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Introdução Ao chegar ao consultório pela manhã, percebi imediata- mente que havia um clima de indignação no ar. — O que foi? — perguntei à enfermeira de plantão. Lançando-me um olhar preocupado, ela respondeu: — Um de seus pacientes morreu de madrugada. O mé- dico de plantão acabou de passar por aqui e contou pra todo mundo que aconselhou à família da paciente a te de- nunciar no Conselho de Medicina. Caso contrário, ele mes- mo vai fazê-lo. Tudo indica que os parentes da falecida estão furiosos com você. Entendi logo de qual paciente se tratava. No dia ante- rior, eu tinha recebido no meu consultório uma senhora bem-disposta de 75 anos com um olhar inquisitivo. Ela veio acompanhada do filho. Era o nosso primeiro encontro e ela tinha vindo para o segundo ciclo do tratamento citostático contra o câncer. Ela tinha uma espécie de linfoma, também chamado de câncer da glândula linfática, que caso não seja tratado é fatal, porém com tratamento chega a taxas de 50% de cura. Após o primeiro ciclo, ela tinha se queixado de proble- mas cardíacos, tendo sido internada para observação. Mas ArteSerGentil.indd 11 ArteSerGentil.indd 11 17/12/2007 10:38:37 17/12/2007 10:38:37

Introdução - martinsfontespaulista.com.br · Espera-se que um adulto gentil seja um verdadei-ro idiota. As crianças, por outro lado, são bem-vindas a se-rem gentis. E como defi

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Introdução

Ao chegar ao consultório pela manhã, percebi imediata-mente que havia um clima de indignação no ar.

— O que foi? — perguntei à enfermeira de plantão.Lançando-me um olhar preocupado, ela respondeu: — Um de seus pacientes morreu de madrugada. O mé-

di co de plantão acabou de passar por aqui e contou pra todo mundo que aconselhou à família da paciente a te de-nunciar no Conselho de Medicina. Caso contrário, ele mes-mo vai fazê-lo. Tudo indica que os parentes da falecida estão furiosos com você.

Entendi logo de qual paciente se tratava. No dia ante-rior, eu tinha recebido no meu consultório uma senhora bem-disposta de 75 anos com um olhar inquisitivo. Ela veio acompanhada do fi lho. Era o nosso primeiro encontro e ela tinha vindo para o segundo ciclo do tratamento citostático contra o câncer. Ela tinha uma espécie de linfoma, também chamado de câncer da glândula linfática, que caso não seja tratado é fatal, porém com tratamento chega a taxas de 50% de cura. Após o primeiro ciclo, ela tinha se queixado de proble-mas cardíacos, tendo sido internada para observação. Mas

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naquele momento, a paciente sentia-se bem e estava pronta para a segunda fase do tratamento. Tivemos uma conversa longa em que expliquei os riscos para o coração nesse novo ciclo; ao mesmo tempo, informei que essa era a única chan-ce de a paciente fi car curada. Ela disse que estava de acordo com os riscos, mostrando-se disposta a continuar. Então su-geri que ela pernoitasse no hospital. A paciente recusou a proposta, dizendo que preferia ir embora. Ela iria dormir na casa do fi lho e achava que lá teria assistência sufi ciente. Eu, por minha vez, não insisti.

Quando estávamos diante da porta do consultório ter-minando de conversar, ela olhou para mim e disse sorrindo:

— O senhor é um médico gentil, arranjou tempo para conversar com uma senhora idosa, mesmo com a sala de espera cheia de pacientes.

— Não foi nada, foi um prazer conhecê-la — respondi enquanto calculava que, se trabalhasse durante a hora do almoço, conseguiria atender um número sufi ciente de pa-cientes antes das consultas da tarde.

De madrugada, a paciente chegou no hospital com pro-ble mas cardíacos e o médico de plantão a internou. Depois de algumas horas, ela foi encontrada morta no leito.

A morte de um paciente não é algo raro quando se tra-balha com câncer. Sempre fi co triste quando isso acontece, mas nesse caso foi diferente. A morte de um paciente devido a um erro meu era um golpe duro. Sozinho comigo mesmo refl eti sobre o que tinha acontecido. Segundo o meu julga-mento, prescrever o tratamento foi a decisão certa, já que a paciente havia concordado, apesar dos riscos. No entanto, eu poderia ter insistido na internação. Por que não fi z isso?

Com tais pensamentos rodando na minha cabeça, fui telefonar para o fi lho da paciente falecida. Assim que ouvi

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uma voz do outro lado da linha, me apresentei e me prepa-rei mentalmente para uma série de acusações, fi cando mui-to surpreso ao ouvi-lo dizer:

— Que bom que o senhor ligou. Eu gostaria de agra-decer a maneira como o senhor tratou a minha mãe.

Ele me contou o que tinha acontecido de madrugada e como ele e os outros parentes estavam se sentindo. Conver-samos sobre o ocorrido e sobre a sua mãe.

Em seguida, contei que tinha sido criticado quanto à forma com que tinha tratado a mãe dele e que, eu mesmo, achava que deveria ter insistido na internação dela. Para mi-nha surpresa, ele então respondeu:

— Mas o senhor insistiu, sim. Foi a minha mãe que se recusou a ser internada. Estou convencido disso e caso você seja denunciado ao Conselho, estou disposto a testemunhar a seu favor.

Surpreso com o apoio dele e com a minha memória falha, destaquei no fi m da conversa que os familiares po-diam entrar em contato conosco a qualquer hora caso pre-cisassem de algum esclarecimento. Ele fi cou calado por um instante, dizendo logo em seguida:

— Há uma outra coisa que você deve saber, doutor Stefan. A mãe disse que ela não gostava daquele médico de plantão, mas que você tinha sido muito gentil com ela. É por isso que não farei nada que lhe possa prejudicar.

Depois da conversa, continuei sentado perto do telefo-ne durante alguns minutos, pensando nas palavras dele. Eu havia me lembrado corretamente do que tinha dito durante a consulta. O fi lho sabia que eu não tinha insistido na inter-nação. No entanto, ele escolheu me proteger.

Em nenhum momento fui denunciado ao Conselho: o médico-chefe era da opinião de que eu não havia come-

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tido nenhum erro formal. Por outro lado, segundo ele, o médico de plantão deveria ter pedido que um cardiologis-ta examinasse a paciente. Mas se os familiares tivessem dado queixa de mim ao Conselho, eu teria de passar por um longo processo burocrático, além de muitos meses de incerteza. Livrei-me de tudo isso porque me acharam gentil.

Muitas ocasiões me deram motivos para refl etir sobre o ter-mo “gentil”. Assim como outras crianças, quando eu era pequeno ouvia dizer: “Você deve ser gentil com a sua irmã-zinha” ou “Agora você não foi nada gentil”. Entre os adul-tos, no entanto, a palavra gentil aparece em outros contex-tos: “É, ele é gentil, mas as vaquinhas de presépio também são.” E o que dizer deste comentário? “Mas no fundo no fundo ela é gentil.”

Então, como defi nir a qualidade de “ser gentil”? Ela tem um valor positivo ou negativo? Ser gentil é algo bom ou ruim? No que se refere aos adultos, parece que o fato de “ser gentil” é freqüentemente vinculado a um comportamento que se considera infantil ou imaturo. Parece também que se pressupõe que pessoas que se comportam de maneira gentil também são um pouco “burrinhas”. Às vezes, a gentileza pode ser confundida com fraqueza ou com difi culdade em dizer não. Espera-se que um adulto gentil seja um verdadei-ro idiota. As crianças, por outro lado, são bem-vindas a se-rem gentis.

E como defi nir a palavra “bom”, que para mim é quase sinônimo de gentil? “Uma pessoa boa” é uma qualifi cação que quase não se ouve, excetuando-se o caso de pessoas fa-lecidas. Quando se diz que alguém é bom, usa-se, muitas vezes, um tom de ironia.

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Como se explica isso? Como as designações “gentil” e “bom” se transformaram em palavras com uma carga nega-tiva? Cada vez que ouço tal tom pejorativo, fi co boquiaber-to e me pergunto se aqueles que se expressam assim se dão conta de quem é que realmente sabe o que é importante na vida. Chegou a hora de uma mudança de paradigma quan-to à visão acerca da pessoa gentil.

Para mim, uma pessoa gentil é um indivíduo que vive com a ética em seu coração. Uma pessoa que age com gen-tileza tem sempre em mente a consideração pelo seu seme-lhante. A meu ver, essas qualidades parecem ser essencial-mente boas. A pessoa que age com gentileza pode ser tudo, menos burra. Pelo contrário, ela é muito inteligente, pois compreendeu, consciente ou inconscientemente, o mais importante: aquilo que fazemos para os nossos semelhantes também fazemos para nós mesmos.

Somente temos a ganhar quando somos bons para com o próximo e temos muito a perder se não agimos assim. Quem é gentil caminha em direção ao sucesso. Acredito de verdade que a gentileza seja o fator mais importante quando se trata do quanto nos tornamos bem-sucedidos na vida. Em vista disso, se por algum motivo não somos gentis, então pode-mos sê-lo por nossa causa: porque queremos ter êxito em nossas vidas. Ou como o escritor americano James Freeman Clarke formulou a questão: “Busca fazer o bem e descobrirá que a felicidade te persegue.”

O interessante é que isso não se aplica somente a indi-víduos, mas também a grupos, organizações e sociedades. Ao examinarmos certos trechos da história da humanida-de, às vezes pode parecer que não é bem assim. Estados totalitários e brutais conseguiram algumas vezes arrasar so-ciedades de grande nobreza. Entretanto, tais ganhos são

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geralmente temporários e quase sempre causam a decadên-cia dessas sociedades ruins. Minha opinião é de que os agrupamentos bons e íntegros são aqueles que ganham a longo prazo.

Ser gentil não é sempre uma qualidade fácil de ser colocada em prática. Deixar que os outros sempre façam o que que-rem não é, por exemplo, algo condizente com a qualidade de ser bom. Especialmente se os outros estão errados e as conseqüências de seus atos podem ser negativas. Ser gentil também não é sinônimo de falta de personalidade e de dei-xar que os outros se aproveitem de nós. Nem signifi ca estar disposto a ajudar e a fazer coisas que são contrárias aos nos-sos princípios.

A gentileza é uma qualidade que deve ser administrada com uma boa dose de bom senso. E, excepcionalmente, pode ser necessário fazer coisas que a curto prazo não sejam consideradas tão boas pelos outros. Esse é um dos motivos pelos quais eu escolhi escrever sobre a arte de ser gentil. Ser gentil de uma maneira autêntica, positiva e boa é realmente uma arte.

Há aqueles que afi rmam que o ser humano é mau por exce-lência e que muito do que ocorre entre as pessoas são coisas ruins. Não concordo com isso. Sou de opinião contrária: muito do que fazemos uns para os outros é de natureza boa. A maioria das pessoas esforça-se por fazer aquilo que é certo.

Dou muitas conferências sobre ética e sobre como de-vemos tratar nosso semelhante. Como introdução, costumo perguntar aos ouvintes qual a principal virtude que eles gos-tariam de ter. O público pode escolher entre as seguintes qualidades: ser inteligente, criativo, bom profi ssional, en-

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graçado e às vezes também incluo rico (mesmo que este últi-mo não seja exatamente uma qualidade). Em seguida, adicio-no também a virtude da bondade. Mais de 90% do pú bli co costuma escolher essa última alternativa. Esse número deixa uma mensagem clara: damos prioridade a sermos bons, até mesmo diante da riqueza e da superinteligência.

Tendo em vista que já existe uma grande quantidade de livros que tratam de como se tornar rico, inteligente, criati-vo, um bom profi ssional etc., pensei que pelo menos deveria existir um livro sobre como desenvolver a arte de ser gentil e sobre como ser bem-sucedido por meio da bondade.

Fala-se muito sobre a inteligência propriamente dita e sobre a inteligência emocional. O primeiro conceito refere-se à nossa capacidade de pensar analiticamente, enquanto o úl-timo se relaciona com a nossa capacidade de interagir emo-cionalmente. Considero que também existe uma outra for-ma de inteligência: a inteligência ética. O nosso QI ético descreve a nossa capacidade de fazer o bem. Essa capacidade é tanto genética quanto desenvolvida nos primeiros anos de vida. No entanto, é possível desenvolver essa forma de inte-ligência durante toda a vida. Independentemente do nível inicial do nosso QI ético, todos podemos fi car mais inteli-gentes nesse sentido. E essa é uma forma importante de in-teligência, pois ela é essencial quando se trata do êxito que teremos nas nossas vidas.

Nos primeiros capítulos, discuto os conceitos gentileza, ética e bondade. Examinarei também armadilhas comuns que devemos evitar se realmente queremos agir com gentileza. Em seguida, apresento argumentos que mostram que só temos a ganhar quando somos gentis. No capítulo seguinte, discu-

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to o que é sucesso e como podemos defi nir esse conceito difuso. Depois, serei tão pretensioso que chego a dar algumas dicas concretas de como podemos fazer uso de nossa bondade, nossa ética e nossa gentileza para sermos bem-sucedidos na vida.

Esse livro pode ser lido página por página, mas tam-bém funciona muito bem caso não se queira seguir sua es-trutura, lendo-se um pouco daqui e dali. Já que, como se sabe, pessoas diferentes se interessam por coisas diferentes, e de formas diferentes.

É importante destacar uma coisa, não importando o quão óbvia ela seja. Naturalmente as pessoas podem se perguntar se sou um exemplo vivo de como alguém deve ser gentil. A resposta é negativa, no entanto, tento constantemente apren-der a levar uma vida com gentileza.

Não há seres humanos perfeitos e devemos ter cuidado com aqueles que se acham livres de erros. No dia em que acharmos que chegamos ao nosso ideal, é hora de recomeçar. O ser humano totalmente bom é uma miragem que deve-mos perseguir, conscientes de que estamos à procura do pote de ouro no fi nal do arco-íris: jamais o alcançaremos. Mas podemos nos decidir a ser pessoas melhores, sabendo que nunca seremos perfeitos. No fi nal das contas, a única coisa que podemos fazer é o nosso melhor.

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Sobre a Gentileza e a Ética

Um dia, uma grande amiga sua telefona chorando. Ela é feliz com o marido, mas ele é muito ciumento. Sua amiga tinha acabado de ir jantar com um ex-namorado. O encon-tro foi totalmente inocente, mas o marido dela fi cou saben-do de tudo através de alguém que os viu na cidade. Ele fi cou furioso. Sua amiga suplica e pede que você confi rme que vocês duas estavam juntas naquela noite e que o tal ex-na-morado apareceu casualmente, detendo-se por pouco tem-po. Você pode se imaginar mentindo por causa de uma grande amiga?

Uma colega de trabalho tem tido um desempenho cada vez pior nos últimos meses. Quando você toca no as-sunto, ela revela que o fi lho está com problemas psicológi-cos e que ele tentou se suicidar. Ela faz você jurar que não vai contar nada para ninguém. Algumas semanas mais tar-de, você encontra o seu chefe, que diz estar pensando em despedir sua colega de trabalho e que a chefi a tomará uma decisão sobre o caso naquela tarde. Seus protestos não fa-zem com que seu chefe mude de idéia, mas você suspeita que ele fi caria sensibilizado caso soubesse a verdade. Você

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não consegue entrar em contato com sua colega de traba-lho. Será que você vai quebrar a promessa e contar o que sabe para o seu chefe?

Em nossa sociedade, há normas e princípios que deve-mos seguir. Não mentir é uma norma com que todos esta-mos de acordo, mas por outro lado, de acordo com a norma corrente, também devemos ajudar os nossos amigos. Mentir por causa de um amigo pode parecer uma forma de ser gen-til, porém, é certo faltar com a verdade?

Da mesma forma, manter nossas promessas é uma norma social. Uma promessa não deve ser quebrada. Por outro lado, às vezes a gente se encontra em situações em que se pode agir com bondade através da quebra dessa norma.

Os exemplos de dilemas apresentados nos permitem argumentar a favor de ou contra determinada atitude, pois, independentemente da nossa forma de agir, estaremos cer-tos e errados ao mesmo tempo. Existe uma área da Filosofi a que trata de como devemos pensar e agir diante de dilemas diversos — a chamada Ética. A Ética originou-se há muitos milênios. De acordo com a minha visão, a gentileza e a Éti-ca são áreas que se interceptam em muitos aspectos.

Por esse motivo, creio que seja importante dedicar um espaço para refl etir sobre o signifi cado da gentileza e da éti-ca, sobre as condições que temos para agir com bondade e sobre como podemos desenvolver tal capacidade.

Ética

A “ética” é um conceito que pode ser defi nido de diferentes formas. A meu ver, a ética trata sempre de relações: com as pessoas à nossa volta, com os animais com os quais reparti-

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mos a biosfera, ou seja, com todo o globo. A ética trata da responsabilidade que assumimos por essas relações. Portan-to, defi no ética da seguinte forma: a maneira pela qual nos relacionamos com os nossos semelhantes e com o nosso meio. Nessa defi nição, enfatiza-se o fato de que os nossos posicio-namentos éticos não são acontecimentos incomuns no nos-so cotidiano. A ética não trata apenas de decisões sobre ca-sos de vida e morte. Cada vez que me deparo com o outro, me deparo também com a ética. Como vou me relacionar com esse indivíduo? Como posso levar em consideração suas necessidades da melhor forma possível? Quanto tempo pos-so colocar à sua disposição? Que conseqüências têm os meus atos? O outro deve ser visto como um objeto ou como um indivíduo? Em vista disso, a ética trata da arte de (con)viver com os nossos semelhantes.

Porém, segundo a minha defi nição, a nossa responsa-bilidade é mais extensa do que isso: somos responsáveis por todo o planeta com suas miríades de vida animal e vegetal, já que o homem tem em suas mãos a possibilidade de fazer o mundo fl orescer ou de colocá-lo em ruínas. Por esse moti-vo, a ética é um pressuposto essencial para nossa capacidade de fazer o bem, para uma sociedade humanística, para a so-bre vivência do ser humano como espécie e para a perpetua-ção desse mundo.

“Moral” é um conceito freqüentemente utilizado quan-do há referência ao fato de se fazer o bem ou o mal. Em sua origem, não havia diferença entre os conceitos ética e mo-ral, já que ambas as palavras, em grego e latim respectiva-mente, signifi cam usos e costumes. No entanto, com o tem-po, esses conceitos acabaram assumindo outros signifi cados. A defi nição de ética em voga é: “As normas, leis e regras preestabelecidas que devemos obedecer.” Segundo essa defi -

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nição, a ética é a estrutura dentro da qual nos movemos como indivíduos. A moral, por sua vez, pode ser defi ni-da como o modo como lidamos com nossas escolhas éticas na prática, o que signifi ca que moral se refere à forma como nós, indivíduos, pensamos e agimos diante de um problema ético.

Tendo defi nido esses conceitos, podemos rapidamente passar adiante e constatar que é comum — e que funciona re-lativamente bem — usar essas palavras de uma forma mais li-vre, quando se fala, por exemplo, da “ética interior” ou da “mo-ral da sociedade”. O importante é termos em mente que ambos os conceitos tratam da relação com o outro.

Um senhor aposentado chamado Sven tem um colapso no meio da rua. Imediatamente um grupo de transeuntes junta-se em volta dele e alguém liga para pedir uma ambulância. O aposentado explica que é diabético e que esqueceu de tomar seus remédios, recebendo em seguida um pouco de suco para beber.

Joãozinho está chorando de dar pena no meio de um shopping enorme. Logo, várias pessoas se aproximam para fazer companhia ao menino enquanto chamam a mãe dele pelo alto-falante.

O marido de Ellin morre de um infarto fulminante e ela descobre de repente quantos amigos lhe oferecem apoio mostrando-lhe que não está sozinha na sua dor.

Ao passar por um grupo de adolescentes em gritaria, Anna percebe que um dos rapazes a segue. O medo já tinha tomado conta dela, quando o rapaz a alcança e entrega a carteira que tinha caído da sua bolsa.

Exemplos de pessoas que agem com bondade e que são solícitas com os outros são muitos. Mas... por que somos

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bons com os nossos semelhantes na maioria das situações? Por que não matamos o nosso vizinho quando ele liga uma furadeira às sete da manhã de um sábado? Por que não rou-bamos um carro mal trancado na rua, já que esse carro é melhor que o nosso? Por que em geral somos corretos, gen-tis e solícitos para com nossos semelhantes?

Não sabemos ao certo a resposta. Religiosos afi rmam freqüentemente que o motivo é a existência de uma “lei natural” divina que faz com que os atos de natureza boa sejam recompensados e os maus sejam punidos. Segundo essa perspectiva, a capacidade de diferenciar entre o bem e o mal é inerente ao ser humano.

Os biólogos evolucionistas podem afi rmar, por outro lado, que o ser humano é dotado de um pensamento ético-moral porque este representa uma vantagem na luta pela sobrevivência. Do contrário, já teríamos exterminado a nós mesmos numa fase inicial ou teríamos sido vítimas de ou-tras espécies, já que não teríamos a capacidade de trabalhar em conjunto nem de nos defender.

Os sociólogos, por sua vez, podem argumentar que se trata de convenções sociais, ou seja, temos um acordo recí-proco segundo o qual devemos tratar bem uns aos outros, pois todos ganham com esse tipo de atitude. Essas normas, regras ou leis são transmitidas de geração em geração: cada nova geração deve aprendê-las dos pais e da sociedade a que pertence.

Naturalmente pode ser assim: todos têm razão e a capacidade de ser bom chegou até nós por canais diferen-tes. Talvez seja como um carro com sistema de freios du-plos: se um tipo de freio não é acionado, há sempre um de reserva.

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Dilemas éticos são comuns

Um dilema ético é uma situação em que a nossa capacidade moral é confrontada com a realidade. As alternativas de ação que estão à nossa disposição possuem tanto vantagens quan-to desvantagens. Não importa como agimos: estaremos com razão e errados ao mesmo tempo.

Na Suécia, assim como em muitos outros países, discu-te-se até que ponto a eutanásia deve ser permitida. Na eutaná-sia ativa põe-se fi m à vida de uma pessoa gravemente doente, por exemplo, administrando-se uma dose letal de uma subs-tância. Uma pesquisa de opinião mostrou que mais da meta-de dos suecos é a favor da eutanásia, enquanto a maioria dos enfermeiros e médicos é contrária. Sem abordar essa discus-são em detalhes, podemos constatar que esse é um exemplo de um dilema ético, que tem tanto vantagens quanto desvan-tagens no que se refere à proibição ou permissão da eutanásia. Segundo a legislação sueca, os pontos negativos pesam mais, portanto, a eutanásia é proibida.

Às vezes somos levados a acreditar que dilemas éticos somente se referem a casos de vida e morte. Porém, a ética não trata somente de questões como a eutanásia, ou se é certo ou errado matar alguém para salvar a vida de outros, ou quando a comunidade internacional deve agir diante da suspeita de genocídio. Dilemas éticos são mais comuns do que isso.

Um conhecido meu trabalhou há muitos anos em uma microempresa. No total, ela tinha seis empregados além do chefe, que também era o seu fundador. A pessoa que era responsável pelas vendas já trabalhava com o chefe havia quase vinte anos. Eles se davam muito bem e suas famílias saíam juntas nos fi nais de semana.

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O chefe de vendas tinha mais de 60 anos e, nos últi-mos tempos, era cada vez mais difícil para ele acompanhar certas inovações, especialmente na área da informática. Ele se confundia e seus erros eram cada vez mais numerosos. Naturalmente, o chefe estava preocupado com essa situação e os outros funcionários cobravam dele cada vez mais que algo fosse feito. O chefe não tinha coragem para despedir seu velho amigo e funcionário prestes a se aposentar, resol-vendo, por fi m, empregar um assistente, que acabou assu-mindo muito do trabalho do chefe de vendas. Nessa mesma época, a economia entrou em crise e o volume de negócios diminuiu. Os custos com o funcionário extra — que de fato representava duas pessoas para realizar o trabalho de uma — acabaram por contribuir para a falência da empresa. To-dos os funcionários fi caram sem trabalho.

Será que esse é um bom exemplo de uma decisão errô-nea diante de um dilema ético? Talvez a empresa pudesse ter sido salva caso o chefe tivesse dirigido com mão de ferro e tivesse demitido seu velho amigo. Conseqüentemente, seis pessoas teriam continuado no trabalho, em vez de sete per-derem o emprego e a empresa ir à falência. Com a ajuda de uma matemática simples, a resposta parece óbvia.

No entanto, a ética não é sempre um caso de matemá-tica elementar. É fácil dar uma de sabido quando o fato já está consumado. O empresário da história acima não tinha como saber do futuro da empresa. Ele supôs que teria con-dições fi nanceiras para empregar uma pessoa a mais. Esse não foi o caso; e é difícil saber em que medida tais cálculos eram realistas. Se tudo tivesse dado certo, hoje poderíamos muito bem estar elogiando essa mesma pessoa pela conside-ração que teve para com seu amigo e colega de trabalho.

Por outro lado, é possível imaginar que a demissão do chefe de vendas também pudesse ser algo positivo para ele.

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Pode ser que ele não gostasse mais do trabalho, mas quisesse continuar para não trair o chefe e a empresa que pareciam precisar dele. Talvez ele sentisse que já não era mais a pessoa adequada para o serviço. A curto prazo, a possibilidade de se retirar do cargo podia ter sido um alívio para ele. Sabendo como a história acaba, podemos talvez afi rmar que o melhor nessa situação teria sido demiti-lo a fi m de salvar o emprego dos outros funcionários.

Ou... talvez a empresa tivesse falido mesmo assim. En-tão a demissão teria sido um mal desnecessário com conse-qüências emocionais para o velho servidor fi el.

No fi nal das contas, a conclusão é que não havia ne-nhuma resposta certa no momento da decisão. Isso é típico quando se trata de um dilema ético. Às vezes é o caso de se calcular as probabilidades: quais seriam as conseqüências prováveis se eu fi zer dessa ou daquela maneira? Às vezes tra-ta-se de seguir normas e regras, às vezes de quebrar esses princípios. Às vezes isso signifi ca que se leva em conta as conseqüências negativas para certas pessoas em comparação com os efeitos positivos para outras. Pode também ser o caso de ponderar o quanto os próprios interesses devem ser protegidos em relação aos dos outros.

Esse é um exemplo de um dilema ético cuja decisão acarreta conseqüências sérias. Porém, dilemas éticos podem ser situações cujos resultados não são tão dramáticos como no caso acima.

Durante muitos verões, meus fi lhos passavam algumas semanas em um acampamento. Numa dessas ocasiões, eu mesmo fui ao acampamento para dar uma olhada no fun-cionamento do local. Meus fi lhos imploraram que eu trou-xesse coisas gostosas para comer quando fosse fazer a visita, assim, levei um saco de batatas fritas, balas e refrigerante.

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Ao chegar no local, o responsável pelo acampamento foi ao meu encontro. Olhando para minha bolsa, ele disse:

— O senhor sabe que não é permitido trazer doces para as crianças? É uma questão de justiça.

Respondi que entendia. Mais tarde, ao encontrar meus fi lhos e ao contar que não podia dar a eles o que eu tinha tra-zido, eles me olharam tristes e decepcionados. Voltei para o carro e guardei com a consciência pesada o que eu tinha comi-go. Depois de algumas horas, meu coração dizia que eu tinha cometido um erro, apesar de ter seguido as regras que eu mes-mo achava razoáveis. Mas... eles eram meus fi lhos e seus olhos fi caram tristes. Acabei pegando os refrigerantes e o saco de batatas fritas (o supervisor somente tinha dito “doces”) e os dei discretamente para os meus fi lhos. Eu sabia que segundo as regras do local eu tinha cometido um erro, porém, foi com o coração aliviado que abracei meus fi lhos e fui embora.

Regras, normas e princípios existem para serem respei-tados. No entanto, nos deparamos com situações em que outros princípios éticos devem ser levados em consideração. Eu sabia que estava errado, pois estava desrespeitando as regras, mas naquela situação optei mesmo assim por fazê-lo. Não havia, para mim, uma solução óbvia. Escolhi uma al-ternativa que era ao mesmo tempo certa e errada, deixando de lado uma que também era tanto certa quanto errada.

Dilemas éticos são corriqueiros. Pode ser o caso de se parar na rua para ajudar alguém com o carro enguiçado e correr o risco de chegar em casa tarde demais. Ou resolver lavar os copos sujos de café do escritório e, com isso, chegar atrasado numa reunião. Ou, mesmo se arrastando, ir cum-primentar o colega no fi nal do corredor, quando a alternati-va seria ir de mansinho para a mesa de trabalho por causa do cansaço matinal.

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Podemos constatar que a ética faz parte do nosso dia-a-dia. Cada dia é cheio de dilemas éticos, sejam eles peque-nos ou grandes, e é bom que estejamos conscientes desse fato. Nossas possibilidades de agir de uma forma boa depen-dem, de um lado, de nossa capacidade de reconhecer dile-mas e, de outro, das ferramentas éticas que temos à nossa disposição.

Ferramentas

O homem é um ser único em vários aspectos. Nenhum ou-tro animal tem mãos com uma habilidade motora tão fan-tástica, o que possibilitou a criação de ferramentas. Somos os únicos animais com um cérebro que tem a faculdade de comunicar, criar e pensar analiticamente. O ser humano é também único no que se refere à ética, pois tem a habilida-de bem desenvolvida de administrar problemas éticos. Ne-nhum outro ser na Terra chega perto de ter tal habilidade. À nossa disposição temos nada mais, nada menos do que cin-co ferramentas éticas formidáveis.

A primeira ferramenta é o fato de que o ser humano desen-volveu uma série de princípios éticos, normas, regras e leis que funcionam como guia e indicam como devemos agir. Um desses princípios tem a ver com a importância do ser humano e implica que todos temos os mesmos direitos. Um outro princípio é o do direito à vida, o qual implica que sempre devemos protegê-la e mantê-la, uma vez que esteja ao nosso alcance. O princípio da autonomia, por sua vez, signifi ca que todo ser humano tem o direito de tomar deci-sões sobre a sua própria vida. Um outro princípio é o da

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solidariedade, segundo o qual devemos ser solidários e re-partir com aqueles que têm menos.

Os princípios podem às vezes colidir uns com os ou-tros. Um exemplo disso é a discussão sobre o direito ao aborto. Por um lado, segundo o princípio do direito à vida, o feto tem um direito intrínseco que deve ser protegido. Esse direito aumenta à medida que a gravidez avança. Por outro lado, o princípio da autonomia afi rma que o ser hu-mano, nesse caso os futuros pais, tem o direito de decidir sobre sua própria vida. Os legisladores da Suécia soluciona-ram esse dilema permitindo o aborto livre até a décima oi-tava semana de gravidez.

Um outro exemplo de norma é aquela que diz que não devemos mentir, nem falar mal dos outros e que devemos cumprir nossas promessas. Essas são convenções com as quais a maior parte da sociedade está de acordo. Se não se-guimos as normas, isso não signifi ca que somos punidos pela sociedade, porém, somos criticados.

Infringir as leis pode, por sua vez, levar à punição por parte da sociedade. A legislação na sociedade humana pode ser traçada desde os tempos remotos da Bíblia até o nosso avançado código de leis.

Leis, regras, princípios e normas servem-nos de guia, porém não nos dão todas as respostas. Caso fosse tão sim-ples, a ética poderia ser praticada facilmente. Em vez disso, precisamos de um número maior de ferramentas para resol-ver os problemas com que nos defrontamos.

A segunda ferramenta é o nosso bom senso, que nos ajuda a fazer análises racionais, a avaliar como podemos fazer o nos-so melhor e como evitamos fazer o mal. A capacidade de analisar as conseqüências dos nossos atos é mais desenvolvi-

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da nos seres humanos do que nas outras espécies animais. Tal capacidade de analisar racionalmente um dilema pode ser aperfeiçoada ao longo da vida.

Um exemplo hipotético: digamos que no trabalho fo-ram organizadas duas listas de doações. Uma é para um co-lega cuja visão está fi cando cada vez pior em decorrência de uma catarata. Pede-se que você doe o equivalente a 300 re-ais para a operação. A outra lista é destinada a pessoas na África que sofrem de uma doença oftalmológica que leva à cegueira. Pede-se que você doe a mesma quantia, que seria sufi ciente para salvar a visão de duas pessoas. Você constata que só tem o sufi ciente para contribuir em uma das doa-ções. O que você faz? Naturalmente não resolvemos esse dilema somente com o bom senso, mas ele pode contribuir na busca de uma solução.

Estudou-se a atividade cerebral de pessoas que se en-contram diante de duas variantes de um dilema. Na primei-ra variante, uma pessoa está na plataforma de uma estação e vê um vagão que desliza na direção de cinco pessoas que estão nos trilhos. Puxando uma alavanca, a pessoa do estu-do pode desviar o vagão para outros trilhos, porém, lá se encontra uma outra pessoa que seria morta através dessa manobra. A alavanca deve ser puxada? A maioria responde que sim.

Na outra variante desse dilema, a pessoa poderia nova-mente impedir que as cinco pessoas morressem, porém, nesse caso, é necessário que uma outra pessoa seja empurra-da para os trilhos antes que o vagão alcance as outras. Isso deve ser feito? A maioria responde que não.

Embora o resultado fi nal seja o mesmo, reagimos de formas diferentes diante dessas alternativas, em parte, por-que na primeira variante o nosso gesto indiretamente faz

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com que alguém morra, enquanto no segundo caso mata-mos diretamente uma pessoa, ou seja, com as nossas pró-prias mãos.

Ao se estudar o cérebro nessa experiência, observou-se que, enquanto os participantes decidiam puxar ou não a alavanca, as partes do cérebro ativadas eram aquelas que têm a ver com a razão; mas eram as partes do cérebro inter-ligadas às emoções que eram ativadas quando a decisão en-volvia empurrar ou não alguém nos trilhos.

Temos um instinto de não matar, que tem de ser supe-rado emocionalmente para que possamos tirar a vida de al-guém com nossas próprias mãos. Entretanto, no primeiro caso, fazemos uma análise racional ao pensarmos em como agir a fi m de que o estrago seja o menor possível.

A terceira ferramenta é a nossa consciência, que funciona como uma bússola interna apontando para nós o que é bom e o que é mau. No exemplo do vagão, travamos uma luta principalmente com a consciência ao decidirmos, na segun-da variante, se matamos ou não uma pessoa com nossas próprias mãos para salvar outras cinco.

A consciência funciona como um índice emocional de como devemos agir. Os sentimentos indicadores do que é certo ou errado são altamente esculpidos de acordo com o grupo ao qual pertencemos. Construímos valores internos que freqüentemente harmonizam com a sociedade à nossa volta. Se trocamos de sociedade ou se os valores do grupo mudam, isso pode, conseqüentemente, infl uenciar a voz da nossa consciência sobre o que é certo ou errado. Se, em re-lação a uma certa questão, sempre escolhemos agir de forma contrária à voz da nossa consciência, tal reação pode nos levar a deixar de sentir que esse ato é algo errado. Assim,

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calamos a nossa consciência. Um pensamento semelhante é expresso nos escritos judaicos — o Talmude: “Aquele que co-mete um pecado duas vezes não o considera mais um crime.”

Nossa consciência deve ser usada, acima de tudo, como uma ferramenta na tomada de decisões. Sabemos que não nos sentimos bem se contrariamos o que ela nos diz, pois fi camos com a “consciência pesada”.

É a consciência ou o superego que nos faz tomar mui-tas decisões justas e que nos impede de cometer atos que sabemos terem conseqüências negativas. Os psicopatas não dispõem dessa ferramenta, porém eles são felizmente uma minoria. Todas as outras pessoas têm acesso a essa voz inter-na que nos guia. Basta ouvir o nosso interior.

A quarta ferramenta é a nossa capacidade de ter empatia, ou seja, a nossa habilidade de nos colocarmos no lugar de uma outra pessoa. As pessoas simplesmente não pensam da mes-ma forma, não têm as mesmas necessidades ou as mesmas expectativas em relação ao seu meio. Se tratássemos todos com base num mesmo molde, erraríamos toda hora justa-mente porque as pessoas são diferentes. Para saber como devemos agir em relação à pessoa que se encontra diante de nós, precisamos entender suas necessidades individuais. Aqui entra em cena a capacidade de ter empatia.

Empatia não está diretamente ligada a fazer o bem, mas envolve a habilidade de entender como os outros pen-sam e reagem. Depois podemos utilizar esse entendimento para fazer o bem — ou não. Simpatia signifi ca sentir com alguém, enquanto empatia refere-se a sentir em alguém. Uma outra forma de expressar tal diferença é dizer que o objetivo da simpatia é o bem-estar alheio. Por sua vez, a primeira meta da empatia é a compreensão. A capacidade

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de pensar de forma empática varia de pessoa para pessoa, porém, todos temos possibilidade de desenvolver tal habili-dade ao longo da vida.

Segundo um equívoco corriqueiro, ter empatia demais pode ser prejudicial a nós mesmos. Dizem que podemos nos consumir caso carreguemos nos ombros o sofrimento alheio. No entanto, empatia não é sofrer no lugar de al-guém, ela se refere à compreensão do nosso semelhante e nada indica que fazemos mal a nós mesmos se temos empa-tia em excesso. Pelo contrário, segundo pesquisas, uma ca-pacidade bem desenvolvida de ter empatia pode nos prote-ger do estresse, por exemplo.

A quinta ferramenta são as pessoas ao nosso redor, às quais podemos pedir conselhos ou com quem podemos trocar idéias. Infelizmente esse recurso é mal aproveitado na nossa sociedade, pois há uma idéia difundida de que devemos re-solver nossos problemas sozinhos, não incomodando os ou-tros. Claro que essa é uma forma errada de pensar, já que ambas as partes ganham quando pedimos um conselho. Aquele que pergunta recebe um conselho e tem a possibili-dade de discutir seus pensamentos com o outro. Aquele que é solicitado costuma sentir-se honrado com o pedido e tem, por sua vez, a possibilidade de crescer e se desenvolver ao trocar idéias com outra pessoa. Pedir conselhos a alguém é mostrar que confi amos em nosso semelhante. Com isso, pe-dir conselhos torna-se uma forma de dar um presente.

Contar com as pessoas à nossa volta como uma ferra-menta para resolver problemas éticos pode fazer parte de um sistema. Por exemplo, a criação de um espaço para a discus-são de questões éticas no trabalho, onde os funcionários po-dem expor os problemas que surgem e, com isso, pedir auxí-

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lio aos colegas. Um outro método é o da mentoria, segundo o qual um profi ssional mais experiente pode servir de guia para outros. No entanto, as discussões com as outras pessoas também podem ter um caráter mais informal: ao se procurar alguém que já passou por um determinado problema ou que tem a qualidade de ser cuidadoso nas suas refl exões.

Pedir conselhos é uma ferramenta poderosa e ao ser utilizada pode, entre outras coisas, nos levar a perceber que estamos rodeados de muitas pessoas sensatas.

Assim, aqui está o que vocês têm à disposição: cinco ferra-mentas excelentes. Se temos consciência dessas ferramentas e desenvolvemos nossa capacidade de utilizá-las, criamos as condições necessárias para lidar com os dilemas éticos com os quais nos confrontamos freqüentemente. O nosso acesso a esses instrumentos signifi ca ao mesmo tempo algo mais: uma enorme responsabilidade. Quando o assunto é dilema, não existe uma resposta a ser dada de antemão. Podemos nos apoiar em algumas ferramentas éticas, porém, no fi nal das contas, elas não podem nos dar as respostas certas. Uma decisão bem pensada baseia-se geralmente em uma ponde-ração com a ajuda de diversos instrumentos ao mesmo tem-po. E no caso de um julgamento bem-feito, talvez não sai-bamos qual dessas ferramentas teve um peso decisivo na decisão tomada. No fi nal, a decisão pode se basear parcial-mente na intuição, uma ferramenta de uso geral que nos leva a agir segundo uma sensação do que é certo ou errado.

Decisões éticas funcionam mais ou menos como mui-tas outras coisas às quais nos dedicamos: a prática nos torna cada vez melhores. É exatamente assim quando jogamos xa-drez, tênis ou tricotamos: com o tempo e a persistência, nos tornamos cada vez mais hábeis. No caso do pensamento

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ético, também é possível treiná-lo. Vale a pena aceitar esse desafi o, pois é uma responsabilidade muito grande lidar com os nossos semelhantes e com as pessoas à nossa volta. A responsabilidade de se tomar uma boa decisão repousa, por fi m, nos ombros de cada indivíduo.

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