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jun 2008 | itaucultural.org.br 11 ITAÚ CULTURAL Criação e conexão

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.�jun 2008 | itaucultural.org.br11

ITAÚ CULTURAL

Criação e conexão

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sumário

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ITAÚ CULTURAL

Caiu na rede... é artista!

A autoria nos tempos da criação partilhada

Por dentro da couve-florConheça o método colaborativo de um coletivo de dança

O regente da orquestraEm entrevista, Sílvio de Abreu fala sobre a realização de novelas

Bicho de três cabeçasAs misturas inusitadas do grupo carioca Chelpa Ferro

De divinas a mundanasA influência das musas na literatura contemporânea

Menos é maisComo as restrições, impostas ou não, interferem na criação artística

Continuum on-lineO conteúdo exclusivo da revista na internet

Área LivreCapas da revista feitas por leitores ilustram a seção

Vá procurar sua turma!

Mesmo que crie individualmente, o artista não está só. Ele integra uma rede formada por outros profissionais, que auxiliam seu trabalho direta ou indiretamente, e sofre influências diversas, seja a crítica de um leitor muito especial; seja a pressão do grande público, que reage e faz mudar os rumos de uma novela; ou a opinião certeira de um colega, que, com sua experiência, dá o toque de mestre que faltava à conclusão de uma obra coreográfica. A regra de ouro, portanto, é: para criar não é necessário, mas é muito mais produtivo, se integrar a seus pares, presencial ou virtualmente.

Ao pensar nas redes que se formam em torno do artista, a Continuum Itaú Cultural volta a abordar os processos de criação, assunto visitado na revista de setembro de �007 (Descons-truindo o artista). Para esta edição, com o título Criação e conexão, a missão era ampliar e dar novo enfoque à reflexão iniciada anteriormente. Dessa forma, as reportagens se pautaram

pela busca de aspectos inovadores, como as restrições impostas pelos artistas a si mesmos no ato da criação. Outro aspecto da rede são pessoas, objetos, locais que participam do processo criativo de forma inconsciente (“ins-pirando” artistas a conceber trabalhos tal qual faziam as musas da Antiguidade). Perfis do Coletivo Couve-Flor, de Curitiba, e do Chelpa Ferro, do Rio de Janeiro, mergulham no dia-a-dia desses grupos, revelando como aspectos considerados banais podem ser essenciais

à criação. Em entrevista, o escritor Sílvio de Abreu dá a devida importância à novela, obra que

integra centenas de processos criativos pelo fato de ser produzida por vários profissionais.

Na Área Livre, como resultado da ação iniciada na edição anterior, são publicadas duas capas criadas por leitores. Escolhidas entre as mais de cem recebidas, elas

dão a visão desses autores sobre o tema O desenho das idéias. Na revista virtual estão disponíveis todos os trabalhos recebidos, com identificação

de seus criadores. Lá também estarão, durante todo o mês, atualizações exclusivas do conteúdo impresso.

11 jun �008

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Tiragem 10 mil – distribuição gratuita Sugestões e críticas devem ser encaminhadas ao Núcleo de Comunicação e Relacionamento [email protected]. Jornalista responsável Ana de Fátima Sousa MTb 13.554

Continuum Itaú Cultural Projeto Gráfico Jader Rosa Redação André Seiti, Érica Teruel Guerra, Marco Aurélio Fiochi, Mariana Lacerda, Thiago Rosenberg Colaboraram nesta edição Cia de Foto, Mariana Sgarioni, Micheliny Verunschk Agradecimentos Ana Alencar, Benjamim Taubkin, Cecília Almeida Salles, Couve-Flor Minicomunidade Artística Mundial, Felipe Ehrenberg, Ivan Teixeira, Paulo Almeida, Sônia Sobral, Zezão

capa lousa que integra o processo criativo do coletivo Couve-Flor | imagem: Cia de Foto

ISSN �98�-8084 Matrícula 55.08� (dezembro de �007)

A imagem da página �6 está sob licença do Creative Commons Attribution �.5

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Caiu na rede… é artista!A era da criação partilhada chega às artes

Por Micheliny Verunschk

O que podem ter em comum os poetas Jorge de Lima e Murilo Mendes, os coletivos teatrais Angu, do Recife, e Clowns de Shakespeare, de Natal, e um programa de software musical? A princípio, não parecem ter nada em comum. Mas, se alguém falar em autoria partilhada ou criação colaborativa, temas que mobilizam estudiosos e interessados em processos criativos, eles têm tudo a ver uns com os outros.

Em �9�5, um livro de poemas publicado sob o título Tempo e Eternidade chamava a atenção dos leitores. Por um lado, por sua temática cristã, que causava certo rebuliço nos meios literários brasileiros, ainda muito próximos da Semana de Arte Moderna de �9��. Por outro lado, pelo fato de ser escrito a quatro mãos pelos poetas Jorge de Lima e Murilo Mendes, numa época em que a autoria individual demarcava com clareza seus territórios. Não que autoria compartilhada e criação coletiva fossem exatamente uma novidade, se pensarmos nos relatos mitológicos, nas lendas nacionais ou nos contos de fadas em que a voz individual se perdia no tempo e na voz plural dos inúmeros contadores de histórias. É que se vivia ainda uma época de defesa da autoria individual, em que a obra levava a “grife” do autor.

Não é o caso da criação contemporânea. Hoje, em meio a tantas possibilidades de comunicação, ocasionadas sobretudo pelo burburinho da internet, ela rompe as fronteiras da autoria e até mesmo a necessidade da presença física do artista no momento da feitura da obra. Nesses processos, não há regras fixas e a experimentação permeia os espaços criativos. Tudo é possível nesse campo, desde concepção em duplas ou em coletivos multidisciplinares até espetáculos e obras construídos por anônimos em rede.

É o que relata o coletivo Angu de Teatro que, para esta reportagem, optou por responder coletivamente às perguntas feitas. O grupo pernambucano, que trabalha com criação colaborativa, tem parte de seus componentes fora do Recife: “Temos integrantes morando atualmente em São Paulo, Rio de Janeiro e Guayaquil, no Equador. Todas as opiniões são ouvidas e as ‘viagens’ individuais valorizadas e compartilhadas. Na verdade não existe uma fórmula na criação, e sim experimentos, trocas, vivência. Digamos que não existe um método, e sim sistemas”.

reportagem

Coletivo Angu de Teatro, de Pernambuco, encena Angu de Sangue | imagem: Diego Pisante

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Para Fernando Yamamoto, do Clowns de Shakespeare, o mote é “estar no olho do furacão” dos movimentos de articulação na-cional. Convidar atores e diretores de outros grupos é uma das estratégias. Sobre as mo-tivações desse tipo de criação, Yamamoto enfatiza que “em lugares em que a sobre-vivência da arte é mais difícil, com ‘merca-dos’ mais restritos, o espaço dos grupos é a única forma de se manter produtivo. Já nos grandes centros econômicos, é uma ma-neira de se posicionar contra o sistema de mercantilização da arte. Em qualquer des-sas experiências, a oportunidade de criar sob uma perspectiva de troca, para pensar sobre o universo no qual se está inserido, é o que motiva a organização coletiva”.

O autor morreu?

Para Cecília Almeida Salles, especialista no estudo de processos criativos da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), a autoria individual é um conceito ques-tionável: “O escritor Italo Calvino dizia que ‘cada vida é uma enciclopédia, uma biblio-teca, um inventário de objetos, uma amos-tragem de estilos’. É muito difícil, mesmo nos processos individuais, falar em autoria solitária. O artista, como uma ‘comunidade’, não é um ser isolado. A criação tem história e é feita de diálogos múltiplos.”

O romancista Raimundo Carrero, autor de Somos Pedras que se Consomem (Iluminuras, �995) e professor de oficinas de criação lite-rária, é um exemplo desse caráter comuni-tário da autoria. No entanto, ele reinvindica a solidão em momentos de seu processo criativo: “Começo por recortes de jornais. Às vezes um rosto, uma entrevista, uma cena. Posso conversar com minha mulher ou

com algum amigo. Posso, por exemplo, levar alguns capítulos para análise na

oficina, com meus alunos. E não mais do que isso. Gosto de decidir, de

resolver, de solucionar”.

No Coletivo Angu, a multiplicidade valoriza a individualidade: “Trabalhamos as proposições de cada um. O processo em conjunto mistura esse ‘angu’ e dá a liga. Procuramos a valorização das subjeti-vidades e a união das individualidades”. Ya-mamoto divide a mesma opinião: “Acredito que o fortalecimento do discurso individual é caminho fundamental para o crescimento do discurso coletivo”.

No centro da autoria

O poeta e performer Michel Melamed, au-tor da Trilogia Brasileira, da qual o espetácu-lo Regurgitofagia (�004) faz parte, pesquisa sobre os limites da participação do público na construção da obra. Nesse trabalho, es-tava conectado por sensores ao público e a cada reação deste − palmas, risos − levava choques. “Imagino que tenhamos não um espectador, mas um espectautor e/ou es-pectator. Mas não se trata de uma diluição e sim de uma multiplicação de individua-lidades e coletivos. É importante ressaltar que esse expediente enfatiza, direta ou in-diretamente, o espectador como responsá-vel pela realização da obra, posto que sua interpretação dará a dimensão dela.”

Uma experiência colaborativa que retirou espectadores do seu lugar usual é exemplar dessa dimensão vivida de que fala Mela-med. Trata-se do Park Fiction, ação realizada em Hamburgo, Alemanha, que reuniu artis-tas, moradores e ativistas sociais em torno da construção de um parque como forma de resistência urbana. Definido como “um lugar utópico, cujo modelo é o paraíso”, esse projeto político, artístico e participativo foi elaborado entre �997 e �007, e se estabele-ceu com base no princípio de que a comu-nidade tem o direito de interferir no espaço em que vive.

Um exemplo mais radical foi o desenvolvi-mento do Faust Music On Line (FMOL), sof-tware para composição musical coletiva em ambiente virtual em tempo real. Desenvolvido para a trilha do espetáculo Fausto 3.0, do gru-po catalão La Fura dels Baus, a ferramenta per-

mitiu que compositores de todo o mundo participassem da criação sonora da obra. O resultado foram �.�00 composições que passaram pela avaliação de jurados. Poste-riormente, �00 temas selecionados foram encaminhados aos compositores anônimos para ser novamente trabalhados.

De �997, quando o FMOL foi criado, até hoje, novos ambientes e aplicativos foram desenvolvidos para que usuários possam criar música em regime cooperativo e até mesmo ensiná-la. É o caso do sistema Edu-Musical, que, sob a batuta de músicos da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp), orienta a aprendizagem colabo-rativa a distância. A composição coletiva também é feita em ambiente virtual entre os alunos.

Desafios para a criação partilhada

Os processos colaborativos têm seus de-safios, sejam subjetivos, políticos ou es-truturais. O modelo coletivo nem sempre

é facilitador na execução de uma obra, no entanto isso não significa paralisia.

Pelo contrário. O número de expe-riências nessa área só cresce.

Para o coletivo Angu, a palavra-chave é entendimento mútuo. “Procuramos ter compreensão com os projetos individuais, e moldar o tempo disponível dos integran-tes, que mantêm atividades paralelas. Defi-nitivamente não é mais fácil trabalhar em coletivo. É bem menos complexo realizar um trabalho solo. Ao mesmo tempo que existem afinidades, existem as diferenças, que são levadas em conta. Mas a vontade de trabalhar juntos, a sintonia, e também a amizade, motivam o trabalho coletivo.“

Yamamoto expõe as dificuldades em ter-mos mais globais. “Em tempos em que os valores do acúmulo e da concentração de renda imperam, em que a ode ao individua-lismo reina, penso que fazer teatro coleti-vamente é um ato de resistência por si só. Acredito que nós, artistas, temos a obriga-ção de nos posicionar diante da barbárie que se anuncia globalmente. Talvez o siste-ma sugira a busca por um caminho de indi-viduação, de ícones, de ídolos. No entanto, creio na potência das transformações que a prática coletiva proporciona, tanto nos próprios agentes dentro do grupo quanto no impacto que essa práxis coletiva possa causar na sociedade.”

Colaboração vinda de diferentes regiões do país marca o Angu | imagem: Tuca Siqueira

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Por dentro da couve-florEnsaios, reuniões e um cafofo: conheça o processo de criação artísticade um coletivo de dança

Por André Seiti

Ela pega o violão e senta sobre uma tartaruga de pelúcia, a mesma com a qual, minutos atrás, simulava atos sexuais. Está próxima ao público. Um clima intimista envolve o ambiente do teatro em São Paulo. Na platéia, um grupo de pessoas em particular aguarda com maior expectativa esse momento. Ela começa a cantar em inglês, uma canção que fala sobre lembranças e amores. O fim da apresentação chega e os aplausos vêm. Além dela, não há mais ninguém no palco, mas ela não está sozinha.

“Viu como é bom trabalhar em coletivo?” A pergunta feita pela bailarina Elisabete Finger, que acabara de assistir à performance, era mais um sinal de aprovação do que propriamente uma questão. Três dias atrás, em Curitiba, em uma reunião regada a mate, Stéphany Mattanó, na sala de sua casa, mostrava a seus companheiros do coletivo Couve-Flor Minicomunidade Artística Mundial a obra Pop-Hipnotic-Machine, que seria exibida em São Paulo. Enquanto dançava, cantava, decapitava uma boneca e simulava relação sexual com uma tartaruga de pelúcia, os outros integrantes do Couve-Flor mais a iluminadora Fábia Guimarães assistiam atentamente à apresentação/ensaio.

Encerrada a sessão, logo os comentários surgiram. No início, eles eram tímidos e se misturavam a assuntos banais, como o desaparecimento de um padre que se aventurara a sair do Paraná voando pendurado em balões de festa. Mas logo a conversa tomou seu rumo. Um por um apontou os prós e os contras do que acabara de ver. Muitas sugestões e alguns mates depois, um consenso: era preciso encontrar uma maneira de encerrar Pop-Hipnotic-Machine aproximando artista e platéia, criando, assim, um clima intimista. Sugestão acatada.

reportagem

Mais fácil, não mais cômodo

Formado em �005, na capital paranaense, por um grupo de sete amigos – Elisabete Finger, Gustavo Bitencourt, Michelle Moura, Ricardo Marinelli, Stéphany Mattanó, Cristia-ne Bouger e Neto Machado (os dois últimos atualmente moram nos Estados Unidos e na França, respectivamente) –, o coletivo Cou-ve-Flor desenvolve trabalhos colaborativos entre seus membros e com artistas de fora. Mesmo as criações individuais, como a Pop-Hipnotic-Machine, de Stéphany, são subme-tidas a processos conjuntos. Para Elisabete, as instruções de seus amigos de coletivo durante o processo criativo são imprescin-díveis. “Antes de mostrar para o público, eu tenho de mostrar para eles. Sem isso, seria como fazer música sem escutar o que você está falando.”

Apesar da influência do grupo nas criações individuais, essas são bastante heterogêneas. “O trabalho em coletivo potencializa a indi-vidualidade”, explica Marinelli. “Não nos inte-ressa construir uma estética em comum.” Ele é um dos integrantes do Couve-Flor que co-meçaram a contar em suas criações com um elemento denominado olhar exterior. “Não é apenas uma pessoa que vai olhar para ver se está bom ou ruim”, afirma. “Ela propõe e questiona referências, acompanhando o

trabalho de perto em todos os lugares por onde eu passo. É como se fosse um

alter ego que partilha o espaço de concepção e direção da coisa.”

Elisabete, que exerceu a função de olhar ex-terior para Quase Nu, performance de Mari-nelli, complementa: “Eu não tenho intenção de impor as minhas escolhas estéticas, os meus interesses para a obra dele, eu tenho de saber trabalhar dentro do que ele pro-põe”. É necessário um autopoliciamento para não intervir além do limite no trabalho alheio. “Eu não quero que o Ricardo faça um primo do Amarelo” (performance criada por ela, entre �006 e �007, na França e em Por-tugal). Segundo ela, saber controlar quanto cada um pode intervir nas criações pessoais é essencial. “Você dá um poder a essas pes-soas, que é o de criar junto com você, e elas vêm com uma proposta que não é a sua, então você tem de negociar o espaço que deu a elas.” De acordo com Elisabete, “juntos é mais fácil, mas não é mais cômodo”. Para Marinelli, trabalhar coletivamente é bastante difícil. “Você tem de ter a habilidade de ouvir outras pessoas, respeitar o potencial criativo e as idéias que elas oferecem e, ao mesmo tempo, não permitir que isso vire o samba do crioulo doido, não deixando escapar das suas mãos as coisas que você queria fazer.”

Amarelo, de Elisabete Finger | imagem: André Seiti/Itaú Cultural Ensaio de Adaptação ou Estudo N° 3 para um Plástico Amarelo, no Cafofo | imagem: André Seiti/Itaú Cultural

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Em mudança

Se não é do interesse dos integrantes do Couve-Flor fazer obras semelhantes, tam-bém não é criar trabalhos cujos processos se finalizam. “[Quase Nu] é um projeto que não acaba. Há ainda muita coisa para acontecer”, conta Marinelli. Não é à toa que diversas mu-danças ocorrem desde a concepção original de um projeto até sua primeira execução para o público e também durante o próprio período de apresentações. Adaptação ou Estudo Nº 3 para um Plástico Amarelo, obra coreográfica de Elisabete, sofreu diversas alterações. Apropriação da peça My Country Music, da coreógrafa americana Deborah Hay, a obra permite adicionar ou retirar ele-mentos, contanto que não se altere a ordem de movimentos da estrutura original. Nesse sentido, alguns itens foram incorporados por Elisabete durante o processo de criação. O mais notável deles é a galocha preta de solado amarelo. “Enquanto eu fazia uma resi-dência em Terra UNA [ecovila em Minas Ge-rais], praticava o Adaptação, em um pomar, vestindo galochas, que acabei aproveitando nas apresentações.”

Quem também aponta mudanças signifi-cativas em seu trabalho é Michelle Moura. Após ensaiar a performance Peça Selecta 1, em que constrói varais com barbantes nos quais pendura as roupas que está vestindo, ela explica a principal mudança da obra, iniciada em Curitiba e no Rio de Janeiro em �00�. “Daquele tempo para cá, o trabalho ga-nhou outro tipo de densidade, porque quan-do o retomei, em �006, eu já era outra pes-soa”, explica. Ela ainda aponta as condições climáticas como um fator importante para a concepção da sua obra. “Não teria a idéia de fazer a Peça no inverno aqui do Sul [ela se despe completamente durante a perfor-mance].” Quanto a criar em coletivo, não titubeia: “O ambiente com mais pessoas é mais fértil, mas quando você cria com mais gente é necessário mais negociações”.

Michelle Moura ensaia para a performance Peça Selecta 1 | imagem: André Seiti/Itaú Cultural

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A parte e o todo

Localizado na região central de Curitiba, entre bêbados, prostitutas e travestis, está o ponto de encontro do Couve-Flor: o Cafofo. É lá onde os integrantes do coletivo cos-tumam ensaiar, apresentar alguns de seus espetáculos e promover encontros com ou-tros artistas. Na maioria das vezes, o público não precisa desembolsar nada para assistir a essas apresentações.

Entre um ensaio e outro, é possível ver Mi-chelle engatinhando pelo chão do Cafofo com uma fita métrica na mão. O motivo: a necessidade de saber as dimensões espa-ciais do local para fazer um orçamento de calhas, uma vez que o telhado do prédio está condenado devido a infiltrações. “A gente é como uma empresa e, ao mesmo tempo, um grupo de amigos, que funciona de um jeito caseiro”, explica ela, que também fez o orçamento de toda a parte elétrica do Cafofo. Além das colaborações artísticas, a “empresa com jeito caseiro” realiza diversos outros tra-balhos em conjunto: desde a organização e a distribuição de peças de divulgação do

Couve-Flor, como DVDs, fôlderes e con-vites, até a realização e aprovação de

artigos, escritos por Gustavo Biten-court e divulgados no site

idança.net.

Em todos os projetos que envolvem os in-tegrantes do coletivo existe a marca Cou-ve-Flor. “O nome simboliza a idéia de fractal, no qual o todo representa a parte e a parte representa o todo”, explica Marinelli. Não são raras as vezes que projetos de diferen-tes integrantes do coletivo, concebidos em colaboração, concorrem entre si em editais. “É uma concorrência de outra ordem, um colabora com o outro nos projetos”, explica Elisabete. “A continuidade do trabalho de um depende do trabalho do outro.” Em ou-tras palavras, as partes da couve-flor nunca estão sozinhas.

Quase Nu, de Ricardo Marinelli: peças vermelhas simbolizam a personalidade do artista | imagem: André Seiti/Itaú Cultural

Saiba mais sobre o processo do Couve-Flor em www.couve-flor.com.

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O regente da orquestra

Por Marco Aurélio Fiochi

Gênero dramático mais popular e importante da televisão brasileira, a novela é exemplo de um complexo processo criativo. Cada produção envolve uma rede de profissionais de diferentes formações e aptidões técnicas, desde autores, atores, diretores, cenógrafos, continuístas, figurinistas, operadores de câmera até pesquisadores, advogados e todos aqueles que forem necessários para conferir à trama fidelidade à vida real. Ao contar um pouco desse universo, Sílvio de Abreu, um dos mais renomados autores, faz pensar que a novela incorpora o uso de diversos recursos de criação, entre eles interconexões e referências. E a produção de uma trama, semelhante à de outros produtos culturais, está sujeita a acasos, incompletudes, relações de comando, restrições. Com �0 anos de experiência só na escrita de novelas – assinou �9 histórias entre autorias únicas, parcerias e participações como supervisor de textos –, Abreu é um artista múltiplo: já atuou como cenógrafo, ator e assistente de direção de Carlos Manga, além de dirigir seus próprios filmes e escrever peças como Capital Estrangeiro (�994). Na televisão é o responsável por trazer ao horário das 7 da noite a comédia pastelão e a comédia física, que revolucionaram as produções a partir dos anos �980 e hoje são referência aos novos autores. Ao falar de seu processo criativo, o autor explica: “Se proponho ruídos, idéias inovadoras, proponho um estímulo para mim. [...] tenho um princípio: o de não me aborrecer”.

entrevista

Como é o trabalho de supervisão de tex-tos que você vem desempenhando com mais ênfase nos últimos anos?

Esse é um trabalho extremamente necessá-rio para a sobrevivência da novela, produto altamente especializado na indústria do en-tretenimento. Se não houver profissionais capazes de escrevê-la, ela vai desaparecer. Novela não tem nada a ver com literatura, cinema, teatro. É altamente específica, tem suas próprias regras. Se nós, os autores mais antigos – Manoel Carlos, Gilberto Braga, Aguinaldo Silva – que fazem parte da gera-ção que inventou o gênero, não passarmos nosso conhecimento para novos autores, ela não sobreviverá. E esse gênero não é só importante culturalmente para o Brasil, mas também para a sobrevivência de atores, ce-nógrafos, técnicos e outros profissionais. Mas um supervisor de textos não tem de ensinar o autor iniciante a escrever uma novela. Para isso, ele passou antes pelas oficinas de cria-ção oferecidas pela emissora. Não supervisio-no autores sem nenhuma prática e sim auto-res quase prontos. O trabalho consiste em ler a sinopse e apontar falhas. Tento alertar o autor sobre possíveis caminhos, questio-ná-lo sobre onde ele quer chegar. Oriento-o a esquematizar a história para que ela não acabe em cinco capítulos, para que ela pos-sa resultar em �00. Outros aspectos são qual é o fio condutor, quais as tramas pensadas. Tudo isso planejamos juntos, antes do início da história. E aí se começa a fazer a novela; então eu produzo com o autor os primeiros �0 capítulos, o início da narrativa. Os diálogos são todos do autor, mas a maneira de contar é nossa. Quando eu faço esse trabalho, di-ferentemente de quando faço uma história minha, o que interessa é o que o autor quer, não o que eu quero, ajudo-o a realizar o que deseja. Escrevo novelas há �0 anos, os jovens autores foram formados por elas. Da mesma maneira que fui formado pelas de Geraldo

Vietri e Ivani Ribeiro. Para mim é fácil tra-balhar com novos autores, conheço sua

forma de pensar uma história, pois esse raciocínio foi influenciado

pelas minhas criações.

A novela é uma obra aberta, sujeita a várias alte-rações, mas deve haver um co-mando. Senão, o processo pode ficar caótico. De quem é esse comando: do autor, da emissora ou do diretor?

O comando de uma novela está sempre na mão de seu autor. Porque é ele quem pro-põe a história. A emissora encomenda o trabalho e cobra qualidade do autor, além da adequação da história à faixa etária do horário de exibição. Ela dá ao autor tudo de que precisa para criar. No meu caso, após a escolha do elenco segundo minhas orienta-ções, me reúno com o diretor e transmito a ele as idéias que tenho sobre o projeto. Ele lê a sinopse, expõe suas idéias e entramos num acordo. Se não houver esse acordo, muda-se de diretor. Tive um problema com um diretor quando fui contratado pela TV Globo para fazer a novela Pecado Rasgado (�978), com direção de Régis Cardoso. Para mim, essa foi uma novela muito frustrante. O diretor não entendeu minha maneira de escrever. Procurei fazer algo similar à chan-chada, uma comédia mais anárquica, que não era usada em novelas. Quis fazer uma mistura de pastelão com comédia física, com tombos, escorregões. O diretor boico-tou a idéia. Tudo que havia de comédia foi cortado. A novela ficou sem sabor, uma his-tória convencional, não me satisfez. Então, pedi demissão da emissora. Mas o ideal é que o autor exerça seu comando junto com o diretor. Este não pode ser uma figura de-corativa ou estar em segundo plano. O ideal é que combinem como se fossem uma úni-ca cabeça. Se eu não tiver um diretor de mi-nha plena confiança, o trabalho não vai ser completo. O processo criativo dele está atado ao meu. Esse é o melhor método de trabalho.

Sílvio de Abreu: “O comando de uma novela está sempre na mão de seu autor” | imagem: Cia de Foto

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Uma das marcas de seu tra-

balho é lançar mão de idéias inusitadas, que provocam o ques-

tionamento e a reação do público de novelas, acostumado a fórmulas consa-

gradas. Você acredita que a vitalidade dessa linguagem no futuro esteja na ou-sadia de inverter sentidos, trabalhar com o novo e, eventualmente, correr o risco de chocar o público? Se os autores não propuserem renovações em suas tramas, elas podem cair numa vala comum, como acontece com as produções de países da América Latina, que são um produto de segunda classe. Mas não propo-nho renovações pensando que se eu não as fizer o gênero não vai sobreviver. Penso que se eu não fizer algo que me interesse não vou agüentar escrever uma novela por nove meses. É muito duro escrever uma novela. Começo a trabalhar em um capítulo às 7 da manhã e paro à �, � da madrugada. São �5 páginas diárias, em que tenho de imaginar todos os diálogos, as marcações, os cortes de cena, o tipo de ação que vai ocorrer, como os personagens vão se relacionar, como será a continuidade. Se esse trabalho não me proporcionar nenhum prazer, se eu o fizer só para ganhar dinheiro, não vai valer a pena. Se proponho ruídos, idéias inovado-ras, proponho um estímulo para mim. E esse estímulo passa para o público. O primeiro espectador de minhas novelas sou eu mes-mo. Faço-as para me agradar. Se fico satis-feito, penso que o público também vai ficar. Uso muitos truques quando escrevo, inven-to situações inusitadas. Por isso, o público tem a sensação de que em minhas novelas acontece tanta coisa interessante. É porque tenho um princípio: não me aborrecer.

No início de sua trajetória na TV Globo, você foi escolhido para solucionar uma situação inesperada, um acaso: substi-tuir o autor Cassiano Gabus Mendes, que sofrera um infarto, na trama Plumas & Paetês (1980-1981). Como foi assumir um trabalho já começado, que tinha a mar-ca forte de outro grande escritor? O que você alterou, herdou e teve de manter e o que considera ter sido uma contribuição genuinamente sua a essa novela?

O primeiro problema é que eu não tinha visto nenhum capítulo dessa novela. O autor havia me indicado, eu não o conhe-cia pessoalmente, apesar de ser grande fã de suas obras. Pedi que me entregassem os cem capítulos já exibidos. Eu e minha mulher lemos num fim de semana todo o material. Eu lia um capítulo, ela lia outro, a gente trocava informações, e comecei a es-crever a novela na segunda-feira seguinte. Poucos dias depois mandei os textos para a emissora. Faltavam 98 capítulos, a metade. A história foi alongada, devido ao sucesso, e como eu estava com a mão boa fui fazendo, estava cheio de idéias para fazer uma nove-la. Não tive problemas com os diretores. A trama já estava assentada, tinha uma leveza, o humor era mais discreto do que aquele que eu faço. Comecei a escrever dentro da-quilo que o autor propusera. Aos poucos, fui colocando um humor mais explícito, o que agradou muito. A minha principal contribuição à trama foi uma descontração maior. No fim da história, fiz algo que não se fazia até então, fugindo completamente do realismo, por exemplo, um personagem dono de indústria terminava como faxinei-ro, o que é engraçado. Plumas & Paetês foi uma das novelas de maior sucesso de Gabus Mendes. Meu grande trunfo foi ter segurado esse sucesso. A indicação que tive por parte desse autor é um dos grandes orgulhos da minha vida. O outro foi ter sido indicado por Janete Clair, uma autora que eu também não conhecia pessoalmente, para escrever Jogo da Vida (�98�), cujo argumento era dela. Fiquei muito lisonjeado, ela me indicou devido ao resultado de Plumas & Pae-tês. São dois momentos muito im-portantes para mim.

Abreu à frente dos muitos volumes encadernados com textos de suas novelas | imagem: Cia de Foto

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Na pesquisa para esta matéria, depa-rei com uma entrevista dada à Folha de S.Paulo ao final de Belíssima. Apesar de essa história ter tido um enorme sucesso, você se mostrava cético com relação ao gênero. Essa postura se devia às restri-ções por que teve de passar para realizar a novela ou a outros fatores?

Eu devia estar exausto naquele momento! Quando se faz uma novela, o problema não é só escrever todo dia. Isso é a parte boa, mas resolver os problemas que aparecem é que é complicado. O grande fascínio da novela é o fato de ela ser viva. Tudo o que acontece in-fluencia a história. O autor incorpora os pro-blemas que vão aparecendo no decorrer da produção. Esses fatos muitas vezes acabam por melhorar a idéia inicial. Com isso, a his-tória adquire um novo caminho e pode ficar ainda mais interessante para o público. Isso é muito estimulante para o autor. Existem problemas de produção, pois a novela é gra-vada à medida que é escrita. Qualquer even-tualidade e se tem de reescrever várias cenas, voltar muitos capítulos, mudar diálogos... Se, por exemplo, um ator fica doente e tem de sair da trama, a história precisa ser repensada. O mesmo caso se um ator não se dá bem com outro, se o par romântico não dá certo. Em Belíssíma, por exemplo, Glória Pires teve hepatite e Serafim Gonzales e Gianfrancesco Guarnieri ficaram gravemente doentes. Fo-ram coisas que tive de administrar. Quando uma novela termina, embora faça muito su-cesso, o autor está exausto.

Em suas histórias é comum conviverem personagens da elite paulistana e aque-les pertencentes às correntes migra-tórias que formam a cidade. A criação desses personagens deve prescindir de uma pesquisa histórica, de hábitos, ves-timentas, alimentação. Esse processo de pesquisa é constante durante a realiza-ção da novela ou ocorre apenas na etapa de formatação dos personagens?

É constante. Para conseguir realizar as tra-mas, criar os personagens, preciso pesqui-sar vários assuntos, saber como as várias colônias que vivem em São Paulo agem e interagem. Uma pesquisadora trabalha co-migo desde quando começo a pensar uma nova história. Ela é contratada do começo ao fim da trama. Além dessa profissional para pesquisas gerais, recorro sempre a uma advogada para problemas jurídicos. Ela me elucida sobre questões relativas a heranças, prisões. Atualmente há uma co-brança enorme de verossimilhança nas produções. As coisas têm de acontecer de acordo com a vida real, apesar de ser ficção. O Woody Allen tem uma frase muito boa sobre isso: “A ficção precisa fazer sentido. A realidade não”. O público vai reclamar, vai rejeitar qualquer história que não fizer parte da realidade. Então, o autor de novela tem de estar muito bem embasado, saber como procede um advogado, um juiz, um padei-ro, um dono de indústria. Lidamos com um universo muito grande. Para fazer A Próxima Vítima, por exemplo, tive de saber como funciona um frigorífico. Em Belíssima retratei a indústria de lingeries. Tive de saber como

ela funciona, quantas pessoas emprega, o que se discute em reuniões de direto-

ria... Se não fizermos tudo com pes-quisa, não faremos um trabalho

digno, verdadeiro.

Na revista virtual, assista ao vídeo produzido durante a entrevista.

Você utilizou uma estratégia criativa inu-sual ao migrar um grupo de personagens de uma trama para outra. Os persona-gens de Aracy Balabanian (Dona Armê-nia), Jandir Ferrari, Gerson Brenner e Marcello Novaes (seus filhos) surgiram na novela Rainha da Sucata (1990) e reapa-receram em sua trama seguinte, Deus Nos Acuda (1992). Qual foi sua intenção ao fa-zer essa interconexão de personagens e novelas? Você se inspirou em outra idéia semelhante anteriormente utilizada?

Nesse caso, não é uma coisa tão original. Quando trabalhava como ator na década de �970, fiz uma novela na TV Globo chamada A Próxima Atração (�970-�97�), escrita pelo Walter Negrão. Interpretei um personagem chamado doutor Damasceno Salomão, que era um subdelegado de Bagé (RS). Ele fez muito sucesso. Depois Negrão foi para a TV Record fazer Editora Maio, Bom Dia. Pois bem, nessa outra história fiz o mesmo per-sonagem de A Próxima Atração. Ele migrou de novela e também de emissora. Hoje em dia isso seria impensável! Quando fiz Deus Nos Acuda, comecei a elaborar vários perso-nagens que sempre caíam em algo muito próximo daquele interpretado por Aracy Balabanian em Rainha da Sucata. Então me perguntei: “Por que estou fazendo isso se tenho um personagem pronto?”. Se como ator já saí de uma novela e fui para outra, também posso transferir um personagem meu de uma trama para outra. Esse foi o mesmo raciocínio no caso de Jamanta

[interpretado por Cacá Carvalho nas no-velas Torre de Babel (�998-�999) e Be-

líssima (�005-�006)]. Isso faz com que as novelas deixem de

ser previsíveis.

O uso de referências é uma característica do pro-

cesso de criação. Sua obra, por exemplo, faz certas remissões a cenas

e a personagens clássicos do cinema. A solução de explodir um shopping na novela Torre de Babel é uma referência a um marco na história das novelas, o ter-remoto criado por Janete Clair em Anas-tácia, a Mulher sem Destino (1967)?

Não, a explosão do shopping não tem a ver com o terremoto criado por Janete Clair. Essa novela, escrita inicialmente por Glória Maga-dan, tinha muitos personagens. Então a auto-ra chamou Janete Clair para ajudá-la. Janete criou o terremoto e matou personagens que não interessavam. Agora, Torre de Babel foi uma novela sobre a explosão de um shop-ping. A sinopse era essa. Não criei um recurso para consertar a história. E a versão de que os personagens que incomodavam o público morreram na explosão não é verdadeira.

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Bicho de três cabeçasPara o grupo Chelpa Ferro, a criação não tem limites. Vale tudo nas mãos de Barrão, Luiz Zerbini e Sergio Mekler: esculturas e instalações se misturam a experiências com música eletrônica e apresentações ao vivo

Por Mariana Sgarioni

Changa, chapa, chelpa, cobre. Cominho, erva, estaleca, ferro, gaita. Grana, guita, jabaculê, jibungo, jimbo. Todas essas palavras têm o mesmíssimo significado: dinheiro. É claro que a lista não pára por aí: tutu, mufunfa, prata, tostão, níquel, óleo, ouro, vento, verba, zinco. E assim vai. Mas qual desses nomes cairia melhor para um grupo musical? A indagação pode parecer esquisita, mas era exatamente isso que o artista plástico Barrão se perguntava momentos antes de seu primeiro show, pelos idos de �995. O poeta Chacal havia convidado o amigo para fazer um som no Teatro Sérgio Porto, no Rio de Janeiro. Ao tomar parte na empreitada, Barrão chamou os amigos Luiz Zerbini, Sergio Mekler e André Costa.

“Não sabíamos tocar nada. Nem cantar. Daí decidimos que o show seria só de guitarra. Convidamos o Chico Neves para a base e fomos ver o que acontecia”, diverte-se Barrão. O grupo estava tão preocupado com a apresentação que se esqueceu de que precisava de um nome. Foi aí que Barrão sacou do bolso uma lista, tirada de um dicionário, com sinônimos da palavra dinheiro. “Chelpa e Ferro combinaram bem juntos”, diz. “Isso com certeza deve significar pouco dinheiro, uma gorjeta, um dinheirinho”, completa Zerbini, rindo.

Nesse dia e dessa forma, meio de improviso, meio na brincadeira, nascia o grupo Chelpa Ferro, hoje formado por Barrão, Zerbini e Mekler. Treze anos depois do show no teatro, o grupo se tornou uma referência no terreno da arte contemporânea multimídia nacional. Instalado num ateliê no bairro da Gávea, no Rio de Janeiro, o trio atua em diversas frentes, misturando experiências com música eletrônica, esculturas e instalações tecnológicas. Na verdade, eles fazem arte com música. Além de exposições, gravaram dois CDs e têm três shows no currículo.

Em junho, o Chelpa vai apresentar suas obras na Galeria Vermelho, em São Paulo, aproveitando para lançar seu primeiro livro, que vem com um DVD. O trabalho a ser apresentado chama-se Jungle Jam, uma instalação que traz um motor preso a um saco plástico próximo a um pedaço de madeira. Ao ligar o motor, o saco bate na madeira, produzindo o ritmo jungle [que mistura batidas de tecno com reggae, dub e rap], daí o nome da obra.

reportagem

O grupo carioca Chelpa Ferro: música tirada de instrumentos inexistentes | imagens: arquivo dos artistas

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Idéias inusitadas

Mas de onde veio uma idéia como esta, de tirar música de um instrumento que não existe? Nem eles conseguem explicar com precisão seu processo criativo – tampouco conseguem definir o tipo de arte que fazem. “Estamos sempre na fronteira entre arte e música. As referências estão embutidas na gente, em tudo o que vivemos”, diz Mekler. Segundo ele, o Chelpa tem uma identida-de própria. Apesar de cada um dos três ar-tistas ter seus trabalhos individuais, na hora de compor para o grupo a coisa muda de figura. “Não se trata do Luiz, do Barrão ou do Sergio sozinhos. É o Chelpa. É ele que pensa. Fazemos o que o Chelpa vai gostar. Quando queremos resolver do nosso jeito, não em-placa. O Chelpa nega”, explica Barrão.

Um dos trabalhos de que eles mais gostam e que bem exemplifica o processo criativo do grupo é o Nadabrahma, apresentado na Bienal de São Paulo de �004. A idéia partiu de um galho que eles queriam que vibrasse, chacoalhasse. Xeretam daqui, fuçam dali, e eis que de repente acharam no ateliê uma antiga almofada de massagem, de Barrão, que tinha um motor dentro – não por acaso, o ateliê do Chelpa mais parece uma oficina, com os mais variados objetos espalhados, desde madeiras e serrotes até motores e bombas de propulsão. Ao encontrar a tal almofada, arrancaram a espuma e tiveram a idéia de ligar aquilo no galho. Pronto, ali co-meçava a obra. Eles montaram um sistema que era acionado pela pisada do espectador da Bienal. Cada vez que alguém botava os pés na sala, o motor ligava e fazia com que os galhos se mexessem, produzindo um som parecido com pingos de chuva.

Suas engenhocas não param por aí: em um show, fizeram uma bateria construída com 80 palitos de incenso dar um “solo”, enquan-to uma máquina de costura tocava samba junto com um cinzeiro. Pela complexida-de dos trabalhos, o grupo conta com uma equipe de apoio de respeito: técnicos de som, marceneiros, produtores musicais, ele-tricistas e até cantores.

“Nossa criação é assim: alguém traz uma idéia, outros aperfeiçoam e todos discutem e estudam como resolver a questão. E assim vão surgindo outras idéias em cima daque-la primeira”, diz Barrão. Mas de onde vêm as idéias? De todos os lugares. Até mesmo de uma luz vinda de um bueiro. “Outro dia es-tava passando com o Luiz aqui na rua e uns trabalhadores consertavam um bueiro. A luz que vinha lá de dentro era tão bonita que me deu várias idéias”, lembra. “Em geral é assim: sobram idéias. O que nos falta é tempo para executá-las”, completa Zerbini.

Herança do Asdrúbal

As três cabeças transbordando de criativida-de nem sempre concordam em tudo, claro. Trata-se de um exercício diário de flexibilida-de – ou de discussão. “Não tem jeito, há ho-ras em que você tem de ceder, deixar a coisa rolar para ver o que vai dar”, diz Barrão.

Mas, segundo o trio, na maioria das vezes o trabalho acontece em harmonia. Afinal, são muitos anos de convivência, todos ali se co-nhecem muito bem. A amizade começou na época do Asdrúbal Trouxe o Trombone, na década de �970. O Asdrúbal foi um grupo de teatro dirigido por Hamilton Vaz Pereira e capitaneado por Regina Casé, que iniciou uma inovadora forma de fazer comédia no Brasil, além de revelar uma série de talentos. Entre os quais estavam a própria Regina, Nina de Pádua, Evandro Mesquita e Luiz Zer-bini. Mekler e Barrão também faziam parte da trupe, seja como amigos, seja para con-tribuir com algum trabalho. Era uma turma de jovens criativos da zona sul carioca, que muito lembrou a turma da bossa nova da década de �960.

Zerbini diz que muito do que é hoje o processo de

criação do Chelpa veio da filosofia do Asdrúbal, que tinha como uma de

suas principais características a criação coletiva. “O Hamilton dirigia o grupo, mas nosso trabalho funcionava como um labo-ratório. Todo mundo fazia tudo e colocava um pouco de si e de sua própria trajetória no que produzia”, lembra ele. “Nossa amiza-de remonta a esse período de �970, �980. Tempos do Asdrúbal e do Circo Voador. O Barrão tinha um ateliê em Laranjeiras, onde funcionavam várias coisas; freqüentávamos muito lá”, relembra Mekler.

Durante esses anos de criação coletiva, o gru-po acumulou mais de �0 exposições, incluin-do mostras internacionais relevantes, como as bienais de Veneza e de São Paulo, além de shows, trilhas sonoras e projetos especiais.

E agora, o que a intrépida trupe prepara? Segundo eles, o foco é a exposição na Ga-leria Vermelho, que seguirá para Salvador e Belo Horizonte. Só isso? De jeito nenhum. Eles ainda ensaiam um show próximo, que acontecerá no Rio de Janeiro e em Minas Gerais. E garantem que virá muita surpresa por aí – pelo menos, criatividade e irreve-rência não faltam.

Instalação Nadabrahma, apresentada na Bienal de São Paulo de �004 | imagem: arquivo dos artistas

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De divinas a mundanasMusas contemporâneas, não menos inspiradoras que as antigas divindades, conservam sua importância para a criação literária

Por Thiago Rosenberg

“Não é como a de Horácio a minha Musa;Nos soberbos alpendres dos Senhores

Não é que ela reside”

Gonçalves Dias, A Minha Musa

O poeta e dramaturgo Sergio Mello, paulistano nascido em �977, nunca correu atrás de uma musa para escrever seus trabalhos. “Essa idéia de musa sempre me pareceu antiquada, cafona”, afirma o autor, cujos trabalhos são caracterizados, em grande parte, pela observação do cotidiano urbano. No dia �� de maio de �008, no entanto, ele aceitou a seguinte proposta: partir em busca de uma musa – seja lá o que ele entendesse como tal – e, baseado nela, produzir um poema.

Mello logo descartou a opção de adotar uma pessoa como musa. Imaginou que “seria muito comum, sem graça”. A seguir, pensou em se inspirar no casamento dos atores Paul Newman e Joanne Woodward, que completou 50 anos em janeiro de �008. Mas em pouco tempo desistiu da idéia, e trocou as bodas de ouro hollywoodiana por algo muito mais próximo da sua realidade: a noite no centro da capital paulista. Um ambiente marcado, diz ele, por uma beleza triste – tal qual uma bela mulher que, debaixo da chuva, tem sua maquiagem desbotada. Freqüentador contumaz dos bares da região, o escritor enviou, dois dias após aceitar a proposta, este poema, intitulado Downtown, para a redação da revista:

reportagem

centro de são pauloà noite ou musamaquiada soba chuva casacosde inverno fedema dreadlocks

o amoré um telefonemapra alguém ao verum desastreaéreo na tevê

enterroregido das copasdas árvores em esgrimade negros guardachuvas abertos centrode são pauloà noite a miopiaé a mãe da virilidade diza musaurinando a tintaque define o brilhonos olhos das lebressurpreendidas

musa que estáno anônimo e últimohálito de bancade frutas impregnadonos bocaisdos orelhões nos músculoseqüinos de um andarilhotardio num pêssego novono ato de lhe escapara correia de umdos chinelos quandonão era aguardada

a pressa

O poeta Sergio Mello caminha pelas ruas de sua musa, o centro da cidade de São Paulo | imagem: Cia de Foto

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Enquanto Mello pro-duzia seu poema sobre a vida noturna no centro de São Paulo, Rodrigues encontrava-se no Chile, onde pretendia escalar um vulcão. E, antes de iniciar a escalada, decidiu fazer uma obra a respeito de uma flor – de fato inexistente – que seria colhida no topo da montanha. “A musa para este poema”, con-ta ele, “é uma flor que não existe, mas que, ainda assim, fui procurar. Talvez a musa seja a própria procura pela musa”.

“De onde vem o que eu escrevo?”

Se a musa é, a princípio, tão fácil de ser encontrada, ela também é, por muitos, di-ficilmente levada a sério – por reduzir, sim-plificar e mistificar o complexo processo de criação de uma obra de arte. Como se o ar-tista, em estado de “inspiração”, dependesse unicamente dessa força externa a ele, e pu-desse abrir mão de uma série de outros fa-tores, como as experiências, as percepções e as técnicas adquiridas ao longo da vida.

“Muita gente ainda hoje aceita este con-ceito de que o artista apenas traduz algu-mas idéias que ele capta no ar”, diz o poeta pernambucano Frederico Barbosa. “Um dos piores termos de toda a evolução da lite-ratura é ‘inspiração’. Isso não existe. Infeliz-mente, muitos ainda mistificam a arte, que é, acima de tudo, técnica.”

Não apenas técnica; e não apenas inspira-ção. É o que defende Rodrigues, que defi-ne seu trato com a musa na composição poética como um trabalho consciente. “Não sou um nefelíbata romântico e doido indo buscar flores em vulcões. Isso tudo é manipulado por trabalho técnico na cons-trução do poema.”

“Inspiração existe, não há como negá-la, mas

ela não pode sobrepujar o fazer poético, que é racional. Por sua vez,

excesso de técnica pode gerar algo perfeito para críticos e colegas escritores,

mas chato pacas ao leitor não iniciado – e, putz, como isso acontece”, conclui ele, que aponta Vinicius de Morais, Carlos Drum-mond de Andrade e Manuel Bandeira como exemplos de poetas que souberam balan-cear inspiração e técnica.

Essa questão das musas é “um assunto inevi-tável”, comenta o crítico literário carioca José Castello. “A discussão não deixa de tocar em uma pergunta que aflige todos os escritores: ‘de onde vem o que eu escrevo?’. A resposta é falsa, mas a pergunta é verdadeira, porque ninguém tem plena consciência da origem daquilo que redige.”

Difícil, então, distinguir quem – ou o quê – seriam as musas contemporâneas. Para a poeta paulistana Mariana Ianelli, elas “têm um rosto grave, compungido. E as mensa-gens que ‘sopram’ ao artista são verdadei-ras súplicas, marcadas pelo que hoje há de mais desumano, dessacralizado”. A senadora e ativista franco-colombiana Ingrid Betan-court – refém das Forças Armadas Revolu-cionárias da Colômbia (Farc) desde �00� – e a austríaca Elisabeth Fritzl – mantida em ca-tiveiro e violentada pelo pai, Josef Fritzl, por �4 anos – são algumas dessas musas, “que não só nos põem, a todos, face a face com o nosso tempo, mas lembram ao artista sua responsabilidade urgente de pensar o futu-ro sem mais voltar as costas para os valores do passado”, diz Mariana.

“O quanto pode suportar/Um homem/Uma vez extorquido, seqüestrado/Eles podiam/No meio de estranhos/Com um corpo amarrado à realidade.” As palavras são do poema Além do Equador, de Mariana, caso de texto ba-seado em Betancourt e em outros reféns das Farc. “Todo dia era um lapso/Um há-bito/Que não achava mais vontade/A força se adelgaçando/Na dura queda de braço.”

Do Olimpo para a rede de criação

As musas eram, de acordo com a mitologia grega, nove irmãs. Filhas de Zeus, senhor do céu e da Terra, e de Mnemosine, deusa da memória, cada uma dessas divindades zela-va por um campo específico das artes e das ciências. Mas o termo, ao longo dos séculos, ganhou novas feições – e hoje há artistas que chamam de musa tudo aquilo que lhes impulsiona a criatividade, seja uma pessoa, um objeto, um local, uma experiência.

Elas são “encontráveis” em qualquer canto, em qualquer ponto da intrincada rede que envolve a criação artística. “A musa diluiu-se, livre e rarefeita/Agora pode ser bebida em tudo”, versa o poeta carioca Henrique Rodrigues, mestre em literatura pela Ponti-fícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/RJ), no seu livro A Musa Diluída (Editora Record, �006): “Há musa pelos bares, pelos rios, pelas poças/Há musa nas garrafas que são como moças recém-chegadas/Há musa na sujeira das coisas sem nexo ou beleza/Há musa no sexo, nos sexos e nos ocea-

nos/Há musa nas multidões e os seus silêncios/Há musa escondida nos es-

barrões/Das solidões lacustres, sem alabastros nem balaústres”.

Atena e as Musas, de Hans Rottenhammer (�564–�6�5) | imagem: Creative Commons

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Menos é maisRestrições nem sempre significam empecilhos à criação

Por Érica Teruel Guerra

Já pensou em como é difícil criar um soneto? Seja ele petrarquiano, inglês ou monóstrofe, esse formato de poema sempre foi marcado pelo rigor métrico e rítmico. Não é para qualquer um. Seria possível que alguém quisesse complicar ainda mais essa já árdua tarefa? Sim, esse é o caso do grupo de escritores e matemáticos franceses Oulipo, Ouvroir de Littérature Potentielle (algo como Oficina de Literatura Potencial), fundado em �960, mais precisamente em novembro. O grupo se propunha a criar obras literárias seguindo determinadas restrições, colocadas por eles mesmos. É o caso do romance La Disparition [O Desaparecimento] (Gallimard, �969), de George Perec, autor pertencente ao Oulipo, escrito sem o uso da vogal mais comum do francês, o e.

A restrição, para os oulipianos, era libertadora. “Longe de funcionar como instrumento de encarceramento, ela libera, naquele que escreve, novos relevos muitas vezes desconhecidos pelo próprio autor”, explica Ana Alencar, professora de teoria literária da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e estudiosa do Oulipo. Ela conta que, para esses autores, não havia algo tal qual a inspiração: os oulipianos negavam a concepção romântica do produto artístico. O humor era característica constante. Um dos jogos utilizados era o “N + 7”, que consistia em substituir cada substantivo de um texto pelo sétimo que o segue no dicionário.

Mas por que restringir? Para os oulipianos, o foco na produção do texto e não em seu significado era o caminho para deixar falar a língua. “A sujeição voluntária a uma regra difícil, exigindo muita concentração em dados aparentemente fúteis, distrai o autor, suspendendo seus mecanismos de censura”, esclarece Ana.

Tempo contado

A restrição, entretanto, pode representar outros papéis no processo de criação. Para o artista visual Paulo Almeida, as limitações, sejam elas impostas ou propostas por ele mesmo, fazem nascer novas idéias. Almeida desenvolve uma obra de caráter particular: em sua série mais famosa, Palimpsestos, �0 telas espelham o local em que cada uma está exposta. Elas não são trabalhadas apenas uma vez. Sempre que convidado, o artista cobre-as para que reflitam o novo espaço, mas deixando transparecer os traços anteriores. As restrições são claras: além de criar sobre algo que já existe, ele tem de se basear em algo preexistente, o espaço expositivo e as obras de outros artistas. “É uma execução quase mecânica”, conta ele, que também nega, como os oulipianos, a idéia de inspiração. “Isso não existe. As idéias vêm das limitações de espaço, tempo. Elas enriquecem o trabalho.”

reportagem

Paulo Almeida: “As idéias vêm das limitações de espaço, tempo” | imagem: arquivo do artista

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Capas de livros produzidos pelo Máquina Estúdio

Se o tempo, por si só, limita toda obra artís-tica, o que dizer dos filmes que enquadram sua narrativa no restrito espaço de um mi-nuto? O cineasta Marcelo Masagão criou, em �99�, o Festival do Minuto, hoje famoso em todo o mundo e o mais antigo do gê-nero. “O festival restringe o tempo e obriga à síntese”, afirma Masagão, apresentando o aspecto que deu impulso à idéia. Para os ci-neastas, pode ser um enorme desafio abor-dar uma idéia em apenas 60 segundos.

Masagão também colocou restrições à sua obra. Seu filme mais célebre, o documentá-rio Nós que Aqui Estamos por Vós Esperamos, de �999, é composto apenas de imagens e música. Os depoimentos, tão comuns ao formato, foram excluídos. Ele explica: “Nor-malmente, as palavras são usadas no audio-visual com a função de explicar, didatizar as imagens”. Para Masagão, elas devem con-versar e conflitar com os outros elementos da obra. “Meu esforço em usá-las pouco ou

mesmo não usá-las me obriga a fazer fil-mes onde a conversa seja realizada pe-

las imagens”, completa ele, que em março lançou seu mais recente

longa, Otávio e as Letras.

Em alguns casos, tal-vez na maior parte deles, a res-trição não é colocada pelo artista, mas pelo meio em que produz. Nessas situações, o impedimento pode ser supe-rado ou aproveitado. A obra do também artista visual Zezão tem um pouco dos dois exemplos. Hoje encontrados em galerias e exposições, seus trabalhos começaram em �995 nos muros de São Paulo. Uma restri-ção já cercava sua obra: a legal. Grafitar paredes, sejam elas públicas ou privadas, é proibido. E a polícia não dava sossego. Ele, que começou essa atividade devido a uma depressão e que buscava nela um tipo de “terapia”, acabava por ter de correr dos ofi-ciais. “A polícia e a sociedade repreendiam”, conta. Procurou, então, lugares alternativos, como construções abandonadas, em que pudesse trabalhar tranqüilo.

Em �000, conheceu o “subterrâneo” e co-meçou a grafitar nos dutos da rede de esgoto e em galerias que comportam as águas das chuvas, onde, segundo ele, o abandono e o descaso do Estado imperam. “São esses lugares da cidade que pedem a arte”, opina. Nesses espaços, onde a polícia não intervém, as restrições são de outra ordem. Ele começou usando cinco sacolas de plástico em cada perna, mas logo per-cebeu que aquilo não era o bastante para protegê-lo da sujeira. Hoje, utiliza galochas e macacão, mas ainda assim é complicado movimentar-se em um espaço que não su-põe a presença humana. Persistente, Zezão continua a se esgueirar pelos corredores inóspitos, marcando-os com a caligrafia azul do seu trabalho. Em relação ao caráter passageiro dessas obras, diz não se impor-tar: “O grafite é uma arte efêmera”.

Criar sem trauma

Falar de restrição no processo artístico e não falar de limitações financeiras é ignorar as condições em que a arte é produzida no país. Nesse contexto, as grandes vítimas da escassez de financiamento são as obras au-diovisuais. Centenas de roteiros são engave-tados para que algumas dezenas ganhem as salas de cinema, numa seleção quase que natural. Todavia, num capricho da tei-mosia, um dos tantos longas com destino à gaveta foi parar em grandes festivais, como o de Seul (Coréia do Sul) e o de Montreal (Canadá). Cama de Gato, de �00�, foi reali-zado, segundo o diretor Alexandre Stockler, com pouco mais de �� mil reais. Contando com câmeras digitais e a ajuda dos amigos, o diretor produziu um filme polêmico e corajoso, que inova a linguagem cinemato-gráfica brasileira, ao contrário do que seria esperado de uma produção tão barata. As três câmeras principais do filme, que pro-duzem qualidade de imagens distintas, se intercalam, revelando o olhar de cada um

dos três personagens centrais da história. Em lugar de desvalorizar o longa, essas

alterações dão o tom “caseiro” que desejava o diretor. “Não tinha de

ter glamour“, conta.

Produzir filmes de ficção com pouco dinheiro,

usando as deficiências financeiras como “força criativa”, é uma das pro-

postas do T.R.A.U.M.A. – Tentativa de Re-alizar Algo Urgente e Minimamente Auda-

cioso –, movimento criado por um grupo de cineastas formado por Stockler, Alberto Bandoni, Doca Cobertt e Gisele Jordão em uma espécie de resposta latina irônica ao Dogma 95, que reuniu diretores dinamar-queses em torno de limitações criadas por eles mesmos, como filmar apenas com a luz disponível. Apesar de afirmar não saber se o T.R.A.U.M.A. sequer existiu, Stockler ainda crê em seus preceitos.

Seja para ajudar, seja para complicar ou para “dar graça”, as restrições parecem ser uma constante no processo artístico de várias áreas. E, para o cineasta Marcelo Masagão, não dá mesmo para fugir delas. No filme 1,99 – O Supermercado que Vende Palavras (�00�) é possível ler, em uma das muitas cai-xas brancas à venda: “O padrão que define é o mesmo que aprisiona”.

Frame do filme Otávio e as Letras, de Marcelo Masagão

Zezão: “O grafite é uma arte efêmera” | imagem: arquivo do artista

Para mais informações sobre o Oulipo, veja a entrevista com a professora Ana Alencar em www.itaucultural.org.br/revista.

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Em entrevista para a versão on-line da Continuum Itaú Cultural, a crítica Barbara Heliodora comenta os diferentes pontos da rede que engloba a atividade teatral. Uma teia de criação na qual se inserem – e se relacionam – artistas, técnicos, professores, espectadores e críticos.

“Não adianta comentar sobre a natureza. Ela é. Mas a arte é um produto humano, então pode ser analisada”, afirma, referindo-se ao papel da crítica teatral, que, em sua opinião, completa o processo de criação de uma peça. “O crítico pode escrever a respeito de um texto mais difícil e, com isso, preparar o público para apreciar o espetáculo. Ele tem uma função que é ligada tanto ao público quanto ao realizador.”

on-line

ON-LINE

A capa da última edição da Continuum Itaú Cultural, que abordou questões ligadas ao design, foi publicada sem fotos ou ilustrações e esteve aberta às interferências dos leitores. Dois dos trabalhos enviados – de autoria de Felipe Suzuki e Gabriel Bitar – estão na Área Livre desta edição impressa (vire a página e confira). Os demais podem ser conferidos na revista virtual.

Entre em www.itaucultural.org.br/revista e acesse conteúdo audiovisual ligado às matérias publicadas na versão impressa da revista. Você também pode, pelo canal Leitor-Autor, enviar textos sobre o tema do mês.

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Heliodora: “O teatro não é feito de astros; não é feito de primeiros atores. É feito por toda uma comunidade.” | imagem: Luís Ozório Ritter Ribeiro

Capas criadas por leitores de ContinuumLuh Albertini

Zilda Borges

Carol Rivello

Hare Lanz

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área livre

Felipe Suzuki (São Paulo) Gabriel Bitar (São Paulo)

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