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set 2007 | itaucultural.org.br 3 ITAÚ CULTURAL Desconstruindo o artista

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ITAÚ CULTURAL

Desconstruindo o artista

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sumário

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ITAÚ CULTURAL

Faça-se a luz!Artigo analisa a infinidade dos processos criativos

As faces da criaçãoArtistas de repertórios e trajetórias distintos falam de seus métodos

Três formas de criar a dançaA coreografia contemporânea muito bem representada

O olhar atento de Nelson LeirnerEm entrevista, o veterano artista visual fala de sua rotina, obras e carreira

Interpretar também é criarO papel fundamental de cantores, instrumentistas e atores

Ensaios de orquestrasAs sinfônicas como sinônimo de criação coletiva

Área livreArtista visual Monica Schoenacker mostra os instrumentos de seu trabalho

Toda arte é fruto de um processo

“�% inspiração e 99% transpiração.” Dizem que essa é a fórmula que melhor representa o processo de criação do artista. Para tirar isso a limpo, a Continuum Itaú Cultural foi a campo e trouxe ao leitor visões ora distintas, ora complementares sobre o caminho que criadores das diferentes áreas de expressão artística percorrem antes de concluir suas obras.

Para tornar essa abordagem o mais democrática possível, estão presentes nas matérias que integram esta edição de setembro, sugestivamente intitulada Desconstruindo o artista, as visões de criadores com perfis bastante diferenciados. Comparecem, entre outros, o artista-pesquisador, que geralmente tem sua obra atrelada a uma pesquisa acadêmica; o artista popular, cuja matéria-prima de seus trabalhos são os fatos do cotidiano; e o artista que faz a ponte entre um repertório conceitual e o imaginário popular – caso do entrevistado do mês, o artista visual Nelson Leirner.

O processo de criação coletivo – ilustrado na descrição de um dia de ensaio de duas orquestras sinfônicas paulistanas – e o papel criativo do intérprete, que dá vida à obra de outros, também são abordados. Convidada da seção Área Livre, a artista visual e ilustradora paulistana Monica Schoenacker criou obra que faz referência ao acervo de materiais que utiliza em sua produção – latas, tecidos, referências textuais, objetos em geral.

Todo o conteúdo da Continuum Itaú Cultural pode ser acessado na versão virtual da revista (em www.itaucultural.org.br). Nela,

o leitor é convidado a integrar as discussões do fórum e a enviar matérias de acordo com o tema do mês. Dê sua opinião: nosso canal de

comunicação, o e-mail [email protected], está aberto às suas críticas e sugestões.

3 set �007

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Tiragem 10 mil – distribuição gratuita Sugestões e críticas devem ser encaminhadas ao Núcleo de Comunicação e Relacionamento [email protected]. Jornalista responsável Ana de Fátima Sousa MTb 13.554

capa: Ateliê do Espaço Coringa, São Paulo | imagem: Cia de Foto

Continuum Itaú Cultural Projeto Gráfico Jader Rosa Redação André Seiti, Érica Teruel Guerra, Marco Aurélio Fiochi, Thiago Rosenberg Colaboraram nesta edição Cia de Foto, Guilherme Conte, Micheliny Verunschk, Monica Schoenacker, Patrícia Rodrigues, Thiago Mio SallaAgradecimento Espaço Coringa – www.espacocoringa.com.br

ISSN 1981-8084

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ilustração: Jader Rosa

Faça-se a luz!Em foco, o processo e os tipos de criação artística

Por Micheliny Verunschk

No início, só os deuses possuíam o fogo da criação, até que o gigante Prometeu, cujo nome não por acaso significa “premeditar”, roubou uma centelha deste, com a qual ensinou aos homens e às mulheres inúmeras artes e ofícios.

A criação individual é, certamente, o tipo mais comum de criação e, talvez, a que suscite mais curiosidade. Como é que um grande artista cria? Que caminhos percorre? Que pistas nos deixa sobre seu modo de trabalho? Na tentativa de responder a essas perguntas, há cerca de �0 anos foi criada a crítica genética, cujos objetos de estudo são os vestígios deixados pelos artistas ao longo do processo criativo – rascunhos, diários, cartas, anotações etc. É por meio da crítica genética, introduzida no Brasil pelo professor Philippe Willermart, da Universidade de São Paulo, que se sabe hoje que o escritor francês Marcel Proust escreveu simultaneamente o primeiro e o último capítulos do romance Em Busca do Tempo Perdido, e que outro escritor francês, Honoré de Balzac, tinha um hábito quase obsessivo de fazer anotações às margens de seus manuscritos.

Nem sempre a criação individual é solitária. A interlocução com o outro pode afetar diretamente o produto. Muitos poemas de Carlos Drummond de Andrade em início de carreira, na década de �9�0, enviados a outro escritor, o paulista Mário de Andrade, foram alvo de sugestões, intervenções, cortes. A experiência do escritor mineiro Mário Prata, com seu livro Os Anjos de Badaró (Objetiva, �000), escrito, capítulo a capítulo, na web, sob o olhar atento de milhares de usuários, que se tornaram coadjuvantes ao acompanhar e dar palpites no processo de escrita do livro, é um exemplo de obra individual em diálogo intenso com o público.

A produção artística em dupla exige tanto uma grande sintonia entre os envolvidos como uma boa dose de disciplina, já que são pessoas diferentes que ensejam em certos casos conquistar uma complementaridade. Talvez esse seja o segredo da longevidade da dupla britânica Gilbert&George, em atividade há 40 anos, cujo trabalho agrega colagens, ampliações fotográficas e utilização de elementos orgânicos, como sangue, urina e esperma. Já os irmãos paulistanos Gustavo e Otávio Pandolfo, da dupla Osgemeos, declaram que começaram a pensar juntos no útero materno, sintonia esta que se materializa nas obras que realizam sempre a quatro mãos.

Se o trabalho em dupla envolve desafios específicos, o que dizer do processo coletivo, em que o indivíduo sai de cena em nome de um projeto que redefine as noções de autoria?

O coletivo pernambucano Re:combo, com mais de �� integrantes de várias áreas, como músicos, engenheiros de software e artistas plásticos, mescla música e arte eletrônica com preceitos colaborativos. E o produto é resultado da intervenção de pessoas que estão em diferentes locais do Brasil e do mundo. Descentralização da criação é a palavra-chave para grupos como este, o que remete a um período anterior da história, entre a Antiguidade e a Idade Média, em que a arte era uma colcha de retalhos alinhavada por uma variedade de artistas e artesãos anônimos, que, atuando nos bastidores, deixaram um legado importante e inalienável: a herança cultural da humanidade.

O criador e seus instrumentos

A relação entre a criação e os instrumentos de trabalho, muitas vezes tratados com afeto ou estima por parte do artista, pode revelar um cenário íntimo ou o contexto histórico e social que envolve a criação. A poeta Sylvia Plath, autora de Ariel (�96�), amava seus cadernos, nos quais, dizia, a ponta preta da caneta deslizava. Esses cadernos, dos quais foi retirada essa citação, falam do processo criativo daquela que foi uma das mais intensas e importantes poetas norte-americanas do século XX.

Já o artista australiano Stelarc, autor do projeto Corpo Amplificado (�970), vai além na integração entre o processo de criação e o corpo humano. Utilizando interfaces robóticas, amplia seu corpo com próteses e, conseqüentemente, este passa a ser um suporte da própria criação artística com todas as suas marcas e rasuras. Para Stelarc, o corpo humano é obsoleto e só a ampliação cibernética pode redefenir os conceitos de humanidade e de arte.

Conhecimento, criação e sentimento se articulam nos artistas como peças do mesmo processo, que é histórico, pessoal, coletivo, afetivo, reflexivo. A investigação acerca do processo de criação artística leva à curiosidade

em relação a cenários, métodos, instrumentos. A arte coloca o mundo em rede e permite

que obras ou expressões sejam premeditadas, criadas e recriadas,

como se orgulharia, e muito, Prometeu.

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Por Patrícia Rodrigues

Não importa o que os artistas façam ou de onde venham, cada um tem um jeito bastante peculiar de definir o seu trabalho. Alguns se revelam nos meios acadêmicos; outros emergem da realidade e do cotidiano que os rodeiam. Um terceiro time circula no meio-termo, batendo uma bolinha entre o erudito e o popular. Apesar da diversidade do que se pode chamar de arte, dos modos de pensá-la e das possibilidades que ela oferece, os processos criativos desses artistas têm em comum a observação e o diálogo.

De acordo com a paulistana Carmela Gross, artista plástica com obras apresentadas em várias bienais e em coleções públicas, além de professora da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), ser artista é estar conectado a muitas áreas. Segundo ela, porém, o que também caracteriza o artista é sua singularidade, o modo como enxerga o mundo. “Um Picasso é reconhecido pelo modo de operar, seja em cerâmica, seja em pintura ou em gravura.” Delimitar a atividade artística ao ofício é uma redução. “Um artista mergulhado apenas em suas próprias questões não dialoga com outras áreas, o que é fundamental para pensar sua obra”, esclarece.

A artista plástica paulistana e professora, também da ECA/USP, Daniela Kutschat, que investiga meios eletrônicos e tecnologias de comunicação no contexto da arte, acredita que a técnica e a tecnologia sejam partes do processo criativo e podem influenciá-lo, mas isso não é tudo. “Aquele que se prende e se perde na técnica vira técnico ou artesão. O artista vê além da técnica.”

Conexão do Morro | imagem: Cia de Foto

As faces da criaçãoDa universidade ou da “escola da vida”, de onde vem o saber artístico?

reportagem

Ao lado da artista Rejane Cantoni, professora de tecnologia e mídias digitais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), Daniela estabeleceu, há oito anos, uma parceria que comprova no dia-a-dia a necessidade do diálogo e da observação para fazer arte, sem que uma idéia se sobreponha à outra. Em linhas gerais, elas desenvolvem, em seu projeto OP_ERA, ferramentas de experimentação multissensorial com base em conceitos da física e das artes. Nesse caso, as fronteiras entre arte e ciência são tênues, pois a obra só é possível

porque está inserida num contexto de pesquisa.

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Formação ou informação?

Com relação à necessidade de o artista ter uma formação acadêmica, Carmela explica que, a partir da arte moderna, os parâmetros do aprendizado das artes e da transmissão de conhecimento por meio da técnica foram abolidos. O estudo ganhou outros significados e sentidos. “O que se aprende na universidade é a pensar. Há a exposição a muitas informações, o contato com professores de diversas áreas e a possibilidade de fazer experiências com algumas técnicas.”

Já o músico e compositor paulistano Lí-vio Tragtenberg, apesar de ter ministrado aulas na Universidade Estadual de Campi-nas (Unicamp) e na PUC/SP, tem restrições quanto à universitarização do fazer artístico. “A arte torna-se instrumentalizada e acon-tece a reboque da formatação do acadê-mico, com títulos e bolsas, restando menos espaço para a imaginação.” Autodidata, ele é autor de músicas para teatro, orquestra, dança, vídeo, cinema e instalações. Para Tragtenberg, a educação do criador deve ser sentimental, não instrumentalizada. “De nada servem criadores que se transformam em um bando de chatos que freqüentam seminários técnicos de computação mu-sical. Ou ainda, como diria Oswald de Andrade, aqueles chato-boys, com-positores-universitários, pseudo-cientistas, que fazem uma musica estéril.”

No mundo das ar-tes, o talento é uma questão

que parece ser tão ultrapassada quanto discutir a importância das va-

cinas. “Um artista nasce com talento para a arte tanto quanto um economista nasce

para trabalhar com previsões econômicas”, avalia Daniela. Rejane também não acredi-ta em fórmulas ou em intuição. “Existe, sim, a sensibilidade resultante da observação. Por exemplo, os primeiros escultores foram escultores porque conheciam as proprie-dades dos metais. Todos os procedimentos são sempre científicos.”

Autor de O Colecionador de Pedras (Global, �007), o poeta mineiro Sérgio Vaz, um dos coordenadores da Cooperativa Cultural da Periferia (Cooperifa), espaço que dá voz aos criadores da periferia paulistana, em saraus semanais no Jardim Guarujá, é contra rotular como talentoso alguém que teve um lampejo de genialidade. “Algumas pessoas descobrem o que gostam de fazer e o fazem bem. Não é exclusividade de quem vive da arte.”

Para Tragtenberg, falar em talento e inspiração é algo excludente. Segundo ele, nessa visão romântica, o artista não passa de um personagem social antiquado, estereotipado e estéril. O ideal é incluir todo mundo em um universo de criação, ter novas bases, limpar a área de preconceitos e de conceitos aceitos pela maioria.

O escultor cearense radicado no Rio de Janeiro Efrain Almeida, exemplo de artista que faz a ponte entre um repertório conceitual e o imaginário popular, parte do princípio de que arte e informação caminham juntas. “O cotidiano não é só o lado prático, menos ainda a inspiração, mas exercitar-se nas várias maneiras de ver o mundo.”

Almeida transforma com maestria a um-burana, madeira típica de seu estado natal, em pequenas esculturas que remetem à religiosidade. No entanto, o olhar do artista sobre o sacro é diferente do sugerido pelo artesanato. “O ponto de partida e a referên-cia podem ser os mesmos, mas transponho esses elementos para o contexto urbano e contemporâneo. Os resultados são anta-gônicos.” O artesanato, de acordo com ele, esbarra na questão da repetição. “A arte se torna utilitária, tanto que passa a ser produzi-da em série, sem inovação.”

Arte do improviso

A dupla musical Caju e Castanha faz emboladas com base em fatos do cotidiano. “Para embolar não precisa pensar muito no assunto”, diz o pernambucano José Roberto da Silva, o Castanha. “A matéria-prima está aí, no dia-a-dia, nos noticiários. A gente naturalmente se liga no que está acontecendo, seja na política, seja no comportamento, nos temas do povo. E a embolada nasce.”

Desde ga-roto, Castanha batuca-

va as canções de Roberto Car-los em um pandeiro de lata nas ruas

do Recife, ao lado do irmão Albertino da Silva, o Caju original, falecido em �00�.

A dupla ficou conhecida do grande públi-co em �979, com o documentário Nordeste: Cordel, Repente, Canção, de Tânia Quaresma. Depois disso, urbanizou a embolada origi-nal (feita só com pandeiro). As rimas cheias de crítica social e de humor ganharam ou-tros ritmos com a ajuda de guitarra, baixo, bateria e teclado e a influência de estilos musicais como o forró e o hip-hop.

A capacidade de exercitar o olhar para desenvolver uma obra artística aparece naturalmente nas letras do grupo de rap Conexão do Morro, originário de Capão Redondo, zona sul de São Paulo. “Preciso parar e colocar no papel o que estou sentindo, o que vejo diariamente acontecer nas ruas da periferia”, conta o músico Cobra, líder do grupo. Ao lado de Cachorrão e do DJ Lah, ele cria versos e rimas como os das músicas que integram o recente álbum Por que o Ódio e Não o Amor. Além da observação das ruas, Cobra anota frases que lhe chamam atenção e aposta em leituras “mais realistas”, como Cidade de Deus (Cia. das Letras, �997), de Paulo Lins, e Abusado (Record, �00�), de Caco Barcellos.

Lívio Tragtenberg | imagem: Isabel D’Elia Carmela Gross | imagem: Cia de Foto

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reportagemTrês formas de criar a dançaA coreografia contemporânea é território aberto a processos criativos diversos

Por Érica Teruel Guerra

Márcia Milhazes, coreógrafa do Márcia Milhazes Cia. de Dança; Bruno Beltrão, que dirige o Grupo de Rua de Niterói; e Alejandro Ahmed, diretor e coreógrafo do Cena �� Cia. de Dança – a dança contemporânea brasileira está muito bem representada por esses artistas, que investem em mais do que treinamento físico em seus trabalhos: estudo e reflexão são essenciais na construção de seus espetáculos, servindo como fontes de repertório.

A despeito das inúmeras diferenças entre suas linhas de criação, eles afirmam, sem hesitar, que não é possível delimitar suas inspirações. “Minha produção é influenciada pelo mundo, pela ínfima parte dele com a qual tenho contato e interajo. Seria um erro estipular preferências, construir hierarquias”, explica o fluminense Beltrão, que trabalha com hip-hop e dança contemporânea sob um olhar filosófico: “Foi a filosofia que me ensinou o valor das perguntas. Compreendi que elas geravam crise, e me dava um grande prazer colocar o hip-hop em crise”.

Por sua vez, a obra da carioca Márcia tem como ponto marcante a presença da cultura brasileira. Três de seus trabalhos – Santa Cruz (�99�), A Rosa e o Caju (�998) e Joaquim Maria (�000) – partiram da literatura de Machado de Assis. “A obra dele e o conteúdo psicológico de seus personagens são tão profundos, tão complexos, que me instigam”, comenta.

Para o uruguaio Alejandro Ahmed, o espe-táculo é criado em equipe, com base na discussão de uma idéia. “A partir dela produ-zimos um território, um lugar onde vamos trabalhar.” Já para Beltrão, que não tem a possibilidade de estar sempre em contato com seu grupo, o processo acontece em etapas distintas. “Quando estamos separa-dos, fico ruminando idéias, entendendo o processo, definindo propostas de trabalho, criando jogos, cultivando imagens”, conta. O momento criativo de Márcia é, curiosa-mente, solitário. “Eu monto cada detalhe da construção, mas isso está longe de significar que os intérpretes não dialoguem comigo de maneira profunda.”

Particularidades da criação

Alguns dos componentes de apresentações de dança, como trilha sonora e cenário, também são cuidadosamente pensados pelos três coreógrafos. “O espetáculo é uma coisa só, e a coreografia é um dos elementos. Tanto ela quanto os outros têm de ser coerentes com a idéia da obra”, afirma Ahmed, cuja marca é o trabalho com tecnologia em cena. Segundo ele, os aparelhos tecnológicos são uma extensão do corpo humano e é interessante estudar a relação estabelecida entre homem e máquina.

A música, que em alguns casos é criada antes da coreografia, não é o primeiro elemento em que Márcia pensa. “Minha construção é toda em silêncio. Geralmente, só toco a trilha para os intérpretes �0 dias antes da estréia”, revela a coreógrafa. Para Beltrão, que tem trilhas que vão desde o clássico até gravações de conversas, a música está intimamente ligada ao espetáculo. “Cada projeto necessita de um estudo de sonoridades”, afirma. Nos espetáculos do Cena ��, a música fica a cargo da diretora musical e intérprete Hedra Rockenbach.

A relação com o público é também determinante na criação dos coreógrafos. Prova disso é o projeto SKR (�00�), do Cena ��, o qual consistiu em uma pesquisa que resultou no espetáculo Skinnerbox (�00�). Parte do estudo para a obra foi feito no palco, para testar, na performance dos bailarinos e na reação dos espectadores, as idéias do grupo.

Ao falar sobre o público, Márcia resume suas intenções como artista: “Não gosto de pensar que minha criação gera um olhar preguiçoso, já previsto. Quero que minha arte gere algo no indivíduo, abra seu coração, proporcione um momento de observação. De alguma maneira, o que acontece é um encontro de identidades”.

Grupo de Rua de Niterói | imagem: Eduardo Hermanson; e Skinnerbox e PFdFSRi, do Cena ��| imagens: Gilson Camargo Tempo de Verão, de Márcia Milhazes | imagens: Alceu Bett e Amir Sfair Filho

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O olhar atento de Nelson Leirner

entrevista

E o trabalho no ateliê? Você trabalha em vários projetos ao mesmo tempo ou pre-fere acabar uma obra e começar outra? Você se impõe um ritmo de trabalho?

Não tenho ateliê, apenas um espaço para um pequeno depósito e para escrever ou rascunhar projetos. Prefiro trabalhar quando um determinado espaço já me é delimitado, não tenho regras para ter começo, meio ou fim e meu ritmo é minha ansiedade.

Entre uma obra e outra há intervalos muito grandes ou você procura sempre estar em produção?

Não procuro nem os intervalos nem a produção constante, mas a dimensão da minha obra me faz estar mais próximo de uma produção mais densa.

Como você desenvolve seus projetos? Você rascunha, desenha, põe no papel suas idéias ou vai criando sem um rotei-ro inicial?

Tenho trabalhos que, com os mesmos elementos, criei as mais diferentes situações, sempre me adaptando aos espaços que me foram dados. Na minha obra é quase impossível ficar preso a um roteiro.

Por Marco Aurélio Fiochi

Artista visual paulistano, radicado no Rio de Janeiro desde �997, Nelson Leirner é referência para o meio artístico brasileiro devido à construção de uma trajetória no mínimo emblemática. Pertencente a uma família de artistas e críticos que inclui, entre outros, a mãe Felícia, escultora já falecida, o pai Isai, ex-diretor do MAM/SP, e a prima Jac, também artista visual, Nelson iniciou a carreira na década de �9�0 e, desde então, participou de mais de uma centena de coletivas, além de realizar individuais no Brasil e em várias partes do mundo e de atuar como professor em cursos de arte por mais de duas décadas. Aos 7� anos, sua produção percorreu diversas linguagens e suportes, entre eles objeto, happening, instalação, outdoor, desenho, gravura, design e cinema experimental. Em todos os meios, o artista mostra sua posição crítica e irônica ao sistema da arte ou ainda a solidariedade a um repertório que, embora conceitual, abre brechas ao entendimento do público não-iniciado, ao utilizar materiais familiares ao seu universo – gessos de santos e entidades do candomblé, soldadinhos, pequenos brinquedos, animais e insetos de plástico e borracha, adesivos autocolantes –, que integram instalações como O Grande Desfile (�984), O Grande Combate (�98�) e O Grande Enterro (�986). Nesta entrevista, Nelson fala de seu processo criativo, dos materiais e obras e de seu atual ritmo de trabalho. Veterano de cinco décadas, defende os novos criadores: “Não acho que exista um esvaziamento de conteúdo, nem falta de repertório na nova geração. O que não se pode comparar são gerações que lidam com diferentes comportamentos de uma sociedade, pois o artista também a integra”.

Como é seu dia-a-dia? Você utiliza as in-formações que lhe chegam pelos meios de comunicação como elementos para sua arte? Ou a matéria cotidiana é ape-nas um instrumento para sua visão de mundo?

Hoje meu dia-a-dia, dentro do possível, é totalmente desobrigado de ter ou aceitar compromissos tanto com o meu trabalho como no âmbito social. Vivo com o olhar sempre atento ao meu redor, pois é dele que tiro conclusões para conceituar minha

visão de arte. Uma notícia vinda pelos meios de comunicação tem a mesma

importância que um passeio por uma rua movimentada do

centro da cidade.

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Os materiais que você utiliza são bem variados e em geral podem ser encon-trados em centros de comércio popular. Qual sua intenção ao trabalhar com esses materiais e como se dá a escolha deles? Qual seu interesse por uma iconografia, digamos, popular?

A essa pergunta vou responder com um trecho escrito pelo curador Agnaldo Farias: “Cada um desses objetos encarna uma imagem desgastada pela repetição infinita; são signos exauridos, mas que, no entanto, ainda mantêm um débil liame com nossos sonhos, dão provas do nosso impulso de efetuar simbolizações. É o artista quem afetuosamente os retira do limbo onde nossa indiferença os vem depositando, para colocá-los lado a lado, sem estabelecer hierarquia entre eles, sem criar distinção entre os mitos religiosos,

os mitos pagãos, as fantasias infantis, os seres provenientes dos reinos animal,

vegetal e mineral – todos como lídimos representantes de

nós mesmos...”.

Que tipo de material você ainda não usou mas gostaria de utilizar?

Não faço uso da tecnologia, mas não sei se gostaria de enveredar por esse caminho. Acho que é uma questão de geração.

E qual linguagem artística ainda o atrai, ainda é um desafio para você?

O cinema, que para mim é o meio de expressão mais completo.

Sua obra tem um apelo grande para pes-soas que não são necessariamente frui-dores das artes visuais. Isso se deve aos materiais que usa, às escolhas temáticas que faz ou a uma intenção de tornar sua obra mais acessível, menos hermética?

A arte conceitual é elitista e disso não esca-pamos. O que acontece com meu trabalho é que pelo material que costumeiramente uso existe uma identificação com o público em geral. Essas pessoas, que como você co-loca “não são necessariamente fruidores das artes visuais”, podem ver num espaço dedi-cado à arte um pouco do seu universo. Um conceito duchampiano.

Nelson Leirner | imagens: Cia de Foto

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Você foi professor de arte durante muitos anos e ajudou a formar muitos artistas. Como vê os cursos de arte que são ofere-cidos? Por que recomendaria a um aspi-rante a artista um curso formal na área?

O mais importante não é o que se ensina nem o que o aluno vai aprender, e sim o constante contato que ele vai ter com a arte.

Sem ser generalista, você sente entre os artistas da novíssima geração, surgidos a partir de 1990, um esvaziamento de conteúdo, uma falta de repertório, já que esse grupo é bem diferente dos artistas que surgiram junto com você nos anos 1950, os quais tinham uma atitude crítica, combativa, irônica, devido, entre outros fatores, à situação política nas décadas seguintes? Ou seria o contrário disso, já que a nova geração dispõe de recursos tecnológicos que não existiam quando você iniciou?

Não acho que exista um esvaziamento de conteúdo, nem falta de repertório na nova geração. O que não se pode comparar são gerações que lidam com diferentes comportamentos de uma sociedade, pois o artista também a integra. A tecnologia já faz parte da geração atual, que desde cedo domina essa linguagem.

O que singulariza seu processo criativo, o que torna sua obra uma obra que só poderia ser produzida por Nelson Leirner?

É não querer fazer ARTE e sim arte.

Conheça mais sobre a vida e a obra de Nelson Leirner na Enciclopédia Itaú Cultural de Artes Visuais: www.itaucultural.org.br/enciclopédias.

Nelson Leirner, Figurativismo Abstrato, �004 [detalhe] | imagem: Sergio Guerini

Nelson Leirner, Série Clonagem, �997 | imagens: Sergio Guerini

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Interpretar também é criar

Cantores, instrumentistas e atores são fundamentais à criação artística

reportagem

Personagens à procura do ator

Das notas para as palavras, há muita coisa em comum. Para o ator paulista Otávio Martins, “o ator-criador vem para dizer o que não foi falado no texto”. O autor, segundo Martins, aponta com palavras o caminho do conflito dramático. Quem percorre esse caminho, no entanto, é o ator, com toda sua carga de emoção. “O instrumento do ator é o próprio ator”, diz Martins, indicado para o Prêmio Shell por sua participação na montagem de A Noite Antes da Floresta, do dramaturgo francês Bernard-Marie Koltès, dirigida pelo paulistano Francisco Medeiros. O “caminho” é traçado com a intenção de buscar a humanidade por trás do personagem e, assim, promover o encontro com a platéia. “O interessante do ator-criador não é sublinhar, mas dialogar com o texto. Desse diálogo nasce uma terceira coisa que só é vivenciada pelo público na hora. O texto é o mesmo, o elenco é o mesmo, mas cada sessão tem um espetáculo diferente. A principal incumbência do ator-criador é propiciar isso.”

Alexandre Reinecke, diretor de montagens recentes como Oração para um Pé-de-Chinelo, escrita pelo dramaturgo paulistano Plínio Marcos em �969, pensa na mesma linha. “O teatro é essencialmente a arte do ator. Diretores, texto, cenógrafo, figurinista, trilheiros, iluminadores estão ali para vestir o personagem nesse ator”, afirma. Reinecke sempre faz um estudo profundo do texto, na busca de elementos que o ajudem na compreensão e na construção dos personagens e da encenação. E é

justamente o fato de uma apresentação ser sempre uma recriação, diferente

de todas as outras, que comprova para o diretor a “magia do

teatro”.

Por Guilherme Conte

O dicionário Houaiss define interpretação como “ato ou efeito de interpretar”. Em seguida, faz uma distinção para música – “o aspecto pessoal na execução musical” – e outra para cinema, teatro e televisão: “Arte e técnica do ator; a forma dada por um ator ao desempenho de seu papel”. Se as definições divergem em algum ponto (uma fala de algo mais pessoal, outra de técnica e forma), elas parecem apontar para um dado comum: o papel criador do intérprete.

Alguns de nossos maiores cantores – Maria Bethânia, Gal Costa, Elis Regina, Nara Leão e Ney Matogrosso – consagraram-se como intérpretes, sem um trabalho de composição consistente. “Para o público a voz sempre foi um rosto”, afirma o escritor e curador Marcelo Rezende. “Sinatra jamais escreveu uma canção, mas seu rosto e sua voz são patrimônios da cultura ocidental do século XX”, continua Rezende, que também é editor da revista Bravo!.

O filme Música É Perfume (�00�), do franco-suíço Georges Gachot, traça um panorama do processo criativo da cantora Maria Bethânia. O diretor mostra como ela trabalha cada canção, as abordagens alternativas que faz para estilos de música diferentes, como gosta que as idéias nasçam no ato da gravação, no coletivo. “Uma grande cantora, assim como um grande instrumentista, não é uma mera repetidora de obras de outros autores”, diz o paulistano Alexandre Pavan, jornalista do Núcleo de Música Popular da TV Cultura.

O mesmo ocorre com a música erudita. Se-gundo o norte-americano John Boudler, cria-dor do Grupo de Percussão do Instituto de Ar-tes da Universidade Estadual Paulista (Unesp), “uma partitura é algo abstrato: são sinais, gra-fismos”, explica. “O músico é quem traduz es-ses sinais gráficos abstratos para o ouvido do ouvinte. Isso em si já é uma criação.”

Boudler acrescenta que o papel do intérprete é enxergar além dessas notas, desses sinais. Em seu caso, ele faz um estudo prévio da obra, escuta diferentes execuções, procura saber sobre a biografia do compositor, o que acontecia em sua vida quando escreveu aquela peça (uma guerra, uma crise conjugal ou uma doença, por exemplo). “Isso ajuda a perceber os sentidos intrínsecos da estrutura da obra. É o que eu chamo de honestidade de qualidade de preparo”, conta. É isso que distingue uma interpretação de outra: se as notas são as mesmas, o que muda é o que está “entre” elas.

Um dos exemplos mais notórios de interpre-tação como recriação são as duas gravações das Variações Goldberg, do compositor ale-mão Johann Sebastian Bach, pelo lendário pianista canadense Glenn Gould. Sua grava-ção de estréia, em �9��, aos �� anos, dura pouco mais de �8 minutos. É uma execução em que ficam evidentes o virtuosismo e o completo domínio do jogo de polifonias da parte de Gould. Já a regravação, de �98�, lançada poucas semanas antes da morte do músico, dura praticamente � hora. O pianista descortina aqui um conjunto de

variações muito mais sereno e detalhista, buscando valorizar cada nota, cada fra-

se. A mesma partitura e o mesmo pianista, em recriações abso-

lutamente distintas.

Otávio Martins em A Noite Antes da Floresta | imagem: Daniel Cobucci

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Ensaios de orquestrasTrabalho coletivo e dedicação individual na rotina das sinfônicas paulistanas

reportagem

Por Thiago Mio Salla

De um lado, a figura autoritária do maestro alemão, que endereçava palavras ríspidas e impropérios aos músicos. Do outro, a ironia e a revolta de seus comandados. Se o regente do filme Ensaio de Orquestra (�979), do diretor italiano Federico Fellini, sentia-se o dono do mundo quando empunhava a batuta, ao mesmo tempo que via sua autoridade desmoronar, o fluminense Carlos Moreno, há seis anos à frente da Orquestra Sinfônica da Universidade de São Paulo (Osusp), adota um comportamento diverso. Admirado por seus instrumentistas, procura construir com eles uma relação cordial, que tem como objetivo a excelência do conjunto.

Na manhã fria do dia �� de julho, enquanto uma tempestade castiga o telhado do Anfiteatro Camargo Guarnieri, na Cidade Universitária, em São Paulo, Moreno conduz o último ensaio antes da apresentação da Osusp, no dia seguinte, no �8º Festival Internacional de Inverno de Campos do Jordão. Vestido informalmente, com uma camisa branca de botão, óculos de armação moderna e cabelos negros na altura dos ombros, o regente dirige a orquestra com leveza. Quando detecta algum problema pontual, seja com a unidade do conjunto, seja com a articulação de uma frase musical, pára o ensaio e com poucas palavras aponta a dificuldade e a sua solução. Em determinados momentos, desce de seu pódio e vai até o instrumentista que havia se equivocado para passar diretamente as orientações necessárias. Lado a lado, regente e músico fazem marcações na partitura. Com o obstáculo resolvido, o ensaio continua.

Nesse dia, o repertório trabalhado inclui as obras Arcos Sonoros da Catedral de Anton Bruckner, do paulista Almeida Prado, Brasiliana, do também paulista Camargo Guarnieri, e a Sinfonia n.2, do finlandês Jean Sibelius. Depois da execução das duas primeiras peças, o maestro indica que os músicos têm meia hora de intervalo. Alguns se levantam e vão para a entrada do anfiteatro tomar café, comer alguma coisa ou jogar conversa fora. No entanto, a maior parte continua em suas posições estudando trechos das partituras. Todos os que ficam tocam simultaneamente, cada um à sua maneira, e o caos sonoro se instaura no ambiente: trombones, trompetes, flau-tas, violas, violoncelos, contrabaixos e violinos emitem sons desencontrados, sem a harmonia da regência de Moreno. Os instrumentistas parecem não dar importância a isso. Como se ou-vissem apenas a si próprios, prosseguem com seus exercícios.

Contrabaixista da Osusp | imagem: Cia de Foto

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Ensaio da Osusp no Anfiteatro Camargo Guarnieri, São Paulo | imagem: Cia de Foto

Ensaio da OSM no Teatro Municipal de São Paulo | imagem: Cia de Foto

Maestro José Maria Florêncio, da OSM | imagem: Cia de Foto

O maestro volta mais cedo à sua posição. Como os trombonistas continuam a tocar, aproveita os últimos minutos de intervalo para repassar com eles o andamento de um trecho de Brasiliana. A partir daí, Moreno concentra seus esforços na execução da Sinfonia n.2 de Sibelius. Com exceção de algumas correções no segundo movimento da obra, considerado o mais difícil, essa parte do ensaio segue praticamente sem interrupções. No entanto, ao longo da sinfonia, é comum observar os chefes de naipes (líderes de cada grupo de instrumentos), seja por meio de gestos, seja por meio de olhares ou palavras, passarem orientações a seus companheiros. Na hierarquia da orquestra, eles estão abaixo do maestro e do spalla (o primeiro violino que se senta ao lado esquerdo do regente), mas têm papel importante na divulgação das determinações deste. “Durante os ensaios, nossa chefe de naipe sempre nos passa dicas valiosas”, destaca Davi Caverni, violista da Osusp desde �00�.

Essa busca conjunta pela perfeição faz parte da rotina da orquestra. Moreno adora ensaiar e, cada vez mais, entrar nos detalhes da obra. “Em maio deste ano, num concerto na Sala São Paulo, nós já havíamos feito a Sinfonia n.2 de Sibelius. Só que, diferentemente do que se possa pensar, não se trata de mais do mesmo. Cada execução é sempre melhor, pois a partitura é infinita. Ela traz tantos detalhes que uma semana de ensaio, como quase sempre ocorre, é pouco”, destaca. Como agora é a segunda vez que preparam essa peça, tanto o maestro como os músicos estão mais conscientes do que devem fazer e, dessa maneira, podem subir mais dois degraus na interpretação da obra.

Idas e vindas

Enquanto a Osusp realiza os últimos preparativos para ir a Campos do Jordão, a Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo (OSM) acaba de voltar de lá. Passado o festival, seu regente titular, José Maria Florêncio, na manhã fria e ensolarada do dia �7 de julho, ensaia o repertório para mais uma apresentação no pomposo Teatro Municipal paulistano.

Após reger a abertura Leonora III, do alemão Ludwig van Beethoven, o maestro pára os trabalhos e pede mais simplicidade e menos afobação aos músicos. Eles devem ficar mais atentos ao tempo em que têm de tocar, além de descartar acentos desnecessários em certas notas. Em alusão à seleção feminina de futebol, que, no dia anterior, havia sido campeã pan-americana, ele brinca: “Se tocarmos dessa maneira, não ganhamos dos Estados Unidos de � a 0”. Depois de ficar por 6 minutos passando essas orientações aos instrumentistas, a orquestra volta à obra do compositor. Ao final, entusiasmado, o regente considera ótimo o desempenho de seus músicos e pede: “No concerto, por favor, toquem como fizeram dessa segunda vez”.

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Florêncio é cearense, mas viveu por �0 anos na Polônia, onde dirigiu importantes orquestras. Como costuma dizer, seu estilo mescla tanto o temperamento latino quanto o rigor da educação musical polonesa. Regendo a OSM, o maestro parece dançar sobre o pódio. Na condução dos músicos, realiza movimentos intensos e vigorosos com as mãos e os braços. Em determinados momentos, estrala os dedos, bate a mão no peito, solfeja para marcar a dinâmica da música, pisa com força no assoalho de madeira. Em meio a todas essas estratégias para chamar a atenção dos instrumentistas, começa a suar e a ficar com o rosto enrubescido. O maestro chega a perder � quilo após cada ensaio ou apresentação. “O trabalho de regente exige uma concentração fora do comum e uma ótima condição física”, pontua. Para aprimorar essas habilidades, além dos estudos musicais diários, antes e depois dos ensaios, o regente faz regularmente aulas de caratê.

Não só o maestro deve se preparar intensa-mente para as apresentações. Cristina Manes-co, violoncelista da OSM, dedica entre três e quatro horas diárias ao estudo de seu instru-mento. Nascida na Romênia, mas vivendo no Brasil desde a década de �980, Cristina sorri ao dizer que os músicos profissionais, assim como os atletas, devem realizar uma rotina diária de exercícios. “Mas vamos além do de-senvolvimento da velocidade e da potência. Procuramos, diariamente, apurar a técnica e o ouvido, ajustar a afinação do instrumento e a expressão artística e treinar a musculatura para realizar de maneira precisa os movimen-tos exigidos pela partitura”, enfatiza.

Para o timpanista Leopoldo Prado, na Osusp há quatro anos, esse trabalho é um pouco mais difícil. Ele lembra que são raros os per-cussionistas que possuem seus próprios tímpanos. Em geral, tais instrumentos per-tencem às orquestras. Mesmo não poden-do ensaiar em casa, o músico procura, diariamente, ouvir gravações e fazer marcações nas partituras das pe-ças a ser executadas.

Planejamento e processo criativo

Durante o ensaio da Osusp, logo após a exe-cução dos Arcos Sonoros da Catedral de An-ton Bruckner, de Almeida Prado, dois trom-pistas colocam seus instrumentos nos esto-jos e deixam o anfiteatro, enquanto o res-tante da orquestra permanece trabalhando. Trata-se de dois músicos convidados, pois, para a correta interpretação da obra desse compositor brasileiro, são necessários seis trompistas, em vez dos quatro habituais. A convocação desses instrumentistas havia sido feita com muita antecedência.

Para o maestro Moreno, o processo criativo da orquestra depende de um meticuloso e prévio trabalho de organização e logís-tica. Em �006, toda a agenda de ensaios e apresentações de �007 já estava fechada. Na Osusp, esse expediente é fundamen-tal, principalmente porque ela conta com apenas 4� músicos efetivos. Em média, as orquestras sinfônicas precisam de 74 mem-bros para tocar obras de autores românti-

cos ou contemporâneos. Dessa maneira, dependendo do repertório, a Osusp

precisa do complemento de quase �0% de seus instrumentistas.

Por detrás dessa limitação está a baixa dotação orçamentária anual destinada à orquestra. Nesse ponto, Moreno confirma: “a Osusp tem uma das piores realidades do Brasil”. Contudo, as dificuldades financeiras não impediram que, no ano passado, o maestro e seus comandados recebessem o Prêmio Carlos Gomes de melhor orquestra do ano. “O que vale a pena aqui é a vontade de fazer a melhor música possível. Somos obrigados a superar essas restrições e a nos concentrar num resultado artístico que nos mova a sair de casa”, conclui.

Maestro Carlos Moreno, da Osusp | imagem: Cia de Foto

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Monica SchoenackerSelf Storage, �007imagem digitalColeção da artista

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