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out 2007 | itaucultural.org.br 4 ITAÚ CULTURAL Violência alternativa arte

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ITAÚ CULTURAL

Violência alternativa arte

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sumário

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ITAÚ CULTURAL

A memória do malA violência segundo a arte

Um “corpo estranho” na cidadeA tensão do espaço urbano revelada pelas intervenções públicas

Notícias de uma guerra coletivaEm entrevista, o cineasta José Padilha comenta seu novo filme, Tropa de Elite

Em nome da arteQuando o fazer artístico pode agredir seus criadores

Uma jornada especialA arte das comunidades da Maré e do Vidigal, no Rio de Janeiro

Área LivreSamba, amor e ciúme em conto inédito do escritor e jornalista Marçal Aquino

Tocando na ferida

Em outubro, a violência e sua relação com a arte e a cultura se fazem presentes no Itaú Cultural, em eventos como o 1º Fórum Latino-Americano de Fotografia de São Paulo e a exposição fotográfica Sutil Violento. A abordagem já inspirara no mês anterior a segunda edição do Antídoto – Seminário Internacional de Ações Culturais em Zonas de Conflito, realizado em parceria com o Grupo Cultural AfroReggae.

Sensível a esse tema, Continuum Itaú Cultural apresenta outras formas, além das que mobilizaram a programação citada, de refletir, questionar, compreender, concordar e discordar da premissa de que a arte e a cultura são alternativas poderosas em locais marcados por vários tipos de violência.

Nesta edição, intitulada Violência alternativa arte, obras artísticas que têm a violência como assunto ou que se utilizam da violência para instigar a reação do público são citadas na matéria de abertura da revista. Em outra reportagem, é a vez de body artistas revelarem suas intenções ao sentir na própria pele atos violentos. Em entrevista, o cineasta José Padilha vai além da polêmica causada pela pirataria que atingiu seu último filme, Tropa de Elite, e sem pretensão situa a contribuição que o cinema pode dar à questão da violência urbana. O arquiteto Guilherme Wisnik, em

artigo sobre arte pública, e o escritor Marçal Aquino, em conto para a seção Área Livre,

ampliam a relação entre arte e violência para além do texto jornalístico.

É intenção da Continuum Itaú Cultural ampliar ainda mais essa conversa de múltiplas vozes. Para tanto, a edição eletrônica da revista, disponível em

www.itaucultural.org.br, convida seus leitores a colaborar, enviando textos para a seção Leitor-Autor. Outra forma de se fazer ouvir é

enviando sua mensagem para [email protected] com críticas e sugestões.

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Tiragem 10 mil – distribuição gratuita. Sugestões e críticas devem ser encaminhadas ao Núcleo de Comunicação e Relacionamento [email protected]. Jornalista responsável Ana de Fátima Sousa MTb 13.554

capa imagem integrante da série Idílico – A Gente Sempre Fica no Meio do Caminho, da Cia de Foto

Continuum Itaú Cultural Projeto Gráfico Jader Rosa Redação André Seiti, Érica Teruel Guerra, Marco Aurélio Fiochi, Thiago Rosenberg Colaboraram nesta edição Augusto Paim, Cia de Foto, Gabriel Bitar, Guilherme Wisnik, Marçal Aquino, Marcos “Ratão” Diniz/Agência Fotográfica Imagens do Povo/Observatório de Favelas, Thiago Mio Salla Agradecimentos Cláudia Belém (Belém Com), Grupo Nós do Morro, Observatório de Favelas do Rio de Janeiro, Rose Satiko

ISSN 1981-8084

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A memória do malAs diferentes expressões artísticas da violência contemporânea

Por Thiago Mio Salla

Sentadas lado a lado no saguão de entrada do Sesc Pinheiros, em São Paulo, três figuras com máscaras de esqui de diferentes cores – vermelha, branca e azul, respectivamente, em alusão à bandeira dos Estados Unidos – chamam a atenção dos visitantes. Cada uma delas carrega um taco de beisebol. O aspecto ameaçador do trio sugere que ele está pronto para o ataque. No entanto, esses supostos integrantes de uma gangue devastadora não passam de manequins. Fazem parte do trabalho Embed, do norte-americano Mark Jenkins, que esteve presente na mostra A Conquista do Espaço – Novas Formas da Arte de Rua, até setembro. Os bonecos são criados com base em moldes de fita adesiva do próprio corpo do artista. Depois de preenchidos com jornal, são vestidos e colocados em espaços públicos, travando um contato físico e perceptivo com espectadores. “Nessa intervenção, pretendi fazer um comentário crítico à maneira como os Estados Unidos invadem e ocupam outros países, intimidando todos aqueles que ousam desafiar sua presença por meio da força”, explica Jenkins. Em vez de fazer isso mostrando um exército cansado, tratou as forças militares como um grupo de gângsteres que, apesar de amedrontadores, estão paralisados. “Tal como os bonecos, não podem fazer nada de efetivo”, afirma.

A abordagem da violência como elemento constitutivo da sociedade e do Estado, presente na obra de Jenkins, aparece também de forma direta na performance Fuzilamento, do artista plástico paulistano Marcelo Cidade. Nessa apresentação, Cidade, nu, contra uma parede, lê uma lista de nomes de revoluções políticas, sociais e culturais enquanto é alvejado por pedaços de cimento molhado, disparados violentamente pelo público. A duração do ataque é determinada pelo tempo de leitura do texto, cerca de �� minutos. “A agressividade está nos espectadores. Por meio desse fuzilamento, procuram silenciar o artista e com ele as idéias revolucionárias que cada um dos eventos recitados transmite”, destaca.

Jenkins e Cidade há muito não estariam sozinhos. No decorrer do último século, a arte passou a encarar cada vez mais as diversas facetas da violência, segundo a constatação do professor de teoria literária da Universidade de Campinas (Unicamp), Márcio Seligmann-Silva. A expansão do capitalismo, marcada pela explosão demográfica e por inúmeros conflitos bélicos, teria produzido um volume de atrocidades sem precedentes. “Nunca tantas pessoas morreram. E, em função das sucessivas tragédias, foi ampliada uma grande memória do mal, uma memória traumática, que passou, progressivamente, a ocupar lugar de destaque nas representações artísticas”, revela Seligmann, que também é coordenador do projeto de pesquisa Escritas da Violência.

reportagem

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A violência representada em Os 120 Dias de Sodoma, espetáculo de Os Satyros | imagem: André Stefano

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O paulistano Roberto Piva, ícone da poesia marginal

brasileira, também acredita que a violência não pode ficar sem uma

resposta intensa da arte. Ele afirma que, na impossibilidade de conformar-se, caberia ao poeta responder às agressões na mesma proporção que as recebe da sociedade. Parafraseando o escritor italiano Tomasi di Lampedusa, de O Leopardo, acrescenta que viver, por sua própria natureza, seria um estado violento. “A literatura não deve perder tempo na simples denúncia dessa situação atroz, e sim trabalhá-la em outro nível de consciência, propondo uma discussão mais ampla”, reflete Piva, que, brincando, dispara: “Se eu não fosse poeta, seria um serial killer”.

Desaparecidas, trabalho da mexicana Maya Goded, toca na questão da violência de maneira mais indireta, mas não menos vigorosa. Na obra, presente na exposição Sutil Violento, que acompanha o 1º Fórum Latino-Americano de Fotografia de São Paulo – Paralelos e Meridianos da Latinidade, apresentado neste mês, no Itaú Cultural, São Paulo, a fotógrafa procurou retratar o sofrimento de inúmeras famílias que perderam suas mulheres e meninas, vítimas de seqüestros e homicídios brutais, em Ciudad Juárez, município localizado na fronteira do México com os Estados Unidos. “Além de denunciar o fato, os relatos de Maya nos defrontam simultaneamente com incontáveis matizes e matrizes da violência, permeada por pobreza, narcotráfico e, principalmente, pela ausência ou pela cumplicidade do Estado”, diz o fotógrafo paulistano Iatã Cannabrava, curador da mostra, sugerindo que as imagens trazem a sensação de que não há para onde fugir.

O cenário sombrio a que o professor se refere ganhou um novo bailado em Breu, último espetáculo do Grupo Corpo, companhia de dança mineira fundada em �97�. “Procuramos abordar a violência gratuita. A capa de violência com que nós nos vestimos diariamente antes de sair de casa ou mesmo quando ficamos dentro dela”, argumenta o coreógrafo mineiro Rodrigo Pederneiras. Para representar esse tema, Pederneiras optou pelo contato permanente dos bailarinos com o solo, ao qual parecem estar condenados, e por movimentos nos quais eles se atiram e atiram os companheiros de cena com muita agressividade ao chão. O cenário composto de placas negras, simétricas e brilhantes, formando uma espécie de parede de azulejos, bem como os figurinos em preto-e-branco, reforça a idéia de frieza e de ausência de luz no fim do túnel.

Esse excesso de mal vivenciado e acumulado pela sociedade contemporânea também esteve presente, em escala maior, nas obras expostas na última Bienal Internacional de São Paulo, em �006. A curadora da exposição, Lisette Lagnado, destaca que, durante a montagem do evento, não imaginava uma resposta tão pessimista para o tema Como Viver Junto, que norteou conceitualmente a escolha dos trabalhos. Segundo ela, tal descrença na vida em coletividade estaria relacionada ao fato de os artistas não sublimarem as inúmeras violências dos dias de hoje, o que de certa maneira aproximaria as obras da linguagem documental e da reportagem. “Isso não quer dizer que a arte seja necessariamente um reflexo da realidade, mas um elemento de problematização e de transformação dela.”

Espetáculo ou crítica?

Ao abordar frontalmente o tema da violência, corre-se também o perigo de ser interpretado como promotor de sua espetacularização. O paulistano Rodolfo Garcia Vázquez, um dos fundadores da companhia de teatro Os Satyros, teve de conviver com esse risco ao adaptar para os dias de hoje a obra Os 120 Dias de Sodoma, do Marquês de Sade. As cenas de seqüestro, estupro, coprofilia, tortura e assassinato transpostas da França absolutista para o Brasil contemporâneo teriam o objetivo de falar criticamente do momento político do país. “Certamente, uma parcela dos espectadores não entende as discussões propostas pelo espetáculo e vai a ele apenas como voyeur, para satisfazer-se com o show de horrores apresentado”, declara Vázquez, que ressalta que a violência e o sexo foram utilizados na dramaturgia como meios para discutir questões maiores, como a pulsão de morte inerente à personalidade humana.

Em alguns casos, o retrato explícito da vio-lência pode ser visto como elemento rebai-xador do estatuto artístico de determinadas obras. Como ocorre no rap. “Isso não está certo”, afirma enfaticamente o rapper pau-listano Rappin’ Hood, ao ser questionado sobre os estereótipos que acompanham o gênero. “O rap não é som de bandido. O rap não é só violência. O rap não é só denúncia. O rap é música.” Walter Garcia, professor de linguagem da canção brasileira da Ponti-fícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), concorda com Hood e afirma que muitos rappers fazem um traba-lho bastante sério e bom, mas o preconceito contra eles ainda é grande, sobretudo por abordarem o

tema do ponto de vista da periferia. Referin-do-se especificamente aos Racionais MC’s, ressalta que nos discos do grupo haveria uma perfeita adequação entre a técnica de feitura da obra e o tema cantado, em geral a violência que estrutura a sociedade brasilei-ra e sua conseqüência inevitável: a morte.

No que diz respeito à problematização das relações entre violência e periferia, o cinema brasileiro, sobretudo a partir do fim da década de �990, ocupou lugar de destaque. Desde Notícias de uma Guerra Particular (�999), do carioca João Moreira Salles, inúmeros filmes, em diferentes níveis, deram visibilidade e promoveram a discussão desse tema, até então restrito aos telejornais populares. “Em obras como O Invasor (�00�), do paulista Beto Brant, a violência e as paisagens urbanas periféricas deixaram de ser vistas como elementos de um espetáculo transmitido ao vivo, com o fim único de atrair espectadores, para serem tratadas como um problema que precisa ser debatido”, argumenta Esther Hamburger, professora de história do cinema da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP).

Na visão de Esther, todos que lidaram com essa questão procuraram contribuir de alguma maneira, oferecendo novos olhares, abordagens e perspectivas. “À medida que avançamos no modo de falar sobre o assunto, de olhá-lo, avançamos também na maneira de lidar com ele”, vislumbra a professora. Ela acrescenta que as soluções estética e social da violência caminham lado a lado num campo minado de infinitas possibilidades.

Grupo Corpo encena sua coreografia mais recente, Breu | imagem: José Luiz Pederneiras

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Um “corpo estranho” na cidadeIntervenções contemporâneas como elemento de tensão do espaço urbano

artigo

Por Guilherme Wisnik

Em �00�, como parte do projeto Genius Loci – exposição de arte urbana promovida pelo Centro Universitário Maria Antônia no bairro da Vila Buarque, São Paulo –, a artista paulistana Elisa Bracher instalou, no espaço público, uma grande escultura de madeira, sem título, composta de sete troncos cruzados e truncados. Implantada em uma pequena ilha triangular que separa as pistas, próxima ao Largo do Arouche, a peça foi polemicamente removida do local após cinco meses de discussão. As “razões” para tanto foram várias: desde objeções postas pelo Departamento do Patrimônio Histórico do Município (DPH) e pela Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) até curiosas reclamações de moradores, alegando que a obra favorecia o acúmulo de lixo e poderia servir de esconderijo para ladrões, facilitando assaltos aos pedestres. A obra de arte, por essa visão paranóica, seria um instrumento a mais da violência social.

A julgar por essas reações adversas, poderíamos pensar que a existência da obra foi um fracasso, e que o seu sentido, portanto, não se cumpriu. Mas essa seria uma compreensão superficial da questão, certamente presa, ainda, à idéia de arte pública como um monumento feito apenas para embelezar as praças. Elisa, ao contrário, entendeu a forte reação provocada pela obra como um sinal de vitalidade, a indicar o fato de que sua mera existência por algum tempo foi capaz de despertar nas pessoas um embrião de reflexão sobre a natureza do espaço público. Desse modo, diz ela: “A obra faz as pessoas se questionarem se esse bairro está organizado e limpo, se existe respeito aos monumentos históricos ou não. Não acho que a escultura crie em si um problema, mas é como se ela descortinasse algumas relações, desvendando os olhos das pessoas para que elas enxerguem o que de fato têm como opção real”. E completa: “Quando se diz que o lugar onde ela está é uma praça, isso já é um ponto a se discutir. Na verdade, eu acho que aquele lugar não existia. O que faz aquele lugar existir é a presença da escultura. A obra inventou aquele espaço”�.

Como se vê, a reflexão da artista é muito precisa quanto ao papel construtivo que a arte pública pode assumir baseada em uma inserção negativa. A idéia de negatividade, não à toa, é central para a arte moderna e contemporânea. Ela diz respeito à sua função eminentemente crítica em relação à sociedade, tensionando o ambiente em que se insere, sobretudo quando se trata de um espaço urbano. Quer dizer que não se deve esperar da arte, nesse contexto, uma atitude pacificadora, que procure encobrir ou remediar os conflitos existentes – sociais, ambientais etc. – por meio de uma cosmética urbana, atuando como um pretenso antídoto à violência social. Por outro lado, como ficou claro anteriormente, uma obra como a de Elisa é capaz de instaurar, � Elisa Bracher, em entrevista a Fernando Oliva, “Escultura de Elisa Bracher é retirada do Largo do Arouche”, �00�. Disponível em:http://www.cosacnaify.com.br/noticias/elisabracher.asp.

pelo deslocamento da apreensão cotidiana, uma nova consciência sobre um espaço que sempre foi residual, e cuja fruição passava mais pelo sentido de alienação do que por uma apropriação real da população. Inserida como um “corpo estranho” naquele lugar, a obra traz à tona essa percepção, tornando-se, por isso mesmo, construtiva.

Inúmeros trabalhos fora do Brasil indicam essa mesma direção. Com efeito, o exemplo mais evidente de uma negatividade posta em prática no espaço urbano aparece na obra do artista americano Gordon Matta-Clark. Um exemplo radical dessa atitude é a obra Reality Properties: Fake Estates (�97�), em que o artista compra parcelas mortas de terreno – como um quadrado de �0 centímetros em um miolo de quadra – e expõe seus registros de propriedade ao lado de fotos dessas aberrações urbanas.

Indo além, suas intervenções seguintes se caracterizam pelo ataque frontal (e formal) a edifícios abandonados, realizando cortes, extrações e perfurações em casas, galpões e ruínas, como que a realizar uma colagem cubista em escala arquitetônica. Mutilações que revertem a violência das transformações urbanas (degradação de bairros periféricos, expulsão de populações carentes das áreas centrais, abertura

de vias expressas em meio a centros históricos etc.) em violência estética. Por outro lado, ao abrir vazios interiores nessas construções o artista embaralha as noções de verticalidade e profundidade, isto é, a apreensão cartesiana que sempre tivemos do espaço – o que faz com que sua obra não se esgote em uma mera denúncia das perversas dinâmicas imobiliárias, procurando fundar construtivamente um novo lugar para a atividade humana: “uma arena para a ação”, em suas palavras�. Sem qualquer concessão a sentimentalismos assistencialistas, nem à nostalgia de um passado urbano a ser resgatado, essas intervenções “anarquitetônicas”, por isso mesmo, apontam para uma concepção de cidadania em sentido forte. Pois, se o progressivo abandono do espaço público gera violência e degradação, cabe ao poder público, em primeira instância, e aos arquitetos e urbanistas, em segunda, recuperá-lo, “revitalizá-lo”. Ao artista, ao contrário, cabe tensioná-lo o máximo possível, incluindo uma violência do mesmo grau em sua operação estética.

Guilherme Wisnik é arquiteto e mestre em história social pela Universidade de São Paulo. Autor de Lucio Costa (CosacNaify, �00�).

Leia a íntegra do texto em itaucultural.org.br/revista

� A propósito de Circus (�978), diz que a idéia era remeter-se de fato a um circo: “um circo no qual circulas – um lugar para a atividade, uma arena para a ação”. Gordon Matta-Clark, citado por Kirshner, Judith Russi. “Non-uments”. In: Casanova, Maria (Org.). Gordon Matta-Clark. Valência: Ivam, �99�. p. �9.

Obra de Elisa Bracher no Arouche, São Paulo: papel construtivo da arte pública | imagem: Arnaldo Pappalardo

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Notícias de umaguerra coletiva

Por Thiago Rosenberg

Os policiais parecem não ter nome nos recentes filmes nacionais de ficção que abordam a violência urbana. Sem nome e sem qualidades individuais, quase não constituem personagens. Com o aguardado longa-metragem Tropa de Elite, cuja estréia está prevista para o dia �� de outubro, o cineasta carioca José Padilha modifica a situação: não apenas batiza os policiais de seu filme, como também os eleva ao patamar de protagonistas. Protagonistas de uma guerra nada particular, de um conflito extremamente complexo, que envolve, além dos traficantes de drogas e dos oficiais do Estado, toda a sociedade.

Padilha já abordou a violência urbana no documentário Ônibus 174, de �00�, que investiga a trajetória de um excluído social. Agora, é com base no ponto de vista de um oficial do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope), interpretado por Wagner Moura, que o enredo é conduzido. O cineasta comenta, nesta entrevista realizada por telefone, algumas das questões que envolveram a produção e o lançamento do filme, como o vazamento de cópias piratas de uma versão inacabada da obra. Trata-se do lançamento nacional mais polêmico do ano, mas ainda assim Padilha não se mostra pretensioso. “Filme nenhum muda a realidade”, diz. “Seria uma pretensão incrível um cineasta achar isso.”

Traficantes em guerra em cena do filme Tropa de Elite, de José Padilha | imagem: David Prichard

entrevista

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José Padilha (à dir.) com Marcos Prado, produtor de Tropa de Elite | imagem: divulgação

O jornal noticia hoje os mais diversos ti-pos de violência – física, política, cultu-ral, moral. Qual postura o cineasta deve assumir diante de tais violências? Uma postura semelhante à do repórter?

Acho que não existe uma instrução norma-tiva, nem moral nem ética, que diga como o cineasta deve proceder. Cada um tem sua ética e seus valores – e quem sou eu para dizer aos outros como eles devem fazer? E isso vale para qualquer profissão. Não existe uma posição ética comum a todos os jor-nalistas, a todos os advogados, políticos etc. A postura que as pessoas, no caso os cine-astas, tomam em relação ao seu trabalho depende muito mais da sua educação e da sua ética do que do trabalho em si.

Você abordou a violência urbana no seu primeiro longa-metragem para cinema, o documentário Ônibus 174, e agora na ficção Tropa de Elite. O retorno à temática da violência é casual ou intencional?

As duas coisas. O Ônibus 174 foi lançado em uma safra de filmes brasileiros que

tratava da violência urbana, e eu co-mecei a perceber, durante a pro-

dução do documentário, que todos eles

abordavam o assunto do ponto de vista do excluído social que se tornou um crimino-so. Não havia nenhum filme que trabalhas-se o tema do ponto de vista do policial. E eu acredito que não é possível entender a violência urbana no Brasil sem entender a instituição policial; ela não é um detalhe. Se você observar a cinematografia americana, há um milhão de filmes de policiais, e eu sempre me perguntava: por que não há ne-nhum por aqui? Então resolvi criar um filme de policiais no Brasil. Agora, eu não tenho nenhuma questão programática relativa à violência. No momento, por exemplo, estou com dois filmes na ilha de edição; um sobre antropologia cultural e outro sobre a fome. E ambos foram iniciados antes de Tropa de Elite, porém este ficou pronto primeiro.

A realidade violenta da cidade é mais bem retratada na ficção ou no documentário?

Não existe uma verdade absoluta para essa pergunta. Eu não acho que o fato de uma obra ser caracterizada como documen-tário ou como ficção determine, a priori, se ela vai retratar melhor ou pior certa realidade.

No caso de Tropa de Elite, então, por que você optou pela ficção e não pelo documentário?

Não era exeqüível como documentário. Eu fiz uma pesquisa extensa, na qual conversei com vários policiais, médicos e psiquiatras da polícia, e nenhum deles queria falar, na frente das câmeras, o que me falaram longe delas.

Sobre o livro Elite da Tropa [de André Batista, Luiz Eduardo Soares e Rodrigo Pimentel]...

O roteiro do filme [de autoria de Padilha, Bráulio Mantovani e Rodrigo Pimentel] é original, não é uma adaptação do livro. E o livro, por sua vez, não é uma adaptação do roteiro; ele é outra coisa. O livro aborda, na primeira parte, quase que essencialmente o Bope. O filme é diferente, ele não é apenas sobre a polícia. Ele diz respeito, na minha interpretação, ao fato de que convivem nas cidades brasileiras grupos sociais que têm éticas incompatíveis. Na ética de um

policial corrupto, subir o morro para dar tiro em bandido é burrice; na ética de um policial honesto da tropa de elite, a corrupção é inaceitável; na ética de alguns estudantes da classe média, o consumo de drogas nada tem a ver com a guerra no morro. O que o filme diz, de certa maneira, é que essa não é uma guerra particular, entre policiais e bandidos. Essa é uma guerra de todos nós: do sujeito que trata mal o policial; do sujeito que corrompe o policial; do sujeito que consome drogas, sabendo que o dinheiro investido financiará bandidos armados que dominam favelas e tiranizam a população local; do policial corrupto etc.

Um contraponto ao documentário do João Moreira Salles e da Kátia Lund [Notícias de uma Guerra Particular]?

Não diria um contraponto. Porque o documentário, embora se chame Notícias de uma Guerra Particular, não trata aquilo, no fundo, no fundo, como sendo uma guerra particular.

O ator Wagner Moura como o capitão Nascimento | imagem: David Prichard

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Não foram poucos os percalços sofridos durante a produção de Tropa de Elite. O vazamento de cópias piratas do filme foi um deles. Você vê a pirataria como uma forma de violência contra o trabalho dos cineastas ou como uma maneira de democratizar o acesso à cultura?

Eu não acho que a pirataria seja um assunto prioritariamente relativo à cultura. Eu já dis-cordo dessa premissa básica do raciocínio. É recolhido imposto sobre aquele DVD pirata que é vendido na rua? Não. Então, para co-meçar, a pirataria é um assunto econômico, ela implica sonegação. Aquelas pessoas que vendem os produtos têm direitos trabalhis-tas? Não. São trabalhadores informais. Ou seja, defender a pirataria em nome da de-mocratização do conteúdo cultural é, para mim, uma atitude extremamente míope. Defender isso é defender a idéia de que a divulgação do conteúdo cultural justifica a sonegação de impostos, o trabalho infor-mal, a corrupção policial. A cultura que a pirataria divulga não é a cultura que está no conteúdo da obra pirateada, mas, sim, a cultura da sonegação, da in-formalidade, da corrupção.

A antecipação da estréia do filme – de novembro para outubro de 2007 –, causada por esse vazamento de cópias piratas, prejudicou de alguma maneira a obra em si? Ela teve de ser finalizada às pressas ou já estava concluída?

Não prejudicou a obra em si porque eu já havia finalizado a montagem, já havia montado a versão de cinema. Mas, como a versão que vazou para a pirataria não é a final, isso me prejudicou no seguinte sentido: é como se eu fosse um escritor e alguém roubasse e publicasse o rascunho de um livro que eu ainda não publiquei. Fico muito chateado porque o meu filme não foi visto por muitos como eu pretendia que fosse visto. Não o viram da melhor maneira possível, da maneira certa. Eles viram um rascunho do filme. E isso é um fato que independe do que as pessoas acharam desse rascunho, se gostaram ou não.

Recentemente um grupo de policiais re-correu à Justiça [sem sucesso] na tentativa de impedir a estréia do longa. Você espe-ra outras reações violentas ao filme?

A tentativa de impedir a exibição do filme é um direito constitucional de quem se acha agredido, então eu não a tomo como uma violência. Aquelas pessoas tinham esse direito e tomaram a atitude que consideravam adequada. E, antes mesmo de o nosso advogado se pronunciar, a juíza [Flávia de Almeida Viveiros de Castro] – a meu ver, com grande sabedoria – se pronunciou a respeito [ela argumentou que há na obra uma crítica genérica ao “sistema”, e que este não pode ser identificado exclusivamente como o Bope ou como a Polícia Militar]. O interessante, e que as pessoas não ficaram sabendo, é que, dos oficiais que subscreveram a ação, todos com exceção de um retiraram o seu nome. Então eu não entendi exatamente o que ocorreu, mas não foi a polícia que fez isso, foi um grupo de pessoas que, em seu direito individual, fez o que podia fazer. Outras pessoas farão isso? Acho que sim. Porque o filme trata de um assunto polêmico e, apesar de ainda não ter sido lançado, já virou um fenômeno de cultura de massa, e as pessoas reagem a isso, com ou sem razão. De qualquer forma, eu conduzo essa questão com calma, não fico com raiva. É normal, faz parte da democracia.

Logo no início do filme, o personagem de Wagner Moura afirma que um policial, quando sobe o morro, ou se corrompe, ou se omite, ou vai para a guerra. O mesmo vale em relação ao seu trabalho? Com esse filme, você foi para a guerra?

Não. Eu fiz um filme. E acho que filme nenhum muda a realidade. Se a cultura tem um impacto relevante e promove mudanças na realidade, não é uma obra sozinha que faz isso. É a massa das obras, são várias delas em seqüência. Há uma série de filmes que, em conjunto, vai formando uma consciência sobre o tema da violência urbana – assim como os livros, as reportagens de jornal, revistas etc. Acho

que isso faz uma diferença, mas um filme só não faz. E seria uma pretensão

incrível um cineasta achar isso.

A personagem de Moura instrui o aspirante Neto, interpretado por Caio Junqueira, em treinamento do Bope | imagem: David Prichard

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Em nome da artePode uma obra violentar seu criador?

reportagem

Por André Seiti

Em �97�, o norte-americano Chris Burden entrou em uma galeria californiana e se posicionou em frente a uma parede. Em seguida, um atirador, carregando um rifle calibre ��, apareceu em cena. Não pensou duas vezes, e, a 4 metros e meio de distância, disparou contra o braço esquerdo de Burden. Uma câmera filmou tudo, e a obra, denominada Shoot, passou a ser considerada uma das mais controversas performances artísticas já realizadas. Três anos depois, Marina Abramovic, artista nascida na antiga Iugoslávia, realizou, em uma galeria italiana, a performance Rhythm 0, na qual os espectadores teriam a possibilidade de mutilá-la e matá-la. Após pintá-la, arrancar suas roupas e cortá-la, o público decidiu interromper a apresentação, pois alguém chegara ao ponto de apontar uma arma carregada contra a cabeça da artista.

Essas experiências demonstram que, nas décadas de �960 e �970, a relação entre o corpo e a arte, questionamento despertado, entre outros, pelo francês Marcel Duchamp e pelo americano Jackson Pollock, mudou radicalmente. Diversos artistas passaram a desenvolver o que ficaria conhecido como body art. Desde então, experimentações com o corpo são feitas, e muitas delas em um nível de extrema violência. O body artista Filipe Espindola, dono de um estúdio de arte corporal em Campinas, São Paulo, que há dez anos pesquisa e produz performances com perfuração (piercing), tatuagem, queimadura (branding) e escarificação (corte), reconhece que seu trabalho é doloroso. “Considero-o necessário para o meu corpo, sendo às vezes agressivo, mas de uma agressividade controlável e benéfica, como uma vacina que inocula o próprio agente causador da moléstia para evitá-la ou curá-la.” Quanto ao caráter violento de suas performances, Espindola rebate que “é uma forma de violência, como é violento e necessário o ato de podar uma planta, mutilando-a para que ela se fortaleça e se renove”.

Mas nem todos os body artistas consideram seu trabalho uma violência corporal. A artista visual paulistana Priscilla Davanzo questiona a relação entre body art e violência nos dias de hoje. “A partir da década de 80, a função de expor a entranha, ou de colocar o corpo no limite físico, ou mesmo de romper esse limite não é mais a de criar situação de violência.” Priscilla, conhecida por trabalhos como As Vacas Comem Duas Vezes a Mesma Comida, no qual tatuou manchas de vaca pelo corpo para contestar a condição humana, já realizou performances em que costurava ornamentos em seu corpo ou em que corpos de voluntários eram escarificados com bisturis para deixar impressões com sangue em folhas de papel. “Questiono até quanto o fruidor se dá para a arte, até que ponto ele pode participar”, explica. “Não sei se é algo que tem a ver com violência; o violento está muito mais em quem está vendo.”

O body artista Filipe Espindola na performance Cárcere, de �00� | imagem: Daniel Ozana

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Tanto Priscilla como Espindola concordam em um ponto: a violência contra seus corpos em seus trabalhos, se de fato existe, é relativa. “Sabemos que existem dores controláveis e até cotidianas, muito praticadas, como as provocadas por certos penteados, tratamentos de beleza, exercícios físicos e práticas esportivas”, explica Espindola. Priscilla segue raciocínio semelhante: “Se a arte cria imposições violentas para o corpo, os aspectos sociais não criam imposições muito mais violentas?”, indaga. “É normal que todo artista, em seu processo de criação, tenha um momento de sofrimento, que pode ir do psicológico ao físico.”

Ossos do ofício

Não é apenas de forma voluntária que artistas têm seu corpo modificado pela arte. De acordo com a pesquisadora e bailarina paulistana Maíra Spanghero, que começou a praticar balé para se recuperar de uma infecção nos ossos, movimentos físicos realizados repetidas vezes podem gerar algum tipo de violência contra o corpo. “Qualquer aprendizado de habilidade é agressivo no sentido de mexer com padrões de movimento e comportamento até então estabilizados.” Segundo ela, o balé ensinado atualmente, que incorpora conhecimentos mais recentes de fisiologia e fisioterapia, procura respeitar certos limites do corpo. Maíra, que diz nunca ter sofrido problemas graves por causa da dança, a não ser os “ossos do ofício” como pequenos estiramentos, dores pelo corpo e uma torção no tornozelo, acredita na função do corpo como reflexo do trabalho do artista. “O corpo é índice e mídia das informações que o tocam e o contaminam”, afirma.

Se problemas físicos com artistas são recor-rentes devido à alta e, muitas vezes, agressi-va carga de trabalho à qual estão expostos, também não são raros os profissionais que trabalham no tratamento desses artistas. De

acordo com João Gabriel Marques Fonse-ca, pianista, professor da Escola de Mú-

sica e da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de

Minas Gerais

e especialista no tratamento de músicos, “os problemas ocupacionais (aqueles gerados pela atividade profissional) mais freqüentes entre músicos são os que envolvem mús-culos, articulações e nervos no tronco e nos membros, principalmente os superiores”. Po-rém, um dos problemas mais temidos não necessariamente está ligado ao exercício da profissão. “A doença que mais incapacita músicos é a distonia focal, um distúrbio neu-rológico que produz movimentos anormais involuntários que prejudicam ou até mesmo impedem os movimentos necessários à per-formance”, explica.

Priscilla Davanzo costura ornamentos em seu corpo, na performance Pour Être Plus Belle et Efficiente | imagens: Patrícia Cecatti

Um caso conhecido de distonia focal é o do pianista paulistano João Carlos Martins, que, por causa de dois episódios – um acidente enquanto jogava futebol, em Nova York, e um assalto em Sófia, na Bulgária –, teve de para de tocar. “Ele chegou a fazer tratamento conosco, mas infelizmente os resultados foram ruins”, afirma o professor. Após ser vítima de um tumor benigno em uma das mãos, devido aos esforços repetitivos, Martins abandonou o piano e passou a se dedicar à regência de orquestras. Por causa de sua dificuldade em segurar a batuta, exerce o comando dos músicos com o auxílio de sua expressão corporal. Para Fonseca, que junto com outros profissionais da saúde fundou o ExerSer – Núcleo de Atenção Integral à Saúde do Músico em Belo Horizonte, as lesões são comuns pelo tipo de atividade, que envolve repetição de gestos de altíssima complexidade e pouca consciência corporal, o que contribui para “posições viciosas que acabam por lesar o músico”. Ossos do ofício.

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Uma jornada especialComunidades colhem os frutos de iniciativas ligadas à arte e à cultura

reportagem

Por Augusto Paim

É meio-dia de sexta-feira, �4 de setembro, no complexo de favelas da Maré, no Rio de Janeiro. A cidade inteira está ensolarada, sem nenhuma nuvem, e aqui não é diferente. Bira Carvalho está sentado na soleira da sua casa, ao abrigo do sol. Ele veste a camiseta vermelha da seleção de futebol da Inglaterra, que faz contraste com o rosto negro e as paredes esverdeadas atrás de si. “Sou um privilegiado por fazer o que amo, no lugar que amo.” Ele se refere à sua participação na exposição fotográfica Esportes na Favela, promovida pela agência Imagens do Povo, do Observatório de Favelas do Rio de Janeiro. A exposição foi aberta há três dias, mas, nessa sexta-feira, Carvalho está preocupado. No próximo domingo, ele irá à Inglaterra, sozinho, ministrar uma oficina de pin-hole (“buraco da agulha”, em inglês; técnica artesanal de fotografia que utiliza câmara escura e dispensa o uso de lentes) na periferia de Londres.

Carvalho foi aluno da primeira turma da Escola de Fotógrafos Populares do Observatório de Favelas (www.observatoriodefavelas.org.br), iniciada em �004. Outro fruto da escola é o autor das fotos desta reportagem, Marcos “Ratão” Diniz, que atua na agência Imagens do Povo. Nessa mesma manhã do dia �4, alunos da terceira turma saíram a campo. Às �0h�0, tiravam fotos na Vila Olímpica da Maré, aproveitando que crianças e adolescentes praticavam caratê e ginástica acrobática na quadra do ginásio.

A oportunidade de ir a Londres foi dada a Carvalho pela agência Imagens do Povo, que tem entre seus objetivos o de inserir os alunos da Escola de Fotógrafos Populares no mercado de trabalho. O Observatório de Favelas também abriga núcleos de pesquisa responsáveis por programas como o Rota de Fuga, que formula alternativas para jovens em situações problemáticas como o envolvimento com o tráfico de drogas. Também há uma Escola Popular de Comunicação Crítica.

“A fotografia mudou totalmente a minha vida, foi um divisor de águas”, diz Carvalho. Aos �� anos, ele levou um tiro e perdeu o movimento das pernas, passando a enfren-tar o trânsito das ruas e dos becos da Maré com sua cadeira de rodas. Hoje, aos �7 anos, passa os dias para lá e para cá, visitando pro-jetos socioculturais, carregando no colo sua máquina fotográfica e até mesmo crianças, que se encantam com o “brinquedo” com ro-das. A comunidade da Maré o considera um conselheiro para momentos difíceis, além de um exemplo, por sua história de vida.

Mesmo assim, ele está preocupado. Afinal, não fala inglês e, além disso, é cadeirante. O longo vôo até Londres provoca-lhe ansiedade. O que não impede que da sua boca saia uma brincadeira, ao ver um menino passando com uma camiseta de super-herói: “Ei, você está sem máscara, Batman. Vira para cá para eu ver a sua identidade secreta”.

Casarão de cultura

Os cerca de �0 mil moradores do morro do Vidigal, localizado entre os bairros da Gávea e de São Conrado, no Rio de Janeiro, não precisam subir muito para avistar as praias do Leblon e de Ipanema. Já da entrada da favela se pode enxergar o oceano Atlântico se esticando e se encolhendo à sua frente, conforme o andamento da maré.

A vista fica ainda mais espetacular no topo do Casarão, a sede do grupo de teatro Nós do Morro (www.nosdomorro.com.br). Lá há uma espécie de cobertura, de onde se vêem, de um lado, as praias da Zona Sul do Rio e, do outro, a favela do Vidigal estendendo-se como um edredom até o topo do morro. Como a tarde da sexta está ensolarada, dá para ver ao longe barquinhos boiando no mar e pipas empinadas em vários pontos da favela.

No último andar do Casarão acontece uma reunião do núcleo de cinema. O local em que os alunos se reúnem é próximo do depósito dos figurinos, da ilha de edição e da sala de vídeo. Uma escada em espiral leva ao andar inferior, onde, em uma grande sala, ao lado da biblioteca, adolescentes ensaiam um texto. No segundo andar, logo abaixo, o ator e cineasta Luciano Vidigal e mais uma dezena de crianças assistem à encenação feita por três meninos e uma menina. A história mostra um homem bêbado que chega em sua casa e agride a mulher e os filhos. No fim, a família se abraça.

Bira Carvalho, que está levando a arte da Maré a Londres | imagem: “Ratão” Diniz/Agência Fotográfica Imagens do Povo/Observatório de Favelas

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Os alunos estão dando os primeiros passos no teatro, e Vidigal havia lhes pedido que improvisassem sobre o tema “família”. Ele sabe, porém, que a história não foi exatamente “inventada”. Há �7 anos no grupo, acredita que o teatro tem o poder de revelar o que há nas pessoas. “Pode-se conhecer profundamente alguém por meio do teatro”, diz. Principalmente quando os atores são novos, mais ainda quando são crianças e adolescentes.

Vidigal gosta de lidar com os conflitos que emergem da encenação, expostos ao olhar

sagaz de quem sabe captá-los. Ele mesmo já teve seus conflitos e sabe o que tem

de fazer. Quando é o caso, avisa uma das assistentes sociais integrantes

da equipe do Nós do Morro.

A administração do grupo ocupa um andar inteiro porque não é fácil gerir mais de 4�0 crianças, adolescentes e adultos que freqüentam as oficinas de teatro, divididas em três turnos. Da secretaria, pode-se escutar o som de um berimbau, e a funcionária só precisa erguer os olhos para ver os alunos fazendo exercícios corporais no pátio, mais avançado no terreno em relação ao restante do prédio. De vez em quando, o canto da capoeira se confunde com a música que vem da garagem, espaço das aulas de percussão e preparação vocal.

O sol que iluminou toda a sexta-feira começa a se pôr. As luzes vão-se acendendo nas casas, e o morro do Vidigal aos poucos passa a se cobrir com um manto luminoso. O olhar do Cristo parece aprovar essa composição. No Casarão, os alunos da turma da noite chegam para as oficinas. Eles encerram essa jornada.

Outros sotaques

Comunicação comunitária é alternativa para quem quer ter voz

Taís Caldas da Silva, de �6 anos, entra na sala de aula. Ela traz um jornal debaixo do braço. “Olha, eu apareço aqui”, diz, mostrando a publicação para os colegas. Na capa, a turma lê o nome do periódico: Boca de Rua. Eles folheiam e outro nome aparece no topo da página: Boquinha.

Quem faz o Boca são moradores de rua de Porto Alegre. O Boquinha também, só que o encarte é responsabilidade das crianças. As matérias tratam das questões da rotina dessas pessoas, além de relatar como elas foram parar nas ruas.

A idéia é que a compra do jornal se dê por interesse, não por caridade. Os moradores de rua querem que os leitores realmente gostem das matérias que escrevem. Assim, eles ganham voz, e o restante da sociedade apura o ouvido.

O Boca de Rua é apenas uma das ações da Agência Livre para Informação, Cidadania e Educação (Alice – www.alice.org.br), que busca fazer a comunicação entre a sociedade e seus setores marginalizados.

Em outro canto do país, num bairro de classe média de Salvador, três meninos entrevistam o filho de um cientista. Os repórteres estão longe de casa: moram na mesma cidade, só que no bairro de Alagados, onde há não muito tempo a maior parte das habitações era de palafita. A entrevista é justamente sobre a diferença entre o mundo em que vivem os minirrepórteres e o mundo em que vive o garoto entrevistado.

A matéria é para a internet, para o projeto TV Lata (www.tvlata.org). Trata-se de uma TV experimental que começou a ser implanta-da neste ano, com a ajuda de um grupo de espanhóis. Ainda em �007, esse intercâmbio para assessoramento se encerra, e o projeto vai ficar por conta apenas do grupo cultural Bagunçaço, em que a comunidade de Ala-gados se reúne para discutir e realizar ativi-dades ligadas à cultura e à arte.

Conheça outras iniciativas de comunicação co-munitária em www.ondacidada.blogspot.com.

Augusto Paim, jornalista, é um dos selecionados pelo programa Rumos Itaú Cultural Jornalismo Cultural �004-�00�.

Aula de percussão no Casarão do Nós do Morro | imagem: “Ratão” Diniz/Agência Fotográfica Imagens do Povo/Observatório de Favelas

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área livrePartido-alto

Por Marçal Aquino1

No sonho, Arismar se viu coberto de glória. Havia aplausos, risadas, muita festa. Arismar, no sonho, era um vencedor.

O despertar foi brusco, como saltar de um carro em movimento. Ele permaneceu deitado, embora soubesse que não voltaria a dormir. Ao seu lado na cama, a mulher ressonava de bruços. Arismar teve a idéia de tocá-la. Péssima idéia. Soraia resmungou um “não” e o empurrou. Depois, encolheu-se enrolada nas cobertas.

Nada acontecia entre os dois fazia um bom tempo já. Nem na cama, nem fora dela.

Um cachorro começou a latir de forma maníaca na vizinhança. Um galo cantou, logo em seguida outro e mais outro. A claridade do dia infiltrou-se pela janela do quarto. Arismar se levantou e passou pelo banheiro, ainda impregnado pelo sonho. Julgou que era um sinal, um bom presságio, e isso serviu para confortá-lo. Aquele era um dia decisivo, sua vida iria mudar. Por isso, assobiava quando saiu de casa, depois de beber um gole de café frio e vestir o macacão verde-encardido de frentista de posto de gasolina. Já havia amanhecido, mas as lâmpadas dos postes continuavam acesas, iluminando fracamente o amontoado de construções precárias, que pareciam se escorar umas nas outras na encosta do morro.

Arismar batalhou o dia inteiro contra a ansiedade. Tinha a impressão de que cada hora durava o dobro. Ou o triplo. O fraco movimento do posto só serviu para piorar as coisas. Ele procurava assuntos para distrair a mente, evitando pensar na mulher. A situação entre eles estava se tornando insustentável. Gostava de Soraia, é certo, mas não sabia por quanto tempo mais conseguiria tolerar a indiferença com que vinha sendo tratado. Considerou a possibilidade de que ela estivesse de caso com outro homem, e isso serviu apenas para envenená-lo um pouco mais.

Ele chegou a pensar que a mulher estava usando o sexo – ou a falta de – para puni-lo por alguma falha, porém, por mais que se esforçasse, não conseguia se lembrar de nenhum pecado cometido. Sua vida era de casa pro trabalho e do trabalho pra casa. Bebia pouco, não fumava. Seu único vício era a escola de samba.

Numa das vezes em que a questionou, Soraia saiu-se com

uma desculpa que Arismar planejava encaixar futuramente numa letra de

samba:

– Tô sem libido.

Ele riu ao lembrar-se da frase. Um riso amargo. Soraia, na sua opinião, andava lendo em excesso as revistas de fofocas da TV no salão de beleza onde trabalhava como manicure.

Na hora do almoço, Arismar contentou-se com um sanduíche de pernil numa padaria próxima ao posto. Comeu com apetite, batucando de leve no balcão o samba que tinha composto. Naquela noite, na quadra da escola de samba, aconteceria uma festa para a escolha do samba que seria cantado no desfile de Carnaval. A composição era boa, os versos inspirados e o refrão forte. Arismar não tinha dúvida de que seria o grande vencedor. Sabia, por gente ligada à escola, que não haveria grande concorrência. E até mesmo um sambista chamado Zito, que emplacara suas composições por vários anos seguidos, estava fora da disputa: fora contratado a peso de ouro por uma escola de samba rival.

No fim do dia, Arismar foi para casa flutuando a um palmo do chão. Lembrava do sonho e isso o enchia ainda mais de confiança. Se, em outros anos, seu samba nem se classificara entre os finalistas do concurso, desta vez seria diferente. Todos iam ver. Já era possível escutar os aplausos.

Em casa, um pequeno incidente que não chegou a abalar sua confiança – não foi exatamente um incidente, foi uma provocação. Enquanto ele se barbeava, Soraia saiu do quarto usando uma minissaia de arrasar.

– Você vai vestida desse jeito?

– Não tá bom? – ela perguntou, belicosa.

Arismar preferiu não responder, e continuou escanhoando o queixo. Evitou com isso uma discussão que, com certeza, estragaria a noite que se anunciava perfeita. Não disse nada nem mesmo quando ela se afastou cantarolando um samba-enredo que ele conhecia bem – de autoria de Zito, vencedor do concurso no ano anterior. Arismar sorriu para si mesmo no espelho e assoviou o refrão de seu samba. Soraia ia ver só.

A quadra da escola estava apinhada de gente. A comunidade parecia querer exorcizar com aquela festa as privações do restante do ano. Arismar se apertou na aglomeração até encontrar o cantor que defenderia seu samba. Os dois se abraçaram e se desejaram boa sorte. A bateria se posicionou para dar início à competição de sambas. E, à medida que as composições eram apresentadas, o nervosismo de Arismar só aumentava. Teve uma hora em que ele capitulou e se aproximou do bar e pediu uma cachaça. Foi nesse instante que avistou Zito conversando numa rodinha.

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– Ô Arismar, me disseram que desta vez não tem pra ninguém, que você vai levar.

Arismar fingiu modéstia:

– É só um sambinha, não tem nada de mais. E você, resolveu matar saudades da escola?

Zito riu com malícia:

– Os caras da outra escola não pagaram o que me prometeram. Daí eu fiz um samba de última hora e vim participar do concurso aqui.

Arismar matou a cachaça num só gole, seus olhos lacrimejaram. O sorriso de Zito se alargou.

– Tô brincando. Só vim aqui pra rever os amigos.

A cachaça queimava, mas Arismar sentiu um alívio no peito. A batucada comia solta ao seu redor. Então anunciaram a apresentação do samba que ele havia composto. Houve gritos, palmas, tapinhas nas costas e votos de boa sorte. O nervosismo de Arismar chegou ao ápice. Em vão, ele procurou pelo rosto de Soraia na multidão. O cavaquinho introduziu a melodia, a bateria atacou e o cantor soltou o vozeirão. Arismar sentiu o corpo se arrepiando. Estava a ponto de chorar de emoção.

Como se atraídos por um ímã, seus olhos encontraram Soraia bem no instante em que ela deixa-va, furtiva, a quadra da escola. Foi como uma iluminação. Arismar compreendeu o que estava acontecendo na hora em que olhou na direção do bar e viu que Zito tinha desaparecido.

Quem conheceu Arismar jura que ele parecia possuído de tão alterado. O fato é que ele andou empurrando todo mundo que encontrou pela frente, mesmo as pessoas que queriam apenas cumprimentá-lo. Fora da quadra, ele mal teve tempo de ver a mulher sumindo numa das vielas escuras. E foi atrás.

Andou apressado e aos tropeções até chegar ao último barraco na beirada de uma ribanceira. Era ali que Soraia e Zito se

escondiam. Pensar que estava perdendo a apresentação de seu samba só serviu

para aumentar sua raiva. Então ele tomou fôlego e meteu o pé

na porta do barraco.

2

O som da escola de samba chegava abafado até o cubículo

escuro, penetrava nos ouvidos não muito limpos de um adolescente que

atendia pelo apelido de Assombração e o deixava muito irritado. Em vez de estar na quadra naquele momento, ele era obrigado a permanecer confinado naquele barraco, fazendo o papel de vigia de um seqüestra-do no cativeiro. Assombração abriu a porta do quarto e espiou: o homem estava enco-lhido num canto, parecia dormir. Fazia três dias que o haviam trazido para aquele local. As negociações do resgate estavam emperradas.

Assombração ouviu um ruído na rua. Espiou pelo vão das tábuas e viu um estranho rondando o cativeiro.

“Ih, sujou”, ele pensou em voz alta.

E empunhou o �8 que trazia na cintura. Quando a porta veio abaixo, ele descarregou a arma no rosto do invasor. Depois, saiu correndo e deixou tudo para trás.

Arismar morreu sem saber que seu samba tirara o segundo lugar no concurso. Agonizou de olhos abertos no chão do barraco, sem compreender direito o que havia acontecido. Na hora final, ouviu, ao longe, o som de aplausos, risadas e muita festa. Como se fosse um sonho.

Marçal Aquino, escritor e jornalista, é autor de livros de prosa e poesia e de roteiros de cinema. Entre suas obras estão O Amor e Outros Objetos Pontiagudos (Prêmio Jabuti, �000) e o roteiro do filme O Invasor, de Beto Brant, �00�.

ilustração: Gabriel Bitar

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.�8itaú cultural avenida paulista �49 são paulo sp [estação brigadeiro do metrô] fone �� ��68 �700 [email protected] www.itaucultural.org.br