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jul 2008 | itaucultural.org.br 12 ITAÚ CULTURAL O simples e o complexo

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ITAÚ CULTURAL

O simples e o complexo

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ITAÚ CULTURAL

A lição das formigas

De que forma a emergência está presente na arte contemporânea

2 +2 = 5Multidão, interação e caos: a imprevisível vida das cidades

Conectado por um fioEm entrevista, Dr. Wires fala sobre fenômenos emergentes em nosso cotidiano

Que som é esse que não me sai da cabeça?Daniel Daibem explica a simplicidade do complexo improviso do jazz

John não quer mais sujar as mãosA trajetória nada previsível de um dos pais do grafite paulistano

História3

A fantasia interage com a realidade em quadrinhos do ilustrador Júlio Brilha

Continuum on-lineO conteúdo exclusivo da revista na internet

Área livreObra de arte geracional de Dimitre Lima ilustra o primeiro ano da revista

Da cibernética para a arte e a cultura

Ao comemorar seu primeiro ano, a Continuum Itaú Cultural faz uma abordagem poética do tema emergência. Comumente relacionado a urgência, o termo, contudo, evoca um significado maior: realidades complexas (e imprevisíveis) que surgem da combinação de regras simples. Um prato cheio, portanto, para a criação de matérias que trazem assuntos como acaso, caos, estética e organicidade, caros ao universo da arte, da cultura, da biologia e da cibernética. Sob o título O simples e o complexo, mostra de que forma a emergência se faz presente, seja em uma enciclopédia virtual aberta à colaboração de todos, seja nas artes visuais, na música ou em atos cotidianos.

Entrevista com Dr. Wires, ciberneticista britânico que carrega a generosa (e corajosa) ambição de popularizar a ciência, revela que paradigmas aparentemente “duros” estão bem mais próximos de nós do que imaginamos. Perfil do artista americano naturalizado brasileiro John

Howard, por sua vez, mostra como a trajetória de uma pessoa transformou a arte da grande cidade. E a história em quadrinhos criada pelo ilustrador Júlio Brilha desmistifica o conceito de emergência: ele está em todas as partes, em tudo o que fazemos – é só uma questão de ponto de vista.

Na Área livre, Dimitre Lima se utiliza do software livre Processing para criar trabalho de arte geracional cujo tema é o primeiro

ano da Continuum. O artista escolheu como material as mil palavras mais usadas

nos �� primeiros números da publicação. Elas emprestam sua forma à construção de uma imagem, e o tamanho de cada uma é proporcional à quantidade de

vezes em que apareceu nesse período. Um detalhe: a palavra “individual” foi a menos utilizada (nove vezes) em todas as edições. É uma

prova do caráter da revista: uma construção coletiva. Na versão virtual (itaucultural.org.br/revista) conheça

outros resultados dessa obra.

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Tiragem 10 mil – distribuição gratuita Sugestões e críticas devem ser encaminhadas ao Núcleo de Comunicação e Relacionamento [email protected] Jornalista responsável Ana de Fátima Sousa MTb 13.554

Continuum Itaú Cultural Projeto Gráfico Jader Rosa Redação André Seiti, Érica Teruel Guerra, Marco Aurélio Fiochi, Mariana Lacerda, Thiago Rosenberg Colaboraram nesta edição Cia de Foto, Daniel Daibem, Dimitre Lima, Júlio Brilha, Mariana Sgarioni Agradecimentos Carla Nejm, Celso Gitahy, Chris Holvorcem, Claudio Schapochnik, Guilherme Kujawski, Marcos Cuzziol, Mauro Copelli, Paul Pangaro, Ricardo Tayra, Riccardo Fanucchi

capa a complexidade expressa na simplicidade das instalações elétricas clandestinas | imagem: Cia de Foto

ISSN �98�-8084 Matrícula 55.08� (dezembro de �007)

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A lição das formigasComo a emergência, conceito da cibernética, encontra eco na arte contemporânea

Por Mariana Sgarioni

Uma coreografia que se refere à organização das formigas. Músicas baseadas em poesias rimadas de improviso. Uma piscina com peixes que, ao nadar livremente, alteram o som. Cada vez mais o conceito de emergência, que abrange a física, a biologia, a engenharia, está presente no campo das artes. A teoria estuda o processo de formação de modelos complexos com base em regras simples. Seu resultado geralmente é imprevisível.

Um exemplo bem corriqueiro são as sensações humanas, que vêm do cérebro. Para que elas ocorram, muitas vezes é preciso apenas que alguns poucos neurônios interajam. Ou seja, a regra é bem simples. Só que sua conseqüência é geralmente complexa ou inesperada – podem aparecer sentimentos profundos como ansiedade, angústia, euforia, prazer. Por isso é que se diz que o cérebro produz fenômenos emergentes.

E tem mais. Uma estrutura emergente não é criada por um único evento ou por uma única regra. Não existe um comando ou um líder que organize o que vai ser feito. O resultado se dá por interações de cada parte com o ambiente externo. Elas é que fazem o resultado do evento ficar organizado.

Quer ver outro exemplo? Pense no software livre Linux e na enciclopédia on-line Wikipedia. Eles só são possíveis de acontecer porque são descentralizados e contam com um grande número de participantes ou voluntários. Todos atuam sozinhos, mas sabem que estão participando de uma grande estrutura – essa união é que faz os fenômenos emergentes serem tão complexos. “Emergência é quando uma parte é mais inteligente do que a soma de todas as partes. É o que acontece quando você tem um sistema de componentes relativamente simples e eles interagem de formas simples”, explica Steven Johnson, autor do livro Emergência – Dinâmica de Rede em Formigas, Cérebros, Cidades e Softwares (Jorge Zahar Editor, �00�). “E, então, alguma coisa acontece fora desta interação, e o resultado são sistemas complexos de estrutura e de inteligência, normalmente sem planejamento algum.”

reportagem

O comportamento das formigas é um exemplo comum de emergência | imagem: Stock Xchng

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Rimas de improviso

Outro exemplo bem fácil para entender o conceito de emergência é uma colônia de formigas. Cada uma delas age de forma au-tônoma com base em estímulos químicos – a rainha não dá as ordens. Ou seja, é um sistema descentralizado que resulta num comportamento bastante complexo. É só imaginar que elas sobrevivem no planeta há milhões de anos – inclusive estão aqui há mui-to mais tempo do que nós, seres humanos.

Foi pensando nesses insetos que a dupla de bailarinos Ângelo Madureira e Ana Catarina Vieira montou o espetáculo O Nome Científi-co das Formigas, que estreou em junho pas-sado no Teatro Sesc Anchieta, em São Paulo. Tudo começou quando, em um bate-papo com o público, uma menina perguntou aos bailarinos por que eles faziam movimentos tão pequenos, dançando com os cotovelos e os dedos. Madureira respondeu que os movimentos eram pequenos, mas fortes: como a formiga, que carrega dez vezes o próprio peso, sendo o mais forte animal do mundo. Ana Catarina ficou com essa idéia na cabeça e quis saber mais sobre as for-migas e sua organização. Conversou com Madureira e juntos resolveram pesquisar o tema. Até que o conceito de emergência caiu nas mãos da dupla. “Essa teoria condiz

com a nossa pesquisa das danças popu-lares: com passos básicos, primitivos

e de fácil memorização, criamos uma linguagem de dança”,

diz o bailarino.

A emergência tam-bém pode ser encontrada na música. O poeta, compositor e ins-trumentista Siba Veloso, ex-integrante do grupo Mestre Ambrósio, é um bom exemplo. Ao desligar-se da banda, resol-veu morar na pequena cidade de Nazaré da Mata, interior de Pernambuco, onde for-mou um grupo com músicos tradicionais da região: A Fuloresta. Os músicos são mes-tres em ciranda, coco e maracatu de baque solto (ou maracatu rural). Siba e A Fuloresta fazem rimas de improviso embaladas por sopros e percussões. “Meu trabalho parte das três dimensões simples da poesia rima-da (rima, métrica e oração) para estabelecer relações com a parte musical, que também vem de elementos simples, como os ritmos-base”, diz. Segundo ele, não há uma estrutu-ra complexa. São três ou quatro instrumen-tos que giram em torno de uma melodia, um texto e um ritmo – essa é sua referência de trabalho, que oferece uma múltipla ex-ploração de resultados. “O cerne é esse, do qual não abro mão. Com ele, procuramos fazer combinações completamente dife-rentes entre si. A rima pode aliar as palavras ao som. Nós combinamos a maneira como elas são pronunciadas – imagine, então, a infinidade de possibilidades.”

Fator imprevisível

A emergência pode estar tanto no trabalho poético e musical de Siba quanto na obra Canções Submersas, da artista visual Vivian Caccuri. Nessa instalação, é apresentada uma piscina climatizada, que contém qua-tro carpas. Até aí, tudo bem simples. Quem as observa é convidado a escolher uma mú-sica em aparelhos iPod ou MP�. As músicas selecionadas são colocadas em um grava-dor. Por meio de um software especial, o nado dos peixes modifica as canções. “Em geral, a proposta do iPod é a de você con-trolar aquilo que quer ouvir. Nesse caso, os peixes interferem como uma segunda co-munidade. Seu nado é aleatório, ninguém controla”, diz Vivian. “A música nunca sairá de baixo da água da maneira como ouvimos e também não surtirá o efeito esperado.”

A artista e pesquisadora em arte eletrônica, formada no ano passado pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), é simpatizante da proposta da emergência há algum tempo. Seu primeiro trabalho resultou em uma per-formance em que mergulhava diversos ob-jetos na água. Eram brinquedos, eletrodo-mésticos, utensílios de cozinha. Conforme

manipulados, uma gama de sons inusita-dos aparecia. “Cada objeto dentro do

tanque adquiria outro significado: um peão ganhava o som de

um aspirador de pó.”

Lidar com o inusitado também é a proposta de Sandro Canavezzi, arquiteto e mestre em poéticas digitais. Sua instalação I/VOID/O é uma espécie de caixa-preta. Ou melhor, a olho nu, ela é uma esfera cilíndrica toda espelhada. Mas dentro dela sons, imagens reais e virtuais se misturam, o que acaba criando uma realidade obscura. Quem a olha não tem a menor idéia do que vai en-contrar dentro. “É a história de uma observa-ção impossível. Ao tentar ver algo dentro de uma esfera espelhada, você acaba se obser-vando”, diz ele, que atualmente dirige o La-boratório Aberto de Interatividade para Dis-seminação do Conhecimento Científico e Tecnológico na Universidade Federal de São Carlos (LAbI/UFSCar). Segundo Canavezzi, o principal aspecto do conceito de emergên-cia, mais do que o imprevisto, é abrir a arte a todos, torná-la mais participativa, sobretudo a arte eletrônica, com a qual trabalha. Mas como tornar isso realidade? Steven Johnson dá o caminho: com uma base de organiza-ção e com a colaboração de todos. Como as formigas. Essa é a chave.

A simples interação entre neurônios pode gerar sensações complexas | ilustração: Jader RosaSiba e A Fuloresta: músicas criadas com base em conceitos simples da poesia rimada | imagem: divulgação

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� + � = 5A dança das cidades pode ir além da simples soma dos fatores

Por Mariana Lacerda

São �50 mil pessoas que se entrecruzam na Estação da Luz, centro histórico de São Paulo. Elas vêm do norte e do sul, do leste e do oeste da região metropolitana da cidade. Mais de 70% desse contingente se esbarra entre 6 e 8 horas da manhã e da noite para, ao se encontrar por menos de dois minutos, sumir apressado da plataforma. Os passageiros seguem dali para seus destinos na capital: fazem baldeação entre os trens ou acessam a linha de metrô, que passa ali por baixo, tomam ônibus ou as calçadas a pé.

E então a Estação da Luz fica deserta para, após exatos sete minutos, tudo se repetir: com a chegada dos trens simultaneamente, a plataforma se enche e se esvazia numa dança diária que acontece na terceira estação mais movimentada de São Paulo. E, em meio a esse balé de milhares de participantes, registram-se, em média, apenas dois acidentes por dia: de gente que tropeça na fenda entre a plataforma e a entrada do trem durante o entra-e-sai apressado e apertado. É pouco. Embora a administração da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) tenha a expectativa de que algum dia nenhum acidente seja registrado.

Mas não são necessariamente as normas de segurança da CPTM que garantem a ordem de suas plataformas, embora elas ajudem, e muito. O funcionamento das entradas e saídas dos trens é dado pela ordem estabelecida por aqueles que os acessam. Um acordo tácito, uma espécie de democracia intuitiva que ajuda a criar leis para que os trens não parem, muito menos nos horários em que a maioria está começando ou terminando seu dia. Uma ordem complexa, feita por muitos, mas ditada por regras bem simples: alcançar seus postos de trabalho e voltar deles, todos os dias.

reportagem

Pode até não ser nada confortável enfrentar uma multidão nas horas (geralmente várias) que antecedem uma jornada de trabalho. Mas, para que a locomoção não seja mais um impeditivo do ganha-pão, “o único referente que ainda funciona é o da maioria silenciosa”, escreveu Jean Baudrillard em seu livro À Som-bra das Maiorias Silenciosas (Brasiliense, �985) – um ensaio sobre quanto somos resilientes a qualquer forma de organização social, não raro mais do que somos às regras e ditados expressos de conduta.

É essa a ordem que parece também reinar na calçada das cidades, onde as interações quietas – trocas de olhares, pedidos de li-cença ou passos firmes e apressados – dão vida ao lugar. Pois uma rua deserta ou sem

diversidade não transmite segurança. Esta vem da reunião informal, sem hora mar-

cada, ao sabor do improviso das pes-soas que acessam as ruas – ou as

linhas de trem e de metrô, por exemplo.

É por questões assim que os urbanistas se dão conta de que a história das cidades também é feita de si-nais mudos. Pois, apesar de as metró-poles atuais tentarem se organizar por leis de zoneamento, por exemplo, não são estas que, necessariamente, traduzem sua boa funcionalidade. “Não raro temos situa-ções distintas que, ao se aproximar, geram uma terceira realidade que significa bem mais que a conjugação das duas primei-ras”, explica a arquiteta e urbanista Regina Meyer, da Faculdade de Arquitetura e Urba-nismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP). Ela cita um exemplo: a proibição, em �997 e �006, da ocupação das margens das represas de São Paulo.

A clara intenção da lei era proteger os ma-nanciais que abastecem a capital e sua re-gião metropolitana. Mas, ao contrário do que se previu, os terrenos à beira d’água foram, aos poucos e incansavelmente, to-mados por ocupações irregulares, que sur-giram de um tipo de consenso silencioso – entre os moradores, entre a administração pública – e mostraram que as normas são impostas devido à necessidade mais do que aos tijolos colocados uns sobre os outros em desenhos lógicos.

Os milhares de fluxos cotidianos dão vida à cidade| imagens: Cia de Foto

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Pois, como escreveu a jornalista norte-ame-ricana Jane Jacobs (�9�6-�006) no livro Mor-te e Vida de Grandes Cidades (Martins Fontes, �96�): “As cidades com vitalidade têm mara-vilhosas e inatas habilidades para compreen-der, comunicar, arquitetar e inventar o que for preciso para combater suas dificuldades”. Ou, em outras palavras, uma comunidade não é apenas a soma de seus participantes, mas, sim, algo maior. Uma “complexidade organizada”, diz Steven Johnson sobre um dos mais caros conceitos de emergência em seu livro Emergência – Dinâmica de Rede em Formigas, Cérebros, Cidades e Softwares (Jor-ge Zahar Editor, �00�). Johnson explica que cada um dos participantes de uma cidade reconhece os padrões de comportamento da comunidade e, de alguma forma, se as-segura neles, mesmo quando os padrões a que reagem não são, nem de longe, os mais adequados – como é o caso da ocupação das margens dos mananciais paulistas ou mesmo o vai-e-vem tumultuado das plata-formas de trem.

Cidades e células

Sobre o funcionamento da cidade, a biolo-gia talvez tenha muito a explicar e fazer re-fletir. Para formar um embrião humano, por exemplo, as células, por meio de suas jun-ções, transmitem sinais moleculares. “Esse é o segredo da automontagem: células cole-tivas emergem porque cada uma delas olha para a vizinha procurando dicas de como se comportar”, escreveu Johnson. São dicas daquilo que especialistas chamam de “ex-pressões genéticas”, espécie de “cola” que permite às estruturas celulares se dar conta de qual segmento de DNA deve consultar para ter suas instruções. “Uma célula olha em volta para as vizinhas e vê que todas estão empenhadas na criação de uma válvula para o coração.” O que a leva, por sua vez, a começar a traba-lhar na mesma tarefa.

Contudo, uma importante distinção deve ser feita entre o funcionamento das célu-las e a dinâmica das cidades. Se é verdade que as cidades podem ser comparadas aos organismos vivos, a massa silenciosa não necessariamente é levada por comporta-mentos semelhantes às trocas de informa-ções celulares. “Nossos padrões tendem a ser bem mais complexos”, diz Regina Meyer, acrescentando que nem sempre a analogia entre as leis do urbanismo e da biologia é bem-vista em sua área de trabalho.

A advertência da arquiteta faz sentido. O que as células, as calçadas (e as plataformas de trem) têm a nos dizer são exemplos da mesma idéia, de atividades realizadas com base em pressupostos simples de um ma-terial variado. O comportamento humano trabalha em duas escalas: a sobrevivência cotidiana, que mantém, por sua vez, outra ordem maior, a da economia, da geração de renda, da circulação de valores, do conheci-mento, do desenvolvimento. Ou seja, dirigir um carro pode ter uma conseqüência em curto prazo: chegar ou não ao lugar que se deseja. Em longo prazo, no entanto, dirigir carros pode pôr abaixo prédios antigos para fazer surgir vias expressas, pode aquecer a temperatura do planeta.

Ao decidir ir dali para cá, não nos damos conta das conseqüências. Todo esse pen-samento deve pertencer ao coletivo, à

cidade, que progride, cresce e aprende em seus ciclos de vida, suas histórias e

pequenas tragédias − como a ocupa-ção irregular nas margens dos re-

servatórios que abastecem a cidade.

A formação de células pode ser comparada à dos ambientes urbanos | imagem: Cia de Foto

A “complexidade organizada” de uma comunidade não se restringe à soma de seus integrantes | imagem: Cia de Foto

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Conectado por um fio

Por André Seiti

Eles estão em todos os lugares. Em casa, no trabalho, na rua. Sem eles, provavelmente, viveríamos na escuridão, o trânsito seria um caos ainda maior, diversos computadores e aparelhos telefônicos não funcionariam, muitas ligações e conexões estariam abaladas. O poder, tanto literal quanto metafórico, que os fios exercem é a obsessão do ciberneticista Dr. Wires. “Sem conexão, somos nada”, acredita. Nascido, “muitos anos atrás”, em uma “pequena ilha do norte da Inglaterra”, atualmente vive em Nova York, cidade da qual retira inspiração para explicar, de maneira simples, teorias complexas. Divulgador e defensor de uma ciência mais acessível, Wires mantém o site www.drwires.com. Ele acredita que a ciência não se tornará popular a menos que as pessoas se dêem conta de que necessitam dela em seu cotidiano “para viver melhor e mais facilmente, para estar mais conectados com os outros, para ter uma existência social maior”.

E por falar em conexão, parece haver uma entre os trabalhos dele e de outro ciberneticista, o também britânico Paul Pangaro. Segundo Wires, ambos sabem reconhecer uma boa teoria; mas as semelhanças não acabam por aí: a aparência só não os torna a mesma pessoa devido à gravata borboleta, aos cabelos grisalhos despenteados e aos óculos fundo de garrafa de Wires. Nesta entrevista, ele evidencia a emergência presente em nossa vida, lembrando sempre a importância dos fios em tempos de tecnologia wireless.

entrevista

Seu nome, Wires, transmite a idéia de co-nexão e de interação. Por que é tão im-portante estar sempre conectado e inte-ragir com outros elementos?

Meu pai era cantor, um tenor da Toscana, Itália. Minha mãe era telefonista. Eles não se davam bem. Então, tive de aprender sozinho o que é importante para viver, como estar conectado com as pessoas. Wire [cabo/fio em inglês] é uma conectividade elétrica, um canal criado, um meio de dar energia à outra pessoa, uma forma de dizer algo, um jeito de ouvir o outro. Essas interações para nós, seres humanos, são a base para estar e permanecer vivo. Somos criaturas sociais, precisamos viver em conectividade. É isso o que significa ser humano. A mensagem do Dr. Wires é sobre a energia e a vibração de ser humano na presença da tecnologia.

O senhor costuma abordar assuntos complicados de uma maneira acessível. Qual seria a explicação mais simples para o conceito de emergência?

Emergência é um termo científico recente. Ele tenta descrever como sistemas – bio-lógicos, tecnológicos, sociológicos – pos-suem regras simples das quais emergem comportamentos complexos, daí a palavra emergência. Vejamos a minúscula criatura chamada formiga. Elas não são muito inte-ligentes, mas a sociedade na qual vivem é muito complexa: vivem em colônias, cons-troem formigueiros, atacam seus inimigos, buscam alimento. Isso mostra uma varie-dade extraordinária de comportamentos complexos para uma criatura que tem um sistema nervoso e um cérebro tão peque-nos. Você já viu aquelas linhas com formi-gas se movimentando muito rapidamente em ambas as direções, algumas correndo para buscar alimento e outras trazendo comida para o formigueiro? Isso é surpre-endente, mas por que acontece? Se fosse um sistema humano, você diria “Bom, deve haver um guarda de trânsito que diz: ‘Ok, pessoal, vamos todos para o sul, viramos à direita e aí para a esquerda e lá vocês en-contrarão um pouco de queijo e, quando o pegarem, cortem um pedaço grande, vol-tem para o formigueiro, deixem-no aqui e saiam novamente’”. Claro que não é o que acontece numa colônia de formigas. Elas têm regras muito simples. O que fazem é se movimentar de forma aleatória, devagar, sem destino, tentando encontrar alimento e, ao encontrar, dizem “Oh, que maravilha” e voltam para o formigueiro. É aí que começa a mágica. Quando elas retornam ao formi-gueiro, deixam um rastro, um odor. São os feromônios, que criam uma trilha atrás das formigas, e quanto maior o número delas mais forte fica o cheiro, e quanto mais for-te o cheiro mais ele atrai outras formigas e mais outras encontram o queijo e o trazem de volta, e, dessa forma, você tem uma extraordinária rodovia de formigas indo e vindo.

Dr. Wires: “Sem conexão, somos nada” | imagens: Dennis Letbetter/studioletbetter.com

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De que forma a emergência está presen-te em nossa vida, em nosso dia-a-dia, em contextos político, social e cultural?

No mundo físico – da energia, da massa, dos átomos e assim por diante –, as forças agem levando a uma evolução no sentido darwi-niano, à evolução de um sistema, à comple-xidade e, claro, à vida, à emergência da vida. É necessário dizer que a emergência é um nome dado a alguns processos evolucioná-rios atuantes à medida que os sistemas vão do simples ao complexo. E o Dr. Wires criou esse pano de fundo como contexto, porque é exatamente esse tipo de emergência e evolução que ocorre nos contextos político, social e cultural. A rotina vem diretamente do que pode ser descrito como a emergên-cia, não no decorrer de anos, nem de uma vida toda, mas em milênios de mudanças culturais, desde as culturas consideradas mais primitivas até as chamadas sofistica-das. Mas é claro que o Dr. Wires não gos-ta de toda essa terminologia porque ela vem de um ponto de vista externo. A natureza da política, da sociedade e da cultura está toda enraizada no fenômeno da emergência.

E quanto à sua vida, o senhor se lembra de algum episódio que pode ser relacio-nado ao conceito de emergência?

Episódio vem do grego e significa na estrada, quer dizer a criação do caminho, da experi-ência, da sensação. Há quem pense que o tempo exista na forma de segundos e horas e dias... O Dr. Wires considera o tempo como algo que ocorre e é percebido. Podemos ficar sentados por horas e horas e acreditar que só se passaram cinco minutos, pode-mos viver uma experiência terrível de dez segundos e achar que durou �0 minutos. Um episódio é algo memorável e uma novi-dade, porque é inesperado, é uma surpresa. Qualquer surpresa que aconteça pode ser atribuída a um tipo de emergência, e um episódio ocorre no momento em que eu me surpreendo com o que aconteceu. Encontrei alguém e tivemos uma conversa ótima, ou olhei para fora e notei as pessoas andando, uma criança gritando, e tudo isso se transfor-mou em algo memorável. Então, na verdade, a emergência está por toda parte. É decor-rente de algo que aconteceu antes e que de certa forma era simples, e o que emergiu foi surpreendente, novo. Nesse sentido, a emergência é um fenômeno do observador. Quando penso sobre os episódios da minha vida, eu diria que todos aqueles que foram importantes para mim – portanto, aqueles de que eu me lembro – resultaram de um comportamento emergente.

Emergência pode ser entendida pela for-mação de eventos complexos com base em regras simples. O senhor poderia nos dar algum exemplo do processo inverso, ou seja, regras complexas que resultam em eventos simples?

Sim, apaixonar-se. Na verdade, apaixonar-se é algo muito, muito simples, quando você se satisfaz nessa experiência. Porém, isso vem de precedentes muito complexos. Bom, você tem um sistema elétrico chamado sis-tema nervoso em um corpo, que está sen-tindo e interagindo com o chamado mundo externo. Você tem um sistema químico, que é todo composto de hormônios e proteí-nas, e toda essa mágica acontece no fluxo sangüíneo. Isso tem a ver com a emoção e a regulação dos aspectos internos do corpo. Os sistemas elétrico e químico são extrema-mente complexos, são muito, muito difíceis de descrever. É impossível saber, num dado instante, o que está acontecendo nesses sistemas e, mesmo assim, ao nos apaixonar-mos, o êxtase, a unidade com o outro, a uni-versalidade do sentimento, o estar conecta-do e inteiro com outro ser humano é o mais simples possível.

O que faz uma regra ser simples e um resul-tado ser complexo? Quem determina o tipo de classificação e qual é o critério para clas-sificar regras e resultados dessa forma?

Uma regra, ou situação, ou um sistema não é inerentemente simples ou complexo. So-mos nós que, como observadores, criamos, dependendo de como reagimos à situação, a complexidade ou a simplicidade. Pode-se dizer que o objetivo do sistema nervoso é colocar ordem na experiência. Se a cada ins-tante de cada momento do dia tivéssemos de processar tudo o que está sendo sentido, não teríamos muito tempo livre, não é? O que ocorre é que temos uma visão geral do mundo. Dizemos “Isso é um objeto e ele não vai mudar, portanto, posso ignorá-lo. Aquele som é repetitivo, não vai mudar, posso igno-rá-lo. Aqui vem o predador, ele está prestes a cortar minha cabeça, é melhor eu fazer algo rápido”; essa é uma diferença que

faz a diferença. Todo esse ordenamento de ocorrências faz com que, com o

tempo, a gente construa uma lin-guagem, e é ela que expressa

a complexidade.

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O senhor já afirmou que a inteligência não surge do previsível. Sabendo que a impre-visibilidade é uma marca dos fenômenos emergentes, poderíamos, então, dizer que a inteligência é uma forma de emergência?

A definição de inteligência que o Dr. Wires gosta é a de que ela ocorre numa interação entre um sistema que tem uma meta e o ambiente. Algumas formas de inteligência são comportamentos emergentes. Se eu visse uma criança de 5 anos andando pela rua e essa criança sentasse e tocasse Mo-zart perfeitamente, eu me surpreenderia. Agora, poderíamos dizer que a inteligência do Mars Rover, um robô que foi enviado ao espaço, pousou na superfície de Marte, se moveu, se adaptou e fez várias coisas inte-ressantes é emergente? Não, porque ele foi programado para isso. Algumas formas de inteligência não são emergentes, porque as compreendemos e não ficamos surpresos como o comportamento emerge.

A arte em geral pode ser considerada um fenômeno emergente?

De uma forma resumida, sim. A arte luta para criar experiências e faz isso numa mí-dia específica. Na opinião do Dr. Wires, a es-sência da arte é dizer algo original, algo que seja uma novidade, é expressar talvez uma necessidade humana característica da épo-ca ou do sentimento humano. Mas deve-se fazer isso de uma forma nova, porque se for repetitivo, se Bach escreve algo e o Dr. Wires escreve a mesma coisa, qual é a razão para isso? A arte, como a expressão do original, produz experiências, e elas são, para um ob-servador, o emergente. Nem todos os fenô-menos emergentes são arte. Mas eu diria que toda arte é emergente, caso contrário, não é novidade, portanto, não é uma boa arte.

Como transformar esta entrevista em um fenômeno emergente?

Não podemos. Ela já é isso. Você não pode transformar uma coisa em algo que ela já é. Na verdade, poderíamos transformá-la num fenômeno não-emergente, eu poderia me repetir e me repetir e continuar me repetin-do, isso seria um fenômeno não-emergen-te. A entrevista tem a ver com a conversa-ção, um fenômeno emergente.

O que é ser Dr. Wires na era da tecnolo-gia wireless?

É uma alegria para o Dr. Wires trazer sua mensagem sobre conectividade na era do wireless. A mensagem se torna mais impor-tante. Há uma ilusão de que não há proble-mas em estarmos separados. Ilusão de que estar longe de alguém, ser capaz de enviar um torpedo e dizer “Oi, mãe, estou em casa” é suficiente para se conectar. Mas isso não é verdade. Nos tempos do wireless, não esta-mos conectados por um sistema físico, um fio, um cabo ou um corpo físico. No entan-to, para sermos verdadeiramente wireless, para estarmos desconectados no sentido metafórico, implicaria sermos não-huma-nos. Na distinção de Heinz Von Foerster [ciberneticista austríaco], você pode viver de duas maneiras: à parte e desconectado do mundo, o que o leva a fazer declarações do tipo “Você deveria agir assim” e “As mi-nhas idéias são melhores do que as suas”. Ou você pode conscientizar-se de que faz parte dessa condição de contribuição, na qual o que pode emergir ao estar conecta-do é mais ético, mais justo. Podemos evoluir juntos, concordando uns com os outros – e, claro, discordando algumas vezes –, pois

ao manter a conexão estaremos cientes desses desacordos e os entenderemos,

em vez de sacar nossas armas. De-vemos é sacar nossos cabos e

fazer uma conexão.

Segundo Wires, a paixão nasce na complexidade e torna-se simples | imagem: Dennis Letbetter/studioletbetter.com

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Que som é esse que não me sai da cabeça?A receita simples de fazer música e seus inesperados resultados

Por Daniel Daibem

Há quatro anos apresento um programa na Rádio Eldorado FM, de São Paulo, chamado Sala dos Professores. Nele, tento compartilhar com os ouvintes coisas das quais, geralmente, só os músicos têm consciência. São preceitos que, se usados intencionalmente e com bom gosto, geram todas as sensações possíveis em quem ouve uma canção: alegria, melancolia, vontade de dançar, de relaxar, de sair chutando tudo…

Existem regras simples para esse resultado aparentemente complexo. Improvisar, por exemplo. No Brasil, a palavra improvisar ganhou a conotação “fazer as coisas de qualquer jeito”. É aí que começa a confusão. A maioria das pessoas, mesmo as que curtem jazz há bastante tempo, pensa que o conceito de improviso na música é mais ou menos assim: o tema é apresentado e na hora de tocar... liberdade total, vale tudo!

Liberdade, sim, mas dentro de algumas normas. É exatamente como em uma conversa. Quando se está discutindo algo, obrigatoriamente se usa um idioma. As ferramentas são as palavras desse idioma. Pode-se até contar a mesma história de formas diferentes, mas, para ser entendido, devem-se usar palavras que já existam nessa língua.

Na música também é assim. Pode-se dizer que o idioma é o ritmo: baião, jazz, samba, bolero, funk... Para cada um deles existe um vocabulário de melodias e divisões rítmicas. A melodia é a parte emotiva da música. Quando o músico improvisa, usa seqüências melódicas já existentes, que podem ser um trecho de um tema conhecido, uma frase de blues... Então o músico não cria?

Cria, sim, mas com o que já foi inventado. E quem inventou? Para não parecer uma opinião arrogante, vai aqui um exemplo, uma frase dita por um dos maiores gênios da música contemporânea, o maestro Antônio Carlos Jobim. Numa entrevista à televisão, perguntaram a ele:

– E aí, Tom, como é ser um dos maiores compositores do mundo, com mais de � mil músicas e tal…?

Ele respondeu:

– É, a gente vai fazendo umas coisinhas aí, imitando os passarinhos…

artigo

Há liberdade de improvisar no jazz, mas dentro de algumas regras | imagem: Cia de Foto

Ele sabia que tudo já fora inventado, que só se brinca com o que já existe. E disse mais, que ouvindo a obra de Heitor Villa-Lobos conseguia dizer qual era exatamente o pás-saro que estava sendo imitado em deter-minada melodia. Villa-Lobos era outro que também sabia que tudo já havia sido inven-tado e, no meio da noite, se enfiava na mata para ouvir a “sinfonia da natureza” e colecio-nar movimentos rítmicos e melódicos.

A ranhura que faz a diferença

A melodia solta no espaço, sem um ritmo, não é nada. É como a água sem um reci-piente. Qual é o recipiente que dá forma às melodias? É o ritmo. A parte “esportiva” da música. Além dele, há também o groove. Para brincar com as melodias deve haver um groo-ve, uma levada, uma célula rítmica que servirá de alicerce para qualquer seqüência tocada ou cantada. Os jazzistas são os músicos que

mais dominam essa prática porque estu-daram os ritmos; podem, então, tocar

qualquer música na levada que qui-serem, claro que com o míni-

mo de bom gosto.

E é justamente por essas pequenas regras que uma jam session (reunião de músicos que to-cam e improvisam) dá certo. Mesmo se os mú-sicos estiverem se encontrando pela primeira vez, o solista pode chamar qualquer tema no ritmo que achar adequado para o momento. Por exemplo, Garota de Ipanema em ritmo de jazz ou Yardbird Suite, de Charlie Parker, como samba. Nas jam sessions, cada música, execu-tada dentro desse conceito, pode durar três minutos ou várias horas, dependendo do vocabulário e do conhecimento de quem a estiver tocando. O improviso acontece nesse ciclo. Algo aparentemente complexo, mas que funciona devido a regras simples.

Para não ficar só na teoria, segue uma dica aos leitores: ouçam coisas simples, músicas que podem ser cantaroladas. É por meio delas que se entende que canções que pa-recem extremamente complexas são total-mente dependentes de regras básicas.

Daniel Daibem é radialista e músico. Apre-senta diariamente o programa Sala dos Pro-fessores, na Rádio Eldorado FM de São Paulo (9�,9 MHz).

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John não quer mais sujar as mãosO grafiteiro que foi buscar novos muros no ciberespaço

Por Thiago Rosenberg

John Howard está com 70 anos. Seus dias seguem, atualmente, quase sempre a mesma rotina. Logo de manhã, deixa sua casa – localizada no bairro de Pompéia, zona oeste da capital paulista –, onde vive sozinho, e parte em direção ao cibercafé administrado pelo mais velho dos quatro filhos. São seis quadras de caminhada e, no trajeto, o senhor, que ostenta longos, desgrenhados e brancos fios de cabelo, barba e sobrancelha, troca um afetuoso “olá, como vai?”, marcado por claro sotaque norte-americano, com os conhecidos que lhe cruzam o caminho. Uma vez no estabelecimento do filho, dirige-se a um dos terminais de computador instalados no local, onde chega a ficar, com os olhos atentos e maravilhados diante do monitor, por até oito horas.

Mas, mesmo entocado no interior do cibercafé, John também está presente do lado de fora do recinto, sob o sol, à vista dos transeuntes, incrustado nos muros de concreto e nos postes da metrópole. Seu nome figura entre o dos artistas que, dos anos �970 para cá, mudaram as ruas da cidade, transformando-as, muitas vezes, em galerias de arte a céu aberto. Ele é – ao lado de criadores como Alex Vallauri – um dos responsáveis pela emergência do grafite paulistano tal qual o conhecemos e o artista homenageado do Dia Nacional do Graffiti (�7 de março de �008). Dar alguns passos em sua casa, que serve também de ateliê, é correr o risco de esbarrar em tinta fresca. Ainda que pouco iluminado e com certo aspecto de abandono, o ambiente flameja cores e vida por todos os lados: nas paredes e nos muitos quadros por elas espalhados, nas mesas repletas de materiais para pintura, em cilindros que se fazem de postes grafitados. Mas John, em dados momentos, parece estar cansado de sujar as mãos com spray, tinta a óleo e nanquim. Ele está mais interessado em criar imagens de pixel no computador – uma cidade na qual, com simples cliques, novos muros são erguidos.

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Ao recordar determinados episódios da vida, John aponta para um mural pintado por ele em uma das paredes do cibercafé. Passa as mãos pelas imagens representadas e questiona se aqui-lo tudo é, mesmo que palpável, de fato real. Explica que para cada espectador há uma pintura diferente, uma realidade diferente. E é possível que algo semelhante ocorra quando olhamos para trás. Ao longo dos anos, uma mesma pessoa pode enxergar – e transmitir – seu passado de maneiras distintas. É assim que John, aos 70 anos, transmite o seu:

perfil

O artista John Howard observa mural grafitado por ele | imagem: Cia de Foto

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Na borrifada de spray

Para o pequeno John, nascido em Detroit, no estado norte-americano de Michigan, em �9�8, a América Latina era como que uma borrifada de spray ao vento, algo amor-fo e sem subdivisões. E essa borrifada só encontrou certa definição nos anos em que o futuro artista de rua, atendendo às expec-tativas dos pais, se graduava em engenharia pela University of Detroit. Durante o curso, ingressou em um programa de estágio que, ligado à General Motors, reunia estudantes vindos dos vários países que mantinham fi-liais da multinacional. Foi nessa época que, em decorrência da amizade que fez com três colegas de estágio, John tomou conhe-cimento de alguns aspectos da cultura brasi-leira. Ainda assim, mudar-se para o Brasil era uma idéia que não passava por sua cabeça.

O que passava por sua cabeça – ou melhor, não passava, posto que sempre estivera lá – era dedicar-se às artes. E foi com essa in-tenção que, com �� anos e já formado em engenharia, rumou para São Francisco, na Califórnia. Lá estudou artes – na San Fran-cisco City College – e, em �96�, ficou com vontade de fazer uma visita aos colegas brasileiros que conhecera em Michigan – e que, a essa altura, já voltaram para o Brasil. John foi, então, encontrá-los em São Paulo. E, de carona, mergulhou naquela borrifada de spray.

México, Guatemala, Honduras, Nicarágua, Costa Rica, Panamá. Cinco meses de estrada. Quando entrou na Colômbia, já estava sujo e sem dinheiro. Mas os habitantes da cidade de Letícia – que faz fronteira com Tabatinga, município brasileiro do estado do Amazo-nas – acolheram-no como a um guerreiro que retorna do campo de batalha. Não fal-tava quem lhe desse abrigo e comida. Ficou sabendo que um avião de carga da Força Aérea Brasileira (FAB) parava de tempos em tempos em Tabatinga, com destino a Ma-naus. E tentou a sorte. Que também não lhe faltou. O avião do governo chegou depois de seis semanas, e John, sem visto, não pre-cisou pedir duas vezes ao capitão que lhe arranjasse um lugar no vôo.

Chegara enfim a uma capital brasileira. Mas seu destino era outra capital, a paulista, e ainda havia um Brasil para atravessar – sem dinheiro nos bolsos. Fe-lizmente, novas paisagens trazem novos personagens. E a jornada de John rumo a São Paulo ganhou outro fôlego depois que um grupo de estrangeiros aficionados do xadrez cruzou seu caminho. Algumas apostas no tabuleiro lhe renderam cruzei-ros suficientes para pagar uma passagem do Serviço de Navegação da Amazônia e de Administração do Porto do Pará (Snapp) até Belém, onde ficou por duas semanas, tempo necessário para que arranjasse uma carona para Belo Horizonte. Uma viagem de ônibus da capital mineira a São Paulo encer-rou a travessia.

A jornada por parte da América Latina e os �8 meses de residência em São Paulo – durante os quais presenciou o golpe militar de �964 – deram a John uma boa idéia das realidades existentes abaixo da fronteira sul dos Estados Unidos. Quando retornou para a Califórnia, levou consigo uma nova versão daquela borrifada de spray e, com ela, alguns ques-tionamentos. Desde que, na capital paulista, tomara conhecimento da produção dos ar-tistas da Semana de Arte Moderna de �9��, ficou pensando se já não estava na hora de surgir na cidade um novo movimento cultu-ral. Pensou nisso por anos, até que, em �97�, depois de concluir mestrado em literatura inglesa e norte-americana pela San Jose Sta-te College – hoje California State University at San Jose –, partiu de volta para São Paulo, agora com visto permanente.

Um novo movimento

Se o simples bater de asas de uma borbole-ta pode, de acordo com uma das mais repe-tidas alegorias ligadas à teoria do caos, de-sencadear um tufão do outro lado do mun-do, o que dizer das “sprayadas” que John, logo em seus primeiros anos como cidadão brasileiro, distribuiu pela cidade? Elas talvez não tenham interferido na formação de um cataclismo em Pequim, mas é certo que também não se limitaram a incrustar-se nos pedaços de concreto que coloriram. Elas reverberaram. E essa propagação era justa-mente o objetivo de John – que se preocu-pava em instigar novos artistas mais do que promover isoladamente seu trabalho. Ele percebeu que os jovens paulistanos tinham uma enorme necessidade de se expressar, de sair do anonimato, mas não encontra-vam meios para tal. O que eles poderiam usar para suprir essa necessidade criativa, John logo percebeu, estava espalhado pela metrópole: muros. E, com essa preocupa-ção mais didática do que estética, ele fez centenas de grafites pelas ruas da cidade, muitos deles com pouco acabamento, para que as pessoas entendessem que aquilo era algo que poderia ser feito por qualquer um.

Uma borrifada de spray que resultou em revolução nos muros paulistanos | imagem: Riccardo Fanucchi

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É certo que os trabalhos de John, abertos ao diálogo com toda a sociedade, não chama-ram a atenção apenas de artistas. Suas “cabe-ças feitas “ – um dos temas recorrentes entre suas imagens – dirigiam-se a todos aqueles que caminhavam com os olhos atentos nas “telas de concreto”. E algumas das mensa-gens que o grafiteiro espalhava pela cidade – “Deus se come-se” era uma delas – insti-gavam a curiosidade, a indignação, a admi-ração e toda sorte de reações em quem as liam. Por esses e outros motivos, ele virou um personagem bastante presente nas pá-ginas de jornais e revistas dos anos �980 e �990. Muitas das matérias exaltavam sua postura indignada em relação aos ataques à sua obra, caso do texto “Grafiteiro ameaçado de prisão”, publicado na Gazeta de Pinhei-ros de �6 de julho de �989: “Em janeiro de �988, funcionários municipais, a mando do prefeito Jânio Quadros, passavam cal sobre os murais-grafites do ‘buraco da Paulista’, e um dos grafiteiros tentou proteger sua obra: ‘Fiquei na frente dos trabalhos, passaram cal em cima de mim’, conta John Howard [...]”. Mas John é hoje mais sereno ao se referir à oposição ao seu trabalho. “Não concordo, mas é inevitável; é como o envelhecimento”, diz ele, passando as mãos pelos fios de cabe-lo branco, “você pode não concordar com a velhice, mas ela chega de qualquer jeito”.

Um outro brilho

O grafiteiro descobriu o novo mundo da arte digital em �995, quando a West Chester Uni-versity, da Pensilvânia, o chamou para minis-trar o curso de participação comunitária. Na ocasião, a universidade ofereceu ao seu cor-po docente laboratórios de informática, nos quais eram dadas orientações sobre como usar o computador para, entre outras tare-fas, planejar aulas e calcular notas e médias. Ele aproveitou a oportunidade para conhe-cer os diferentes programas instalados nas máquinas, e, nessa investigação, encontrou o Photoshop. Tendo em mãos um manual com dicas de utilização do software, John começou a se familiarizar com aquele que viria a ser seu novo ateliê.

***

Voltamos a �008. E ao septuagenário John, que, em frente ao computador do cibercafé, aponta – não mais com as mãos, mas com a seta do mouse – os detalhes de seu mais recente ambiente de trabalho. “São cente-nas de recursos, de comandos!”, explica ele, apaixonado. “Você faz um desenho e pode espremê-lo ou alargá-lo. Pode colocar um desenho em cima do outro, com esse efeito de transparência. Pode dar ao desenho uma aparência de aquarela, por exemplo; e, se não gostou do resultado, mudar para óleo sobre tela. É muito interessante.”

R e p e t i r , todos os dias, a mesma

ação; e não assumir a autoria. John lera em algum lugar que esses

dois pontos deveriam ser observados por aqueles que desejam mudar algo em

seu canto de mundo. Seguiu-os à risca e começou a fazer desenhos não assinados em uma infinidade de postes da cidade (a idéia de grafitar postes tornou-se uma das principais contribuições estéticas de John para o grafite paulistano). Certo dia, ao ca-minhar pelas ruas, percebeu que alguém havia feito uma interferência, também em grafite, em um desses postes. Ficou extre-mamente feliz. “Está funcionando!”, pensou. O responsável pela interferência, descobriu-se depois, era Rui Amaral, um dos primeiros artistas de rua influenciados por John – e que, em pouco tempo, realizaria obras em parceria com seu mentor.

E também é muito inte-ressante, acredita John, o efeito que a obra de arte digital causa no espectador. “A luz vem de trás da ima-gem, passa pela tela e entra no seu olho”, comenta. Até seus trabalhos feitos a mão, quando reproduzidos digitalmente no computador, lhe parecem mais impactan-tes. “Aquilo ali [apontando para sua pintura, exposta na parede] é bom, tudo bem, mas, quando vejo a foto disso no monitor, acho melhor! Tem um outro brilho!”

O sol já se pôs e, em pouco tempo, John re-tornará para sua casa, para seu “ateliê de car-ne e osso”, onde ainda vive, em contato com a tinta fresca, o grafiteiro que fez história nas ruas de São Paulo. Mas, neste momento, ele está diante daquilo que julga ser o futuro da arte. “Pintar com óleo, com nanquim... Isso tudo suja as mãos, suja a roupa. É como usar a máquina de escrever: você faz um erro; aí tem de sujar tudo para consertar”, compara. “No computador é diferente, é mais prático. E você ainda pode enviar para o mundo todo pela internet. Eu quero promover isso assim como promovi o grafite.”

Duas “cabeças feitas” por John Howard | imagem: Riccardo Fanucchi

Detalhe da obra digital Raios de Sol na Floresta, de John Howard

Veja trabalhos de John Howard no sitehowardsart.googlepages.com.

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A Continuum Itaú Cultural faz � ano. E para comemorar a ocasião será apresentado o debate Arte e Cultura: O Mercado Editorial. O evento, marcado para o dia �� de julho, às �9h�0, conta com a participação dos jornalistas Alcino Leite Neto (editor do site Trópico), João Gabriel de Lima (diretor de redação da revista Bravo!) e José Castello (articulista dos jornais O Globo e Rascunho).

O encontro ocorre na sede do Itaú Cultural, em São Paulo. Mas os leitores de todo o Brasil podem assistir ao debate na versão on-line da revista, em www.itaucultural.org.br/revista. Além da transmissão ao vivo, o site também disponibilizará, a seguir, o registro em vídeo da discussão.

on-line

ON-LINE

O artista Dimitre Lima desenvolveu a obra da Área livre desta edição com o Processing – software de plataforma aberta que, com base em parâmetros preestabelecidos pelo usuário, pode gerar um trabalho artístico. O programa permite que a obra seja constantemente atualizada e, assim, receba novas e imprevisíveis versões.

Vire a página para conhecer a obra de Lima. E, na revista on-line, acesse os desdobramentos do trabalho e saiba mais sobre as possibilidades artísticas do Processing.

www.itaucultural.org.br/revista

Obra visual, criada por meio de software livre, do artista Dimitre Lima

As doze edições da revista imagem: Renan Magalhães/Itaú Cultural

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área livre

A imagem das mil palavras

As palavras mais utilizadas nos �� primeiros números da revista Continuum Itaú Cultural cons-troem esta imagem. O tamanho de cada uma delas é proporcional à quantidade em que apareceu nas edições.

imagem: Dimitre Limahttp://dimitre.org

.�6itaú cultural avenida paulista �49 são paulo sp [estação brigadeiro do metrô] fone �� ��68 �700 [email protected] www.itaucultural.org.br