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Processos gerais e síntese de aminoácidos; Rui Fontes Página 1 de 30 Visão geral do metabolismo proteico e aminoacídico e balanço azotado Índice 1 Os aminoácidos do organismo. ................................................................................................................................................... 1 2 Notas introdutórias sobre a origem e o destino dos aminoácidos livres do organismo ............................................................... 2 3 A taxa de renovação das diferentes proteínas endógenas e o seu contributo para o turnover proteico global ............................ 3 4 A variação positiva ou negativa da quantidade de proteínas endógenas depende da relação entre as velocidades de síntese nos ribossomas e de hidrólise por protéases ............................................................................................................................................... 3 5 Síntese de proteínas .................................................................................................................................................................... 4 6 A hidrólise das proteínas endógenas é maioritariamente levada a cabo pelo sistema ubiquitina-proteossoma ........................... 4 7 Sistema lisossómico de hidrólise proteica .................................................................................................................................. 5 8 Hidrólise proteica no exterior das células ................................................................................................................................... 6 9 Definição de “perda obrigatória de aminoácidos” e o aumento das perdas quando se ingerem proteínas .................................. 6 10 Os aminoácidos podem ser nutricionalmente indispensáveis, dispensáveis ou semi-indispensáveis .......................................... 8 11 O papel do azoto dos aminoácidos da dieta na síntese dos aminoácidos nutricionalmente dispensáveis.................................... 9 12 A incorporação de azoto inorgânico na síntese de glutamato e glutamina .................................................................................. 9 13 As reações de transaminação e a síntese de glutamato ..............................................................................................................10 14 O papel do glutamato e das transamínases na síntese dos aminoácidos nutricionalmente dispensáveis ....................................11 15 Na síntese de alguns aminoácidos quer o esqueleto carbonado quer o grupo amina têm origem noutros aminoácidos.............11 16 Na síntese da cisteína o átomo de enxofre tem obrigatoriamente origem na metionina e o esqueleto carbonado na serina ......12 17 O destino dos aminoácidos ........................................................................................................................................................13 18 Ideias gerais sobre a oxidação do esqueleto carbonado dos aminoácidos a CO2 .......................................................................14 19 Ideias gerais sobre o destino do azoto dos aminoácidos quando sofrem catabolismo e a síntese de ureia. Ver Fig 5................18 20 A síntese e a excreção de amónio nas células tubulares renais ..................................................................................................20 21 O destino do enxofre dos aminoácidos sulfurados (cisteína e metionina)..................................................................................20 22 Definições de balanço azotado ..................................................................................................................................................20 23 O destino dos aminoácidos excedentários .................................................................................................................................21 24 Fatores hormonais e comportamentais que afetam a massa das proteínas musculares ..............................................................21 25 Causas de balanço azotado positivo e negativo em situações fisiológicas e patológicas ...........................................................22 26 Défice de ingestão proteica e proteico-calórica .........................................................................................................................23 27 Conceito de aminoácido limitante da qualidade dietética de uma proteína................................................................................23 28 Conceito e determinação do índice químico de uma proteína ou de uma mistura de proteínas .................................................24 29 A digestibilidade das proteínas como fator da sua qualidade dietética ......................................................................................24 1 Os aminoácidos do organismo. Num indivíduo adulto com uma estrutura corporal normal e com 70 kg de peso, a massa de proteínas é de cerca de 10 kg. A esmagadora maioria dos aminoácidos presentes no organismo estão na forma de resíduos de aminoácidos incorporados nestas proteínas. Apenas cerca de 1,5% da massa dos aminoácidos está na forma livre (150 g) e a maior parte está dentro das células. Dos 150 g de aminoácidos livres presentes no organismo só cerca de 3 g é que está no líquido extracelular. Admitindo, num indivíduo com 70 kg de peso, um volume de líquido extracelular de 10 L e intracelular de 30 L, a concentração dos aminoácidos entendidos como um todo é cerca de 15 vezes maior no interior das células (5 g/L) que no exterior (0,3g/L) [1]. Ao contrário do que acontece com a glicose ou com os ácidos gordos que, na forma livre, quase não existem dentro das células, a concentração intracelular de aminoácidos livres é relativamente elevada.

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Processos gerais e síntese de aminoácidos; Rui Fontes

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Visão geral do metabolismo proteico e aminoacídico e balanço azotado

Índice

1 Os aminoácidos do organismo. ................................................................................................................................................... 1

2 Notas introdutórias sobre a origem e o destino dos aminoácidos livres do organismo ............................................................... 2

3 A taxa de renovação das diferentes proteínas endógenas e o seu contributo para o turnover proteico global ............................ 3

4 A variação positiva ou negativa da quantidade de proteínas endógenas depende da relação entre as velocidades de síntese nos ribossomas e de hidrólise por protéases ............................................................................................................................................... 3

5 Síntese de proteínas .................................................................................................................................................................... 4

6 A hidrólise das proteínas endógenas é maioritariamente levada a cabo pelo sistema ubiquitina-proteossoma ........................... 4

7 Sistema lisossómico de hidrólise proteica .................................................................................................................................. 5

8 Hidrólise proteica no exterior das células ................................................................................................................................... 6

9 Definição de “perda obrigatória de aminoácidos” e o aumento das perdas quando se ingerem proteínas .................................. 6

10 Os aminoácidos podem ser nutricionalmente indispensáveis, dispensáveis ou semi-indispensáveis .......................................... 8

11 O papel do azoto dos aminoácidos da dieta na síntese dos aminoácidos nutricionalmente dispensáveis .................................... 9

12 A incorporação de azoto inorgânico na síntese de glutamato e glutamina .................................................................................. 9

13 As reações de transaminação e a síntese de glutamato ..............................................................................................................10

14 O papel do glutamato e das transamínases na síntese dos aminoácidos nutricionalmente dispensáveis ....................................11

15 Na síntese de alguns aminoácidos quer o esqueleto carbonado quer o grupo amina têm origem noutros aminoácidos. ............11

16 Na síntese da cisteína o átomo de enxofre tem obrigatoriamente origem na metionina e o esqueleto carbonado na serina ......12

17 O destino dos aminoácidos ........................................................................................................................................................13

18 Ideias gerais sobre a oxidação do esqueleto carbonado dos aminoácidos a CO2 .......................................................................14

19 Ideias gerais sobre o destino do azoto dos aminoácidos quando sofrem catabolismo e a síntese de ureia. Ver Fig 5. ...............18

20 A síntese e a excreção de amónio nas células tubulares renais ..................................................................................................20

21 O destino do enxofre dos aminoácidos sulfurados (cisteína e metionina)..................................................................................20

22 Definições de balanço azotado ..................................................................................................................................................20

23 O destino dos aminoácidos excedentários .................................................................................................................................21

24 Fatores hormonais e comportamentais que afetam a massa das proteínas musculares ..............................................................21

25 Causas de balanço azotado positivo e negativo em situações fisiológicas e patológicas ...........................................................22

26 Défice de ingestão proteica e proteico-calórica .........................................................................................................................23

27 Conceito de aminoácido limitante da qualidade dietética de uma proteína ................................................................................23

28 Conceito e determinação do índice químico de uma proteína ou de uma mistura de proteínas .................................................24

29 A digestibilidade das proteínas como fator da sua qualidade dietética ......................................................................................24

1 Os aminoácidos do organismo.

Num indivíduo adulto com uma estrutura corporal normal e com 70 kg de peso, a massa de proteínas é de cerca de 10 kg. A esmagadora maioria dos aminoácidos presentes no organismo estão na forma de resíduos de aminoácidos incorporados nestas proteínas.

Apenas cerca de 1,5% da massa dos aminoácidos está na forma livre (≈150 g) e a maior parte está dentro das células. Dos 150 g de aminoácidos livres presentes no organismo só cerca de 3 g é que está no líquido extracelular. Admitindo, num indivíduo com 70 kg de peso, um volume de líquido extracelular de 10 L e intracelular de 30 L, a concentração dos aminoácidos entendidos como um todo é cerca de 15 vezes maior no interior das células (≈5 g/L) que no exterior (≈ 0,3g/L) [1]. Ao contrário do que acontece com a glicose ou com os ácidos gordos que, na forma livre, quase não existem dentro das células, a concentração intracelular de aminoácidos livres é relativamente elevada.

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Estão descritos dezenas de transportadores membranares para os diferentes aminoácidos (ou grupos de aminoácidos). Muitos deles catalisam processos de transporte ativo dependente do ião Na+ o que ajuda a compreender os marcados gradientes de concentração entre o interior e o exterior das células [2].

Quer dentro quer fora das células as concentrações dos diferentes aminoácidos variam de aminoácido para aminoácido. No plasma sanguíneo (e no líquido extracelular) os aminoácidos mais abundantes são a glutamina e a alanina desempenhando o papel de transportadores de azoto entre os diferentes tecidos. Mais de metade do azoto aminoacídico do plasma corresponde aos grupos azotados da glutamina (grupo amina + grupo amida) e da alanina (grupo amina). Nos hepatócitos, o aminoácido mais abundante é o aspartato onde desempenha um papel muitíssimo importante no ciclo da ureia, ou seja, na síntese de um composto (a ureia) que contém os átomos de azotos que pertenciam aos aminoácidos e que é eliminado na urina. Nas fibras musculares os aminoácidos mais abundantes são a glutamina e a taurina1. A glutamina é o aminoácido mais abundante no plasma sanguíneo (≈0,6 mM), mas a sua concentração dentro das fibras musculares (≈20 mM) é cerca de 30-35 vezes maior que no plasma [1]. 2 Notas introdutórias sobre a origem e o destino dos aminoácidos livres do organismo

Embora o tema da síntese endógena de aminoácidos nutricionalmente dispensáveis seja de importância crucial para compreender o metabolismo dos aminoácidos, é importante ter sempre presente que os grupos azotados dos aminoácidos sintetizados no organismo (amina, amida e guanidina) provêm de outros aminoácidos. Assim, se pensarmos nestes grupos azotados e esquecermos o “esqueleto carbonado” será adequado pensar que os aminoácidos presentes no organismo provêm, em última análise, da dieta: ou seja, são os aminoácidos constituintes das proteínas da dieta que foram absorvidos para o meio interno.

No entanto a maioria das moléculas dos aminoácidos livres presentes num determinado momento no organismo não tem origem direta na dieta.

Existe no meio interno renovação contínua das proteínas endógenas (turnover proteico): uma fração de todas e de cada uma das proteínas do organismo está num dado momento a sofrer hidrólise com a consequente libertação dos aminoácidos livres e estes, após ligação aos respetivos RNA de transferência (tRNA), estão a ser usados na síntese das mesmas ou de outras proteínas. Num indivíduo adulto em que a massa proteica endógena global seja estacionária, a massa proteica sintetizada equivale à que é hidrolisada e não haverá, por isso, variação da quantidade de aminoácidos livres no organismo, com base neste mecanismo.

No adulto saudável, a massa global de aminoácidos livres no organismo também é estacionária porque existe continuamente conversão de aminoácidos noutros produtos (nomeadamente em produtos que são excretados) e a massa de aminoácidos eliminados por processos catabólicos equivale à massa de aminoácidos da dieta. Os produtos que são eliminados resultam maioritariamente da oxidação (CO2) e desaminação (ureia e amónio) dos aminoácidos, mas também podem ser catabolitos (urato, creatinina, bilirrubina, nitrato, etc.) de derivados aminoacídicos de grande importância biológica (como purinas, creatina, heme, NO, etc.).

Admite-se que na civilização ocidental a ingestão de proteínas resulta na absorção de cerca de 100 g de aminoácidos /dia e, no adulto saudável, é expectável que uma massa equivalente seja convertida em produtos de excreção. Maioritariamente a excreção da porção azotada dos aminoácidos ocorre na forma de ureia na urina enquanto a eliminação dos carbonos ocorre maioritariamente na forma de CO2 nos pulmões.

Cada uma das proteínas endógenas tem uma taxa de renovação que é diferente das outras. O mesmo acontece no caso dos diferentes tecidos onde as taxas de renovação proteica também variam de tecido para tecido. No entanto, se considerarmos o turnover proteico das proteínas endógenas como um todo, é consensual admitir- se que, num indivíduo adulto saudável de 70 kg, a velocidade de síntese (e hidrólise) proteica é de cerca de 300 g /dia. Ou seja, cerca de 3% da massa proteica endógena renova-se diariamente. Esta percentagem é cerca do dobro no caso dos bebés porque o crescimento envolve remodelação de tecidos e órgãos que implica hidrólise e síntese de proteínas.

A síntese proteica ocorre nos ribossomas das células e a hidrólise da maioria das proteínas sintetizadas endogenamente também ocorre dentro das células. No entanto, uma percentagem relativamente elevada (≈20%; ≈70 g/dia) das proteínas que sofre turnover corresponde a proteínas das células epiteliais do tubo digestivo que morrem e descamam para o lúmen sendo hidrolisadas pelas enzimas digestivas. As proteínas das células da mucosa assim como as próprias enzimas envolvidas no processo de digestão são proteínas endógenas cujos aminoácidos são absorvidos através do epitélio intestinal. Embora estes

1 A taurina é um aminoácido com dois carbonos, um grupo amina e um grupo sulfonato (-SO3

-) resultando do catabolismo da cisteína.

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aminoácidos se misturem com os aminoácidos das proteínas da dieta, a sua origem é endógena e a massa proteica sintetizada no epitélio ou que faz parte das secreções do tubo digestivo é uma parte do processo de turnover das proteínas endógenas.

Se admitirmos que, num adulto, entram no pool de aminoácidos livres do organismo cerca de 400 g/dia (100 g da dieta e 300 g da hidrólise das proteínas endógenas), é de esperar que a mesma massa de aminoácidos saia deste pool, quer através de processos catabólicos (100 g/dia), quer através da sua utilização na síntese das proteínas endógenas (300 g/dia)2.

Quer a síntese quer a hidrólise de proteínas implicam gasto de ATP e cerca de 30% da despesa energética basal corresponde ao processo cíclico de turnover proteico. A renovação proteica permite a substituição das moléculas proteicas que sofreram danos estruturais como oxidações (por radicais livres) e desnaturação espontânea, assim como “abortar” moléculas proteicas com erros que ocorreram na síntese ou no processamento pós tradução.

3 A taxa de renovação das diferentes proteínas endógenas e o seu contributo para o

turnover proteico global A percentagem de moléculas de uma determinada proteína que sofre hidrólise e síntese num dado

intervalo de tempo depende principalmente da proteína em análise sendo muito baixa no caso do colagénio (cerca de 0,2% de renovação diária), relativamente modesta no caso da hemoglobina (1% dia-1) e das proteínas miofibrilares dos músculos esqueléticos (2% dia-1), elevada no caso das proteínas das vísceras (7-15% dia-1) e elevadíssima no caso de enzimas reguladas por transcrição/tradução e fatores de transcrição (renovação total em horas).

As vísceras (tubo digestivo, fígado e pulmões) representam uma pequena fração da massa de um indivíduo, mas a taxa de renovação das suas proteínas é elevada (7-15% dia-1) sendo responsáveis por cerca de metade da taxa de renovação proteica global [1]. No caso do fígado o seu grande contributo para a taxa global de turnover proteico é explicado pela sua riqueza em enzimas reguladas por transcrição/tradução e em fatores de transcrição, assim como pelo seu contributo para a síntese de proteínas plasmáticas (a albumina, por exemplo) que têm taxas de renovação elevadas. Já foi referido que cerca de 20% do turnover global (≈40 % do turnover das proteínas das vísceras) corresponde às proteínas do epitélio do tubo digestivo e das secreções digestivas.

Apesar da sua modesta taxa de renovação (2% dia-1), porque as proteínas dos músculos constituem cerca de metade da massa total de proteínas do organismo, a sua taxa de renovação é responsável por cerca de 1/3 da taxa global. O colagénio representa, por si só, cerca de ¼ da massa total de proteínas endógenas, mas a sua baixíssima taxa de renovação (0,2 % dia-1) explica a sua modestíssima contribuição para a taxa de renovação proteica global.

4 A variação positiva ou negativa da quantidade de proteínas endógenas depende da

relação entre as velocidades de síntese nos ribossomas e de hidrólise por protéases A compreensão do metabolismo das proteínas fica facilitado se considerarmos que a síntese de

proteínas é um processo independente da sua degradação. Enquanto a síntese proteica ocorre nos ribossomas, a proteólise envolve variados sistemas de que é relevante destacar o sistema ubiquitina-proteossoma e os lisossomas. A hidrólise das proteínas é catalisada por enzimas designadas por protéases e a dos polipeptídeos formados por peptídases acabando na libertação dos aminoácidos constituintes.

O incremento ou a diminuição da massa de uma proteína ou do conjunto das proteínas num órgão ou no organismo como um todo dependente da relação entre a velocidade da sua síntese e a velocidade da sua hidrólise. Só existe incremento da massa proteica endógena quando a velocidade de síntese excede a de degradação; a sua diminuição ocorre, obviamente, na condição inversa.

2 Na realidade, para admitirmos que a massa de proteínas endógenas é estacionária temos de considerar que a massa de proteínas sintetizada diariamente excede em cerca de 2 g a massa que sofre hidrólise porque algumas proteínas se perdem para o meio exterior como proteínas inteiras. Estas perdas correspondem às proteínas da pele que descama, dos pelos e das unhas que crescem, às proteínas do fluxo menstrual ou da ejaculação, etc. Estas perdas são muitas vezes designadas de “insensíveis” e são cerca de 2g/dia.

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5 Síntese de proteínas Não se pretende neste texto descrever os processos de transcrição dos genes nem a síntese proteica.

No entanto algumas notas soltas sobre os processos de regulação da síntese proteica são importantes para a compreensão do metabolismo global dos aminoácidos e das proteínas.

Os genes contêm regiões, frequentemente designadas de “elementos do DNA”, que podem ligar-se de forma específica a determinadas proteínas (designadas por fatores de transcrição) afetando a velocidade de transcrição desses genes, ou seja, a síntese do RNA correspondente. A quantidade de um dado RNA mensageiro numa determinada célula afeta a velocidade da tradução, ou seja, a velocidade de síntese da proteína que lhe corresponde. Para além da velocidade da sua transcrição, a estabilidade do RNA mensageiro (via ligação a proteínas ou a microRNAs específicos) também afeta a sua quantidade nas células e estão descritos mecanismos inibidores da hidrólise relativamente a alguns RNA mensageiros.

Para além desta regulação específica, a síntese proteica das diferentes proteínas numa célula ou num órgão também é regulada por mecanismos que envolvem a ativação da iniciação da tradução.

O aumento da concentração de insulina no plasma, o aumento da concentração de aminoácidos nas células (nomeadamente do aminoácido leucina) e o aumento do aporte energético estimulam a síntese proteica através de mecanismos que envolvem a estimulação da iniciação da tradução. Uma via de sinalização implica a estimulação de uma cínase designada de mTORC1 (mammalian target of rapamycin complex 1) que catalisa a fosforilação de duas proteínas envolvidas na iniciação da tradução: a S6K1 (cínase da proteína ribossomal S6) e a 4E-BP (proteína de ligação ao fator de iniciação 4E). A fosforilação destas proteínas facilita a iniciação da tradução de proteínas nos ribossomas e ajuda a explicar o aumento da síntese proteica que ocorre nos músculos e no fígado no período pós-prandial, assim como a sua diminuição durante o jejum [3]. A concentração plasmática de insulina e as concentrações plasmática e intracelular de aminoácidos livres aumentam após as refeições e o aumento da síntese proteica que tem lugar nesta condição metabólica envolve a estimulação do mTORC1 e a estimulação da tradução nos ribossomas.

Uma outra via de sinalização que ajuda a compreender a diminuição da síntese proteica quando há diminuição da concentração de aminoácidos nas células envolve uma outra cínase designada por GCN2 (general control nondepressible kinase 2). Por ação catalítica de múltiplas sintétases de aminoacil-tRNA (Equação 1) os aminoácidos livres ligam-se (ligação éster) aos respetivos tRNA e são os aminoacil-tRNAs formados que são substratos do sistema ribossomal de síntese proteica. Quando há escassez de um determinado aminoácido livre acumula-se o tRNA não carregado com aminoácido correspondente a esse aminoácido.

Equação 1 aminoácido X + tRNA X + ATP → aminoacil-tRNA + AMP + PPi

A atividade da GCN2 é estimulada quando, em consequência da escassez de aminoácidos numa

célula, há aumento da concentração de tRNAs não carregados com aminoácidos. A GCN2 catalisa a fosforilação do fator de iniciação da tradução 2 (eIF2) e, quando este fator de iniciação está no estado fosforilado a tradução dos RNA mensageiros fica prejudicada. Quando, na condição contrária, não há escassez de aminoácidos também não há aumento da concentração de tRNAs não carregados com aminoácido e isto faz com que o GCN2 fique menos ativo, o fator eIF2 se mantenha no estado desfosforilado e haja estimulação da tradução de RNA mensageiros [3]. O sistema GCN2-eIF2 de regulação da síntese proteico tem um efeito homeostático na concentração de aminoácidos livres porque inibe o seu consumo na síntese proteica quando os aminoácidos livres escasseiam na célula e tem o efeito contrário quando as suas concentrações estão aumentadas. 6 A hidrólise das proteínas endógenas é maioritariamente levada a cabo pelo sistema

ubiquitina-proteossoma Muitas proteínas citoplasmáticas e do retículo endoplasmático sofrem hidrólise através de um sistema

localizado no citoplasma (e no núcleo) das células que se designa por sistema da ubiquitina-proteossoma. Em termos quantitativos é o sistema mais importante na degradação das proteínas endógenas. São alvos preferenciais deste sistema as proteínas que têm alterações estruturais (quer quando ocorreram por erros no processo de tradução ou no processamento pós-tradução, quer quando sofrem oxidações por radicais livres, desnaturação ou outros danos pós síntese), as que têm taxas de renovação elevada (caso das enzimas reguladas por transcrição/tradução e os fatores de transcrição, por exemplo), mas também algumas proteínas com taxas

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de renovação relativamente baixas como as proteínas das miofibrilas musculares. As proteínas que vão ser degradadas por este sistema são primeiramente conjugadas com uma molécula proteica designada por ubiquitina. Este processo envolve um sistema enzimático em que se consome ATP e, em vários ciclos de “ubiquitinação”, forma-se uma cadeia de moléculas de ubiquitina ligadas à proteína alvo.

O processo de ubiquitinação envolve a ação sequenciada de três enzimas designadas de E1 (enzima ativadora da ubiquitina), E2 (enzima de conjugação da ubiquitina) e E3 (lígase da ubiquitina). A enzima E1 catalisa a reação descrita pela Equação 2. Nesta reação forma-se uma ligação tioéster entre o grupo carboxilo terminal da ubiquitina e o grupo tiol de uma cisteína que está presente no centro ativo de E1. Este processo é endergónico e só pode ocorrer via acoplamento com a hidrólise de ATP. O segundo passo é a transferência da ubiquitina para um outro resíduo de cisteína presente em E2 (ver Equação 3) e o terceiro a transferência da ubiquitina para a proteína que vai ser degradada (ver Equação 4). Este último passo é catalisado por E3 de que existem múltiplas isoformas o que explica a possibilidade de interação a uma enorme variedade de proteínas alvo. A ligação formada entre a proteína alvo e a ubiquitina é uma ligação amida que envolve o grupo amina da cadeia lateral de um resíduo de lisina presente na proteína alvo e o grupo carboxilo terminal da ubiquitina. (Porque o grupo amina envolvido na ligação não é o grupo α-amina, a ligação entre a ubiquitina e a proteína alvo não se designa de peptídica; frequentemente usa-se a expressão “ligação pseudopeptídica” (ou isopeptídica) para designar este tipo de ligações.)

Equação 2 ubiquitina + E1-SH + ATP → E1-ubiquitina + AMP + PPi Equação 3 E1-ubiquitina + E2-SH → E2-ubiquitina + E1 Equação 4 E2-ubiquitina + proteína alvo → ubiquitina-proteína alvo + E2

A Equação 5 é o somatório das três equações anteriores e descreve a atividade do sistema enzimático de ubiquitinação na formação de uma ligação “pseudopeptídica” entre a ubiquitina e uma proteína alvo. Equação 5 ubiquitina + proteína alvo + ATP → ubiquitina-proteína alvo + AMP + PPi

A formação da cadeia de moléculas de ubiquitina envolve a repetição dos mesmos passos exceto que

na reação 3 (ver Equação 4) o aceitador da ubiquitina já não é a proteína alvo isolada, mas sim o complexo ubiquitina-proteína alvo formado no 1º ciclo. Num segundo ciclo uma segunda molécula de ubiquitina é transferida de E2 para o grupo amina da cadeia lateral de um resíduo de lisina da ubiquitina adicionada à proteína alvo no primeiro ciclo (ver Equação 6). A adição de pelo menos 4 moléculas de ubiquitina (4 ciclos de ubiquitinação) marca a proteína para ser reconhecida e hidrolisada no proteossoma.

Equação 6 E2-ubiquitina + ubiquitina-proteína alvo → ubiquitina-ubiquitina-proteína alvo + E2

As proteínas poliubiquitinadas vão ser reconhecidas por uma estrutura proteica em forma de barril oco designada por proteossoma (ou proteossoma 26S). O proteossoma contém múltiplas subunidades proteicas e os dois conjuntos de subunidades situadas nas extremidades do proteossoma designam-se de complexos reguladores 19S. Entre os complexos 19S existe o miolo central do barril designado de complexo 20S cujas subunidades têm atividade proteolítica com os centros ativos voltados para o lúmen do “barril”.

Os complexos reguladores (19S) reconhecem as proteínas poliubiquitinadas, catalisam a hidrólise das ligações pseudopeptídicas libertando a proteína alvo das moléculas de ubiquitina, promovem o desenrolamento (unfolding) da proteína alvo (num processo que envolve a hidrólise do ATP) e promovem a sua entrada no interior do “barril”. A ação hidrolítica do complexo 20S leva à formação de polipeptídeos que saem do “barril” para o citoplasma onde vão terminar o processo hidrolítico (e a consequente libertação de aminoácidos) por ação de peptídases.

A regulação do sistema ubiquitina-proteossoma é mal conhecido, mas sabe-se que na aceleração do processo de hidrólise das proteínas musculares que ocorre na caquexia associada ao cancro está envolvido o aumento da síntese de ubiquitina e das subunidades do proteossoma.

7 Sistema lisossómico de hidrólise proteica

Um outro sistema de degradação de proteínas endógenas envolve os lisossomas onde vai ocorrer a hidrólise de uma enorme variedade de biomoléculas (lipídeos, fosfolipídeos, glicogénio, etc.) incluindo proteínas que têm baixas taxas de renovação. Neste sistema podem ser degradadas biomoléculas (incluindo

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proteínas) que vêm do meio extracelular (endocitose) ou do interior das células num processo designado por autofagia.

(i) Os lisossomas são organelos vesiculares em que o pH luminal é ácido (cerca de 5) devido à ação de uma ATPase da sua membrana que bombeia protões contra gradiente do citoplasma para o lúmen. No interior dos lisossomas existe uma enorme variedade de enzimas hidrolíticas com pH ótimo ácido que são capazes de degradar as biomoléculas que estejam presentes no lúmen. As hidrólases que, nos lisossomas, atuam nas proteínas designam-se de catepsinas e os aminoácidos libertados acabam por sair para o citoplasma das células.

(ii) Via endocitose componentes do meio extracelular que entram em contacto com a membrana celular formam o conteúdo de vesículas intracelulares designadas de endossomas. Estes endossomas podem diferenciar-se em lisossomas ou fundir-se com lisossomas ocorrendo então a hidrólise das biomoléculas que foram endocitadas.

(iii) A autofagia é um mecanismo em que componentes intracelulares (incluindo porções do citoplasma e organelos danificados) acabam incluídos em vesículas que têm duas membranas (uma interna e outra externa) e se designam por autofagossomas. Os autofagossomas acabam fundindo a sua membrana externa com a membrana de lisossomas formando vesiculas (autolisossomas) onde ocorre a digestão do conteúdo dos autofagossomas (membrana interna incluída).

Por ação das catepsinas ocorre a hidrólise de proteínas endógenas que sofreram algum tipo de alteração ou as que fazem parte de organelos danificados permitindo a eliminação dos componentes danificados e a reutilização dos aminoácidos.

A autofagia é estimulada quando há diminuição da concentração de aminoácidos dentro das células ou baixo aporte energético. A via de sinalização mTORC1 está envolvida neste processo catalisando a fosforilação de proteínas (nomeadamente a ULK1; da expressão inglesa Unc-51 like autophagy activating

kinase) que, no estado desfosforilado, têm um papel importante nas fases mais precoces de formação dos autofagossomas: a ativação do mTORC1 provoca inibição da autofagia [3].

Assim, a par do seu papel na estimulação da síntese proteica, os aminoácidos (nomeadamente a leucina) e o aporte energético inibem a degradação autofágica das proteínas endógenas favorecendo a acumulação líquida de proteínas e a condição inversa tem o efeito contrário. A inibição da síntese proteica e a estimulação da autofagia quando os aminoácidos livres escasseiam na célula tem um efeito homeostático na concentração de aminoácidos livres.

Tendo em conta o alto consumo de ATP na síntese proteica, também o facto de a escassez de nutrientes numa célula inibir a síntese proteica pode ser entendido como um efeito homeostático.

8 Hidrólise proteica no exterior das células

As proteínas da matriz extracelular como, por exemplo, o colagénio e a elastina, são hidrolisadas por protéases que se designam genericamente por metaloprotéases3 da matriz. Algumas são segregadas pelos fibroblastos, mas outras são ectohidrólases que estão presentes na membrana celular destas células.

As proteínas segregadas para o lúmen do tubo digestivo ou que resultam da descamação do epitélio são, juntamente com as proteínas da dieta, hidrolisadas pelas protéases e peptídases digestivas. 9 Definição de “perda obrigatória de aminoácidos” e o aumento das perdas quando se

ingerem proteínas A importância da ingestão de proteínas na grávida, numa criança ou num adolescente que está a

crescer ou num adulto que, por qualquer motivo, perdeu massa muscular e que está a recuperar dessa perda é fácil de entender. Para a síntese das novas moléculas proteicas são necessários aminoácidos que resultam da hidrólise das proteínas da dieta. No entanto, se admitirmos a situação mais habitual no adulto em que a massa proteica global é estável poderia pensar-se que o aporte de aminoácidos seria dispensável. Afinal, os aminoácidos que resultam da degradação das proteínas endógenas poderiam ser usados para a re-síntese dessas mesmas proteínas sem haver necessidade de aporte aminoacídico exógeno. Contudo, não é isto que acontece.

De facto, a esmagadora maioria das moléculas dos aminoácidos libertados durante a hidrólise das proteínas endógenas (≈300 g dia-1) é reutilizada na síntese de novas moléculas proteicas. No entanto, uma parte não é reutilizada porque uma parte dessas moléculas sofre transformações irreversíveis ficando 3 O termo “metaloprotéases” tem origem no facto de terem metais (como o zinco ou o cobalto) como cofatores essenciais.

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excluídas do ciclo de reutilização. Entre estas transformações irreversíveis tem especial relevância quantitativa (i) a oxidação a CO2 (que se acompanha da perda dos grupos azotados), mas também incluem a conversão em derivados aminoacídicos com grande importância biológica. Exemplos de formação destes derivados são (ii) a conversão de aminoácidos em creatina e (iii) em neurotransmissores (histamina, serotonina, dopamina, noradrenalina, NO, etc.), (iv) hormonas de baixa massa molecular (adrenalina, melatonina, tiroxina), assim como (vi) a contribuição dos aminoácidos para a síntese de nucleotídeos púricos e pirimídicos e do heme. Estas transformações irreversíveis ocorrem mesmo quando a ingestão de proteínas é nula e tem como consequência que uma parte dos aminoácidos que resultam da hidrólise das proteínas endógenas se perca para o ciclo de reutilização.

(i) O organismo perde azoto para o exterior sobretudo na urina, mas também nas fezes e através da

pele, genitais e secreções nasais. Numa condição experimental em que a dieta é adequada incluindo no que se refere ao aporte energético, mas em que a ingestão proteica é nula, esta perda é a mínima possível e o seu valor num adulto saudável é de cerca de 4 g dia-1. Este valor corresponde à massa de azoto contido em cerca de 25 g de proteínas (ver à frente) e designa-se por perda obrigatória de aminoácidos4.

A perda obrigatória de aminoácidos é, em grande parte, uma consequência da presença, nas células, de enzimas que têm como substratos aminoácidos e que catalisam transformações catabólicas irreversíveis incluindo desaminações e oxidações. O azoto dos aminoácidos que sofrem catabolismo é

maioritariamente transformado em ureia [1C,2N] (que se perde na urina) enquanto o seu esqueleto

carbonado (a parte desprovida de azoto) pode ser oxidado a CO2, em última análise contribuindo para a

síntese de ATP. O azoto das proteínas não se perde apenas na forma de ureia. A urina contém outros compostos azotados que, em última análise, também provêm do metabolismo dos aminoácidos; dentre estes é de destacar a creatinina (catabolito da creatina), o ácido úrico (catabolito das bases púricas), o ião amónio (NH4

+) e, embora em quantidades muito mais pequenas, aminoácidos (modificados ou não) e catabolitos de hormonas e neurotransmissores que tiveram aminoácidos na sua génese. Também se perdem aminoácidos endógenos nas fezes pois uma parte das proteínas do epitélio intestinal que descama, das mucinas segregadas (glicoproteínas do muco) ou mesmo parte das enzimas digestivas não são completamente digeridas (ou são digeridas pelas bactérias presentes no lúmen do cólon e os produtos usados na síntese proteica bacteriana).

O facto de, em média, 16% da massa das proteínas ser azoto permite estabelecer uma relação entre a massa de azoto perdida nas excreções e a massa de proteínas que essa massa de azoto representa. Assim, para converter a massa do azoto excretado em equivalentes de massa de proteínas multiplica-se a massa do azoto excretado por 6,25 (100/16 = 6,25). Tal como acontece na maioria das situações, em condições de ingestão proteica nula, mas equilibrada sob todos os outros aspetos, a maioria do azoto sai do organismo na urina. Nestas condições, cerca de 70% do azoto correspondente às perdas obrigatórias de aminoácidos perde-se na urina (50% na forma de ureia e 20% na forma de creatinina, amónio e outros compostos) e cerca de 20% nas fezes; os restantes 10% correspondem às perdas de proteínas inteiras na pele que descama, nas unhas e cabelos que crescem, nas secreções nasais, no fluxo menstrual ou na ejaculação e na ureia que está presente no suor. A percentagem de azoto perdida na forma de ureia (na urina) é muito maior quando a ingestão proteica aumenta podendo ser cerca de 80%, ou mesmo 90% do total.

(ii) Poderia pensar-se que, para repor as perdas obrigatórias de 25 g de aminoácidos dia-1, bastaria

ingerir uma quantidade equivalente de proteínas, mas não é isso que acontece. A absorção de aminoácidos no intestino, leva a um aumento transitório da sua concentração no

plasma5 [4] e nas células e a um aumento da velocidade do seu catabolismo: uma parte substancial dos 4 A perda obrigatória de aminoácidos (obligatory aminoacids losses) pode, na prática, ser determinada avaliando as perdas de azoto do organismo num indivíduo que tem uma dieta equilibrada sob todos os pontos de vista exceto um: não ingere proteínas. A ureia difunde do sangue para o lúmen intestinal e, no lúmen do cólon, por ação das bactérias é convertida em amónio; este amónio é reabsorvido e, no fígado, vai ser novamente reconvertido em ureia. Este processo constitui um ciclo entero-hepático ureia-amónio e retarda a excreção da ureia sintetizada a partir do catabolismo dos aminoácidos. Por isso, é necessário esperar vários dias antes de se tornar patente que a exclusão das proteínas da dieta diminui a excreção de ureia. 5 A concentração plasmática dos aminoácidos entendidos como um todo aumenta a seguir a uma refeição que contenha proteínas. No entanto, à semelhança do que acontece no caso da glicemia, os processos homeostáticos fazem com que o incremento de concentração de aminoácidos no plasma e líquido extracelular seja muito mais discreto que o que seria de prever tendo em conta a massa de proteínas ingerida. De acordo com um estudo de Morens e col. (2003), a ingestão de 900 mL de leite (28 g de proteínas) provocou, 3 h após a refeição, um pico máximo de concentração de aminoácidos que era apenas 24 % maior que a concentração basal; passou de 2,1 mM para 2,6 mM. Se considerarmos um indivíduo adulto normal com 10 L de líquido extracelular (plasma incluído), isso corresponde a um incremento da massa de aminoácidos livres no líquido extracelular de apenas 0,6 g (de 2,7 g para 3,3 g) o que corresponde a cerca de 2% dos 28 g ingeridos.

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aminoácidos ingeridos fica sujeita à ação das enzimas catabólicas sofrendo, junto com os libertados na hidrólise das proteínas endógenas, oxidação e desaminação irreversíveis. Parte deste catabolismo ocorre nos enterócitos ainda antes de os aminoácidos entrarem para o sangue no decurso da sua absorção intestinal. Cerca de 60% dos carbonos das moléculas dos aminoácidos glutamina, glutamato e aspartato que estão a entrar nos enterócitos vindos do lúmen são, ainda antes de passarem para o sangue, oxidados a CO2; a percentagem do azoto destes aminoácidos que é convertido em amónio durante o processo é ainda maior porque 20% dos seus carbonos geram lactato [5]. A percentagem de oxidação e desaminação não é tão elevada no caso dos outros aminoácidos mas, em qualquer caso, nem todas as moléculas dos aminoácidos que entram para os enterócitos passam para o sangue. Além disto, uma parte das proteínas ingeridas não chega a ser absorvida e perde-se nas fezes.

Os trabalhos experimentais com seres humanos adultos saudáveis apontam para valores da ordem dos 0,8 g por kg de massa corporal e por dia (≈50 g dia-1 num adulto saudável com cerca de 60 kg) como o mínimo de proteínas a ingerir para repor a perda obrigatória de aminoácidos e a perda que se soma à perda obrigatória quando se ingerem proteínas [6]. 10 Os aminoácidos podem ser nutricionalmente indispensáveis, dispensáveis ou semi-

indispensáveis Poderia pensar-se que cada uma das moléculas de cada um dos aminoácidos que se perde para o ciclo

de reutilização na síntese proteica teria de ser substituída pela ingestão de uma molécula igual mas esta ideia, só parcialmente, é verdadeira.

(i) Alguns dos aminoácidos excluídos do ciclo de reutilização não podem ser sintetizados pelo organismo humano pois não dispomos das enzimas indispensáveis para o processo e nestes casos os aminoácidos dizem-se nutricionalmente indispensáveis (ou essenciais). Para substituir um determinado aminoácido nutricionalmente indispensável que sofreu catabolismo é necessário ingerir esse aminoácido. Ou seja, no caso dos aminoácidos nutricionalmente indispensáveis, cada molécula perdida tem de ser substituída por uma igual.

Oito (valina [5C,1N], leucina [5C,1N], isoleucina [5C,1N], treonina [4C,1N,1OH], metionina [5C,1N,1S], lisina [6C,2N], fenilalanina [9C,1N], triptofano [11C,2N]) dos 20 aminoácidos 6 que são incorporados nas proteínas aquando da sua síntese são, classicamente, classificados como nutricionalmente

indispensáveis. No caso da histidina também não existem, nos mamíferos, vias metabólicas de síntese, mas a exclusão deste aminoácido na dieta só provoca sintomas de défice (surge anemia) após um mês [7]. É possível que na origem desta resistência esteja a capacidade de se formar histidina a partir de carnosina, um dipeptídeo (β-alanil-histidina) abundante no tecido muscular (ação catalítica da carnosínase; ver Equação 7). Embora alguns livros de texto classifiquem a histidina num grupo à parte, de acordo com Kopple e Swendseid [7], a histidina é um aminoácido nutricionalmente indispensável.

Equação 7 carnosina + H2O → alanina β + histidina

(ii) Alguns dos aminoácidos excluídos do ciclo podem ser repostos por síntese endógena a partir de

intermediários do metabolismo da glicose e, nestes casos, os aminoácidos dizem-se nutricionalmente

dispensáveis (ou não essenciais). No entanto, deve notar-se que, embora o esqueleto carbonado provenha da glicose, os grupos azotados provêm de outros aminoácidos que terão de ser ingeridos em quantidade suficiente para colmatar as perdas de azoto. O “esqueleto carbonado” da alanina [3C,1N], por exemplo, provém do piruvato (produto da glicólise), mas o azoto da alanina “tem de vir” doutro aminoácido. Outros aminoácidos nutricionalmente dispensáveis são a serina [3C,1N,1OH], a glicina [2C,1N], o aspartato [4C,1N], a asparagina [4C,2N], o glutamato [5C,1N], a glutamina [5C,2N], a prolina [5C,1N] e a arginina [6C,4N]). Ver Fig. 1.

(iii) Um terceiro grupo de aminoácidos (cisteína [3C,1N,1SH] e tirosina [9C,1N,1OH]) forma-se a partir de aminoácidos indispensáveis (metionina [5C,1N,1S] e fenilalanina [9C,1N], respetivamente) e, eventualmente, poderão classificar-se numa classe à parte com a designação de semi-indispensáveis7 [6].

6 Ou 21, se considerarmos também o caso da selenocisteína. 7 Quem classifica faz um exercício de organização dos conhecimentos da forma que lhe dá mais jeito. Também é frequente chamarem à cisteína e à tirosina “condicionalmente indispensáveis” porque só são indispensáveis se a dieta for pobre em metionina e fenilalanina, respetivamente.

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(iv) Com exceção de um carbono (que provém do CO2), os carbonos que estão presentes na arginina provêm, em última análise, do glutamato e, dado que o esqueleto carbonado do glutamato pode provir da glicose, também os carbonos da arginina podem provir da glicose. Daí a sua inclusão no grupo dos aminoácidos nutricionalmente dispensáveis acima referida. (Dois dos quatro átomos de azoto provêm também do glutamato; um dos outros dois provém do amónio e o outro do aspartato).

Estudos em leitões mostraram que a velocidade de formação líquida de arginina (massa formada subtraída da parte que se converte em ureia, ornitina, creatina e outros derivados) é inadequada para sustentar adequadamente a síntese proteica que está aumentada devido ao crescimento rápido que ocorre nos mamíferos bebés. Embora não existam evidências que o mesmo aconteça nos bebés humanos [8] admite-se que possa ser assim e, por isso, a arginina é, às vezes, classificada como um aminoácido condicionalmente

indispensável [6]. 11 O papel do azoto dos aminoácidos da dieta na síntese dos aminoácidos

nutricionalmente dispensáveis No caso dos aminoácidos sintetizados a partir de intermediários do metabolismo da glicose, embora

o esqueleto carbonado possa ser formado a partir da glicose, os grupos azotados (amina, amida ou guanidina) resultam da transferência direta ou indireta de grupos amina (ou amida) de aminoácidos para esses intermediários. Para que um indivíduo adulto tenha a capacidade de manter constante a massa das suas proteínas precisa de absorver, na forma de aminoácidos, tantos átomos de azoto como os que perde na urina, nas fezes, nos genitais, nas secreções nasais ou na pele. Se a quantidade total de azoto ingerido (na forma de proteínas) não for suficiente para colmatar o azoto excretado o indivíduo fica em balanço azotado negativo, ou seja, perde para o exterior mais átomos de azoto que os que ingeriu. Nestas condições o indivíduo não será capaz de refazer as proteínas endógenas que sofreram hidrólise e perde massa proteica.

Em geral, um défice de aminoácidos nutricionalmente dispensáveis corresponde a uma ingestão quantitativamente inadequada de proteínas: na presença de azoto aminoacídico em quantidade suficiente para formar os grupos azotados o organismo pode sintetizar um aminoácido nutricionalmente dispensável a partir de intermediários do metabolismo glicídico e, nesta síntese, todos os outros aminoácidos são, em última análise, potenciais dadores de azoto.

Como será discutido adiante neste texto, no processo global de transferência dos grupos azotados de um qualquer aminoácido para os percursores que originam os aminoácidos nutricionalmente dispensáveis participam enzimas que, em última análise, vão envolver o glutamato, um aminoácido que tem, nestes processos, um papel crucial. 12 A incorporação de azoto inorgânico na síntese de glutamato e glutamina

Através da ação catalítica de variadas enzimas, os aminoácidos podem libertar o azoto do seu grupo amina (ou de outros grupos azotados) na forma de amónio (NH4

+). O ião amónio é a forma protonada do amoníaco (NH3); o seu pKa é cerca de 9,3, predominando, por isso, a forma protonada, quer no meio interno, quer na urina.

Dentro das células, por ação de desamínases (hidrólases, líases e desidrogénases) que atuam nos aminácidos livres em processo catabólico há uma contínua libertação de amónio (azoto inorgânico). A maioria desse amónio dá origem a ureia que se perde na urina, mas uma parte é recuperado para o metabolismo aminoacídico por ação catalítica (i) da desidrogénase do glutamato (ver Equação 8) e (ii) da sintétase da glutamina (ver Equação 9). Por ação destas enzimas o azoto inorgânico do amónio pode ser convertido em azoto aminoacídico. O glutamato [5C,1N] é um aminoácido dicarboxílico com 5 carbonos e difere do α-cetoglutarato (intermediário do ciclo de Krebs) por ter, em vez do grupo cetónico, um grupo amina no carbono 2. A glutamina [5C,2N] difere do glutamato porque, em vez do grupo carboxílico em C5, tem um grupo amida nesse carbono.

Equação 8 α-cetoglutarato + NH4

+ + NADPH → glutamato + NADP+ + H2O8 Equação 9 glutamato + NH4

+ + ATP → glutamina + ADP + Pi 8 In vitro a desidrogénase do glutamato também pode usar NADH na reação de síntese do glutamato. No entanto a razão de concentrações NAD+/NADH favorece a reação inversa (a desaminação oxidativa do glutamato). Em termos globais, a desidrogénase do glutamato é predominantemente uma enzima que converte glutamato em α-cetoglutarato com libertação de amónio. Numa mutação genética em que a enzima é mais ativa que o normal os doentes têm de facto hiperamonémia. No entanto, também é verdade que a administração de amónio marcado no átomo de azoto a indivíduos sãos leva à formação de moléculas de glutamato marcado. Isto significa que a desidrogénase do

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Como referido, uma parte do amónio utilizado na síntese do glutamato e da glutamina (ver Equação

8 e Equação 9) pode ter origem em aminoácidos que, no seu processo catabólico dentro das células, perderam os seus grupos azotados em reações de desaminação (ou desamidação9), mas também pode, paradoxalmente, ter origem na ureia. Na realidade uma parte da ureia sintetizada endogenamente não passa diretamente para a urina, mas sim para o lúmen do tubo digestivo. No íleo e no colón, por ação das bactérias, uma parte dessa ureia é convertida em amónio que é reabsorvido. A maioria destas moléculas de amónio vão ser captadas no fígado e originar novas moléculas de ureia (ciclo entero-hepático ureia-amónio), mas outras podem, nas células do organismo, ser substrato da desidrogénase do glutamato (ver Equação 8) e, por ação desta enzima, serem “salvas” contribuindo para a síntese de glutamato e, em última análise, via reações de transaminação (ver à frente Equação 12), contribuir para a síntese de todos os aminoácidos não essenciais. A equação soma relativa a este processo sequencial é a Equação 10.

Equação 10 α-cetoácido X + NH4

+ + NADPH → α-aminoácido X + NADP+ + H2O O amónio que é absorvido no tubo digestivo também pode ser “salvo” quando, pela ação da sintétase

da glutamina (ver Equação 9), o glutamato se converte em glutamina. No entanto, o amónio que é “salvo” neste processo tem uma importância menor no contexto de uma discussão sobre a biossíntese de aminoácidos porque não existe nenhuma enzima capaz de catalisar a transferência do grupo amida da glutamina para gerar outros aminoácidos. Para além da incorporação direta na síntese de proteínas, o destino da glutamina que tem maior relevância quantitativa é sofrer a ação da glutamínase (uma hidrólase; ver Equação 11) para voltar a gerar glutamato com a perda do grupo amida que tinha sido incorporado na ação da sintétase da glutamina.

Equação 11 glutamina + H2O → glutamato + NH4

+

É de notar no entanto que, apesar de a síntese de glutamato se poder fazer a partir de amónio e do α-

cetoglutarato (ver Equação 10), o amónio não pode ser usado para substituir o azoto dos aminoácidos da dieta. O amónio não faz parte da dieta humana porque, além de intragável, é um composto que se fosse administrado em doses suficientes para colmatar as necessidades de azoto para a síntese dos aminoácidos nutricionalmente dispensáveis (substituindo os aminoácidos da dieta) provocaria a morte porque é muito tóxico.

Ver Fig 1.

13 As reações de transaminação e a síntese de glutamato Para além de poder ter origem na ação da desidrogénase do glutamato (ver Equação 8), a síntese de

glutamato também tem lugar em reações de transaminação (ver Equação 12) em que diversos aminoácidos cedem o grupo amina (azoto orgânico) ao α-cetoglutarato gerando glutamato e os α-cetoácidos correspondentes. Assim, o glutamato e a glutamina (via sintétase da glutamina; ver Equação 9) podem formar-se endogenamente a partir de um intermediário do ciclo de Krebs (o α-cetoglutarato); sabendo-se que os intermediários do ciclo de Krebs se podem formar a partir da glicose (via glicólise e carboxílase do piruvato) percebe-se que o glutamato e a glutamina são aminoácidos nutricionalmente dispensáveis. Ver Fig 1.

Equação 12 α-aminoácido X + α-cetoglutarato ↔ glutamato + α-cetoácido X

As reações de transaminação são de facto reações redox. O carbono 2 do α-cetoglutarato e todos os

outros α-cetoácidos tem número de oxidação +2 enquanto nos aminoácidos correspondentes o número de oxidação do carbono 2 é 0. Quando um aminoácido X é oxidado ao respetivo α-cetoácido X, o oxidante é o α-cetoglutarato que, obviamente se reduz a glutamato. No sentido inverso é o glutamato que funciona como redutor do α-cetoácido X: consistentemente, o α-cetoácido X reduz-se ao respetivo α-aminoácido X enquanto

glutamato pode catalisar a reação de incorporação de amónio no α-cetoglutarato. A razão de concentrações NADPH/NADP+ permite compreender que a reação possa evoluir no sentido da síntese de glutamato quando o redutor é o NADPH [Treberg, J. R., Banh, S., Pandey, U. & Weihrauch, D. (2013) Intertissue Differences for the Role of Glutamate Dehydrogenase in Metabolism, Neurochem Res.] 9 A expressão “desaminação” usa-se frequentemente num sentido abrangente incluindo a perda dos grupos amina e dos grupos amida. O termo “desamidação” refere-se especificamente às reações em que ocorre a hidrólise do grupo amida da glutamina ou da asparagina.

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o glutamato se oxida a α-cetoglutarato. A pertinência de se ter em conta o carater “redox” das reações de transaminação ficará evidente quando à frente analisarmos os processos de transdesaminação.

14 O papel do glutamato e das transamínases na síntese dos aminoácidos

nutricionalmente dispensáveis Quando, em reações de desaminação (ou de desamidação), um dado aminoácido perde o seu azoto

na forma de amónio, este amónio pode ser incorporado no α-cetoglutarato para formar glutamato (ver Equação 8). Quando a perda do grupo amina envolve uma reação de transaminação o aceitador é também o α-cetoglutarato e também se forma glutamato (ver Equação 12). Alguns aminoácidos perdem o grupos α-amina para o α-cetoglutarato na primeira reação da sua via catabólica que é uma reação de transaminação; é o caso da alanina (Equação 13; catalisada pela transamínase da alanina), da serina (Equação 14; transamínase da serina), do aspartato (Equação 15; transamínase do aspartato), da tirosina (Equação 16; transamínase da tirosina) e dos aminoácidos ramificados (Equação 17, Equação 18 e Equação 19; transamínase dos aminoácidos ramificados). Nestas reações formam-se os α-cetoácidos correspondentes (“o esqueleto carbonado” dos aminoácidos que podem, em seguida, ser oxidados a CO2) enquanto o grupo amina fica incorporado no glutamato, constituindo o seu grupo α-amina. Nas reações de transaminação em questão um α-aminoácido X oxida-se ao α-cetoácido X correspondente sendo o agente oxidante o α-cetoglutarato que se reduz a glutamato.

Equação 13 alanina + α-cetoglutarato ↔ glutamato + piruvato Equação 14 serina + α-cetoglutarato → glutamato + 3-hidroxipiruvato Equação 15 aspartato + α-cetoglutarato ↔ glutamato + oxalacetato Equação 16 tirosina + α-cetoglutarato → glutamato + p-hidroxifenilalanina Equação 17 valina + α-cetoglutarato → glutamato + α-cetoisovalerato Equação 18 leucina + α-cetoglutarato → glutamato + α-cetoisocaproato Equação 19 isoleucina + α-cetoglutarato → glutamato + α-ceto-β-metil-valerato

Na síntese dos aminoácidos nutricionalmente dispensáveis (não essenciais) o glutamato vai ter um

papel relevante como dador de grupos amina a intermediários do metabolismo que levam à síntese de aminoácidos. O glutamato é dador do grupo amina na síntese da alanina a partir de piruvato (ver Equação 13), na síntese de aspartato (e de asparagina) a partir do oxalacetato (ver Equação 15) e na síntese de serina (e dos aminoácidos a que esta pode dar origem) a partir de 3-fosfoglicerato. Na via metabólica de síntese da serina a partir de 3-fosfoglicerato há uma reação de transaminação que forma o primeiro intermediário aminado da via em questão (Equação 20). Nas reações de transaminação em questão um α-cetoácido X reduz-se ao α-aminoácido X sendo o agente redutor o glutamato que se oxida a α-cetoglutarato.

Equação 20 3-fosfohidroxipiruvato + glutamato → α-cetoglutarato + 3-fosfoserina

Além disso o glutamato é o precursor na síntese de prolina e arginina. Ver Fig 1

15 Na síntese de alguns aminoácidos quer o esqueleto carbonado quer o grupo amina têm

origem noutros aminoácidos. Os processos em que um aminoácido1 dá origem a outro (aminoácido2) podem, frequentemente, ser

entendidos como anfibólicos. O carater anabólico do processo fica evidenciado quando pensamos que o aminoácido2 pode, ligando-se ao tRNA correspondente (ver Equação 1), participar na síntese proteica. No entanto é frequente que essa conversão seja parte integrante da via catabólica do aminoácido1. O carater anfibólico destas conversões é particularmente evidente nas conversões fenilalanina → tirosina, serina → glicina e vice-versa, assim como na via metabólica que leva à conversão da metionina em cisteína. Ver Figuras 1-4.

(i) A fenilalanina [9C,1N] contém um anel benzénico e a tirosina [9C,1N,1OH] deriva da

fenilalanina por hidroxilação desse anel benzénico, via ação da hidroxílase da fenilalanina. Como já referido, é frequente classificar-se a tirosina como semi-indispensável porque é sintetizada a partir da

fenilalanina, um aminoácido nutricionalmente indispensável. Uma deficiência nutricional de tirosina pode

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ser colmatada desde que ocorra a ingestão de fenilalanina em quantidade adequada para satisfazer as necessidades dos dois aminoácidos. A reação de formação da tirosina é catalisada pela hidroxílase da fenilalanina, uma oxigénase de função mista em que O2 funciona como oxidante e a tetrahidrobiopterina como co-redutor (ver Equação 21). A dihidrobiopterina formada na ação catalítica da hidroxílase da fenilalanina é reduzida a tetrahidrobiopterina pelo NADPH numa reação catalisada por uma redútase (ver Equação 22). Como será referido no Capítulo 18, a reação catalisada pela hidroxílase da fenilalanina é a primeira reação da via catabólica específica da fenilalanina. Equação 21 fenilalanina + tetrahidrobiopterina + O2 → tirosina + dihidrobiopterina + H2O Equação 22 dihidrobiopterina + NADPH → tetrahidrobiopterina + NADP+

(ii) Um outro exemplo de um aminoácido em que quer o esqueleto carbonado, quer o grupo amina podem provir de outro aminoácido é a glicina. Entre as vias metabólicas de síntese de glicina a que predomina no organismo é a tem como precursor a serina e é muito simples: consiste numa única reação que é catalisada pela hidroxi-metil-transférase da serina (ver Equação 23). Porque a reação é fisiologicamente reversível, a serina também se pode formar a partir da glicina; neste caso dois dos três carbonos da serina [3C,1N] provêm da glicina [2C,1N] e o terceiro da unidade carbonada (grupo metileno) do N5,N10-metileno-H4-folato. Equação 23 serina + H4-folato ↔ glicina + N5,N10-metileno-H4-folato + H2O

As conversões de serina em glicina e de glicina em serina permitem formar moléculas de um dos aminoácidos a partir de moléculas do outro mas, dependendo da via catabólica que está operante numa dada célula ou órgão, ambas as conversões também podem ser consideradas os primeiros passos do catabolismo de ambos os aminoácidos. Como será melhor compreendido aquando do estudo do Capítulo 18, a conversão serina → glicina pode ser considerada um passo no catabolismo da serina pois a glicina pode ser completamente oxidada a CO2 por ação catalítica da enzima de clivagem da glicina (ver abaixo a Equação 39), mas existe uma outra via catabólica da serina que leva à sua conversão no 2-fosfoglicerato, um intermediário da glicólise.

(iii) É de notar que, com as exceções da lisina e da leucina, os aminoácidos geram no seu catabolismo intermediários da glicólise e/ou do ciclo de Krebs. Isto explica que, de facto, os carbonos de um

determinado aminoácido nutricionalmente dispensável possam ter origem última noutros aminoácidos. Podemos, para clarificar melhor esta ideia, usar o caso da isoleucina como eventual precursor dos carbonos do glutamato. Numa via metabólica complexa a isoleucina acaba por gerar succinil-CoA e acetil-CoA (ou melhor dito, os carbonos da isoleucina originam os resíduos de succinato e de acetato do succinil-CoA e do acetil-CoA). O succinil-CoA é um intermediário do ciclo de Krebs que, numa sequência de conversões (succinil-CoA → succinato → fumarato → malato → oxalacetato → citrato → isocitrato → α-cetoglutarato) incluindo a incorporação do resíduo acetilo da acetil-CoA no oxalacetato (ver Equação 24; síntase do citrato), origina α-cetoglutarato que contém o “esqueleto carbonado” do glutamato. Como já referido o α-cetoglutarato pode, por ação de transamínases (ver Equação 12), aceitar grupos amina de aminoácidos originando glutamato. Ver Fig. 4.

Equação 24 oxalacetato + acetil-CoA → citrato + CoA 16 Na síntese da cisteína o átomo de enxofre tem obrigatoriamente origem na metionina e

o esqueleto carbonado na serina O átomo de enxofre da cisteína [3C,1N,1S] tem origem na metionina [5C,1N,1S], um aminoácido

indispensável. Tal como no caso da tirosina, também a cisteína pode ser classificada como semi-

indispensável: as necessidades nutricionais de cisteína podem ser colmatadas desde que ocorra a ingestão de metionina em quantidade adequada para satisfazer as necessidades dos dois aminoácidos. Os carbonos da

cisteína têm origem na serina. O processo de síntese da cisteína é complexo porque se relaciona com a complexa via metabólica da degradação da metionina (ver Equações 25-30 e Figuras 1, 2 e 4). Durante o catabolismo da metionina forma-se um intermediário (homocisteína [4C,1N,1S]) que contém ainda 4

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carbonos que eram da metionina mas que, em vez do grupo metilo ligado ao carbono 4 por uma ligação sulfureto, contém um grupo tiol.

O intermediário homocisteína reage com a serina formando-se um composto (cistationina) que contém o átomo de enxofre entre os carbonos que derivaram da homocisteína e os que derivaram da serina (ver Equação 28). A clivagem da cistationina (ver Equação 29) origina cisteína (3 carbonos e azoto derivados da serina e o enxofre da homocisteína) assim como NH4

+ e α-cetobutirato (4 carbonos derivados da homocisteína).

Às vezes usa-se a expressão “via de transmetilação da metionina” para designar os passos reativos que levam à formação da homocisteína (Equações 25-27) e a expressão “via de trans-sulfuração” para designar os restantes passos da via metabólica (Equações 28-30). O termo transmetilação enfatiza a ideia de que, nessa via, a metionina perde o grupo metilo para diversos aceitadores de metilo (como, por exemplo, a noradrenalina, a fosfatidiletanolamina e o guanidoacetato). O termo “trans-sulfuração” enfatiza o facto de, nesta via, o enxofre da metionina ser cedido à serina para gerar cisteína. Equação 25 ATP + metionina → S-adenosil-metionina + Pi + PPi Equação 26 S-adenosil-metionina + aceitador → S-adenosil-homocisteína + aceitador metilado Equação 27 S-adenosil-homocisteína + H2O → homocisteína + adenosina Equação 28 homocisteína + serina → cistationina Equação 29 cistationina → cisteína + NH4

+ + α-cetobutirato

Equação 30 α-cetobutirato + NAD+ + CoA → propionil-CoA + NADH + CO2

O α-cetobutirato contém os quatro carbonos que eram da homocisteína e, numa reação semelhante à que é catalisada pela desidrogénase do piruvato, origina propionil-CoA (ver Equação 30). O propionil-CoA, via metil-malonil-CoA, leva à formação de succinil-CoA que é um intermediário do ciclo de Krebs (ver Equações 31-33).

Equação 31 propionil-CoA + CO2 + ATP → D-metil-malonil-CoA + ADP + Pi Equação 32 D-metil-malonil-CoA ↔ L-metil-malonil-CoA Equação 33 L-metil-malonil-CoA ↔ succinil-CoA

17 O destino dos aminoácidos

(i) Já foi extensamente referida a importância dos aminoácidos na síntese proteica quer a que decorre no turnover proteico, quer a que corresponde ao eventual incremento da massa de proteínas endógenas.

(ii) Também já foi referido que, embora quantitativamente menos relevante, uma parte dos

aminoácidos dá origem a derivados que têm enorme importância biológica (ver capítulos 2 e 9). São exemplos de derivados a histamina, o γ-aminobutirato e a creatinina. Os dois primeiros são

neurotransmissores e formam-se, respetivamente, a partir da histidina e do glutamato por descarboxilação do carbono 1. A ação da descarboxílase da histidina é descrita pela Equação 34 e a da descarboxílase do glutamato pela Equação 35. (A creatinina é um produto de excreção e a sua síntese envolve uma sequência reativa complexa.)

Equação 34 histidina → histamina + CO2 Equação 35 glutamato → γ-aminobutirato + CO2

Nalguns casos é relativamente fácil estimar a velocidade com que os aminoácidos (e/ou as proteínas)

originam determinados derivados. A creatinina [4C,3N] é um dos compostos mais abundantes na urina e é o produto do catabolismo da

creatina [4C,3N], uma molécula envolvida no metabolismo energético que decorre nos músculos. A quantidade de creatinina que é excretada diariamente aumenta com a massa muscular porque, quando maior é esta massa, maior a quantidade de creatina presente nos músculos e maior a quantidade que se converte em creatinina. Porque, na ausência de variação da massa muscular, a velocidade de síntese de creatina é igual à velocidade da sua conversão em creatinina e igual à velocidade com que este último composto é eliminado na urina, a medição da quantidade de creatinina eliminada num dado período de tempo pode servir para estimar a massa de aminoácidos (ou proteínas) que deu origem a creatina no mesmo período. Se a massa de

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azoto contido nas moléculas de creatinina que são eliminadas num dia for de 0,5 g (um valor expetável num adulto de 70 kg) é possível estimar que este valor corresponde a uma massa proteica de 3 g (0,5 g dia-1 × 6,25 = 3,1 g dia-1). Um raciocínio semelhante pode ser feito no caso dos nucleotídeos púricos e ao ácido úrico [5C,4N] que é o seu produto de excreção. A excreção diária de azoto incorporado em moléculas de ácido úrico ronda 0,25 g dia-1 o que corresponde a cerca de 1,5 g de proteínas. A apresentação destes valores (3 g + 1,5 g = 4,5 g de proteína) tem como objetivo enfatizar a ideia de que, comparativamente à massa de aminoácidos cujo azoto é excretado na forma de ureia (cerca de 13 g de azoto correspondendo à oxidação de 81 g de proteínas) quando a dieta contém 100 g de proteínas e 81% do azoto aminoacídico da dieta se converte em ureia10, a massa de aminoácidos que origina “derivados aminoacídicos” é pequena.

(iii) Também já foi referido que, em condições adequadas para medir a perda obrigatória de

aminoácidos (a condição em que a degradação dos aminoácidos é mínima), um pouco mais de metade dos 25 g de aminoácidos correspondentes a esta perda sofrem oxidação a CO2 ao mesmo tempo que o azoto é eliminado do organismo na forma de ureia e, em menor grau, na forma de NH4

+ (ver capítulo 9). A concentração dos aminoácidos livres no meio interno é estacionária porque, quando essa concentração tende a aumentar por haver hidrólise de proteínas endógenas ou da dieta, aumenta também a velocidade com que decorrem os processos catabólicos desses aminoácidos.

A quantidade de aminoácidos que sofrem oxidação no meio interno aumenta quando se ingerem proteínas aumentando também a excreção de azoto na forma de ureia. Relativamente à condição experimental em que se mede a “perda obrigatória de aminoácidos” a ingestão de proteínas também aumenta a velocidade de oxidação de aminoácidos e a produção de ureia.

Os aminoácidos ao serem oxidados contribuem para a redução do NAD+ e do FAD e

consequentemente para a síntese de ATP. Os aminoácidos da dieta contribuem para o aporte calórico sendo que o valor deste aporte é de cerca de 4 kcal g-1. Porque o processo oxidativo diz respeito aos carbonos dos aminoácidos e à sua conversão em CO2 e a formação de NH4

+ e ureia diz respeito à eliminação dos grupos azotados é costume estudar em separado o destino dos carbonos e dos azotos, mas há que ter sempre presente que os dois processos conceptualmente separáveis decorrem simultaneamente.

Esta separação clássica entre os metabolismos oxidativo dos esqueletos carbonados dos aminoácidos e dos grupos azotados pode eventualmente dificultar a compreensão da forma como a oxidação dos aminoácidos pode contribuir para a síntese de ATP. Quando um aminoácido X transfere o grupo amina numa reação de transaminação (ver Equação 36), o α-cetoglutarato funciona como aceitador convertendo-se em glutamato. Se este glutamato sofrer a ação da desidrogénase do glutamato para além de se libertar amónio (correspondente ao grupo amina originalmente transferido) também ocorre redução do NAD+ a NADH (ver Equação 37). O processo sequenciado em que um dado aminoácido transfere o seu grupo amina por transaminação seguido da ação da desidrogénase do glutamato designa-se por transdesaminação. O somatório das conversões envolvidas no processo de transdesaminação do aminoácido X é descrito pela Equação 38 e descreve, simultaneamente, a perda do seu grupo azotado na forma de amónio e a oxidação do aminoácido X ao correspondente α-cetoácido pelo NAD+. Dado que o NADH pode ser oxidado na cadeia respiratória, contribuindo para a síntese de ATP, compreende-se que quando se diz que um aminoácido perde o seu grupo amina por transaminação está implícita a ideia de que que disso pode resultar a redução do NAD+

e a síntese de ATP.

Equação 36 α-aminoácido X + α-cetoglutarato ↔ α-cetoácido correspondente X + glutamato Equação 37 glutamato + NAD+ → α-cetoglutarato + NADH + NH4

+ Equação 38 α-aminoácido X + NAD+ → α-cetoácido X + NADH + NH4

+

18 Ideias gerais sobre a oxidação do esqueleto carbonado dos aminoácidos a CO2 As vias catabólicas dos diferentes aminoácidos diferem de aminoácido para aminoácido sendo

nalguns casos extremamente complexas. No entanto é possível formular algumas ideias gerais acerca destes processos catabólicos. Ver Figuras 2-4.

10 Excreção de 13 g de azoto ureico dia-1 × 6,25 × 100/81 = 100 g de proteínas que sofrem catabolismo dia-1, considerando que 81% do azoto origina ureia.

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(i) Tal como acontece com os outros macronutrientes também os aminoácidos são oxidados via formação de acetil-CoA que se converte em CO2 no ciclo de Krebs. A única exceção a esta regra é o caso da glicina que também pode ser oxidada pelo NAD+ via ação catalítica do complexo de clivagem da glicina gerando diretamente CO2, NH4

+, N5,N10-metileno-H4-folato e NADH (Equação 39).

Equação 39 glicina + NAD+ + H4-folato → CO2 + NH4+ + NADH + N5,N10-metileno-H4-folato

(ii) As vias catabólicas específicas de cada um dos aminoácidos terminam, na esmagadora maioria

dos casos, na formação de intermediários do ciclo de Krebs ou da glicólise. Dado que estes intermediários não contêm grupos azotados é forçoso concluir que é no decurso dessas vias catabólicas específicas que os aminoácidos perdem os átomos de azoto.

(iii) Nalguns casos a via catabólica específica tem apenas uma reação gerando-se imediatamente o

intermediário não azotado pertinente. Os casos da alanina e do aspartato em que essa reação é uma transaminação (ver Equação 13 e Equação 15) ou o caso do glutamato em que é uma oxidação dependente do NAD+ (Equação 37; ver nota de rodapé nº 8) ilustram esta possibilidade. No caso da alanina o produto não azotado formado é o piruvato, no do aspartato é o oxalacetato e no do glutamato é o α-cetoglutarato.

(É de notar que a conversão do glutamato em α-cetoglutarato também ocorre quando o glutamato funciona como dador de grupos amina em reações de transaminação como acontece na síntese de alanina e de aspartato a partir de piruvato e de oxalacetato, respetivamente; ver capítulo 14).

(iv) A desidrogénase da prolina (Equação 40) é uma das pouquíssimas oxiredútases que interagem

diretamente com um aminoácido. Nesta reação forma-se o semialdeído do glutamato [5C,1N] enquanto o FAD se reduz a FADH2. Tal como acontece ao NADH formado na ação da desidrogénase do glutamato (Equação 37), o FADH2 formado na ação da desidrogénase da prolina acaba sendo oxidado pelo oxigénio na cadeia respiratória mitocondrial.

Equação 40 prolina + FAD → semialdeído do glutamato + FADH2

Para além de poder ter origem na prolina, o semialdeído do glutamato também se forma numa via

catabólica mais complexa que tem origem na arginina. No decurso do catabolismo o destino do semialdeído do glutamato é a conversão em glutamato (numa reação de oxidação) que, por sua vez, origina α-cetoglutarato. Assim, podemos compreender que a formação de α-cetoglutarato é o destino comum do glutamato, da prolina e da arginina. Uma situação semelhante acontece nos casos da histidina e da glutamina em que também se forma glutamato. No caso da glutamina a conversão em glutamato envolve apenas uma enzima, uma hidrólase que se designa por glutamínase e que catalisa a desamidação da glutamina. Nesta reação (ver Equação 11), o grupo amida da glutamina converte-se num grupo carboxílico com perda de NH4

+. Os casos da glutamina, da histidina, da asparagina e da arginina ilustram uma situação relativamente

comum no catabolismo dos aminoácidos a que já fizemos referência nos capítulos 15 e 16: a formação do intermediário não azotado do ciclo de Krebs (neste caso o α-cetoglutarato) ocorre via conversão destes

aminoácidos num outro aminoácido, no caso em análise, o glutamato. (v) Uma outra situação semelhante ao caso da glutamina é o da asparagina que também sofre

desamidação hidrolítica. A asparagina também perde o seu grupo amida por ação da asparagínase (Equação 41) e o aspartato que se forma nesta reação é intermediário no processo da conversão da asparagina em oxalacetato (ver Equação 15).

Equação 41 asparagina + H2O → aspartato + NH4

+ (vi) A fenilalanina converte-se em tirosina por ação da hidroxílase da fenilalanina (ver Equação

21) e a tirosina numa via metabólica complexa acaba por se cindir e dar origem a fumarato (um intermediário do ciclo de Krebs) e a acetoacetato (um corpo cetónico). Como já referido, a fenilalanina é mais um exemplo de um aminoácido que se converte noutro aminoácido (no caso a tirosina) num passo do seu processo catabólico.

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(vii) Outros aminoácidos (casos da metionina, valina, treonina e isoleucina) geram em vias catabólicas específicas propionil-CoA e este composto acaba por se converter no intermediário do ciclo de Krebs succinil-CoA (ver Equações 31-33). No caso da isoleucina [6C, 1N] um dos intermediários da sua via metabólica específica (α-metil-acetoacetil-CoA) sofre cisão tiolítica de tal forma que 3 dos carbonos deste composto geram o propionil-CoA e os outros 2 o resíduo acetato do acetil-CoA.

(viii) Os aminoácidos que no seu catabolismo geram intermediários da glicólise ou, diretamente, o

piruvato podem ser completamente oxidados a CO2 quando o piruvato sofre, na mitocôndria, a conversão em acetil-CoA (via ação catalítica da desidrogénase do piruvato; ver Equação 42) e o resíduo de acetato do acetil-CoA acaba por gerar CO2 no ciclo de Krebs.

Equação 42 piruvato + NAD+ + CoA → acetil-CoA + NADH + CO2

(ix) Quando os aminoácidos geram intermediários do ciclo de Krebs, o processo de formação do

acetil-CoA que vai ser oxidado envolve a ação das enzimas do ciclo de Krebs que levam à formação de oxalacetato, a conversão do oxalacetato em fosfoenolpiruvato (carboxicínase do fosfoenolpiruvato; Equação 43), a conversão deste intermediário da glicólise em piruvato (cínase do piruvato; Equação 44) e a oxidação do piruvato a acetil-CoA (Equação 42). Equação 43 oxalacetato + GTP → fosfoenolpiruvato + GDP + CO2

Equação 44 ADP + fosfoenolpiruvato → ATP + piruvato Os aminoácidos que geram intermediários do ciclo de Krebs ou da glicólise/gliconeogénese são

classicamente designados por glicogénicos (podem gerar glicose via gliconeogénese) e, por isso, é frequente esquecer que estes aminoácidos podem converter-se em acetil-CoA e, por esta via, serem completamente oxidados a CO2 sem se converterem previamente em glicose. De facto, os aminoácidos glicogénicos também podem completar o seu processo oxidativo convertendo-se em glicose na via da gliconeogénese hepática (ou renal) e serem indiretamente oxidados a CO2 quando as moléculas de glicose assim formadas são oxidadas no organismo. É frequente usar a expressão “oxidação direta” de aminoácidos para a distinguir da “oxidação indireta” que envolve a prévia conversão em glicose.

(x) Dois aminoácidos (a leucina e a lisina) não geram nas suas vias catabólicas específicas nem

intermediários da glicólise nem do ciclo de Krebs e são classicamente designados por cetogénicos. Esta expressão é usada porque o acetoacetato (um dos produtos formados no catabolismo da leucina) é um corpo cetónico e o acetil-CoA (produto formado na via catabólica específica da lisina e também produto, para além do acetaoacetato, na via catabólica específica da leucina) não é um dos substratos da gliconeogénese, podendo no fígado (via ciclo de Lynen) gerar corpos cetónicos. Como já referido, todos os aminoácidos glicogénicos também geram acetil-CoA mas, ao contrário do que acontece nos casos da leucina e da lisina, a formação de acetil-CoA ocorre via conversão prévia em piruvato e a intervenção da desidrogénase do piruvato (Equação 42). De qualquer forma, o acetoacetato, sendo um corpo cetónico, também se oxida via conversão em acetil-CoA nos tecidos extrahepáticos. É de notar que, se uma molécula de acetoacetato teve origem num aminoácido, a oxidação dessa molécula é a última etapa da oxidação da oxidação do aminoácido em questão.

(xi) Costuma usar-se a expressão aminoácidos “simultaneamente cetogénicos e glicogénicos” para

classificar os aminoácidos que, no decurso da sua via catabólica específica, formam um intermediário que se cinde sendo que um dos produtos dessa cisão gera acetoacetato (ou acetil-CoA) e outro produto gera um intermediário do ciclo de Krebs (ou um composto que pode gerar um intermediário do ciclo de Krebs ou da glicólise). São exemplos de aminoácidos classificados desta forma a fenilalanina, a tirosina, a isoleucina e o triptofano.

(xii) O uso do termo “cetogénico” para qualificar aminoácidos pode gerar equívocos. Nas vias

catabólicas específicas da leucina, da fenilalanina e da tirosina forma-se diretamente um corpo cetónico, o acetoacetato; por isso, é inequívoco concluir que há produção de corpos cetónicos aquando do catabolismo destes aminoácidos. No entanto, nos casos em que, há formação de acetil-CoA sem que antes se tenha formado um intermediário do ciclo de Krebs ou da glicólise (lisina, triptofano, e isoleucina) o destino do

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acetil-CoA tanto pode ser a oxidação a CO2 no ciclo de Krebs como, no fígado, servir de substrato para a síntese de corpos cetónicos (ciclo de Lynen). As condições que levam à estimulação da síntese de corpos são as que cursam com baixas concentrações plasmática de insulina e altas de glicagina como, por exemplo, o jejum prolongado. Nestas condições pode haver algum contributo dos aminoácidos acima referidos para a síntese de corpos cetónicos mas, comparativamente ao dos ácidos gordos, este contributo é diminuto.

(xiii) A síntese de ATP que resulta do catabolismo dos aminoácidos deve-se maioritariamente à

redução do NAD+ ou do FAD e à posterior oxidação do NADH ou do FADH2 nos complexos da cadeia respiratória que usam a energia libertada nos processos oxidativos para bombear protões na matriz mitocondrial para o espaço intermembranar. Grande parte do NADH e do FADH2 forma-se aquando da última etapa dos processos oxidativos dos aminoácidos: a oxidação do acetil-CoA no ciclo de Krebs.

No entanto, também pode haver formação de NADH em etapas mais precoces. Quando, por exemplo, o glutamato é convertido em acetil-CoA (via glutamato → α-cetoglutarato → succinil-CoA → succinato → fumarato → malato → oxalacetato → fosfoenolpiruvato → piruvato → acetil-CoA) ocorre redução do NAD+

aquando da oxidação do glutamato a α-cetoglutarato (Equação 37), da oxidação do α-cetoglutarato a succinil-CoA, da oxidação do malato a oxalacetato e do piruvato a acetil-CoA e redução do FAD aquando da oxidação do succinato a fumarato. Outro exemplo de redução do NAD antes da formação de acetil-CoA ocorre aquando da ação da desidrogénase do α-cetobutirato nas vias catabólicas específicas da metionina e da treonina (ver Equação 30) ou aquando da oxidação dos α-cetoácidos ramificados (formados pela transamínase dos aminoácidos ramificados; ver Equação 17, Equação 18 e Equação 19) pela ação da desidrogénase dos α-cetoácidos ramificados (Equação 45) nas vias catabólicas específicas da valina, leucina e isoleucina.

Equação 45 α-cetoácidos ramificados + NAD+ + CoA → acis-CoA ramificados + NADH + CO2

Também existem vias catabólicas específicas em que o aminoácido ou intermediários da via se

oxidam por ação de desidrogénases dependentes do FAD. São exemplos o caso da prolina já referido acima (Equação 40) e o caso do glutaril-CoA que se oxida a crotonil-CoA nas vias catabólicas específicas da lisina e do triptofano (Equação 46).

Equação 46 glutaril-CoA + FAD → crotonil-CoA + FADH2 + CO2

As vias catabólicas específicas da metionina, da treonina, dos aminoácidos ramificados, da lisina e

do triptofano incluem desidrogénases dependentes do NAD+ e do FAD e, por isso, no caso destes aminoácidos, há formação concomitante de ATP mesmo que se considere apenas a fase mais precoce do processo catabólico.

(xiv) As vias catabólicas específicas da tirosina (comum ao fenilalanina) e do triptofano incluem reações de oxidação em que o O2 funciona como oxidante direto incorporando pelo menos um átomo de oxigénio no intermediário que sofre oxidação. Estas reações não estão relacionadas com a cadeia respiratória e/ou a síntese de ATP. As enzimas que catalisam este tipo de reações são, genericamente, designadas por oxigénases e as hidroxílases são um subtipo deste tipo de enzimas. As equações soma relativas às vias catabólicas específicas da tirosina e do triptofano são a Equação 47 e a Equação 48 e nelas se evidencia a existência de consumo direto de oxigénio molecular. As enzimas que catalisam reações em que o O2 se incorpora no produto que sofreu oxidação designam-se de oxigénases. Estas reações/enzimas não estão diretamente relacionadas com cadeia respiratória mitocondrial e a síntese de ATP, mas contribuem para a oxidação dos aminoácidos em questão.

Equação 47 tirosina + NAD+ + 2 O2 + H2O → fumarato + acetoacetato + NADH + NH4

+ + CO2 Equação 48 triptofano + 3 O2 + 3 NAD+ + FAD + 2 NADPH + 2 CoA → alanina [3C,N] + 2 acetil-CoA + NH4

+ + 3 CO2 + formato + 3 NADH + FADH2 + 2 NADP+

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19 Ideias gerais sobre o destino do azoto dos aminoácidos quando sofrem catabolismo e a

síntese de ureia. Ver Fig 5. É frequente que a primeira reação das vias catabólicas específicas dos aminoácidos seja uma reação

de transaminação em que o grupo amina do aminoácido em questão transfere o seu grupo α-amina para o α-cetoglutarato gerando como produtos o α-cetoácido correspondente ao aminoácido em análise e o glutamato (ver Equação 12). Isto acontece nos casos da alanina (Equação 13), da serina (Equação 14), do aspartato (Equação 15), da tirosina (Equação 16) e dos aminoácidos ramificados (Equação 17, Equação 18 e Equação 19). No caso da cisteína a perda do grupo α-amina envolve um intermediário da via metabólica que ainda contém o grupo amina (cisteína-sulfinato) e que o perde numa reação de transaminação (Equação 49). Situações com algumas semelhanças com o caso da cisteína ocorrem no caso da perda de grupos amina da lisina11, do triptofano e da arginina: em todos estes casos os grupos amina acabam incorporados no glutamato constituindo o grupo α-amina deste último aminoácido.

Equação 49 cisteína-sulfinato + α-cetoglutarato → glutamato + sulfinil-piruvato

O glutamato pode, por sua vez, perder o grupo amina na forma de NH4

+ por ação catalítica da desidrogénase do glutamato (Equação 37). A reação catalisada por esta enzima é uma desaminação oxidativa porque envolve simultaneamente a oxidação do glutamato a α-cetoglutarato e a perda do grupo amina.

Uma sequência de duas reações em que a primeira é uma reação de transaminação em que o azoto do grupo amina de um aminoácido (como um dos referidos no primeiro parágrafo deste capítulo) passa a ser o azoto do grupo α-amina do glutamato e a segunda é a catalisada pela desidrogénase do glutamato permite compreender que, por esta via, o azoto de grupos amina de aminoácidos podem libertar-se para dentro da célula (mais precisamente para a matriz mitocondrial) na forma de NH4

+. Este processo costuma designar-se, como já referido, por transdesaminação (transaminação + desaminação) e é crucial para compreender o processo pelo qual grupos amina de aminoácidos podem libertar-se nas mitocôndrias (nomeadamente nas mitocôndrias dos hepatócitos) na forma de NH4

+. A equação soma que descreve o processo de transdesaminação de um determinado aminoácido X é a Equação 50.

Equação 50 α-aminoácido X + NAD+ → α-cetoácido X + NADH + NH4

+ A desidrogénase do glutamato também está envolvida na perda de grupos azotados de aminoácidos

cuja via metabólica específica envolve a conversão em glutamato como é o caso da glutamina, da histidina, da prolina e da arginina.

Para além do glutamato, também a glicina perde o grupo amina numa reação de desaminação

oxidativa, a que é catalisada pelo complexo de clivagem da glicina (ver Equação 39). Nos casos da treonina e da histidina12, a perda do grupo α-amina envolve a ação de líases que atuam

diretamente no aminoácido pertinente libertando o ião NH4+ e um intermediário da via catabólica específica

(Equação 51 e Equação 52).

Equação 51 treonina → α-cetobutirato + NH4+

Equação 52 histidina → urocanato + NH4+

Como já referido, o azoto dos grupos amida da glutamínase e da asparagínase liberta-se incorporado

em iões NH4+ em reações de hidrólise (ver Equação 11 e Equação 41). Associar o termo “desaminação” a

este processo não é muito correto, sendo o termo “desamidação” mais adequado para descrever a reação. No entanto quando nos estamos a referir a vários aminoácidos é frequente usar o termo “desaminação” como um termo genérico que inclui a perda dos grupos azotados dos aminoácidos incluindo a perda dos grupos amida da glutamina e da asparagina.

11 A lisina tem dois grupos amina e quer o grupos α-amina, quer o grupo ε-amina acabam incorporados no glutamato. 12 A histidina tem três azotos um pertence ao grupo α-amina e os outros dois fazem parte do anel imidazol. O azoto do grupo amina perde-se por ação da histídase (uma líase); o segundo fica incorporado no N5,N10-formimino-H4folato e acaba por se libertar na forma de amónio aquando da conversão N5,N10-formimino-H4folato → N5,N10-metenilo-H4folato + NH4

+; o terceiro acaba constituindo a grupo α-amina do glutamato na última etapa da via catabólica específica.

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Todos os aminoácidos contêm um grupo α-amina e seria fastidioso referir em pormenor como é que, em cada um dos aminoácidos, o azoto desse grupo α-amina pode acabar dentro das células como azoto do ião NH4

+. Além disso alguns aminoácidos (histidina, lisina, triptofano, arginina, glutamina e asparagina) contêm átomos de azoto que não fazem parte do grupo α-amina, mas é pertinente referir que por mecanismos variados todos os átomos de azoto dos aminoácidos podem acabar constituindo o azoto do ião NH4

+. Nas mitocôndrias dos hepatócitos o destino maioritário do ião NH4

+ é reagir com o CO2 e o ATP formando, por ação catalítica da sintétase de carbamil-fosfato (Equação 53), o carbamil-fosfato [1C,1N,1P], um dos compostos que está na origem da ureia. A ureia é um composto que, ao contrário do NH4

+, não é tóxico, mas é o composto azotado mais abundante na urina e o principal veículo para a excreção de azoto do organismo. Nas condições mais habituais no organismo, cerca de 80% dos átomos de azoto perdidos para o exterior (e cerca de 85-90% do azoto urinário) estão incorporados na ureia.

Equação 53 NH4

+ + CO2 + 2 ATP + H2O → carbamil-fosfato + 2 ADP + Pi A concentração do ião NH4

+ é relativamente alta no plasma sanguíneo da veia porta (≈260 μM) porque se produz NH4

+ nos enterócitos e no lúmen intestinal (no metabolismo das bactérias), mas nos restantes vasos sanguíneos do organismo é muito mais baixa (≈20 μM). Isto resulta do facto de os hepatócitos captarem o NH4

+ e, a partir deste, formarem ureia. (Já foi referido que a glutamina tem uma elevada concentração nas fibras musculares e no plasma

sanguíneo. Dentro dos músculos a maior parte do NH4+ produzido no catabolismo dos aminoácidos acaba

incorporado na glutamina via ação da sintétase da glutamina (ver Equação 9). A glutamina formada acaba por sair para o sangue e ser captada por outros tecidos que usam a glutamina como combustível como é o caso das enterócitos, dos linfócitos e de outras células que se multiplicam rapidamente (células cancerígenas se existirem, por exemplo). Este transporte de glutamina entre os músculos e outros tecidos é uma forma de transporte de azoto no sangue numa forma não tóxica.)

A ureia [1C,2N] tem dois átomos de azoto e forma-se numa via metabólica que decorre no fígado e que se designa por ciclo da ureia. Nesta via metabólica um dos azotos provém do carbamil-fosfato e o outro do aspartato. A concentração de aspartato no plasma é baixíssima (≈10 μM), mas é altíssima no citoplasma dos hepatócitos (≈18 mM). No citoplasma dos hepáticos o aspartato é substrato de uma das enzimas do ciclo da ureia e no processo global deste ciclo metabólico os seus carbonos vão libertar-se na forma de fumarato enquanto o seu grupo amina vai constituir o “segundo azoto” da ureia.

Na realidade todos os átomos de azoto do aspartato podem ter origem última noutros

aminoácidos. Quer por (1º) ação sequenciada de variadas transamínases (Equação 12) e da transamínase do

aspartato a funcionar no sentido em que se sintetiza aspartato (Equação 15), (2º) quer por ação sequenciada de reações de desaminação (que libertam NH4

+), da desidrogénase do glutamato a funcionar no sentido em que incorpora esse NH4

+ no α-cetoglutarato (Equação 8) e da transamínase do aspartato a funcionar no sentido em que se sintetiza aspartato (Equação 15), o azoto dos diferentes aminoácidos podem incorporar-se no oxalacetato originando aspartato.

Se, por exemplo, a alanina ceder o seu grupo amina ao α-cetoglutarato, o azoto do grupo amina da alanina passa a ser o azoto do grupo amina do glutamato; se de seguida o glutamato formado ceder o grupo amina ao oxalacetato o azoto acima referido passa a ser o azoto do aspartato. A equação soma correspondente a esta sequência reativa é a Equação 54.

Equação 54 α-aminoácido X (alanina no exemplo) + oxalacetato → α-cetoácido X (piruvato no exemplo) + aspartato13

13 É curioso notar que o aspartato formado neste processo pode regenerar o oxalacetato havendo, concomitantemente, redução do NAD+ a NADH e perda do grupo azotado. Isto ocorre quando o aspartato, no ciclo da ureia, sai como fumarato (deixando ficar o seu grupo azotado no intermediário arginina) e este fumarato se converte de novo em oxalacetato via malato (malato + NAD+ → oxalacetato + NADH). Isto significa que, quando um aminoácido sofre perda do grupo azotado por transaminação, a redução do NAD+ a NADH está sempre envolvida nos processos a jusante, quer esse processo seja a síntese de ureia via aspartato, quer seja a perda na forma de NH4

+ por ação da desidrogénase do glutamato (transdesaminação).

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Se, por exemplo, a glicina sofrer desaminação oxidativa perdendo o azoto do grupo amina (ver Equação 39), o NH4

+ formado se incorporar no α-cetoglutarato passando a ser o grupo amina do glutamato (desidrogénase do glutamato a funcionar no sentido em que se sintetiza glutamato; ver Equação 8) e o glutamato ceder o grupo amina ao oxalacetato (Equação 15), o azoto do grupo amida da glicina passa a ser o grupo amina do aspartato. A equação soma correspondente a esta sequência reativa é a Equação 55.

Equação 55 α-aminoácido X (glicina + H4folato + NAD+, no exemplo) + oxalacetato + NADPH →

α-cetoácido X (CO2 + N5,N10-metileno-H4folato + NADH, no exemplo) + NADP+ + aspartato Assim, é de concluir que ambos e cada um dos átomos de azoto ureia foram, originalmente, os átomos

de azoto dos aminoácidos; em última análise foram os átomos de azoto das proteínas endógenas e/ou da dieta que sofreram hidrólise por ação de protéases e de peptídases.

20 A síntese e a excreção de amónio nas células tubulares renais

Uma fração, normalmente bastante inferir a 10%, dos átomos de azoto perdidos para o meio exterior saem na urina como azoto de moléculas de NH4

+. Este amónio é produzido nas células tubulares renais a partir da glutamina numa sequência reativa (glutamina → glutamato → α-cetoglutarato) que envolve a ação sequenciada da glutamínase (Equação 11) e da desidrogénase do glutamato (Equação 37): por cada molécula de glutamina que se converte em α-cetoglutarato formam-se duas moléculas de amónio que acabam no lúmen do nefrónio e na urina.

A produção de amónio nas células tubulares renais e a sua excreção aumenta de forma marcada em situações de acidose (como acontece no jejum prolongado). Em situações de acidose a estabilidade do RNA mensageiro codificador da glutamínase está aumentada explicando o aumento da síntese de glutamínase e o aumento da formação e excreção de amónio nas células tubulares renais. Este aumento da conversão dos grupos azotados da glutamina em NH4

+ tem um efeito homeostático contribuindo para corrigir a acidose. Se compararmos a equação soma que descreve a conversão de glutamina em CO2 e ureia (Equação 56) com a que descreve a conversão de glutamina em CO2 e NH4

+ (Equação 57), concluímos que só a segunda envolve o consumo de protões.

Equação 56 glutamina (C5N2H10O3) + 4,5 O2 → 4 CO2 + 3 H2O + ureia [CO(NH2)2] Equação 57 glutamina (C5N2H10O3) + 4,5 O2 + 2 H+ → 2 NH4

+ + 5 CO2 + 2 H2O

21 O destino do enxofre dos aminoácidos sulfurados (cisteína e metionina) Já foi referido no capítulo 16 que, na síntese endógena da cisteína [3C,1N,1SH], o átomo de enxofre

do grupo tiol tem origem na metionina [5C,1N,1S] e que a via metabólica em questão (ver Equações 25-33) é, simultaneamente, a via catabólica específica da metionina. Isto significa que o catabolismo da metionina envolve obrigatoriamente a formação de cisteína.

No catabolismo da cisteína há diversas vias alternativas, mas a via predominante envolve a formação de um intermediário (sulfinil-piruvato) que se cinde gerando piruvato e sulfito (SO3

-) que, de seguida, se oxida a sulfato (SO4

2-). Na realidade, o processo global de oxidação da cisteína, envolve a libertação simultânea de 2 protões

por cada molécula de sulfato formada, pelo que será mais adequado dizer que, o catabolismo da cisteína (e, consequentemente o da metionina) leva à formação de ácido sulfúrico (H2SO4). De facto, a urina tem normalmente, um pH ácido (≈5-6) sendo tanto mais ácida quando mais rica é a dieta em proteínas. Uma ingestão aumentada de proteínas implica um aporte aumentado de aminoácidos sulfurados e, admitindo que a quantidade de átomos de enxofre no adulto é estacionária, uma excreção aumentada de H2SO4.

22 Definições de balanço azotado

Nas situações em que a massa de proteínas endógenas está a aumentar diz-se que há um balanço

azotado positivo; na condição contrária diz-se que o balanço azotado é negativo; o balanço azotado é nulo quando não há aumento nem diminuição da massa proteica endógena.

Em geral, um indivíduo adulto saudável mantém constante a quantidade total de proteínas

endógenas. De facto, a massa de proteínas endógenas “flutua” ao longo de um dia aumentando no período

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pós-prandial e diminuindo durante o jejum noturno14. No entanto, tendo em conta a massa total de proteínas, as variações percentuais são mínimas e, além disso, considerando um período de 24h (ou mais) pode dizer-se que a velocidade de hidrólise é, no adulto saudável, igual à de síntese. Um indivíduo que está nestas condições diz-se em equilíbrio azotado (ou que tem um balanço azotado nulo). O uso do adjetivo “azotado” resulta do facto de a esmagadora maioria do azoto presente no organismo ser o azoto dos resíduos aminoacídicos das proteínas.

Porque é uma boa aproximação à realidade considerar que a massa de aminoácidos livres (cerca de 150 g no organismo inteiro) é estacionária, quando o balanço azotado é positivo (negativo, nulo) a massa de azoto ingerido é superior (inferior, igual) à de azoto perdido para o exterior; caso exista uma diferença entre os valores da síntese e da hidrólise de proteínas endógenas (ou seja, se houver variação na sua massa global de proteínas endógenas) essa diferença reflete-se numa diferença equivalente entre o azoto ingerido e o azoto perdido. Assim, o balanço azotado também se pode definir como sendo a diferença entre a massa de azoto

ingerido e a massa de azoto perdido para o exterior do organismo (ou a diferença entre os valores da massa de proteínas correspondente).

Um indivíduo que, durante um determinado período de tempo (uma semana ou um mês, por exemplo), está em balanço azotado nulo e ingere 100 g de proteínas /dia (um valor normal na dieta de tipo ocidental), perde na urina, fezes, pele, nariz e genitais uma massa de azoto equivalente (100 g × 0,16 = 16 g de azoto /dia) e a sua massa proteica endógena, embora tenha sofrido flutuações diárias, não variou no intervalo de tempo considerado. Um indivíduo que, num terminado período de tempo, excretou, por exemplo, 10 g de azoto em excesso relativamente ao ingerido deverá ter perdido uma massa proteica endógena de 62,5 g (10 g de azoto × 6,25 g de proteína/ g de azoto = 62,5 g de proteína). 23 O destino dos aminoácidos excedentários

Poderia pensar-se que a massa de proteínas ingeridas seria um importante fator na definição da variação da quantidade de proteínas do organismo. A massa de gordura do organismo aumenta quando o valor calórico da dieta é superior à despesa energética mas, no caso do azoto, o sistema funciona de forma diferente. A massa de proteínas endógenas baixa (balanço azotado negativo) se a ingestão for inferior à quantidade necessária para repor as perdas obrigatórias (≈25 g dia-1) e fazer face ao acréscimo de perdas resultante da ingestão (outros 25 g dia-1), mas uma ingestão de proteínas acima do montante necessário

para cobrir as necessidades (≈50 g dia-1) resulta apenas no catabolismo dos aminoácidos excedentários

e num aumento da produção de ureia. Ao contrário do que acontece com a massa de gordura, a quantidade de cada uma das proteínas do

organismo só depende da dieta na medida em que (i) esta pode constituir um fator limitador da sua síntese e (ii), acessoriamente, na medida em que o aumento da massa de gordura é acompanhado pela formação de vasos sanguíneos, de adipócitos e de tecidos de suporte (que contêm proteínas). Ingerir mais proteínas que as necessárias para repor os aminoácidos que sofreram catabolismo não provoca, por si só, balanço azotado positivo. 24 Fatores hormonais e comportamentais que afetam a massa das proteínas musculares

Considerando o organismo como um todo e um intervalo de tempo elevado (um mês ou mais), o balanço entre a massa de proteínas endógenas que sofre hidrólise e a que é sintetizada é, em grande medida, dependente do balanço na massa das proteínas dos músculos. A importância das proteínas musculares no balanço azotado pode ser melhor compreendida se tivermos em conta o peso destas proteínas na massa total de proteínas (cerca de metade do total) e na taxa de renovação global (cerca de ¼ do total). Por isso os fatores

14 Não é costume considerar que o aumento da síntese de proteínas endógenas e o incremento da massa de proteínas do organismo que ocorre a seguir às refeições corresponde a uma situação de balanço azotado positivo. Também não é costume dizer-se que a perda de massa de proteínas endógenas que ocorre durante o jejum noturno é um exemplo de balanço azotado negativo. A seguir às refeições há aumento de síntese de enzimas digestivas (proteínas) nas células acinares pancreáticas, de proteínas no fígado (incluindo a síntese de albumina), de proteínas musculares, etc. Se o individuo estiver em balanço azotado nulo, a massa de proteínas ganha no período pós-prandial é equivalente à que se perde durante o jejum noturno. Pelo menos no caso das proteínas musculares, o aumento da insulina plasmática e da concentração de aminoácidos nas fibras musculares neste período e os seus efeitos (via mTORC1) na iniciação da tradução contribuem para explicar o incremento da síntese no período pós-prandial. Reciprocamente, a diminuição da insulina e da concentração de aminoácidos durante o jejum noturno contribui para a diminuição da massa proteica dos músculos. Estas flutuações cíclicas diárias poderão ser, em valor absoluto, da mesma ordem de grandeza das do glicogénio mas, em termos percentuais, dada a enorme massa de proteínas em comparação com a de glicogénio (cerca de 20-30 vezes mais proteínas), são discretas.

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que afetam a síntese e a degradação das proteínas musculares são importantes para compreender a regulação do balanço azotado.

Ao contrário do que acontece com a maioria das proteínas cuja síntese e degradação depende em grande medida de fatores de regulação específicos, as proteínas musculares (ou, mais precisamente, as proteínas diretamente envolvidas no processo contrátil, a actina e a miosina) sofrem variações de massa que

dependem em grande medida de fatores hormonais e comportamentais. A hormona do crescimento (também designada por somatotrofina), a testosterona e a insulina são

hormonas que afetam positivamente a síntese das proteínas musculares estimulando o processo de iniciação da tradução. Ao mesmo tempo, reforçando o seu contributo para o incremento da massa proteica muscular, têm um papel inibidor na degradação através de ações que envolvem inibição da proteólise que ocorre nos proteossomas. No entanto estas hormonas não provocam, por si só, incrementos na massa proteica muscular. Para aumentar a massa das proteínas de um determinado grupo de músculos há que fazer “exercícios de musculação”, ou seja, fazer exercícios anaeróbicos utilizando esse grupo de músculos. Este tipo de exercícios (levantamento de peso, corridas de “sprint”, etc.) provoca aumento do catabolismo durante o exercício mas, durante o repouso que se lhe segue, a síntese proteica é estimulada e, no balanço global, há incremento da massa de proteínas.

Algumas moléculas sinalizadoras extracelulares como as hormonas tiroideias, o cortisol e as citosinas inflamatórias têm efeitos opostos e provocam diminuição na massa das proteínas dos músculos.

Em consonância com o efeito das hormonas tiroideias no metabolismo basal (as hormonas tiroideias aumentam o metabolismo basal), as hormonas tiroideias também têm um efeito positivo na sua taxa de renovação (turnover proteico). As hormonas tiroideias aceleram a síntese proteica mas também a sua hidrólise mas, considerando o somatório dos dois efeitos antagónicos, o efeito catabólico predomina sobre o anabólico. Como referido acima, a prática de exercícios anaeróbicos também estimula o turnover das proteínas musculares mas, neste caso, o somatório é positivo havendo incremento da massa proteica dos músculos envolvidos.

25 Causas de balanço azotado positivo e negativo em situações fisiológicas e patológicas Sob efeito das hormonas acima referidas, do exercício e de outros fatores, a quantidade total de

proteínas do organismo aumenta (balanço azotado positivo) nos indivíduos (i) em fase de crescimento (crianças e adolescentes), (ii) que estão a engordar, (iii) que estão a recuperar após um período de balanço azotado negativo ou (iv) que, através de exercício físico anaeróbico (com ou sem a ação dopante de esteroides anabolizantes), estão a aumentar a sua massa muscular. Nos indivíduos adultos que estão a engordar a maior parte do aumento da massa corporal deve-se à acumulação de triacilgliceróis no tecido adiposo, mas também ao aumento das proteínas dos vasos sanguíneos, dos adipócitos e dos tecidos de sustentação incluindo os músculos.

É de esperar que haja balanço azotado negativo (i) a partir dos 40-50 anos de idade, (ii) quando se diminui a atividade física ou (iii) quando se emagrece voluntariamente, (iv) em consequência de défice nutricional proteico e/ou proteico-calórico ou (v) em situações de doença. A perda de massa muscular associado ao envelhecimento é, pelo menos em parte, uma consequência da diminuição da sensibilidade dos músculos aos efeitos anabólicos do exercício físico mas também à diminuição desse exercício.

Grande parte das doenças agudas e crónicas cursam com balanço azotado negativo. Embora a diminuição do apetite e do exercício possam ter um papel na diminuição da massa muscular, não são estes os fatores determinantes na maioria dos casos. A diminuição da massa muscular associada a muitas doenças (cancros, traumatismos acidentais ou cirúrgicos, doenças infecciosas agudas e crónicas, etc.) é uma componente da resposta adaptativa que leva à hidrólise das proteínas musculares, desta forma disponibilizando aminoácidos para a síntese aumentada de proteínas que ocorre no fígado (designadas por “proteínas de fase aguda”) ou nos tecidos que estão em processo de cicatrização [9]. Nestes processos participam as citosinas inflamatórias que, direta e indiretamente, provocam aumento nos processos de hidrólise e inibição da síntese das proteínas musculares. As citosinas são produzidas por células do sistema imunitário e aumentam em situação de inflamação. Os efeitos indiretos das citosinas inflamatórias envolvem a diminuição da sensibilidade aos efeitos anabolizantes da insulina e da somatotrofina e a estimulação da secreção de cortisol.

A diminuição da secreção de insulina no pâncreas também pode ser um fator determinante. Neste contexto, é clássico referir que, antes da introdução da terapêutica insulínica, os doentes com diabetes tipo 1

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morriam num estado de caquexia: as proteínas dos músculos iam desaparecendo enquanto os aminoácidos constituintes se iam convertendo em glicose que, em grande parte, se perdia na urina. 26 Défice de ingestão proteica e proteico-calórica

Num indivíduo adulto saudável que mantém constante a sua massa muscular, é de prever que a quantidade total de proteínas também se mantém mais ou menos constante: nestas condições, os aminoácidos excluídos do ciclo de reutilização são repostos por ingestão e incorporados nas proteínas sintetizadas existindo balanço azotado nulo. Quando a ingestão proteica não é suficiente para repor os aminoácidos que sofrem catabolismo há balanço azotado negativo.

No caso das crianças o balanço azotado é fisiologicamente positivo, mas uma ingestão deficiente de proteínas provoca atraso no crescimento. Em situações de subnutrição proteica pode surgir uma doença designada de kwashiorkor em que, além do atraso de crescimento, há edemas nos membros e ascite (líquido no espaço entre os dois folhetos do peritoneu). O edema e a ascite são provocados pela diminuição da produção de albumina no fígado. A albumina é a proteína mais abundante no plasma sanguíneo e tem efeito osmótico que contrabalança a pressão hidráulica que favorece a saída de líquido do plasma para o espaço extracelular. Quando a concentração plasmática de albumina baixa, este fator de retenção de líquido no plasma diminui e passa a predominar a pressão hidráulica provocando edema e ascite.

A perda de massa muscular que ocorre em situações de défice nutricional proteico-calórico como o que acontece nas situações de “greve de fome” é mais marcada que a simples omissão das proteínas da dieta de um indivíduo. No défice nutricional proteico-calórico, para além da “perda obrigatória de aminoácidos”, há uma perda adicional que é adaptativa e resulta da diminuição da insulina. Quando um indivíduo inicia uma “greve de fome” a hidrólise das proteínas musculares fica aumentada e fornece ao fígado aminoácidos que são usados como substratos na síntese de glicose. Porque o glicogénio se esgota em um ou dois dias de jejum, a gliconeogénese tem, neste processo, um papel determinante na síntese da glicose que é oxidada no cérebro. No entanto, à medida que o tempo de jejum se prolonga a proteólise muscular diminui porque há diminuição da secreção de hormonas tiroideias. Esta diminuição da proteólise relativamente ao que acontecia nos primeiros dias de jejum, acompanha-se duma diminuição da necessidade de fornecer glicose ao cérebro: à medida que o jejum se prolonga aumenta a síntese de corpos cetónicos que podem substituir até 2/3 das necessidades energéticas do cérebro. Um indivíduo em jejum total (só água e vitaminas) há uma semana está em balanço azotado negativo e pode perder cerca de 50 g de massa proteica endógena por dia; a esta perda líquida de massa proteica corresponde a perda líquida de 8 g/dia de azoto. Dado que estamos a considerar que o indivíduo tem uma ingestão proteica nula, o valor de 8 g/dia é também o valor correspondente ao azoto eliminado pelo organismo.

Este último valor é cerca do dobro da perda obrigatória de aminoácidos (4 g de azoto/dia), mas é cerca de metade da eliminação de azoto num indivíduo em equilíbrio azotado que ingere 100 g de proteínas por dia (16 g de azoto/dia). 27 Conceito de aminoácido limitante da qualidade dietética de uma proteína

Tal como os aminoácidos dispensáveis também os aminoácidos indispensáveis sofrem catabolismo a uma velocidade que depende da atividade intrínseca das enzimas envolvidas e da concentração do aminoácido em causa. Para assegurar a manutenção da massa de proteínas do organismo há, não só que ingerir uma quantidade total de aminoácidos adequada (em média 50 g dia-1 num adulto saudável com 70 kg), mas também que repor cada uma das moléculas dos aminoácidos indispensáveis que se perderam. Tendo em conta as necessidades mínimas de cada um dos aminoácidos indispensáveis foram inventadas proteínas padrão: uma proteína padrão é uma proteína que, ingerida na quantidade mínima indispensável para repor as perdas obrigatórias de azoto, contém a quantidade mínima de cada aminoácido indispensável para repor a perda individual de cada um destes aminoácidos [6]. Se uma dieta contiver como único constituinte proteico uma proteína que não contém um aminoácido indispensável (caso da gelatina15 que não contém triptofano) a capacidade dessa dieta para colmatar as necessidades aminoacídicas é nula. Quase todas as proteínas endógenas (e todas as que têm taxas de renovação quantitativamente relevantes) contêm pelo menos um resíduo de triptofano e, por isso, praticamente nenhuma proteína pode ser sintetizada na ausência de

triptofano e o mesmo poderia ser dito relativamente a cada um dos outros aminoácidos indispensáveis. Quando, no contexto de uma dieta equilibrada sob o ponto de vista energético, se ingere como única proteína

15 A gelatina é produzida industrialmente por hidrólise parcial do colagénio.

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gelatina nenhum dos aminoácidos que resultam da sua hidrólise intestinal pode ser usado na síntese proteica porque falta o triptofano. Nestas circunstâncias, com a exceção do triptofano, todos os aminoácidos aumentam de concentração aumentando a velocidade da sua oxidação e desaminação. Quando se ingere como única proteína gelatina a quantidade de azoto perdido é praticamente igual à perda obrigatória (4 g de azoto/dia) somada do azoto de toda a gelatina ingerida cujos aminoácidos são também perdidos.

No caso da gelatina o aminoácido limitante da sua qualidade dietética é o triptofano mas, no caso de outras proteínas como, por exemplo, nas proteínas do trigo e outros cereais, o aminoácido limitante é a lisina. No caso das proteínas do trigo a lisina não está ausente, mas existe numa quantidade menor que a prevista nas proteínas padrão. A percentagem de lisina nas proteínas de trigo é cerca de metade da percentagem de lisina numa proteína padrão: assim, para colmatar as necessidades de lisina usando exclusivamente proteínas de trigo haveria que ingerir não 50 g de proteína de trigo, mas o dobro deste valor [6, 10]. 28 Conceito e determinação do índice químico de uma proteína ou de uma mistura de

proteínas Um parâmetro que costuma ser utilizado para avaliar a qualidade dietética das proteínas é o índice

químico. Para calcular o índice químico de uma proteína começa-se por determinar a percentagem de cada um dos aminoácidos essenciais na proteína em questão (massa de aminoácido essencial/100 g de proteína). Depois comparam-se essas percentagens com as percentagens correspondentes numa proteína padrão dividindo, para cada aminoácido essencial, a percentagem na proteína em análise pela percentagem na proteína padrão. A cada aminoácido essencial vai, assim, corresponder uma determinada fração que será inferior a 1 se a proteína em análise for menos rica nesse aminoácido que a proteína padrão. A fração de valor mais baixo é o índice químico da proteína em questão e o aminoácido correspondente é o aminoácido limitante dessa proteína. No caso das proteínas do trigo, como já referido, o aminoácido limitante é a lisina, o índice químico é pouco superior a 0,5 e para alimentar um indivíduo adulto saudável usando, exclusivamente, proteínas de trigo, a ingestão proteica deve ser cerca do dobro (1/0,5 = 2) da que seria necessária se o índice químico das proteínas da dieta fosse 1 ou superior a 1 (como acontece no caso da maioria das proteínas de origem animal). No caso da gelatina o índice químico é zero e é impossível obter uma ingestão proteica adequada usando exclusivamente esta proteína.

Na realidade é muito pouco comum que a dieta seja tão monótona que apenas contemple uma única espécie vegetal. Na maioria dos casos o aminoácido limitante num determinado alimento não é o mesmo em dois alimentos de natureza distinta. Porque o aminoácido limitante num determinado alimento pode não ser o aminoácido limitante noutro alimento, a ingestão conjunta dos dois alimentos resulta num índice químico conjunto mais próximo de 1 (ou mesmo superior a 1). Um exemplo clássico de complementaridade entre proteínas é a mistura feijão e arroz. Os aminoácidos limitantes da proteína do feijão são os aminoácidos sulfurados cisteína e metionina e o índice químico é 0,91; o aminoácido limitante no caso do arroz é a lisina e o índice químico é 0,87. No entanto, uma mistura 50:50 de proteínas de feijão e arroz resulta num índice químico superior a 1. Quando o índice químico é superior a 1 não significa que seja suficiente ingerir menos proteínas que as necessárias no caso de o índice químico ser 1: para manter o organismo em balanço azotado nulo, a massa de azoto proteico ingerido deve ser sempre suficiente para contrabalançar as perdas.

29 A digestibilidade das proteínas como fator da sua qualidade dietética

Para além do índice químico, um outro fator que influencia a qualidade dietética das proteínas dos alimentos é a sua digestibilidade, ou seja, a percentagem dos aminoácidos das proteínas que acabam de facto absorvidos no tubo digestivo. Em geral, devido ao facto de uma parte das proteínas vegetais estar em grânulos que não são “atacados” nos processos digestivos, a digestibilidade das proteínas de origem vegetal é menor que as de origem animal. O fator digestibilidade também é afetado pelos processos culinários.

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Fig. 1: Visão geral das vias de síntese de aminoácidos. “T” significa transamínase, uma subclasse de enzimas que catalisa reações em que o glutamato cede o grupo α-amina a um α-cetoácido ao mesmo tempo que aceita o grupo cetónico do α-cetoácido com que reage; assim, no processo, o glutamato converte-se em α-cetoglutarato e o α-cetoácido (por exemplo, o piruvato ou o oxalacetato) converte-se no aminoácido correspondente (por exemplo, a alanina ou o aspartato). Geralmente, as reações catalisadas por transamínases são fisiologicamente reversíveis. Por exemplo, a transamínase da alanina pode catalisar quer a síntese de alanina (a partir de glutamato e piruvato) assim como a conversão inversa (a formação de piruvato, a partir de alanina e α-cetoglutarato). De forma análoga, por exemplo, a transamínase do aspartato pode catalisar quer a síntese do aspartato (a partir de glutamato e oxalacetato)

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assim como a conversão inversa (a formação de oxalacetato, a partir de aspartato e α-cetoglutarato). Algumas transamínases são algo atípicas. Por exemplo, no caso da transamínase da ornitina o grupo amina da ornitina que é cedido ao α-cetoglutarato não o grupo α-amina, mas sim o grupo 5-amina; por isso, o grupo carbonilo no produto que corresponde à ornitina é um grupo aldeído.

Fig. 2: Visão geral do catabolismo do esqueleto carbonado dos aminoácidos.

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Fig. 1: Catabolismo da glutamina, glutamato, serina, glicina, cisteína, alanina, asparagina, aspartato, histidina, lisina, fenilalanina e tirosina.

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Fig. 2: Catabolismo da arginina, prolina, glutamato, metionina, valina, isoleucina, leucina, treonina, histidina e triptofano.

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Fig. 5: Visão geral do metabolismo do azoto dos aminoácidos.

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