, no Recife. Havia gente querendo a revolução e disposta a matar para fazê-la. Um cidadão entrou na banca de jornais do saguão com uma maleta e saiu sem ela. Pouco depois o serviço de alto-falantes anunciou que o candidato, que estava em João Pessoa, tivera uma pane no avião e chegaria de automóvel a outro ponto da cidade. O jornaleiro notou a maleta deixada no chão e pediu a um guarda-civil que a levasse para a sala de achados e perdidos. O guarda apanhou-a e tinha dado poucos passos quando ela explodiu. Costa e Silva deveria ter chegado às 8h30min. A maleta detonou às 8h50min. Guardava uma bomba feita com um pedaço de cano e que fora acionada por um mecanismo de relógio [...]. (GASPARI, 2002, p. 240-241).

Contudo, a propaganda de rádio e televisão, naquela época, tentava dissimular estes eventos, colocando a maioria da população contra todos aqueles que se manifestassem contra a ditadura militar. Até mesmo porque havia uma relação de troca de favores entre os donos das emissoras de rádio e televisão e os militares naquele tempo.

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As concessões eram dadas àqueles que se comprometessem em não divulgar os "fatos como eles realmente aconteciam". É muito comum ouvirmos, em nossos dias, pessoas idosas, na faixa etária dos 70 anos, que acreditam, graças à "educação militar" transmitida pelo rádio e pela televisão, que comunistas são pessoas horríveis, medonhas, seres da pior estirpe, etc. Dessa maneira, Alcir Lenharo, ao falar da propaganda nazista, por exemplo, explica o papel crucial da "dissimulação dos fatos" na sua veiculação à grande massa populacional. Situação que ocorreu no Brasil da mesma maneira.

Hitler considerava que a propaganda sempre deveria ser popular, dirigida às massas, desenvolvida de modo a levar em conta um nível de compreensão dos mais baixos. "As grandes massas", dizia ele, "têm uma capacidade de recepção muito limitada, uma inteligência modesta, uma memória fraca". Por isso mesmo, a propaganda deveria restringir-se a pouquíssimos pontos, repetidos incessantemente. Tudo interessa no jogo da propaganda: mentiras, calúnias; para mentir, que seja grande a mentira, pois assim sendo, "nem passará pela cabeça das pessoas ser possível arquitetar uma tão profunda falsificação da verdade". (LENHARO, 1998. p. 47-48).

Mas com o governo do general Figueiredo, em 1979, o Brasil começou a passar por um processo de abertura política. Figueiredo foi, então, responsável pela abertura democrática do regime, com medidas como o fim do bipartidarismo (que é uma situação política em que apenas dois partidos dividem o poder, ou constitucionalmente ou de facto, sucedendo-se em vitórias eleitorais em que um deles conquista o governo do país e o outro ocupa o segundo lugar nas preferências de voto), a anistia e a decretação de eleições diretas para governadores dos Estados em 1982.

Contudo, a ditadura militar finalmente chegou ao seu fim somente em 8 de maio de 1985, quando o Congresso Nacional aprovou emenda constitucional que acabava com alguns vestígios da ditadura.

FIGURA 67 – ABAIXO A DITADURA MILITAR

FONTE: Disponível em: <http://comdosecerta.blogspot.com.br/2012/09/blogagem-coletiva-4-fatos-historicos.html>. Acesso em: 5 jan. 2013.

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De lá para cá, pouca coisa mudou. Atualmente, vivemos em um sistema político democrático no Brasil, do ponto de vista da lei constitucional, mas isto não significa que a democracia ocorra factualmente. Com o fim da ditadura militar e com o início da redemocratização no país (desde as "Diretas já") até a posse da nossa atual presidente, Dilma Roussef, os acontecimentos parecem se repetir do mesmo modo, salvo algumas importantes exceções, como ocorriam no período militar.

A ação corrupta e desonesta de boa parte de nossos políticos escamoteia inúmeros conchavos e estratagemas, vários "jetons" e propinas. A transparência das ações públicas permanece inexistente. O real destino do pagamento dos inúmeros impostos ainda é desconhecido. A vida social permanece um caos na maioria das principais cidades brasileiras. A única grande diferença do novo regime democrático em nosso país é o direito ao sufrágio universal. Qualquer pessoa maior de 18 anos pode ser candidata a qualquer cargo público.

Contudo, as grandes alianças partidárias permanecem (comparando-se com o regime militar) ditando quais serão os futuros vereadores, prefeitos, deputados e senadores do país. Além disso, a determinação do voto é algo muito questionável no Brasil. O ato de não votar é considerado um crime eleitoral. A liberdade de não votar é vetada, pois o não cumprimento desta "responsabilidade cidadã" é passível de multa.

Veja, caro(a) acadêmico(a), como as coisas funcionam no Brasil:

O eleitor que não votar e nem justificar a sua ausência estará sujeito às seguintes restrições:

a) não poderá inscrever-se em concurso público;b) não receberá vencimentos, remuneração, salário ou proventos, se o eleitor for funcionário público;c) não poderá participar de concorrência pública;d) não poderá obter empréstimo, desde que não se trate de instituição bancária privada;e) não poderá obter passaporte, carteira de identidade ou CPF;f) não poderá matricular-se em estabelecimento de ensino oficial ou fiscalizado pelo governo;g) não poderá praticar qualquer ato para o qual se exija quitação do serviço militar ou Imposto de Renda. (PODER JUDICIÁRIO, GUIA DO ELEITOR 2010, p. 58-59).

NOTA

O que foram as “Diretas já”?: Foi um movimento civil de reivindicação por eleições presidenciais diretas, nas quais todos os cidadãos maiores de 18 anos teriam direito de votar e eleger um presidente democraticamente, no Brasil, que ocorreu de 1983 a 1984. Foi o primeiro sinal de que o regime militar (na época, o presidente militar era João Figueiredo) estava em derrocada.

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TÓPICO 1 | FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA HISTÓRIA DO BRASIL

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No Brasil, além de todas as interdições que são impostas àquele que não vota, é preciso pensar em outro ponto crucial da nossa democracia: os partidos políticos. Sendo assim, o sociólogo brasileiro Octávio Ianni fala sobre os grupos que representam democraticamente toda a população brasileira.

De um modo geral, os partidos possuem um poder muito maior do que cada um dos indivíduos que a eles estão filiados, pois nenhum governante pode assumir um cargo público desvinculado de alguma agremiação ou partido político.

Contudo, estas associações que deveriam representar interesses coletivos, corriqueiramente, desempenham papéis nada democráticos ou grupais, pois segundo Ianni, em nosso país, bem como em toda a América Latina:

[...] a debilidade da sociedade civil manifesta-se significativamente nos partidos políticos. Devido à precariedade da cultura política do povo, sua escassa vivência do jogo político formal, tendo em conta a prevalência do público sobre o privado, os partidos pouco representam, enquanto instituições políticas intermediárias, por meio das quais articulam-se os cidadãos e o Estado. Os partidos, ao longo da história latino-americana, seriam personalistas, caudilhescos, clientelísticos. Tanto os antigos como os recentes, à direita, no centro e à esquerda. Seriam pouco estruturados, sujeitos à influência de personalidades fortes, coloridas, demagógicas, carismáticas. Nos processos eleitorais e nos governos, nos poderes Executivo e Legislativo, em geral predominam chefes, caudilhos, caciques, coronéis, gamonales ou oligarcas; em lugar de programas, plataformas. O clientelismo, favoritismo, paternalismo, cartorialismo subsistem além do interesse público. Os partidos podem chamar-se liberais, conservadores, blancos, colorados, autênticos, ortodoxos, radicais, trabalhistas, justicialistas, nacionalistas e outras denominações, mas tendem a ser oligárquicos, personalistas, caudilhescos. (IANNI, 1993, p. 20).

Esta citação tirada do livro "O labirinto latino-americano", de Octávio Ianni, encerra este primeiro tópico da Unidade 3. Ianni apresenta o papel dos partidos políticos como algo ruim e funesto. Algo que poderia ser abolido do sistema democrático brasileiro, entretanto, esta "erva daninha" não esmorece, pois o esquema de favorecimento que havia no regime militar ainda não despareceu. Ele apenas vestiu uma outra roupagem.

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• Trata brevemente sobre a História do Brasil e os vários acontecimentos que demarcam os encontros e desencontros sobre nossa História, que principiam com a colonização portuguesa e se “findam” com os dias atuais.

• Nosso intuito ao abordar de maneira clara e simples a nossa História foi o de demonstrar que os mitos brasileiros (Deus é brasileiro, brasileiro cordial, entre outros que também foram vistos na Unidade 2) são falsos e não representam enfaticamente a realidade nacional.

• Existem inúmeros equívocos sobre o Brasil que não são veiculados pela grande

mídia, pois não há nenhum grande interesse, de modo geral, em tornar as pessoas de nosso país mais instruídas e menos alienadas. Aliás, a famosa frase: “está bom assim como está” é uma evidência desta assertiva.

• O desafio de querer aprender, de modo mais aprofundado, sobre a nossa

História é o principal desafio que nos propusemos a apresentar neste tópico. A escravidão indígena e africana, bem como, a ditadura militar, podem ser considerados os períodos mais nefastos e assustadores desta História.

• A História do Brasil é também demarcada pelo aparecimento no século XX (principalmente) de vários movimentos sociais que vão defender múltiplos interesses coletivos (preferencialmente de caráter político).

• Através de algumas sugestões de filmes que elencamos no transcorrer deste tópico, para os acadêmicos aprofundarem as temáticas que, por demanda de tempo ou por desatenção, não conseguimos aqui estabelecer.

• Este tópico é, por nós, considerado o mais importante e complexo da unidade,

pois exigiu-nos mais atenção e cautela no momento de situar as conexões entre os fatos do passado com os do presente.

• Pedimos atenção redobrada para a compreensão das relações que tentamos

constituir entre a atualidade e o passado e, que ao fim e ao cabo, este material contribua, consideravelmente, para o crescimento intelectual de nossos acadêmicos.

RESUMO DO TÓPICO 1

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FIGURA 68 – EXISTE REALMENTE ALGUMA DIFERENÇA?

FONTE: Disponível em: <http://japumirimnoticias.com.br/>. Acesso em: 15 jan. 2013.

Ao ler este último ponto sobre a História do Brasil, nota-se que, apesar das inúmeras siglas partidárias, pouca variação de conteúdo e ideias existe entre os vários partidos políticos. Aliás, segundo a figura acima, todos eles estão “de mãos dadas”. Sendo assim, elabore uma redação abordando o problema da possível similaridade (ou ausência de) entre as “convicções políticas” e as “atitudes políticas” em nosso país:

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AUTOATIVIDADE

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TÓPICO 2

FILÓSOFOS E SOCIÓLOGOS

BRASILEIROS DE DESTAQUE

UNIDADE 3

1 INTRODUÇÃOFalar sobre a sociologia do Brasil é um desafio muito grande. Como já

vimos na Unidade 2, os pensadores mais conhecidos e respeitados no mundo acadêmico são europeus. Entretanto, no século XX (principalmente na segunda metade desse século), vários pensadores nacionais se propuseram a pensar a vida social do Brasil.

No Tópico 1 desta unidade lemos que a História do Brasil está repleta de desencontros e “más intenções”. Na verdade, até hoje perguntamo-nos até que ponto a História do Brasil foi feita com intenções realmente puras no que tange ao desenvolvimento de uma nação soberana.

Aliás, no tópico anterior, temos consciência de que nosso método de abordagem foi bem contundente, pois nossa pretensão era a de “abrir os seus olhos”, caro(a) acadêmico(a), para uma história mais legítima e verdadeira, ausente de heróis e de mocinhos.

Contudo, apesar de tantas agruras que perpassaram (e ainda perpassam) a nossa história, é possível ver e compreender a sociedade brasileira de um modo mais direto e, mesmo que, ao estudarmos o nosso entorno (desde o bairro até o país) não abandonemos o nosso envolvimento com ele, deve-se analisar do modo mais autêntico possível esta realidade.

Dentre os vários pensadores brasileiros, que queremos apresentar neste tópico, gostaríamos de destacar Oliveira Viana e sua defesa da eugenia racial, e Sérgio Buarque de Holanda e o mito do brasileiro cordial. Neste sentido, é importante salientar que os dois pensadores possuem ideias bem diferentes sobre o Brasil, mas ambos servem de fundamentação teórica para analisar porque o Brasil constituiu-se em um país tão diversificado e contraditório.

Enquanto Oliveira defende uma visão de melhoramento racial ao promover a imigração de europeus para o Brasil, ao mesmo tempo em que analisa a sociedade do século XIX (com base na divisão social fundada na raça) como o melhor período da História do Brasil, Holanda analisa cruamente as relações de produção e trabalho, afirmando que o brasileiro, de um modo geral, é um bon

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UNIDADE 3 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E SOCIAL NO BRASIL

vivant. Holanda demonstra que as relações entre as pessoas são demasiadamente personalistas, e justamente por este motivo a via de sucesso por meio do trabalho árduo não é algo muito apreciado pelos brasileiros, genericamente falando. O que, como se pôde ver na Unidade 2, se opõe totalmente ao método abordado por Weber, na sua análise da História da “Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”. Além disso, Holanda, como veremos no decorrer deste tópico, aprofunda esta análise e aborda o personagem “Zé Carioca” como o ícone estereotipado deste possível brasileiro cordial, mas que, ao mesmo tempo, não deixa de ser esperto e malandro.

Caro(a) acadêmico(a), o desafio de conhecer algo novo é tão perigoso quanto excitante. Estudar a história do nosso país e seus principais pensadores não deve ser algo temido, mas, ao contrário, deve ser algo desejado e querido. Esta é a nossa maior intenção enquanto professores e tutores. Pois, como afirma um ditado espanhol, “quién sabe más, vive mejor”. Então, sigamos em frente. E o primeiro pensador com o qual nos ocuparemos é Euclides da Cunha.

2 EUCLIDES DA CUNHAEuclides da Cunha, no nosso entendimento, é considerado um dos

pensadores mais autênticos do Brasil. Seu modo de compreensão do país parece ser muito real no que se refere à relação dos dois mundos que compõem o país, a saber, o litoral e o interior. De um modo geral, a visão que se tem do interior, no início do século XX, é de que a barbárie e o atraso residiam nesta região e de que o desenvolvimento jamais chegaria a este lugar.

Por outro lado, a ideia de desenvolvimento e de sucesso econômico repousava na região litorânea brasileira. Havia pessoas que afirmavam que o interior brasileiro já se iniciava no fim da Avenida Central, do Rio de Janeiro.

Deste modo, esta divisão sempre foi muito clara quando se abordavam

os acontecimentos nacionais. Hodiernamente ainda vemos, em jornais e revistas dedicadas a notícias e fatos, que esta divisão ainda permanece. Para Euclides, esta divisão não é justa e nem mesmo corresponde à realidade, pois, segundo ele, o homem litorâneo, por mais que seja desenvolvido, não é autêntico, pois é uma imitação dos modelos europeus de homem.

Os homens que viviam no litoral, segundo Euclides, repetiam apenas aquilo que era feito ou criado na Europa, principalmente na França, pois no final do século XIX e início do século XX os intelectuais brasileiros, assim como a burguesia, seguiam os padrões franceses de comportamento. Tanto é que, como vimos, foi neste período que a cidade do Rio de Janeiro viveu plenamente a sua Belle Époque (expressão francesa que significa bela época).

Este encantamento pelo mundo europeu era falso para Euclides e não representava fidedignamente a realidade nacional. Ao contrário, o homem do

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TÓPICO 2 | FILÓSOFOS E SOCIÓLOGOS BRASILEIROS DE DESTAQUE

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interior era um bravo, um valente, que enfrentava as dificuldades e adversidades do solo e do terreno brasileiro para sobreviver.

Esta ideia de respeito pelo homem do interior e de retorno às raízes do Brasil era muito evidente neste período. Outros escritores, como José de Alencar, também defendiam uma volta à essência do Brasil, que era o próprio índio (desta ideia nasce uma das maiores obras de José de Alencar, "O Guarani"), que foi desrespeitado e aniquilado no início da colonização portuguesa.

O destaque de Euclides da Cunha era o de que o homem sertanejo havia adquirido uma certa resiliência devido ao fato de que, ao enfrentar as desditas da falta de urbanização e desenvolvimento econômico, teve que aprender a se superar e a tornar-se forte. O "meio ambiente" o forçou a se tornar quem ele era. Para Euclides, o mestiço do sertão, mesmo sendo reacionário, era mais verdadeiro que o mestiço do litoral.

[...] Diferentemente dos mestiços do litoral, os mestiços do Sertão teriam podido se desenvolver, ajudados por um meio ambiente mais favorável para tal, até alcançarem um tipo antropológico definido. Justamente por terem se livrado de uma cultura de empréstimo, dos hábitos e das maneiras copiadas da Metrópole, eles seriam capazes de uma integração simbiótica com o meio natural. Isso os tornaria mais autênticos, mais verdadeiros que os mestiços do litoral. (BERLATTO, 2010, p. 23).

FIGURA 69 – O SERTANEJO

FONTE: Disponível em: <http://www.brasilcultura.com.br/sociologia/sertanejo-3-de-maio/>. Acesso em: 20 jan. 2013.

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UNIDADE 3 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E SOCIAL NO BRASIL

E como afirma o site Brasil na sua página de sociologia:

Ao tentar compreender a psicologia do sertanejo, o escritor e jornalista Euclides da Cunha, através de sua famosa obra “Os Sertões”, fez um ensaio revelador sobre a formação do homem brasileiro. Desmistificou o pensamento vigente entre as elites do período, de que somente os brancos de origem europeia eram legítimos representantes da nação. Mostrou que não existe no país raça branca pura, mas uma infinidade de combinações multirraciais. Além disso, foi o primeiro a reportar cuidadosamente o episódio da Campanha de Canudos, um festival de massacres de homens e mulheres que entrou para a história. Por essas e outras, o homem do sertão é um “grande personagem numa paisagem inóspita”, que merece toda a admiração devida por sua luta diária pela sobrevivência. (BRASIL CULTURA, 2013).

A análise de Euclides da Cunha é, sem dúvida, muito interessante, se pensarmos de acordo com o momento histórico pelo qual o país estava passando. As várias transformações decorrentes do fim da escravidão e da proclamação da República fazem o pano de fundo. Uma abolição com um atraso superior a um século, se comparado a outras nações que adotaram a escravidão, e uma proclamação da República que foi, na verdade, um golpe de Estado, representam bem este momento histórico. Ao mesmo tempo, houve um lapso de definição sobre qual caminho a nova nação deveria seguir.

O litoral, principalmente com a vinda de D. João VI para o Brasil, permaneceu sendo a sede da colônia e, posteriormente, da nação. E esta sede só foi modificada no início dos anos 1950, quando Juscelino Kubitschek assumiu a Presidência. Aliás, gostaríamos de chamar a atenção para um fato muito interessante: Euclides da Cunha e outros pensadores defenderam com ímpeto a valorização do interior do país. E o grande "ouvidor" desta ideia só apareceu um bom tempo depois, quando Kubitschek tornou-se presidente, pois possivelmente inspirado pelas ideias de Euclides, ele iniciou a construção da cidade de Brasília, bem no meio do cerrado no Planalto Central.

Entretanto, caro(a) acadêmico(a), esta é apenas uma suposição, um devaneio que acreditamos ser verossímil ou plausível de aceitação. É evidente que os interesses de Kubitschek não eram tão "românticos" assim, mas fica no ar a possível aproximação entre o ex-presidente e o pensador.

Contudo, no início dos anos 1910, o único conceito aceito era o da imitação do mundo europeu, pois até mesmo os abolicionistas defendiam esta tese inspirados em ideais europeus (vide Joaquim Nabuco). Este, por ora, deveria ser, então, o novo caminho a ser trilhado.

Todavia, a visão de Euclides nunca foi bem recebida por outros intelectuais de sua época, pois falar do homem sertanejo como novo representante do Brasil

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TÓPICO 2 | FILÓSOFOS E SOCIÓLOGOS BRASILEIROS DE DESTAQUE

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era uma afronta ao progresso. Outra coisa muito curiosa do pensamento brasileiro vigente à época era o de difundir um abandono do passado, um completo esquecimento da história e a fundação de um novo olhar sobre o Brasil, ou seja, era necessário implantar em todos um ardente desejo de mudança, mas esta mudança deveria ser o mais pragmática possível. Este pragmatismo foi a nova regra: o que vale é aquilo que tem utilidade agora.

O passado deve ser deixado para trás. Sabemos que, quando falamos no sentido individual e psicológico, muitos erros e equívocos devem ser superados (porém não esquecidos), mas quando abordamos o passado em um sentido mais coletivo, é necessário esmiuçá-lo e analisá-lo de modo mais coerente. As marcas históricas do passado não podem ser simplesmente olvidadas. Elas devem ser assimiladas e literalmente digeridas para que um novo começo seja realizado. O esquecimento do passado é uma atitude incorreta e inútil. Entretanto, a máxima de que "quem vive do passado é museu" tenta incutir nas pessoas a ideia de que somente a novidade interessa. Até mesmo o ato de não irmos ao museu já nos delata: a história não nos interessa. Apenas o progresso nos fascina. (BERLATTO, 2010).

Porém (e para finalizar), Euclides, ao falar sobre o sertanejo, destaca a sua vontade de viver, apesar de suas limitações físicas. Aliás, na descrição que Euclides faz do homem sertanejo nota-se uma grande similaridade com o pensamento de Friedrich Nietzsche, que destaca o valor realmente humano daquele que abraça e enfrenta a vida com vigor e determinação, apesar das inúmeras vicissitudes que ela apresenta.

A sua evolução psíquica, por mais demorada que esteja destinada a ser, tem, agora, a garantia de um tipo fisicamente constituído e forte. Aquela raça cruzada surge autônoma e, de algum modo, original, transfigurando, pela própria combinação, todos os atributos herdados; de sorte que, despeada afinal da existência selvagem, pode alcançar a vida civilizada, por isto mesmo que não a atingiu de repente [mas, como resultado desta evolução]. Ao invés da inversão extravagante que se observa nas cidades do litoral, onde funções altamente complexas se impõem a órgãos mal constituídos, comprimindo-os e atrofiando-os antes do pleno desenvolvimento - nos sertões, a integridade orgânica do mestiço desponta inteiriça e robusta, imune de estranhas mesclas, capaz de envolver, diferenciando-se, acomodando-se a novos e mais altos destinos, porque é a sólida base física do desenvolvimento moral ulterior [...].O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral. A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o desempeno, a estrutura corretíssima das organizações atléticas. É desgracioso, desengonçado, torto. [...] (CUNHA, 2001, p. 203, 204 e 207).

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UNIDADE 3 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E SOCIAL NO BRASIL

DICAS

Sugestão de filme: GUERRA DE CANUDOS

Sinopse: Em 1893, Antônio Conselheiro (José Wilker) e seus seguidores começam a tornar um simples movimento em algo grande demais para a República, que acabara de ser proclamada e decidira por enviar vários destacamentos militares para destruí-los. Os seguidores de Antônio Conselheiro apenas defendiam seus lares, mas a nova ordem não podia aceitar que humildes moradores do sertão da Bahia desafiassem a República. Assim, em 1897, esforços são reunidos para destruir os sertanejos. Estes fatos são vistos pela ótica de uma família com opiniões conflitantes sobre Conselheiro.

FONTE: Disponível em: <http://www.adorocinema.com/filmes/filme-118416/>. Acesso em: 20 jan. 2013.

AUTOATIVIDADE

Diante do pensamento de Euclides da Cunha, explique em breves palavras o que você compreendeu do autor. Você acredita que o representante mais legítimo do Brasil é o litorâneo ou o sertanejo? Justifique a sua resposta.________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

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3 OLIVEIRA VIANA

FIGURA 70 – OLIVEIRA VIANA

FONTE: Disponível em: <http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=136>. Acesso em: 15 jan. 2013.

Francisco José de Oliveira Viana é considerado um pensador de postura conservacionista. O seu modo de entendimento da realidade é divergente do pensamento de Euclides da Cunha. Oliveira Viana é um defensor de uma sociedade predefinida em funções e atribuições. Segundo ele, cada um de nós precisa respeitar as responsabilidades que nos são impostas. De um modo geral, ele defende a ideia de que as pessoas não devem ser vistas do mesmo modo, seja do ponto de vista jurídico ou racial. Não há uma linha universal de desenvolvimento e ascensão intelectual, física, moral ou biológica.

Oliveira Viana não acreditava que houvesse uma evolução unânime das etnias. Cada etnia ou raça se desenvolve de modo diferente. Aliás, ele considerava que determinadas raças/etnias jamais alcançariam o patamar de outras mais evoluídas. Não bastaria copiar o modus vivendi de outro grupo étnico para que houvesse alguma alteração ou evolução. Era preciso levar em conta outros aspectos, tais como, espaço geográfico, história, cultura etc.

Não obstante, já podemos inferir aqui uma conclusão decorrente deste primeiro parágrafo. Oliveira Viana demonstra que o principal ponto de fraqueza do povo brasileiro na primeira metade do século XX é o elevado contingente de pessoas negras, isto é, a escravidão no Brasil foi tão intensa e profunda que a imigração forçada de negros para o país prejudicou-o demasiadamente.

Era necessário agora investir na imigração europeia, que funcionaria, ao mesmo tempo, como melhoramento da mão de obra nas indústrias incipientes e como melhoramento racial por meio da eugenia. Estes dois melhoramentos, segundo ele, transformariam o Brasil em um país forte e promissor. Aliás, caro(a)

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UNIDADE 3 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E SOCIAL NO BRASIL

FIGURA 71 – OBRA "REDENÇÃO DE CAM", DE ROBERTO BROCOS (1895). A AVÓ NEGRA AGRADECE A DEUS PELO NASCIMENTO DE UM NETO BRANCO

acadêmico(a), lembre-se de que Getúlio Vargas foi um defensor pertinaz da imigração europeia para o Brasil. Este processo eugênico de branqueamento da nação fez parte do programa de desenvolvimento nacional da primeira metade do século XX, que contava, indiretamente, digamos assim, com Oliveira Viana como um possível mentor intelectual. Outrossim, vale destacar que ele mostrava-se totalmente contrário à imigração japonesa, sendo, por muitos, definido como um racista nipônico.

FONTE: Disponível em: <http://www.viomundo.com.br/politica/a-caixa-machado-de-assis-e-o-branqueamento-do-brasil.html>. Acesso em: 5 fev. 2013.

Por outro lado, se faz necessário lembrar a você, caro(a) acadêmico(a), que a visão de sociedade apresentada por Oliveira Viana (e por muitos pensadores contemporâneos a ele) coaduna-se com aquilo que abordamos recentemente neste material: “A história do passado deve ser esquecida. O que vale é o agora”. Enfim, neste caso, "os negros que se danem". Além do mais, Oliveira Viana pensava como burguês e defendia os interesses de sua classe.

Ao falar sobre o sistema social do Brasil, ele protegia "com unhas e dentes" a ideia de que o melhor modelo que nós tivemos foi o latifundiário. Além disso, é muito difícil afirmar se a sua visão de mundo era ingênua ou estrábica, pois afirmava que durante a sua História o Brasil havia passado por poucas revoluções ou conflitos e que, justamente por este motivo, o povo era afeito às decisões de seus superiores, principalmente seus governantes, que sabiam lidar com maestria

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TÓPICO 2 | FILÓSOFOS E SOCIÓLOGOS BRASILEIROS DE DESTAQUE

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e "punho forte" na governança de grandes propriedades de terra. É como se o povo, de um modo geral, não tivesse a capacidade de se autogerenciar. Dito de outro modo, é como se o povo fosse um rebanho sem pastor, uma "orquestra sem maestro".

A ideia de Oliveira Viana, em última análise, se compara à ideia de um povo destituído de vontade própria e que precisa de um orientador, um adestrador para canalizar esta vontade. Além disso, como vimos no início, Oliveira Viana dizia que não devíamos imitar modelos de outras etnias ou raças (mesmo defendendo a imigração de europeus). Cada lugar, país ou nação devia seguir os seus próprios rumos. É por isso que, para ele, a ideia de uma nação soberana se fundava na noção de branqueamento racial (como progresso), de um lado, e de permanência de uma "monarquia" latifundiária (como ordem), por outro.

O latifúndio cafeeiro, como o latifúndio açucareiro, tem uma organização complexa e exige capitais enormes: pede também uma administração hábil, prudente e enérgica. É, como o engenho de açúcar, um rigoroso selecionador de capacidades. Só prosperam, com efeito, na cultura dos cafezais, as naturezas solidamente dotadas de aptidões organizadoras, afeitas à direção de grandes massas operárias e à concepção de grandes planos de conjunto. [Algo próprio de homens brancos]. O tipo social dela emergente é, por isso, um tipo social superior, tanto no ponto de vista das suas aptidões para a vida privada, como no ponto de vista das suas aptidões para a vida pública. Daí formar-se, nas regiões onde essa cultura se faz, a base fundamental da atividade econômica, uma elite de homens magnificamente providos de talentos políticos e capacidades administrativas. (VIANA, 1933, p. 104).

Veja, caro(a) acadêmico(a), o pensamento deste autor é predominantemente elitista/racista. O que significa dizer que jamais um homem como Joaquim Barbosa, atual presidente do Supremo Tribunal Federal, teria condições de assumir tal cargo, por ter nascido negro. Esta comparação se faz necessária, principalmente porque esta compreensão reducionista da realidade não pode ser mais acolhida em nossos dias. O etnocentrismo, que é a noção de que apenas uma etnia ou raça deve ser "o centro do mundo", deve ser superada e suplantada pela conquista por mérito ou competência. Julgar uma pessoa apenas pela cor de sua pele é um ato vil, mesquinho e inaceitável.

Além disso, destacamos outro ponto importante: como Marx abordou em suas obras, toda a história mundial está marcada pela divisão social entre ricos e pobres, entre burgueses e proletários. Em nosso país, a coisa não foi diferente. Deste modo, Oliveira Viana é um ícone desta tradição e superlativação do "capital" (e seus detentores) sobre o resto do mundo. Diante disso, o cantor MV Bill compôs uma música que critica, com intensidade, este tipo de pensamento calhorda e vil, chamada “Só Deus pode me julgar”.

Caro(a) acadêmico(a), preste atenção nesta letra e tire suas próprias conclusões.

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UNIDADE 3 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E SOCIAL NO BRASIL

Só Deus Pode Me Julgar

MV Bill

Vai ser preciso muito mais pra me fazer recuarMinha autoestima não é fácil de abaixarOlhos abertos fixados no céuPerguntando a Deus qual será o meu papelFechar a boca e não expor meus pensamentosCom receio que eles possam causar constrangimentosSerá que é isso? Não cumprir compromissoAbaixar a cabeça e se manter omissoA hipocrisia, a demagogiaSe entregue a orgia, sem ideologiaA maioria fala do amor no singularSe eu falo de amor é de uma forma impopularQuem não tem amor pelo povo brasileiroNão me representa aqui nem no estrangeiroUma das piores distribuições de rendaAntes de morrer, talvez você entendaConfesso para ti que é difícil de entenderNo país do carnaval o povo nem tem o que comerSer artista, popstar, pra mim é poucoNão sou nada disso, sou apenas mais um loucoClamando por justiça e igualdade racialPreto, pobre, é parecido, mas não é igualÉ natural o que fazem no senadoQuem engana o povo simplesmente renuncia o cargoNão é cassado, abre mão do seu mandatoNas próximas eleições bota a cara como candidatoPovo sem memória, caso esquecidoNão foi assim comigo, fiquei como bandidoSe quiser reclamar de mim, que reclameMas fale das novelas e dos filmes do Van DammeQue teve no Brasil, no programa do GuguRebolou, vacilou, agachou e mostrou o...Volta pra América e avisa pra MadonnaQue aqui não tem censura, meu país é uma zonaNão tem dono, não tem dona, o nosso povo tá em comaErga a sua cabeça que a verdade vem à tonaÉ, mantenho minha cabeça em péFale o que quiser pode vir que já éJunto com a raléSem dar marcha-réSó Deus Pode Me JulgarPor isso eu vô na fé

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Soldado da guerra a favor da justiçaIgualdade por aqui é coisa fictíciaVocê ri da minha roupa, ri do meu cabeloMas tenta me imitar se olhando no espelhoPreconceito sem conceito que apodrece a naçãoFilhos do descaso mesmo após aboliçãoMais de 500 anos de anos de angústia e sofrimentosMe acorrentaram, mas não meus pensamentosMe fale quem? (quem), Tem o poder? (quem)Pra condenar? (quem), Pra censurar? (alguém)Então me diga o que causa mais estrago100 gramas de maconha ou 1 maço de cigarroO povo rebelado oculiza na favelaA música do Bill ou a próxima novelaNa tela a sequela, no poder corrupçãoEntramos pela porta de serviço, nossa grana nãoTá bom, só pra quem manda baterPisando nos humildes e fazendo nosso ódio crescerCV, MST, CUT, UNI, CUFA, PCCO mundo se organiza cada um da sua maneiraContinuam ironizando vendo como brincadeira (besteira)Coisa de moleque revoltadoNinguém mais quer ser boneco, ninguém quer ser controladoVigiado, programado, calado, ameaçadoSe for filho de bacana, o caso é abafadoA gente é que é caçado, tratados como réuAs armas que eu uso é microfone, caneta e papelA socialite assiste a tudo caladaSalve, salve, salve, Ó Pátria Amada, Mãe GentilPoderosos do BrasilQue distribuem para as crianças, cocaína e fuzilMe calar, me censurar porque não pude falar nadaÉ como se fosse o Rabo sujo, falando da Bunda mal lavadaSem investimento, no esquecimentoExplode o pensamento, mais um homem violentoQue pega no canhão e age inconsequenteOu pega o microfone com discurso incontundente(Que te assusta) Uma atitude bruscaDignificando e vivendo por uma vida justaFui transformado no bandido do milênioO sensacionalismo por aqui merece um prêmioEu tava armado mas não sou da sua laiaQuem é mais bandido? Beira-Mar ou o Sérgio NayaQuem será que irá responderGovernador, Senador, Prefeito, Ministro ou vocêQue é caçado, e sempre paga o pato

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Erga sua cabeça para não ser decepadoComo pode ser tragédia, a morte de um artistaE a morte de milhões, apenas uma estatísticaFato realista de dentro do BrasilVocê que chorava lá no gueto, ninguém te viuSem fantasiar, realidade dóiSegregação e menosprezo é o que destróiA maioria esquecida no barracoQue ainda é algemado, extorquido e assassinadoNão é moda, quem pensa incomodaNão morre pela droga, não vira massa de manobraNão me idolatro a Mauricinho da TVNão deixa se envolver porque tem procederPra que? Por quê? Só tem paquita loiraAqui não tem preta como apresentadoraNovela de escravo, a emissora gostaMostra os pretos chibatados pelas costasFaz confusão na cabeça de um molequeque não gosta de escola e admira uma IntratecClick-Cleck, mão na cabeçaQuando for roubar dinheiro público vê se não se esqueçaQue na sua conta tem a honra de um homemEnvergonhado ao ter que ver sua família passando fomeOrdem, progresso e perdãoNa terra onde quem rouba muito não tem puniçãoÉ! Mantenho minha cabeça em pé!Fale o que quiser pode vir que já é!Junto com a ralé. Sem dar marcha-ré!Só Deus pode me julgar, por isso, eu vou na fé!

FONTE: Disponível em: <http://www.vagalume.com.br/mv-bill/so-deus-pode-me-julgar.html#ixzz2L0zAAib4>. Acesso em: 5 fev. 2013.

AUTOATIVIDADE

O nazismo foi concebido com base na ideia do etnocentrismo. Deste modo, escreva uma redação estabelecendo alguns pontos de ligação entre a eugenia de Oliveira Viana e Getúlio Vargas com as ideias principais do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães (Partido Nazista).____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

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4 SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDAEste pensador nacional pode ser considerado como um dos principais

pesquisadores da diversidade social do Brasil. Sua análise, além de ser perspicaz, é pontual, pois aguça a vontade do leitor de aprofundar-se mais no universo da multiculturalidade brasileira. Seu maior trunfo foi o de investigar cada momento histórico do Brasil com uma lupa, isto é, ele tentou compreender como cada situação da nossa história definiu o que o país é atualmente, dando ênfase em detalhes históricos que não são pormenorizados pela macro-história.

Dito isso, podemos compreender que a análise de Holanda é mais sociológica do que a análise do pensador anterior (Oliveira Viana), pois parte de situações reais e não hipotéticas da vida dos brasileiros, para daí elaborar as suas considerações. Sua principal obra chama-se “Raízes do Brasil”, e é vista como um marco da História da Sociologia Brasileira.

Em sua busca de compreensão do estilo brasileiro de ser e viver, ele avaliou como o brasileiro se define ou se autoanalisa. E nesta busca ele conseguiu encontrar alguns traços fortes que denominam, genericamente, o imaginário coletivo do povo brasileiro. A primeira característica que Holanda destaca é a ideia de que o brasileiro é cordial, ou seja, que ele age motivado por razões afetivas.

Contudo, caro(a) acadêmico(a), é necessário lembrá-lo de que esta análise feita por Holanda aborda o problema sem afirmar, com precisão, que todos os brasileiros são cordiais. A ideia de Holanda é destacar como a vida social brasileira funciona, sem oferecer, por outro lado, uma resposta única e estanque para as diferentes disposições analisadas. O que importa, para ele, é a capacidade de tomarmos consciência da existência desta diversidade e compreendê-la.

Voltando ao ponto do brasileiro cordial, podemos deduzir que existem certos ícones nacionais que representam muito bem este papel. Dentre eles, destacamos o personagem de Zé Carioca, de Walt Disney; João Grilo, personificado pelo ator Matheus Nachtergaele, no filme "Auto da Compadecida" e inspirado no livro homônimo de Ariano Suassuna, e os homens acostumados à boêmia.

FIGURA 72 – ZÉ CARIOCA

FONTE: Disponível em: <www.guiadosquadrinhos.com/personbio.aspx?cod_per=3191>. Acesso em: 28 fev. 2013

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FIGURA 73 – JOÃO GRILO

Não obstante, Sérgio Buarque de Holanda descreve a ideia de homem cordial da seguinte maneira:

Já se disse, numa expressão feliz, que a contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade - daremos ao mundo o "homem cordial". A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal [...] Nenhum povo está mais distante dessa noção ritualista da vida do que o brasileiro. Nossa forma ordinária de convívio social é, no fundo, justamente o contrário da polidez. [...] No domínio da linguística, para citar um exemplo, esse modo de ser parece refletir-se em nosso pendor acentuado para o emprego dos diminutivos. A terminação "inho", aposta às palavras, serve para nos familiarizar mais com as pessoas ou os objetos e, ao mesmo tempo, para lhes dar relevo [o que caracteriza a ideia excessivamente personalista de inter-relacionamento no Brasil]. (HOLANDA, 2006, p. 160-162).

Além do conceito de homem cordial, é importante salientar que um dos pontos mais importantes dos estudos de Holanda é a ideia de que o brasileiro desenvolveu uma cultura profundamente personalista nas suas relações interpessoais, que, segundo ele, é decorrente da profunda carga cultural aportada pelos portugueses e espanhóis em nosso país. Isso significa dizer que quase tudo aquilo que vemos e fazemos toma uma dimensão exageradamente pessoal, quando somos elogiados ou quando somos repudiados. Nossas relações são profundamente fundadas sobre estes dois polos. Quando somos elogiados, criamos um apreço quase cego pelos elogiadores.

Contudo, quando somos criticados ou cobrados por alguém, nossa tendência não é a abertura ou o diálogo sobre o problema. Ao invés, criamos um desdém por tal pessoa, ao ponto de elaborarmos fofocas e maledicências sobre

FONTE: Disponivel em: <https://www.oautodacompadecida.com.br/2017/10/porque-o-auto-da-compadecida-nao-foi.html>. Acesso em: 19 mar. 2018.

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ela. Esta visão demasiadamente personalista é um dos pontos mais elaborados por Holanda, pois graças a este entrave relacional, as pessoas não desenvolvem uma ética do trabalho (seja sobre o desejo de trabalhar ou pela convivência com os colegas de trabalho).

A própria noção de ética fica obtusa, pois a ideia de ter vantagem em tudo se sobressai. "Passar a rasteira" para conseguir o que se quer parece ser, em nosso país, uma máxima praticada com frequência. As aventuras, as ações não planejadas, a ideia de que "Deus tudo proverá" são procedimentos usados corriqueiramente pelas pessoas como forma de justificar as ações displicentes por elas cometidas.

É muito comum encontrarmos pessoas no Brasil que permanecem poucos meses vinculados a um emprego ou empresa. Elas compreendem que, no momento em que um funcionário de maior nível (ou até mesmo o próprio chefe), dentro da empresa, lhes cobra uma postura mais proativa, ele está fazendo uma intimidação, uma coação (isso não significa dizer que não ocorra). Diante disso, a pessoa sente-se prejudicada, injuriada e pede, peremptoriamente, a demissão, pois julga que o ato de seu superior foi profundamente personalista.

Em outras palavras, o trabalho duro não é visto (e tampouco a educação) como uma via de sucesso, isto é, o trabalho é um lugar de sofrimento, pois ali as pessoas são julgadas e analisadas e isto não agrada a ninguém. Sendo assim, nota-se que no imaginário coletivo dos brasileiros impera a noção de que "ter comida e saúde já é o suficiente". Dito de outro modo, podemos considerar que o compromisso demasiado com o presente (esquecendo o passado e evitando o futuro) é uma verdade aceita pela maioria dos brasileiros.

Caro(a) acadêmico(a), sabemos que há uma grande repetição desta frase, contudo, vale a pena escrevê-la novamente: para muitos brasileiros, a única coisa que interessa é o agora. Sérgio Buarque de Holanda conseguiu captar a correlação desta frase com o resto do contexto social do país. Segundo ele, ao mesmo tempo em que os brasileiros aceitam viver intensamente o agora, eles reportam certas responsabilidades individuais para outras pessoas ou instituições. E é justamente por este motivo que, para Holanda, o Estado é tão paternalista e clientelista. As pessoas recorrem diante de problemas aparentemente insolúveis, em última instância, ao Estado, pois assim elas poderão suprir as suas carências econômicas e sociais mais prementes.

Contudo, estas carências decorrem da incapacidade das pessoas de gerenciarem a própria vida. Entretanto, e aí repousa a "jogada de mestre" do Estado, os governantes sabem que, quanto mais dependente um povo é, mais fácil de ser governado ele será. A submissão e a alienação só ocorrem quando as pessoas aceitam, mesmo que involuntariamente, tais imposições. Mas sobre isso, caro(a) acadêmico(a), a esta altura da aprendizagem cremos que não deve haver "nada de novo debaixo do Sol", não é mesmo?! Pois no Brasil "é tudo igual, igual, igual...”.

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No Brasil, afirma o autor, a democracia sempre foi um mal-entendido, já que aqui predominaram formas de dominação personalistas, clientelistas, autoritárias e, portanto, ibéricas, isto é, distantes de um padrão ideal democrático e universalista. "Em terra onde todos são barões não é possível acordo coletivo durável, a não ser por uma força exterior respeitável e temida". (BERLATTO, 2010, p. 26). (grifo do original).

DICAS

Sugestão de filme: O AUTO DA COMPADECIDA

As aventuras dos nordestinos João Grilo (Matheus Natchergaele), um sertanejo pobre e mentiroso, e Chicó (Selton Mello), o mais covarde dos homens. Ambos lutam pelo pão de cada dia e atravessam por vários episódios enganando a todos do pequeno vilarejo de Taperoá, no sertão da Paraíba. A salvação da dupla acontece com a aparição da Nossa Senhora (Fernanda Montenegro). Adaptação da obra de Ariano Suassuna.

FONTE: Disponível em: <http://www.adorocinema.com/filmes/filme-120824/>. Acesso em: 5 fev. 2013.

AUTOATIVIDADE

Com base nas ideias de Sérgio Buarque de Holanda, responda ao que se pede:

1 A afirmação de que “o brasileiro é cordial” é um mito? Justifique sua resposta.

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2 Por que é tão forte, em nosso país, a ideia de que o trabalho e a educação não são caminhos para o sucesso? Justifique.

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3 Você acredita que o problema da ausência de uma ética interpessoal (o excesso de fofocas e falta de compromisso com o trabalho) no país é uma herança histórica ou é algo inato em muitos brasileiros? Justifique sua resposta.

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LEITURA COMPLEMENTAR

O JEITINHO DO HOMEM CORDIAL

OscarPilagallo

Poucos conceitos se prestam a tamanha confusão quanto o de “homem cordial”, central no livro Raízes do Brasil, do historiador Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982). Logo após a publicação da obra em 1936, o escritor Cassiano Ricardo implicou com a expressão. Para ele, a ideia de cordialidade, como característica marcante do brasileiro, estaria mal aplicada, pois o termo adquirira, pela dinâmica da linguagem, o sentido de polidez – justamente o contrário do que queria dizer o autor.

A polêmica sobre a semântica teria ficado perdida no passado não fosse o fato de que, até hoje, muitas pessoas, ao citar inadvertidamente a obra, emprestam à noção de Buarque de Holanda uma conotação positiva que, desde a origem, lhe é estranha. Em resposta a Cassiano, o autor explicou ter usado a palavra em seu verdadeiro sentido, inclusive etimológico, que remete a coração. Opunha, assim, emoção à razão. O didatismo foi incluído numa nota na segunda edição, de 1947, bastante modificada, e que seria a definitiva, salvo por pequenas alterações posteriores.

Apesar do zelo do autor, no entanto, o equívoco persistiu. Afinal, o que haveria de errado na cordialidade brasileira, nesse sentido de afetuosidade típica de um povo? Não haveria nada condenável se a afabilidade se desse em ambiente privado, em relações entre familiares e amigos. A expressão “homem cordial”, a propósito, fora cunhada anos antes, por Rui Ribeiro Couto, que julgou ser esse tributo uma contribuição latina à humanidade.

O problema surge quando a cordialidade se manifesta na esfera pública. Isso porque o tipo cordial – uma herança portuguesa reforçada por traços das culturas negra e indígena – é individualista, avesso à hierarquia, arredio à disciplina, desobediente a regras sociais e afeito ao paternalismo e ao compadrio, ou seja, não se trata de um perfil adequado para a vida civilizada numa sociedade democrática.

A questão é lançada logo na abertura do capítulo que aborda o homem cordial. “O Estado não é uma ampliação do círculo familiar”, afirma o ensaísta.

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“Não existe, entre o círculo familiar e o Estado, uma gradação, mas antes uma descontinuidade e até uma oposição.” Para o homem cordial, no entanto, há uma extensão natural entre os dois planos. A atitude se manifesta até na linguística, “com o nosso pendor acentuado para o emprego de diminutivos”. Se tal expressão já existisse, Buarque de Holanda certamente teria falado no “jeitinho brasileiro”, pela síntese involuntária que faz de suas ideias.

Escrito em meados da década de 1930, Raízes do Brasil data de um período de transição política. A República Velha tinha ficado para trás, a ditadura varguista ainda não se instalara totalmente e a democracia formal era uma perspectiva remota. Desde o movimento modernista, no entanto, que na década de 1920 desferira um golpe contra a influência lusitana na cultura, intelectuais brasileiros procuravam uma identidade brasileira. O livro de Buarque de Holanda faz parte desse esforço, ao lado de Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre. Como intérpretes do Brasil, ambos são gigantes, embora com visões divergentes: enquanto Freyre revela certa nostalgia da influência portuguesa, Buarque de Holanda se regozija por ela começar a ser superada.

Esboçado na Alemanha na virada da década de 1920, quando o autor lá morou trabalhando como jornalista, o ensaio dá pistas de como a convivência com o pensamento germânico influenciou o autor. Em Berlim, Buarque de Holanda tomou contato com a obra de Max Weber, um dos pais da sociologia, e adaptou seu método para descrever a realidade brasileira, numa obra que mistura, além da sociologia, história, antropologia e psicologia social.

Politicamente, Buarque de Holanda é mais lembrado como um intelectual simpático às esquerdas, em grande parte por ter sido, em 1980, membro fundador do Partido dos Trabalhadores, que nasceu à esquerda. Essa associação, porém, não reflete sua trajetória. Na época em que publicou Raízes do Brasil, quando os intelectuais costumavam se dividir entre integralistas e comunistas, Buarque de Holanda se manteve afastado dos extremos ideológicos, sempre defendendo uma democracia que representasse avanços sociais.

Na época, isso inexistia no país. “A ideologia impessoal do liberalismo democrático jamais se naturalizou entre nós”, escreveu. “A democracia no Brasil sempre foi um lamentável mal-entendido. Uma aristocracia rural e semifeudal importou-a e tratou de acomodá-la, onde fosse possível, aos seus direitos ou privilégios”.

Passados mais de 70 anos, por mais que o Brasil tenha mudado, suas raízes continuam visíveis na informalidade descompromissada com a ética que ainda perpassa setores da vida pública. Mas não é só por isso que a obra merece ser (re)lida. Se o livro sobrevive com o frescor próprio dos clássicos é também porque Sérgio Buarque de Holanda, dono de um texto em que nada falta, nem sobra, se expressa com a elegância, a erudição e a sofisticação dos grandes escritores, que fazem tais predicados parecerem naturais.

FONTE: Disponível em: <http://www2.uol.com.br/historiaviva/reportagens/o_jeitinho_do_homem_cordial_imprimir.html>. Acesso em: 5 fev. 2013.

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5 FLORESTAN FERNANDESFlorestan Fernandes é considerado um dos principais sistematizadores

do pensamento sociológico do Brasil. Suas principais ideias estão relacionadas com um problema já abordado por Oliveira Viana no início do século XX, a saber, o problema racial. Contudo, suas ideias estão relacionadas a uma visão mais abrangente do conceito de raça no Brasil. Não obstante, ele definia que era preciso ponderar sobre tal julgamento, utilizando-se as noções de relativismo e diversidade culturais. Ele se autodenominava um “sociólogo militante”, pois defendia as causas populares e seguia uma linha de pensamento mais marxista.

Seu interesse intelectual era profundamente nacional, sendo que a sua primeira viagem para o exterior aconteceu somente após a sua aposentadoria. Ele acreditava profundamente que era necessário conciliar a prática com a teoria.

Outrossim, Fernandes demonstrava, ao assumir responsabilidades civis como político e professor, que era possível crer nesta conciliação, mesmo que, por muitas vezes, ela não viesse a ocorrer de fato. É neste sentido que Florestan Fernandes é reconhecido como um grande sociólogo brasileiro, pois, ao agir deste modo, despertava o interesse de muitos estudiosos pelo engajamento e pela práxis, pois gerava neles um anseio de amplitude social maior, fazendo-os “sair de suas salas de aula” para conhecer de forma mais direta, e concreta, a sociedade.

Fernandes estudou a sociedade brasileira sob a ótica marxista, aplicando na sua análise o método dialético fundado em Hegel, mas aprimorado pelo próprio Marx. Segundo o pensador alemão Karl Marx, a vida social apresenta-se numa constante contradição de interesses. Sendo assim, por exemplo, temos os empresários das grandes indústrias que protegem o seu quinhão a todo custo. Tal proteção precisa ser feita, com toda veemência, na relação com outros grupos sociais. No caso, segundo Marx (e Fernandes pensa deste modo também), o outro grupo que se evidencia nesta relação de oposição é o proletariado. Deste modo, nota-se que há um conflito entre os grupos, isto é, uma relação de tese e antítese, pois temos, em uma instância, aqueles que querem fazer prevalecer o seu interesse (empresários como tese), enquanto que, de outro lado, temos pessoas que desejam opor-se a tal vontade (trabalhadores como antítese). E nesta constante luta de opostos, a sociedade vai se constituindo naquilo que é. (COSTA, 2005).

Diante disso, Fernandes, pautado em Marx, afirma que nossa sociedade, assim como toda sociedade capitalista, funda-se na contradição entre os donos dos modos de produção e aqueles que vendem a sua força de trabalho para estes donos. A síntese social se dá na frequente mudança que este conflito gera. Em suma, a sociedade, segundo Marx e Fernandes, será sempre fruto desta oscilação entre estes dois opostos, pois, como ele mesmo afirma, “a classe social alicerça-se sobre a comunidade de interesses de classe e de situações de classe”. (FERNANDES, 1968, p. 72).

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Esta oposição se assevera se levarmos em conta que, dentro da grande comunidade de operários, por exemplo, há uma forte distinção no Brasil entre o operário negro e o operário branco. O peso da discriminação se agrava muito mais sobre o negro. Primeiro, por ser operário e, segundo, por ser negro.

Conforme Florestan Fernandes, o preconceito racial está entre as maiores dificuldades enfrentadas pelos negros no Brasil. Ele se traduzia (e se traduz) em todo tipo de resistência aberta e dissimulada à admissão do negro em condição de igualdade. Em outras palavras, o preconceito de cor e a discriminação racial teriam atuado como elementos impeditivos, verdadeiros obstáculos à formação de uma efetiva sociedade de classes. (BERLATTO, 2010, p. 24).

Trabalhador negro tem 61% do rendimento do não negro, aponta DIEESE.Reportagem publicada em 13/11/2012.

A uma semana do feriado paulistano do Dia da Consciência Negra, comemorado no próximo dia 20, pesquisa realizada pela Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade) e pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), com base em dados referentes a 2011, mostra que os trabalhadores negros são maioria em setores como construção civil e serviços domésticos, que pagam menos, exigem menor qualificação profissional e têm relações trabalhistas mais precárias. Já em setores como serviços, indústria e comércio, os não negros predominam. O resultado é que o rendimento médio por hora dos trabalhadores negros (R$ 6,28) representa apenas 61% do rendimento dos não negros (R$ 10,30).

Os números da Seade e do Dieese, divulgados nesta terça-feira (13), são da Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED), retratam a situação do trabalho na região metropolitana de São Paulo e mostram que, apesar da redução das desigualdades ao longo das últimas décadas, ainda existem diferenças significativas nas condições de trabalho vivenciadas por negros (pretos e pardos) e não negros (brancos e amarelos).

O estudo analisou cinco setores econômicos: serviços, indústria, comércio, construção civil e serviços domésticos. De acordo com o levantamento, 8,4% dos trabalhadores negros estão na construção civil, enquanto a parcela de não negros empregados neste setor é de 4,9%. Serviços domésticos empregam 10,1% dos negros, ante 5,4% de não negros.

No setor de serviços está a maior parcela de trabalhadores não negros (54,6%), enquanto a dos negros chega a 48,8%. Na indústria, estão empregados 18,4% dos não negros e 17,2% de negros. No comércio, as vagas estão com 16,2% dos não negros e 15% de negros.

Em 2011, na Grande São Paulo, os negros representavam cerca de 34% tanto da População em Idade Ativa (PIA) quanto da População Economicamente Ativa (PEA).

Negros ganham menos em setores que pagam maisOs negros (pretos e pardos) ganham pouco mais do que 50% do rendimento pago a não negros (brancos e amarelos) nos setores de serviços e indústria, que são os que melhor pagam na região da Grande São Paulo.

ATENCAO

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No setor de serviços, em que o rendimento médio por hora é de R$ 10,03, os negros ganham R$ 6,77, enquanto os não negros recebem R$ 11,67. Isso significa que o rendimento por hora dos negros representa 58% do rendimento dos não negros.

Esse quadro se repete na indústria, segundo setor que melhor paga, cujo rendimento médio por hora é de R$ 9,76. Os negros ganham R$ 6,75 ante R$ 11,26 dos não negros. Nesse setor, o rendimento médio por hora dos negros representa 59,9% dos não negros.

Por outro lado, no setor de serviços domésticos, em que o rendimento médio por hora é de R$ 4,83, os negros ganham R$ 4,83 e os não negros R$ 4,84, ou seja, o rendimento médio por hora dos negros nesse setor representa 99,8% do rendimento dos não negros.

O coordenador de análise da Fundação Seade, Alexandre Loloian, disse que, embora haja essa diferença significativa, os números já foram piores para os negros. Ele mostrou que, em 2002, o rendimento médio por hora dos negros no setor de serviços representava 55,5% dos não negros. Na indústria, esse valor era de 53,2%.

No índice geral, o rendimento médio por hora dos trabalhadores negros era de R$ 5,47 em 2002 e, em 2011, ficou em R$ 6,28. “Isso representa uma alta de 14,8% em termos reais”, disse Loloian. No caso dos trabalhadores não negros, o rendimento médio por hora era de R$ 10,01 em 2002 e em 2011 ficou em R$ 10 30, um avanço de apenas 2,9%.“O crescimento da economia nos últimos anos e seus reflexos positivos no mercado de trabalho da região contribuíram para a melhoria geral do mercado, em especial para os negros. No entanto, o crescimento econômico por si só não é capaz de garantir igualdade de oportunidades”, avaliou, acrescentando que é preciso que se atenuem as discrepâncias socioeconômicas e, mais especificamente, o nível de escolaridade.

FONTE: Disponível em: <http://www.gazetadopovo.com.br/economia/conteudo.phtml?tl=1&id=1317934&tit=Trabalhador-negro-tem-61-do-rendimento-do-nao-negro-aponta-Dieese>. Acesso em: 5 fev. 2013.

Aliás, neste sentido, a abordagem sobre a diferenciação de classe e cor, dada por Fernandes, é clara, por falar que, no Brasil, a posição de classe é definida segundo critérios de posse e status.

[...] A comunidade de interesses e de situação de classe não impede, antes condiciona uma relativa diferenciação social dos indivíduos, de acordo com o modo pelo qual podem valorizar socialmente, criando destinos sociais relativamente comuns, suas probabilidades econômicas. [O que implica, invariavelmente numa ideia de status]. No Brasil os “possuidores de bens” são representados (e se avaliam assim socialmente) como “classes altas”, “ricas” ou “poderosas”. Sociologicamente, pode-se distinguir entre eles certas gradações como uma classe alta urbana, uma classe alta rural e uma classe média urbana. [...] O consenso geral é menos incisivo na graduação social dos “não possuidores de bens”. No passado recente, o termo povo queria dizer algo como “gente pobre” ou “os que não têm eira nem beira”. (FERNANDES, 1968, p. 73).

Rotular as pessoas segundo o seu padrão de vida é algo costumeiro em nosso país. Por isso, é muito complicado restringirmos a noção de status adquirido (como já vimos na Unidade 2) ao padrão de vida das pessoas ricas.

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Aliás, este status no Brasil, segundo Fernandes, não é legítimo, pois muitas pessoas não conquistam determinadas posições sociais apenas por mérito, mas principalmente porque já iniciaram a corrida da ascensão social em pontos de largada muito diferentes, isto é, as pessoas “ricas” já estão colocadas em posições bem mais avançadas se comparadas com pessoas “pobres”.

Deste modo, sempre haverá uma abrupta divergência entre os interesses da classe operária e os da classe burguesa, pois não há igualdade de oportunidades entre elas. Enquanto a burguesia quer ampliar cada vez mais o seu poder, a classe operária esforça-se em permanecer viva, superando constantemente a aversão que lhe é imposta pela “classe rica”.

Como vimos, as ideias de Florestan Fernandes são fortemente marcadas por uma visão contundente e realista do mundo social brasileiro. Em sua trajetória acadêmica, ele abordou todos os temas sociais com clareza e perspicácia, deixando evidente o seu lado sobremaneira crítico de observação social. É por isso que seu método de análise pode ser considerado como um divisor de águas do pensamento sociológico brasileiro, ao falar dos problemas sociais sem medo ou constrangimento.

Outrossim, é assaz necessário falar que sua abordagem revela o quanto é incompatível conciliar modernização e história, ou seja, que não é possível estabelecer uma visão moderna de sociedade (segundo os moldes estrangeiros) se as heranças históricas de escravidão e submissão de um povo não forem enfaticamente dirimidas.

DICAS

Sugestão de filme: Documentário “Além de trabalhador, negro”.

Libertado das senzalas, o povo negro foi largado sem qualquer política pública de inclusão social. O desenvolvimento da luta do trabalhador negro por um lugar ao sol, desde a abolição, é o fio condutor de “Além de Trabalhador, Negro”. O documentário fala das ações do movimento negro para superar a discriminação racial nas relações de trabalho. Como estavam fora dos primeiros sindicatos de operários, geralmente organizados por imigrantes, os negros criaram organizações próprias e difundiram seus ideais antirracistas em jornais como “A Sentinela” e “O Clarim da Alvorada”. [...] O filme também lembra a entrada dos trabalhadores

negros nos sindicatos a partir dos anos 50 e 60, porém sem ocuparem cargos de direção. “Além de trabalhador, negro” também conta sobre a criação do Movimento Negro Unificado (MNU) contra a discriminação racial. Nas vozes de importantes lideranças do movimento negro, o filme busca a identidade e a valorização econômica do povo negro e mostra que a luta de classes e a luta de raças andam juntas no Brasil.

FONTE: Disponível em: <http://www.piratininga.org.br/novapagina/leitura.asp?id_noticia=1453&topico=Projeto%20V%EDdeos%20-%20Movimento%20Negro/MN>. Acesso em: 5 fev. 2013.

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AUTOATIVIDADE

Leia com atenção a letra da música “Selvagem”, da banda “Os Paralamas do Sucesso”, e em seguida faça o que se pede:

A polícia apresenta suas armas Escudos transparentes, cassetetes Capacetes reluzentes E a determinação de manter tudo Em seu lugar O governo apresenta suas armas Discurso reticente, novidade inconsistente E a liberdade cai por terra Aos pés de um filme de Godard A cidade apresenta suas armas Meninos nos sinais, mendigos pelos cantos E o espanto está nos olhos de quem vê O grande monstro a se criar Os negros apresentam suas armas As costas marcadas, as mãos calejadas E a esperteza que só tem quem tá Cansado de apanhar A polícia apresenta suas armas Escudos transparentes, cassetetes capacetes reluzentes E a determinação de manter tudo em seu lugar O governo apresenta suas armas Discurso reticente, novidade inconsistente E a liberdade cai por terra Aos pés de um filme de Godard A cidade apresenta suas armas Meninos nos sinais, mendigos pelos cantos E o espanto está nos olhos de quem vê O grande monstro a se criar Os negros apresentam suas armas As costas marcadas, as mãos calejadas E a esperteza que só tem quem tá cansado de apanhar

Disponível em: <http://www.vagalume.com.br/paralamas-do-sucesso/selvagem.html#ixzz2L3u0NTih>. Acesso em: 5 fev. 2013.

Descreva quais são as contradições existentes na letra. Há alguma possibilidade de conciliação entre os extremos que se apresentam na letra? Argumente a respeito.____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

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UNIDADE 3 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E SOCIAL NO BRASIL

6 DARCY RIBEIRODarcy Ribeiro é apontado como um grande antropólogo indigenista, pois,

do mesmo modo que Florestan Fernandes defendeu as causas dos negros no Brasil, Ribeiro defendeu os valores dos nossos índios.

Neste momento, caro(a) acadêmico(a), é importante que você recorde aquilo que vimos no início desta unidade, no que se refere ao modo de tratamento dispensado pelos portugueses aos índios do Brasil. A desvalorização de sua cultura e a aculturação forçada que sofreram, na época, é algo inimaginável e indizível. Porém, é muito importante destacar que isso não deixou de acontecer. Atualmente, é bem provável que a intensidade da ação devastadora do homem branco sobre o índio seja menor, mas isso não significa que ela deixou de existir. E é neste ponto que o pensamento de Darcy Ribeiro desempenha um papel realmente antropológico, no sentido de proteção e respeito pelo modus vivendi característico do índio brasileiro.

Outrossim, é importante destacar um dado numérico estarrecedor: antes dos colonizadores portugueses chegarem ao Brasil, o número total estimado de índios era de 5 milhões e hoje acredita-se que pouco mais de 315 mil índios (segundo dados do site “Museu do Índio”) habitam o território nacional, o que nos leva à conclusão de que nenhuma outra etnia foi tão sistemática e progressivamente aniquilada e destruída na história recente da humanidade.

DICAS

Sugestão de filme: TERRA VERMELHA

O suicídio de duas meninas Guarani-Kaiowá desperta a comunidade para a necessidade de resgatar suas próprias origens, perdidas pela interferência do homem branco. Um dos motivos do desaparecimento gradual da cultura reside no conflito gerado pela disputa de terras entre a comunidade indígena e os fazendeiros da região. Para os Kaiowás, essas terras representam um verdadeiro patrimônio espiritual e a separação que sofreram desse espaço é a causa dos males que os rodeia. Uma disputa metafórica é criada. A compreensão e o diálogo buscam espaço nesse antigo conflito. Enquanto isso, o jovem Osvaldo, que vive um terrível embate contra o desejo de morrer, vai furtivamente buscar água no rio que corta a fazenda e conhece a filha do fazendeiro. Um encontro em que a força do desejo transpassa e ao mesmo tempo acentua o desentendimento entre as civilizações.

FONTE: Disponível em: <http://www.filmesbrasileiros.net/terra-vermelha/>. Acesso em: 5 fev. 2013.

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TÓPICO 2 | FILÓSOFOS E SOCIÓLOGOS BRASILEIROS DE DESTAQUE

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Segundo Frans Moonen, a questão indígena no Brasil sempre foi vista com desdém pelos órgãos responsáveis, como a Funai, por exemplo. De um modo geral, segundo ele, a instituição fora criada não para proteger os índios, mas, ao contrário, para proteger a população não indígena (MOONEN, 1988). O desinteresse e a falta de respeito por esta população é algo recorrente em nosso país, como já sabemos, desde a colonização. E esta atitude, certamente, não mudará tão cedo, pois recentemente um grupo de agropecuaristas do Mato Grosso demonstrou que o afã de conquistar e possuir aquilo que pertence legalmente ao índio não tem limites.

Veja a reportagem, publicada pelo site “Carta Capital”, em 5 de julho de 2012, que fala sobre o assunto:

Damião Paridzané é o líder dos Xavantes que luta contra a invasão dos fazendeiros na área do Mato Grosso.

Foto: Felipe Milanez

No norte do Mato Grosso, um conflito entre índios e fazendeiros por uma terra homologada como indígena há 14 anos, porém quase toda invadida pelos latifundiários, tem ganhado proporções que perpassam a disputa local. Nas últimas semanas, especialmente após a Rio+20 e seguida de um acórdão do Tribunal Regional Federal que garante a posse aos índios, os ânimos foram acirrados e a iminência de violência física aumenta à medida que começa a se esgotar o prazo para o governo federal promover a retirada de não índios da área.

O território xavante, chamado Marãiwatséde, está no centro de um eixo de escoamento de soja e gado; e onde o governo federal quer asfaltar a BR-158. O traçado ficaria fora da reserva, e da Ferrovia Centro-Oeste, que liga as cidades de Campinorte (GO) e Lucas do Rio Verde (MT).

A disputa por este território expõe a dificuldade do governo em controlar os conflitos fundiários na Amazônia. Os pequenos posseiros, tradicionais inimigos dos índios na região, deram lugar aos grandes ruralistas – que se negam a deixar o território.

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UNIDADE 3 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E SOCIAL NO BRASIL

A pressão externa tem provocado divisões internas dos Xavantes, que colocam em risco a vida das principais lideranças. “Nós vamos conseguir, tenho certeza”, diz o advogado dos fazendeiros, Luiz Alfredo Abreu, irmão da senadora Kátia Abreu (PSD-TO), uma das principais líderes dos agropecuaristas no Congresso Nacional. “Eu não tenho medo. Eu quero a terra. Eu morro pela terra”, rebate o cacique Damião Paridzané.

Liderados por Damião, os Xavante realizaram uma série de protestos durante a Rio+20, no Rio de Janeiro, no fim de junho. Auxiliados pela Operação Amazônia Nativa (Opan), foram recebidos pelo Greenpeace no navio da ONG atracado na cidade durante o encontro internacional. O ato simbólico acabou ganhando visibilidade internacional, o que irritou profundamente os fazendeiros.

FONTE: Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/sociedade/no-mato-grosso-tensao-aumenta-entre-xavantes-e-latifundiarios-em-terra-cobicada-por-agronegocio>. Acesso em: 5 fev. 2013.

Diante disso, podemos compreender que, mesmo após 500 anos do “processo civilizatório” no Brasil, o índio ainda não é visto como primeiro dono da terra ou, até mesmo, como ser humano. Darcy Ribeiro, como sociólogo, igualmente questionou o processo de aculturação entre brancos e índios. De um modo geral, podemos definir como aculturação o processo no qual ocorre um encontro entre duas culturas diferentes.

Neste encontro há uma troca de costumes, valores e experiências entre as culturas. Ambas sofrem modificações ou alterações. Dito de outro modo, ocorre um processo de assimilação entre as culturas. Entretanto, para Ribeiro, isso é pura enganação, pois, na verdade, se trata de uma relação entre desiguais, uma relação de dominação. “Essa dominação pode ser de tal forma intensa que não deixa ao grupo subordinado nenhuma outra alternativa senão aculturar-se”. (OLIVEIRA, 2008, p. 193).

Atualmente, é muito comum encontrar, pelo interior de nosso país, inúmeros descendentes de índios que desconhecem a sua cultura ancestral: nada sabem sobre canções ritualísticas, práticas de caça e pesca, e tampouco sabem a língua-mãe etc. Se sentem desconectados da cultura ancestral e da cultura popular. Não se sentem inclusos em nenhuma delas, o que gera uma sensação de marginalidade, abandono e desconexão com o mundo que os rodeia, como se fossem desprovidos de “cultura” e não se sentem “partícipes” de nenhum grupo social.

Outrossim, ainda nesta linha de pensamento, Ribeiro afirma que há inúmeros antropólogos brasileiros que agem de maneira inadequada na sua relação com os indígenas:

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TÓPICO 2 | FILÓSOFOS E SOCIÓLOGOS BRASILEIROS DE DESTAQUE

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A antropologia brasileira não é nada do que possamos nos orgulhar. [...] Temos antropólogo que é inimigo do índio, temos antropólogo que é indiferente ao índio, ou antropólogo, o que é muito frequente, que está interessado em aprender do índio. Ele vai lá, tira do índio o que é necessário para fazer suas tesezinhas doutorais, para fazer sua carreira universitária, mas que não quer saber do índio, senão para manipulá-lo em favor próprio. E muitos deles nunca chegam mesmo a entender, porque já vão para a aldeia apenas para ilustrar uma tesezinha do professor estrangeiro para obter o doutorado, e permanece sempre um alienado. [...] Estes não prestam para nada, nem para a cultura brasileira, nem para os índios. (RIBEIRO, 1979, p. 82).

A força das palavras de Darcy Ribeiro demonstra o quanto a sua luta pela população indígena foi intensa. Certamente, dos pensadores da sociologia brasileira, Ribeiro pode ser considerado como um dos mais corajosos, por demonstrar suas ideias de maneira clara e incisiva, pois é preciso, como afirma Moonen, desenvolver uma “antropologia para e não sobre o índio, que não consta como disciplina em nenhum currículo universitário”. (MOONEN, 1988, p. 59).

Seguramente, Darcy Ribeiro tentou desempenhar tal papel no resgate da cultura indígena em nosso país. A ele devemos muito. Neste sentido, reescrevemos aqui o ponto de vista de Frans Moonen sobre o papel do intelectual brasileiro (que foi personificado por Darcy Ribeiro) diante do desafio de revelar a verdade sobre o mundo indígena:

Devemos ter coragem de descrever a realidade nacional como ela é, e não do modo que aqueles que estão no poder desejam que ela seja apresentada. Evidentemente, dizer e escrever a verdade nem sempre é muito apreciado. Daí porque em muitos países, inclusive no Brasil, os antropólogos críticos não gozam de muita popularidade e às vezes até são perseguidos. Basta lembrar aqui o fato de que nos últimos 20 anos, várias vezes os antropólogos críticos foram proibidos de entrar em áreas indígenas, para que a sociedade brasileira não tomasse conhecimento da situação dramática em que vivem praticamente todos os grupos indígenas. Proibia-se a pesquisa para esconder a verdade. (MOONEN, 1988, p. 62).

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• Abordamos o pensamento de alguns pensadores importantes do Brasil. Cada um deles destaca nuances muito interessantes da nossa História e de como o Brasil se tornou aquilo que é hoje.

• Desde o modo como o índio, o negro e o caboclo foram tratados até o modo

como os próprios brasileiros se veem na atualidade são temas que despertaram a curiosidade e a reflexão destes pensadores.

• De Euclides da Cunha à Darcy Ribeiro, nos propusemos, mesmo que superficialmente, a apontar suas ideias fundamentais e suas diretrizes de entendimento da realidade nacional. O pensamento nacional, por vezes, é negligenciado.

• Ele não pode ser esquecido ou engavetado. Além disso, é importante destacar que vários destes pensadores inspiraram-se em pensadores europeus (essencialmente, em Karl Marx). Contudo, a análise feita por eles está voltada para nossa realidade.

• O pensamento filosófico e sociológico do país demarca o modo como nós mesmos nos interpretamos e delimita quem nós somos de verdade. A visão de mundo de muitos brasileiros desavisados pode implicar em uma concepção de nação que, no fim das contas, pode ser totalmente equivocada.

• Neste caso, nós não somos exatamente “o sonho dourado” preconizado em nossa bandeira e hinos nacionais. Ao contrário, as delimitações entre o mundo real e ideal são bem distantes e, por vezes, profundamente contraditórias. A nação brasileira é uma representação mental que, normalmente, não condiz com aquilo que se vê em nosso cotidiano.

• Por este viés, a maioria esmagadora dos principais pensadores brasileiros contesta a visão comumente propalada de que somos um “país bonito por natureza” ou de que o “brasileiro é cordial”. Por fim, desde a indefinição do verdadeiro e legítimo representante da nação brasileira até o descaso atual que dispensamos ao indígena (como primeiro dono da terra), os pensadores aqui elencados devem nos ajudar no exercício hermenêutico de compreensão deste nosso “Brasil tão brasileiro”.

RESUMO DO TÓPICO 2

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AUTOATIVIDADE

Leia a letra da música “Um Índio”, de Milton Nascimento e, em seguida, responda ao que se pede:

Um Índio (Milton Nascimento)

Um índio descerá de uma estrela Colorida e brilhante De uma estrela que virá Numa velocidade estonteante E pousará no coração Do hemisfério sul Na América, num claro instante Depois de exterminada A última nação indígena E os espíritos dos pássaros Das fontes de águas límpidas Mais avançado que as mais avançadas Das mais avançadas das tecnologiasVirá Impávido, que nem Muhammad Ali Virá que eu vi Apaixonadamente como Peri Virá que eu vi Tranquilo e infalível como Bruce Lee Virá que vi O axé do afoxé filhos de Gandhi ViráUm índio preservado Em pleno corpo físico Em todo sólido, todo gás E todo líquidoEm átomos, palavras, alma, cor, Em gesto, em cheiro, em sombra, em luz Em som Num ponto equidistante Entre o Atlântico e o Pacífico Do objeto sim resplandecente Descerá o índio E as coisas que eu sei que ele dirá Fará não sei dizer assim Assim de um modo explícitoVirá

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Impávido, que nem Muhammad Ali Virá que eu vi Apaixonadamente como Peri Virá que eu vi Tranquilo e infalível como Bruce Lee Virá que vi O axé do afoxé filhos de Gandhi ViráE aquilo que nesse momento Se revelará aos povos Surpreenderá a todos Não por ser exótico Mas pelo fato de poder Ter sempre estado oculto Quando terá sido o óbvio

FONTE: Disponível em: <letras.mus.br › MPB › Milton Nascimento>. Acesso em: 5 fev. 2013.

1 O autor descreve, no decorrer da letra da música, que o índio é o mensageiro de um novo tempo, de uma nova promessa de vida. Cite os trechos que evidenciam esta ideia:

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2 Na reportagem que fala sobre a invasão da terra dos índios xavante no MT é demonstrada uma ideia muito marcante do pensamento indígena na sua relação com a terra. Cite o trecho que aborda este modo de pensamento.

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3 Realize uma pesquisa sobre a vida dos índios no Estado de Santa Catarina: Quais são os grupos étnicos que ainda vivem no Estado? Quais são as suas reservas mais importantes? As culturas permanecem vivas ou elas foram tragadas pela cultura “branca”? Faça um relatório, apontando, ao final, as conclusões pessoais.

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TÓPICO 3

QUESTÕES SOCIAIS BRASILEIRAS NA

ATUALIDADE: CRIMINALIDADE,

SOCIOLOGIA RURAL,

MOVIMENTOS SOCIAIS, RELIGIÃO E

LIBERTAÇÃO

UNIDADE 3

1 INTRODUÇÃOCaro(a) acadêmico(a), chegamos finalmente ao último tópico desta

unidade (e, por extensão, deste material). Sabemos que fizemos um longo caminho de estudos sociológicos e filosóficos a respeito do Brasil e do mundo até aqui. Acreditamos, sinceramente, que nos esforçamos para despertar a sua curiosidade sobre estes temas, que, genericamente, não são devidamente discutidos ou aprofundados no nosso dia a dia.

A Sociologia e a Filosofia são áreas do saber que estão invariavelmente ligadas a todos nós. Não podemos escapar da sua amplitude de alcance, pois elas nos tangem continuamente e o tempo todo. Falar sobre o racismo, sobre a criminalidade ou sobre os movimentos sociais é, a priori, uma tarefa fácil, contudo, compreender as suas causas é uma tarefa muito mais árdua do que apenas debater sobre os seus efeitos.

Nosso intento, no decorrer deste material, foi justamente o de incitar a análise das causas, das origens dos problemas sociais e filosóficos presentes no nosso entorno. Sabemos, também, que em vários pontos deste material o nosso posicionamento demonstrou-se decisivo ou impactante. A nossa intenção foi esta mesma. Deixar você, caro(a) acadêmico(a), um pouco mais perplexo, pois, como afirma Platão, o aprendizado só acontece, de fato, quando ficamos espantados com o mundo que nos circunscreve. Só podemos aprender alguma coisa nova se ficarmos admirados (ou assustados) sobre o objeto de nosso estudo.

Contudo, no momento em que escrevíamos este material, tínhamos em mente que a nossa escrita deveria ser franca e clara, sem rodeios ou diletantismos, sem clichês, sem meias-palavras ou “lugares-comuns”, mesmo sabendo que vez ou outra isso veio a ocorrer. Queríamos criar uma atmosfera de leitura que transcende do papel e leva cada pessoa a “estar em uma sala de aula”. Como se, ao ler este material, o estudante se sentisse diante de um professor, discutindo e interagindo, não numa relação fixa de ensino/aprendizagem, mas como uma troca de experiências sobre o mundo.

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UNIDADE 3 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E SOCIAL NO BRASIL

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Agradecemos a você, que nos acompanhou até aqui, pela paciência e pela vontade de aprender, porque, de certo modo, foi o que nos moveu até aqui também. Neste último tópico queremos apresentar um pouco sobre os problemas sociais que o Brasil enfrenta atualmente, sob a ótica de alguns pensadores da Filosofia e da Sociologia Contemporânea. E, mais uma vez, obrigado!

2 CRIMINALIDADE E COMPORTAMENTOFalar sobre criminalidade implica, logicamente, em falar sobre crime.

Contudo, a noção de crime não é consensual. A utilização banal desta palavra fez com que o seu sentido real se perdesse. Segundo o Dicionário Aurélio, crime caracteriza-se como “1. Violação da lei penal; delito; 2. Ato de desobediência ao que é considerado direito, correto”. (FERREIRA, 2011, p. 265). Estas definições representam um conjunto de ideias muito curiosas sobre o verdadeiro sentido da palavra crime.

Genericamente falando, o crime está diretamente ligado à definição 1 do dicionário, pois estamos acostumados a ligar a ideia de crime a uma pessoa pobre e sem instrução. A violação da lei está mais próxima daquele que é pobre, pois não se faz, usualmente, em nosso país, qualquer vinculação entre crimes e pessoas ricas.

Além disso, faz-se comumente uma associação desta pessoa com bairros pobres e sem infraestrutura. É por isto que há, no Brasil, uma estigmatização das pessoas que vivem nas favelas. Elas são consideradas como criminosas só porque vivem nestes lugares. Ou seja, é muito mais fácil rotular uma pessoa como criminosa só porque ela vive em um determinado lugar, em vez de compreender as verdadeiras causas da criminalidade.

Outrossim, este estereótipo é muito assíduo, pois é uma maneira de esconder a verdade acerca do surgimento das favelas no Brasil. Antes, porém, é importante destacar que este conceito está profundamente ligado à história do país.

De um modo geral, as favelas surgiram no início do século XX, na cidade do Rio de Janeiro. Tudo começou quando muitas pessoas foram convocadas para lutar pela incipiente República, na Guerra de Canudos. Muitos se alistaram para lutar com a promessa do Governo Federal de que, se vencessem a guerra, cada soldado receberia uma propriedade de terra na cidade do Rio de Janeiro, como soldo. Após a guerra, como nada fora entregue, as pessoas tiveram que se adaptar e construir suas casinhas no Morro da Providência, na periferia do Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo em que isso acontecia, o prefeito da época, Barata Ribeiro, estava promovendo uma verdadeira limpeza no centro da cidade.

Todas as pessoas que viviam em cortiços deveriam abandoná-los e viver em outros lugares, pois não havia higiene e limpeza suficiente para que as pessoas continuassem vivendo nestes locais. Esta dupla dicotomia, tendo, de um lado,

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prefeito e Governo Federal e, do outro lado, cortiços e soldados, respectivamente, engendrou a segregação definitiva deste último grupo de pessoas para a região do Morro da Providência, que posteriormente veio a se chamar Morro da Favella (com dois éles mesmo). A palavra favella se refere a uma planta originária do agreste baiano, cheia de espinhos.

Ela representa a ausência de beleza e a falta de esperança do povo que foi relegado a este descaso. Assim, nasce a ideia de que o espaço dos relegados, dos “favelados”, é um espaço de violência, de crimes, de “violação da lei”. Porém, muitos se esquecem de que todos os que estão neste espaço foram forçados a estarem ali. Não foi escolha, foi um verdadeiro abandono dos governos municipal e federal. Há uma violência preponderantemente forte sobre os que ali habitam, pois sofrem sempre uma dupla brutalidade, demarcada pela história e pelas pessoas que vivem em outros espaços da cidade.

Primeiro, porque definem que o espaço físico da criminalidade é a própria favela e, depois, simbolicamente definem que “o bode expiatório” é o “favelado”, o que pode ser definido como uma dogmatização da existência criminal, ou seja, o crime existe porque existe favela. O dogma surge como uma verdade absoluta e inquestionável, enquanto o estigma aparece como um “ferro que marca o corpo do favelado”. O rótulo é criado e a cicatriz é alcunhada.

É por isso que, no Brasil, falar sobre criminalidade não é uma tarefa fácil. Para quem se recorda do filme “Tropa de Elite”, o capitão Nascimento (personificado pelo ator Wagner Moura), ao invadir os morros das favelas do Rio de Janeiro, descobre, na continuação do filme (Tropa de Elite 2), que o espaço do crime não se circunscreve apenas à favela, mas reside predominantemente entre os “criminosos de colarinho branco”. Contudo, todos nós compreendemos que o principal alvo da retaliação policial são os mais pobres, pois seria como se a favela fosse o próprio símbolo da criminalidade, o único local que aglomera problemas sociais. (BERLATTO, 2011).

FIGURA 74 – A PLANTA FAVELLA

FONTE: Disponível em: <http://jovempretovelho.blogspot.com.br/2012/05/uma-planta-chamada-favela.html>. Acesso em: 5 fev. 2013.

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UNIDADE 3 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E SOCIAL NO BRASIL

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FIGURA 75 – IMAGEM DA BARATA (COMO PREFEITO DO RIO DE JANEIRO) “DEVORANDO” A “CABEÇA DE PORCO”, QUE ERA O NOME DO PRINCIPAL CORTIÇO DO RJ

FONTE: Disponível em: <http://1.bp.blogspot.com/_cyAmCqNOQXo/SxarMFF057I/AAAAAAAAADk/6-EMPupza0k/s320/ilustra%C3%A7%C3%A3o+cabe%C3%A7a+de+porco.jpg>. Acesso em: 5 fev. 2013.

Por este viés de pensamento, gostaríamos de ressaltar um aspecto muito importante daquilo que foi falado até aqui no que se refere ao problema do biopoder, isto é, o poder que é exercido sobre os corpos dos indivíduos. Michel Foucault, importante pensador francês, já estudado na Unidade 2, descreve uma relação de submissão e controle sobre o corpo das pessoas, na medida em que elas sofrem um pesado processo de disciplinarização, no qual elas devem aceitar a “mecânica do poder”. Os “favelados”, descritos acima, são a personificação desta ideia, que une estigma e dogma com triste perfeição.

O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma “anatomia política”, que é também uma “mecânica de poder”, que está nascendo; ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina. A disciplina fabrica corpos submissos e exercitados, “corpos dóceis”. (FOUCAULT, 1987, p. 127).

Além deste ponto de vista histórico-social acerca da criminalidade no Brasil, existem algumas teorias muito interessantes que discutem sobre a gênese do criminoso. O criminologista italiano Cesare Lombroso, por exemplo, foi considerado o pensador que mais defendeu a origem do crime no próprio criminoso, isto é, ele considerava que o crime é genético.

Segundo suas pesquisas, certas pessoas nasceram com uma inclinação própria para o crime. Seu pensamento estava fundado nos princípios do evolucionismo, que justificam que algumas pessoas (e etnias) se desenvolveram

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melhor graças à ação gradual do avanço civilizatório e cultural que sofreram com o passar dos tempos. Além disso, ele afirmava que as pessoas que possuíam distúrbios sociais ou comportamentais sofriam de desvios atávicos. Sobre isso, ele mesmo escreve:

Estou convencido de que há um pathos criminogêneo, um morbus que impele ao delito, qualquer que seja a sua natureza, e contra o qual a pena se revelará impotente na maioria dos casos; mas essa anomalia é menos comum do que se poderia supor; estou igualmente convencido. O que mais ordinariamente se depara na vida é a combinação de certas condições fisiopsíquicas apropriadas à perpetração do malefício, com certas outras condições sociais que fecundam esse germe individual, se é que muitas vezes não o fazem produzir-se.

FONTE: Disponível em: <www.espacoacademico.com.br/089/89nobregajr.htm>. Acesso em: 5 fev. 2013.

Todavia, ele acrescenta em um discurso seu, na cidade de Turim, a seguinte ideia: os criminosos já nascem assim. Ele mesmo explica a sua descoberta: eis que, de repente, numa triste manhã de dezembro, encontro no crânio de um malfeitor toda uma longa série de anomalias atávicas, sobretudo uma enorme fosseta occipital média e uma hipertrofia da fosseta vermiana, análogas às encontradas nos vertebrados inferiores. À vista dessas estranhas anomalias, como se tivesse surgido uma grande planície sob um horizonte em chamas, o problema da natureza e da origem do criminoso pareceu-me resolvido. (LOMBROSO, 1893; DARMON, 1991).

FIGURA 76 – CRÂNIOS DE CRIMINOSOS ITALIANOS

FONTE: Disponível em: <http://www.gsgis.k12.va.us/ourschool/AllSchoolRead/Secrets.htm>. Acesso em: 5 fev. 2013.

Mesmo assim, podemos ver que a conclusão de Lombroso é demasiadamente indutiva, pois ele acredita que após algumas verificações particulares é possível chegar a uma conclusão universal, válida para todos. Esse posicionamento é profundamente perigoso e tendencioso. Contudo, foi com base nestas explicações que o método de eugenia foi pensado para a purificação de

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UNIDADE 3 | PENSAMENTO FILOSÓFICO E SOCIAL NO BRASIL

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DICAS

Sugestão de filme: TROPA DE ELITE 2

Nascimento (Wagner Moura), agora coronel, foi afastado do BOPE por conta de uma malsucedida operação. Desta forma, ele vai parar na inteligência da Secretaria de Segurança Pública do Estado. Contudo, ele descobre que o sistema que tanto combate é mais podre do que imagina e que o buraco é bem mais embaixo. Seus problemas só aumentam, porque o filho Rafael (Pedro Van Held) tornou-se adolescente, Rosane (Maria Ribeiro) não é mais sua esposa e seu arqui-inimigo Fraga (Irandhir Santos) ocupa posição de destaque no seio de sua família.

FONTE: Disponível em: <http://www.adorocinema.com/filmes/filme-189340/>. Acesso em: 5 fev. 2013.

várias raças ao redor do globo terrestre. Estes processos de purificação racial evitariam o nascimento de pessoas propensas à criminalidade. Este método, você, caro estudante, já conhece: seja pelas mãos de Hitler ou pela eugenia à brasileira (vide Oliveira Viana/Getúlio Vargas).

Contudo, as ideias de Lombroso (1983) não perduraram por muito tempo, pois atualmente sabe-se que os fatores mais preponderantes para o desenvolvimento da criminalidade não estão, em si mesmos, no criminoso, mas no meio no qual ele está inserido, bem como, os fatores sociológicos e psicológicos que desencadeiam potencialmente o desejo pelo crime são os mais aceitáveis hodiernamente.

Émile Durkheim (1987), por sua vez, acredita que o crime é um evento normal na sociedade. Ele considera o crime algo normal na medida em que ele é resultado de um desequilíbrio ou desajuste no ambiente coletivo. Se pessoas estão passando por dificuldades e não há nenhuma retaguarda por parte do Estado, elas apelarão ao recurso que estiver disponível, no caso, o crime.

Isso não significa dizer que Durkheim é conivente com o crime, mas ele nos alerta para a questão de que o crime não é só um problema que compete ao criminoso resolver, mas que é efeito da ruptura dos laços de solidariedade orgânica (conceito que já vimos neste material) na sociedade. O pior efeito da criminalidade, na visão durkheimiana, é a ocorrência da anomia, que significa, em breves palavras, a ideia de que não existem mais regras a serem seguidas, que não há mais respeito pela alteridade. Durkheim crê que, na medida em que estes fatos acontecem, a importância das instituições sociais se desintegra. Isso representa um verdadeiro caos social, pois, para ele, a relação entre os indivíduos deve ser respeitada constantemente. Esta desintegração representa, em outras palavras, um verdadeiro decreto de falência da vida social, pois se não houver integração e coesão, não haverá solidariedade. (DIMENSTEIN, 2008).

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Outro ponto importante que gostaríamos de destacar para encerrar o nosso ponto de vista sobre a criminalidade brasileira se refere à distinção entre comportamento desviante e criminalidade. Howard Becker, importante sociólogo estadunidense, demonstra que as duas coisas não são iguais, ao dizer que:

O comportamento desviante é criado pela sociedade. Não quero dizer isto no sentido normalmente compreendido, em que as causas do desvio são localizadas na situação social do desviante ou em “fatores sociais” que condicionam seu comportamento. Quero dizer que os grupos sociais criam o desvio ao estabelecer as regras cuja infração constitui desvio e ao aplicá-las a pessoas particulares, marcando-as como outsiders. Sob tal ponto de vista, o desvio não é uma qualidade do ato que a pessoa faz, mas sim a consequência da aplicação por outrem de regras e sanções ao “transgressor”. (BECKER, 2008, p. 21-22).

Mas, afinal, o que Becker quis dizer com isso? Ele revela que o ato de desviar-se daquilo que é padrão ou aceitável pela maioria das pessoas não é algo que está inserido nas pessoas que cometem o desvio. Mas, ao contrário, o pior são as sanções e punições que são aplicadas e impostas pelas outras pessoas, que agem como se fossem vigilantes da regra.

Sendo assim, a amplitude de desvios e seu recíproco leque de punições são decorrentes da diversidade de grupos sociais que encontramos ou nos quais estamos inseridos. Por exemplo, um adolescente pode sofrer inúmeras retaliações de seus colegas de escola por agir de modo diferenciado (ou por não se enquadrar em determinados modelos preestabelecidos). Donde, surge o bullying. Este mesmo adolescente, por outro lado, pode ser demasiadamente cobrado pelos seus pais, para que conquiste bons resultados nas provas escolares, para que consiga um emprego etc.

Esta cobrança, quando não correspondida, pode ser alvo de várias represálias familiares. Entretanto, é preciso compreender que o comportamento dito desviante do adolescente não é fruto de um desejo seu, mas do não cumprimento das regras do jogo social. Este estigma que o adolescente sofre está associado ao desvio. Contudo, ele nunca foi consultado sobre o que ele realmente quer ser ou como deseja viver.

Neste caso fictício (mas plausível de ser real), é comum que as pessoas rotuladas sofram amargamente o peso da incompreensão ou o desejo de “autodestruição”. É comum encontrarmos casos nos quais a pessoa tira a própria vida e a vida de pessoas próximas por não ser aceita como é. Durkheim tem uma frase muito célebre sobre a questão do comportamento que devemos adquirir no decorrer de nossas vidas na interação com as outras pessoas: “A maioria de nossas ideias e tendências não são elaboradas por nós, mas nos vêm de fora e não podem penetrar em nós senão através de uma imposição”. (DURKHEIM, 1987, 90).

Esta inadequação, este desenquadramento gera o desvio, que, como vimos acima, Becker denomina como comportamento “outsider”: o comportamento daquele que se sente do lado de fora, que não se sente partícipe da vida social plenamente. Além disso, podemos inferir que um método assaz eficaz de controle social e de manutenção da “normalidade” é a fofoca. “Cair na boca do povo” não é algo que agrada muito às pessoas.

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Deste modo, manter-se normal faz com que as outras pessoas “não nos vejam” e nada falem sobre nós. É por isso que temos que destacar aqui que o crime, como contravenção, faz parte de um rol de ações que devem ser analisadas e penitenciadas segundo os critérios do controle social formal. Não obstante, as ações desviantes são “retaliadas” segundo critérios do controle social informal e – por incrível que pareça – elas podem ser mais “impetuosas e eficazes” do que as do controle formal. Ir à escola sem o uniforme, usar uma roupa extravagante, não saber a prática correta de um esporte, cometer um erro crasso no convívio com seus colegas são alguns exemplos que podem revelar o quanto uma pessoa pode ser motivo de chacota e humilhada por não se enquadrar no modelo “padrão de comportamento”. (ELIAS; SCOTSON, 2000).

DICAS

Sugestão de leitura: ELIAS, Norbert; SCOTSON, John. Os Estabelecidos e os Outsiders. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

FIGURA 77– “DO LADO DE FORA”

FONTE: Disponível em: <http://blogs.estadao.com.br/olhar-sobre-o-mundo/files/2010/07/P004TF002708.jpg>. Acesso em: 15 fev. 2013.

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AUTOATIVIDADE

O bullying é uma das práticas mais terríveis de reprimenda e coação que existe no ambiente escolar e social. Falar sobre o assunto é sempre motivo de polêmica ou “desconversa”. Nos EUA, com frequência, os estudantes que sofrem este tipo de humilhação revoltam-se sobremaneira contra seus colegas e professores e acabam cometendo crimes hediondos. No seu ponto de vista, por que isto ocorre? Você acredita que as pessoas que cometem estes crimes são influenciadas pelo desdém que sofrem ou há algo inato que as impele a cometer tais ações? Argumente a respeito.___________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

3 SOCIOLOGIA DO MEIO AMBIENTE RURALDevido à complexidade temática e também em decorrência das inúmeras

influências que a sociologia rural no Brasil recebe de outras áreas, como, por exemplo, a Geografia e a Economia, ela se tornou um campo de investigação cuja delimitação não é tarefa simples. Guivant (2010) sugere, em seu estudo, que a Sociologia do Meio Ambiente Rural no Brasil seja compreendida como resultado do hibridismo entre a Sociologia Ambiental e a Sociologia Rural.

A sociologia rural no Brasil, por muito tempo, sofreu forte influência das correntes filosófico-sociológicas marxistas, o que levou à acentuação de temas ligados ao "êxodo rural, à necessidade de reforma agrária, às ameaças de desaparecimento da agricultura familiar diante da concentração da propriedade, às relações de trabalho, ao poder do capital das multinacionais etc". (GUIVANT, 2010, p. 375).

Interessante observar que todos os problemas e dificuldades enfatizados por estas reflexões não eram vinculados à degradação ambiental. Guivant (2010, p. 375) ressalta nessa questão que: “Os problemas decorrentes da deterioração ambiental estão estreitamente ligados aos demais problemas sociais relativos ao ambiente rural. As formas de plantio e os tipos de insumos empregados no cultivo que almejam preponderantemente o crescimento econômico estão diretamente ligados à mentalidade dominante e às políticas públicas destinadas ao campo”.

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Conforme Guivant (2010, p. 376):

Três correntes que incluem a questão ambiental podem ser identificadas na Sociologia rural: (a) a Sociologia rural vinculada a pressupostos marxistas; (b) a Sociologia rural envolvendo pesquisas de caráter altamente empírico, sem reflexão teórica significativa e sim normativa, igual à primeira; e (c) aquela que se refere a pesquisas que buscam o cruzamento da ótica socioambiental no meio rural com a teoria social contemporânea em diálogo com a Sociologia ambiental internacional, como forma de enriquecer e renovar a disciplina.

A prolongada ignorância das questões ambientais na reflexão sociológica sobre a esfera rural pode ter duas razões. Por um lado, a fé no progresso e no avanço da sociedade baseada na racionalidade tornou a preservação do meio ambiente um obstáculo, o que se refletiu também na sociologia clássica. Por outro lado, a concepção de ciência delimitada e compartimentada limitou a reflexão sociológica a ignorar outros fatores, tais como os de ordem biológica, física e natural. (GUIVANT, 2010).

A Sociologia e a Sociologia Rural no Brasil passaram a experimentar uma reorientação ou uma mudança de paradigmas a partir da década de 1990. Importantes fatores que contribuíram para as mudanças foram as publicações de Ulrich Beck e Anthony Giddens, especialmente através do conceito de sociedade de risco.

A Eco 92 foi outro marco na mudança da disciplina, pois contribuiu para a mudança de tônica na reflexão sociológica, de modo a considerar a influência da degradação do meio ambiente como elemento constitutivo para a compreensão da realidade social. (GUIVANT, 2010).

FIGURA 78 – ECO 92

FONTE: Disponível em: <http://cienciahoje.uol.com.br/colunas/terra-em-transe/rio-20-vai-encarar/image_preview>. Acesso em: 15 fev. 2013.

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NOTA

A noção de sociedade de risco aponta para os limites da própria ciência em criar soluções para os problemas da civilização. Os referidos autores alertam para os perigos do cientificismo, ou seja, da crença da onipotência da ciência e na sua capacidade de levar a humanidade à sociedade perfeita. Segundo Giddens e Beck, esta utopia não é realizável, pois cada nova solução desenvolvida pela ciência, mesmo que resolva um conjunto de problemas, traz em seu bojo uma série de novos problemas, sobre os quais não se tem controle. Portanto, eles afirmam que não se pode prever com exatidão os efeitos colaterais dos avanços científicos. (GIDDENS, 2009; BAUMAN, 2010).

DICAS

Sugestão de leitura: BAUMAN, Zygmund; MAY, Tim. Aprendendo a pensar com a sociologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010.

Como resultado desse processo, surgiram, ao longo das décadas de 1990 e 2000, diversos programas de pós-graduação no Brasil voltados às questões ambientais, que passaram a produzir pesquisas sociológicas que incluíssem as questões ambientais em suas análises. Em 2000 foi criada a Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Ambiente e Sociedade (ANPPAS – www.anppas.org.br). A ANPPAS também passou a editar a revista Ambiente e Sociedade, que se tornou fórum privilegiado de discussão da temática no Brasil. (GUIVANT, 2010).

Atualmente, a Sociologia do Meio Ambiente Rural no Brasil tem trabalhado com dois pressupostos básicos. O primeiro é o de que a modernização e o avanço tecnológico não são necessariamente os responsáveis pela degradação ambiental, mas podem ser justamente as fontes das soluções necessárias à resolução dos problemas ambientais. Outra premissa atual consiste em ver o meio ambiente como socialmente construído, "permeado de crenças, ideologias, discursos, assim como tendo uma base material". (GUIVANT, 2010, p. 379).

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4 TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃOAlém dos assuntos ligados à Sociologia do Meio Ambiente e à

Criminalidade Nacional, outro tema que despertou bastante o interesse de vários pensadores da Filosofia e da Sociologia foi a Teologia da Libertação. A Teologia da Libertação ficou conhecida como expressão de um movimento religioso transconfessional, que surpreendeu o pensamento filosófico e sociológico da América Latina, nos anos 1970.

O marco teórico desse movimento está na publicação do livro “Teologia da Libertação”, em 1971, pelo peruano Gustavo Gutiérrez, que é sacerdote dominicano. Contudo, a obra de Gutiérrez e dos teólogos da libertação posteriores não foi fruto do acaso, mas justamente do desenvolvimento histórico anterior, que precisamos compreender brevemente para, assim, entender melhor o que a Teologia da Libertação representou para a América Latina e, consequentemente, também para a religiosidade e para o desenvolvimento intelectual no Brasil de modo geral.

Conforme Dreher (1999), a primeira metade do século XX foi um tempo de organização do cristianismo na América Latina, marcado pela busca de uma "nova cristandade". Foi um tempo de amadurecimento e de estruturação, o que vale para as diferentes confissões religiosas. Os países periféricos em relação ao centro do capitalismo, entrementes deslocado da Inglaterra para os Estados Unidos, sentiram as mudanças na economia mundial. Isso fez surgir regimes governamentais caracterizados pelo populismo, mas que logo ganharam expressão na forma de fascismo ou stalinismo. Por essa razão, logo ganhou força entre os cristãos a ideia de que "o diabo é vermelho".

FIGURA 79 – O DIABO É VERMELHO

FONTE: Disponível em: <http://3.bp.blogspot.com/-KTEWKBBN_rw/Tm4eZVoXk2I/AAAAAAAAAbA/NaoMnTJKXK0/s1600/diabo_vermelho.jpg>. Acesso em: 5 fev. 2013.

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Nessa perspectiva, socialismo e comunismo não eram vistos com bons olhos, principalmente pelas lideranças eclesiásticas na América Latina, e o discurso dominante passa a ter conotações populistas. Para o catolicismo brasileiro valia a expressão de que "Todo bom brasileiro é bom católico, e todo bom católico é bom brasileiro" (apud DREHER, 1999, p. 191). O discurso populista no seio das igrejas na América Latina passou a ser abandonado com a queda dos regimes governamentais populistas na década de 1950.

Dreher (1999) afirma que a organização do cristianismo no Brasil foi marcada pela criação de confederações de igrejas, congressos, encontros de lideranças, organizações episcopais, entre outros. Contudo, o grande esforço de organização foi voltado para o laicato. Para fazer frente às diversas organizações seculares, as igrejas investiram na reunião dos fiéis em movimentos.

No âmbito da Igreja Católica Romana, esta iniciativa ficou conhecida como “Ação Católica”, que teve vários desdobramentos, como juventude operária, juventude universitária, juventude estudantil e juventude agrária. Todos os movimentos permaneceram, contudo, sob a tutela da hierarquia eclesiástica. Devido à força que estes movimentos alcançaram, eles impactaram os governantes e levaram-nos a negociações.

A partir da década de 1950, a preocupação social das igrejas cristãs tornou-se mais intensa em decorrência do crescimento da influência marxista/socialista/comunista, especialmente entre o meio operário. Para divulgar a nova mentalidade do cristianismo latino-americano, foram criados inúmeros periódicos que lhe dessem expressão. Exemplos são as seguintes revistas: Revista Eclesiástica Brasileira (Petrópolis); Teología y Vida (Santiago); Stromata (Buenos Aires); e Estudos Teológicos (São Leopoldo).

Um marco para o cristianismo mundial e especialmente para a América Latina foi a eleição do Papa João XXIII, em outubro de 1958. As suas colocações sobre "a igreja dos pobres" foram fundamentais para os compromissos políticos e sociais do cristianismo latino-americano.

Conforme argumenta Dreher (1999, p. 193):

As colocações feitas por João XXIII em suas encíclicas e pronunciamentos coincidiram com uma época de ebulição em toda a América Latina. Em 1º de janeiro de 1959, Fidel Castro pôs fim ao regime de Fulgêncio Batista em Cuba. Desde aquele ano, as esquerdas passaram a pensar que o movimento guerrilheiro tinha chances, que o marxismo representava a única via para a liberdade e que o socialismo poderia ser concretizado na América Latina. Camilo Torres, o sacerdote que julgava não mais poder consagrar os elementos da Eucaristia enquanto houvesse opressão, e Ernesto Che Guevara, eram modelos.

Contudo, os golpes militares em toda a América Latina, que introduziram "regimes de segurança nacional" a partir da década de 1960, comprometeram os sonhos de que sociedades com características socialistas poderiam ser criadas no

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continente por meios pacíficos. O retorno a regimes democráticos seria lento e gradual. No Brasil, ele foi reintroduzido somente em 1985. Por outro lado, esse período tenso e conturbado também foi ocasião para que se gestasse uma teologia de maneira muito séria, na busca de "elementos para que o povo de Deus pudesse sobreviver no deserto, sem perder as esperanças em relação ao Reino de Deus". (DREHER, 1999, p. 194).

Segundo Dreher (1999, p. 194), no Brasil:

[...] foram pesquisadas a Teoria da Dependência e a Sociologia da Libertação. O grande pensador teológico desse grupo foi Richard Shaull, professor do seminário teológico da Igreja Presbiteriana do Brasil, em Campinas, SP, e, desde 1962, professor em Princeton, nos Estados Unidos. Shaull reconhece as tendências revolucionárias na América Latina e fez a tentativa de interpretá-las à luz do Evangelho. Daí resultou seu livro As transformações profundas à luz de uma Teologia Evangélica [...]. A violência e a revolução são os temas a partir dos quais Shaull dirige perguntas à Igreja. [grifado no original].

Nesse contexto, também devem ser lembrados os nomes de outros representantes da Teologia da Libertação, tais como Emilio Castro, Julio de Santa Ana, José Miguez Bonino, Rubem A. Alves, Hugo Assmann e Pablo Richard. Como parte de uma segunda geração de teólogos da libertação ainda devem ser mencionados os nomes de Leonardo Boff e do argentino Henrique Dussel, cujas obras serviram de referência para uma escrita da história da igreja na América Latina a partir da ótica dos oprimidos. (DREHER, 1999).

Nas obras desses pensadores:

A libertação foi vista como uma luta pacienciosa, persistente do povo latino-americano em situação de perseguição e opressão. Enquanto algumas pessoas pensavam que os estados de segurança nacional significavam um retrocesso para a Teologia da Libertação, aconteceu o contrário: a Teologia da Libertação se espalhou. O movimento popular e as comunidades eclesiais de base assumiram os pensamentos da Teologia da Libertação, especialmente no Brasil, mas também no México, El Salvador, Peru, Chile e Bolívia. [...] Por isso, também é compreensível que a Teologia da Libertação veio a se tornar mais e mais reflexão sobre a práxis dos pobres, que se haviam organizado em comunidades e movimentos. [grifado no original].

FONTE: Disponível em: <http://www.cebi.org.br/noticia.php?secaoId=28&noticiaId=2802>. Acesso em: 22 fev. 2013.

Pode-se concluir, portanto, que a Teologia da Libertação foi um movimento intelectual e popular com grande repercussão no Brasil e em outros países da América Latina. A sua gestação ocorreu a partir de um profícuo diálogo entre a realidade latino-americana, a teologia, a sociologia e a filosofia desse período histórico e anteriores.

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AUTOATIVIDADE

Elabore uma pesquisa sobre Leonardo Boff e sua obra. Boff é considerado um dos teólogos mais respeitados do Brasil. Suas contribuições são muito importantes para o entendimento da Teologia da Libertação no Brasil. Pesquise e saiba mais sobre ele no site: <leonardoboff.com>.

5 MOVIMENTOS SOCIAIS NO BRASILFIGURA 80 – MOVIMENTOS SOCIAIS

FONTE: Disponível em: <http://4.bp.blogspot.com/-4yc775ROXF8/T7JoDF9FdGI/AAAAAAAAAB0/OqTsBWWKx_I/s1600/movimento-social-3.png>. Acesso em: 5 fev. 2013.

De modo geral, podemos definir que movimento social é a manifestação de um grupo organizado de pessoas que defendem interesses em comum, sejam eles de caráter ideológico ou de transformação social.

De acordo com alguns pensadores da sociologia clássica, como Weber e Durkheim, os movimentos são a revelação da mudança, a propulsão do novo. Segundo ele, todos os movimentos sociais - independentemente das causas que defendem - engendram a passagem de uma situação de inércia para uma situação de movimento, como o próprio nome já intui. Essas mudanças ocorrem por vários motivos, sendo que o mais recorrente é o da insatisfação: quando um determinado grupo de pessoas se sente inconformado ou injustiçado diante de alguma realidade hostil, elas se juntam e buscam resolver os impasses que esta hostilidade produz.

Assim sendo, durante muito tempo ficou clara a ideia de que as pessoas só seriam capazes de agir em prol de seus interesses se estivessem ligadas a determinados grupos sociais e engajadas na luta pelos interesses coletivos. A ideia de classe predominava como caracterização do pensamento geral dos movimentos

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sociais. Deste modo, o princípio de pertencimento de classe deveria pesar mais do que a individualidade do sujeito. (DIMENSTEIN, 2008).

Outrossim, é muito interessante destacar que esta ideia não prevaleceu por muito tempo, pois a noção de classe dá um caráter demasiado homogêneo às pessoas vinculadas. Deste modo, muitas pessoas ligadas aos movimentos sociais começaram a divergir dos preceitos estabelecidos pelas classes às quais pertenciam (lembrando aqui que, para Marx, só existem duas classes: o proletariado e a burguesia).

Em outras palavras: nem todas as pessoas ligadas a estes movimentos possuíam interesses uníssonos ou unânimes. Pensar a coletividade significava abdicar dos interesses pessoais e colocar-se a favor da resolução dos problemas coletivos. Contudo, uma pergunta começou a instigar muitas pessoas: mas, e se os interesses privados fossem subsumidos, ainda haveria sentido em continuar na luta coletiva?

Sendo assim, uma lenta mudança começou a ocorrer, pois percebeu-se que não se fazia mais necessário o pertencimento a organizações fechadas, como sindicatos, para que os direitos legítimos dos indivíduos fossem reivindicados. Bastaria que as pessoas se colocassem como protagonistas de suas próprias vontades e tudo ficaria resolvido.

Parece, caro(a) acadêmico(a), num primeiro momento, algo muito simples de ser feito, mas na prática a coisa não é tão fácil assim, pois a História do Brasil está permeada de acontecimentos que desmentem tais teorias. Colocar-se contra o Estado ou contra o sistema de controle vigente neste país é algo muito perigoso. Basta lembrarmos um pouco do conteúdo do Tópico 1 desta unidade, para recordarmos quantas pessoas foram eliminadas ou negligenciadas em seus direitos, por se oporem ao sistema colonial, republicano ou militar do Brasil.

Muitos acreditam que esta história não se repetirá novamente em nosso país, que isso é passado, mas, atualmente, no lugar de um sistema coercitivo e violento, temos um sistema de monitoramento e vigilância que nos adestra e domestica, para que não tenhamos opinião ou vida própria. Programas de televisão que nos alienam, subestimam e aprisionam fazem parte de um conjunto de ações estrategicamente elaboradas para que não “descubramos que os programados” somos nós mesmos. Isso significa dizer que, comumente, aceitamos aquilo que nos é apresentado pela mídia como real e verdadeiro.

Aquilo que é veiculado pela TV tem peso de verdade, independentemente de quem o comunica. E isso é muito perigoso, pois inúmeras informações que nos são passadas são aceitas sem o menor senso crítico. Neste sentido, a feminista Judith Butler afirma que nosso comportamento está fortemente marcado pela influência normativa da TV. Ela considera que boa parte das coisas que fazemos ou cremos está delineada pela força de padronização comportamental que a TV nos impõe, e isto perpassa, até mesmo, a sexualidade.

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A teórica e feminista estadunidense Judith Butler (1956-) desenvolveu o conceito de heteronormatividade, que diz respeito às tentativas de regrar o que se considera normal (normatizar) nas práticas sexuais, ou seja, ser heterossexual. Segundo essa autora, entretanto, a feminilidade e a masculinidade são performances, no sentido de encenação. São essas performances que concretizam os gêneros e não algo de origem natural. [É por isso que] no período de Luís XIV [rei da França] era “natural” homens usarem saltos altos e pó de arroz. Atualmente não é mais. (BERLATTO, 2011, p. 29). (grifo no original).

FIGURA 81 – O PAPEL DA TV EM NOSSAS VIDAS

FONTE: Disponível em: <http://www.snpcultura.org/fotografias/mafalda_gf_2.jpg>. Acesso em: 5 fev. 2013.

Assim podemos deduzir que, para Butler, aquilo que é visto como normal e aceitável nada mais é do que uma imposição midiática, mesmo sabendo que nossas atuações no mundo social não passam de uma performance. Assumimos vários papéis e, em cada um deles, assumimos a persona que julgamos ser mais adequada. Não obstante, hoje não há, do ponto de vista social, classes propriamente ditas, como classe operária ou classe dos trabalhadores. Aliás, esta linguagem caiu em desuso.

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Atualmente, podemos considerar, segundo Butler, que os movimentos sociais contemporâneos estão, de fato, consideravelmente desvinculados de qualquer nuance classista, pois é muito mais aguda a presença de movimentos que estão destinados a defender interesses de pequenos (ou, às vezes, grandes) grupos, como o movimento das pessoas portadoras de necessidades especiais (em suas mais variadas especificidades), o movimento dos Sem Terra e dos Sem Teto, o movimento feminista, o movimento homoafetivo etc. Isso significa dizer que as pessoas estão ligadas umas às outras, mas sem interesses econômicos, porém, ao contrário, o que as une é o caráter cultural de seus interesses. O pensador francês Alain Touraine foi um dos pensadores contemporâneos que mais argumentou a favor desta ideia.

Para ele, na sociedade pós-industrial (ou pós-moderna), os conflitos não se concentram mais no elemento econômico. Os conflitos de classe se institucionalizaram, abrindo espaço para outras reivindicações sociais que não são mais de cunho econômico, mas cultural – daí a importância de movimentos como o feminista, o estudantil, o ecológico, o gay etc. O objetivo desses movimentos é a democratização de acesso aos mecanismos decisórios da política. Nesse contexto, o conhecimento e a informação passam a se constituir os elementos-chave desses movimentos. [...] Para Alain Touraine, os movimentos sociais constituem o próprio objeto da Sociologia. (DIMENSTEIN, 2008, p. 260).

DICAS

Sugestão de filme: CRIMINALIZAÇÃO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS (RJ-2008)

O curta-documentário reúne denúncias de violação dos direitos humanos contra os movimentos sociais, como a repressão às manifestações do Movimento dos Trabalhadores Rurais, a criminalização das atividades do Movimento de Mulheres Camponesas e o drama das pessoas ameaçadas no campo e na cidade. O relatório também revela que o Estado brasileiro cria mecanismos para criminalizar essas organizações em favorecimento de interesses privados.

FONTE: Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=Tt5rwvPej8Y>. Acesso em: 5 fev. 2013.

Sendo assim, após o fim da ditadura militar no Brasil, os movimentos sociais começaram a tomar uma forma e um rumo mais claros. Houve um crescente número de pessoas que despertaram o interesse pela defesa de valores e ideias que julgavam ser de elevada importância, tais como a questão da moradia para todos. O elevado número de desempregados, o direito a um tratamento de saúde digno, os direitos femininos etc.

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A ordem agora era lutar pela emancipação pessoal e pela garantia do respeito aos direitos de todos. Com a Constituição Federal promulgada em 1988, a população percebeu que havia um espaço mais democrático e coletivo para a defesa dos direitos básicos de cidadania. Além disso, com o passar do tempo, principalmente nos meados de 1990, muitas pessoas principiaram por defender a garantia e a manutenção de direitos sociais mais modernos, como a liberdade sexual e a diversidade religiosa, o que hoje, definitivamente, já é uma realidade concreta no país.

Entretanto, sabemos que ainda há muito a ser feito em nosso país. Não podemos esmorecer ou desanimar, pois nosso papel como professores, estudantes e pensadores, é o de jamais entregar-se diante das adversidades que encontramos em nosso dia a dia. Com isso, deixamos a você, caro(a) acadêmico(a), esta Leitura Complementar, que aborda os problemas e os desafios que os movimentos sociais encararam em nosso país, como encerramento de nosso material didático.

Paz e sucesso sempre!

LEITURA COMPLEMENTAR

A UNIÃO FAZ A FORÇA!

Gilberto Dimenstein

Numa leitura atenta de nosso passado, encontramos uma sociedade patriarcal e escravagista que cometeu violências indiscriminadas contra várias etnias e classes sociais a elas subordinadas. Homens e mulheres, negros, índios, imigrantes brancos e asiáticos, pobres e excluídos, em geral, deveriam ser meros figurantes de um espetáculo em que as elites legitimam seu poder e dominação social.

Entretanto, a História registrou nos últimos 500 anos a existência de dezenas de movimentos sociais que lutaram pela ampliação de seus direitos, contra a violência, por liberdade, em busca de melhores condições vida.

Anarquistas, socialistas e comunistas defendiam um novo modelo de sociedade com base ideológica diferente do capitalismo implantado no Brasil. Conforme a produção industrial se desenvolveu, movimentos operários e sindicais lutaram - e ainda lutam - por maiores salários, melhores condições de trabalho e pela garantia ao emprego, dentre outras reivindicações. As greves dos trabalhadores tiveram importante papel no movimento que levou ao fim da ditadura, em 1985.

No século XX, houve vários momentos em que o movimento estudantil foi às ruas para se manifestar em torno de importantes questões nacionais. Na década de 1950, estiveram presentes na campanha “O petróleo é nosso”. No

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início dos anos 1960, caravanas culturais organizadas pela UNE - União Nacional dos Estudantes percorreram o país divulgando atividades do Centro Popular de Cultura. Durante a ditadura, grandes manifestações estudantis expressavam o desejo de toda a sociedade por liberdades democráticas. Tiveram também importante papel na campanha “Diretas já!”, em 1984, e pelo impeachment do presidente Fernando Collor, em 1992.

Mais recentemente, novas questões passaram a fazer parte das preocupações sociais, resultando no surgimento de movimentos ecológicos, pelos direitos das crianças e adolescentes, pela preservação do patrimônio histórico, pelo respeito à diversidade de orientações sexuais, contra a violência.

Dentre tantas lutas, o movimento feminista se destacou pela perseverança na luta pela igualdade de direitos. À primeira vista, parece-nos que as mulheres estavam marcadas pelo imobilismo e pela invisibilidade social. Autossacrifício, submissão, obediência são estereótipos enganosos que ignoram o verdadeiro papel da mulher na sociedade brasileira. A visão patriarcal reforçava os papéis antagônicos de homens e mulheres: cabia aos primeiros desbravar os sertões, conquistar riquezas, prover o lar, e a elas restaria a tarefa de multiplicar a prole.

No século XIX surgiram as primeiras organizações de mulheres que se engajaram na luta pelo direito à instrução e ao voto. No Rio Grande do Norte, Nísia Floresta (1809-1885), abolicionista e republicana, combatia a ignorância das mulheres e a dependência feminina em relação aos homens. Já no início da República, com o crescimento do comércio e da indústria, a mão de obra feminina se incorporou à produção social, possibilitando o surgimento dos movimentos de libertação.

Em 1932, como resultado de uma luta histórica, o voto feminino foi incluído no Código Eleitoral. Desde então, as mulheres têm ampliado sua participação política e tornaram-se agentes transformadores da própria História.

Atualmente, apesar de tantas conquistas, os meios de comunicação insistem em promover uma imagem extremamente negativa do universo feminino, ligando a mulher a futilidades, modismo e ideais de beleza duvidosos.

Assim como as mulheres, a grande diversidade de movimentos sociais que atuam hoje no Brasil demonstra que o atendimento de suas reivindicações dependerá de sua capacidade de se organizar. Ao enfrentar interesses contrários, os movimentos vêm transformando interesses particulares em políticas públicas e incluindo a ampliação dos direitos civis. Dessa forma, participação e cidadania têm o mesmo sentido.

FONTE: DIMENSTEIN, Gilberto. Dez Lições de Sociologia para um Brasil cidadão. São Paulo: FTD, 2008, p. 266-267.

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• Queremos aprofundar alguns temas que são fundamentalmente contemporâneos no Brasil. A teologia da libertação, a estigmatização e segregação das pessoas que vivem nos subúrbios das grandes cidades, a rotulação da ideia de que o “favelado é criminoso” e a análise conjuntural de alguns movimentos sociais no país são alguns dos temas que este tópico se propõe a explicar.

• Nossa abordagem neste tópico visa evidenciar o papel da sociologia na análise dos fatos e acontecimentos sociais. Atualmente, estamos habituados a definir o que a sociedade é, sem o menor critério de julgamento e avaliação. Achamos que aquilo que é apresentado pela mídia tem peso de verdade, como se “o argumento de autoridade” tivesse sido ressuscitado em nossa atualidade.

• Questionar, indagar e inquirir são verbos que compõem o vocabulário da sociologia contemporânea. Pensar para além do óbvio é o principal guia de entendimento deste tópico.

• Salientamos ainda que este tópico não circunscreve toda a complexidade do momento atual pelo qual o nosso país está passando, mas quer incitar em nossos acadêmicos o anseio e a vontade de conhecer de modo mais crítico e menos passivo a nossa “nação brasileira”, pois como afirma o jornalista gaúcho Eduardo Bueno: “um povo que não conhece a sua história, está condenado a repeti-la”.

RESUMO DO TÓPICO 3

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AUTOATIVIDADE

Baseado na charge de Mafalda e no texto de Fábia Berlatto (2011, p. 67-68), descreva com suas palavras, se possuímos ou não liberdade de escolha em nossas vidas, já que somos influenciados constantemente pela mídia e pelos “valores e princípios sociais”:

FONTE: Charge de Mafalda. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/741360-criador-de-mafalda-fala-de-pausa-criativa-ediz-nao-ter-pressa-de-voltar.shtml>.

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