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TRABALHO INFORMAL E DIREITO à CIDADE Dossiê de violações de direitos de trabalhadores ambulantes e domiciliares imigrantes

Itikawa Trabalho Informal Direito 2012

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Trabalho Informal Direito 2012

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  • DIREITO CIDADE

    Projeto Apoio

    UNIO EUROPEIA

    TRABALHO INFORMAL E DIREITO CIDADEDossi de violaes de direitos de trabalhadores

    ambulantes e domiciliares imigrantes

  • Dossi de violaes de direitos de trabalhadores ambulantes e domiciliares imigrantes

    TRABALHO INFORMAL E DIREITO CIDADE

  • APRESENTAO

    INTRODUO

    O conceito de Informalidade: trabalhadores

    ambulantes e domiciliares imigrantes

    PARTE IO contexto da segregao socioterritorial dos trabalhadores informais

    A segregao socioterritorial na regio central de So Paulo como continuao do

    modelo de cidade patrimonialista e excludente

    O Estatuto da Cidade e as contradies na sua aplicao

    Aspectos da segregao em duas categorias de trabalhadores informais

    PARTE IIViolaes de direitos dos trabalhadores informais

    Os avanos legais na Constituio Federal e no Estatuto da Cidade

    Trabalhadores informais: cotidiano de violaes de direitos

    Violaes de direitos de trabalhadores informais ambulantes

    Violaes de direitos de trabalhadores informais domiciliares imigrantes

    CONSIDERAES FINAIS

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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    Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos

    Unio EuropeiaChristian Aid

    Realizao

    Apoio

    Texto baseLuciana Itikawa

    Juliana Avanci

    ColaboraoCarolina Ferro

    Benedito Barbosa

    Luiz Kohara

    Ren Ivo Gonalves

    Edio e reviso Jlio Delmanto

    Projeto Grfico e DiagramaoMila Santoro

    Este projeto financiado pela Unio Europeia e Christian Aid, executado pelo Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos. Incio dos trabalhos: janeiro de 2011. Trmino: dezembro de 2013.

    Esta publicao foi produzida com o apoio da Unio Europeia. O contedo dessa publicao de total responsabilidade do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos e no pode ser tomado como

    viso da Unio Europeia.

    Equipe do Projeto

    Coordenador GeralRen Ivo Gonalves

    Assessora PedaggicaLuciana Itikawa

    Assessora JurdicaJuliana Avanci

    Assessora Administrativo-FinanceiroFlvia Oliveira

    Ajudante GeralSarah Dias

    Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos - 2012A reproduo de toda ou parte desta publicao permitida somente para fins no lucrativos e com a autorizao prvia e formal do Centro Gaspar Garcia, desde que citada a fonte.Impresso no BrasilDistribuio gratuitaTiragem: 500 exemplares1a. Edio

    Projeto Trabalho Informal e Direito Cidade

    Ttulo da Ao: Apoio aos trabalhadores na economia informal e grupos vulnerveis da regio central da cidade de So Paulo para proteo social, acesso justia e conquista dos direitos.

    Trabalho informal e direito cidade:Dossi de violaes de direitos de trabalhadores ambulantes e domiciliares imigrantes

    Crditos das fotos da capa: Luciana itikawa, Arquivo Centro Gaspar Garcia, Alderon Costa/Rede Rua, Nick Story

    SUMRIO

    Dossi de violaes de direitos de trabalhadores ambulantes e domiciliares imigrantes

    TRABALHO INFORMAL E DIREITO CIDADE

  • 5Raul Pederneiras. Algumas Figuras de hontem. 1924

    O Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos uma organizao que atua no fortalecimento dos movimentos sociais e populares da cidade de So Paulo, bem como na defesa da Reforma Urbana e exigibilidade do direito cidade.

    Esta publicao, Trabalho informal e direito cidade: dossi de violaes de direitos de trabalhadores ambulantes e domiciliares imigrantes, foi construda no mbito do Projeto Trabalho Informal e Direito Cidade, iniciado em 2011 com apoio da Unio Europeia e da Christian Aid. A proposta de atuar junto a trabalhadores de baixa renda da economia informal surgiu da aproximao do Centro Gaspar Garcia com a populao pobre do centro da cidade de So Paulo que, em sua maioria, mora em habitaes precrias e depende da economia informal.

    O Dossi tem como objetivo dar visibilidade s violaes de direitos sofridas pelos trabalhadores informais de baixa renda e, a partir das informaes e depoimentos, relatar o cotidiano de violncia e inseguranas desses sujeitos. Aponta tambm caminhos para mudanas que reconheam a importncia dos trabalhadores no contexto de uma cidade marcada por disputas, contradies e conflitos.

    As violaes de direitos tm rostos e nomes. Por essa razo, este Dossi quis dar voz a esses trabalhadores que aparecem aqui como depoimentos vivos do cotidiano de invisibilidade, precariedade, violncia e descumprimento das normas aos quais esto submetidos.

    Por fim, sem a pretenso de esgotar e detalhar todos os aspectos da vasta heterogeneidade que caracteriza o trabalho informal, o Dossi pretende contribuir para o debate sobre condies de vida e trabalho dos trabalhadores informais e sobre a necessidade de polticas pblicas voltadas a essa populao. Neste sentido, apresenta aos rgos de Estado e sociedade civil alguns elementos que serviro para anlise das aes pblicas e para o dilogo social, tentando aproximar os diversos atores envolvidos na temtica.

    APRESENTAO

  • 7Marc Ferrez. Mulheres no Mercado, Rio de Janeiro, 1885.

    Acervo Instituto Moreira Salles.

    A publicao Trabalho informal e direito cidade - Dossi de violaes de direitos de trabalhadores ambulantes e domiciliares imigrantes resultado do trabalho do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, desenvolvido entre 2011 e 2012 no mbito do Projeto Trabalho Informal e Direito Cidade, com o apoio da Unio Europeia e da Christian Aid.

    Ao longo dos seus 24 anos de existncia, o Centro Gaspar Garcia vem atuando no suporte s populaes, prioritariamente da regio central de So Paulo, que se encontram em situao precria ou de vulnerabilidade. Atualmente, a organizao realiza o acompanhamento de moradores de habitaes precrias, pessoas em situao de rua, catadores de materiais reciclveis, povos indgenas que vivem na cidade e trabalhadores informais.

    O Centro Gaspar Garcia tem como princpio a promoo da autonomia dos sujeitos polticos atravs do estmulo construo do conhecimento sobre sua realidade e incidncia em polticas pblicas para a superao das adversidades. Para isso, a entidade atua no suporte e atendimento jurdicos, na formao a partir da educao popular e na articulao poltica na perspectiva das lutas coletivas e democrticas.

    Seguindo estes princpios, o processo de construo do conhecimento sobre as violaes de direitos apresentadas neste Dossi se desenvolveu, sobretudo, atravs do dilogo sistemtico com os trabalhadores informais, em vrias frentes de atuao. Priorizar a interlocuo constante com os trabalhadores foi uma escolha tcita do Projeto e essa interao ocupou grande parte de suas atividades.

    Alm da interlocuo estreita e cotidiana com os trabalhadores, o Projeto interagiu com outros trs atores: com o Estado, priorizando os rgos de defesa e suporte aos trabalhadores; com organizaes da sociedade civil e movimentos populares, dialogando e realizando atividades em conjunto; e com especialistas (universitrios ou pesquisadores), mantendo intercmbio constante.

    Desde o incio, o Projeto acompanhou duas categorias de trabalhadores informais: ambulantes e domiciliares imigrantes. Isto se deu a partir das seguintes atividades: visitas em moradias precrias e nos locais de trabalho, reunies coletivas mensais, oficinas de formao, atendimentos jurdicos no Centro de Referncia do Trabalhador Informal e articulao em rede. A partir desta aproximao cotidiana, reuniu-se um conjunto de elementos que subsidiaram uma anlise restrita e muito especfica do contexto dessas duas categorias de trabalhadores informais no Centro de So Paulo. Esta anlise est sistematizada neste Dossi.

    INTRODUO

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    Arquivo Centro Gaspar Garcia. Reunio de Formao, 2011.

    Cadeia de valor representa o conjunto de atividades desempenhadas por um setor, desde as

    relaes com os fornecedores e ciclos de produo e de venda at a fase da distribuio final.

    A escolha destas duas categorias de trabalhadores informais no foi casual. As aes consolidadas do Centro Gaspar Garcia no acompanhamento da populao vulnervel no Centro de So Paulo permitiram constatar que as pessoas atendidas combinavam precariedades simultaneamente no trabalho e na moradia. A dificuldade do acesso posse do imvel, a insalubridade e os altos valores na moradia, bem como a expulso dos espaos pblicos, esto relacionados remunerao baixa, sazonal ou desprotegida no trabalho.

    No existe um consenso sobre como economia formal e informal se relacionam. Entre as mltiplas compreenses desta relao, interessa a este Dossi destacar duas. Por um lado, a informalidade vista como exceo ou circunstancial. Surgida em pases que vivenciaram o regime de pleno emprego, essa concepo do informal como manifestao marginal e desvinculada da economia formal subsidiou programas de ingresso no mercado formal de trabalho. Alguns exemplos desses programas focam na capacitao de mo de obra, no microcrdito, na formalizao de unidades autnomas informais, entre outras medidas. Entretanto tais programas no tm sido suficientes, uma vez que no interessa a determinadas cadeias de valor incorporar o custo da reproduo da fora de trabalho (direitos trabalhistas e demais direitos sociais).

    Por outro lado, h outra viso que defende a existncia de uma manuteno sistemtica da informalidade como reflexo de um padro de acumulao desigual e concentrador da renda e da terra. Existente em pases em que o pleno emprego no ocorreu, esta viso v o informal subordinado e intersticial ao formal. Subordinado porque estabelece relaes objetivas com o formal e normalmente est em condies desfavorveis ao estabelecer os termos de troca; intersticial, porque ocupa espaos entre e no fora da economia formal. Neste sentido, o informal, vinculado ao formal, mantido deliberadamente afastado dos direitos trabalhistas. (Barbosa, 2008)

    A partir desta concepo, a informalidade mantida mesmo em ciclos de crescimento econmico e de incluso de trabalhadores pelo consumo. No Brasil, esta contradio persiste em novas formas de explorao dos trabalhadores, entre eles, os autnomos e os subcontratados. Ambas situaes de informalidade encontram base de sustentao em padres histricos de desenvolvimento do mercado de trabalho e ganharam novos contornos no contexto da reestruturao produtiva contempornea. Cada uma dessas situaes de informalidade ocupa de forma intersticial os espaos econmicos: uma est vinculada ao circuito produtivo - os subcontratados -, e outra vinculada ao circuito de venda direta e indireta, constitudo pelos trabalhadores por conta prpria ou autnomos.

    Este Dossi apresenta duas condies representativas da informalidade precria: de um lado, o trabalhador na rua, o ambulante, e de outro o trabalhador na casa, o domiciliar imigrante.

    Os ambulantes so trabalhadores autnomos ou por conta prpria que esto vinculados ao circuito de venda direta e indireta, realizando atividades que, apesar de subordinadas ao mercado, ainda tm certa margem de autonomia. Estes trabalhadores no possuem uma relao de exclusividade ou vnculo com empresas e vendem diretamente para o consumidor final ou sacoleiro.

    O atendimento jurdico realizado no Centro de Referncia do Trabalhador Informal subdividiu-se nas esferas individual, por meio de aes de encaminhamento aos rgos pblicos especializados, e coletiva, no suporte formalizao de uma organizao de trabalhadores e na proposio de uma Ao Civil Pblica em conjunto com a Defensoria Pblica do Estado de So Paulo.

    As oficinas de formao realizadas com as duas categorias de trabalhadores acompanhadas pelo Projeto deram nfase organizao e participao populares, sobretudo importncia da construo de representatividades e estratgias a partir de processos transparentes e democrticos. J a articulao em rede teve o intuito de fortalecer a organizao dos trabalhadores agregando coletivos de diferentes regies da cidade como estratgia para incidncia em polticas pblicas. Nestas aes tambm estiveram presentes outros atores - especialistas, entidades e atores estatais que compuseram a articulao.

    A aproximao com os trabalhadores ao longo do Projeto, entretanto, no foi linear e isenta de obstculos. Conforme se ver ao longo de todo o Dossi, as violaes de direitos dos trabalhadores so mltiplas e concomitantes, com as aes criminalizantes e segregadoras do Estado, combinadas s contradies e s disputas no interior do trabalho informal, criando um ambiente de desconfiana refratrio ao trabalho conjunto. Porm, aps dois anos foram possveis avanos nessa relao com os trabalhadores, mesmo que ainda existam diversos desafios a serem superados.

    O acompanhamento contnuo de dois contextos de informalidade possibilitou ao Projeto observar que os trabalhadores no vivenciam de forma estanque e isolada

    uma ou outra violao: a instabilidade nos rendimentos pode comprometer o acesso moradia adequada, a falta de dilogo social pode prejudicar o acesso seguridade social, etc. Seguindo este raciocnio, possvel concluir que h relao estreita entre a sobreposio das violaes de direitos e os processos de segregao socioterritorial na cidade de So Paulo. O Dossi, portanto, tem como objetivo no s enunciar as violaes como tambm avaliar as engrenagens que esto por trs delas.

    Desta forma, a escolha do ttulo do Projeto Trabalho Informal e Direito Cidade teve como finalidade expandir a compreenso do direito ao trabalho, incluindo as dimenses de acesso cidade e aos demais direitos sociais que perpassam a vida dos trabalhadores: a no-discriminao, o acesso justia, moradia adequada, etc. Esta viso fruto da trajetria do Centro Gaspar Garcia no conhecimento e na militncia pelo direito cidade e pelos direitos humanos.

    Este Dossi pode, assim, colaborar como parmetro para polticas pblicas ao demonstrar que a informalidade no apenas o avesso da formalidade. A compreenso sobre a informalidade expressa neste Dossi parte de uma perspectiva poltica de que existem relaes de subordinao e complementaridade entre formal e informal. A partir desta perspectiva, a complexidade das relaes entre formal e informal exigir um esforo maior de dilogo entre as diferentes vises de trabalhadores, Poder Pblico, pesquisadores, movimentos populares e organizaes sociais para a formulao de polticas pblicas.

    O conceito de informalidade: trabalhadores ambulantes e domiciliares imigrantes

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    Jennifer Reinteria. Brs, 2011.

    enquanto a terceirizao uma modalidade de contratao prevista na legislao. Neste Dossi, adota-se o entendimento do Poder Judicirio.

    Neste sentido, mesmo que a tabulao no traduza exatamente o universo aqui apresentado, pode dar uma dimenso sobre o universo da subcontratao no municpio de So Paulo. Segundo o DIEESE, existem 554 mil trabalhadores subcontratados (9% do total de ocupados, este nmero pode estar subdimensionado) que moram na regio metropolitana e trabalham no municpio de So Paulo. A maioria (70%) se situa no setor de servios, so homens (57%), esto h muito tempo na cidade e distribuem-se em vrias faixas etrias, porm com maior presena entre 30 a 49 anos, e com diferentes graus de escolaridade, destacando a presena de 40% com ensino mdio completo.

    Das duas situaes ocupacionais de trabalho domiciliar - subcontratados e autnomos - o Projeto acompanhou trabalhadores imigrantes de origem latino-americana: peruanos e bolivianos na cadeia da confeco. Nem a PED do DIEESE e tampouco o estudo A Imigrao Boliviana no Brasil, produzido em 2012 pelo Ncleo de Estudos Populacionais (NEPO) da UNICAMP, conseguiram captar nmeros que traduzissem a realidade do municpio de So Paulo. Em 2009, segundo o NEPO, 41 mil estrangeiros requisitaram a permanncia no pas, sendo que 17 mil deles eram bolivianos. Dos cerca de 21 mil estrangeiros latino-americanos no pas (bolivianos, peruanos e paraguaios), cerca de 43% deles estariam envolvidos na cadeia da confeco. Entretanto, segundo este estudo, entidades que prestam servios a imigrantes estimam que entre 35 e 200 mil latino-americanos trabalhem na cadeia da confeco.

    A falta de produo e sistematizao de dados sobre a realidade dos trabalhadores domiciliares imigrantes demonstra a invisibilidade que eles tm para o Poder Pblico, o que aprofunda a precarizao. Este Dossi pretende reunir esforos na construo de uma visibilidade que no perpetue a criminalizao e a legitimao de processos segregadores. Contudo, ainda h um longo caminho a percorrer para que vulnerabilidades e precariedades destes trabalhadores ganhem notoriedade pblica e repercutam em avanos em polticas pblicas.

    Este Dossi composto de trs partes: a primeira, O contexto da segregao socioterritorial dos trabalhadores informais, mostra os processos de segregao que esto por trs das violaes de direitos. O item: A segregao socioterritorial na regio central de So Paulo como continuao do modelo de cidade patrimonialista e excludente aborda o contexto histrico sobre os condicionantes estruturais que dificultam o pleno exerccio do direito cidade e do direito ao trabalho. Alm disso, apresenta os efeitos especficos da segregao sobre as duas categorias de trabalhadores informais.

    A segunda parte, Violaes de direitos dos trabalhadores informais, mostra o abismo entre o marco legal progressista e da projeo internacional do Brasil como defensor e garantidor dos direitos e a supresso dos mesmos por meio das aes excludentes e violentas do Estado. Os itens: Violaes de direitos dos trabalhadores ambulantes e Violaes de direitos dos trabalhadores domiciliares imigrantes tratam das violaes no contexto de cada uma das duas categorias.

    A ltima parte, Consideraes Finais, rene reflexes que podem mostrar caminhos para subsidiar polticas pblicas e estratgias de organizao e reivindicao dos trabalhadores: questionar o modelo atual e mostrar que outro projeto de cidade, mais includente e democrtico, pode ser possvel; indagar se o Estado pode cumprir um papel que avance alm da reparao das violaes; e, finalmente, situar os avanos nas lutas populares e os desafios frente s novas transformaes do mundo do trabalho e da reconfigurao dos interesses capitalistas sobre a cidade.

    Para o Departamento Intersindical de Estatsticas e Estudos Socioeconmicos (DIEESE) os trabalhadores informais so considerados como pequenas unidades econmicas, de at cinco trabalhadores. O critrio de classificao da informalidade a no separao clara entre trabalhador e proprietrio dos meios de produo, assim como a taxa de lucro no a varivel-chave de seu funcionamento e sim o sustento do trabalhador.

    Uma tabulao especial da Pesquisa Emprego e Desemprego (PED- DIEESE), realizada para este Dossi, levantou a existncia de 138 mil trabalhadores ambulantes (1,5% do total de ocupados) que moravam na regio metropolitana de So Paulo e trabalhavam na capital no binio 2010-2011. Esta tabulao caracteriza o vendedor ambulante com o seguinte perfil: dois teros so homens; 50% tm mais de 40 anos; 69,1% tm ensino fundamental completo e a maioria de cor branca, chefe de domiclios pobres e moradora da regio metropolitana h bastante tempo. Existiam, at o incio de 2012, apenas 5.137 licenas para trabalhadores ambulantes, nmero irrisrio em relao ao total destes trabalhadores.

    H um mito, muito utilizado nos discursos do Estado, de que crescimento econmico e taxas de emprego e assalariamento seriam suficientes para incluso destes trabalhadores no mercado formal. Entretanto, seu perfil no de fcil insero neste mercado.

    Os trabalhadores domiciliares estabelecem diversas estratgias na informalidade para driblar a sazonalidade nos rendimentos, os riscos na atividade, a falta de proteo social e podem assumir duas condies: autnomos ou subcontratados. Os trabalhadores acompanhados pelo Projeto esto vinculados cadeia da confeco, do setor do vesturio e acessrios.

    Os autnomos no so uma nova categoria na histria brasileira, constituem a face permanente do mercado de trabalho no assalariado. Estes trabalhadores produzem em casa e vendem direto ao pblico em galerias prximas aos polos de comrcio popular.

    Os subcontratados so trabalhadores na ponta da cadeia, em regime de subordinao a uma empresa, em condies precrias de trabalho e suprimidos dos direitos trabalhistas, sendo submetidos a um regime de estratificao (terceirizao/quarteirizao) extremamente complexo. Este tipo de trabalho domiciliar no recente, mas intensamente reforado pelo processo de reestruturao produtiva das empresas, como reduo do custo do trabalho e transferncia dos riscos do negcio.

    A quantificao de trabalhadores domiciliares, nestas duas situaes ocupacionais (autnomos e subcontratados), entretanto, uma empreitada quase impossvel, com as atuais bases de dados IBGE (PNAD) e DIEESE (PED). H, porm, alguns dados que tangenciam a realidade acompanhada pelo Projeto, que encomendou outra tabulao da PED sobre os trabalhadores subcontratados que moram na regio metropolitana de So Paulo e trabalham na capital no binio 2009-2010. Para o DIEESE, trabalhadores subcontratados so os assalariados contratados em servios tercerizados e autnomos que trabalham para uma empresa. importante destacar que o Poder Judicirio tem adotado outra interpretao, definindo subcontratao como violao das normas trabalhistas,

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    Arquivo Centro Gaspar Garcia. Favela do Moinho, 2011.

    As violaes de direitos, sistemticas e em vrias frentes, que os trabalhadores informais vm sofrendo na cidade de So Paulo no esto descoladas de um processo intenso de segregao socioterritorial que atinge, simultaneamente, outros grupos vulnerveis como catadores de materiais reciclveis, populao em situao de rua, supostos dependentes qumicos, moradores de habitaes precrias, entre outros.

    Se durante dcadas algumas reas da cidade, principalmente a regio central, dotada de infraestrutura consolidada, no foram foco de interesse do setor imobilirio, agora se tornam objeto de estratgias de apropriao por parte do capital. Este processo vem expulsando segmentos pobres dessas regies e provocando violaes de direitos das pessoas em situao de vulnerabilidade socioeconmica.

    Por trs destas violaes existe a imposio de um modelo de cidade promovido a partir da articulao entre Estado e interesses econmicos privados. Busca-se privilegiar determinados setores do capital, impregnados pela repulsa pobreza (que polui, desvaloriza e diminui a rentabilidade dos negcios) e pela defesa da propriedade privada em detrimento da funo social da cidade.

    O papel do Estado decisivo na viabilidade dos processos de segregao, atravs da utilizao de instrumentos que so de seu monoplio, como regulamentao, planificao, uso do aparelho repressor e execuo de obras pblicas. Em cada um dos processos, a prefeitura antecipa-se realizando aes de higienizao social, articulando os setores econmicos diversos (imobilirio, financeiro, vesturio, acessrios, transporte, etc.), e executando obras pblicas para viabilizar um cenrio propcio aos negcios.

    A atuao da prefeitura tem acontecido de forma violenta, sem um processo amplo de participao e controle social e sem a perspectiva de garantia do direito cidade populao que, historicamente, ocupou as reas consolidadas. Ou seja, a ao do Executivo no tem procurado assegurar a todos os habitantes de So Paulo uma distribuio equitativa, universal e democrtica dos recursos, riquezas,

    PARTE IO contexto da segregao socioterritorial dos trabalhadores informais

    A segregao socioterritorial na regio central de So Paulo como continuao do modelo de cidade patrimonialista e excludente

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    Alderon Costa / Rede Rua. Luz, 2012.

    Dados do Censo do IBGE 2010 revelaram que entre 2000 e 2010 a populao que vive em favelas

    cresceu 75%, enquanto a populao brasileira cresceu 12,3%.

    Estes dados evidenciam que o aumento na capacidade de consumo no representa melhora nas

    condies de vida da populao, nem altera a realidade fundiria.

    Apesar do modelo de desenvolvimento urbano patrimonialista e excludente no ser recente, ele tem apresentado novos contornos na cidade de So Paulo. Os processos de segregao, que atingem no somente os trabalhadores informais, mas outros grupos vulnerveis, esto sustentados por questes legtimas para o desenvolvimento urbano. Entre as vrias questes destaca-se: novos investimentos para obras, novas oportunidades de negcios e segurana urbana. No entanto, h uma contradio, pois tais medidas representam retrocessos sociais quando invertem a ordem de prioridade no dispndio de recursos pblicos sem compromisso com a reduo das desigualdades.

    A implementao de uma gesto territorial na cidade, com a utilizao de recursos tanto pblicos como privados para construo de obras virias, requalificao de reas, construo de estdios, transporte para integrao nacional, entre outros, potencializa determinados usos em detrimento de investimentos em saneamento bsico, moradia e transporte pblico. Os resultados dessas intervenes atendem uma nfima minoria, em detrimento de uma grande parcela de pessoas que dependem de polticas pblicas que efetivem o acesso cidade, suas funes, servios e equipamentos. Por outro lado, os empreendimentos recebem vultosos investimentos pblicos, a partir da integrao de setores do capital - incorporadoras, construtoras, bancos privados e pblicos - no circuito das obras.

    Cabe destacar que uma parte dos projetos urbanos em andamento nas cidades est vinculada s metas de programas do Governo Federal, como o PAC (Plano de Acelerao do Crescimento), voltados infraestrutura com grandes obras e tambm para sediar megaeventos internacionais, como a Copa do Mundo de 2014 e a Expo 2020.

    Outra questo que legitima as aes da prefeitura a interveno em reas especficas de interesse do capital para a criao de novas oportunidades de negcios, que alterem os usos e deem novas destinaes a estes espaos, como por exemplo grandes equipamentos culturais, atividades ligadas tecnologia da informao e da comunicao, entre outras. Um exemplo desse processo est ocorrendo nas regies da Luz e a do Brs, onde a prefeitura planejou, a partir de 2009, novas fronteiras imobilirias. Apesar de no terem sido implantadas integralmente, j revelam uma proposta excludente e causam impactos negativos aos trabalhadores informais, como proibio de permanncia nas ruas e intensificao da criminalizao de ambulantes, entre outros grupos afetados.

    Para executar estas obras e projetos, o Estado vem adotando estratgias de cerceamento da participao popular nas decises e utilizando fora militar na gesto urbana para ocupar e controlar

    servios, bens e oportunidades da cidade. O modelo de cidade por trs do processo de higienizao social, que muda o uso e ocupao do solo e implanta um novo cenrio urbano no centro de So Paulo, patrimonialista e excludente.

    Patrimonialismo, para Faoro (2011), a combinao entre concentrao da terra, poder econmico e poder poltico, que estrutura uma sociedade profundamente desigual. Ele se manifesta na captura da esfera pblica e na acumulao de terras e imveis pelos interesses privados e se sustenta, sobretudo, com a contribuio do Estado. O pas manteve este padro patrimonialista tanto na transio de um pas predominantemente rural para um de maioria urbana quanto nos ciclos de crescimento econmico. Assim, a partir dessa matriz que foram construdas e so mantidas as cidades brasileiras.

    Na histria brasileira, a combinao entre a excluso da terra e a dificuldade de insero no mercado de trabalho formal mantm-se indissocivel. A constituio do mercado de trabalho livre no Brasil e a poltica fundiria no foram atos distintos no tempo e na viso do Estado quando instituda a forma de aquisio de terras por meio de compra, substituindo a posse. Essa ao representou a restrio do acesso terra aos ex-escravos e aos imigrantes recm chegados, relegando-os a uma insero subordinada na produo e no acesso propriedade. Os grandes proprietrios os submetiam super explorao da mo de obra em troca do direito de permanecer na terra por meio de salrios irrisrios.

    No Brasil, o processo de modernizao pela industrializao tardia relegou ao segundo plano a realizao de reformas estruturantes que providenciassem a reduo da desigualdade social. Essa opo deixou um legado histrico permanente de concentrao da renda e da terra. Na cidade, a explorao do trabalho e da terra se manifesta na urbanizao com baixos salrios (Maricato, 2011), ou seja, o salrio do trabalhador, mesmo o formal, insuficiente para o acesso terra e moradia adequadas. Como o pas nunca vivenciou um regime de pleno emprego, restou aos trabalhadores formais e informais o acesso tambm informal cidade e moradia.

    Alguns dados atuais so emblemticos da manuteno sistemtica da desigualdade no acesso ao trabalho e cidade. Primeiro, a informalidade ainda parte da realidade de quase metade dos trabalhadores nas regies metropolitanas, atingindo 47,9% (Garcia, Maia, 2011). Segundo, 47,5% dos domiclios brasileiros so considerados inadequados, sem abastecimento de gua por rede, esgotamento sanitrio, coleta de lixo, entre outros aspectos, conforme os dados do Censo de 2010, do IBGE.

    Apesar do ciclo de crescimento econmico registrado na ltima dcada ter melhorado os indicadores de pobreza extrema, o no enfrentamento das causas estruturais da desigualdade social entre elas o aspecto fundirio e tributrio conserva considervel parcela da populao margem da posse da terra e dos direitos trabalhistas. Alm disso, os dados relacionados ao crescimento, sustentados no aumento do PIB e do nmero de empregos com carteira assinada, so utilizados com a inteno de legitimar aes que expulsam ou criminalizam as manifestaes do trabalho informal.

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    Alderon Costa /Rede Rua. Vista do Edifcio So Vito, 2011.

    atravs de remoo e expulso de grupos em situao de vulnerabilidade. A seguir se detalhar como cada uma destas questes foram moldadas em alguns projetos urbansticos em curso na regio central de So Paulo.

    As obras realizadas pelo Estado em parceria com a iniciativa privada so determinantes para a mudana da paisagem urbana e apresentam caractersticas semelhantes nos projetos, com desapropriaes, demolies de imveis, remoes de comunidades, construes de novas vias, aterramento de linha de trem, entre outras medidas. Estas so adotadas sem publicidade dos atos administrativos e sem dilogo com a populao, como se observa, por exemplo, na demolio em 2011 de dois edifcios que eram destinados populao de baixa renda: o Edifcio So Vito, com 700 famlias, e o Mercrio, com 144 famlias. Esse acontecimento, junto com a demolio do viaduto Dirio Popular, na regio do Parque D. Pedro, foi um marco das aes higienistas de grande porte para executar empreendimentos e infraestrutura tursticos, retirando a populao pobre da regio central sem que fosse considerado o direito moradia das pessoas atingidas.

    Outra obra de grande impacto a Operao Urbana Lapa-Brs, que pretende reunir um conjunto de obras virias que alteraria drasticamente a regio: adensamento construtivo a partir da mudana de zoneamento ao longo da linha frrea Lapa-Brs; implementao de um sistema de espaos pblicos atravs da construo de um tnel que enterraria um trecho da linha e articularia o tecido urbano fraturado pelo trem; abertura de novas vias e emisso de ttulos para financiamento das obras pblicas.

    As duas primeiras medidas - adensamento construtivo e construo de um sistema de espaos pblicos serviriam claramente para valorizao dos terrenos dos lanamentos residenciais e comerciais e de seu entorno. No entanto, na combinao dos mecanismos de financeirizao do processo e de retirada do comrcio ambulante dos espaos pblicos que o Estado eliminaria significativamente as barreiras para a reproduo ampliada do capital.

    Esses projetos urbansticos no promovem a gentrificao em massa, uma vez que so permetros muito especficos e circunscritos no territrio, mas se configuram como permetros de exceo com gesto e zoneamento diferenciados do entorno imediato. Para que essas intervenes urbanas isoladas sejam executadas, a legislao flexibilizada para mudar a forma de uso e ocupao do solo no permetro, possibilitando novas atividades, adensamento, novos empreendimentos, etc. O Estado justifica estas mudanas sob alegao de que possibilitaro mistura social e diversificao dos perfis habitacionais, discursos aparentemente democrticos, de promoo do acesso ao tecido urbano, que na prtica ocorrem de forma contrria.

    O simples anncio do conjunto de obras e incentivos fiscais, bem como das aes j realizadas de higienizao social, surte efeito na expulso de grupos populares, alm de valorizao dos imveis e intensificao de lanamentos de empreendimentos imobilirios. O Observatrio de Remoes

    o territrio. A gesto militarizada das questes urbanas, defendida com argumentos de manuteno da ordem e cumprimento das normas, na verdade encobre uma estratgia de vigilncia, opresso e retirada de barreiras para o avano do capital. Tentando justificar aes autoritrias praticadas contra a populao, principalmente grupos em situao de vulnerabilidade, o Estado se utiliza de argumentos de reparao da ordem pblica, criando condies que atendem interesses privados, desviando assim o seu papel de garantir e promover direitos.

    Ao colocar tais questes no centro da agenda sem que aes de compensao e reparao sejam construdas, fica evidente a opo por um modelo poltico e econmico que coaduna com a excluso e injustia sociais, sendo, portanto, um obstculo efetivao de direitos. O resultado dessas aes pblicas voltadas a interesses privados uma configurao socioespacial marcada pelo conflito e pela informalidade.

    Com a aprovao da Lei 10.251 de 2001, o Estatuto da Cidade, um novo marco legal e terico passa a reger as intervenes urbanas, a configurao do territrio, a destinao e o uso da propriedade, instituindo medidas e criando instrumentos com o objetivo de promover uma cidade justa e sustentvel, bem como a superao das desigualdades traduzidas na diviso entre cidade formal e cidade ilegal (Maricato, 1995).

    O Estatuto da Cidade prope outro modelo urbano com a finalidade de democratizar uso, ocupao e posse da terra, o que conferiria uma oportunidade de acesso ao territrio aos grupos que no tm igualdade de condies para atingir esse direito. Alm disso, o Estatuto ratifica os princpios constitucionais de participao e controle social ao regulamentar os instrumentos de gesto democrtica da cidade, como conselhos, audincias pblicas, comisses, iniciativa popular, plebiscito, referendo, e outras formas de identificar e priorizar o interesse pblico e social.

    Os instrumentos para realizao da poltica urbana e da gesto democrtica teriam o objetivo de estabelecer uma mudana nos rumos do desenvolvimento das cidades brasileiras, tentando superar a realidade patrimonialista e de excluso de grande parcela da populao, impedida de acessar os recursos da cidade. No entanto, estes instrumentos foram apropriados pelo mercado para a viabilizao dos seus negcios. No momento de discusso e elaborao do Estatuto, havia a ideia que estes instrumentos reparariam o desequilbrio resultante da urbanizao sem planejamento e excludente, mas o que verificou-se em So Paulo, ao contrrio, que a implementao de alguns instrumentos, como concesses urbansticas e operaes urbanas, ocorreu sobretudo em locais onde existe interesse do capital, o que revela o aparelhamento do Estado para atender aos interesses privados.

    Neste sentido, apesar de o Estatuto da Cidade representar um grande avano normativo, possvel constatar que as aes fragmentadas realizadas na cidade de So Paulo no enfrentam o cerne dos processos de segregao que so estruturantes, principalmente a concentrao fundiria e a apropriao privada de recursos. Para que os princpios e diretrizes da lei se efetivem, imprescindvel o tratamento integrado dos conflitos que se instalam, seja pela necessidade de acesso terra ou pela busca do direito ao trabalho nos espaos pblicos, garantindo, assim, a repartio da cidade na ntegra.

    Na prtica verifica-se que as questes levantadas anteriormente (novos investimentos para obras, novas oportunidades de negcios e segurana urbana) intensificam a segregao socioterritoral,

    O Estatuto da Cidade e as contradies na sua aplicao

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    Luciana Itikawa. Ladeira General Carneiro, 2002. Arquivo Centro Gaspar Garcia, Ladeira General Carneiro, 2012.

    No caso dos trabalhadores ambulantes, desde 2006 a prefeitura vem cassando suas licenas at chegar proibio total, ocorrida em maio de 2012. S do Largo da Concrdia, no Brs, por exemplo, foram expulsos mais de dois mil ambulantes. Aps a remoo dos trabalhadores em 2006, o metro quadrado do terreno no entorno do Largo subiu 422%, de R$331,00 para R$1.728,00, segundo reportagem de O Estado de So Paulo, publicada em 20 de novembro de 2009. Desde ento, espaos em galerias prximas s reas de expulso dos ambulantes aumentaram seus aluguis e luvas, com valores que chegam a ser superiores a muitos bairros ricos.

    Para os trabalhadores domiciliares, morar e trabalhar no mesmo imvel no Centro tem uma relao ambgua de custo-benefcio: de um lado, a proximidade com os polos de comrcio popular impregna um maior dinamismo na absoro da demanda e na canalizao da produo domiciliar, bem como significa reduo do tempo e do valor do deslocamento, por outro, os valores de locao so muito elevados, comprometendo a maior parte da renda familiar. Grande parte dos trabalhadores domiciliares imigrantes que tentam permanecer no Centro, como o contexto acompanhados pelo Projeto, no tm outra alternativa se no a submisso moradia precria: favelas, ocupaes e cortios, em espaos cada vez mais reduzidos e multifamiliares.

    Os trabalhadores informais domiciliares que vendem diretamente ao pblico so duplamente espoliados no preo da terra. Alm do valor altssimo do metro quadrado do espao de produo-moradia, ainda h o nus do aluguel dos locais onde vendida a produo domiciliar. Esta venda geralmente ocorre nas galerias prximas ao polos de comrcio popular que compem o Circuito de Compras (rea que abrange o Ptio do Pari, Brs, 25 de Maro, Bom Retiro e Santa Ifignia), junto com os trabalhadores ambulantes que foram cassados pela prefeitura.

    Em suma, para os trabalhadores ambulantes, os efeitos da segregao socioterritorial acima descritos se manifestam por meio de proibio das atividades e expulso dos espaos pblicos,

    da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP levantou, em agosto de 2012, que a populao atingida por remoes foradas ocupa exatamente as reas que recebem, ou nos prximos anos recebero, vultosos investimentos em infraestrutura urbana e novos empreendimentos pblicos e privados na cidade de So Paulo.

    Os instrumentos urbansticos, diferentemente de como foram pensados no Estatuto da Cidade, tm sido implantados na cidade de So Paulo priorizando interesses privados e especulao imobiliria, deixando em segundo plano os empreendimentos sociais que correm o risco de serem inviabilizados pela supervalorizao da terra, aumentando os conflitos e as disputas sociais. Esses projetos urbansticos demonstram serem instrumentos da apropriao privada a partir da valorizao gerada dos investimentos pblicos. Entretanto, cada um possui mecanismos muito particulares de segregao.

    O projeto do Centro Popular de Compras, no Ptio do Pari, exemplar na forma como a prefeitura articulou capital pblico e privado para futura viabilizao de um empreendimento que, apesar de ter fachada popular, tem todas as caractersticas de um projeto financeiro-imobilirio. Este envolve terra pblica (da Unio); financiamento pblico (via BNDES) do empreendimento, estimado em R$300 milhes; estudo de viabilidade de empresa privada (com custo de R$7 milhes), cujos acionistas so os principais bancos privados e pblicos; e gesto do empreendimento no formato Parceria Pblico-Privada (PPP). O projeto e o processo de transio da rea no tm passado por consulta aos trabalhadores que j atuam dentro e fora da Feira da Madrugada, localizada no Ptio do Pari. A tese investimentos pblicos e ganhos privados parece aqui ser regra.

    Outra forma de captura dos investimentos pblicos por agentes privados fica evidente no projeto da Operao Urbana Lapa-Brs. A prefeitura planeja inaugurar na regio central a lgica especulativa da compra do potencial construtivo adicional (solo criado) j utilizada em outras operaes urbanas na regio sudoeste da cidade, pretendendo com a venda de ttulos - os Certificados de Potencial Adicional Construtivo (CEPACs) - o financiamento a curto prazo de obras pblicas. O instrumento anterior de venda adicional de potencial construtivo, a Outorga Onerosa, comprovou-se lento e no rentvel o suficiente para o Poder Pblico utiliz-lo, da a opo pelo CEPAC, como ttulo alavancvel a ser especulado na Bolsa de Valores. O problema da financeirizao deste solo extra que os recursos s podem ser aplicados na prpria regio onde est o foco de interesses do mercado, retroalimentando a valorizao da terra e, consequentemente, expulsando os grupos populares.

    Todas estas aes tm como objetivo retomar o territrio vivido pela populao de baixa renda e destin-lo ao mercado imobilirio e especuladores, adotando medidas violentas de fiscalizao, controle e represso para realizar essa higienizao social nas reas em valorizao. Remoo e expulso de grupos vulnerveis, nesse sentido, so algumas das primeiras aes na viabilizao de possveis novas fronteiras imobilirias.

    Na prtica, desde 2009 a prefeitura tem empreendido uma verdadeira operao de higienizao social no centro de So Paulo, atravs de aes concomitantes de proibio, expulso, criminalizao e perseguio de grupos vulnerveis.

    Aspectos da segregao em duas categorias de trabalhadores informais

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    Marc Ferrez. Garrafeiros, 1899. Acervo Instituto Moreira Salles.

    cancelamento ou manipulao pelo Estado dos canais de participao e controle social e falta de perspectiva de incluso do comrcio ambulante no planejamento urbano, o que possibilitaria elaborar polticas pblicas que assegurassem a continuidade dessa atividade.

    Em relao aos trabalhadores domiciliares, a segregao fica evidente na precarizao da moradia, seja na regio central ou na periferia, no preo do metro quadrado dos aluguis das oficinas/moradias superiores ao dos bairros ricos, na estruturao de um sistema espoliador de sublocao ilegal dos espaos de venda prximos aos polos de comrcio populares, entre outras questes, conforme est detalhado a seguir nas violaes.

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    Arquivo Centro Gaspar Garcia. Remoo de ambulante no Jabaquara, 2012.

    Eles mesmos fazem, eles mesmos decidem e eles mesmos julgam.

    S., ambulante da Praa na Repblica

    Ao completar vinte anos da ratificao do Pacto Internacional sobre Direitos Econmicos, Sociais e Culturais pelo Brasil e vinte e quatro anos da Constituio Federal, faz-se necessria uma avaliao sobre a aplicao do ordenamento jurdico no contexto nacional e das aes pblicas na perspectiva do trabalhador informal na cidade de So Paulo.

    Os avanos legais que reconhecem os direitos fundamentais e os novos direitos so resultados do processo de articulao de diversos segmentos que atuaram pela redemocratizao do pas, buscando assegurar na legislao a responsabilidade do Estado na promoo da justia social. Contudo, como j apontado, problemas estruturais da sociedade so determinantes na inviabilizao dos direitos humanos no Brasil, uma vez que aliceram a desigualdade social.

    possvel afirmar que existe um abismo entre a atuao do Estado e o marco legal e terico progressista de proteo e garantia dos direitos humanos econmicos, sociais, culturais e ambientais (DHESCAs). Ao mesmo tempo em que o Brasil alcana projeo internacional como defensor e garantidor desses direitos, seu territrio abriga toda forma de contradies na gesto dos conflitos urbanos.

    A violncia institucional e a atuao de milcias intensificam a poltica de criminalizao de atividades e manifestaes sociais, perseguindo grupos em situao de vulnerabilidade como trabalhadores informais, populao em situao de rua, moradores de ocupaes irregulares, catadores de materiais reciclveis, entre outros, conforme exposto no captulo anterior. A So Paulo moderna, abastada de servios e variadas opes de lazer e consumo em patamares internacionais, possui um avesso excludente e predatrio, com milhares de pessoas vivendo em condies desumanas, sujeitas a violaes e negaes de direitos de toda ordem. justamente para contrapor essa lgica e dar visibilidade s mltiplas violncias praticadas contra os trabalhadores que este Dossi vem a pblico.

    PARTE IIViolaes de direitos dos trabalhadores informais

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    Alderon Costa /Rede Rua. Santa Efignia, 2012.

    Art. 5 da Constituio Federal:

    Todos so iguais perante a lei, sem distino de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros

    e aos estrangeiros residentes no Pas a inviolabilidade do direito vida, liberdade, igualdade,

    segurana e propriedade, nos termos seguintes: (...)

    XIII - livre o exerccio de qualquer trabalho, ofcio ou profisso, atendidas as qualificaes

    profissionais que a lei estabelecer;

    1 - As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais tm aplicao imediata.

    2 - Os direitos e garantias expressos nesta Constituio no excluem outros decorrentes do

    regime e dos princpios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a Repblica

    Federativa do Brasil seja parte.

    Carta Mundial pelo Direito Cidade

    Artigo XV. Direito ao trabalho:

    4. As cidades promovero em igual acesso das mulheres ao trabalho mediante a criao de

    creches e outras medidas, e para as pessoas portadoras de necessidades especiais mediante

    a implementao de equipamentos apropriados. Para melhorar as condies de emprego,

    as cidades estabelecero programas de melhoria de habitaes urbanas utilizadas por

    mulheres chefes de famlia e grupos vulnerveis como espaos de trabalho. As cidades se

    comprometem a promover a integrao progressiva do comercio informal que realizam as

    pessoas com pouca renda ou desempregadas, evitando a eliminao e disposio de espaos

    para o exerccio de polticas adequadas para sua incorporao na economia urbana.

    Ainda no ttulo da Ordem Econmica e Financeira da Constituio h um captulo que dispe sobre a Poltica Urbana (artigos 182 e 183), que trata do desenvolvimento urbano como atribuio do municpio. As aes municipais devero ter como objetivo, segundo o texto, ordenar o pleno desenvolvimento das funes sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.

    Ao trazer estas questes de desenvolvimento urbano e trabalho como constituintes da ordem econmica do pas, a Constituio determina que as intervenes do Estado deveriam ser capazes de equilibrar as relaes de poder e socializar direitos econmicos e sociais como trabalho, acesso terra, entre outros. Assim, o Estado tem o papel de regular e controlar os diversos interesses existentes na sociedade, respeitando o interesse privado, mas garantindo a prevalncia do interesse social.

    Apesar dos avanos legais previstos na Constituio, estes no foram suficientes para efetivar a funo social da cidade e da propriedade. Passada mais de uma dcada, segmentos da sociedade civil e do Estado articularam uma proposta de regulamentao da poltica urbana, aprovando em 2001, o Estatuto da Cidade. Este marco legal trouxe mecanismos para a redistribuio da riqueza e, tambm, instrumentos que efetivam o direito cidade por meio do acesso equitativo ao trabalho, moradia, sade, educao, transporte, entre outros, de forma coesa e integrada.

    Concomitantemente aprovao do Estatuto da Cidade, a Carta Mundial pelo Direito Cidade, aprovada em 2001 no I Frum Social Mundial em Porto Alegre, tornou-se um marco legal internacional com seus fundamentos discutidos e defendidos a partir das contradies e desigualdades urbanas.

    Uma poltica de afirmao de direitos precisa superar a atuao do Estado, que se manifesta por meio da execuo de polticas fragmentadas, sem uma viso da sobreposio das violaes, e tambm de forma contraditria, de um lado protegendo o trabalhador, de outro, criminalizando-o. Entende-se aqui Estado compreendendo as trs esferas oficiais de poder: Executivo, Legislativo e Judicirio. Em vrios casos, enquanto o Executivo delibera a poltica de expulso, o Legislativo incentiva prticas clientelistas e o Judicirio se omite na apreciao de conflitos sociais desencadeados pela violao de direitos e pelas prticas de atos ilegais.

    A Constituio Federal de 1988 foi elaborada em um momento de anseios populares pela redemocratizao do pas, com o objetivo de assegurar liberdades e garantias fundamentais aps um longo perodo de regimes autoritrios e militares. O momento era de efervescncia dos movimentos sociais, populares e estudantis, das atuaes pela democratizao de instituies pblicas como Ministrio Pblico e universidades, e de mobilizao social como foi, por exemplo, a campanha Diretas J!.

    O texto constitucional representa, em teoria, avanos para a construo do Estado Democrtico de Direito, garantindo no apenas direitos econmicos, sociais, polticos, culturais e ambientais, como tambm determinando o papel estatal na efetivao destes direitos por meio de polticas pblicas. Para garantir a viabilizao das aes, houve preocupao com a definio de competncias, responsabilidades e atribuies do Estado, de modo que fossem possveis acompanhamento, participao e controle por parte da populao.

    Entre as conquistas previstas na Constituio est a criao do ttulo da Ordem Econmica e Financeira, que reafirma os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. Isso significa dizer que a realizao do trabalho imprescindvel para a vida social e para assegurar uma existncia digna, de modo que os sujeitos tenham condies de garantir o mnimo existencial para si e para o coletivo. Alm disso, assegura a realizao de qualquer atividade econmica desta forma, o cerceamento de qualquer forma lcita de trabalho atenta contra a prpria ordem econmica do pas.

    Os avanos legais na Constituio Federal e no Estatuto da Cidade

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    Nick Story. Ocupao Mau, 2012.

    Pacto Internacional dos Direitos Econmicos, Sociais e Culturais (PIDESC)

    Artigo 6.

    1. Os Estados Partes no presente Pacto reconhecem o direito ao trabalho, que compreende o

    direito que tm todas as pessoas de assegurar a possibilidade de ganhar a sua vida por meio de

    um trabalho livremente escolhido ou aceite, e tomaro medidas apropriadas para salvaguardar

    esse direito.

    2. As medidas que cada um dos Estados Partes no presente Pacto tomar com vista assegurando

    pleno exerccio deste direito devem incluir programas de orientao tcnica e profissional, a

    elaborao de polticas e de tcnicas capazes de garantir um desenvolvimento econmico,

    social e cultural constante e um pleno emprego produtivo em condies que garantam o gozo

    das liberdades polticas e econmicas fundamentais de cada indivduo.

    O direito ao trabalho constitui-se como direito humano expresso na Declarao Universal dos Direitos Humanos e no Pacto Internacional dos Direitos Econmicos, Sociais e Culturais (PIDESC), ratificado pela Repblica Brasileira e includo na Constituio de 1988. O PIDESC estabelece que as pessoas tm direito de assegurar a possibilidade de garantir seu sustento por meio de um trabalho livremente escolhido, cabendo aos Estados Parte adotar medidas apropriadas para salvaguard-lo. Com essa mesma finalidade, a Constituio Federal determina que pactos, acordos e tratados internacionais tero natureza de emenda constitucional, com o pas podendo ser responsabilizado por descumprimento de compromisso assumido internacionalmente.

    A existncia do direito ao trabalho na Constituio como um direito social, entretanto, no tem garantido a universalizao do acesso ao emprego formal e de condies adequadas no ambiente de trabalho. Alm disso, este direito tambm um meio para que outros sejam alcanados. Assim, se o pleno emprego nunca foi uma realidade do mercado de trabalho brasileiro, so necessrios esforos efetivos do Estado para garantir proteo social, moradia, seguro-desemprego, entre outros.

    A Organizao Internacional do Trabalho (OIT), na perspectiva de enfrentamento das transformaes perversas e supressoras de direitos no mundo do trabalho, lanou a Agenda do Trabalho Decente para cobrar a responsabilidade do Estado, das empresas e das organizaes dos trabalhadores na afirmao dos direitos fundamentais laborais. Questes como criao de emprego de qualidade para homens e mulheres, extenso da proteo social, promoo e fortalecimento do dilogo social e respeito aos princpios e direitos fundamentais do trabalho, so pontos principais desta Agenda.

    Estes parmetros constam internacionalmente na Declarao dos Direitos e Princpios Fundamentais no Trabalho e foram incorporados pelo Brasil por meio de planos e programas como o Plano Nacional de Erradicao do Trabalho Infantil, o Plano Nacional de Erradicao do Trabalho Escravo e o Programa de Fortalecimento Institucional para Igualdade de Gnero e Raa. Embora a Declarao Universal dos Direitos Humanos, o PIDESC, a Agenda do Trabalho

    O direito de acesso terra e ao territrio como expresses da funo social da cidade se configuram como direitos difusos, que abrangem toda a sociedade. Entretanto, o direito cidade no se trata apenas do acesso s infraestruturas urbanas, mas tambm do direito de transformar o urbano na direo de cidades mais justas socialmente. O conceito de justia urbana, por sua vez, significa democratizar uso, ocupao e posse da terra de modo a conferir iguais oportunidades de acesso ao solo urbano e promover a justa distribuio dos benefcios e resultados das intervenes urbanas.

    A Constituio Federal, o Estatuto da Cidade e o Plano Diretor estabelecem que a participao popular fundamental na construo de polticas pblicas e na definio das prioridades em investimentos das aes voltadas ao desenvolvimento territorial. Em diversos mbitos, a participao dos sujeitos na transformao das suas condies uma premissa que deve ser respeitada pelo Estado. Tais previses legais so fundamentais no mbito do trabalho informal, uma vez que persiste o abismo entre os direitos normatizados e a conduta do Estado.

    Trabalhadores informais: cotidiano de violaes de direitos

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    Alderon Costa /Rede Rua. Brs, 2011. Luciana Itikawa. Praa da Repblica, 2002. Feira de Artesanato com barracas padronizadas.

    Ambulantes sem planejamento.

    O ambulante s uma ponta. Muitos pequenos produtores dependem dele para conseguir

    distribuir suas mercadorias. Tem muitos ambulantes que so pequenos produtores e que se no

    tm o ponto para vender param toda uma cadeia. Enfim, tem muita gente que produz tambm,

    e eu acho que isso importante, porque existe todo esse discurso da prefeitura no sentido de

    criminalizar. Tem muita gente que est s tentando distribuir suas mercadorias, que produz base

    do trabalho familiar, acho que isso importante de considerar.

    Carlos Freire, pesquisador

    O comrcio ambulante regulamentado pela Lei Municipal 11.039, de 1991, e pelo Decreto 42.600, de 2002. Os procedimentos relacionados atividade, entre infraes, multas e fiscalizao, so fixados por meio de outras leis municipais e portarias como a Lei 11.111, de 1991, a Lei 13.866 de 2004 e a Portaria 18 de 2004.

    Em termos gerais, estas normas estabelecem que podem exercer comrcio ambulante pessoas fsicas, de forma autnoma ou por meio de relao de emprego, desde que exeram atividade lcita e sejam autorizadas pela prefeitura. Aqueles que tiverem autorizao devero portar o Termo de Permisso de Uso (TPU), notas fiscais de mercadorias e ter as taxas (preo pblico cobrado trimestralmente) quitadas. Tambm ficam estabelecidas cotas para pessoas com deficincia fsica, idosas e egressas do sistema penitencirio, alm de permisso para os fisicamente capazes.

    A legislao apresenta um rol taxativo de infraes que sero passveis de multa a ser determinada pela Administrao, podendo chegar at a cassao da Permisso de Uso. Ainda esto previstas a contratao, previamente autorizada pela prefeitura, de auxiliares para trabalhadores com deficincia fsica e idosos, a instituio de Comisses Permanentes de Ambulantes (CPAs) e disposies sobre equipamentos, bolses de comrcio e outras questes. O Decreto de 2002 refora a regulamentao do comrcio ambulante, dispondo, ainda que brevemente, sobre o espao de participao dos trabalhadores nas tomadas de decises, a CPA, cujas atribuies e competncias so objeto de portaria posterior. Em sua proposta original, a CPA um espao consultivo para que

    Decente, a Constituio Federal e o Plano Diretor Municipal de So Paulo estabeleam o direito ao trabalho como um direito humano, reconhecendo seu valor social, testemunham-se todos os dias aes deliberadas de perseguio e criminalizao de trabalhadores informais.

    Algumas destas aes excludentes direcionadas a determinadas categorias de trabalhadores informais partem do pressuposto de que so ilegais e que as atividades realizadas devem ser extintas. A forma como o Estado se relaciona com os diversos segmentos da sociedade permite avaliar que h uma tendncia restritiva e repressora aos grupos em situao de vulnerabilidade, enquanto se revela largamente permissiva com a iniciativa privada, desviando o princpio do interesse pblico e flexibilizando normas para atender a determinados grupos econmicos.

    Violaes de direitos de trabalhadores informais ambulantes

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    Eu comecei vendendo com duas garrafinhas de caf e uma bolachinha TUX. Estou

    na rua h vinte anos, mas na verdade estou h trinta anos, porque antes de eu parar de

    ser garonete, eu j fazia isso. Eu trabalhava um perodo e ia com a garrafa em outro

    perodo. Sem carteira registrada mesmo eu estou h vinte anos. Da eu fui indo, indo, indo

    trabalhando. Conquistei toda a minha freguesia com a garrafa de caf e com bolacha TUX.

    Chegou uma poca que eu tive que viajar para dar uma fora para uma amiga que estava

    doente, e foi nessa poca que a Erundina abriu para as licenas. por isso que eu no tenho

    licena, porque depois dela no surgiu mais.

    Eu sempre tive a preferncia de trabalhar noite, eu sempre pensei assim: vou trabalhar

    noite porque eu no atrapalho ningum, eu no atrapalho o comerciante, eu no atrapalho

    a loja de ningum. Mas agora com a poca do Kassab a coisa ficou bem mais complicada, e

    eu falei assim: vou trabalhar de madrugada mesmo. Mas a voc enfrenta tudo e todos em

    cima das suas costas. Tudo que acontece hoje porque tem uma barraquinha de ambulante,

    porque tem um ambulante culpado. H uma diferena muito grande entre voc trabalhar

    noite e de dia. Meus estudos foram parados porque eu no tinha opo. Se voc trabalha

    noite, tem que dormir durante o dia, e pra dormir durante o dia voc encontra o problema

    da sonora da rua, do vizinho, porque o vizinho j dormiu noite, ele no est preocupado

    se voc no dormiu, no tem a lei do silncio para voc que trabalhou noite.

    Agora, em relao minha sade, esses ltimos trs governos bagunaram um

    pouquinho, porque eu ganhei trombose de tanto correr. Voc ta l e de repente voc sa

    correndo e bate perna, bate p, sai perdendo mercadoria. No decorrer dos anos, a gente

    parece que no, mas so doenas do trabalho. Eu passei a ter reumatide. Devido ao fato

    de correr, eu levei um tombo e trinquei a bacia e a coluna, mais esse desespero de corre,

    vem, vai pegar, vai pegar. Mas eu sou uma sobrevivente, estou a criando minha terceira

    gerao, que so minhas netas. E foi com o trabalho de ambulante que eu consegui, mesmo

    sem ter licena.

    Eu peo muito a Deus que os governantes e as pessoas que podem e que tm condies

    criem uma lei que abranja e que compreenda que o ambulante o desenvolvimento da

    cidade, porque mesmo quem tem licena sofre presses. Vrios companheiros j vieram

    a falecer, uns por agresses violentas, outros porque no suportaram o que eu suportei

    nesses trinta anos e perderam suas vidas, por infarto, por perder mercadoria. Porque

    muito duro para um trabalhador que escolhe a profisso de ambulante. Ningum escolhe a

    profisso para ficar rico, escolhe para ser digno, para no fazer nada de errado. O cidado

    trabalhando nessa categoria at hoje sofre diversos tipos de violncia, inclusive depois de

    criar essa operao [Operao Delegada]. Alis, eu no sei de quem foi essa ideia de criar a

    Operao Delegada para pegar trabalhador. Como voc pode criar essa Operao se voc

    tem o direito da criana e do adolescente? Voc tem aquele pai de famlia, aquela me de

    famlia que o arrimo como eu, que sou o chefe da casa. Tenho que voltar para casa, levar

    o po, levar o leite, porque as crianas no vo para escola sem tomar o caf, e de noite

    quando voltar a criana precisa de alimentao, e como este trabalhador pode ser chamado

    de criminoso, de ilegal? Ento qual a soluo? A soluo criar uma lei que abranja a

    todos!.

    V., ambulante na Praa da Repblica

    Desde 2008 a administrao das subprefeituras est sob comando de coronis. Das trinta e uma

    subprefeituras, apenas a de MBoi Mirim continua, no momento da publicao deste Dossi, com

    conduo civil. As operaes militares, com participao de guardas civis, tm sido ostensivas

    em regies valorizadas ou em processo de retomada pelo setor imobilirio, criando cordes de

    isolamento social e delimitando reas onde pessoas em situao de pobreza no podem adentrar.

    Trabalho na Lapa desde 1982. Apesar da licena no ser minha, era do meu marido. At 2003

    eu trabalhei, de l pra c no trabalhei mais, mas no desisti da luta. Mesmo eu no estando

    trabalhando, continuei lutando. Eu acredito que eu no volto mais para a rua, mas no desisto da

    luta e quero ajudar o pessoal. Ns temos que nos encher de unio para que este coletivo [Frum

    dos Trabalhadores Ambulantes da Cidade de So Paulo] continue indo para as polticas pblicas,

    exigindo os direitos que esto l, que so nossos, o direito do trabalhador e que no respeitado.

    E de preferncia no chegar s no municpio, chegar ao presidente, que o direito nosso. Exigir

    que a lei d apoio a tudo, porque ns temos que ter uma secretaria nacional para poder exigir

    um respeito entre ns. Que quando chegar mais um trabalhador ambulante possa existir uma

    vaga. Porque ningum procura isso por beleza, por necessidade, porque a rua no fcil. Eu

    envelheci na rua, perdi metade de uma viso, apanhei muito na rua, sofri oito agresses feias, fui

    participante tambm da CPI das mfias dos fiscais. (...) Eu continuo resistindo, vou chegar aos 90

    anos brigando!.

    E., ambulante na Lapa

    situaes de irregularidade, infraes legais e necessidades de readequao pudessem ser dirimidas com participao dos trabalhadores, alm de ser um local para discusso e encaminhamento de propostas elaboradas pela prefeitura ou pelos trabalhadores.

    O exerccio do comrcio ambulante objeto de entendimentos controversos, alguns reforados na concepo de que as ruas no so espaos para desempenho de atividades econmicas, outros na alegao genrica de que as mercadorias so pirateadas, fruto de falsificao ou contrabando. A associao ilegalidade e o esteretipo criado pela prefeitura e reforado por parte da mdia, so empregados para justificar as crescentes perseguies, ameaas, agresses fsicas, cassaes sumrias de licenas, entre outras formas, que culminam na violao de direitos.

    Dois planos no mbito do governo federal, elaborados pelo Ministrio da Justia, tambm contribuem para a criminalizao dos trabalhadores ambulantes: o plano Cidade Livre de Pirataria e o Feira legal. Alm disso, tais iniciativas no so acompanhadas de medidas educativas, de negociao coletiva e busca de alternativas de comercializao de mercadorias.

    Na ltima administrao da prefeitura de So Paulo (2008-2012), as subprefeituras, que entre outras atribuies fazem gesto e fiscalizao do comrcio ambulante, foram conferidas a militares que atuaram de forma autoritria, levando ao endurecimento, arbitrariedade e ilegalidade de vrios atos praticados contra os trabalhadores.

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    Luciana Itikawa. Centro velho e novo, 2002.

    Vendo salgadinho, refrigerante. Eu compro perto dali numa distribuidora, ou na

    cidade mesmo. Eu trabalho numa banca fixa, umas das poucas que sobrou. Minha vida

    uma loucura, antigamente eu esperava somente pelo meu marido que trabalhava e cuidava

    de tudo, mas da quando ele ficou doente e tomou veneno, perdeu tudo em jogo. Da ele

    no sabe mais controlar nada, eu comecei a aprender, eu compro, dou um cheque para

    segurar 14 dias, compro no carto, eu pago a luz, pago a gua, telefone, essas coisas e vou

    levando assim.

    Eu fico muito tempo em p, para ir ao banheiro eu vou correndo. Eu no vou toda hora,

    s mesmo quando no d mais para agentar. Porque meu marido o dono da TPU, mas

    se ele ficar l ele no sabe nem responder o que est acontecendo, ele no acha nem o

    documento na hora que a polcia chegar. Ento eu trabalho mais, comprar, vender, ele est

    ali s pelo TPU.

    Eu passei por uma situao semana passada, que o policial pediu os documentos e

    quando ele foi entregar para meu marido, que j velho, tem 60 e poucos anos, est com

    problema de memria, essas coisas, e a ele foi, olhou os documentos, jogou no cho

    e disse: recolhe isso que est aqui logo, que eu vou vir e mandar recolher. Eu estava

    guardando as coisas, porque eu tinha feito compra. Porque se eu fao compra, no tem

    uma pessoa pra entregar e j guardar, eu tenho que ir encaixando. O policial chegou justo

    nesse horrio, tirou uma foto do TPU do meu marido, no sei pra qu. Porque eu acho que

    ele deveria ter tirado foto das compras que estavam ali fora, aquilo ali eu fiquei muito...

    Olha, meu emocional abalou. Ento eu desejaria que a gente fosse reconhecido como um

    pequeno empreendedor, porque a gente paga imposto, anda em dia, no vende e no mexe

    com coisas proibidas. Ento nesses ltimos tempos meu emocional est abalado, a gente

    fica doente. O perigo ter um infarto, no dia que esse policial chegou, no sei o que houve

    com ele para ele chegar naquela violncia.

    Num outro dia, eu fui fazer um piso na minha barraquinha, ento eu joguei tudo para

    fora, porque que horas eu vou fazer isso? A eu fui fazer o piso e chegou um policial, deu

    a mo para mim, cumprimentou e brincou. Eu disse que estava muito cansada fazendo o

    piso, ento um [policial] recompensa pelo o que o outro fez, mas mesmo assim eu passei

    muito mal, pensei que eu ia ter um infarto, dor no peito, dor nas costas, uma dor de cabea

    terrvel.

    Na idade que eu estou no sei mais o que fazer. No pago INSS, ento no sei como

    que fica se eu ficar doente. A minha casa tem infiltrao, tem parede descascando, tem

    porto podre. Nesses ltimos tempos desse prefeito foi o pior tempo que a gente passou,

    no sobra nada, no d para trabalhar direito, ento est tudo parado.

    Eu gostaria que a prefeitura deixasse a gente trabalhar, j que com TPU, a gente paga

    imposto. E vamos supor se meu marido no pudesse vir (que de vez em quando d um ll

    nele e ele quer ficar na cama e no quer se tratar, ele teve depresso) que eu pudesse ficar.

    um TPU, eu pago, ento poderia eu ficar? isso que eu gostaria.

    G., ambulante no Jabaquara

    Como j mencionado, o grande nmero de pessoas que atua no comrcio ambulante na cidade de So Paulo (138 mil, segundo dados da PED do DIEESE, 2010-2011) refora a relevncia social da atividade. O nmero nfimo de pessoas (3,7%) que possuem o TPU para trabalhar nas ruas e bolses de comrcio reflete a existncia de um regime de exceo imposto e a ausncia de tratamento impessoal pela prefeitura.

    A falta de planejamento urbano e econmico para a integrao dos 138 mil ambulantes na cidade deixa a maioria dos trabalhadores vulnerveis violncia institucional e s prticas corruptas de grupos que negociam ilegalmente o acesso a um espao na cidade. A permisso de uso, alm de agravar o acirramento da disputa entre trabalhadores com e sem licena, intensifica a situao de insegurana e vulnerabilidade dos trabalhadores. O Direito Administrativo caracteriza este instrumento como sendo de natureza precria, ou seja, ato administrativo discricionrio que pode ser extinto unilateralmente pelo Estado. No entanto, essas caractersticas no justificam a arbitrariedade dos atos, que devem ser praticados com o cumprimento dos princpios que regem a administrao como impessoalidade, moralidade, legalidade, publicidade, entre outros.

    Direito ao trabalho

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    Juliana Avanci. Ato do Frum dos Ambulantes, Frente do Tribunal de Justia de SP, 2012.

    Art 5 da Constituio Federal:

    (...)

    LIV. ningum ser privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;

    LIV. aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral so assegurados o contraditrio e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.

    Art. 37. Constituio Federal:

    A administrao pblica direta e indireta de qualquer dos Poderes da Unio, dos Estados, do

    Distrito Federal e dos Municpios obedecer aos princpios de legalidade, impessoalidade,

    moralidade, publicidade e eficincia e, tambm, ao seguinte:

    3 A lei disciplinar as formas de participao do usurio na administrao pblica direta e

    indireta, regulando especialmente:

    I. as reclamaes relativas prestao dos servios pblicos em geral, asseguradas a

    manuteno de servios de atendimento ao usurio e a avaliao peridica, externa e interna,

    da qualidade dos servios;

    II. o acesso dos usurios a registros administrativos e a informaes sobre atos de governo,

    observado o disposto no art. 5, X e XXXIII;

    III. a disciplina da representao contra o exerccio negligente ou abusivo de cargo, emprego ou

    funo na administrao pblica.

    A consolidao do Estado Democrtico de Direito, respaldado pela Constituio Federal, impe um novo conceito atuao estatal, sob uma dimenso que procura superar os papis repressor e controlador vivenciados em governos militares e autoritrios ao instituir como princpios o contraditrio e o direito defesa. Com efeito, o processo de retirada dos ambulantes das ruas e bolses de comrcio transcorre sem que os trabalhadores tenham a oportunidade de constituir defensores, apresentar suas verses dos fatos e demonstrar a configurao de seus direitos, sem mencionar que muitos perdem a licena sem que sejam previamente notificados ou tenham incorrido em multa.

    Considerando os princpios e as garantias que regem os processos judiciais e administrativos brasileiros, podemos afirmar que as intervenes somente so efetivas e justas quando fundamentadas legalmente e asseguram aos envolvidos todos os meios de defesa. Neste sentido, entende-se que o direito de defesa uma proteo ao indivduo, permitindo a plenitude de se defender no aspecto formal, com acompanhamento tcnico, acesso ao processo, conhecimento do que est sendo acusado, possibilidade de produzir provas e de ter recurso analisado por comisso ou coletivo, entre outros.

    Os conflitos levados apreciao do Poder Judicirio enfrentaram posicionamentos diversos, porm, a maioria das decises referendou a arbitrariedade da prefeitura na remoo forada dos trabalhadores sem que alternativas fossem construdas. Grande parte das aes judiciais julgadas sobre essa matria tomou por base Mandados de Segurana, medida judicial cabvel para pedir mediao do Judicirio em decises autoritrias, infundadas ou arbitrrias tomadas pela prefeitura.

    Desde 2007 a emisso de novos TPUs proibida por meio de Portaria (32/SMSP/2007), ato que tem sido renovado anualmente. Segundo informaes da prefeitura, entre 2010 e 2012 foram cassados 1.224 TPUs e revogados 3.913. Alm disso em 2012, por meio de Decretos, a prefeitura revogou todos os bolses de comrcio da cidade.

    As revogaes, cassaes e extines de pontos de comrcio realizadas pela prefeitura desde 2009 apresentam graves descumprimentos das normas municipais, como, por exemplo, a punio dos ambulantes pela inadequao na localizao dos pontos, quando a prpria prefeitura que fixa os locais. So inmeros relatos de pessoas que sofrem abusos diariamente at o aviso final que a cassao do TPU e confisco de mercadoria sem a observncia de determinaes da legislao como prazo, apreenso, entre outros. No caso dos trabalhadores sem TPU, a violncia e os abusos so muito piores, envolvendo agresso fsica e moral, alm de extorso e ameaas. As razes apontadas pela prefeitura extrapolam o razovel e o legal, revelando despreparo e discriminao que apontam para a inteno da municipalidade em exterminar a categoria de trabalhadores ambulantes.

    Os trabalhadores ambulantes enfrentam, diariamente, mtodos questionveis por parte dos agentes pblicos que os submetem a condies desumanas e torturantes. Como exemplo disso, diversos relatos apontam aes destes agentes: subtraem e rasgam documentos, simulam situaes ao alegar ausncia do trabalhador do ponto de comrcio quando estes vo ao banheiro, possuem urgncia ou consulta mdica ou, ainda, alegam no ser permitido aos trabalhadores utilizar guarda-chuva ou guarda-sol para se protegerem e, em situaes extremas, se utilizam de ameaas e violncia fsica.

    A aplicao de cassaes ocorreu sem observar gradao e etapas das penalidades, impossibilitando a defesa dos trabalhadores. Justificativas como desobstruo de vias pblicas para propiciar o acesso de viaturas, aumento do campo de viso para melhoria do policiamento e necessidade de melhoria da limpeza urbana, foram apresentadas repetidamente em todas as subprefeituras de So Paulo. No entanto, no foram apresentados quaisquer planos, estudos ou anlises que respaldem tais decises, pelo contrrio, a atividade foi cancelada at mesmo nos locais historicamente destinados atividade. Em nenhum momento foi mencionado o interesse pblico em garantir o direito social ao trabalho.

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    rmais Alderon Costa /Rede Rua. Brs, 2011.

    Vim do nordeste com muita luta e cheguei nessa cidade contribuindo. A minha bagagem

    a luta que caminha para a vitria, para a conquista dos direitos. Eu vi muitas dores, vi muito

    choro, vi muitos companheiros morrer de desgosto, isso me d uma fora, me d uma coragem.

    A minha famlia principalmente, porque a minha famlia a razo, quando eu sou abordada pelos

    fiscais ou condenada socialmente por ser ilegal eu me lembro da minha famlia que est em casa

    e precisa do sustento. Eu sou a rvore dessa famlia e no posso desistir.

    V, ambulante na Praa da Repblica

    No tenho outro meio de sobrevivncia,

    no sou aposentado, como deficiente

    preciso sobreviver. A nica soluo seria

    essa de viver como ambulante.

    C, ambulante no Brs - entrevista TVT

    Eu sou um ambulante, trabalho com Bblia. Bblia sagrada, material sagrado, comprado na

    Rua Conde Sarzedas, com nota fiscal, no nota passada mo, nota pelo computador. Prenderam

    minhas bblias l na Avenida do Estado, apresentei a nota fiscal, mas eles no me respeitaram

    a nota. Mandaram que eu fosse para a prefeitura da Mooca. Cheguei na prefeitura da Mooca,

    levantou um outro processo, fui no banco, paguei R$14, levantaram um outro processo, veio a

    multa, eu paguei essa outra multa de R$93, apresentei a multa l pro chefe da delegacia da Mooca,

    ele falou assim para mim: o seguinte, a sua mercadoria no vai ser entregue porque voc pagou

    uma multa muito baixa. Eu falei: meu chefe, essa multa foram vocs que me fizeram, t aqui, t

    aqui. Essa multa est comigo na minha casa, posso mostrar para qualquer rgo pblico. Ento

    no me entregaram, e falaram quem passou essa multa para voc, passou uma multa muito baixa

    e voc vai ter que pagar uma outra multa se quiser retirar sua mercadoria.

    F, ambulante no Brs

    No justo, o que a gente vai comer? Essas famlias vo viver do qu? So pessoas deficientes

    fsicas, sexagenrias, capacidade reduzida, pessoas de idade e a maioria analfabeta. Ento eles

    precisam de soluo, no de esmola pra ningum. Ns precisamos do direito nosso de trabalhar.

    V., ambulante no Brs - entrevista TVT

    condies de trabalho como, por exemplo: exposio s intempries resulta em prejuzos sade, como problemas respiratrios, de pele, entre outros; falta de planejamento dos pontos de comrcio gera riscos segurana, expondo-os a acidentes; perseguies policiais desencadeiam questes relacionadas ao estresse, como alteraes na presso arterial e problemas cardiovasculares.

    Reconhecer a atividade do trabalhador ambulante vai alm da destinao de espaos de venda, passa tambm pela elaborao e consolidao de um meio ambiente de trabalho adequado e seguro, dilogo e negociao constantes e polticas de proteo social voltadas s especificidades desses trabalhadores.

    O Brasil um dos pases que tem declarado internacionalmente ter preocupao com os princpios da Agenda do Trabalho Decente, sendo que um deles a erradicao de qualquer forma de discriminao em matria de emprego e ocupao. Quando o Estado relaciona o comrcio ambulante pirataria e ao contrabando, atribuindo a condio de ilegais queles que no possuem licena para exercer a atividade, institui estereotipo que criminaliza os trabalhadores e configura conduta discriminatria.

    Somente aps fortes oposies e manifestaes dos trabalhadores e de alguns movimentos sociais depois do anncio da proibio do comrcio ambulante na cidade, a prefeitura passou a declarar que existiriam alguns projetos de realocao e insero no mercado formal. Porm, tais alternativas apresentadas no continham qualquer demonstrao de viabilidade e exequibilidade. Um exemplo apresentado, desrespeitoso e humilhante, foi o oferecimento de vaga como guia de travessa de pedestres aos deficientes visuais.

    A violncia institucional imposta sobre os trabalhadores ameaa a sobrevivncia de milhares de pessoas que dependem do comrcio ambulante direta ou indiretamente. Ao determinar a remoo forada dos trabalhadores sem que alternativas sejam planejadas para reassentamento ou realocao, a prefeitura age diretamente na extino de uma categoria reconhecida legalmente. Este contexto instaurou graves conflitos sociais e tornou imprescindvel a interveno de rgos de proteo aos direitos fundamentais individuais ou coletivos, bem como daqueles que devem zelar pelos direitos difusos ameaados, como a Defensoria Pblica e o Ministrio Pblico do Estado.

    A inteno declarada da prefeitura de extinguir o comrcio ambulante levou propositura de Ao Civil Pblica pelo Centro Gaspar Garcia e pela Defensoria Pblica do Estado em junho de 2012. Essa ao tinha o objetivo de obter a declarao de nulidade de todos os procedimentos administrativos em razo de descumprimento dos princpios contidos na lei especfica. Ademais, exigia a incluso do comrcio ambulante no planejamento urbano, seguindo as diretrizes do Estatuto da Cidade e do Plano Diretor Municipal. Para que os pedidos da ao sejam efetivos e reduzam os danos causados aos trabalhadores at o julgamento, a juza da 5 Vara da Fazenda Pblica de So Paulo concedeu medida liminar que permite o retorno dos ambulantes que tiveram seus TPUs cassados ou revogados em 2012.

    Atualmente, quase a totalidade das licenas est cassada ou revogada na cidade de So Paulo e a minoria dos trabalhadores que permanece nos espaos pblicos, trabalha por fora da deciso liminar da Justia na Ao Civil Pblica. Neste cenrio, os trabalhadores no tm qualquer garantia de continuidade da atividade, comprometendo o cumprimento de patamares mnimos do trabalho decente. Nas diversas atividades realizadas pelo Projeto, como reunies coletivas e atendimentos do Centro de Referncia do Trabalhador Informal, os trabalhadores relataram precariedades nas

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    Luciana Itikawa. Viaduto do Ch, 2002.

    A Operao Delegada um convnio entre Prefeitura de So Paulo e Polcia Militar para que

    os policiais realizem fiscalizao do comrcio ambulante atribuio por lei da Guarda Civil

    Metropolitana nos perodos de folga, o que deu o nome popular de Bico Oficial. O contrato no

    foi tornado pblico, sendo impossvel conhecer seus termos. At 2011 foram gastos 112 milhes

    de reais com a Operao, causando descontentamento aos Guardas Civis que consideram essa

    poltica sucateamento da GCM.

    O governo federal criou, em 2008, o MEI, programa que promete diversos benefcios, entre eles:

    cobertura previdenciria; contratao de um funcionrio com menor custo; iseno de taxas

    para registro da empresa; ausncia de burocracia; acesso a servios bancrios, inclusive crdito;

    compras e vendas em conjunto; reduo da carga tributria; controles muito simplificados; emisso

    de alvar pela internet; facilidade de venda para o governo; servios gratuitos; apoio tcnico do

    SEBRAE na organizao do negcio; segurana jurdica. Contudo, o programa apresenta falhas e o

    acesso no simplificado, pressupondo experincia em gesto de negcio para execut-lo.

    Sou do Tocantins e estou em So Paulo desde 1985, trabalhando nas ruas de So Miguel Paulista

    desde 1991. O meu sonho grande, eu acho que ns temos que avanar muito na organizao, ns

    temos que avanar nos nossos equipamentos, temos que ter melhorias nas condies de trabalho.

    Meu sonho grande, mais para frente a gente, junto com o Frum [dos Trabalhadores Ambulantes

    da Cidade de So Paulo], a gente vai montar uma central dos trabalhadores ambulantes. Meu sonho

    que mais para frente todos tenham o seu TPU e que todos um dia tenham a sua loja, cheguem a

    algum lugar, e no ser ambulante a vida inteira. Acho que todos aqui tm sonhos, tm vontade de

    ter sua loja, o seu local de trabalho, deixar para outros que venham ter direitos de trabalhar na rua.

    A ideia com o tempo sair da rua.

    W, ambulante em So Miguel Paulista

    insegurana aos trabalhadores, uma vez que eles no possuem nenhuma garantia para a continuidade da gerao de renda e para a consolidao do negcio.

    Aqueles que no foram includos na deciso liminar na ao civil pblica e os trabalhadores sem TPU, vendem mercadorias como podem, esticando panos na calada para expor, abordando clientes nas ruas, revezando locais e tentando realizar o trabalho nos perodos de revezamento da Polcia Militar em atividade na Operao Delegada.

    O comrcio ambulante integrado ao planejamento urbano proporcionaria oportunidades de trabalho descentralizadas pela cidade, contribuindo para a reduo das distncias entre moradia e trabalho, diminuindo o tempo de deslocamento e incentivando gerao de trabalho e renda locais. A ausncia de polticas coesas na destinao de espaos para o comrcio popular demonstra o desprezo da gesto pblica pelo desenvolvimento social.

    Da mesma forma, a falta de planejamento urbano sem critrios objetivos que reduzam dficits regionais de emprego, e que no respeitam tradies locais e culturais do comrcio popular, reproduz a lgica que caracteriza cidades desiguais. Tanto a deciso de criao de pontos de comrcio quanto suas extines impactam diretamente nos trabalhadores, nos moradores e na regio, o que obrigaria a aplicao dos instrumentos de participao popular. Ou seja, a alegao de que as decises sobre a revogao de pontos e bolses de comrcio de competncia exclusiva da prefeitura incompatvel com as diretrizes de gesto democrtica e desencadeia graves violaes de direitos.

    Embora a proteo social seja um dos princpios norteadores da Agenda do Trabalho Decente, os programas nacionais direcionados aos trabalhadores ambulantes nem sempre so compatveis com sua realidade socioeconmica. Conforme se constatou por meio do Centro de Referncia do Trabalho Informal, apesar dos trabalhadores ambulantes poderem contribuir como autnomos Previdncia Social, esta alternativa, por exigir uma constncia na contribuio, se torna invivel para a grande maioria deles, uma vez que seus rendimentos so instveis e ou insuficientes.

    Recentemente, o governo federal criou o programa Microempreendedor Individual (MEI) para ampliar a cobertura previdenciria aos trabalhadores autnomos. O programa, que conjuga a formalizao do negcio com a proteo social, prope a reduo da burocracia para a manuteno de pessoa jurdica, porm, na prtica, essa modalidade agrega outros custos que comprometem o acesso ao programa. Alm disso, algumas instncias e rgos entendem que o Microempreendedor pessoa fsica, enquanto outros defendem ser pessoa jurdica. Essa questo coloca em dvida a compatibilidade entre o Programa Nacional e a Lei Municipal que regulamenta o comrcio ambulante (Lei 11.039/91), j que esta estabelece que a atividade s pode ser exercida por pessoa fsica.

    A falta de incluso do comrcio ambulante no planejamento urbano, integrando a atividade s funes sociais da cidade e reconhecendo a importncia da sua dinmica econmica, gera a

    Direito cidade

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    Nick Story. Ocupao Mau, 2012.

    [A cassao dos TPUs pela prefeitura] Pegou a gente, assim, de surpresa. Eu consegui uma

    garagem em Santo Andr. Eu moro em Jabaquara, tive que pagar um transporte pra ir pra uma

    garagem em Santo Andr. E nesse momento esto sendo retiradas as bancas que as pessoas no

    conseguiram lugar, porque no tiveram oportunidade. Eu no tenho condies de alugar um box

    porque ou eu pago o aluguel do box ou eu pago o aluguel da minha casa.

    M. ambulante no Jabaquara - entrevista TVT

    Estatuto da Cidad