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1 Introdução às reacções enzímicas. Equilíbrio químico, catálise e classificação funcional. Aula preparada por Rui Fontes. O autor agradece a colaboração de Maria João Martins. Bibliografia aconselhada: Nelson DL & Cox MM. (2005) Lehninger Principles of Biochemistry. 3rd ed. Worth Publishers. New York. Chang R. (1994) Química 5ª ed. McGrow-Hill de Portugal, Lda Fontes R (2003) Notas de termodinâmica química e calorimetria (A energia como um conceito menos intuitivo que o que parece). Fontes R (2005) Notas sobre Introdução às reacções enzímicas. Equilíbrio químico e classificação funcional. 2 contracção muscular nutrientes O 2 ADP + Pi ureia CO 2 + H 2 O ATP transporte activo biosíntese trabalho mecânico Na + A reacção de oxidação dos nutrientes pelo O 2 tem uma constante de equilíbrio tão elevada (>10 450 ) que tem tendência a ocorrer até ao esgotamento dos nutrientes. A energia libertada no processo é usada para realizar trabalho muscular, químico (biosíntese) e eléctrico. Ca 2+ 3 As vias metabólicas existem porque existem enzimas que têm especificidade para substratos que são simultaneamente produtos de outras reacções enzímicas. 4 As enzimas catalisam reacções mas não têm qualquer papel no sentido em que estas ocorrem. A razão entre a constante de equilíbrio (Keq) e o quociente de reacção (QR) permite prever o sentido global em que uma reacção tende a evoluir. aA + bB pP + qQ 2- A reacção evolui em sentido directo ... A + B P + Q se Keq > QR Keq/QR >1 3- e evolui em sentido inverso... P + Q A + B se Keq < QR Keq/QR <1 1- Uma reacção está em equilíbrio... Keq = QR Keq/QR =1 as velocidades “microscópicas” directa e inversa são iguais, a velocidade efectiva (“macroscópica”) tem valor nulo (= mesmo, in vitro, as concentrações de reagentes e produtos não se modificam ao longo do tempo)

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Introdução às reacções enzímicas.Equilíbrio químico, catálise e classificação funcional.

Aula preparada por Rui Fontes. O autor agradece a colaboração de Maria João Martins.

Bibliografia aconselhada:Nelson DL & Cox MM. (2005) Lehninger Principles of Biochemistry. 3rd ed. Worth Publishers. New York.

Chang R. (1994) Química 5ª ed. McGrow-Hill de Portugal, Lda

Fontes R (2003) Notas de termodinâmica química e calorimetria (A energia como um conceito menos intuitivo que o que parece).

Fontes R (2005) Notas sobre Introdução às reacções enzímicas. Equilíbrio químico e classificação funcional. 2

contracção muscular

nutrientes

O2

ADP+Pi

ureia

CO2 + H2OATP

transporteactivo

biosíntesetrabalhomecânico

Na+

A reacção de oxidação dos nutrientes pelo O2 tem uma constante de equilíbrio tão elevada (>10450) que tem tendência a ocorrer até ao esgotamento dos nutrientes.A energia libertada no processo é usada para realizar trabalho muscular, químico (biosíntese) e eléctrico.

Ca2+

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As vias metabólicas existem porque existem enzimas que têm especificidade para substratos que são simultaneamente produtos de outras reacções enzímicas.

4

As enzimas catalisam reacções mas não têm qualquer papel no sentido em que estas ocorrem.A razão entre a constante de equilíbrio (Keq) e o quociente de reacção (QR) permite prever o sentido global em que uma reacção tende a evoluir.

aA + bB ↔ pP + qQ

2- A reacção evolui em sentido directo ... A + B → P + Q

se Keq > QR ⇔ Keq/QR >1

3- e evolui em sentido inverso... P + Q → A + Bse Keq < QR ⇔ Keq/QR <1

1- Uma reacção está em equilíbrio...Keq = QR ⇔ Keq/QR =1as velocidades “microscópicas” directa e inversa são iguais,

a velocidade efectiva (“macroscópica”) tem valor nulo

(= mesmo, in vitro, as concentrações de reagentes e produtos não se modificam ao longo do tempo)

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Numa via metabólica existem enzimas com baixa actividade catalítica e que,consequentemente, catalisam reacções em que Keq»QR.

Outras enzimas têm uma actividade catalítica elevada e, nestes casos, Keq≈QR.

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Na reacção catalisada pela fosforílase do glicogénio estima-se que a Keq ≈0,3.

Glicogénio (n) + Pi Glicogénio (n-1) + Glicose-1-P

Keq = ≈ 0,3[Glicogénio]equi * [Glicose-1-P]equi

[Glicogénio]equi * [Pi]equi

QR = ≈ 0,0001[Glicose-1-P]real

[Pi]real

≈0,00004 mM

0,4 mM

As concentrações estacionárias da glicose-1-P ( 0,00004 mM) e do fosfato inorgânico (Pi ≈ 0,4 mM) permitem estimar o QR ≈ 0,0001

⇒Keq»QR (qualquer QR fisiológico) e a reacção é fisiologicamente irreversível.

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Noutras condições metabólicas Keq < QR(17< [G6P](real)/[G1P] (real))

....e a reacção evolui no sentido Glicose-6-P → Glicose-1-P

Na reacção catalisada pela fosfoglicomútase estima-se que a Keq ≈17; as concentrações estacionárias da glicose-1-P (≈ 20-40 nM) e da glicose-6-P (≈ 400-800 nM) permitem estimar o QR ≈ 10 a 40

Em determinadas condições metabólicas Keq > QR(17 > [G6P](real)/[G1P] (real)) ....e a reacção evolui no sentido Glicose-1-P → Glicose-6-P

Keq = ≈ 17[Glicose-6-P]equi

[Glicose-1-P]equi

⇒Keq ≈ QR e a reacção é fisiologicamente reversível.

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Numa via metabólica na ausência de “ramificações e entroncamentos”a velocidade efectiva de conversão (velocidade macroscópica = vel_directa-vel_inversa)

é igual quer nas reacções de “equilíbrio” quer nas de “desequilíbrio”.

vel. efectiva = vel_directa – vel_inversa = 1010 - 1000 = 10

M3 M41000

1010

M2 M3

0,01

10,01vel. efectiva = vel_directa – vel_inversa = 10,01 – 0,01 = 10

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O valor da razão Keq/QR de um sistema reactivo A → P é uma medida do “grau de desequilíbrio” da reacção;quanto maior é o valor da razão Keq/QR maior a quantidade de energia livre (ou de Gibbs) libertada no processo reactivo.

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A equação de Gibbs relaciona a energia de Gibbs (ou função de Gibbs) de um sistema reactivo (∆G) com a razão Keq/QR

3610-6

tende a prosse-guir no sentidoinverso

Posit.<11810-3

Aparen-temente

parada

Nula= 101

-18103

tende a prosse-guir no sentido

directo

Negat.>1-36106

e a reacção

A→P

...então a energia de

Gibbs

Se a razão Keq/QR

∆GKJ/mol≈

Keq/QR

∆G (KJ/mol) ≈

- log decimal (Keq/QR) * 6

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As reacções com ∆G negativo dizem-se exergónicas= expontâneas (na terminologia dos químicos)

Em sentido estrito as reacções endergónicas (∆G positivo Keq < QR) são apenas uma abstracção...... uma reacção não evolui em sentido inverso ao que é ditado pela razão Keq/QR

Exergónica não é sinónimo de exotérmica... 12

O ∆Gº e o ∆G’º são, simplesmente, os ∆G de sistemas reactivos que se convencionaram como sistemas padrão em química e em bioquímica, respectivamente.

Os químicos convencionaram condições padrão que lhes permitiram construir tabelas que comparam a energia livre padrão (∆Gº) de muitas reacções.

As condições padrão dos químicos são:

1- 25ºC (298 Kelvin)

2- Para definir o QR: quer os reagentes quer os produtos estão em concentração unitária

(1 atm se são gazes e 1M se são solutos não gasosos; Nota: [H+ ] = 1 ⇔ pH zero)

... excepto (se reacção em solução aquosa) a água que está na concentração 55,5 M

Consideremos a reacção de hidrólise do composto AB: AB (+ H2O) → A + B

Teríamos condições padrão e o ∆G = ∆Gº

se temperatura = 298 Kelvin

se para definir o QR:

[AB]=1 M; [A]=1M; [B]=1M; [H2O]=55,5 M

KeqRTG ln−=∆ o

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Porque a esmagadora maioria das reacções estudadas pelos bioquímicos envolvem enzimas que, na sua maioria, não funcionam a pH 0 ([H+]=1M), os bioquímicosconvencionaram definir condições padrão transformadas.

... a única diferença relativamente às condições padrão dos químicos é que em vez de convencionar pH 0 convencionou-se que: [H+] = 10-7 ⇔ pH = 7

∆Gº, Keq, ∆G’º e Keq’ são medidas da diferença entre a estabilidade termodinâmica dos produtos e dos reagentes nas condições convencionadas como padrão

Consideremos uma reacção de isomerização AH↔BH mas em que, num sistema tamponado a pH 7,B se ioniza libertando um protão: AH → B- + H+

A Keq dos bioquímicos (para além da água) ignora também a [H+] considerando-a fixada a 10-7 M, ...e quando queremos dar ênfase a essa ideia, podemos escrever Keq’

Falar de ∆G’º duma reacção é apenas uma outra maneira de falar da Keq’

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Contudo, por razões de tradição, nas equações em que intervém o NAD+ ou o NADP+ éfrequente escrever-se:

Lactato + NAD+ ↔ Piruvato + NADH + H+

glicose-6-P + NADP+ ↔ 6-fosfogliconolactona + NADPH + H+

Em bioquímica, as concentrações da água e dos protões são frequentemente ignoradas nas equações que exprimem Keq e QR; a água e os protões também são frequentemente ignorados nas equações das reacções escritas pelos bioquímicos.

Porque na razão que exprime o “grau de desequilíbrio” de uma reacção (Keq/QR) em sistema aquoso e a pH constante as concentrações da água e dos protões são iguais no numerador e no denominador é frequente os protões e a água serem ignorados nas equações dos bioquímicos.

É normal escrever-seATP → ADP + Pi ouATP + H2O → ADP + Pi

mas, por exemplo, a pH 7, seria mais correcto: ATP4- + H2O → ADP3- + Pi2- + H+

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O valor de ∆Gº’ é apenas um equivalente da Keq’ e, em geral, não nos diz nada acerca do sentido em que a reacção tende a evoluir nem da reversibilidade ou irreversibilidade do processo em sistemas biológicos.

molKJRTG /33,0lnº' +≈−=∆

molKJRTG /200001,0

3,0ln' −≈−=∆

A reacção de fosforólisedo glicogénio éexergónica porque o ∆G’ é negativo

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As tabelas com potenciais de oxi-redução padrão permitem prever o sentido em que uma determinada reacção de oxi-redução tende a evoluir quando as condições são padrão. O ∆Eº e o ∆E’º são equivalentes à Keq.

O potencial de oxiredução padrão de um determinado par oxidante/redutor (exemplos: O2/H2O, piruvato/lactato, NAD+/NADH) é uma medida da estabilidade relativa das formas oxidada e reduzida:

quanto maior o valor do potencial de oxi-redução padrão maior a estabilidade da forma reduzida relativamente à forma oxidada desse par.

Par redox E’º (volt)

½ O2 / H2O + 0,815

piruvato / lactato -0,185

NAD+ / NADH -0,315

Da tabela podemos deduzir que, em condições padrão (pH 7, 25ºC, concentrações 1M ou 1 atm para reagentes e produtos),

as reacções em que o oxigénio oxida o NADH

ou o piruvato oxida o NADH

⇔ têm Keq’ > 1 e, portanto, se QR = 1 evoluem no sentido indicado.

2e-

∆E’º = 0,059n

log Keqlog Keq =

n ∆E’º

0,059

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Numa reacção de oxi-redução, para além das equivalências que também se aplicam às outras reacções (∆G’ Keq’/QR’ e ∆G´º Keq’), existem outras equivalências que relacionam

∆E’ ∆G’ Keq’/QR’ e ∆E’º ∆G’º Keq’.

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O potencial de oxi-redução padrão positivo (∆E’º > 0) indica-nos que Keq’> 1. O potencial oxi-redução positivo (∆E’ > 0) indica-nos que a razão Keq’ / QR’ > 1.

Se numa reacção de oxiredução: ∆E´º > 0 Keq’>1 ∆G’º< 0

As expressões equivalentes para condições diferentes das condições padrão são:∆E´ > 0 Keq’/QR’>1 ∆G < 0

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Conhecer o ∆G (⇔ razão Keq/QR) de um sistema reactivo indica-nos o sentido em que a reacção pode evoluir ... mas não nos diz nada acerca da velocidade em que ela ocorre.

1- Algumas reacções são muito lentas:

A Keq da reacção de oxidação da glicose (glicose + 6 O2 → 6 CO2 + 6 H2O)

é cerca de 10500 M-1 ∆G’º = - 2840 KJ/mol

a reacção tem tendência a evoluir até ao consumo total do reagente limitante (em geral a glicose)

...mas, à temperatura ambiente e na ausência de enzimas, posso ter

glicose em contacto com O2 durante milhares de anos que não acontece nada.

2- Outras reacções são muito rápidas

As reacções de dissociação de protões ou ligação de protões (ácido-base)aproximam-se rapidamente do equilíbrio e não necessitam de catalisadores.

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Numa sequência de reacções (A → B → C)os ∆ G são aditivos e os Keq/QR multiplicativos

A razão Keq/QR relativamente ao processo global de transformação A → C

Consideremos uma sequência de reacções ⎯→⎯1 B ⎯→⎯2 CA

...mas no caso do ∆G pode deduzir-se que... 21)2,1( GGG ∆+∆=∆

Quando queremos exprimir quantitativamenteo estado de equilíbrio ou desequilíbrio de um sistema reactivo

as expressões ∆G e Keq/QR são equivalentes mas...

é, em geral, muito mais fácil e intuitivo usar ∆G

Keq(1,2)

QR(1,2)=

[C]eq

[A]eq

[C]real

[A]real

=Keq(1)

QR(1)x

Keq(2)

QR(2)

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Quando A se transforma em P formam-se intermediários muito instáveis (estados de transição) A*: a Keq [A*](eq) / [A](eq) tem frequentemente um valor muito baixo⇔ ∆Gº do processo de formação do intermediário A* é elevado e positivo.

...e admitamos que na reacção A → P: Keq (1,2) = 10 ∆Gº (1,2) ≈ - 6 KJ/mol...e que na reacção A → A*: Keq (1) = 10-100 ∆Gº (1) ≈ + 600 KJ/mol

A* PConsideremos uma sequência de reacções: A1 2

No exemplo em análiseembora na reacção global A→ P

o ∆Gº (1,2) favoreça a formação de P

([P](eq)/[A](eq) = 10)

...a formação do estado de transição A* necessário para que a reacção ocorra está prejudicada por um ∆Gº1 positivo e de valor elevado.

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Nas reacções enzímicas o estado de transição éde natureza diferente (o complexo E•A*)e termodinamicamente muito mais estável do que o que pode eventualmente existir na ausência da enzima.

Keq1A presença da enzima faz com que passe a existir um estado de transição em concentração maior ⇒ velocidade de reacção maior

Nas reacções catalisadas por enzimas forma-se umintermediário E•A*A afinidade da enzimapara o estado de transição A* estabiliza o intermediário que neste caso é o complexo E•A*

o valor da Keq correspondente à formação do intermediário aumenta

23

Afirmar que a presença de enzima aumenta a Keq relativa ao processo de formação do estado de transição é o mesmo que dizer a presença da enzimadiminui o ∆Gº relativo a esse processo.∆Gº da formação do estado de transição = energia livre de activação

As enzimas aceleram as reacções porque baixam a energia livre de de activação.

Keq1

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As enzimas aceleram as reacções mas não alteram o sentido em que estas ocorrem: o sentido das reacções é determinado pela razão Keq/QR. A Keq e o QR (e também o ∆G’º e o ∆G) de uma reacção é independente do caminhocom que essa reacção se processa.Consideremos a transformação não catalisada enzimicamente:

Quando uma determinada enzima catalisa uma determina reacção no sentido directo

podemos estar seguros que também catalisa a reacção inversa.

Admitamos agora a mesma reacção catalisada enzimicamente pela enzima E tem os seguintes passos:

A B

Keq(1,2) =[E•A*][E] [A] [E•A*]

[E] [B]XE+A E•A* E+B

1 2

Keq = [A][B]

= [A][B]