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Introdução ao LIVRO DO GENTIO E DOS TRÊS SÁBIOS (1274-1276), de Raimundo Lúlio* Esteve Jaulent Sumário Raimundo Lúlio (Ramon Llull) e sua ilha natal Um mesmo Deus, o Deus de Abraão A postura de Lúlio As razões necessárias de Raimundo Lúlio Uma nova atitude frente ao real A realidade se torna patente para nós Argumentos de congruência A concepção ativa e produtiva da realidade O Livro do gentio e dos três sábios. Estrutura e conteúdo Imaginemos que uma autoridade nacional ou mesmo internacional comunicasse, via satélite, ao mundo a erradicação da fome. Quem acreditaria? Ainda que a notícia viesse de personalidades ou entidades excepcionalmente poderosas como o presidente dos EUA ou o Parlamento Europeu, não seria de estranhar que seriam bem poucos os que acreditariam em tal informação, na sua veracidade. Por quê? A resposta é óbvia: é quase impossível conceber o inverossímil, aquilo que se suspeita não seja verdadeiro. Mesmo naquelas circunstâncias em que se deposita muita confiança na pessoa ou na fonte da informação

INTRODUÇÁO AO LIVRO DO GENTIO E DOS TRÊS SÁBIOS (1274-1276), DE RAIMUNDO LÚLIO

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Texto publicado pela Editora Vozes, Petrópolis – Rio de Janeiro 2002, p. 5-25

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Introdução ao LIVRO DO GENTIO E DOS TRÊS SÁBIOS (1274-1276), de Raimundo Lúlio*

Esteve Jaulent

Sumário

Raimundo Lúlio (Ramon Llull) e sua ilha natal

Um mesmo Deus, o Deus de Abraão

A postura de Lúlio

As razões necessárias de Raimundo Lúlio

Uma nova atitude frente ao real

A realidade se torna patente para nós

Argumentos de congruência

A concepção ativa e produtiva da realidade

O Livro do gentio e dos três sábios. Estrutura e conteúdo

Imaginemos que uma autoridade nacional ou mesmo internacional comunicasse, via

satélite, ao mundo a erradicação da fome. Quem acreditaria? Ainda que a notícia viesse de

personalidades ou entidades excepcionalmente poderosas como o presidente dos EUA ou o

Parlamento Europeu, não seria de estranhar que seriam bem poucos os que acreditariam em

tal informação, na sua veracidade. Por quê? A resposta é óbvia: é quase impossível

conceber o inverossímil, aquilo que se suspeita não seja verdadeiro. Mesmo naquelas

circunstâncias em que se deposita muita confiança na pessoa ou na fonte da informação

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que nos traz a novidade, se acharmos ser esta inverossímil, o mais provável será que lhe

neguemos a confiança.

As relações entre a fé e a razão – quer se trate de crenças religiosas ou de tantos

outros conhecimentos que aceitamos sem criticá-los – constituem um tema complexo cujo

estudo vem-se alongando por muitos séculos. Na comunicação interpessoal, tudo parece

indicar que ocorre uma simbiose entre fé e razão, pois acreditar no testemunho do outro é

algo que não se faz sem alguma limitação. Quase sempre fundamentamos nossa fé no

conteúdo do que nos estão dizendo, na confiança que nos merece a pessoa que fala; mas,

por outro lado, para garantir-nos, exigimos algumas razões para crer. Fazemos isto porque

as palavras, mesmo as pronunciadas pela pessoa mais amiga, podem albergar as maiores

mentiras e por este motivo nossa confiança nunca deveria ser cega. Basta termos algum

motivo para pensar que quem nos fala pode enganar-se ou enganar-nos, para fazer

averiguações, indagar, ou recorrer a outras fontes de informação.

Quando o sábio cristão do Livro do gentio e dos três sábios defende a sua fé junto ao

gentio, afirma taxativamente que a fé tem de ser verdadeira: A fé dos cristãos não poderia

ser verdadeira se estes cressem que, depois da ressurreição, a alma de Cristo desceu ao

inferno e se isto não fosse verdadeiro. Ao longo do livro, os três sábios não farão outra

coisa senão procurar provar, cada qual, a verdade de sua fé.

Há, portanto, uma simbiose entre razão e fé. Depositamos confiança e exigimos

racionalidade. Como se afirmou acima, dificilmente se acredita no inverossímil. Explica-se

desta forma que o ato de fé não pode estar dissociado da razão a ponto de esta abrir mão de

sua estrutura fundamental. Seria um contra-senso. Por isto, o exercício de nossa capacidade

racional tem uma certa prioridade frente ao ato de fé.

Esta doutrina aplica-se também às crenças religiosas. Nelas há um conteúdo

revelado, que se recebe na fé, porque se acredita que Deus não pode nos enganar nem se

enganar, e há um trabalho da razão – a teologia – que reflete sobre esse conteúdo tido

como verdadeiro e tenta explicá-lo, ou pelo menos provar que não contradiz nem as leis da

lógica nem as conclusões das ciências.

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Referindo-se a esta prioridade do exercício da razão, implícita no ato de fé,

Raimundo Lúlio afirmava constantemente que o homem foi criado principalmente para

entender; não para crer. Entender é ato primitivo, verdadeiro e necessário do entendimento,

esclarece o filósofo maiorquino. Esta postura adotada por Lúlio ao analisar as relações

entre razão e fé lhe confere um lugar único entre aqueles que estudaram e discutiram este

tema.

Raimundo Lúlio (Ramon Llull) e sua ilha natal

Na opinião de Bonner, Raimundo Lúlio deu ao que P. Burns denominou o sonho da

conversão no século XIII uma solução que, embora à primeira vista possa parecer a mais

passional, talvez seja a mais friamente pensada e mais conscientemente dirigida ao outroi.

Nos anos 1200, o esforço apologético desenvolvido pela Igreja na Coroa catalano-

aragonesa apoiou-se fundamentalmente na Ordem dos Pregadores, e sobretudo na pessoa

de Raimundo de Penyafort, confessor e conselheiro do rei Jaime I seu protetor. O grande

dominicano catalão, alma da política religiosa do rei, tinha idealizado um projeto

missionário que incluía a fundação de escolas nas cidades ocupadas pelos reis cristãos, a

imposição da pregação cristã nas sinagogas e a organização de controvérsias entre teólogos

e rabinos. Seu projeto estendia seu raio de ação até Túnis e Parisii. Raimundo de Penyafort

soube transmitir seus enfoques e estratégias peculiares aos que o ajudavam na difícil tarefa

da conversão dos infiéis. Dentro deste quadro geral, surge Lúlio, que, muito embora nunca

tenha se afastado da órbita dominicana e contasse com a amizade de muitos frades – dentre

eles o próprio Raimundo de Penyafort –, adotou desde o começo uma postura isolada e

original.

Nascido em Maiorca em 1232, três anos após a conquista da ilha pelo exército de

Jaime I, passou sua juventude em convívio diário com muçulmanos e judeus. Será,

portanto, útil descrever a situação peculiar dos habitantes daquela ilha para entendermos a

postura da Igreja, do rei e da sociedade maiorquina em geral, perante o delicado tema da

conversão dos não-cristãos.

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A expansão cristã pelos territórios muçulmanos era considerada nos reinos cristãos

uma reconquista de territórios usurpadosiii, por isso, a distribuição das terras após as

invasões se fizesse em função da religião e não do nascimento. Como diz Domínguez, o

fato de pertencer à cristandade e às suas estruturas administrativas era o elemento

fundamental da coesão social na Idade Média. Todavia, em Maiorca, situada no

arquipélago mediterrâneo das Ilhas Baleares, a posse dos territórios conquistados ganhou

feições diferentes. Não se constituíram ali, como em outras partes da Península Ibérica, as

mourarias. É provável que o motivo fosse o fato de a ilha haver sido tomada com violência

por Jaime I sem que houvesse qualquer negociação prévia a respeito da sua rendição. Seja

como for, o certo é que os sobreviventes continuaram na ilha sob a condição de escravos,

isto é, sem direitos.

Calcula-se mais ou menos em 50.000 iv o número de habitantes da ilha antes da

reconquista. Aproximadamente 40% deles eram muçulmanos. Os judeus constituíam uma

minoria de pouco mais de 3.000 pessoas. Nem todos os habitantes da ilha, porém,

passaram a sofrer a condição de cativos; os poucos que colaboraram com o conquistador

receberam tratamento especial sendo-lhes permitido exercer alguns ofícios e trabalhar no

comércio. Contudo, não usufruíam igualdade de direitos com a população cristã. De modo

geral, havia uma atitude de desconfiança com relação à população muçulmana.

Muito embora as conversões dos muçulmanos à religião cristã alcançasse um número

elevado após 1229, uma parte da população continuou sendo fiel à sua fé. Era-lhes

permitido, tanto aos livres como aos escravos, praticar em privado a sua religião, uma vez

que as mesquitas foram convertidas em igrejas, em oficinas ou simples moradias. Em

Maiorca, portanto, os muçulmanos sofriam condições bem mais duras para o exercício de

sua religiosidade do que no resto da Península.

Apesar disso, já em 1233, uma disposição pontifícia estimulava a cristianização dos

mourosv. A conversão dos muçulmanos, porém, não era bem vista pelos senhores de

Maiorca em virtude de certos prejuízos econômicos. O batismo devolvia ao esacravo a

condição de livre e melhorava sua condição de alforria. Por estes motivos, a conversão dos

cativos muçulmanos não era muito favorecida e, sem qualquer dúvida, pode-se afirmar que

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os esforços de Lúlio para promover a cristianização dos muçulmanos contrariaram os

interesses de boa parte da sociedade cristã e também das poderosas ordens militares do

Templo e do Hospitalvi.

Provavelmente, Lúlio dedicou-se ao grupo de muçulmanos livres, já estabelecidos, e

só bem mais tarde, em 1299, quando obteve uma licença do rei Jaime II de Aragão,

permitindo-lhe pregar nas sinagogas dos judeus às sextas-feiras, aos sábados e domingos, e

nas mesquitas dos mouros às sextas e sábados, por todas as nossas terras e domínios, se

aventurou a um público mais amplo. É difícil admitir, no entanto, que, devido às condições

peculiares de sua ilha natal, como acima referido, tenha usado esta licença para pregar em

Maiorca.

Tenha-se em conta também a natural dificuldade que Lúlio encontraria na conversão

dos muçulmanos, por possuírem estes uma tradição filosófica e científica que, ainda no

século XIII, inexistia no Ocidente. Lúlio, visto por alguns historiadores como anti-

muçulmano, era, antes de mais nada, um homem de seu tempo, e tinha viva consciência da

importância do Islã na vida cultural dos cristãos. Mesmo assim, preferiu começar seu

trabalho de conversão entre os judeus, por serem estes mais familiares ao cristianismo.

Com relação à população judaica, sabe-se que esta existia na ilha desde os tempos da

diáspora. Juntou-se a ela o grupo de judeus que ajudou Jaime I na reconquista e que foi

recompensado no Repartiment das terras. Cabe recordar que em Maiorca a população

judaica, embora fosse muito pequena em números absolutos, era em termos relativos

extremamente superior – quase três vezes – à dos outros territórios da Coroa de Aragão,

onde não ultrapassava 2% do total dos habitantes. Esta comunidade israelita estava

perfeitamente organizada e possuía governo próprio reconhecido oficialmente. Existiam

diversas sinagogas na cidade e grupos relativamente numerosos de israelitas no campo.

Embora estivesse socialmente marginalizada, como ocorria em toda Europa, usufruía em

Maiorca de autonomia religiosa e de um forte poder econômico. Por um privilégio que foi

confirmado repetidas vezes, os judeus maiorquinos tinham os mesmos direitos que os

cidadãos cristãos da ilha.

Um mesmo Deus, o Deus de Abraão

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No prólogo do Livro do gentio e dos três sábios, Lúlio surpreende o leitor com estas

audazes e belas palavras: Pensai, senhores, disse o sábio a seus companheiros, quantos são

os danos que se originam pelo fato de os homens não seguirem uma só religião, e quantos

são os bens que adviriam se todos tivessem uma só fé e uma só Lei. Possuidor de uma

vontade poderosa, Lúlio gastará generosamente sua vida escrevendo opúsculos para a

formação dos missionários, redigindo petições aos Papas e Imperadores com a finalidade

de conquistá-los para a sua empresa unionista e apologética.

Seus métodos, porém, foram bastante diferentes dos habitualmente empregados por

seus contemporâneos. Defendeu sempre o diálogo – que devia obedecer a certas

características que serão examinadas logo a seguir – entre as três religiões reveladas. Tinha

havido, não resta dúvida, outras tentativas anteriores de diálogo, mas o diálogo luliano

revela uma feição bem mais simpática: brota com força da experiência da própria miséria

pessoal, e do desejo de ver triunfar a Verdade.

A ação missionária sofre necessariamente o influxo de quem a realiza. À medida que

a pessoa ganha experiência e amadurece, muda e aperfeiçoa seus métodos e técnicas de

conversão. Bonner observa que em 1263 ocorreu um ponto de inflexão nas táticas

utilizadas pela apologética cristã da Coroa catalano-aragonesa em seu empenho

missionário. Até esta data, o método tradicional consistia em procurar os pontos débeis dos

livros ou das argumentações dos adversários para condená-los. Era habitual nas

controvérsias, cada lado pretender demonstrar a superioridade de sua févii. Não é de

estranhar, por isso, que quase sempre surgisse algum confronto e até o litígio. Assim, aos

poucos, sobretudo no século XIII, a hostilidade aberta contra judeus e muçulmanos, contra

iudeus et contra sarracenos, explodiu.

Eis o ponto de inflexão. Em 1263, na cidade de Barcelona, no palácio real e na

presença do rei Jaime, de Raimundo de Penyafort e de numerosos prelados, teve lugar a

famosa Disputa entre o mestre Mosé ben Nahman de Girona, conhecido também pelo

nome de Bonastruc de Porta, e o judeu convertido da cidade de Montpellier, Pau Crestiàviii.

Nela fez-se uma descoberta que irá modificar, a partir de então, as discussões com o infiel.

Viu-se com clareza que os mesmos textos alegados pelos adversários podiam também ser

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utilizados nos debates a favor dos argumentos cristãos, e provar, por exemplo, que o

Messias era Cristo. Pau Crestià, por exemplo, alegou nessa Disputa que os autores do

Talmude acreditavam que Jesus era o Messias e que o consideravam homem perfeito e

Deus verdadeiro. Assim, observa Bonner, mudava-se o núcleo da questão, que a partir de

então deixou de ser um texto escrito num passado longínquo para centrar-se num povo,

cujos dirigentes teriam interpretado mal o conteúdo do livro. Os debates deslocavam-se

deste modo do terreno puramente teológico para um campo explicitamente teológico, mas,

com implicações político-sociais implícitas.

Os missionários e apologetas cristãos da Coroa, depois desta data, estudarão com

profundidade os textos islâmicos e judeus chegando alguns deles a se tornarem exímios

especialistas.

Qual será a postura do Doutor Iluminado perante estas inovações?

A postura de Lúlio

Em primeiro lugar, convém lembrar que a conversão de Lúlio deu-se precisamente

no ano da Disputa de Barcelona, e que logo a seguir, como conta em sua Vida coetânea,

gastou nove anos completos de intenso estudo antes de se dedicar à defesa da fé cristãix. Ao

iniciar sua atividade apostólica, portanto, desfrutava de uma ampla perspectiva dos

resultados dos diversos métodos empregados pelos dominicanos. Embora em nenhum

lugar de sua obra se refira à Disputa de Barcelona, nem às mudanças por ela introduzidas,

é indiscutível que Lúlio nunca as utilizou, pois era profundamente avesso a qualquer

argumentação baseada em verdades de fé. O maiorquino nunca utilizou o apoio da

autoridade da Sagrada Escritura em suas argumentações racionais. Nas suas exposições e

debates apresentava apenas o que ele chamava, inspirando-se em S. Anselmo, razões

necessárias, que nunca poderiam ser rebatidas por qualquer texto revelado.

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Numa passagem conhecida da Disputa dos cinco sábios, diz assim: Muitos

argumentos de autoridade dos homens santos poder-se-iam aplicar aos que apresentamos.

Todavia, como nenhuma verdadeira autoridade pode ir contra as razões necessárias, não

pretendemos cuidar deles neste tratado; até mesmo porque os argumentos de autoridade

podem ser expostos de diversas maneiras e se podem ter deles diversas opiniões, o que

multiplica as palavras e o entendimento entra em confusão, quando os homens disputam

entre si baseados em argumentos de autoridade. Nos Provérbios de Ramon sintetiza este

m o d o d e v e r a s c o i s a s l a m e n t a n d o-se: Não há descanso nas disputas por argumentos de

autoridade. Ora, se não estava disposto a usar os argumentos de sua própria fé, quanto

menos acharia útil utilizar em seu favor as crenças dos infiéis!

A forte convicção que Lúlio alimentava de utilizar apenas argumentos racionais na

defesa das verdades cristãs, costumava condensá-la numa esclarecedora história que repete

em diversos lugares de sua obra. Conta-nos como o sultão Miramoli, depois de se deixar

persuadir da falsidade do Islã por um certo religioso cristão, garantiu que se demonstrasse

por razões necessárias a fé dos cristãos ser verdadeira, tornar-se-ia cristão, far-se-ia batizar

e submeteria seus territórios aos mandamentos da Santa Igreja. O religioso respondeu-lhe

que a fé cristã não pode ser demonstrada; mas, disse, eis aqui o símbolo da fé cristã

exposto em árabe: acredita nele. Ao que respondeu, indignado, o sultão: “Não estou

disposto a trocar fé por fé, mas de bom grado deixaria o crer pelo entender. Fizeste muito

mal em refutar a Lei que eu antes possuía, uma vez que não me podes dar razões

necessárias da tua. Deste modo me deixaste sem nenhuma Lei” O acontecido deixou o

sultão tão irritado que, tendo ameaçado o religioso de morte, este teve de fugir e o sultão

morreu no erro, de onde seguiram-se muitos males para ele e seus territórios.

Hoje é aceite por quase todos os pesquisadores que o religioso em questão era

Ramón Marti, o dominicano que melhor conhecia na época as fontes orientais; que o

símbolo da fé exposto em árabe era a tradução de sua obra Explanatio symboli

Apostolorum; e que o sultão era al-Mustansir, de Túnisx. Com efeito, Ramón Marti tentou

converter pessoalmente Multansir nos anos de 1268-9, em Túnis, quando nosso

maiorquino, após uma comovente conversão, dedicava nove anos de sua vida a um intenso

estudo contemplando suas razões necessárias.

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As razões necessárias de Raimundo Lúlio

Brucker, cuja História crítica da filosofia, escrita no século XVIII, continua sendo

útil, aventura-se a dizer que o pensamento de Lúlio marca o começo de uma nova época na

história intelectual do Ocidente. Certamente, referia-se ao resumo que o maiorquino fez de

seu sistema na Ars generalis ultima, escrita em 1308 e conhecida depois simplesmente

como Arte, versão definitiva daquela primeira Arte abreviada de encontrar a verdade que,

segundo o próprio Lúlio nos conta, recebeu durante uma iluminação divina na montanha de

Randa, em sua ilha natal, no ano de 1274. Ao longo dos 36 anos que separam a redação das

duas obras, escreveu diversas versões da Arte, aperfeiçoando-a e adaptando-a às diferentes

circunstâncias e níveis de compreensão do público a que as dirigia.

A Arte é um sistema argumentativo baseado nas relações necessárias que se dão

entre os princípios que constituem a realidade, que, na opinião do maiorquino, são os

mesmos – embora em combinações e intensidades diferentes – para tudo o que existe,

desde Deus, suprema Realidade, até a realidade mais ínfima. Estas relações obedecem a

certas leis ou razões necessárias que permitem fundamentar um modo de argumentar que

se apóia na realidade tal como ela é e não nas consistências mentais que a realidade

pensada pode oferecer. Uma breve explicação sobre os pressupostos em que se baseiam

estas razões necessárias sintetizará de alguma maneira a original Teoria de conhecimento

do Doutor Iluminado.

Em Lúlio encontramos uma nova maneira de encarar a realidade; uma nova postura

frente ao real. Os autênticos filósofos buscaram sempre explicar o real, fugindo dos

abstracionismos que nos levam a apontar apenas generalidades; o que diferencia, porém,

uns dos outros é sua particular postura frente ao real, assim como a sua compreensão da

estrutura interna do mesmo.

Uma nova postura frente ao mundo (real)

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A realidade, por seu dinamismo íntimo e sua permanente auto-reposição, não se

deixa abarcar de um modo absoluto e total pelo homem, sendo que, por este motivo, com

freqüência, é confundida com a idéia que dela se faz. O conhecido refrão cria fama e deita-

te na cama, existente em diversas línguas, é uma de tantas constatações que se poderiam

apresentar deste fato. Introduzida a fama de alguém na mente de todos, essa pessoa poderá

já descansar tranqüilamente, sem se preocupar com possíveis deteriorações futuras. Para

poupar-se o trabalho de conhecer novamente o assunto em questão, geralmente se troca sua

realidade atual por aquela expressa na fama, já conhecida, e abarcada anteriormente pela

mente.

O Mundo (a realidade), diz Lúlio, pela complexidade ativa do seu ser, está em

permanente expansão e mobilidade. É ativa, complexa e dinâmica, portanto; por esse

motivo, não se deixa abarcar pelo entendimento humano que necessita da imobilidade do

objeto a ser compreendido, ou melhor, necessita de imobilizar o objeto a ser abarcado. A

idéia é extremamente limitada, pois necessita cristalizar, como que efetivar um corte nesta

mesma realidade, que em si mesma é ativa e dinâmica: como uma fotografia que a

imobilizasse para sempre. Tudo se torna imóvel e eterno no pensamento: desde um sorriso

até o rápido momento da morte do ente querido. Realidade do mundo e idéias; pela sua

diferente constituição, dinâmica uma e estática a outra, constituem como que dois

universos separados. Unificam-se, no entanto, pela mente humana; ao menos, no breve

instante em que o homem pensa. Pois quando pensamos, a realidade está de algum modo

presente em nós e nós presentes nela. É desta última presença, de nossa presença mental no

mundo, que Lúlio vai nos falar.

A realidade se torna patente para nós

Estamos presentes no mundo, de um modo físico, pois somos realidades imersas em

outras. Se ninguém escapa desta presença física, pois por mais que corramos e fujamos,

sempre estaremos entre realidades, também não deixamos, nem por um segundo, de estar

mentalmente presentes no mundo: ao pensar, nosso pensamento torna-se realidade nele.

Mas além desta presença que se constitui no momento em que realizamos atos de

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pensamento, e que deaparecerá mal os terminemos, dá-se outra maneira de estarmos

mentalmente presentes no mundo. É a que provém não do pensamento intermitente, mas

daquele conhecimento habitual e quase inconsciente por meio do qual temos a certeza de

sermos nós mesmos e a certeza de que o mundo que nos rodeia é algo real. Com outras

palavras, o mundo é algo patente à nossa pessoa, e isto de modo permanente. Existe, pois,

em nós um conhecimento habitual, sempre em ato, que torna patente a realidade do mundo

e ao mesmo tempo nos torna mental e habitualmente presentes nele.

Ora, este conhecimento torna patente para nós a realidade e é algo tão habitual que

não nos damos conta disso. Pois bem, sob esta luz, nascida do contato permanente que se

dá entre o ser do homem e a realidade, é que Lúlio escreverá toda a sua obra. Uma luz que

é simultânea e, ao mesmo tempo, transcende os atos particulares de conhecimento que

realizamos, que começam e terminam. Uma luz que, embora não nos dê a conhecer

exaustivamente o real, nos informa que está aí, e não nos permite duvidar de sua

existência.

A teoria de conhecimento de Lúlio se apóia nesta abertura do e no mundo (real). A

noção luliana de verdade é a clássica e tradicional: nossas idéias são verdadeiras, quando

se conformam, quando se ajustam à realidade. Ora, sem a luz permanente do contato com a

realidade patente, não poderíamos julgar sobre a verdade ou falsidade das idéias, pois é ela

que permite o confronto entre a realidade presente e patente em nós e o que nós pensamos

a seu respeito.

Argumentos de congruência

Pelo que se acaba de expor, conclui-se que o sistema luliano, a sua Arte, parte

claramente de uma especial teoria do conhecimento que se baseia na congruência que deve

existir sempre entre a realidade de quem conhece e a realidade do conhecido. No exato

momento em que se efetua um ato de conhecer, a realidade da coisa conhecida e a do

conhecedor estão implícitas nesse ato, podendo-se estabelecer um paralelismo entre ambos.

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Uma analogia ajudará a entender esta afirmação.

Vendo correr alguém ao longe, mas não distinguindo claramente quem é, caberia

usar o estratagema de colocar-se ao seu lado, correndo à mesma velocidade. Isto permitiria

reconhecer facilmente a pessoa do corredor. Enquanto o objeto observado estiver em

movimento e atividade, nosso olhar encontrará dificuldades em reconhecê-lo; porém,

igualar as velocidades das corridas fará com que o objeto pareça fixo e reconhecível.

Consideremos com atenção o que ocorre então. A equiparação dos dois atos de correr

permite conhecer o corredor, não o próprio correr. Este último escapará sempre do nosso

olhar – como qualquer outra atividade, pois estas, por serem atos e não apresentarem

fixação suficiente, não podem ser captadas pelo olhar humano –, embora esteja implícito

no reconhecimento do corredor. Nosso olhar vê, portanto, o sujeito da corrida, não a

corrida, estando esta última apenas implícita nele. Analogamente, as idéias humanas só

podem captar o sujeito da realidade e não seu ser, isto é, a atividade que constitui a

realidade como tal. O ser, contudo, permanece implícito nos atos de conhecimento que

realizamos, possibilitando-os, como a luz do dia permite enxergar as coisas e sem ela nada

veríamos.

Em outras palavras: a realidade da pessoa define e limita seu campo de

conhecimento. Esta doutrina ilumina notavelmente as relações entre ser e conhecer,

podendo-se afirmar, de acordo com ela, por exemplo, que só o homem bom, que ama o

bem, poderá conhecê-lo; e que só se pode alcançar uma noção do mal quando se odeia.

A Arte luliana é, pois, um sistema argumentativo intelectual baseado na realidade das

coisas que conhecemos e na da pessoa que as conhece. Uma vez que o Ser é a atividade

divina que confere realidade às coisas do universo, a Arte demonstrará em primeiro lugar a

existência da realidade do Ser divino e logo a seguir postulará a participação finita dos

constitutivos deste Ser nas distintas realidades criadas. Trata-se, portanto, de

argumentações que partem sempre da ótica do ser; não das idéias.

A concepção ativa e produtiva da realidade

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Lúlio apresenta uma concepção ativa e produtiva do ser. O ser constrói a realidade.

Esclarece também que o Ser de Deus é uma fusão de todas as atividades – ou perfeições –

possíveis, unificadas num Ato Puro de Ser, com atividade interna e externa. O ser das

criaturas, recebido e mantido ao longo de sua existência por Deus, será uma combinação

das mesmas atividades divinas, porém em grau finito. As semelhanças, concordâncias ou

discordâncias entre as atividades criadas serão um reflexo das semelhanças, concordâncias

ou discordâncias que existem entre as atividades divinas. Baseado nisto, Lúlio apresentará

definições novas, por vezes inusitadas, das diferentes realidades, sempre a partir desta ótica

do ser ativo e produtivo. Assim, por exemplo, dirá que a bondade é a razão por que o que é

bom faz, produz, e comunica o bem ou que o homem é um animal que humaniza.

A realidade do Ser primeiro, Deus, mostra-se ao entendimento humano por um

conjunto de princípios ativos, primitivos e absolutos que, quando são considerados em

Deus, Lúlio denominará Virtudes ou Dignidades divinas: Bondade, Grandeza, Duração,

Poder, Sabedoria, Vontade, Virtude, Verdade e Glória. Ricardo de São Vítor já afirmara

antes que Deus reunia todas as perfeições e estava além delas, pois sua existência era

anterior a elas. Lúlio identifica em Deus estas perfeições e iguala assim o Deus da

filosofia, o Ser, com o Deus do cristianismo.

A Arte dará a Lúlio os meios para provar que o Deus das três grandes religiões

monoteístas é o mesmo. As argumentações utilizadas consistem na maior parte dos casos

em associar as conveniências, diferenças e oposições que necessariamente apresentam as

Dignidades divinas com as conveniências, diferenças e oposições que os princípios

apresentam nas criaturas. O que está implícito neste modo de argumentar é que na medida

em que os princípios primitivos são mais intensos, mais convém ao ser, e quando são

infinitos, então, necessariamente terão de ser. Nesta altura devem ser chamados de

Dignidades e identificar-se, cada uma deles, com a Essência divina.

Seguindo este seu método, Lúlio demonstra desta maneira que a eternidade é algo de

bom: Boa coisa é a eternidade, pois o bem e o ser convêm à eternidade; e eternidade e ser,

à bondade. Se a eternidade fosse coisa má, o não-ser e a bondade estariam de acordo entre

si contra o ser e a eternidade; e se isto fosse assim, os homens, as plantas e as feras

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desejariam não-ser, o que não acontece de modo algum, pois é uma realidade todos

amarem ser e deixarem de amar o não-ser. Observe-se como o argumento se apóia na

observação da realidade, do que acontece no mundo, e não em idéias já possuídas com

anterioridade, como ocorre com a maior parte dos sistemas dedutivos.

O Livro do gentio e dos três sábios

O Livro do gentio e dos três sábios segue o método da Arte, se bem que de um modo

menos esquemático e mais acessível. No prólogo, apresenta um gentio, profundo filósofo,

mas que desconhecendo a existência de Deus e da ressurreição, entra em profunda

depressão todas as vezes que lembra que um dia haverá de morrer e voltar ao nada.

Mergulhado nos seus tristes pensamentos, adentra-se numa floresta para distrair-se.

Estando o gentio em meio a tais considerações, tanto sofria que lhe veio ao coração a idéia

de partir daquela terra e dirigir-se a outro lugar para ver se porventura poderia encontrar lá

remédio para sua tristeza. Pensou em ir a uma grande e desabitada floresta, repleta de

fontes e de muitas belas árvores carregadas de frutos, pelas quais o corpo humano poderia

sustentar a vida.

Lá se encontrará com três sábios, um judeu, um cristão e um muçulmano, que lhe

demonstrarão em primeiro lugar a existência de Deus e da ressurreição e depois as

características principais das três religiões. As argumentações dos três sábios seguirão

r i g o r o s a m e n t e a s d i r e t r i z e s d a d a s p o r u m a D a m a , a I n t e l i g ê n c i a , q u e , p o u c o a n t e s , l h e s

aparece, numa belíssima clareira formada por cinco árvores, onde havia uma fonte. Junto à

fonte havia uma mulher muito bela, nobremente vestida, cavalgando belíssimo cavalo que

bebia na fonte. Os sábios, vendo as cinco árvores, tão agradáveis à vista, e a mulher de

formosa aparência, dirigiram-se até o lugar e saudaram-na devota e humildemente, a qual

adequadamente retribuiu a cortesia.

Os sábios perguntaram-lhe o seu nome, e ela lhes disse ser a ‘Inteligência’. Os sábios

pediram-lhe que condescendesse em lhes dizer a natureza e as propriedades daquelas cinco

árvores, e o que significavam as letras escritas em cada uma das flores.

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As diversas flores que embelezam as árvores significam algumas das possíveis

combinações dos princípios que constituem a realidade. As concordâncias ou discordâncias

entre esses princípios fornecerão as razões necessárias ou condições da argumentação.

Podem resumir-se em dez:

1) Deve-se reconhecer e atribuir a Deus sempre a maior nobreza na essência, nas

virtudes e nas obras.

2) As virtudes divinas não podem ser contrárias umas às outras, nem umas menos

que as outras.

3) As virtudes criadas têm de ser tanto maiores e mais nobres quanto mais

signifiquem e demonstrem a grande nobreza das virtudes incriadas ou divinas.

4) As virtudes incriadas e as criadas jamais serão contrárias.

5) As virtudes de Deus não podem concordar com os vícios.

6) Convém afirmar tudo aquilo mediante o qual, pelos vícios, as virtudes de Deus são

melhor significadas ao entendimento humano, e negar tudo aquilo que for contrário à

maior significação anteriormente dita, e também tudo quanto diminua a contrariedade entre

as virtudes, Deus, e os vícios humanos, salvas as condições das outras árvores.

7) Nenhuma das virtudes criadas pode ser contrária à outra.

8) Aquilo que for mais conveniente para os homens serem mais perfeitos e terem

maior mérito, através das virtudes criadas, tem de ser verdadeiro; e o contrário, falso;

salvando-se as condições das outras árvores.

9) Que as virtudes criadas não concordem nunca com os vícios.

10) Que as virtudes criadas mais contrárias aos vícios sejam as mais amáveis, e os

vícios que são mais contrários às virtudes sejam os mais odiosos.

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Muito se tem escrito sobre estas dez condições que aparecem repetidas vezes nas

obras de Lúlio. Elas servem de guia para que a inteligência humana compreenda as

verdades cristãs – sobretudo os dogmas da Trindade e da encarnação – e forneça uma

maneira adequada de entender o mundo. Se algum pensasse, por exemplo, que Deus, por

ter um poder infinito poderia autodestruir-se, a condição 2) o impede, pois tal

autodestruição iria contra sua infinita bondade.

No primeiro livro, os três sábios decidem mostrar ao gentio, através de um raciocínio

que envolverá três grupos de realidades – as sete virtudes divinas, as sete virtudes criadas e

sete vícios – e que respeitará sempre as dez condições mencionadas, três verdades: 1) que

Deus existe; 2) que nele se encontram as sete virtudes divinas representadas nas flores da

primeira árvore; 3) e que se pode ter esperança de ressuscitar. O leitor não sabe qual é o

sábio que está demonstrando estas três verdades, indicando-se assim que são comuns às

três religiões. Escolhem, para argumentar, algumas das flores que se encontram em cada

árvore, representando cada uma delas duas virtudes, ou um vício e uma virtude ou os

víciosxi.

Entusiasmado com a força das demonstrações e tendo sido libertado por elas do erro

em que se encontrava, o gentio se ajoelhou na terra e levantou ao céu suas mãos e seus

olhos, que se banhavam em lágrimas e em choro, e com fervoroso coração, adorou e disse:

“Bendito seja Deus glorioso, Pai e Senhor poderoso de tudo quanto existe! Graças te dou,

Senhor, por ter sido de teu agrado lembrar-te deste homem pecador que estava à porta da

infinita maldição infernal! Adoro-te, Senhor, bendigo o teu nome, e peço-te perdão. Em ti

coloquei a minha esperança, de ti espero a bênção e a graça. Praza-te, Senhor, que se a

ignorância me tornou teu desconhecedor, o conhecimento em que me colocaste me faça

amar-te, honrar-te e servir-te; e daqui em diante que todos os meus dias e todas as minhas

forças corporais e espirituais não estejam em nada mais que não seja em honrar-te e

louvar-te, e em desejar a tua glória e a tua bênção, nem em meu coração não haja outra

coisa que não seja senão somente tu”.

Imediatamente, pede instruções aos três sábios sobre como poderia pregar entre seus

familiares, amigos e povo em geral de sua terra, que ainda se encontravam na mesma

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ignorância em que ele estivera até aquele dia, e neste momento descobre com espanto que

os três sábios seguem leis e crenças diferentes. Horrorizado e desconsolado, ao mesmo

tempo, o gentio lamenta-se da nova situação dizendo:

– Ah, senhores! Em quão grande alegria e esperança me havíeis colocado! Mas agora

me fizestes retornar à muito maior ira e dor do que costumava estar, porque depois de

minha morte não tinha temor de sustentar trabalhos infinitos. Mas agora estou certo, que,

se não estiver no caminho verdadeiro, toda pena está já pronta para atormentar

perenemente a minha alma depois de minha morte! Ah, senhores! E que ventura é esta que

me havia tirado de tão grande erro em que estava a minha alma? E por que minha alma

retornou a dores muito mais graves que as primeiras?

Os três sábios, perante a angústia do gentio, decidem provar por separado os artigos

de suas respectivas crenças utilizando-se do mesmo método da Dama Inteligência,

acrescentando-lhe, porém, uma regra básica: o gentio será a única pessoa que poderá

contestar ou fazer perguntas ao sábio que estiver falando.

Nos livros II, III e IV, por ordem de antiguidade, o judeu, o cristão e o muçulmano

mostram ao gentio as verdades de sua fé, oito artigos para o credo judaico, quatorze para o

cristão e doze para o islâmico. Em diversas ocasiões, e dirigindo-se aos três sábios por

separado, o gentio contesta e esclarece alguns matizes das provas oferecidas. O conteúdo

doutrinal dos três livros é irregular, mas surpreende ver como as descrições do judaísmo e

do islamismo sejam conformes aos textos fundamentais destas religiões. Lúlio mostra-se

bem informado sobre a Lei do povo judeu e a Lei islâmica.

Após as três exposições, o gentio, que já escolhera em seu coração a crença

verdadeira, dirige-se a Deus numa oração ardente e apaixonada, na qual vai considerando

as virtudes divinas, as criadas e os vícios. Uma belíssima e tocante reza que poderia ser

aceita em todo seu conteúdo pelas três religiões. Terminada a oração, o gentio divisa dois

companheiros, seus conhecidos, que se encontravam no mesmo erro em que ele havia

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estado e pede aos sábios para esperarem, pois desejaria dar a conhecer aos seus

companheiros, na presença deles, qual fora a religião escolhida.

Todavia, os sábios preferem partir sem conhecer o resultado da escolha do gentio.

Como cada um deles pensava que o gentio escolhera a sua Lei, não tinham interesse em

saber qual fora a opção por ele feita.

“Este é um assunto para discutir entre nós, a fim de que encontremos, pela força da

razão e pela natureza do entendimento, qual é a Lei que tu poderás escolher. Se, em nossa

presença, dissesses qual é a Lei que mais amas, não teríamos mais assunto para discutir,

nem verdade a descobrir”.

Notas

* Texto publicado pela Editora Vozes, Petrópolis – Rio de Janeiro 2002, p. 5-25

i Cf. Anthony Bonner, L’apologética de Ramon Marti i Ramon Llull davant de l’Islam i del judaisme, El debat intercultural als segles XIII i XIv. Actes de les I Jornades de Filosofia Catalana, Girona, 25-7 de abril de 1988. Estudi General 9, ed. Marcel Salleras, (Girona: Col.legi Universitari, 1989), pp. 171-185. As próximas linhas são basicamente uma tradução resumida deste excelente artigo.

ii Cfr. Eusebi Colomer, El pensament als països catalans durant l’Edat Mitjana i el Renaixement, Institut d’Estudis Catalans, 1997, p. 187-8.

iii Cf. Fernando Domínguez, Ramon Llull, catalán de Mallorca, y la lengua árabe. Contexto sociolingüístico, in Literatura y bilingüismo. Homenaje a Pere Ramirez. Kassel (Reichenberger) 1993, p. 3-17. Literatura y bilingüismo. Homenaje a Pere Ramírez. A situação sócio-religiosa descrita nestas páginas baseia-se toda ela neste artigo do conhecido historiador.

iv Gabriel Alomar, Urbanismo regional en la Edad Media: las ordinacions de Jaime II (1300) en el reino de Mallorca, Editorial Gustavo Gili S.A., Barcelona 1976, p. 12.

v Cf. Lorenzo Pérez, Documentos del primer pontificado em Mallorca, in Boletín de la Sociedad Arqueológica Luliana 32 (1961-62) p. 52, citado por Domínguez , op. cit. , p. 12

vi Cf. Fernando Domínguez, op. cit., p. 13.

vii Cf. Bonner, op. cit., p. 174.

viii Cfr. Eusebi Colomer, op cit. p. 195.

ix Cf. Luísa Costa Gomes, Vida de Ramon, Publicações Dom Quixote, Lisboa 1991, p. 218.

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x Bonner combina aqui as versões do Liber de acquisitione Terrae Sanctae, ed. Longpré, Criterion III (1927), p. 276-7 e do Libre de meravelles, Els nostres clàssics, I, p. 88. Outras versões mais livres desta história encontram-se in Blaquerna, caps. 84 e 43; Disputació de cinc savis, ATCA 5 (1986), p. 28-29; Disputatio fidei et intellectus, MOG IV, 480 - Int. VIII, 2; Liber de convenientia fidei et intellectus in objecto , MOG IV, 574 = Int. XI, 4; e Liber de fine, ROL IX, p. 267. Cf. Bonner, op. cit., p. 179-180 e nota 27.

xi Acha-se o número total de flores de cada árvore fazendo-se combinações binárias sem repetição de três grupos de sete elementos. A primeira e a quarta árvore têm 21 flores e a segunda, terceira e quinta, 49.