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Trabalho sobre a questão racial no Brasil
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IMAGENS DE UM BRASIL MESTIÇO E DESIGUAL
Marcos Henrique da Silva Amaral
Aluno de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de Brasília
(UnB). Matrícula: 15/0098855. Trabalho apresentado ao término da disciplina Pensamento Social
Brasileiro, ministrada pelo professor Sérgio Tavolaro, durante o primeiro semestre de 2015.
INTRODUÇÃO: RELAÇÕES ENTRE RAÇA E NAÇÃO
Apesar de não existirem formas de discriminação no corpo da lei, os pobres
e, sobretudo, as populações negras são ainda os mais culpabilizados pela
Justiça, os que morrem mais cedo, têm menos acesso à educação superior
pública ou a cargos mais qualificados no mercado de trabalho. Marca forte
e renitente, a herança da escravidão condiciona até nossa cultura, e a nação
se define a partir de uma linguagem pautada por cores sociais. Nós nos
classificamos em tons e meio-tons, e até hoje sabemos que quem enriquece,
quase sempre, embranquece, sendo o contrário também verdadeiro. Se a
fronteira de cor é de fato poroso entre nós, e não nos reconhecemos por
critérios só biológicos; se no país a inclusão cultural é uma realidade e se
expressa em tantas manifestações que o singularizam ― a capoeira, o
candomblé, o samba, o futebol; se nossa música e nossa cultura são mestiças
em sua origem e particularidade, não há como esquecer também os tantos
processos de exclusão social. Eles se expressam nos acessos ainda diferentes
a ganhos estruturais no lazer, no emprego, na saúde e nas taxas de
nascimento, ou mesmo nas intimidações e batidas cotidianas da polícia,
mestra nesse tipo de linguagem de cor (SCHWARCZ; STARLING, 2015, p.
15).
Poucos discordariam, hoje, da assertiva “o Brasil é um país mestiço”. Tampouco
divergiriam da máxima “o Brasil é um país desigual”. Ambas as afirmações, como aponta a
epígrafe acima, integram algumas das imagens mais perenes elaboradas sobre o Brasil,
ganhando status de verdades imediatas. É curioso notar, no entanto, que as populações negras
que tanto ganham destaque em nossa trama mestiça ― pois delas teríamos herdado o samba, a
religiosidade, a culinária e mais um sem número de elementos que compõem a nossa identidade
― ocupam posição de subalternidade em nossa trama desigual. Mestiçagem e desigualdade
imbricam-se de forma ambivalente, delineando os vários debates intelectuais que se
empenharam ― e empenham-se ― em definir uma singularidade brasileira. Assim, se a tese
da singularidade brasileira apresenta-se, desde o final do século XIX, como uma das ideias
mais poderosas de nosso pensamento social (TAVOLARO, 2014), é igualmente verdadeira sua
intrinsecabilidade em relação à temática racial. A tese da singularidade, segundo a qual o Brasil
é tomado como nação essencialmente idiossincrática merecedora de esforços analíticos
igualmente específicos capazes de torná-la inteligível, mostra-se, desde seus primeiros
contornos, indissociável das discussões em torno da raça. Tal indissociabilidade entre raça e
nação no pensamento social brasileiro é construída especialmente em função da convergência
entre os processos que delineiam os contornos do Brasil República e a Abolição da Escravatura,
fazendo com que a pergunta “quem somos nós” seja respondida, a partir de então, não apenas
sob o prima de um novo modelo político, a república, mas também sob a perspectiva de uma
novo arranjo populacional cujo guindamento dos negros ― ex-escravos ― à condição de
cidadãos cria um país de maioria negra e mestiça.
A imagem de um “Brasil mestiço” é provavelmente uma das mais recorrentes
representações elaboradas entre os intelectuais brasileiros, desde então. Renato Ortiz, no texto
sugestivamente intitulado Imagens do Brasil, aponta que, no final do século XIX, com a
concomitância da proclamação da República e da abolição da escravatura, a afirmação “o Brasil
é um país mestiço resultado do cruzamento de três raças, o branco, o negro e o índio” ganha
força progressivamente. “Este será o tema central em torno do qual evolui a busca da identidade
nacional” (ORTIZ, 2013, p. 615). Diagnóstico semelhante pode ser encontrado em Schwarcz
(1993) e Trindade (2014), segundos os quais, a partir daquele período, a ânsia por um projeto
nacional coloca como questão central o cruzamento de raças e suas implicações na formação
do povo brasileiro. Destarte, os três autores atentam-se para a ligação inexorável, na passagem
do século XIX para o XX, entre a preocupação dos intelectuais com a construção de uma
identidade nacional e as condições reais de existência do país, ou seja, a Abolição, o
aproveitamento do ex-escravo como proletário, a imigração estrangeira, a consolidação da
república (ORTIZ, 2006, P. 29). Com efeito, é ponto pacífico na literatura a ideia de que o
processo de mudança assistido pela intelligentsia brasileira acaba por pautar os debates
intelectuais daquele período, alçando a questão racial às primeiras linhas do pensamento social
brasileiro e reverberando-a nas gerações subsequentes.
Com isto, o tema da mestiçagem, extremamente caro à geração da virada do século
― representada por Joaquim Nabuco (2012), Silvio Romero (1980) e Euclides da Cunha (1992)
― perpassa, em maior ou menor grau, interpretações sobre o Brasil que adentram o século XX,
como o célebre Casa-Grande & Senzala de Gilberto Freyre (2006) e os estudos de Florestan
Fernandes (2008 e FERNANDES; BASTIDE, 2008) sobre a posição do negro na história
econômica de São Paulo. Todavia, embora possamos afirmar que a mestiçagem aparece como
emblema nas várias imagens de Brasil construídas no período pós-abolicionista, seria um
equívoco postular qualquer univocidade entre elas, isto porque a noção de mestiçagem ganha
tantos significados quanto a própria multiplicidade de retratos, interpretações, representações
ou imagens que se remetem ao Brasil (ORTIZ, 2013). Inicialmente, fortemente influenciados
pelas teorias raciológicas e racistas europeias, os intérpretes atribuíam à mestiçagem um caráter
de degradação física e moral. Tal interpretação, de cunho determinista e pessimista considerava
a sociedade brasileira fadada ao atraso graças às máculas de raças inferiores, representadas por
negros e indígenas (cf. SCHWARCZ, 1993). Por outro lado, o processo histórico que culmina
com a Abolição da Escravatura faz com que uma visão progressista a respeito da questão racial
ganhe força e, embora o discurso racista a respeito de uma hierarquia entre as raças permaneça
vigoroso ainda durante o século XX ― como é observado na obra de Oliveira Vianna (2005;
1938) ―, há uma mudança dos posicionamentos em torno da mestiçagem brasileira: as soluções
para o “atraso” brasileiro baseadas no “embranquecimento” da população dão lugar,
progressivamente, à mestiçagem como fato inexorável e indissociável de nossa identidade;
processo que se consolida definitivamente com a obra de Gilberto Freyre, na década de 1930
(TRINDADE, 2014). Nas palavras de Mota (2014, p. 70), “se, antes, Oliveira Vianna
considerava de forma negativa a mestiçagem, Gilberto Freyre agora a considera de forma
positiva”.
Os inúmeros significados atribuídos à mestiçagem ― que culminam na ideia
freyreana da mestiçagem como harmonização de contrários étnicos e culturais (FREYRE,
2006) ― endossam as análises que indicam que as respostas oferecidas à pergunta “quem somos
nós” são elucidações das inclinações teóricas, dos interesses políticos, do contexto histórico e,
enfim, do próprio posicionamento dos autores nas situações culturais vividas (ORTIZ, 2013;
MOTA, 2014). Concordando com o diagnóstico acima, a assertiva segundo a qual os
intelectuais em questão não apenas operam uma análise da temática racial no Brasil pós-
abolição, mas, igualmente, desempenham papel de artífices na construção da identidade
nacional também é verdadeira. Nas palavras de Trindade (2014, p. 19), “neste exercício de
imaginação da nação, os intelectuais desempenharam e continuam a desempenhar um papel
destacado, pois são ‘artífices dessa construção de imaginários coletivos’”.
Destarte, os intelectuais brasileiros parecem ter fundamental importância na
formulação dessa “alma mestiça do Brasil” (SCHWARCZ; STARLING, 2015, p. 15), uma
imagem substancializada do Brasil-nação que se tornou discurso hegemônico não apenas entre
intelectuais, mas que se difunde entre a população nacional por inteiro. Tornamo-nos um país
definido por uniões, ritmos, artes, música, sentimentos, esportes, aromas, culinárias e outros
referentes simbólicos que, via mistura/ hibridismo, criam a singularidade nacional. Não nos
interessa, aqui, fazer a crítica às abordagens que tomam a ideia de nação e de identidade
nacional como dados a priori, dos quais poucos desconfiam. Tampouco, partimos do
pressuposto de que seja possível elencar uma essência singular brasileira1. Interessa, mormente,
observar o papel de relevo ocupado pelos intelectuais brasileiros ― e suas respectivas
ideologias ― na formulação dessas imagens.
Com efeito, é partir do lançamento e da repercussão da obra de Gilberto Freyre ―
especialmente de Casa-Grande & Senzala, lançado em 1933 ― que elementos “negros” ou
“mestiços” como a mulata, o samba, a capoeira, o candomblé e o futebol, se consolidam
definitivamente como símbolos da identidade nacional (ORTIZ, 2013).
Essa imagem freyreana do Brasil mestiço convive, todavia, com a imagem do Brasil
desigual. A epígrafe extraída da obra Brasil: uma biografia, de Schwarcz e Starling (2015),
indica que, a despeito da posição de relevo ocupado por elementos negros e mestiços ― como
o samba e o futebol ― na construção de nossa identidade nacional, as populações não brancas
seguem ocupando posições de subalternidade, por vezes análogas àquelas ocupadas no regime
escravista. Há, claro, mudanças experimentadas por estas populações no período pós-
abolicionista. Uma delas é, por certo, o seu alçamento à condição de símbolo nacional, além da
própria conquista legal da cidadania, que ocorre em 1888 com a Abolição. Tais mudanças, no
entanto, não representam um incremento imediato nas condições de vida das populações não
brancas no país, de modo que a classificação de nossa sociedade em “tons e meio-tons”
permanece sendo um dos principais mecanismos que atuam na construção social de nossa
desigualdade (AGUIAR, 2008). Retomando a obra que nos serve de epígrafe: “se a escravidão
ficou no passado, sua história continua a se escrever no presente. (…) Último país a abolira a
escravidão no Ocidente, o Brasil segue sendo campeão em desigualdade social e pratica um
racismo silencioso mas igualmente perverso” (SCHWARCZ; STARLING, 2015, p. 14).
1 Sobre este tema, é válida a leitura do texto Imagens do Brasil, de Renato Ortiz (2013). Sumariamente, o autor
lança olhar sobre alguns intérpretes brasileiros, indicando que, quase sempre, partem de uma mesma suposição:
“o” brasileiro. O uso artigo definido no singular indica a busca quase obsessiva de tais intérpretes por uma
essência brasileira, por identidade totalizadora apta a sumarizar a nação. Partindo-se desse pressuposto ― de que
é possível captar uma essência nacional ―, Sérgio Buarque de Holanda dirá que o brasileiro é “aventureiro”,
“inclinado à desordem” e “cordial”; Fernando Azevedo privilegia a “afetividade”, a “irracionalidade”, a
“imaginação”, a “tolerância”. Há inúmeros exemplos outros em nosso pensamento social que acabam por
substancializar a ideia de nação. Ortiz (2013), indo em outra direção, afirma que a identidade não é um dado
passível de ser elucidado ou descoberto, por tratar-se de representações do que seria o país e seus habitantes.
O diagnóstico das autoras, publicado em 2015, pode ser considerado eco das
preocupações de gerações anteriores com os traços deixados pela escravidão na mesma
identidade nacional que comporta a mestiçagem como traço singular do Brasil. Assim, ao lado
das interpretações que dão relevo às “novas saídas” proporcionadas pela forma singular com a
qual se misturaram as raças no país, há, notadamente, a preocupação de alguns autores
revisionistas com os processos de exclusão social vivenciados especialmente pelos negros, após
o fim do regime escravocrata. É, aliás, a própria noção de “abolição mal aplicada”2 que norteia
parte dos esforços intelectuais de Florestan Fernandes, segundo o qual as transformações
econômicas e políticas ocorridas após o fim da escravidão teriam sido incapazes de
desorganizar o sistema de relações raciais forjado num contexto de regime escravista e de
dominação senhorial (SEREZA, 2014). Em outras palavras, não haveria, segundo o autor, uma
efetiva integração dos negros na “sociedade de classes”3. Ao contrário, a Abolição e a
República significariam, para os negros, uma nova forma de perversão social, ao marginalizá-
los e mantê-los apartados das benesses do novo regime: o preconceito de cor é ressignificando
na nova ordem para afastá-los ou prejudicá-los na concorrência econômica, social e cultural.
Assim, se é verdade que construímos uma identidade nacional que comporta a
mistura; é também verdadeiro que nossa identidade carrega consigo processos seculares de
separação e de exclusão (SCHWARCZ; STARLING, 2015). Segundo Lilia Schwarcz e Heloisa
Starling (2015), a alma mestiça do Brasil é construída precisamente na fronteira entre mistura
e separação, entre diversidade e discriminação, entre pacifismo e violência. Como ideólogos
artífices na formulação dessa identidade ou como cientistas sociais preocupados com o rigor
analítico de seus trabalhos, os intelectuais que figuram nos debates acerca da interface entre
nação e raça apontam para essa ambivalência que aqui é elencada como objeto de interesse.
O presente texto busca, assim, retomar a imagem ambivalente que comporta as
populações negras como símbolo nacional, a despeito das posições de subalternidade
socioeconômica historicamente ocupadas por tais populações, respondendo ― de forma
parcial ― o problema intelectual referente à contemporização da mestiçagem e da desigualdade
racial no forjamento da identidade nacional. Em outras palavras, interessa saber quais são os
processos sócio-históricos que, a despeito dos estigmas que acompanham as populações
2 O termo “abolição mal aplicada” foi extraído de depoimento da professora Sofia Campos Teixeira que aparece
na obra A integração do negro na sociedade de classes, de Florestan Fernandes (2008, p. 107). 3 É precisamente o diagnóstico da desintegração que leva o autor à conclusão de que a “Revolução Burguesa” não
se completa no Brasil, uma vez que não cumpre a promessa de democratização da sociedade. A marginalização do
negro é, assim, elucidação da coexistência de um ideário capitalista e de formas pré-capitalistas de produção, troca
e circulação, ou seja, da permanência do “antigo regime” e suas sequelas no novo regime (SEREZA, 2014).
negras no Brasil pós-abolicionista, operam a incorporação progressiva de símbolos
imediatamente associados a tais populações ― como o samba e o futebol ― ao panteão de
símbolos nacionais?4 Para responder tal questão, foram detectadas formas de pensamento que
articulassem as categorias raça e nação. A partir daí, foram realizados “recortes” nos textos
que indicassem os usos de tais categorias, no sentido de analisar os temas da mestiçagem e da
desigualdade que, como vimos nesta incursão inicial, se interpenetram na formulação dessa
identidade nacional que se pretende singular. O trabalho não intenciona ser conclusivo; ao
contrário, apresenta-se como esforço incipiente de pesquisa, intentando observar de que forma
autores representativos da temática não apenas tratam analiticamente essa ambivalência, mas
atuam ― efetivamente ― na formulação de imagens sobre o Brasil (ORTIZ, 2013).
A partir do protocolo de pesquisa acima delineado, destacamos as obras A
integração do negro na sociedade de classes (FERNANDES, 2008) e Brancos e negros em São
Paulo (FERNANDES; BASTIDE, 2008) como representativas do esforço de compreensão da
manutenção das relações assimétricas entre brancos e não brancos no Brasil pós-Abolição. Por
outro lado, a obra Casa-Grande & Senzala (FREYRE, 2006) parece ser emblemática no
tratamento ― e valorização ― da mestiçagem, na medida mesma em que a ressignifica de
forma positiva. A partir, portanto, das obras de Florestan Fernandes e Gilberto Freyre ―
tomadas como emblemas da ambivalência aqui alçada como objeto de interesse ― e de outros
intérpretes do Brasil que buscaram entender a questão racial, o texto busca demonstrar que a
mestiçagem pode ser tratada não somente como traço singular de uma identidade nacional
hegemônica, mas igualmente como elucidação de uma desigualdade secular.
UMA ABOLIÇÃO MAL APLICADA
Em manuscritos pessoais encontrados no verso do conto O Traidor, Lima Barreto
(2010) lembra-se do dia 13 de maio de 1888, data em que foi sancionada a Lei Áurea, que
extinguia legalmente a escravidão no país. São memórias saudosistas de um escritor negro que,
à época da Abolição, com apenas sete anos de idade, imaginava que a nova lei seria sinônimo
4 Essa investigação tem caráter inicial e é inspirada pelo trabalho de Gustavo Alonso (2011) que busca
compreender a trajetória de ídolos negros como Pelé e Wilson Simonal, apontando que o sucesso de ambos no
futebol e na música é precedido pelo ― e só pode ser entendido em função do ― processo de incorporação da
“ginga”, do “drible” e da “malemolência” “negros” à identidade nacional, especialmente durante as décadas de
1930 e 1940. Seguindo esta direção, este trabalho tem caráter meramente incipiente em um projeto de pesquisa
que ambiciona observar como se constrói a imagem do “herói negro” e suas interfaces com uma suposta
“brasilidade”.
quase imediato de liberdade: “(…) com aquele feitio mental de crianças, só uma coisa me ficou:
livre! Livre!” (BARRETO, 2010). Mais à frente, confrontando o saudosismo com a realidade
vivida pelos negros nos anos que se seguem à Abolição5, o autor se mostra desiludido: “Mas
como ainda estamos longe disso!”. O momento de desencanto nostálgico encontra consonância
em outros momentos de sua obra, em que critica especialmente os processos de isolamento
vivenciados pela população pobre e nomeadamente negra (cf. BARRETO, 1998; 2010).
Barreto, denunciando o preconceito de cor em seus escritos pessoais publicados na
obra Um longo sonho do futuro, indica que negros e mulatos dificilmente conseguiam fugir do
estigma de subalternidade no período pós-abolicionista. A retomada de seus relatos é
particularmente relevante, não apenas por tratar-se de um dos poucos intelectuais a se definir
como negro àquela época, mas especialmente por fornecer material empírico que corrobora a
tese segundo a qual o preconceito de cor subsiste no Brasil pós-abolicionista, desempenhando
papel crucial na manutenção da apartação entre o mundo dos brancos e o mundo dos negros
argumento que ganhará centralidade na obra de Fernandes e Bastide (2008). Vejamos um trecho
de seu diário pessoal de 1904, seis anos após a Abolição, em que ele, funcionário público lotado
no Ministério da Guerra, reclama ao se ver confundido com um contínuo:
Hoje, comigo, deu-se um caso que, por repetido, mereceu-me reparo. Ia eu
pelo corredor afora, daqui do Ministério, e um soldado dirigiu-se a mim,
inquirindo-me se era contínuo. Ora, sendo a terceira vez, a cousa feriu-me um
tanto a vaidade, e foi preciso tomar-me de muito sangue frio para que não
desmentisse com azedume. Eles, variada gente simples, insistem em tomar-
me como tal, e nisso creio ver um formal desmentido ao professor Broca (de
memória). Parece-me que esse homem afirma que a educação embeleza, dá,
enfim outro ar à fisionomia. Por que então essa gente continua a me querer
contínuo, por quê? Porque… o que é verdade na raça branca, não é extensivo
ao resto; eu, mulato ou negro, como queiram, estou condenado a ser sempre
tomado por contínuo. Entretanto, não me agasto, minha vida será sempre cheia
desse desgosto e ele far-me-á grande (BARRETO, 1998, pp. 26-27).
As reclamações de Lima Barreto não devem ser interpretadas como mera expressão
de ressentimento pessoal ou como reverberação de sua vaidade. Elas indicam que o período
pós-Abolicionista reproduz estratégias de separação entre dois mundos distintos e
inconciliáveis: o dos brancos e o dos negros. Tais estratégias são encontrada em gestos,
comportamentos, vocábulos e expressões, que externalizam a subsistência do preconceito de
cor. É precisamente sobre estes mecanismos de apartação que Fernandes e Bastide (2008) se
5 Os manuscritos em questão não são datados, mas estima-se ― em função da data de publicação de suas demais
obras e, portanto, de seu período em atividade ― que tenha sido escrito no intervalo compreendido pelas duas
primeiras décadas do século XX.
debruçam na obra Brancos e negros em São Paulo, em que mostram que o termo “negro”
permanecia sendo algo injurioso ou que ofenderia a pessoa a quem se aplicasse. Isto fica claro
em outro relato de Lima Barreto, quando ― durante uma discussão ― seu interlocutor utiliza
o termo de forma nitidamente ofensiva (BARRETO, 1998, p. 22)6. Uma série de outros usos
cotidianos da linguagem indicavam a persistência do preconceito de cor, como as expressões
populares “coitado, ele não tem culpa de ser negro”; “ele é negro, mas tem alma de branco”; “é
negro, mas é melhor que muito branco”; “sou negro, mas não devo nada a ninguém”; entre
outras (FERNANDES; BASTIDE, 2008).
Segundo o diagnóstico de Florestan Fernandes, subsistia ― no período pós-
Abolição ― uma “desigualdade fundamental irredutível” fundada sobre as antigas
representações sociais em torno do negro, forjadas no contexto do regime escravista. Com a
reprodução de tais representações em torno das relações raciais, havia uma tendência à
eliminação espontânea do negro e do mestiço das oportunidades econômicas, das regalias
políticas e das garantias sociais às quais a população branca tinha acesso (FERNANDES;
BASTIDE, 2008, p. 146). De forma semelhante, a população negra tendia a ser associada
sistematicamente a posições subalternas, como aponta o relato de Lima Barreto, em que é
confundido com um contínuo.
O pano de fundo da argumentação acima é a própria noção de “abolição mal
aplicada”, que Florestan Fernandes extrai de depoimento da professora Sofia Campos Teixeira
(FERNANDES, 2008, p. 107) para referir-se ao processo que culmina com a extirpação legal
da escravidão no Brasil. Mal aplicada porque teria largado o negro “ao seu próprio destino,
deitando sobre os seus ombros a responsabilidade de se reeducar e de se transformar para
corresponder aos novos padrões e ideais de ser humano, criados pelo advento do trabalho livre”
(FERNANDES, 2008, p. 35). Assim, para Florestan Fernandes, o abolicionismo nunca
alimentou efetivamente ideias de emancipação da população negra, já que não o educa para
integrá-lo à nova ordem. Seguindo esta direção, a Abolição teria sido mero episódio da
desagregação do “antigo regime” escravocrata-senhorial e da emergência da ordem social
capitalista, sem alteração real na estratificação social paulistana. A população não branca
permanece na mesma situação de dependência econômica, sem poder beneficiar-se
coletivamente com as novas oportunidades oferecidas pela renovação do sistema de trabalho e
pela livre iniciativa.
6 Segundo tal relato, o seu interlocutor, C.J., acompanhado da esposa, teria dito: “vê, ‘seu’ negro, você me pode
vencer nos concursos, mas nas mulheres não. Poderás arranjar uma, mesmo branca como a minha, mas não desse
talhe aristocrático” (BARRETO, 1998, p. 22).
No texto A Sociologia numa era de revolução social, o autor retoma o tema da
mudança social, ressaltando as suas possibilidades de insucesso e indicando que ela pode ter
efeitos negativos, como é o caso da aludida “abolição mal aplicada”. Segundo ele, “a mudança
social não é um bem em si mesma e ela pode produzir efeitos negativos irreparáveis, se as
opções coletivas em jogo não elevarem à esfera da consciência social o que se pretende
conseguir por seu intermédio” (FERNANDES, 1963, p. 219). Assim, sem levar a questão do
preconceito de cor à esfera da consciência social, a Abolição não representa uma mudança
substancial nas relações entre brancos e negros. O preconceito de cor não deixa de existir,
porém é ressignificado de acordo com o novo contexto histórico: se na sociedade escravista,
ele é um demarcador visível das castas, indicando a posição social ocupada pelo indivíduo ―
com o branco imediatamente associado à nobreza e o negro visto como sinônimo de
incivilidade ―, na sociedade capitalista-competitiva em formação, o preconceito de cor atua de
modo a impedir a entrada dos negros nas classes superiores, de maioria branca. Assim, a
permanência do preconceito de cor como efeito negativo do processo de mudança promovido
pela Abolição faz com que as classes sociais em formação apresentem-se como simulacro das
castas forjadas durante o regime escravista em função da classificação da sociedade em tons e
semitons: casta e classe se imbricam na perpetuação do preconceito de cor. Nas palavras de
Fernando Henrique Cardoso:
Florestan ressaltou que na nova sociedade, apesar de a cor deixar de ter a
antiga significação classificatória imediata, tanto o preconceito quanto a
discriminação continuam a existir. Isso embora a contraposição automática de
negro e escravo deixasse de ter equivalência numa sociedade na qual patrões,
empregados e operários não se distinguissem racialmente como no passado,
quando os senhores se distinguiam dos escravos e libertos pela cor. Como não
houve a integração imediata do negro liberto e de seus descendentes ao
mercado de trabalho, eles se mantiveram em posições sociais de franca
inferioridade, semelhantes às ocupadas anteriormente. Assim, as diferenças
raciais continuam a expressar inferioridade social, mantendo-se os
preconceitos e as discriminações, embora com as novas funções sociais de os
afastar ou prejudicar na concorrência econômica, social e cultural
(CARDOSO, 2013, pp. 289-290).
Ainda sobre a problemática da “abolição mal aplicada”, Florestan Fernandes lança
a tese referente à inadequação dos negros e mestiços para o regime do trabalho livre como
justificativa para a sua não absorção imediata no mercado de trabalho capitalista; tese segundo
a qual os ex-escravos não teriam preparação psicodinâmica para lidar com a ordem competitiva.
Como evidência empírica de tal despreparo, o autor apresenta a competição com o imigrante
europeu que, distintamente do negro recém elevado à condição de cidadão, não temia a
degradação de determinadas ocupações ― que teriam sido rejeitadas pela população negra
numa forma de “revolução muda”7. Ademais, entendia-se ― em função de um forte ideário
eurocêntrico que busca europeizar a cidade de São Paulo ― que o imigrante seria o agente
natural do trabalho livre. Neste quadro de representações, o negro era tomado em função de
supostas irracionalidade, irregularidade e inconstância para o trabalho; traços forjados no bojo
do regime escravista e persistentes no novo regime. Por outro lado, o imigrante era representado
como o agente humano já educado, na Europa, para lidar com o trabalho livre, sistemático e
racional, regido por termos exclusivamente mercantis. Com isto, Florestan Fernandes retoma a
ambivalência formada por tradição e modernidade que seriam personificadas neste sistema de
representações, respectivamente, por negros e brancos.
A tese da inadequação articula-se inevitavelmente à ideia da “abolição mal
aplicada”, porque, por ter sido deixado à sua própria sorte sem receber qualquer educação que
o adequasse ao ethos capitalista, o negro se veria relegado ― novamente ― a posições de
subalternidade. Ora, inadequado ao novo regime, ele não se vê em condições de
competitividade em relação à mão-de-obra imigrante, supostamente melhor preparada de
acordo com os novos padrões, além de disposta a ocupar as posições mais degradantes desse
mercado de trabalho, agora rejeitadas pelo negro que busca se afastar de seu passado de
subserviência. A população negra é, então, preterida; enquanto a população imigrante é
absorvida como força-motriz do novo regime.
Há, como cenário fundamental nessa substituição, para além da base psicodinâmica
do desajustamento dos negros ao novo regime ― referente precisamente à inadequação
estrutural às novas formas de trabalho ― ou da aptidão quase natural do branco para o novo
regime, uma ideologia de embranquecimento (cf. SCHWARCZ, 1993): o elemento branco
surge como elemento civilizador em contraposição à incivilidade dos ex-escravos. Não
obstante, os poucos negros e mestiços que “ensaiam uma ascensão social” na sociedade de
classes, os fazem pela proximidade com o mundo dos brancos: são os “negros de alma branca”.
Na leitura de Cardoso (2013), não se pode falar em “ascensão social” real. Trata-se muito mais
de “infiltrações”, “gotas negras que passam lentamente pelo filtro nas mãos do branco”. Com
7 O processo sócio-histórico da “abolição mal aplicada” deixaria, segundo Fernandes (2008), traços indeléveis nos
aspectos psicodinâmicos da integração do negro na estrutura de classes: sentimento de “falta de preparo”,
“timidez”, “medo”, tendências à subserviência elucidada pela expressão “ficar no seu lugar”. É em função desses
efeitos psicodinâmicos que, com a sua liberdade legal, a população negra ― pensada coletivamente ― operava
uma forma de revolução muda, rejeitando qualquer trabalho que pudesse significar uma nova degradação de sua
condição humana. A “nova” situação do negro, de igual desprestígio em relação à antiga, erige uma espécie de
desilusão social entre a população negra. Assim, a noção de revolução muda trabalhada por Florestan Fernandes
atribui certo voluntarismo das populações negras na manutenção de seu status quo.
efeito, os negros bem-sucedidos no novo regime são aqueles que conseguem adequar-se ao
padrão civilizatório do mundo dos brancos, adotando comportamentos, cultura e toda estirpe de
hábitos que aprendem em função de alguma proximidade com o elemento branco ―
proximidade típica do negro da casa-grande. Embranquece-se para integrar-se.
Antônio Sérgio Guimarães (2008), autor do prefácio da obra A integração do negro
na sociedade de classes (FERNANDES, 2008), não se furta a elencar a tese da inadequação ―
e da auto-exclusão ― como um dos pontos falhos da obra. Aponta, a partir de outras pesquisas
sobre o mesmo tema, que não só tal inadequação é insustentável sob viés empírico, como
também ela oculta a força das teorias racistas neste processo de exclusão do negro.
Lilia Schwarcz enfatizou o modo como as teorias racistas do final do século
XIX foram eficientes em tecer o senso comum cotidiano que permitiram a
substituição do negro e do mulato pelo imigrante europeu; George Andrews
mostrou muitas evidências de como a preferência pelos imigrantes foi
sistemática e não dependeu de habilidades ou de adequadas personalidades-
status dos imigrantes. Argumentou, ademais, que o negro brasileiro, no final
do século XIX, não estava despreparado para a liberdade. Carlos Hasenbalg
salientou que o capitalismo industrial nem mesmo prescinde do racismo que
Florestan acreditava ter sido herdado da ordem escravocrata (GUIMARÃES,
2008, pp. 14-15)
A despeito das várias críticas que podem ser desferidas à obra de Florestan
Fernandes, especialmente à tese da inadequação psicodinâmica do negro à nova ordem
competitiva, a imagem de Brasil que inevitavelmente é criada pela pesquisa do sociólogo é a
de uma abolição inacabada ― que posteriormente articula-se à tese segundo a qual nossa
revolução burguesa não se completa, uma vez que não cumpre a promessa de democratização
da sociedade, especialmente no tocante à integração do negro à sociedade de classes. Essa ideia
também se encontra presente na obra O abolicionismo de Joaquim Nabuco (2012), escrito às
vésperas da Abolição, em 1883. Observadas as devidas diferenças no tratamento dado ao tema
pelos autores ― com Fernandes preocupado em instaurar padrões sólidos de pesquisa científica,
e Nabuco escrevendo em tom de manifesto ―, é possível notar relação de complementaridade
entre ambos.
Nabuco é um dos primeiros intérpretes do Brasil a conceder ao tema da escravidão
um estatuto central, em sua análise não apenas da formação histórica do país, mas também dos
destinos sociais e políticos da nação. Nas primeiras páginas de O abolicionismo (NABUCO,
2012, p. 12), o autor ressalta que a abolição seria apenas a tarefa imediata do movimento, cuja
responsabilidade muito mais exigente consistiria na reversão dos efeitos nefastos de mais de
três séculos de escravidão. Há congruência quase perfeita entre o prognóstico de Nabuco sobre
a missão abolicionista no futuro e o diagnóstico feito por Fernandes, mais de cinco décadas
depois. Com efeito, a ideia de escravidão em sentido lato, uma totalidade que perpassa os planos
políticos, culturais, econômicos e psicológicos, mostra sua força, na medida mesma em que a
Abolição em sua face estritamente legalista se mostra incapaz de extirpar os efeitos dessa
escravidão, conforme diagnostica Florestan Fernandes. Assim, a Abolição só teria sucesso ―
na perspectiva de Nabuco ― se a nação tomasse consciência da necessidade de “adaptar à
liberdade cada um dos aparelhos do seu organismo de que a escravidão se apropriou”
(NABUCO, 2012, p. 12). Do contrário, a escravidão seguiria marcando os destinos da nação,
mesmo quando não houvesse mais escravos.
Assim, Joaquim Nabuco ressalta a abrangência e a profundidade que a instituição
da escravidão deixou no ethos da sociedade, em todas as dimensões:
Assim como a palavra abolicionismo, a palavra escravidão é tomada neste
livro em sentido lato. Esta não significa comente a relação do escravo para
com o senhor; significa muito mais: a soma do poderio, influência, capital, e
clientela dos senhores todos; o feudalismo estabelecido no interior; a
dependência em que o comércio, a religião, a pobreza, a indústria, o
Parlamento, a Coroa, o Estado, enfim, se acham perante o poder agregado da
minoria aristocrática, em cujas senzalas centenas de milhares de entes
humanos vivem embrutecidos e moralmente mutilados pelo próprio regímen
a que estão sujeitos; e, por último, o espírito, o princípio vital que anima a
instituição toda, sobretudo no momento em que ela entra a recear pela posse
imemorial em que se acha investida, espírito que há sido em toda a história
dos países de escravos a causa do seu atraso e da sua ruína (NABUCO, 2012,
pp. 13-14)
Ora, não é precisamente sobre as reverberações do regime escravista ― e de um
processo abolicionista incompleto ― que nos fala Florestan Fernandes? Não só há congruência
entre o prognóstico pré-Abolicionista de Nabuco e o diagnóstico pós-Abolicionista de
Fernandes, como os argumentos centrais que norteiam as obras de ambos concorrem para
conclusões semelhantes: (i) a Abolição per se não resultaria na emancipação dos negros; (ii) a
lógica da escravidão só seria extirpada efetivamente quando da tomada de consciência de seu
raio de alcance que, longe de limitar-se à relação entre senhor e escravo, está impregnada na
própria lógica das relações entre brancos e negros. A despeito da contradição entre a defesa da
emancipação das populações negras e a atribuição de caráter passivo à participação de negros
e mestiços no movimento abolicionista ― que acabaria por ser operado exclusivamente pelas
castas privilegiadas ―, o que nos interessa de perto, nessa leitura de Nabuco, é precisamente a
indicação do papel central da escravidão na formação da nação brasileira e de seus efeitos sobre
todas as dimensões da vida social. A amplitude da escravidão é, portanto, totalizante, motivo
pelo qual apenas uma reforma global seria capaz de construir a nação.
Neste ponto, raça e nação se imbricam, e o abolicionismo representaria não apenas
a reabilitação da raça negra, mas equivalentemente a reconstituição completa do país
(NABUCO, 2012, p. 27). Se a nação é ponto seminal entre os objetivos do abolicionismo de
Nabuco, reconstruir o Brasil sobre o trabalho livre e a união das raças na liberdade imporia uma
nova agenda de metas cujo termo consensual seria a elevação da raça negra como elemento de
considerável importância nacional, na medida em que a doação de valor mediante o trabalho
estivera a seu encargo ao longo dos séculos no país. Do contrário, enquanto não houvesse uma
reabilitação completa da raça negra, a escravidão permaneceria sendo a principal variável
explicativa do atraso brasileiro. Mais uma vez, a argumentação de Nabuco assemelha-se àquela
feita por Florestan Fernandes, segundo a qual alguns dos mecanismos que davam força ao
regime escravista ― especialmente o preconceito de cor e as representações da personalidade-
status das populações negras ― são transpostos para a ordem competitiva. É a perpetuação de
tais mecanismos que atua como elemento impeditivo, verdadeiro obstáculo à formação de uma
sociedade capitalista-competitiva e uma estrutura de classes; ou seja, fator de atraso. Assim,
não seria errôneo afirmar que a incompletude da Abolição ― tomada em sentido lato e,
portanto, não se resumindo a seu caráter legalista ― aparece em ambos como marca na
formação de nossa nação.
Assim, a imagem de um país desigual em função de uma abolição mal aplicada é
forjada mesmo antes da própria Abolição, com manifestos como o de Joaquim Nabuco;
perpassa os relatos de Lima Barreto no início do século XX; é corroborada pela sociologia
acadêmica de Florestan Fernandes; e adentra as interpretações sobre o Brasil no século XXI,
caso de Schwarcz e Starling (2015, pp. 14-15) que afirmam que “se a escravidão ficou no
passado, sua história continua a se escrever no presente” e que a “a herança da escravidão
condiciona até nossa cultura, e a nação se define a partir de uma linguagem pautada por cores
sociais”.
O BRASIL É UM PAÍS MESTIÇO
De forma paralela à construção da imagem do Brasil desigual que se constrói desde
antes da Abolição com prognósticos que indicavam a perpetuação da lógica escravista na nova
ordem competitiva que se instauraria, há a formulação de inúmeras interpretações outras que,
ao tratarem da interface existente entre raça e nação, dão relevo à mestiçagem como traço
singular brasileiro. Interessa observar, no entanto, que os usos e significados da noção de
mestiçagem são tão diversos quanto a multiplicidade de interpretações acerca do Brasil e
respondem a inclinações teóricas, aos interesses políticos, ao contexto histórico e, enfim, do
próprio posicionamento dos autores nas situações culturais vividas.
Na obra O espetáculo das raças, Lilia Schwarcz (1993) revisita as teorias
evolucionistas e raciológicas europeias que ganham força e se difundem pelo círculo acadêmico
do Brasil, notadamente entre os membros das faculdades de direito, na segunda metade do
século XIX. O credo evolucionista e raciológico de autores como Gobineau, Darwin, Le Play e
Spencer ganha força especialmente na década de 1870, criando uma versão determinista e
pessimista acerca da miscigenação de raças, que eram hierarquizadas e divididas em termos da
postulação de uma linha evolutiva civilizatória. Eis, portanto, a sumarização do clima
intelectual narrado por Schwarcz: o Brasil, na versão da chamada geração de 1870, consistiria
em uma sociedade fadada ao atraso, graças à presença de raças inferiores.
Assim, a mestiçagem era significada por autores como Nina Rodrigues e Sílvio
Romero, presos àquelas teorias raciológicas, como fator de degeneração da nação. Cria-se a
ideia de que o brasileiro seria a mistura de uma raça superior e duas inferiores ― o negro e o
índio (ORTIZ, 2013, p. 615) ― de modo que a mestiçagem conduzia a nação a um atraso
indissolúvel, daí o fortalecimento do ideal de embranquecimento como estratégia de
modernização. Essas teorias raciológicas ― bem como o ideal de embranquecimento ― são
hegemônicas no Brasil pelo menos até a segunda década do século XX.
Notemos, então, que o debate intelectual brasileiro na virada do século tem as
teorias raciológicas como uma espécie de “regime de verdade” (FOUCAULT, 2007)8 cujos
epígonos têm voz ainda na década de 1920, como é o caso de Oliveira Vianna, que postula a
impossibilidade de uma perfeita integração interétnica e faz considerações sobre a
potencialidade do branqueamento da população, via imigração europeia (VIANNA, 1938). Para
o autor, a “miscigenação confusa” e o “caos étnico” aparecem como um empecilho à formação
da nação, e uma integração interétnica perfeita seria tarefa irrealizável. Aqui, o tema da
mestiçagem é observado sob uma perspectiva fatalista, e as raças são vistas como agregados
8 Em Foucault (2007), a noção “regime de verdade” refere-se a discursos produzidos pela circularidade entre
verdade e poder: poder que produz a verdade e a sustenta, verdade que produz efeitos de poder. Destarte, se
podermos afirmar que o poder concentrado nas mãos de nossas elites intelectuais alça as teorias raciológicas à
condição de verdade; também podemos fazer um movimento interpretativo inverso, indicando que a verdade
instaurada acerca da questão racial perpetua a poder das populações brancas.
humanos cujas diferenças irredutíveis as fariam inassimiláveis entre si. Este “regime de
verdade” passa a conviver progressivamente com as explicações de cunho sociológico que
ganham força na Europa e que renegam a centralidade da raça como fator explicativo
fundamental, dando relevo à cultura (ORTIZ, 2006, p. 29).
É durante este período que encontramos explicações ambíguas como a de Joaquim
Nabuco (2012). A despeito da permanência das ideias racistas que postulam a superioridade da
raça branca em seu pensamento ― como fica claro em sua defesa , ele advoga em favor da
integração do negro à nação, indicando que o problema do atraso brasileiro não se encontra na
questão racial ― como querem os epígonos de Gobineau ― mas sim na escravidão: “a raça
negra não é, para nós, uma raça inferior (…). Para nós, a raça negra é um elemento de
considerável importância nacional (…), parte integrante do povo brasileiro” (NABUCO, 2012,
p. 23). Em sua obra, é possível encontrar inúmeros trechos em que a mestiçagem é apontada
como o fio da meada para a construção da nação, e a forma singular com que ela acontece no
país ― que, a despeito da escravidão e, diferente do que poderia ser verificado na América do
Norte, teria operado habilmente a mistura entre brancos e negros ― é tomada como um traço
de nossa singularidade (NABUCO, 2012, pp. 134-136).
Joaquim Nabuco representa, assim, uma agenda de debates sobre o projeto nacional
em que se reconhece a urgência em incluir traços não-europeus, já apreendidos como traços
inalienáveis da realidade do país, a despeito de manter-se viva uma metodologia classificatória
baseada na distinção das raças brancas superiores em oposição às populações negras e indígenas
incivilizadas. Lilia Schwarcz (1993), revisitando os intérpretes contemporâneos a Nabuco,
aponta o quão oscilante eram os postulados que aludiam a questão racial. Silvio Romero, um
dos autores observado por Schwarcz, também parte do suposto inicial que ao branco cabia um
papel de destaque no processo civilizador, mas, em vez de lamentar a incivilidade de negros e
indígenas, postulou que estaria na mestiçagem e no mestiço ― produtos locais que melhor se
adaptariam ao meio ― a saída para a situação deteriorada do país (cf. ROMERO, 1980;
SCHWARCZ, 1993).
A articulação feita entre a questão racial ― o homem ― e o determinismo
geográfico ― a terra ― também define o pensamento de Euclides da Cunha, segundo o qual a
mestiçagem do sertanejo, a despeito de trazer consigo os estigmas das raças inferiores,
estabelece uma relação de simbiose com a terra que o fortalece, criando uma espécie de
“Hércules-Quasímodo”, par de personagens que fazem alusão à ambivalência formada pelas
deficiências, mas também pela força da mestiçagem (CUNHA, 1992, p. 95). É essa adequação
perfeita em relação à terra que minimiza os efeitos degradadores da mestiçagem, mantendo a
integridade psíquica do sertanejo, uma subcategoria étnica tipicamente brasileira tributária do
isolamento e da inospitalidade do sertão. Curioso notar que, como em Romero, as opções
metodológicas de Cunha privilegiam o cientificismo e os determinismos geográfico e biológico,
mantendo a classificação da sociedade em raças e sub-raças; mas eles não o impedem de olhar
para um tipo de mestiçagem que, em vez de degenerada como aparece nas teorias raciológicas
do século XIX, é retrógrada e, portanto, apta se modernizar e fabricar a nação.
A incursão feita até aqui indica a força das teorias raciológicas entre a segunda
metade do século XIX e a década de 1920, período em que são transubstanciadas em regime de
verdade. Como elucidação da potência de tais ideias, basta constatar que elas eivam
indiscriminadamente as obras que procuram integrar as populações negras e mestiças ao projeto
nacional ― como nos casos observados de João Nabuco e Sílvio Romero. O período que
compreende as décadas de 1920 e 1930 corresponde àquele que seria ponto de inflexão nas
abordagens sobre a temática racial no Brasil. Inflexão porque, enfim, as teorias raciológicas
perdem seu vigor explicativo, abrindo espaço para as explicações culturalistas em que a
mestiçagem deixa de ser vista como inevitável degeneração da nação.
Parece ser ponto pacífico na literatura que o movimento modernista no segundo
decênio do século, com revalorização da cultura popular, e as ideias de Gilberto Freyre na
década seguinte têm papel de destaque na incorporação da mestiçagem de forma definitiva e
positiva à identidade nacional. Não obstante, Carlos Guilherme Mota classificará este momento
da produção intelectual brasileira como “redescobrimento do Brasil” (MOTA, 2014, p. 69)9.
Renato Ortiz corroborará com a importância da produção desse período, afirmando que autores
como Freyre operam uma “mudança de sinais, do negativo para o positivo”, no tangente ao
tema da mestiçagem. Dirá que “a mestiçagem é ressignificada, seu aspecto negativo transmuta-
se em positivo” (ORTIZ, 2013, p. 615). Ou ainda, na perspectiva de Trindade:
Com a publicação de seu Casa-Grande & Senzala, em 1933, Freyre reeditou
a temática racial e a identidade nacional, constituindo-as em chave para a
compreensão do Brasil. Contudo, não as faz a partir do critério racista, ou
raciológico, como na abordagem de Oliveira Vianna. Tampouco elegeu o
Estado como o agente central do processo de formação social. Ao contrário,
9 Segundo Mota (2014), este momento seria marcado pelo surgimento das obras de Caio Prado Júnior, Gilberto
Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Roberto Simonsen que acabariam por lavrar o terreno temático e
epistemológico das ciências sociais no Brasil. Indo na esteira de Luciano Martins (1987), diríamos que estes
esforços de “redescoberta do Brasil” conformam uma intelligentsia nacional modernizadora, atentando-se para os
seguintes aspectos na conduta deste grupo de obras: (i) conteúdo utópico do seu pensamento; (ii) a auto-atribuição
da liderança moral da nação e/ou a representação dos direitos de camadas sociais afônicas; (iii) visibilidade devido
mais à posição individual de seus membros do que propriamente à sua constituição como stratum social; (iv)
sentimento de impotência, que só é suplantado por um ato de vontade; (v) vazio social.
Gilberto Freyre opera uma dupla inversão de termos: ao invés da raça, pensa
a cultura; ao invés do Estado, pensará a sociedade (TRINDADE, 2014, p. 33).
De um modo geral, ao atravessarmos a obra de Gilberto Freyre ― mas também o
conjunto das obras modernistas ―, o que se verifica é uma metamorfose em relação aos termos
do que se entendia por mestiçagem e, portanto, uma reconfiguração na interface formada entre
raça e nação. Passou-se do pessimismo nos esforços de detectar, para glorificar, os elementos
singulares à especificidade brasileira. Ao autor é atribuído o pioneirismo na perspectiva otimista
sobre o país e as potencialidades da mestiçagem, daí a ideia de que vivia-se o “redescobrimento
do Brasil”. Embora tal pioneirismo mereça questionamento (cf. AGUIAR, 2008), uma vez que
as tentativas de incorporar as populações negras e mestiças ao ideário nacional datam do século
XIX ― como é observável na obra de Joaquim Nabuco ― e a própria noção de que a mistura
das raças teria sido operada entre nós de forma idiossincrática já estava presente nos autores da
geração da virada de século, interessa notar que, nas décadas de 1920 e 1930, tal discurso de
valorização e glorificação da mestiçagem brasileira consegue suprimir ― não integralmente,
por certo10 ― o regime de verdade fundado sobre as teorias raciológicas do século anterior.
Daí a comparação recorrente entre as obras de Oliveira Vianna e de Gilberto Freyre
para assinalar esse movimento de “redescoberta”. Lima (2014, pp. 154-155) confronta, de um
lado, a sócio-antropologia de Vianna, com forte influência do biologismo e uma concepção
racial que o levava a defender a teoria do embranquecimento, e, de outro lado, a obra de Freyre
cuja grande contribuição teria sido a de “destruir o mito” da superioridade racial de brancos
sobre negros e índios. Segundo Lima, a visão de democracia étnica associada ao Brasil de hoje
é, em grande parte, tributária das elaborações teóricas de Gilberto Freyre; indicando o papel de
destaque da intelligentsia nos processos de forjamento da identidade nacional.
Sumariamente, em sua interpretação sobre o Brasil, Gilberto Freyre sistematizou
um projeto de identidade nacional fundado sobre uma mestiçagem que conciliaria as
contradições políticas, culturais, sociais e econômicas e que, por isso mesmo, não comportaria
formas de discriminação e racismo como as existentes nos Estados Unidos. Tal perspectiva
analítica ― já esboçada por Joaquim Nabuco no século anterior ― acabaria por fundamentar o
10 A refutação às teorias raciológicas não se completa na obra de Gilberto Freyre, na medida mesma em que o
autor admite a persistência de certos determinismos raciais, supondo hierarquias e especificidades entre as raças.
Ele admite a hereditariedade de caracteres adquiridos, isto é, a possibilidade de raças artificiais ou históricas.
Trindade (2014) exemplifica retomando a alusão feita por Freyre à experiência colonial portuguesa no Brasil,
atribuindo ao brasileiro o caráter de ser “quase outra raça”, com apena um século de distância da península ibérica.
Além disso, parece supor uma hierarquia, não mais racial, mas cultural, tendo como parâmetro objetivo para defini-
la maior ou menor grau de complexidade cultural; “permanece a distinção entre maior e menor capacidade
intelectual” (cf. TRINDADE, 2014).
chamado “mito da democracia racial” (AGUIAR, 2008), situada em posição diametralmente
oposta em relação às análises operadas por Florestan Fernandes, anos depois. O postulado
fundamental da “mestiçagem freyreana” aponta que a forma absolutamente singular ―
harmônica e relativamente branda ― com que se dá a miscigenação entre negros, portugueses
e indígenas produziu um Brasil “híbrido”, capaz de aproximar Casa Grande e Senzala. Neste
contexto, a família patriarcal aparece como intermediação que contemporiza dominantes e
dominados, brancos e não brancos, criando uma unidade nacional híbrida.
Diferente da sociobiologia raciológica que até então propagara a noção de
mestiçagem como degeneração e como fator desintegração nacional, a miscigenação, na obra
de Freyre, teria levado à formação de uma sociedade em que os extremos aproximar-se-iam,
corrigindo a grande distância social entre eles, como ele explicita logo nas primeiras páginas
de sua obra mais celebrada:
A miscigenação que largamente se praticou aqui corrigiu a distância social
que doutro modo se teria conservado enorme entre a casa-grande e a mata-
tropical; entre a casa-grande e a senzala. O que a monocultura latifundiária e
escravocrata realizou no sentido de aristocratização, extremando a sociedade
brasileira em senhores e escravos, com uma rala e insignificante lambujem de
gente livre sanduichada entre os extremos antagônicos, foi em grande parte
contrariado pelo efeito social da miscigenação (FREYRE, 2006, p. 33).
Aqui, ao misturarem-se, as raças não criam máculas umas às outras. Ao contrário,
a mistura cria um “elemento eugenicamente superior”, o mestiço (cf. TRINDADE, 2014). O
mestiço aparece, portanto, como signo último da nação brasileira; traço singular e inovador
da colonização portuguesa no Brasil. Adentrando os processos históricos que dão forma a este
elemento ímpar de nossa nacionalidade, ele indica que, em função do passado étnico
indeterminado da península ibérica ― zona fronteiriça entre Europa e África11 ―, o português
seria aclimatável e propenso à hibridez. O índio, a despeito de sua incapacidade ténica-cultural,
ganha, nos escritos de Freyre, indiscutível importância na formação da cultura brasileira,
adicionando a ela hábitos de alimentação, higienização, sociabilidade etc. Por fim, e de crucial
importância à discussão proposta por este trabalho, o negro ganha protagonismo como elemento
civilizador, dotado de superioridade cultural e material diante das outras raças e de uma
predisposição biológica e psicológica para a vida nos trópicos. Note-se que a despeito de
pretender operar uma “virada culturalista” no pensamento social brasileiro ― uma vez que
11 Sérgio Buarque de Holanda (1995) retoma o argumento em que a península ibérica aparece como zona
fronteiriça ― “à margem das congêneres europeias” ― e, por isso, é híbrida. Tal característica, assim como na
interpretação de Gilberto Freyre, deixa traços indeléveis da formação da identidade nacional.
intentaria dar ênfase à cultura e não aos fatores raciais, na sua análise da formação da nação ―,
ele não deixa de se utilizar de explicações deterministas e biológicas, como se nota no relevo
dado ao clima, à mesologia e à raça, e em ideias como aclimatação e hierarquia cultural, que
eivam sua obra.
Porém, para além das ressalvas que possam ser elencadas em relação às opções
metodológicas de Freyre, interessa observar que ele ― se não cria ― sistematiza uma imagem
de Brasil, para nos apegarmos à terminologia utilizada por Ortiz (2013), que insere
definitivamente as populações negras e mestiças no panteão de símbolos nacionais. O discurso
de Freyre é consonante à incorporação positiva de referentes simbólicos associados a essas
populações como o samba, o carnaval e o futebol, à identidade nacional. Dali em diante, Renato
Ortiz assinala que a mestiçagem ganha outro significado, positivo, o que possibilita seu
alçamento a traço singular e inovador da nacionalidade brasileira.
O mestiço é o ideal harmônico no qual se espelha o “segredo do sucesso do
Brasil”. Esta mudança de sinais, do negativo para o positivo (…), possibilita
uma releitura da história, do desenvolvimento e da modernização, virtudes
antes incompatíveis com o espírito nacional, e agora viáveis e factíveis
mediante a atuação coordenada do Estado. É neste contexto que os novos
símbolos da identidade ― mulata e samba ― se consolidam, liberados da
ganga das interpretações raciológicas, [quando] eram marcados pela mácula
de inferioridade, são alçados à categoria de brasilidade (ORTIZ, 2013, p. 615).
Ortiz chama a atenção para o imbricamento entre o pensamento de Freyre e o
contexto político, entre intelligentsia e Estado, que se interpenetram, moldando a identidade
nacional. Não nos interessa, aqui, discorrer a respeito de tal relacionamento12, mas é válido
observar que neste momento de inflexão, marcado pela convergência de processos de longa
duração sócio-histórica tais quais a urbanização, a industrialização e a consolidação de um
Estado centralizador com a Revolução de 1930, Gilberto Freyre, assim como seus
predecessores modernistas na década de 1920, parecem sintetizar as buscas por uma identidade
cultural que pululam neste contexto de mudança. Destarte, se os modernistas dão um passo
importante ao incorporar a fala cotidiana, os ritmos afro-brasileiros e as figuras do povo à sua
12 Sobre este assunto, sugere-se a leitura de Ortiz (2013), Martins (1987), Miceli (2001). Renato Ortiz, por
exemplo, dirá que o contexto nacional incide diretamente nos debates sobre a identidade nacional. Durante o
governo Vargas, a esfera da cultura é elemento central da propagando política governamental, atuando como
elemento catalisador na formação de uma versão de brasilidade apta a vincular os diferentes setores da sociedade
em tornos dos rumos da revolução de 1930. Neste sentido, a educação e os meios de comunicação (rádio e cinema,
especialmente) tornam-se instrumentos de construção da nacionalidade. Durante a ditadura militar, o quadro
funda-se na reinterpretação das ideias de sincretismo e mestiçagem, tentando acomodá-los à perspectiva autoritária
do Estado. Neste momento, a esfera cultural tinha caráter funcional de criar uma imagem de Brasil autóctone,
harmônico e cordial.
versão de “cultura Brasileira”, Gilberto Freyre advoga para si, ao incorporar positiva e
definitivamente a mestiçagem ao ideário nacional, o papel de “herói modernizador” que
“confere aos brasileiros uma carteira de identidade” (MARTINS, 1987; ORTIZ, 2013). Nas
palavras do próprio autor: “Era como se tudo dependesse de mim e dos de minha geração; da
nossa maneira de resolver problemas seculares. E dos problemas brasileiros, nenhum que me
inquietasse tanto como o da miscigenação” (FREYRE, 2006, p. 10).
A resposta encontrada para o tema das relações raciais certamente não passa
incólume das críticas. Muitos autores não se demoram em duvidar do caráter racista da obra na
valorização dos traços mestiços da população: Freyre cria uma imagem de mistura harmônica
que omite a perpetuação da assimetria e da violência no relacionamento entre populações
brancas e não brancas, uma vez que a verticalidade das relações de dominação mantida entre
senhores e escravos seria suplantada pela horizontalidade conciliatória. Daí decorrem inúmeras
críticas à leniência com que ele trata as relações de dominação durante o período escravista,
eclipsando as contradições de classe e de raça. Tanto Mota (2014) quanto Schwarcz e Starling
(2015) criticam a eliminação, no discurso da “mestiçagem freyreana”, das contradições reais
do processo histórico-social, das classes e dos estamentos em seus conflitos mediados pela
violência, que tenderia a fortalecer um “sistema ideológico” no qual se perpetua uma identidade
nacional fundada sob a ideia de harmonia, união e cordialidade. Assim, se de um lado pode-
se atribuir parcialmente aos esforços interpretativos de Freyre a incorporação definitiva de
elementos negros e mestiços à identidade nacional como mulata, o samba, a capoeira, o
candomblé e o futebol ― abrigados pela sua imagem de Brasil mestiço ―, as críticas desferidas
à sua obra elucidam um processo de naturalização das desigualdades operado pela
incorporação das populações não brancas a esta identidade mestiça.
CONSIDERAÇÕES FINAIS: DESIGUALDADE E MESTIÇAGEM
Inicialmente, lançamos o problema intelectual referente à contemporização da
ambivalência formada por desigualdade e mestiçagem nos processos de construção da
identidade nacional brasileira. Em última instância, o percurso intelectual desenvolvido
buscou subsidiar o entendimento da posição das populações negras nessa trama mestiça e
desigual: ora, como explicar o papel de subalternidade ocupado por tais populações quando
olhamos o país sob o prisma da desigualdade e, simultaneamente, admitir o papel de destaque
atribuído às mesmas populações quando se trata do processo de construção da idiossincrasia
nacional? Certamente, o recurso à pesquisa bibliográfica não é suficiente para dar resposta
satisfatória à questão, que só pode ser sanada a partir de uma sociologia processual capaz de
apreender a convergências de processos sócio-históricos de longa duração, como a
urbanização, a industrialização, a consolidação de uma intelligentsia nacional e as várias
nuances de nossa história política, incluídas aí não apenas a esfera governamental, mas
igualmente as reivindicações populares.
Todavia, o esforço intelectual aqui empreendido tem valor ao apresentar o papel
destaque dos intelectuais brasileiros na formulação do que habituou-se chamar de identidade
nacional e uma correlação entre os significados atribuídos ao par desigualdade/ mestiçagem e
as ideias de tais intelectuais. Com efeito, o trabalho indica que há uma relação de proporção
inversa entre o relevo dado às teorias raciológicas e racistas no debate acerca da mestiçagem e
a incorporação das populações não brancos ― negras e mestiças ― à identidade nacional.
Assim, enquanto as ideias de Gobineau, Darwin, Le Play, Spencer e seus epígonos têm
centralidade no clima intelectual brasileiro, formando uma espécie de regime de verdade, as
populações negras se encontravam ainda mais marginalizadas no processo de construção da
identidade nacional. As evidências empíricas que ratificam essa correlação podem ser
encontradas nas obras de Fernandes (2008), Barreto (1998) e Alonso (2011) que apontam que
a República do Café com Leite ― nos decênios posteriores à Abolição da escravidão ― nada
fez para a inclusão do negro e ainda perseguiu práticas culturais associadas a essa raça, como a
capoeira, o samba etc. Isto nos leva a crer que as reverberações das teorias raciológicas tem
implicações diretas no âmbito da sociabilidade e do poder, tornando-se fundamento para a
prática sistemática da intolerância em relação à população negra e elucidando o movimento de
circularidade entre verdade e poder que norteia a noção de regime de verdade.
Neste sentido, é inevitável a associação entre este regime de verdade raciológico e
as pesquisas de Florestan Fernandes que indicam a persistência do preconceito de cor no
período pós-Abolicionista. Um dos mais incisivos dados trazidos pelo autor trazem à luz as
“providências policiais” no sentido de dispersar e impedir a “revivescência” da cultura negra
na cidade de São Paulo, sob pretexto de manutenção da ordem e da “moralidade dos costumes”
(FERNANDES, 2008). Não seria errôneo vislumbrar nessa noção de “moralidade” e de
“ordem”, a proposta de embranquecimento daquela sociedade. Proposta esta imediatamente
atrelada ao ideário raciológico que eivava o nosso debate intelectual.
Seguindo esta direção ― e nos atendo à correlação encontrada entre os significados
atribuídos ao par desigualdade/ mestiçagem na formação da identidade nacional e o debate
intelectual em torno da temática racial ―, verificou-se uma relação de proporção direta entre a
reverberação das ideias de Gilberto Freyre junto aos seus imediatos predecessores modernistas
e a incorporação das práticas vinculadas às populações negras e mestiças à identidade nacional.
Aquelas mesmas práticas que tentou-se suplantar via repressão, tais como a religiosidade, a
capoeira e o samba ― outrora associadas à incivilidade e tomadas em função de sua não
consonância com o ideário modernizador da urbanização ― são ressignificadas e alçadas à
condição de símbolos nacionais. O samba, um dos mais emblemáticos exemplos ― que merece
análise posterior ― é tributário desse movimento que faz com que se consolide, entre a década
1950 e 1960, como música “autenticamente” nacional. E só é assim considerada, tudo indica,
em função de seus enraizamentos nas populações negras e mestiças.
Há que se ressaltar, todavia, que o processo de guindamento desses símbolos,
parcialmente tributário da valorização da mestiçagem nos debates intelectuais que
“redescobrem” o Brasil, não acontece de forma unívoca, como apontará o “revisionismo” de
Florestan Fernandes e seus pares, em meados do século XX (Mota, 2014). Para uma análise
panorâmica acerca do assunto ― esforço aqui empreendido ―, interessamo-nos em observar
Gilberto Freyre e Florestan Fernandes mais como emblemas das perspectivas inúmeras que
buscam situar as populações negras e mestiças na história do Brasil, do que como respostas ao
problema intelectual que aqui elencamos. Ou seja, participam da construção de imagens sobre
o Brasil que Schwarcz e Starling (2015) tentam sintetizar, ao imbricarem as ambiguidades
mistura e separação; integração e exclusão; diversidade e discriminação; pacifismo e
violência. Mais do que análises, as obras aqui retomadas de Nabuco a Schwarcz ― passando
por Freyre e Fernandes ― parecem participar ativamente na formulação da nação e, neste
processo, a questão racial ganha centralidade.
Neste sentido, se uma conclusão é possível, ela certamente diz respeito à
possibilidade de atribuirmos valor heurístico à população negra no sentido de desvelar a trama
mestiça e desigual que inexoravelmente compõe as várias imagens construídas em torno da
nação brasileira.
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