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Introdução e boas vindas ao CAMINHO DA COMPAIXÃO EM AÇÃO

Introdução e boas vindas ao CAMINHO DA COMPAIXÃO EM …drukpabrasil.org/wp-content/uploads/2017/08/uma-introducao-ao... · Í N D I C E 1.Boas vindas 2.Quem somos? 3.Por onde começar?

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Introdução e boas vindas ao

CAMINHO DA COMPAIXÃO EM AÇÃO

ÍNDICE

1. Boas vindas 2. Quem somos? 3. Por onde começar? 4. Artigos sobre o cotidiano e o budismo

a. O que é o budismo? b. Começando a meditar, os primeiros passos c. Felicidade genuína d. Equilíbrio emocional e. Aprendendo a meditar f. Amor e lucidez nos relacionamentos g. Como estudar o Dharma h. A essência de ser e de estar i. Prática incorporada à vida cotidiana j. Os 4 selos do Dharma k. Conflitos na Família l. Mestres, professores e instrutores do Dharma m. O Buda como o médico, o Dharma como um

remédio e a sangha iniciante como os enfermos n. Theravada (hinayana), mahayana e vajrayana o. Impermanência p. Karma e renascimento no budismo q. Bom coração r. O despertar do coração, Bodhichitta

5. Nossos professores a. SS Gyalwang Drukpa b. S.Ema. Gyalwa Dokhampa c. Jetsunma Tenzin Palmo d. Lama Jigme Lhawang

6. Livros recomendados

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1. Boas vindas

Este breve apanhado apresenta alguns esclarecimentos a respeito de vários temas e práticas criado especialmente para quem está iniciando no caminho da prática e para quem já está trilhando o caminho, mas deseja revisitar os pontos essenciais. O conteúdo aqui presente foi oferecido diretamente pelo nosso principal professor, Lama Jigme Lhawang. As explicações possuem uma linguagem simples que conecta a sabedoria milenar do Budismo dos Himalaias com questões cotidianas, aquilo que de fato enfrentamos em nosso dia-a-dia. A aspiração do nosso grupo de práticas é a realização plena e experiencial do potencial presente em cada um de nós – a nossa verdadeira natureza. Desejamos, portanto, calorosas boas vindas e aspiramos que você possa usufruir de benefício ao acessar esta rica mandala, que tem se movido há centenas de anos no propósito de beneficiar todos os seres.

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2. Quem somos

O nosso grupo de meditação e estudos budistas faz parte do Drukpa Brasil, que, por sua vez, é uma extensão da Linhagem Drukpa do budismo dos himalaias, cuja origem remonta, de forma ininterrupta e direta, a Vajradhara, o Buddha Primordial e a Shakyamuni, o Buddha Histórico, como também ao grande Pandita e Siddha indiano Naropa.

Os “Dragões” (no tibetano Drukpa) provêm de uma tradição de yôguis cuja enfâse maior é o budismo na ação, uma “linhagem práxis” (tib. grub brgyud) como é classificada, em distinção ao foco no conhecimento intelectual, na qual, seguindo o exemplo de seus antecessores, o Despertar Completo pode ser atingido em uma só vida. Seus ensinamentos foram transmitidos pelo que é chamado “o Sussurrar do Néctar do Dharma” ou “a Linhagem do Ouvir” (tib. snyan rgyud), nome dado à corrente de ensinamentos transmitida apenas oralmente de mestre a discípulo. Nessa linhagem certas categorias de instruções eram passadas pelo que foi denominado de “Transmissão Única” (tib. chig brgyud), indicando a tradição de meditações que eram repassadas apenas para um único discípulo que, então, carregaria a completa linhagem da experiência viva, as transmissões orais e instruções de tal prática, em sua perfeição e pureza, secretamente, durante sua existência.

Diversas Linhagens de Transmissão da realização completa da experiência última de bem-aventurança suprema chegaram ao Tibete a partir da Índia. Entre elas, as autênticas transmissões desde Buddha Shakyamuni, tais como as Grandes Linhagens provindas dos realizados Siddhas Padmasambhava, Naropa, Maitripa, Virupa e do Grande Pandita Atisha, enraizaram-se no

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topo do mundo, a Terra das Neves, o Tibete.

Entre as muitas valiosas correntes de sabedoria da Tradição Buddhista Tibetana, a Linhagem Drukpa tem como fonte principal as profundas transmissões do Dharma e os revelados Termas (do tibetano “tesouros escondidos”) originadas diretamente do fundador da linhagem Tsangpa Guiáre Yêshe Dordje, junto às instruções essenciais de Marra-Mudra e dos Seis Dharmas/Yogas de Naropa – provindos de uma linhagem contínua a partir da Índia desde Tilopa, Naropa e Maitripa, transmitidos e propagados no Tibete principalmente por Marpa, Milarepa e Gampopa.

Ao longo dos séculos, grande parte dos yôguis Drukpa, praticantes realizados do Marra-Mudra (instrução originada a partir do Siddha indiano Maitripa), incorporaram à sua prática as transmissões Marra-Ati (ou Marra-Sandhi, do tibetano Dzogtchen) provindas da Índia a partir de Pra-Revajra e transmitidas no Tibete por Guru Padmasambhava, tornando-se também, detentores autênticos desta linhagem de instruções.

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3. Por onde começar? Da mesma forma que, em essência, não há professores melhores que outros, mas aqueles que são mais benéficos, e psico-fisica-e-contextualmente semelhantes, não há técnica ou método superior a outro, mas aquelas técnicas que se adequam as nossas pré-disposições e características bem como as nossas buscas e momentos contextuais de vida. Um primeiro controle de qualidade para verificar se o que as práticas espirituais que desempenhamos são benéficas é observar o que estamos a cultivar em nosso fluxo mental durante tal prática. Se estamos nos abstendo de pensamentos, fala e ações negativas já é um sinal positivo. Caso junto a isso, estamos cultivando descontração em corpo, energia e mente bem como consciência plena, bondade, compaixão, amor, alegria, equanimidade e lucidez pode ter certeza que não há nada a duvidar que sua prática está sendo positiva. Em segundo lugar, observe se esta meditação, cultivo e habituação tem trazido bons efeitos em seu dia-a-dia, se tem ajudado a lhe tornar em uma boa pessoa, se tem desenvolvido seu bom senso e humanidade. Se isto estiver presente, pode ter certeza que estas trilhando a senda da iluminação.

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4. Artigos sobre o cotidiano e o budismo O QUE É O BUDISMO? Por Lama Jigme Lhawang

Muitas pessoas têm me perguntado o que é o Budismo. Hoje eu pensei em partilhar um pouco desse meu conhecimento sobre as palavras do Buda. Quando estudamos os textos do Buda, vamos contemplando e lendo tanto as palavras que o Buda disse, os ensinamentos dele como a história da vida do Buda. Em sua história há grandes discípulos do Buda que expressaram, ou partilharam conosco não só o que o Buda passou em palavras, mas descreveram momentos em que estiveram com Buda, a compaixão, o amor que o Buda expressou para cada um que encontrava com ele, como também momentos no qual o Buda silenciosamente transmitia a presença de sua realização espiritual. Através dessas palavras, destes textos que descrevem isso, vamos recebendo esse néctar, essas bênçãos que vem através das palavras do Buda, do seu exemplo de vida, da sua compaixão com os seres, como também de sua presença espiritual. Há várias formas de entender o que é o budismo. Quando eu olho para o que caracteriza um "ismo", um bud"ismo", não é exatamente isso que o Buda ensinou. Se nós olharmos com cuidado, ele não ensinou nada que fosse

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separado da vida, de todos os elementos de nossa vida, e de nossa natureza humana, de nossa natureza de consciência. Então a vida é o Dharma do Buda, ou a verdade que o Buda falou está secretamente em todo e qualquer elemento da vida, que o Buda veio a revelar para os seus alunos, os seus discípulos. A isso ele chamou de Dharma, o Dharma do Buda, ou Buda Dharma, a verdade do desperto. Este despertar do Buda traz a contemplação de que ele acordou de um sono, o sono da ignorância, o sono da cegueira dos nossos hábitos, das nossas impressões habituais, estruturas internas de um mundo interno que nos cega para a realidade tal como é. A palavra Dharma tem muitos significados. No budismo da tradição Mahayana contemplamos o Dharma como verdade, como caminho, como resultado, como fruto do caminho, o Dharma também como energia vital, conduta, e assim por diante. Essencialmente nos textos nós encontramos essa palavra significando tanto uma realidade objetiva, os fenômenos, separados de nós, separado do mundo interno, ou seja a forma como nós concebemos e imputamos valores, significados, sentidos as coisas fora e então nos enganamos achando que estes valores são separados desse mundo interno nosso, como também a palavra Dharma significa tudo aquilo que aponta para a realidade última, para a verdade última. Nesse contexto temos essa beleza do significado do que é o Buda Dharma, do que é o budismo, onde todo o elemento da vida, tudo ao nosso redor, incluindo a nós mesmos, os seres que nós encontramos

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na vida, todos eles são Dharmas, fenômenos objetivos sentidos como separados de nós, porém por de traz de um segredo, são revelações da nossa natureza última, esse mundo interno, esse universo dinâmico e mágico. Quando percebemos o Dharma do Buda dentro dessa perspectiva interna, da inseparatividade do mundo com o seu observador, tudo pode ser transformado em caminho ou Dharma, todo e qualquer elemento da vida pode ser transformado em uma via de revelação dessa natureza. Então o Dharma do Buda é apresentado como a visão que percebe isso, ou o caminho que aponta para essa natureza. Diante da contemplação das palavras do Buda, o Buda apontou isso de diversas formas de acordo com as predisposições dos seres, com as capacidades, com as linguagens dos seres, com a cultura dos seres, como também ele passou isso em sua compaixão, em sua energia de amor, de cuidado, levando alívio ao sofrimento e ignorância dos seres, como também ele é transmitido através de sua presença, de sua realização, seu corpo da verdade, o corpo Dharmakaya do Buda, o corpo da verdade onde essa natureza última, onde encontramos o verdadeiro Buda, o verdadeiro despertar. Ele apresentou isso também em seu corpo de desfrute completo ou sambogakaya, onde ele manifesta a partir desse corpo da verdade, dessa natureza livre e ilimitada porém viva, expressa sua compaixão que toca e abençoa os seres em profundo bem estar e dessa compaixão surgem meios de acessá-los, que é o corpo nirmanakaya ou corpo de manifestação física do Buda.

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Então se quisermos entender o Dharma ou a verdade do Buda é necessário entender quem é o Buda e para onde ele está apontando. COMEÇANDO A MEDITAR, OS PRIMEIROS PASSOS Por Jetsunma Tenzin Palmo

A meditação tem três partes, e elas são fáceis e simples. Começando a meditar, primeiro passo Quer esteja sentado em uma almofada ou em uma cadeira, sente-se ereto. O importante é manter as costas retas e os pés apoiados no chão. Erga os ombros, leve-os para trás e baixe-os novamente, dessa maneira você fica em uma boa postura. Agora, apenas relaxe. Caso contrário, irá se cansar. Concentre a sua atenção do vai e vem da respiração. A respiração é um bom foco para a prática porque existe uma forte ligação entre a respiração e o nosso estado mental. Fique ciente de sua respiração conforme ela vem e vai. Com a respiração como foco, você estará presente. Você não consegue respirar no passado ou no futuro. Você só pode respirar no agora. Normalmente, não temos consciência dela, trazemos a nossa mente para o presente. Esse é um meio hábil. Você pode tomar consciência da sua respiração durante o dia a dia, a qualquer momento: dirigindo, andando, sentado no computador, mesmo enquanto estiver falando. Inspirando, expirando. E isso em si é uma meditação. Nem é necessário sentar-se ereto, mantendo uma postura formal.

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De acordo com a tradição tibetana, deve-se ser capaz de manter a mente unifocada em 21 respirações, sem se distrair. Os pensamentos não são o problema. Seguir e identificar-se com os pensamentos é o problema. Pensamentos podem ser como um rio e nós, muitas vezes, ficamos no meio desse rio, sendo jogados para cima e para baixo. Tomar consciência dos pensamentos é uma forma de sair desse rio. Quando sai da corrente do rio, você pode concentrar a sua atenção no que esta em primeiro plano: na respiração, na entrada e na saída do ar, e especialmente na expiração. Você pode contar um quando inspira, dois quando expira. Não dê nenhuma atenção aos pensamentos que estão no fundo da mente. Se, por acaso, você pular de volta no rio e for arrastado, vá para a margem e comece de novo. Um quando inspira, dois quando expira. Mantenha a mente bem relaxada, centrada, concentre-se apenas na respiração, conforme o ar entra e sai. E isso é tudo o que você tem que fazer. Agora, nada mais no mundo importa, a não ser inspirar e expirar, e saber disso. Começando a meditar, segundo passo Agora, tome esse foco de consciência que está centrado na respiração e volte-o para dentro, para os seus próprios pensamentos. Nossos pensamentos estão constantemente fluindo, a cada momento. O conteúdo do rio muda o tempo todo. Mas, agora, como estamos muito relaxados, podemos sair do rio e descansar na margem. Podemos apenas observar o rio passar sem mergulhar nele. Nessa ocasião não julgamos os nossos pensamentos. Não ficamos pensando que esse é um pensamento inteligente, ou um pensamento terrível, estúpido ou interessante – são apenas

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pensamentos. Quaisquer que sejam os pensamentos que surjam dentro de nós, quaisquer que sejam os sons que surjam fora de nós, são apenas pensamentos, apenas sons, e não são importantes. O que é importante é a qualidade conhecedora, a qualidade conhecedora que está centrada no fluxo de pensamentos. Normalmente, quando estamos pensando, nós somos os pensamentos. Mas agora recuamos e nos tornamos testemunhas dos pensamentos, observadores. Portanto, há a corrente de pensamentos e há aquele que esta ciente da corrente de pensamentos. Mantenha a mente bem relaxada, mas muito centrada, apenas observe os pensamentos conforme eles fluem e não se envolva com eles. Tente isso por cinco minutos e veja o que acontece. Seja qual for o som que você ouça, é apenas um som, e não é importante. Não siga. Seja qual for o pensamento que surja em sua mente, é apenas um pensamento. Não fique fascinado pelos pensamentos, não os siga. Continuei apenas sentado na margem. Veja se consegue realizar uma espécie de separação na mente, entre o fluxo de pensamentos e a consciência conhecedora. Começando a meditar, terceiro passo O terceiro passo é o mais fácil de todos. Simplesmente, repouse nessa consciência. Pode ser que você pense que não tem consciência de nada, mas o próprio fato de poder pensar e saber que está pensando é uma manifestação da consciência. No entanto, normalmente, não estamos conscientes de estarmos conscientes. Basta sentar-se e ter consciência de estar consciente. Não há absolutamente nada para fazer.

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Queremos estar sempre fazendo alguma coisa, e esse é o problema. Sempre pensamentos ”O que eu faço agora?”. Não há nada a fazer, não há nada em que se concentrar, não há nada, além de estar neste momento, do jeito que ele é. Tecnicamente falando, se quiser um nome oficial para esse tipo de meditação, ela é chamada de ”repousar na natureza da mente”. A maneira mais rápida de parar de sofrer é reconhecer a ausência de identificação com pensamentos e sentimentos. Normalmente, tentamos superar nossa insatisfação subjacente nos distraindo. Tentamos fortalecer nosso senso de ego, alimentando-o com o máximo de prazer possível. Nos distraímos interminavelmente para não precisarmos ver que por baixo de tudo há uma insatisfação profunda. Nos EUA por exemplo, país que tem um alto grau de prosperidade material, é notória a impressão de que praticamente todas as pessoas que podem pagar parecem ter seu próprio terapeuta ou psiquiatra particular, da mesma forma que teu seu proprio dentista ou médico. Então, esta claro que ter muito prazer e conforto não basta para encobrir o desconforto subjacente ou o que Buda chamou de dukkha. Na verdade, ”desconforto” é uma boa tradução para dukkha, que é o oposto de sukha, ou seja, ”conforto”, aquilo que é aparentemente suave e agradável. Quando reconhecemos dukkha, o desconforto, dentro de nós mesmos, passamos a reconhecer o quanto estamos doentes com os 3 venenos do desejo, ódio e confusão. A renúncia é uma questão de soltar. E a renúncia absoluta é liberar a fixação a um eu autônomo, duradouro e separado, que está no centro do universo.

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Uma das maneiras mais rápidas de obter a realização é realmente observar a mente – observar os pensamentos e ver que não somos nossos pensamentos. Existe algo por trás dos pensamentos: existe uma consciência por trás das idas e vindas dos pensamentos. E é a isso que devemos prestar mais atenção, especialmente durante a prática. Nossa mente é como um computador inteligente. Podemos programa-lo muito bem, mas essa não é a energia motriz do computador. Precisamos reconectar com a energia que está por trás do computador, e a meditação é uma maneira de nos trazer de volta a isso. A fonte de energia é imensa. Nosso computador é apenas um pequeno computador, mas essa energia é vasta e todo-abrangente. FELICIDADE GENUÍNA Por Lama Jigme Lhawang

O que é felicidade genuína? Onde encontrá-la?

Todos buscamos ser felizes. Isto é um fato. Porém, será que estamos buscando felicidade na direção que irá produzi-la? Felicidade em sânscrito é sukkha. O termo sukkha indica uma noção de bem-estar, um estado de ser, de estar, de viver e se relacionar com o mundo ao redor. Um profundo bem-estar não é algo construído, passageiro, dependente de outros fatores externos, como a sensação de felicidade que se tem ao comer uma comida saborosa, ganhar um presente ou desfrutar da presença de bons amigos.

Saberemos se estamos verdadeiramente felizes quando estivermos sós, sem nada a nos agarrar, sem nenhum objeto de suporte que ative sensações agradáveis. Simplesmente estando

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consigo, inspirando e expirando, desfrutando da presença natural de nosso ser além de qualquer artifício do ego.

Esta felicidade não é meramente uma disposição de ânimo pois nada é necessário para que encontre-se disposta a florescer. Não há nada que a bloqueie ou impulsione. É o que é, livre de todas nossas construções e projeções mentais. É chamada de o “Grande Bem-estar” ou a “Grandiosa Bem-aventurança” (maha sukha em sânscrito).

Não há como obtê-la, pois não é uma construção de nossas mentes. É um estado de ser presente por de trás do cenário do filme de nossas vidas, a natureza da própria qualidade luminosamente refletora que projeta as imagens na límpida e translúcida tela de nossa mente-coração. Esta felicidade ocorre naturalmente ao desatarmos os nós criados por nossa mente, condicionamentos, impressões de hábito, formas de perceber a nós mesmos e a realidade ao nosso redor.

Nosso ser pede por harmonia, busca por paz e contentamento. Porém, constrói as causas contrárias. De forma geral, ainda que venhamos a buscar por verdadeira felicidade, nutrimos as causas para a agitação, stress, depressão e tristeza em nossas vidas. Vivemos os medos do passado e as expectativas do futuro. Esquecemo-nos do presente e entramos em uma viagem sem fim repleta de ilusões e criações mentais dessintonizadas com o momento onde as coisas realmente estão acontecendo: agora.

Paramos alguns instantes. Respiramos profundamente. Relaxamos nosso corpo. Tranquilizamos nossa energia. Acalmamos nossa mente. Percebemos que nosso corpo

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agradece. Que nossa energia dá sinais de bem-estar. Reconhecemos que nossa mente se destensiona e levemente se abre. Vamos respirando e acalmando, desfrutando do momento presente, exatamente onde estamos, na caverna de retiro que nada mais é do que o próprio ambiente de nossas mentes. Desenvolvemos a prática espiritual que essencialmente é o nutrir bons pensamentos e o se desinteressar por tudo aquilo que não produz o que buscamos verdadeiramente – equilíbrio, tranquilidade, amor e lucidez.

Gradualmente, vamos cultivando o repouso tranquilo,

consciente, em paz – paz-cientes. Vamos reconhecendo a natureza deste momento, suas qualidades e potenciais extraordinários. Construtos do passado e do futuro não encontram suporte junto a este desfrutar natural, este florescer auto-surgido. O passado já passou. O futuro ainda está por vir. É no presente que semeamos o futuro. Este exato momento é o lugar e tempo mais importante de nossas vidas. Viver cada instante, cientes do desenrolar de nossa consciência no aqui e agora, cultivando as causas de nosso bem-estar, transformando nossa forma de olhar para o mundo e para nós mesmos, nos familiarizando com quem realmente somos é a direção de nossa felicidade verdadeira.

Isto é a essência de uma vida saudável, repleta de contentamento, apreciação a cada passo, alegria a cada instante. É estarmos florescendo a cada momento, a cada olhar, a cada sorriso, a cada escuta, a cada troca. A felicidade genuína esta muito próxima. Basta ser nutrida, reconhecida e familiarizada para que se torne uma continuidade de ser, estar, viver e fluir na vida.

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EQUILÍBRIO EMOCIONAL Por Lama Jigme Lhawang

A busca por equilíbrio na vida

A vida é repleta de desafios, com seus altos e baixos e infindáveis aprendizados. O que e quem somos surge a partir da relação que temos com o mundo e os seres ao nosso redor. Somos seres sensíveis. É exatamente por esta razão que muitas vezes sentimos a necessidade de nos proteger através de máscaras, armaduras e fugas. Porém, ser sensível não é sinônimo de desequilíbrio. Pelo contrário, a sensibilidade indica uma qualidade, um potencial que percebe não só as coisas grosseiras e superficiais da vida como também suas sutilezas. Ser sensível, dotado de sentimentos e emoções não necessariamente significa ser condicionado e desequilibrado. Pode indicar também uma qualidade sutil, reveladora de que somos seres humanos dotados de faculdades extraordinárias que possibilitam perceber e sentir a vida, os outros e a nós próprios a partir de diversos ângulos psicofísicos.

Entretanto, qual é a causa desta sensação de mal-estar, apertos no peito, pressões no estômago, tensões musculares e dores de cabeça quando nos encontramos emocionalmente perturbados?

A primeira nobre verdade que Buddha ensinou após sua iluminação é a verdade que fala da presença deste mal-estar em nossas vidas, uma constante insatisfatoriedade, descontentamento e sofrimento. Isto Buddha chamou de dukha. Dukha provém da raiz sânscrita duk que se refere a

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uma carroça com o eixo de suas rodas descentralizado, danificado. Independente da direção que dirigirmos nossa carroça, ela nunca vai para onde esperamos que ela vá. Estamos constantemente insatisfeitos. As coisas nunca funcionam exatamente do jeito que queremos.

Nossa aflição não provém do fato de perceber e sentir as coisas por si só, mas de cairmos dentro de uma experiência que parece ser sólida, que concebemos ser real. Acreditamos que aquilo que vemos lá fora é verdadeiro independente de nós, separado de nossa própria experiência. Disto somos arrastados sem controle por intensas tempestades emocionais, medos e expectativas. Esperamos não nos separar daquilo que nos traz bem-estar e temos medo de encontrar tudo aquilo que ameaça nosso equilíbrio, nossos apegos, identidades e proteções de um ego mentalmente construído, ilusório e destituído de qualquer substancialidade. Deciframos erroneamente o universo e dizemos que ele nos engana.

Quando compreendemos que as situações, pessoas e coisas não tem uma existência independente, mas que são uma experiência pessoal, podemos vir a reconhecer que tais experiências são dotadas da natureza insubstancial da mente, são nada mais do que projeções mentais. Passamos a sentir que as coisas não estão lá por si e em si, mas surgem inseparáveis de nossas próprias mentes. Magicamente, as mesmas coisas que antes nos perturbavam começam a perder força e poder de influência sobre nós. Um equilíbrio natural começa a surgir, onde os altos e baixos emocionais provindos do apego e da aversão não são mais tão intensos e frequentes.

Ao purificarmos nossa visão e experiência de mundo

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encontramos paz, uma imparcialidade nascida de uma profunda lucidez, que em tibetano se chama tang.nyon (upeksha em sânscrito). Tang neste contexto significa abandonar a percepção equivocada da realidade que produz as perturbações do apego e da aversão, e todos os desequilíbrios emocionais; nyon é o estado equânime, tranquilo, que não oscila. Essencialmente é a equanimidade surgida através do discernimento sobre a verdadeira natureza das coisas. É entender melhor a si e aos outros. É compreender profundamente o movimento natural da vida, do universo, sua natureza e operação.

Nos momentos difíceis, de perturbação e desequilíbrio dê a você o presente de uma profunda e revigorante respiração. Perceba, então, que seu corpo, sua energia e sua mente agradecem. Respire dando espaço para os sentimentos, emoções e movimentos da mente não se sentirem apertados, pressionados, suprimidos ou bloqueados. Respeite o que quer que se expresse em seu coração. Observe. Acolha. Gentilmente tente entender o que tais sentimentos estão dizendo, apontando, lhe revelando. Flua junto com a emoção em meio a este ambiente mental espaçoso, lúcido e amoroso. Transforme o próprio movimento da mente em caminho espiritual.

Desta forma, liberamos o que quer que surja em sua própria natureza, no momento de seu surgimento ou durante o desfrute de sua expressão. A familiarização, desenvolvimento e fruição desta experiência é o que chamamos em minha tradição, a Linhagem Drukpa, de Ronyom em tibetano que significa “equalização do sabor” ou Rotchik “um só sabor” onde toda e qualquer experiência não mais se difere quando saboreada em sua natureza única, livre de toda e qualquer elaboração mental.

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O equilíbrio emocional naturalmente estará presente

quando fundado em um corpo físico, energético e mental saudáveis. Cuide de seu corpo, de sua energia e de sua mente. Aprenda com eles, com sua linguagem e inteligências próprias. Faça exercícios físicos. Nutra e equilibre sua energia através de um olhar apreciativo e bondoso para com a vida e a humanidade. Resignifique e reorganize sua vida através de um profundo bom-senso nascido da reflexão e da meditação. Aprenda a usufruir das qualidades naturais de sua sensibilidade humana para desenvolver uma profunda familiarização com seu universo interior e com a verdadeira natureza de todas as coisas. A transição cíclica de nossas experiência insatisfatórias e emocionais é o que chama-se em sânscrito de samsara ou existência cíclica. Samsara não é uma condição fundamental da existência e da natureza das coisas, mas um universo mental, um jeito de ver e experienciar as coisas. APRENDENDO A MEDITAR Por Lama Jigme Lhawang

Tanta conversa, tanta informação, mas como é mesmo que eu faço?

Aspiramos por verdadeiro bem-estar. Estamos constantemente buscando por equilíbrio. Ainda que, no budismo, venhamos a descobrir e entender que a nível último as coisas não tem uma existência real, que são como um sonho, caso isto não for saboreado em nossas vidas, a instrução não terá efeito. Não nos ajudará em nada.

Buddha ensinou algo muito importante que funciona como a faculdade do paladar, que propicia o saborear das

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coisas. Um instrumento usado durante todo o trajeto de treinamento da mente –bhavana. Bhavana em sânscrito carrega o campo semântico de “cultivo”, “familiarização” ou “habituação” com algo. No ocidente este termo é frequentemente traduzido como “meditação.” Porém, o que é meditação e como aplicá-la?

Imagine uma grande cascata caindo forte de uma alta montanha. Quando tentamos olhar através da água nada vemos pois encontra-se turva e espumada. Ao passo que ela vai caindo ao chão sua força e velocidade diminuem e conseguimos ver melhor através dela. Forma-se um rio que desce entre as montanhas. Na medida que este rio estreita suas margens a velocidade e força da água aumentam. Na medida que as margens se ampliam a velocidade e força diminui. Até que, em algum momento, um grande lago se forma onde encontramos a mesma água completamente imóvel, cristalina, translúcida. Podemos ver nosso próprio reflexo sobre sua superfície como também se focarmos dentro, no fundo do lago podemos perceber o que lá se encontra. Da mesma forma, ao respirarmos, relaxamos. Nos presentearmos com mais espaço em nossos corações e mentes. Tranquilidade mental surgirá e com ela uma extraordinária clareza, inteligência, uma profunda lucidez.

Nossa mente é análoga a água neste exemplo. Quanto mais espaço temos em nosso ambiente mental menor será a força dos pensamentos, menos agitada estará nossa mente e mais conscientes estaremos de cada evento mental. Quando inicia-se na prática da meditação considera-se a mente como se fosse um macaco ou um cavalo selvagem. Uma das melhores e mais eficazes formas de domar um cavalo selvagem é acostumá-lo com um amplo redondel (um cercado para treinar cavalos).

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Gradualmente vamos diminuindo seu tamanho ao passo que o cavalo se habitua com seu novo espaço. Conforme o redondel vai diminuindo o cavalo não sente-se inseguro pois o local já é familiar, não demonstra nenhuma ameaça. Com gentileza, vamos tocando no cavalo, vamos o acostumando com nossa presença até que poderemos, então, dirigi-lo.

Sentamos em silêncio e eretos em uma cadeira, banco ou no chão. Importante lembrar que qualidade é melhor que quantidade. A qualidade de nossa meditação é muito mais benéfica do que a quantidade de tempo que desempenhamos. Podemos parar por alguns minutos, por 15, 24 minutos ou mais. Há três qualidades essenciais para se desenvolver na meditação: relaxamento, clareza e estabilidade. Relaxamos profundamente nosso corpo, nossa energia e mente. Cultivamos o equilíbrio de uma mente lúcida, porém profundamente relaxada. A continuidade surgida através desta habituação é o aspecto da estabilidade.

Um dos principais objetos de foco na meditação é a respiração. Buddha ofereceu esta instrução em diversos de seus discursos no cânone mahayana. Nesta tradição, as várias técnicas de meditação, cultivo, familiarização ou habituação podem ser sumarizadas em três qualidades principais, que em tibetano chamam-se de drenpa (Plena Atenção, smrti em sânscrito), shejin (vigilância, samprajana em sânscrito) e bag yô (prudência, apramada em sânscrito).

De forma geral, o que geralmente lemos no inglês “mindfulness” ou “atenção plena” nas traduções de textos budistas a partir da língua original tibetana é a tradução de um destes três termos. Daí, a dificuldade em diferenciar estas três qualidades mentais de importante funcionalidade no

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treinamento da mente e na meditação.

Drenpa é como um porteiro de hotel. É ele que decide quem e o que vai entrar ou não vai passar pela porta dos sentidos físicos e da mente. É não esquecer do que deve ser aceito, adotado e cultivado e do que deve ser descartado, rejeitado ou abandonado. Drenpa é definida como o aspecto da mente que funciona sustentando, retendo ou mantendo a mente a seu objeto, não deixando com que se esqueça ou se desvie de seu foco. Protege e nutre a permanência e imobilidade da mente.

Shejin é como um supervisor de um hotel que esta ciente, observa, examina e monitora as três portas (corpo, fala e mente) focalizadas pelo porteiro. Funciona como um aspecto de vigilância ou prontidão alerta no qual a mente tem conhecimento ou reconhece o que esta fazendo.

Bag yô é como o gerente de um hotel que dirige o supervisor que vigia o trabalho do porteiro. É quem gerencia as regras do hotel, dá o direcionamento e trabalha para mantê-lo na mesma direção. É uma qualidade mental de consciência, cuidado e prudência para com a porta focalizada pelo porteiro da‘plena atenção’ (drenpa) e supervisionada pelo supervisor da ‘vigilância’(shejin). A ‘prudência’ (bag yô) é uma qualidade tanto realizadora como protetora. É aquela que engaja Drenpa e Shejin em certa direção positiva e a protege de engajar-se em atitudes negativas.

Além do mais, quando aprofundamos a relação entre drenpa e shejin, o primeiro é dito ser tal como uma corda que segura, mantém ou sustenta uma ovelha em seu lugar ao passo que “Shejin” é tal como um pastor que assiste, observa e vigia suas ovelhas para garantir que elas não se soltem e fujam.

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Drenpa retém a mente em seu lugar escolhido enquanto que “Shejin” encontra-se alerta vigiando a situação para garantir que “Drenpa” esteja operando. Quando “Drenpa” enfraquece ou se distrai e a mente então vagueia, “Shejin” toma conhecimento disto e informa a mente para restabelecer ou reafirmar “Drenpa”. No contexto da meditação em silêncio focalizando a respiração, estes funcionam da seguinte forma:

Quando se dirige a atenção calmamente à respiração, surge uma familiaridade cada vez maior com os movimentos da respiração presentes. O praticante começa a se familiarizar com a própria mente através da experiência de respirar, onde as ruminações da mente já não são tão atrativas. O primeiro aspecto da qualidade de “Drenpa” se dá quando trazemos nossa mente de volta a respiração. Através da qualidade de “Shejin”, nós tomamos conhecimento deste direcionamento no momento que o fazemos. “Shejin” toma conhecimento quando o cavalo da mente sai em disparada e informa “Drenpa” para trazê-lo de volta. Quando se dirige a atenção gentilmente à respiração, surge uma familiaridade experiencial cada vez maior com os movimentos da inspiração e expiração. O praticante começa a se familiarizar com esta experiência. Este é o aspecto de “familiaridade” da atenção plena.

O segundo aspecto de “Drenpa” é ‘recordar-se’, ‘relembrar-se’. Este aspecto significa que nós estamos tão estáveis e firmes em “Drenpa” a ponto de termos constante conhecimento do que estamos e do que devemos fazer no momento presente. Recordamos constantemente de manter nossa mente a respiração. No início de nossa meditação experienciamos o movimento de nossa mente selvagem. Na medida que desenvolvemos “Drenpa”, nos familiarizando com a respiração e nos recordando de retornar a ela, aos poucos nos

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estabelecemos em um estado contínuo de não-esquecimento. Este apresenta-se, então, com mais energia para permanecer onde esta (drenpa) e para tomar conhecimento do que esta fazendo (Shejin). Esta estabilidade provê um contínuo que torna-se a fundação para o desenvolvimento de um tipo de potencialidade ou habilidade. Este é o aspecto recordatório da plena atenção.

O terceiro aspecto de “Drenpa” é exatamente este potencial, uma força que se manifesta como não-distração ou não esquecimento. Com o não esquecimento colocamos nossa mente na respiração e lá ela permanece. O continuum desta estabilidade irá se sobressair sobre qualquer possível distração ou ruminação mental. A mente opera através dos sentidos, expressa-se através de pensamentos, mas não mais é arrastada em suas próprias criações. O cavalo deixa de pular e dar coices, permanecendo tranquilo. Desta forma, experienciamos a natural qualidade imóvel e estável de nossa mente. Isso é força, o terceiro aspecto da atenção plena.

Quando, então, desenvolvemos os elementos da ‘familiaridade’, ‘recordação’ e ‘não esquecimento’, podemos dizer que plena atenção está presente. Não mais distraídos, conseguimos ver com mais clareza as coisas. Esta lucidez é capaz de perceber os fenômenos diretamente, em sua própria natureza, qualidade, potenciais e operação. Uma vez que a qualidade natural de equilíbrio e imobilidade da mente esteja presente, surge a clareza da mente. Esta lucidez discerne a realidade em perspectiva e retrospectiva, como também reconhece sua natureza básica. Este é o aspecto de lucidez da plena atenção.

O cultivo e habituação de “Drenpa”, “Shejin” e “bag yô” faz

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surgir um ambiente mental mais amplo, e na medida que damos continuidade nesta familiarização este espaço vai tornando-se cada vez maior. Plena “Drenpa” ocorre quando, ao invés de percebermos a respiração, nos tornamos a respiração. A sensação de separatividade entre nossa mente e a respiração começa a dissolver-se. Neste estágio não há mais nada a sustentar, a manter ou agarrar-se. Repousamos na naturalidade e espontaneidade pura da mente, sua verdadeira natureza. Permanecemos em um retiro interior espaçoso, livre e incrivelmente repleto de potenciais desimpedidos.

Aqui, tal como transmitida na tradição Mahamudra da Linhagem Drukpa, nada há mais para apreender mas para se revelar por si só. Bhavana torna-se abhavana, ou seja, meditar tornar-se não-meditar. Ou, como o grande siddha indiano Maitripa propôs, que a verdadeira meditação é aquela dotada de asmrti, ou seja, a não atenção plena, o próprio descanso revitalizador e auto-conhecedor de sua própria natureza. Surge um grande lago translúcido onde qualquer onda que manifeste-se em sua superfície não mais perturba seu interior mas adorna sua capacidade de expressão.

AMOR E LUCIDEZ NOS RELACIONAMENTOS Por Lama Jigme Lhawang

Seria possível tornar um relacionamento amoroso caminho espiritual?

Cada ser humano concebe sua existência através de uma cadeia inter-dependente de relações com outros seres. Somos quem somos por um processo de relação com nossos pais, filhos, parentes, amigos, colegas de trabalho e assim por diante. Somos seres de relação. A visão de Buddha nomeada Pratitya Samutpada traz a noção literal de “originação através de uma

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relação co-dependente.” O conceito de eu sou parece estar separado dos outros, porém, quando investigado se revela exatamente como Buddha percebeu – um processo de co-dependência e relação contextual aromatizada por pré-disposições mentais.

Nossa vida é uma reprodução ‘cinematográfica’ de um drama, romance, suspense, comédia e ação, surgida a partir dos mais variados e inacreditáveis processos de relações conscientes e inconscientes. Entre as relações mais favoráveis para uma oportunidade de rápida transformação interior estão os relacionamentos amorosos ou em família. Todos buscamos ser felizes. Portanto, vamos também em busca de felicidade ao iniciar um relacionamento. Porém, nossa felicidade nas relações amorosas encontra-se na maioria dos casos basicamente na dependência de sensações de prazer e desprazer. Com frequência dizemos ‘eu te amo, independente do que aconteça, irei te amar para sempre.’ Contudo, inexplicavelmente, nossa condição amorosa muda quando nosso parceiro(a) deixa de produzir as mesmas sensações prazeirosas (cognitivas e físicas) em nosso ser. Já perceberam isso? Dizemos ‘eu te amo’ mas o fato é que amamos a nós mesmos, amamos as sensações produzidas pelo outro em nosso psicofísico. Não importa se o outro esta feliz ou não e se há uma razão para ele estar agindo de determinada forma. Eu deixo de amá-lo porque ele deixou de me fazer feliz. Tudo bem, acontece,

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é natural, buscamos por felicidade individual também. Porém, isso ainda não é verdadeiro amor. O amor pleno, todo abrangente, ama genuinamente o outro e a si próprio simultâneamente. Nosso coração, sentimentos e pensamentos são dirigidos e modulados por energias de hábito, impressões mentais que controlam nossa vida – Eu gosto quando você me trata assim. Não gosto quando você age de tal forma. Nosso bem-estar é dirigido por estes registros internos, modulados por pré-concepções auto-centradas, tendências egoístas que são cegas para o outro e percebem somente sensações boas ou ruins. Chega a ser vergonhoso constatar nosso auto-centramento. Estamos grande parte de nosso tempo idolatrando a si próprios, sendo escravos de nossas sensações e conceitos. Entretanto, há um segredo aí. O auto-centramento revela uma capacidade de conhecer, nutrir e proteger um bem-estar quando posicionado a partir de um referencial que percebe as coisas de forma mais lúcida, sensata, coerente. Descobrimos que nosso corpo, energia e pensamentos são dirigidos a partir de um ângulo ou referencial interno. Podemos ampliar nosso referencial e nos encontrarmos naturalmente mais próximos dos princípios de como realmente a vida, incluindo o universo externo como também o interno, são regidos. Verdadeira felicidade nas relações será possível se operarmos a partir de um software interno mais amplo, um universo cognitivo que vai além de uma visão auto-centrada e estreita. Seremos mais felizes com nosso companheiro(a) na medida que desenvolvermos mais e mais liberdade frente a estas

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modulações habituais que dirigem nossa energia e formos capazes de olhar a vida a partir de uma perspectiva mais inclusiva, que abrange os pensamentos e sentimentos do outro. Dizemos: “Ok, entendo. Faz sentido. Mas e aí, como faço?” O truque é o amor genuíno, a bondade amorosa, maitri em sânscrito. O Amor vê, percebe, discerne. É sensível, acolhedor, despreocupado com resultados. É paciente, gentil e aberto. Se nossa atitude estiver fundada no amor genuíno, cada instante de nossa vida será pleno, consciente, desconstraído e apreciativo. Quando reconhecemos o outro como parte de quem somos, como elemento atuante na construção deste personagem surgido através de relações contextuais, reconheceremos que nosso bem-estar e felicidade esta diretamente dependente do bem-estar e felicidade de nosso companheiro (a) como também de todos os outros com quem nos relacionamos, direta ou indiretamente. Nosso problema, muitas vezes, é o querer estar sob controle. Cegos perante a verdade de que o bem-estar genuíno surge da simplicidade, da abertura e curiosidade inteligente diante o movimento natural do universo e dos seres, nos encontramos constantemente insatisfeitos, movidos por medos, dúvidas e expectativas. Imperceptíveis aos pensamentos e sentimentos do outro, também sofremos. Nos sentimos inseguros por não ter controle sobre esses elementos. Verdadeiro amor é transcendente, amplo, leve, aberto e incondicional. Nos direciona a ir além da obdiência a impulsos auto-centrados. Eu olho para o outro não com as lentes que buscam nele uma fonte de felicidade mas com a perceção mais ampla que o inclui, que compreende igualmente sua busca por bem-estar.

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Como budistas reconhecemos que uma independência verdadeira frente a nossos automatismos cognitivos e emocionais só irá aflorar quando desenvolvermos um conhecimento profundo sobre a operação e natureza de nossa mente. Estamos aqui para aprender e amadurecer. O objetivo do caminho espiritual é nos tornar verdadeiramente adultos. Este conhecimento de nosso universo interior e a gradual segurança que surge a partir de nossa familiarização com ele faz brotar um destemor saudável, lúcido e aberto. Não teremos mais medo de errar nem nos moveremos por expectativas de acertar. Estamos simples e honestamente abertos a viver, experimentar, conhecer e aprender com o coração livre e leve. Amor genuíno pode aflorar e se desenvolver de várias maneiras. Uma forma é desenvolvida quando baseamos nosso amor através da percepção da impermanência e transitoriedade de todas as coisas – o movimento natural da vida e do viver. Disto surge uma disposição apreciativa de si, do outro, do momento presente, das condições e causas favoráveis. Surge energia e interesse em aprender a cada instante. Interesse em aproveitar o máximo cada acontecimento, cada situação, cada olhar, toque e palavra. Nossa natureza é dotada da capacidade de experimentar o mundo, de conhecer, compreender, apreciar e se apaixonar. O amor compreende o outro. Esta ligado ao que temos a oferecer e não ao que temos a ganhar. É dito que ao conhecer e se desenvolver maestria dos potenciais naturais de nossa mente passamos a ter muito mais a oferecer aos outros e ao mundo. Há riqueza em um relacionamento que surge quando há confiança e regozijo nas coisas boas que se tem a compartilhar.

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Verdadeiro amor nos concede o potencial e interesse de explorarmos as qualidades e potenciais de nosso parceiro(a), mesmo que este potencial revele suas partes mais vulneráveis. Como o amor não é condicional, esta livre do interesse próprio e inclue o mundo do outro, as partes vulneráveis se tornam caminho de transformação, de aprendizado e evolução mútua. Esse olhar magnetiza nosso companheiro(a), atrai positivamente, guia e conduz. Nos direciona ao verdadeiro amor, a relações mais duradouras, estáveis e genuínas. A bondade amorosa nos capacita a acolher carinhosamente nosso amado (a), a nutrí-lo oferecendo suporte para seu desenvolvimento, a magnetizá-lo e guiá-lo a direções positivas, a protegê-lo e orientá-lo e a partilhar da verdade das coisas e estar aberto a ouvir também sua verdade. O amor traz consigo o desejo sincero e incondicional que se tem pelo bem-estar do outro, livre de interesses auto-centrados. Passamos a não mais fugir baseados em nossos gostos e não-gostos, mas a ter uma atitude espiritualmente madura que entende as causas e condições que modulam nossos sentimentos como também do nosso parceiro(a). Nos posicionamos lúcidos e hábeis a transformar nossas relações através deste discernimento e da liberdade que surge dele. Estamos mais sensíveis e percetíveis as causas que produzem bem-estar e as condições que geram mal-estar. Quando um relacionamento é baseado nisto surge confiança e abertura. A raiva, o ciúmes, carências e decepções diversas não encontram espaço e suporte, ou seja, condições para surgirem. Cada ato, cada olhar, cada palavra, encontra-se impregnada de amor e compreensão. Para o surgimento disto é necessário abdicar de idéias fixas sobre o outro, sobre si e sobre a realidade

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circundante. É necessário espaço, respiração e flexibilidade mental. É preciso cultivar abertura, aceitação e empatia no coração. Nos relacionamento encontraremos o potencial de ampliar nossas qualidades e potenciais humanos. Será revelado a nós nossos bloqueios e resistências que se apresentarão como oportunidades mágicas de transcendência e evolução. Surge uma base mágica e propícia para realizarmos a natureza e operação de nossas mentes como também expandir seus potenciais e qualidades naturais. É importante desenvolvermos a inteligência de nos afastar um pouco quando um relacionamento se mostre, depois de muitas e longas tentativas, insalubre. Porém, é necessário discernir também nossa incapacidade naquele momento de magnetizar e dirigir a relação numa direção positiva, de semear as causas e condições que gerariam um bom relacionamento. Há momentos que nos encontraremos destituídos de habilidades e estabilidade interna para reverter uma determinada situação e, portanto, melhor nos afastarmos um pouco para retomar nosso eixo, nosso equilíbrio e bom senso. Haverão outros momentos que estaremos preenchidos de amor e de uma motivação de transformar o que se apresentar em caminho espiritual. Pegaremos na mão de nosso parceiro e seremos sinceros: “Esta situação foi surgindo e não percebemos. Me ajude a descobrir os elementos que levaram a isso e a explorar alternativas que possam modificá-la.” Juntos, com amor, paciência, motivação e discernimento os obstáculos se tornarão em caminho de transformação.

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Em outros estágios nos encontraremos vivendo oportunidades mais raras onde a própria situação de desconforto se manifestará como um espelho da mente e de seus potenciais, de sua capacidade de se colocar em referênciais estreitos e de se expandir em direção a perspectivas muito amplas que inexplicavelmente se cegam a detalhes importantes. Reconheceremos com humildade e certeza que nada é fixo, sólido e que a mente é flexível, luminosa e incrivelmente criativa. Saberemos que nossa natureza é bondosa, desobstruída e realizadora. Que há uma dança natural onde a presença da carência desperta o cuidado. Onde a presença do desejo desperta o poder natural de preenchê-lo e realizá-lo. Onde a manifestação da raiva pede por espaço, por acolhimento e escuta. A causalidade que opera em nossas relações passa a ser apreciada em sua beleza, leveza e potencial, como uma dança espontâneamente mágica. E que nos tornaremos senhores desta dança na medida que dançarmos conforme a música do fluir natural e real da vida. COMO ESTUDAR O DHARMA Por Lama Jigme Lhawang

Quais o elementos principais para se fazer prática?

Nos últimos tempos, tenho recebido com mais frequência pedido de ajuda para formar grupos de estudo do Dharma em nossa comunidade budista. Casou que um querido amigo fez uma pergunta neste sentido porém dentro de um contexto de estudo individual, em casa, de livros do Dharma. Perguntou como poderia aproveitar mais o tempo de estudo e leitura como também se havia alguma sugestão quanto ao que fazer antes, durante e após a leitura e estudo de um livro do Dharma e eu

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fui respondendo a ele via facebook. Imediatamente me dei conta que muitas pessoas tem gosto pela leitura e muitos tem interesse em não só ler mas de desenvolver um estudo mais aprofundado do Dharma. E, por quê não em casa, num parque ou em algum outro lugar tranquilo de nossa escolha? O texto aqui presente, levemente editado, surgiu desta partilha.

Motivação Para desenvolvermos qualquer atividade na vida, precisamos de um motor que nos impulsiona a ir em determinada direção, a agir, a desenvolver algo. Esse motor é chamado em minha tradição espiritual de “motivação”, “samuttana” em sânscrito ou “Kunlong” em tibetano. De acordo com sua definição em língua tibetana é aquilo que induz algo a ser feito a partir de uma intenção ou perspectiva mental virtuosa. Nos himalaias da Índia e Nepal onde vivi por mais de dez anos era evidente a expressão deste elemento da motivação no dia-a-dia dos tibetanos. Antes do nascer do sol ambos laicos e religiosos acordam e a primeira coisa que desempenham é o seu cultivo espiritual diário, relembrando do Buddha, do Dharma e da Sangha – os Três Tesouros do Budismo -, tomando refúgio e gerando a mente do despertar (bodhichitta) que aspira a iluminação junto a todos os seres. Isso continua durante o dia, antes das refeições, ao começar o trabalho, ao iniciar qualquer novo empreendimento, e antes do sono da noite, relembra-se novamente das três jóias. Qual seria a funcionalidade disto para nós ocidentais, simpatizantes ou praticantes budistas?

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Precisamos todos de inspiração em nossas vidas. Quando olhamos um sorriso gostoso de uma criança, nos inspiramos a sorrir juntos. Quando vemos uma sincera bondade vinda de alguém nos inspiramos também a ser bondosos. Quando recordamos do Buddha, não como uma imagem, uma foto, mas como um ser humano como nós, que trilhou um caminho, deixou seu exemplo, ensinamentos (Dharma), instruções que continuam vivas no coração de sua comunidade (Sangha), surge inspiração em nosso coração, uma sensação de que nós também, igual ao Buddha e todos os outros que vieram depois dele, podemos também desenvolver estas qualidades internas e fazer aflorar plenamente os potenciais naturais de nossa mente. Há técnicas específicas dentro da tradição budista para desenvolver profundamente este elemento da motivação. Em minha tradição, recitamos o Sutra da Recordação das Três Jóias (em sânscrito Arya Triratna Anu Smriti Sutra) e também a oração de Refúgio e da Geração da Intenção Bodhitchita. Dependendo da linhagem do budismo dos himalaias, também pode-se recitar preces que invocam determinados mestres considerados como seres iluminados nesta tradição. Um deles é Guru Padmasambhava. De forma geral, quando invocamos Guru Rinpoche (outra forma de endereça-lo) o fazemos através da Prece de Sete Linhas. Recordando o Buddha, do Dharma e a Sangha O que estamos cultivando em nossas mentes ao recordar das Três Jóias ou invocar Guru Padmasambhava? Como faze-lo para que realmente tenha efeito? Quando recordar do Buddha ou de Guru Padmasambhava imagine eles como sendo expressões vivas da natureza

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co-dependente universal onde tudo está conectado. Eles são esta natureza viva tomando forma na exata medida da necessidade e aspirações dos seres. Quando os invocamos, eles surgem como esta energia de amor primordial inseparável de nossa própria mente e cumprindo sua promessa de nos olhar, cuidar e amar como seus próprios filhos. Eles nos fitam com um olhar compassivo, amoroso e lúcido. Há um sentimento nesta relação que nós estabelecemos com eles, sentimos a presença deles e vemos a lucidez e amor claramente em seus olhares. Sinta-se próximo ao Buddha ou Guru Rinpoche, sentindo-se verdadeiramente como seu filho espiritual. Sinta sua presença e energia, se entregue a este mestre espiritual que é em essência sua própria natureza luminosa e ilimitadamente acolhedora. Abra seu coração, invoque ele com confiança e entrega, e desfrute de suas bênçãos. Lembre do Milagre de seus ensinamentos estarem presentes hoje, estarem disponíveis a você. Se não fosse estes ensinamentos, como estaríamos em contato com esta profunda visão e experiência? Recorde-se com alegria e agradecimento pelo Buddha ter apontando em palavras sua experiência (Dharma) e por aqueles que preservaram estas palavras vivas até hoje (Sangha). Refúgio e Boditchita Tome refúgio nas três jóias como seus guias, a direção que você aspira andar, trilhar e realizar. Ao tomar refúgio você não é mais um ser comum, com uma aspiração do mundo. Sua direção não é mais mundana. Seus olhos se abrem para a verdade e seu coração para as bençãos de

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uma linhagem ininterrupta de milhares de anos. Deste coração, você lembra dos ilimitados seres ao seu redor, começando por sua companheira e por seu filho, por sua família e amigos, e extendendo a desconhecidos e pessoas que você não sintoniza até abranger todos os seres nas dez direções. Aspire que eles estejam livres do sofrimento e de suas causas e que encontrem felicidade genuína e suas causas e que nunca se separem disso, permanecendo em completo equilíbrio e equanimidade. Este é um aspect essencial da tomada de refúgio e Bodhitchita. Nobre Silêncio Após recordar das Três Jóias e tomar refúgio nelas como sua direção de acessar o solo da Grande Iluminação para o benefício de todos os seres, repouse na energia, luminosidade e tranquilidade espaçosa deste refúgio e intenção. Em silêncio, simplesmente se entregue a esta energia, sem alterá-la, sem dirigí-la. Solte, relaxe e desfrute deste momento presente. Em meio ao silêncio, observe as qualidades e potenciais naturais de sua mente, sem criá-los, mas reconhecendo o reflexo destas qualidades no próprio movimento da mente através dos sentidos físicos e dos eventos mentais. Perceba este movimento ocorrendo dentro de um espaço mental, livre, desobstruído, luminoso, criativo e naturalmente expansivo. Este espaço luminoso é sua verdadeira natureza. Vá no seu próprio ritmo, sem pretensões ou buscas. Não há nada a ser realizado ou atingido. Esta natureza já é, sua presença faz parte de nosso ser, porém tem passado desapercebido pela nossa cegueira cognitive, nossos condicionamentos e marcas de hábito.

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Inspirando e expirando, pacientemente (em paz e cientes), vamos soltando, vamos relaxando, aprendendo a sentir o espaço tranquilo onde toda a experiência se manifesta. Gradualmente, vamos nos familiarizando com isso dentro do nosso próprio tempo, respeitando nosso momento e capacidades. Nosso prática é a gentileza, a compreensão e a bondade amorosa para com nossa mente, energia e corpo. É isso que estamos cultivando em nossos corações. O melhor tempo de meditação é aquele tempo que conseguimos desenvolver qualidade em nossa prática, não impaciência, perturbação e sofrimento. Devemos nutrir coisas boas no momento de nossa prática espiritual, sem forçar nada, respeitando nosso corpo, sendo gentil com nossa energia e carinhoso com nossa mente. Inicie seu estudo, sem pressa, degustando cada palavra, cada frase, cada exemplo, cada insight. Os Três Treinamentos No texto Mahayana o Sutra dos Três Treinamentos (shikshah traya nama sutra em sânscrito) o Buddha descreve três treinamentos que abrangem todas as suas instruções – O Treinamento em disciplina ética (shila), o Treinamento em estabilidade meditativa (Samadhi) e o Treinamento em Discernimento (prajna). Não importa o que desejamos desenvolver em nossas vidas precisamos nos empenhar emu ma direção clara, ter interesse constante e jubiloso naquilo que aspiramos realizar. Naturalmente, ao escolher uma direção e começar a trilhá-la, abondamos outras direções e distrações. Não possível caminhar em dois caminhos diferentes ao mesmo tempo. Ao mesmo tempo, temos que trilhar nossos caminhos

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respeitando todos aqueles que encontramos em nosso trajeto. Caso assim fizermos, não só não iremos ser obstaculizados durante a caminhada mas apoiados pelos aliados e amigos espirituais que fazemos durante o trajeto. Isso é um aspecto essencial da disciplina ética. Temos paz a cada passo, a cada respiração, a cada instante de consciência e intenção, o fruto de nossa Shila ou disciplina ética. A partir desta paz de espírito e equilíbrio mental e emocional nossa meditação irá se desenvover proporcionando com que possamos olhar com mais e mais lucidez, paciência e espaço para nossa vida e o universo que nos circunda. Ao nos familiarizarmos com estes estados positivos de mente, gradualmente estarão presentes dentro de uma continuidade em nosso ser. Isso é um aspecto essencial do Samadhi ou a profunda e precisa estabilidade meditativa. Já o discernimento, de acordo com este sutra, surge através de três fatores – o discernimento surgido do pensar, o discernimento surgido do refletir e o discernimento surgido do familiarizar-se ou meditar. Entendendo as palavras e seu contexto através do pensar. Trazendo o sabor delas através do refletir como elas se encaixam e fazem sentido em nossa própria vida, em nosso dia-a-dia. O cultivar deste sabor surgido da reflexão é o meditar, é o que leva a estabilizar a continuidade desta experiência, o samadhi. Deste sabor, surge consciênica, discernimento, lucidez, a sabedoriao, o prajna (discernimento) surgido do pensar, refletir e familiarizer-se. Concluímos nosso estudo e fazemos a

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dedicação de méritos, para que toda e qualquer virtude gerada através da disciplina ética, meditação e sabedoria se expanda e toque a todos os seres, tal como uma gota de água que nunca secará quando retorna ao vasto oceano. Um exemplo de decicação de méritos simples de nossa tradição dos himalaias é uma escrita pelo grande mestre indiano Atisha. Dedicação de méritos Há vários tipos de dedicações escritos por diferentes mestres de diferentes tradições do budismo. Caso não tenha a sua pessoal, pode-se fazer a seguinte de nossa tradição “Dedicação de Méritos.” A ESSÊNCIA DE SER E ESTAR Por Lama Jigme Lhawang

Qual é a essência do budismo? Qual benefício temporário e mais duradouro trará em minha vida? Qual benefício tal prática pode oferecer ao mundo?

Lembro de meus primeiros contatos com o budismo em 1995, nos meus 14 anos de idade. Recordo de estar buscando paz e um próposito mais significativo para minha vida. No primeiro contato, gostei muito da energia das pessoas que se encontravam na meditação. Também fui tocado pela tranquilidade, pelo silêncio e pela energia transmitida através de preces e mantras. Quando ouvi pela primeira vez a visão budista sobre a vida, sobre a operação e natureza da mente indissociável de como eu concebia e experienciava minha existência, meu coração se abriu pela clareza, lógica e praticidade daquela visão. Fui inspirado a sentir que era

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possível transformar minha experiência condicionada e viver uma vida melhor, mais saudável, significativa e tranquila. Porém, até hoje, depois de muitos anos estudando e contemplando o budismo, uma das reflexões que mais me chama a atenção é o que de fato ele tem a oferecer para melhorar minha vida e a de outros de forma eficaz, inteligente, verdadeira, de acordo com o meu contexto de vida, com minha caminhada e dificuldades como brasileiro como também a jornada e limitações de outros brasileiros que também buscam uma alternativa diferente do modelo de vida vigente. Até hoje venho tentando ajustar e adaptar as técnicas milenares do budismo ao meu contexto, a minha capacidade de entender e a cada experimento testando e observando os efeitos imediatos e graduais de tal cultivo, habituação e familiarização surgida através da aplicação de tais métodos. Ao ler um pouco do que sabemos sobre a história de Siddharta, o Buddha Shakyamuni, que viveu em torno de 2500-2600 anos atrás, me parece que seu propósito de vida nunca estava separado dos seres ao seu redor, sempre presente, pronto para ajudar quem pedia sua ajuda, buscando tentar aliviar o mal-estar psicofísico daqueles que encontrava em seu caminho. No caminho dos Bodhisatvas, encontramos diversas histórias de yôguis de realização espiritual tomados por compaixão e amor pelos seres aspirando servir de qualquer ajuda as pessoas em necessidade. No capítulo 3 da ‘Introdução a Ação do Bodisatva’ de Shantideva, ele diz: “Possa eu ser um guarda-costas para aqueles que precisam de um, possa eu ser um guia para aqueles que viajam em uma estrada, possa eu ser um barco, uma jangada ou uma ponte para todos aqueles que desejam cruzar as águas.”

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Me parece que o budismo traz uma essência que não é dountrinária, que também não aspira produzir conclusões sobre as coisas para que outros tenham que aceitar e concordar. Essencialmente o Buddha viu que todos os seres estavam sujeitos ao nascimento, velhice, doença e morte, em seus vários níveis físicos e psiquicos, e o grande mal-estar que trazia esta existência condicionada as pessoas. Ele desejou pacificar isso em sua própria vida e na vida dos outros seres, iniciando pelo seu filho, sua esposa, seus pais, amigos e seu reino. Decidiu encontrar a solução para estas questões que fazem parte da vida de todos os seres. No decorrer de sua busca foi observando a operação e natureza de sua mente. Encontrando os elementos internos que coloriam a vida gerando mal-estar ou bem-estar. Gradualmente foi descobrindo a raiz de todos os problemas fundada num equívoco de ver as coisas não como elas realmente são, mas através das lentes habituais que nos fazem conceber uma determinada realidade circundante e perceber um sujeito que experiencia tal realidade também de um jeito específico. Percebi, ao longo de meus estudos e contemplações que a teoria sobre a visão e caminho proposto por Buddha, apesar de trazer bençãos que abrem nosso coração a outras perspectivas, muitas vezes não foi capaz por si só de transformar minha mente, de sanar o problema desde sua raíz. Fui tentando buscar alternativas em métodos mais básicos, principalmente técnicas que diziam respeito ao trabalho com emoções e motivações e ao desenvolvimento de amor, compaixão, paciência, abertura, flexibilidade, compreensão e atenção. Percebi que apesar da importância que havia em direcionar estas qualidades aos

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outros seres, eu também deveria ser incluído dentro do grupo daqueles que precisavam receber atenção, cuidado, amor, compaixão, que desejava ser compreendido e de ter um espaço paciente que acolhesse meu próprio desenvolvimento gradual. S.S. Gyalwang Drukpa, meu mestre, durante muito tempo, enfatizava dizendo em tibetano “Dangpo Randon Drub Na Jendon Drub Gui Rê” que significa “Se primeiro atinge-se o benefício para si então se realizará o benefício dos outros.” Num primeiro momento esta instrução me pareceu um tanto auto-centrada, egoísta. Porém, com o tempo, descobri que não existe um eu separado de um contexto de relações que incluem todos os seres e o universo inteiro, a tal da originação co-dependente que o budismo diz ser a essência de seu ensinamento. Também, que sem compreender a mim mesmo, sem ter paciência com meu desenvolvimento, limitações e dificuldades, não haverá espaço para expandir isso ao universo. Sem amar, ter compaixão, flexibilidade e abertura para trabalhar sem medo minhas próprias dificuldades internas, desequílibrios emocionais, instabilidade mental e incompreensões cognitivas, seria difícil para mim desenvolver o mesmo na direção dos seres ao meu redor. Lembrei de um ensinamento que se conta sobre a história da vida do Buddha onde um professor ensinava seu aluno a tocar um instrumento de música. O mestre dizia: se você apertar de mais a corda ela arrebentará. Se você deixá-la muito frouxa não sairá som algum. Imediatamente pensei: qual o som que busco ouvir? Ah, gostaria muito de ouvir o som da iluminação soar de dentro do meu coração. O som da compreensão, do amor e da plenitude de ser e estar. Porém, percebi que diferentes mestres e praticantes desde Buddha até hoje demonstraram diferentes trajetos de vida e prática no caminho do Dharma. Me perguntei,

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então, qual seria a minha forma de praticar o Dharma para realizá-lo verdadeiramente. Fui percebendo que eu era um instrumento musical com suas especifidades, com sua própria afinação, diferente da do Buddha, de seus discípulos e dos muitos praticantes que se realizaram nos séculos que se passaram até hoje. Entendi que precisava encontrar minha própria afinação de acordo com as característica de meu instrumento. Que o ponto central não era o método ou forma de afinação proposta, mas o som da experiência do Dharma ecoando e vibrando em cada partícula de meu ser e, então, emanando naturalmente em direção ao universo inteiro. Portanto, o que é o budismo (ou melhor o Caminho do Despertar)? Qual é a sua essência? Ainda estou em processo de descoberta. Porém, uma coisa tenho certeza: estará de acordo com o objetivo do Dharma do Buddha aquele método que for capaz de soar a compreensão, o amor e o bem-estar genuínos. Que for capaz de fazer vibrar, em última instância, a verdadeira abertura, descontração, flexibilidade, paz e plenitude – a essência de ser e estar plenos, de ser e estar genuinamente acordado, desperto do sono da ignorância. PRÁTICA INCORPORADA À VIDA COTIDIANA Por Lama Jigme Lhawang

A integração da prática espiritual na vida traz consigo vários elementos. Porém, o cerne é a tomada de consciência. Por exemplo, uma das instruções principais, talvez a mais essencial, na prática de meditação é estar consciente, ciente do que se está fazendo. A definição da mente na literatura abhidarma

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mahayana é "aquilo que é dotado de uma natureza lúcida e ciente" (gsal bzhin rig pa, em tibetano). Porém, ainda que em toda e qualquer atividade há a presença natural destas qualidades, as usufruirmos de forma limitada devido a velocidade acelerada da mente. Não nos encontramos cientes de forma plena pelo simples fato de que estamos unifocados em alta velocidade somente em uma direção, fazendo com que toda a paisagem e arredores que passamos em alta velocidade são perdidos, não são percebidos. Desacelerar esta velocidade proporciona que naturalmente, sem esforço, venhamos a nos tornar mais conscientes, mais plenamente cientes de nosso entorno e dos elementos que nele se encontram. Iremos usar as qualidades naturais sempre presentes da mente que sempre tivemos porém de uma forma mais plena, serena, lúcida: paz-ciente. Penso que essa é uma das chaves que encontramos no Dharma destes grandes cientistas e observadores da mente.

OS 4 SELOS DO DHARMA Por Lama Jigme Lhawang

O que são os 4 selos do dharma e suas traduções e seus significados?

Os Quatro Selos, ou em sua forma completa "Os Quatro Selos que Simbolizam a Visão do Dharma" (chos lta ba bka' rtags kyi phyag rgya bzhi, em tibetano) demonstram, de forma completa bem como criam os critérios para um controle de qualidade do que é e do que não é uma orientação e visão que esteja de acordo com a intenção do Buda, neste caso, Buddha Shakyamuni, Siddharta Gautama, o Buddha histórico de nossa era.

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Eles são: 1. Todos os compostos (skt: saṅ khāra) são impermanentes (skt:anitya). Em tibetano 'dus byas thams cad mi rtag pa.

Essencialmente, é um ensinamento que nos diz que nada (tudo aquilo que é composto, co-dependente com outras coisas) tem solidez imutável, que na condição de ser um composto de muitas partes co-dependentes e inter-relacionadas, sua existência é frágil e sua permanência suscetível ao movimento de todas as relações que compõe sua existência e, portanto, é transitório. As coisas tem seu próprio movimento inter-dependente e porque tentamos controlá-las e fazer com que se movam de acordo como queremos, sofremos, pois, pois não é de nossa capacidade possuir aquilo que por natureza não tem dono, de controlar, aquilo que por natureza se move. 2. Todas as recaídas (skt: sāsrava) são insatisfatórias (skt: dukkha). Em tibetano zag bcas thams cad sdug bsngal ba.

Essencialmente, este selo nos diz que sempre que perdermos a visão livre, lúcida, que percebe as coisas consciente de sua natureza co-emergente com a mente primordial do observador, aquele que experiência, estaremos insatisfeitos, encontraremos mal-estar e desconforto, dukkha em sânscrito. O termo "recaída" para o sânscrito 'sāsrava' ou o tibetano 'zag tchê', é uma tradução minha que ainda não vi em outra língua. As traduções mais comuns para este termo são "contaminações", "máculas", "condicionamentos", "perturbações", "emoções" etc. Porém, ao ir fundo na literatura clássica em língua tibetana, percebi que as traduções acima são, na verdade, "efeitos" ou "resultados" da perda da visão, da

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lucidez, da experiência primordial co-emergente. O termo tibetano "zag", significa literalmente 'cair', 'caída'. Levando em conta uma perda de visão ou um desvio de nosso estado natural, saudável, primordial, lembrei de um termo bem comum em língua portuguesa que é "recaída", ou até mesmo "caída". "Eu tive uma recaída, voltei a fumar." "Caí de novo, vou levantar e continuar a caminhada." Recaídas nunca são satisfatórias pois a própria palavra indica a caída de um estado satisfatório, saudável, equilibrado para um estado insatisfatório, insalubre, desequilibrado. O termo me pareceu perfeito e indica exatamente o que o sânscrito e tibetano querem dizer. Conversando com alguns tradutores do tibetano para a língua inglesa, tentei descrever e traduzir para eles o que queremos dizer em português com "recaída", mas parece que no contexto em língua inglesa não tem o mesmo sentimento que no português, o sino não soa exatamente da mesma forma. Em português, é uma tradução literal bem como exata do significado.

Sempre que nos encontramos inconscientes da verdadeira natureza de nossa experiência e nos encontrarmos cegos quanto a isto, recaímos (sāsrava) de nosso estado natural para um estado condicionado, ilusório. E, uma vez que, a partir deste estado condicionado, o movimento natural das coisas não se apresentará em concordância com nossas projeções errôneas e ilusórias, estaremos interminavelmente insatisfeitos, vivendo um mal-estar e desconforto constante (dukkha). 3. Todos os fenômenos (skt: dharma) são destituídos de um ser 'per se' (skt: anatman). Em tibetano chos thams cad bdag med pa

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Essencialmente, este selo revela nossa liberdade natural e nossa potencial de criação luminosa naturalmente livre, desobstruída, expansiva. Que nada tem uma identidade fixa (atman), uma individualidade sólida (atman), uma essência independente imutável (atman). Ou seja, que nada pode ser aprisionado pelas nossas fixações, rotulações e projeções ilusórias. 4. A Transcendência que cessa a perturbação mental (skt. nirvana) é a paz (skt: śhānti). Em tibetano nya ngen las 'das pa zhi ba

Essencialmente, transcender a própria fixação delusória causadora de mal-estar, ir além da estreiteza da mente dual conceitualizadora que gera desequilíbrios emocionais e se fixa em projeções irreais. Esta transcendência proporciona o cessar de toda e qualquer perturbação mental (Nya ngan, em tibetano) e, portanto, encontra e se torna ciente da paz genuína, estável, contínua e incondicional, a qualidade do estado de nirvana, presente em nosso estado natural, primordial. CONFLITOS NA FAMÍLIA Por Lama Jigme Lhawang

Pergunta: Eu vivo bem, mas tenho muitos problemas familiares. Sempre surge algo que atrapalha. Quando estou começando a me erguer de um problema familiar vem outro, e outro, e outro em seguida. Como devo proceder? Resposta:

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Sempre me vem em mente quando escuto sobre contextos parecidos uma frase de uma de minhas mestras no budismo que diz que precisamos aprender a nos sentir seguros com a insegurança ou em meio a insegurança. Não devemos desenvolver expectativas que em algum momento os problemas irão acabar ou que haverão menos situações desconfortáveis ou desafiadoras. A questão central no budismo é desenvolvermos a habilidade de não dar tanto peso as mesmas, aprender a lidar de uma forma mais leve, com mais espaço de compreensão, mais espaço para as coisas poderem se manifestar mas também espaço para irem embora quando seu tempo chegar. Este espaço de compreensão respira, compreende, ilumina e ama, cuida, atende bondosamente. Gradualmente, através do desenvolvimento deste espaço nos tornaremos mais receptivos e as coisas não terão mais tanto poder sobre nós. Nos tornaremos os senhores que dão sentidos as coisas, que dirigem o processo criativo e de construção da experiência ao redor. Como desenvolver este espaço? Há diversas maneiras, mas acredito que uma delas é o cultivo da bondade, do bom coração, da aspiração de sermos pessoas melhores, bons seres humanos bem como o aprofundamento disto através da meditação. MESTRES, PROFESSORES E INSTRUTORES DO DHARMA Por Lama Jigme Lhawang

Em nossa tradição o professor é um instrumento iluminador, não um refúgio absoluto. Sem iluminação é difícil de caminhar no escuro, podemos realmente nos machucar, trilhar caminhos errados, nos perder e nunca mais voltar caso nos aventurarmos por uma mata densa em uma noite escura. De forma geral os instrutores já trilharam uma boa parte da trilha, já a conhecem

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bem e desenvolveram a tecnologia da consciência iluminadora, já não estão mais completamente no escuro e são capazes de ajudar outros a conhecer melhor a mata escura e a desenvolver sua própria luz para caminharem juntos. Professores são como bons amigos, que nos apoiam e nos guiam. O BUDA COMO O MÉDICO, O DHARMA COMO UM REMÉDIO E A SANGHA INICIANTE COMO OS ENFERNOS Por Lama Jigme Lhawang

Pergunta: Tenho frequentado diferentes centros de dharma e feito diferentes práticas. Porém, me parece que ao fazermos estas práticas como recitações de mantras e orações etc nada muda realmente. Percebo também que não parece haver uma mudança das pessoas que praticam estas técnicas. Resposta: Há uma analogia encontrada nos sutras mahayana que descreve o Buddha como um médico, o dharma como uma medicina e a sangha iniciante como enfermos. É necessário investigarmos se as práticas que estamos fazendo estão proporcionando alguma transformação interior. Transformações não surgem de uma hora para outra mas tomam um tempo de cultivo, familiarização e habituação para serem entendidas e integradas em nosso coração. De forma geral, quando vamos a um hospital não podemos ter a expectativa de encontrarmos somente médicos lá dentro. Pelo contrário, já vamos a um hospital sabendo que encontraremos

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mais doentes do que médicos e enfermeiros. Funciona igual em qualquer ambiente que trata da saúde mental ou integral. Iremos encontrar pessoas que estão ali não porque estão completamente saudáveis mas porque buscam melhorar suas vidas. Há muitas técnicas meditativas que demandam uma base de conhecimento de como elas funcionam, como devem ser aplicadas para que surtam efeito em nosso sistema. Posso dizer em primeira mão que sem determinadas clarificações com respeito as práticas tântricas de imaginação de mandalas, deidades e recitação de mantras sem estas clafificações podem levar ao praticante ficar envolvido somente com o aspecto externo e demorar para progredir em uma verdadeira transformação interna. Caso esta pessoa estiver sendo orientada por um professor ela deve pedir estas clarificações e orientações caso perceber que a prática não está tendo efeito. Enfim, é um caminho sutil, de técnicas profundas que para serem eficazes precisam ser aplicadas da forma correta. Por isso, a grande importância de nos aproximarmos de amigos espirituais ou professores que já tem uma boa familiaridade e experiência com tais técnicas. THERAVADA (HINAYANA), MAHAYANA E VAJRAYANA Por Lama Jigme Lhawang

Pergunta:

Poderia me explicar a diferença entre as escolas Theravada (hinayana), Mahayana e Vajrayana?

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Resposta: O vajrayana é uma sub-categoria do mahayana: Durante o movimento mahayana na Índia surgirem duas abordagens e métodos semelhantes em essência porém distintos na técnica - o mahayana sutrayana e o mahayana tantrayana. O mantra secreto do veículo diamantino (vajrayana) faz parte desta última abordagem do mahayana tantrayana. Em essência ambas as tradições Theravada, Mahayana Sutrayana e Mahayana Tantrayana (ou vajrayana) apresentam técnicas e estratégias dentro dos Três Treinamentos em disciplina ética (shila), equilíbrio meditativo (samadhi) e discernimento (prajna). Em alguns textos encontramos uma diferenciação da antiga escola theravada com respeito a ênfase no treinamento das disciplinas restritivas e também com respeito ao resultado, a terceira nobre verdade da cessação de todo mal-estar. Muitos mestres dizem que com olhos mais lúcidos podemos ver o mahayana e vajrayana nos textos das escolas anteriores ao mahayana bem como ver aspectos do caminho destas escolas contidas nos textos mahayana e vajrayana. Em termos de ênfase, e não de essência, alguns textos mahayana apresentam a analogia de um veneno representando samsara e seus condicionamentos. De acordo com esta classificação no shravakayana abandonamos o veneno, fugimos dele, não entramos em contato com ele. No Mahayana Sutrayana transformamos o veneno em caminho através da aplicação de antídotos tais como a compaixão, a paciência e o discernimento que remediam estados mentais desequilibrados e abrem a porta para o desenvolvimento de lucidez. No

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Mahayana Tantrayana ingerimos o veneno uma vez que seu princípio ativo é neutralizado pelo reconhecimento de sua natureza de consciência pura. Porém, quando falamos de shravakayana estamos falando sobre perspectivas de grupos budistas do século II ao século 5 d.C. na Índia. A escola Theravada existente hoje bem como desenvolvida durante muitos séculos em diferentes países asiáticos não necessariamente se refere exatamente as mesmas escolas hinayanas presentes na Índia do séc. 2 ao séc. 5 dos quais muitos textos mahayana se referem. IMPERMANÊNCIA Por Jetsunma Tenzin Palmo Em uma história relatada nos sutras, o Buda certa vez caminhava com os discípulos pela selva, quando se inclinou, recolheu um punhado de folhas e disse às pessoas ao seu redor: “Qual quantidade é maior, a de folhas na selva ou de folhas em minha mão?” Os discípulos disseram: “As folhas na selva são infinitas, e as folhas que você está segurando são bem poucas.” O Buda disse: “Isso é análogo a quanto eu realizei e a quanto estou falando a vocês. Ainda assim, o que estou falando é tudo de que vocês precisam para atingir a liberação.” Devemos entender que, de toda a vastidão de conhecimento que obteve, quando sua mente abriu-se por completo com a experiência da iluminação, o Buda selecionou os elementos mais essenciais, os mais importantes, a fim de nos liberarmos deste reino de nascimento e morte.

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No início de sua missão, o Buda enfatizou as chamadas três marcas ou três sinais da existência, três características de tudo de nossa experiência, que negamos de modo habitual e persistente. O primeiro sinal da existência é a insatisfação. A vida como normalmente a levamos, de um jeito confuso e muito perturbado, não é satisfatória. Isso é dukkha. Dukkha é o oposto de sukha, que significa conforto, prazer, tudo transcorrendo numa boa. Não significa exatamente felicidade; é mais uma noção de as coisas andarem suavemente. E dukkha é o contrário disso. É desconforto. É quando as coisas não andam do jeito que queremos. Mas é claro que as coisas desenrolam-se do jeito que são, quer gostemos ou não. Essa insatisfação subjacente é uma das principais qualidades de nossa existência como seres não iluminados. O segundo sinal da existência é a impermanência. O terceiro sinal da existência é que nada possui autoexistência em si. Em outras palavras, tentamos solidificar tudo. Tentamos solidificar objetos externos e, em especial, tentamos nos solidificar. De modo quase automático, criamos um cerne aparentemente sólido que chamamos de “eu” e colocamos tudo a girar à sua volta: eu penso isso, eu sinto isso, eu sou isso, isso é meu, isso é quem sou. Normalmente, não nos perguntamos: “Quem é esse eu, essa aranha no centro da teia?” Impermanência. Tentamos fazer com que as coisas fiquem do jeito que estão, nos agarramos à ideia de permanência. Normalmente, somos muito resistentes à ideia de mudança, em especial de mudança naquilo que prezamos. Claro que gostamos de que as coisas mudem, quando se trata de algo de que não gostamos; mas, quando é algo de que gostamos, seguramos.

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Existem vários níveis de mudança, é claro. Existe a mudança grosseira – o clima muda constantemente, os mares mudam o tempo todo, a terra está mudando. Com o tempo, tudo se transforma por completo. Existe a mudança mais sutil em nossa vida cotidiana, na qual sempre estão acontecendo coisas. Relacionamentos, lares e bens vêm e depois os perdemos. Nosso corpo muda. No princípio, somos seres minúsculos, indefesos e vulneráveis, e então crescemos, amadurecemos, envelhecemos e morremos. E existe a mudança momentânea, ainda mais sutil. Na verdade, nada permanece igual por dois instantes de tempo. A vida é como um rio, sempre fluindo. Heráclito, o filósofo grego, disse que nenhum homem pisa no mesmo rio duas vezes. Mas a verdade é que o mesmo homem nunca pode pisar duas vezes no rio. Tudo está mudando. Por isso, sofremos. KARMA E RENASCIMENTO NO BUDISMO Por Lama Jigme Lhawang Pergunta: Gostaria de entender melhor o carma, a consciência substrato onde ficam armazenados as marcas karmicas, se há um carma e uma consciência coletiva ou é individual, saber mais sobre a reencarnação, sobre os sucessivos renascimentos, conforme nossas ações (Karma). Realmente podemos renascer como animais, ou como descrito nos textos nos reinos dos deuses, semi-Deuses, humanos, famintos, infernos e animais? Resposta:

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De acordo com o budismo cada um de nós é dotado de um continuum mental individual onde impressões são registradas (atitudes mentais ou karma) no que é chamado de consciência substrato (alayavijnana em sânscrito). Temos uma natureza cônscia sutil livre da dualidade que sepera a realidade subjetiva da objetiva. Desta natureza, a partir de suas qualidades e potenciais naturais, brotam projeções mentais duais como ondas passageiras em um vasto oceano ou como reflexos em um espelho. Há um momento onde a consciência não-dual livre se permite estreitar e cai para dentro de um referencial dual, se auto-percebendo separada de uma realidade externa independente. Neste momento a mente se fixa nesta experiência e desta fixação é registrado impressão karmica em nossa consciência substrato. Neste momento temos uma semente karmica, ou impressão que poderá servir como causa direta ou indireta para o brotar de outra atitude mental ou karma quando as condições apropriadas se agregarem. Assim temos a cadeia causal de causas diretas, condições indiretas, ações ou atitudes mentais, e resultados ou efeitos que por sua vez tem o potencial de servirem como causas para outros eventos mentais se manifestarem. As impressões registradas na consciência substrato são individuais porém as marcas que ali são impressas surgem através de relações co-dependentes entre observador e aquilo que é observado, ou seja, relações que estabelecemos com as coisas,com o mundo e com as pessoas. A consciência substrato é um continuum mental individual porém o que é ali marcado são instantes de consciência relacionais e contextuais. Por exemplo, certo dia, pela manhã, tenho uma discussão com um amigo, a tarde me apaixono por

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uma pessoa e a noite em minha meditação diária brota em meu coração uma profunda compaixão e amor por todos os seres. Em cada uma destas experiências foi registrado algo na consciência substrato. Quando contemplamos sobre elas, percebemos que em cada uma delas ocorreram estados mentais baseadas em algum tipo de relação e contexto, seja físico, emocional ou cognitivo. Podemos pensar, será que há uma diferença na discussão ter acontecido pela manhã ou pela noite, no trabalho ou em um parque, em público ou em privado? Será que o contexto influencia no que é registrado através dos estados de consciência ou atitudes mentais naquele momento? Podemos vir a identificar que sim, que o contexto exerce uma influência direta em nossos estados mentais. Na outra circunstância nos apaixonamos a tarde. Novamente, o que é registrado em nossa consciência substrato é relacional (com alguém ou algo) e contextual (ambiente, pessoas, clima, luz, barulho etc). Quando meditamos a noite, também, mesmo que estejamos sozinhos, iniciamos nosso caminho de meditação com uma identidade, um eu, uma sensação de individualidade - aquele que tem interesse por meditação, um meditador. Este meditante traz para o seu sentar as marcas de suas identidades relacionais e contextuais e irá trabalhar e iluminá-las através da meditação. Começamos a descobrir o universo das marcas de um coletivo mental, registros de nossas experiências coletivas em nossa consciência substrato. Ainda que diferentes pessoas tenham diferentes experiências em uma mesma relação e contexto, haverão momentos onde nos aproximamos em nossos próprios mundos internos individuais compartilhando perspectivas, intenções,

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significados e propósitos. Por exemplo, em uma conversa entre amigos, partilhamos de desafios diários no trabalho e, aquele amigo que começou a meditar, lembra que a meditação lhe tem ajudado muito. Aqui, uma semente carmica que o meditante tem sobre a meditação engatilhou a partilha que lança sementes na consciência do outro amigo que talvez vá pesquisar ou aprender sobre meditação. Ou seja, primeiro semeamos coisas positivas em nossa consciência substrato que são relacionais de acordo com o nosso contexto de vida. Em seguida, caso cuidarmos da terra, do adubo, da água onde estas sementes foram plantadas elas irão começar a ter efeitos em nossa vida e estados mentais e, obviamenente, nas relações que estabelecemos com o mundo e com as pessoas. O coletivo é um agente participativo na formação de nossa consciência e de nosso ser pelo contato que estabelece entre seus membros. Este contato produz pensamentos, posicionamentos, perspectivas, idéias, motivações e metas que são registradas em nossa consciência substrato. Assim, temos uma consciência substrato individual, onde estão impressas marcas de experiências relacionais e contextuais. Devido a isso podemos falar de karma individual e de karma coletivo. O karma coletivo não quer dizer que em algum lugar há uma mente coletiva onde estão registradas todas as marcas de todos os seres nos incontáveis universos mas que as marcas de um continuum mental individual são partilhadas por um grupo maior de pessoas. Percebemos claramente isso quando conhecemos novas culturas. Há certos hábitos culturais bem como formas de pensar e se relacionar, perspectivas e assim por diante, bem

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diferentes de um país para outro. Ou seja, há um karma coletivo claro, relacional, contextual. Tanto um karma como impressões genéticas também. Há karmas coletivos mundiais também como, por exemplo, a sexualidade. Praticamente todos nós humanos temos algum tipo de atividade sexual, temos registros em nosso cognitivo e emocional sobre a sexualidade. Portanto, se cada um desenvolver um modo de vida positivo, estaremos transmitindo estas atitudes mentais para outros através de nossas relações que, se encontrarem espaço e interesse para serem cuidadas e nutritas, farão parte da vida de outras pessoas, criando gradualmente um karma compartilhado por um número maior de pessoas. O karma se manifesta em cada atitude mental. Não é propriamente o movimento, expressão ou manifestação livre da mente que cria karma. Eu sempre gosto de citar um ensinamento que o grande mestre indiano Tilopa deu a seu discípulo Naropa: "Filho, não são as aparências que lhe prendem mas sua fixação a elas é que lhe aprisiona. Corte através da fixação, ó Naropa!" Ou seja, não é o surgimento de aparências ou da atividade mental que cria karma, que nos condiciona e aprisiona, mas nossa atitude mental frente ao que esta surgindo. Se nos fixarmos a experiência que surgir como sendo algo separado, independente do mundo interno do sujeito, estaremos criando karma. Nossa atitude mental e intenção na relação com nossas experiências individuais, que nada mais são do que mente, é que cria marcas kármicas. Nossas pré-disposições revelam os condicionantes que formam eventos mentais. Estas impressões habituais quando se separam do corpo físico no período de transição da morte

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buscam um novo corpo ou veículo que possa sustentar e realizar suas pré-disposições. Assim surge a noção dos seis reinos na cosmo-psico-logia budista. Estes reinos não existem em nenhum lugar separado de nosso universo mental. É como se fossem experiências de uma natureza de sonho que contém um tipo de condicionamento habitual distintos uns dos outros. Veja, tomamos a emoção do medo como referencial por onde experienciamos o mundo. A partir desta experiência de medo procuramos corpos que tenham características que nos protejam daquilo que tememos. Assim, muitos vivem em casas gradeadas em condomínios fechados, vestem coletes a prova de balas, andam armados e dirigem carros blindados. É como se este mesmo corpo humano quando aromatizado a partir de certos estados mentais e emotivos buscasse se atualizar para poder sobreviver, adaptando-se e ajustando-se a cada situação psico-emocional e contextual. Quando falecemos nossa consciência dual mantem-se em um fluxo senquencial contínuo de eventos mentais encadeados e inter-relacionados engatilhados a partir destas impressões karmicas registradas em nossa consciência substrato. Dependendo da medida e proporção do que esta ali registrado, teremos atitudes mentais que irão buscar suporte em algum veículo, corpo ou forma para sobreviverem. No instante da separação da consciência do corpo físico após a transformação dos 5 elementos a consciência irá vaguear a partir do que for engatilhado karmicamente. Neste vaguear ela pode ser carregada a buscar um novo corpo de acordo com as impressões de hábitos mentais positivos e negativos criados na vasta teia karmica de inter-relações. Na classificação dos seis reinos entre uma rede de causas e condições que levariam alguém a nascer, por exemplo, no reino dos infernos, um estado mental se

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sobressai - o medo, a aversão, raiva, ódio, maldade. Caso houver um registro em grande proporção e intensidade deste estado mental haverá grande possibilidade de re-nascer em uma condição na qual há muitas pessoas que tem raiva e-ou medo de você, que querem lhe prejudicar, lhe fazer mal, e até mesmo acabar com sua vida. Por exemplo, podemos viver em uma mesma cidade ou até mesmo em um mesmo bairro. Neste bairro vivem diferentes pessoas com trajetórias e contextos psico-físicos e financeiros distintos. Dependendo do contexto do moradar de tal bairro teremos a grande possibilidade que diferentes moradores experienciem o bairro das mais variadas formas. Ou seja, fisicamente estão na mesma localidade, porém, mentalmente vivem diferentes esferas de realidade ou reinos de experiência. Seque a mesma compreensão para os outros 5 reinos. O reino dos pretas (seres famintos) onde o estado mental da avareza é predominante. O reino dos animais onde o estado mental predominante é a preguiça e obtusidade mental. O reino dos devas (ou seres celestiais) onde o orgulho e a superioridade é predominante. O reino dos semi-devas onde a inveja e auto-importância é predominante. E, o reino dos humanos onde o desejo, o apego e a ganância nos assola. Hoje temos como um fato seres (incluindo animais) nascidos em um corpo masculino porém com uma 'mente' feminina, e vice-versa. Entre os humanos, há certos casos de um desejo intenso em obter o corpo certo, aquele corpo que se encaixa com nossos estados mentais de forma mais harmonica. Deste desejo intenso temos o potencial de alterarmos nosso corpo para que atenda nossos estados mentais. Da mesma forma, temos que estar conscientes de nossos desejos e aspirações pois

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eles podem criar registros que nos impulsionem a nos atrair por um determinado contexto ou forma psico-física. Portanto, aqueles que um dia olharam para um o contexto de um cachorro ou outro animal e desejaram poder ser um cachorro (ou qualquer outro animal) criaram registros em sua mente de atração ou aversão por um determinado contexto que, após a morte, dependendo das condições assessoras que se agregarem podem engatilhar a mente em uma determinada direção ou outra. A mente completamente desperta e iluminada de um Buddha não está sujeita ao karma pois não há mais karma nela. Ou seja, não há mais qualquer condicionamento ou impressões de um fluxo mental individual. A individualidade da consciência substrato foi transformada e realizada em sua natureza última livre de qualquer condição, divisão, identidade ou individualidade. Um Buddha não se move mais pelo seu karma mas se expressa de acordo com a necessidade, capacidade e pré-disposições dos seres. BOM CORAÇÃO Por Jetsunma Tenzin Palmo

Quaisquer que sejam nossas circunstâncias externas, no fim das contas a felicidade ou infelicidade depende da nossa mente. Considere que uma companhia com quem nós ficamos, continuamente, dia e noite, é nossa mente. Você realmente gostaria de viajar com alguém que ficasse reclamando o tempo todo e ficasse dizendo quão inútil você é, quão sem jeito você é, alguém que lhe lembre de todas as coisas horrorosas que você já fez? Ainda assim, para muitos de nós, esse é o jeito que vivemos

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– com esse crítico incansável, difícil de agradar e sempre nos rebaixando que é nossa mente. Ela ignora totalmente nossas qualidades e é genuinamente uma companhia muito triste. A questão é que quando nossa mente está cheia de generosidade e pensamentos de bondade, compaixão e contentamento, a mente se sente bem. Quando nossa mente está cheia de raiva, irritação, auto-piedade, ganância e apego, a mente se sente doente. E se nós realmente investigarmos isso, podemos ver que temos a escolha: podemos decidir amplamente que tipo de pensamentos e sentimentos irão ocupar nossa mente. Quando pensamentos negativos aparecem, podemos reconhecê-los, aceitá-los e deixá-los ir. Podemos escolher não segui-los, o que só colocaria mais lenha na fogueira. E quando pensamentos bons vêm à mente – pensamentos de bondade, cuidado, generosidade e contentamento, e um senso de não segurar mais as coisas tão fortemente, podemos aceitar e encorajar isso, mais e mais. Podemos fazer isso. Somos o guardião do precioso tesouro que é nossa própria mente. Um coração genuinamente bom é fundamentado no entendimento da situação como ela realmente é. Não é uma questão de sentimentalismo. E um bom coração também não é uma questão de sair por aí num tipo de euforia de falso amor, negando o sofrimento e dizendo que tudo é benção e alegria. Não é assim. Um coração genuinamente bom é um coração que é aberto e é ávido por compreensão. Ele ouve as tristezas do mundo. Nossa sociedade está errada ao pensar que a felicidade depende da satisfação dos nossos próprios desejos e vontades. Por isso nossa sociedade está tão miserável. Somos uma sociedade de indivíduos, todos obsessivos com o esforço por

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nossa própria felicidade. Estamos desconectados de nosso sentido de interconexão com os outros, estamos desligados da realidade. Porque na realidade estamos todos interconectados. Vamos começar de onde estamos. E vamos começar com o que somos. Não adianta querer ser outra pessoa, não é bom fantasiar sobre como seria se fôssemos assim ou assado. Temos que começar do aqui e do agora, na situação em que estamos. Temos que lidar com nossa família, com os amigos e com todos que encontramos. Esse é o desafio. Às vezes evitamos as circunstâncias atuais e achamos que seguramente encontraremos a situação perfeita em algum outro lugar. Mas isso nunca vai acontecer. Nunca haverá um momento e um lugar ideais, porque levamos conosco a mesma mente a todos os lugares. O problema não está lá fora, em geral o problema está dentro de nós. E por isso precisamos cultivar a transformação interior. Uma vez que tenhamos desenvolvido a mudança interna, podemos lidar com o que quer que aconteça. O DESPERTAR DO CORAÇÃO, BODHICHITTA Por Lama Jigme Lhawang

Aqui, a condução permitirá que tornemo-nos conscientes de uma operação mental ilusória (que traz todo o tipo de perturbações e que é a causa primordial de todo sofrimento), para assim possibilitar-nos acessar um estado mental de lucidez (gerador de amor e felicidade), manifestação direta de nossa verdadeira natureza, que proporciona uma abertura no coração, trazendo a natural aspiração para que todos os seres possam alcançar um estado de real felicidade e bem-estar. Estes também são os traços marcantes nas instruções da linhagem

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Drukpa do budismo tibetano, fundamentados no despertar do coração. Bodichita Bodichita Ficcional e Bodichita Real ou Última Bodichita Ficcional compreende: - Bodichita da Aspiração - Bodichita da Aplicação Bodichita da Aspiração Movimento na direção da aspiração de que todos os seres sejam felizes. Há quatro tipos de aspiração, que são as quatro incomensuráveis: Amor, Compaixão, Regozijo, Equanimidade. A forma tradicional de contemplar inicia-se pela Equanimidade, Compaixão, Amor, Regozijo. Quando acessamos Equanimidade desenvolvemos a lucidez. Amor é Compaixão em ação. Compaixão envolve a compreensão. Exemplo de como purificar uma relação? Dar nascimento a outra pessoa? Entendo que não é ela, não sou eu, e sim algo que surgiu contextualmente, surgiu uma situação que produziu uma impressão negativa, na relação. Quando me desidentifico, eu olho como observador e não como o ator da coisa. É uma experiência. O processo de se reconhecer como um grande corpo do universo. Somos a sujeira da unha, uma partícula do universo. O nosso grande corpo é o universo, todos os seres, todas as interconexões, e isso é a natureza primordial e é a natureza das deidades, no budismo tibetano. Quando sentimos a deidade, sentimos toda a interdependência, a interconexão, a mágica que dá vida em meio a esse espaço de possibilidades. Quando

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sentimos assim, naturalmente nossa compaixão e amor, cuidado, gentileza, abrangem o corpo inteiro, o Universo. Então nossa compaixão se torna ilimitada, incomensurável. O objeto de compaixão se torna incomensurável. O que acontece com a mente que está na relação com esse objeto/ Se o objeto é imensurável, a mente que o está apreendendo também se torna imensurável. Qual o efeito disso/ Se o objeto é imensurável, se a mente é imensurável, quais serão os efeitos? Imensuráveis. Essa é a atividade dos Bodisatvas. Esses três elementos tornam o Amor e a Compaixão imensuráveis. Nessa perspectiva surgem três tipos de Bodichita da aspiração: Bodichita de um Rei: ele primeiro olha para seu reino, para os que estão próximos. É um amor condicional. Não há nada de errado nisso. Ainda que seja um amor verdadeiro, é limitado. Bodichita de um Barqueiro: Ele leva todos juntos, ao mesmo tempo. Ele é um guia. Bodichita de um Pastor: Abre a porteira e espera que a última ovelha passe. Só então ele passa. Esse terceiro tipo é o mais elevado, porque ele já traz consigo que não existe alguém que vai chegar ao outro lado, alguém que vai atingir o despertar. Esse é o caminho de um Bodisatva que reconhece a vacuidade, a natureza das coisas, a natureza de si próprio. Vai levando os seres que não reconhecem isso. Bodisatva é aquele que dá suas costas para os outros subirem e se elevarem mais do que ele. Essa é a descrição de como nasce um Lama. La é mãe, aspecto de lucidez (de que não existe mais

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um “eu”) e Ma é elevado, aspecto de compaixão. Essa é a Bodichita da Aspiração. S. Ema Gyalwa Dokampa (Um do nossos principais mestres) disse que devemos associar a prática da Bodichita à deidade Avalokitesvara, o Buda da Compaixão. Então quando fazemos essa prática devemos recitar o mantra do Buda da Compaixão e tentar desenvolver esse sentimento incomensurável. Enquanto recitamos podemos contemplar a partir das quatro incomensuráveis: Possam todos os seres ter felicidade e as causas da felicidade Possam eles estarem livres do mal-estar e das causas do mau-estar. Possam eles nunca se separarem da verdadeira felicidade que é destituída de todo o mal-estar. Possam eles residirem na grandiosa equanimidade, livres do apego para com aqueles que são próximos e aversão para com aqueles que são distantes. Também a nós, a nossa família e às pessoas que estão aqui. Tanto físicas como sem corpo físico. Nesse momento, ao redor de nós, tem pessoas que a gente vê e pessoas que a gente não vê, com os olhos físicos. São os seres sutis. Vamos recitar o mantra para todos eles também. OM MANI PADMA HUNG (Recitação do Mantra) – Fomos visitados por seres de sabedoria, a porta se abriu, a receptividade do coração se abriu e eles vem se alegrar e nutrir isso. Bodichita da Aplicação

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Essencialmente, surge um movimento em direção aos seres para beneficiá-los. Esse movimento é exemplificado através de seis aspectos, seis aplicações, seis tipos de engajamentos, chamados as seis Paramitas ou as seis Perfeições: Generosidade, Disciplina, Paciência, Energia Jubilosa ou Perseverança, Estabilidade Mental, Discernimento ou Sabedoria. Milarepa explica cada uma delas e é a forma mais elevada que eu conheço de contemplá-las. GENEROSIDADE: “É ENCONTRADA NO CONTENTAMENTO, SUA ESSÊNCIA É O SIMPLES DESAPEGAR, OU SEJA, ABANDONAR A CRENÇA DE UMA EXISTÊNCIA VERDADEIRA NAS COISAS”. Comentário: É o soltar, liberar as coisas da nossa projeção. O que nos bloqueia de sermos generosos? É o apego. Por que temos apego? Porque acreditamos que aquilo tem certas qualidades em si só, por si só e que queremos para nós. Quando reconhecemos a riqueza do Universo como não sendo uma posse nossa, não tendo uma existência em si e por si, mas sendo um movimento natural, um fluir natural, esse fluir natural, para onde for é para onde devia ter ido. Quando estamos tomados de compaixão no coração e olhamos coisas que os outros seres precisam, quer seja uma necessidade, uma demanda e não estamos agarrados a nada, essa coisa flui em direção àquele ser, através da nossa compaixão. Aquilo flui através da energia da compaixão em direção ao outro ser, não tem nenhum bloqueio, condicionamento do apego e da noção

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de que aquilo é real, verdadeiro. Simplesmente flui como uma magia, como uma benção que chega ao outro. Exemplo: Quando sou recebido em algum lugar, às vezes encontro uma flor em cima da minha mesa, deixada anonimamente. Alguém manifestou generosidade e aquela flor conversa comigo, é uma benção. Alguém quis dizer alguma coisa para mim e quando eu sinto o que a pessoa quis dizer, aquilo é como se fosse uma benção. DISCIPLINA: “É NÃO DEGRADAR AS TRÊS JÓIAS E ESTAR DE ACORDO COM A REALIDADE, OU SEJA, ABANDONAR O ENGANO E A ILUSÃO”. Comentário: O que quer dizer estar de acordo com a realidade? É fluir com o universo, estar de acordo com a natureza das coisas, fluindo junto a partir dessa visão que abandonou o engano e a ilusão. Com essa visão não há como degradar as três jóias. Buda é a natureza de Buda, Dharma é aquilo que se expressa através dessa natureza de Buda e a sangha é aquilo que sustenta que nutre isso. Em essência é tudo energia, as três jóias são energia. Energia do Universo. Fluímos junto com elas se o engano e a ilusão são abandonados. PACIÊNCIA: “É A ATENÇÃO INFALÍVEL, O ESTADO DESPERTO PRIMORDIAL QUE TRANSCENDE O MEDO DA VERDADE”. Comentário: Por que somos impacientes? Devemos nos perguntar para cada qualidade: Por que não temos generosidade? Por que não temos disciplina? Por que não temos paciência?

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Paciência = Paz Ciente Paz – o aspecto de serenidade infalível, imóvel, atenção infalível ou serenidade infalível, tranquilidade infalível. Ciente – Estar consciente, lúcido para a verdade como ela é não como a concebemos. A verdade do natural fluir do universo. Temos impaciência porque temos expectativas e medos. Aqui, transcendemos o medo porque vemos a verdade. ENERGIA JUBILOSA OU PERSEVERANÇA: “É NECESSÁRIA PARA SUSTENTAR TODAS AS OUTRAS PERFEIÇÕES; É O PERMANECER TOTALMENTE INSEPARÁVEL DA PRÁTICA”. Comentário: Ao invés de praticar, nos tornamos aquela prática. Ao invés de direcionar a energia para algum lugar ou colocar a energia em algo, nós nos tornamos a energia. Assim não tem esforço, é natural. E isso é o que movimenta como se fosse o motor de todas as outras perfeições: Generosidade, Disciplina, Paciência, Concentração, Sabedoria. ESTABILIDADE MENTAL OU CONCENTRAÇÃO: “É DESCANSAR NO FLUXO NATURAL QUE PERCEBE COMO DEIDADE TODAS AS APARÊNCIAS QUE VENHAMOS A APREENDER”. Comentário: Deidades no sentido da natureza real das coisas. Não que seja Tara, por exemplo. Existe uma natural atenção na nossa mente. Quando bati o sino, por exemplo, e disse: “escutem o sino até o fim”. Ficamos escutando e daqui a pouco o objeto da nossa atenção cessou, mas a atenção continuou.

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Continuamos abertos, dotados dessa qualidade conhecedora das coisas. O espaço. Se o sino tocasse de novo, essa atenção iria percebê-lo. O objeto cessa, mas a atenção permanece. Existe uma atenção sutil que faz parte da nossa natureza. Chamamos de uma Natureza Conhecedora da Mente. Dessa atenção natural surge o repouso. Descansamos, nos entregamos e percebemos todas as aparências como sendo da natureza das deidades, da Natureza Primordial, todas as coisas como sendo Energia Primordial. Isso é a natural estabilidade mental, natural concentração. Não é fazer um esforço para estar atento. Aqui não estamos falando do pastor segurando a ovelha por uma corda, o objeto da atenção. Não há mais o segurar. Não tem mais se esquecer. É uma atenção natural. Fluir natural, consciente. Essa é a essência da Paramita Estabilidade Mental. DISCERNIMENTO OU SABEDORIA: “É A LIBERAÇÃO ESPONTÂNEA DO APEGO E DA FIXAÇÃO. A REALIZAÇÃO DO ESTADO NATURAL”. Comentário: Liberação da fixação dual de que as coisas têm uma existência por si só. Eu gosto de acessar o Dharma a partir de uma perspectiva sem esforço, pois não ficamos cansados. Pelo contrário, quando há esforço, parece que há uma coisa treinando algo, fazendo um grande esforço, porque não entramos no fluir da energia. Pergunta: Na Paramita Disciplina tem: “Não degradar as três jóias”. Você poderia explicar as três jóias a partir da perspectiva da Natureza Primordial?

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Quando abandonamos a ilusão e fluímos de acordo com a realidade, naturalmente fluímos de acordo com Buda, Dharma e Sangha. Buda não é o Buda histórico, Dharma não é o ensinamento das palavras do Buda e Sangha não são as pessoas. Isso tudo é energia. Buda é a natureza de Energia Primordial, Dharma é a expressão natural dessa Energia Primordial. Sangha é aquilo que preserva, sustenta essa Energia Nutritiva. Naturalmente não há qualquer degradação com as três jóias. Estamos fluindo junto com elas. Com as Seis Paramitas: Generosidade , Disciplina, Paciência, Energia Jubilosa, Estabilidade Mental, Discernimento, temos a Bodichita da aplicação, do engajamento, da ação. Vou seguir a instrução de S. Ema Gyalwa Dokampa e vamos recitar novamente o mantra OM MANI PADMA HUNG e vamos contemplar as seis Paramitas a partir dessa descrição e tentem entrar em contato com essa energia em meio ao movimento, em ação. Não dentro de uma perspectiva que tem que ser generoso, mas de uma perspectiva que a generosidade é natural, o fluir. O cuidado é natural, cuidar também é um aspecto de generosidade, estamos doando nosso tempo, nossa atenção, nossa energia para cuidar de algo. Generosidade é isso. Estamos em ação, mas talvez ainda não a partir da Compaixão, a partir do fluir junto, com o grande corpo do Universo. Vamos recitando e contemplando sobre isso. OM MANI PADMA HUNG Bodichita Última

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A Bodichita última é isso. Quando em meio a isso nós soltamos a noção de alguém fazendo algo. Tem uma apreensão dual operando em meio à Bodichita ficcional. Parece que tem alguém aspirando pelo benefício dos seres, tem seres a serem beneficiados. Não que não tenha, mas isso é uma apreensão, uma operação dual da mente que está operando. Quando relaxamos, liberamos, soltamos, nesse momento permanece só a energia. Isso é a Bodichita Real, Bodichita Última. Isso surge a partir de uma familiarização com o se soltar, se liberar. Essencialmente é isso. Ela surge através das duas acumulações, chamadas no budismo tibetano, Mahayana, de acumulação de méritos e acumulação de discernimento. Conforme vamos melhorando, organizando nossa vida, curando as nossas relações com o mundo e com as pessoas, vamos acumulando méritos, ou seja, isso produz carma positivo: bem-estar, felicidade, condições favoráveis em nossa vida. Conforme vamos enfraquecendo a nossa fixação às coisas como separadas de nós, reais, independentes, vamos acumulando discernimento; o sentimento, a sensação, a experiência com a natureza real das coisas e isso faz com que se crie um fluir que vai abrir a porta, que vai em direção à Bodichita Última, à Bodichita Real.

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5. Nossos professores

● S.S. Gyalwang Drukpa

○ Líder e autoridade máxima da linhagem Drukpa e o mestre que ordenou o Lama Jigme Lhawang.

● S.Ema. Gyalwa Dokhampa ○ Regente da linhagem Drukpa e mestre direto do

Lama Jigme Lhawang. ● Jetsunma Tenzin Palmo

○ Uma das principais mestras da linhagem Drukpa. ● Lama Jigme Lhawang

LAMA JIGME LHAWANG – NOSSO PROFESSOR

Lama Jigme Lhawang (no português Djigmê Láuang) é o primeiro ocidental do continente Americano a ser ordenado lama na Linhagem Drukpa do Budismo Tibetano pelo líder e autoridade máxima da Linhagem Drukpa, S.S. Gyalwang Drukpa e por seu regente espiritual S.Ema Gyalwa Dokhampa. Também

é o presidente e diretor espiritual da Comunidade Budista Drukpa Brasil e o representante oficial da Linhagem Drukpa e de S.S. Gyalwang Drukpa no Brasil bem como presidente de honra do Instituto Live to Love Brasil, o braço brasileiro da Fundação Humanitária Live to Love Internacional. Lama Jigme Lhawang treina no budismo desde 1995 e, de 2003 a 2013, treinou como monge budista em universidades monásticas e

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eremitérios sagrados na Índia e Nepal.

Estudou história, filosofia e psicologia budista bem como tradução oral e literária da língua tibetana pelo período de 10 anos na universidade Dzongsar Shedra, na Índia e na Kathmandu University, no Nepal. É psicoterapeuta e especialista na área do equilíbrio emocional e do cultivo da atenção plena e é professor formado e autorizado em Cultivating Emotional Balance (Cultivo do Equilíbrio Emocional) pelo Instituto Santa Bárbara de Estudos da Consciência (Califórnia), um programa de formação baseado em evidências científicas criado pelos professores Dr. Paul Ekman e Dr. B. Alan Wallace.

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6. Livros recomendados

Em português

● Iluminação diária, Gyalwang Drukpa ● A mente serena, Gyalwa Dokhampa ● No coração da vida, Jetsunma Tenzin Palmo ● A lua no espelho, Gyalwa Dokhampa

Em inglês

● Happiness is a state of mind, Gyalwang Drukpa

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