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Novas tendências da extensão universitária em Direito: da Assistência à Assessoria Jurídica (Ivan Furmann) Considerações iniciais Escrever sobre o Direito e, em especial, sobre alternativas inovadoras ao uso do Direito mostra-se como tarefa de múltiplas implicações. Primeiramente, reconhecer que se lida com um saber-poder (1) , com a especial função de dominação e controle, desenvolvido na racionalidade moderna. Por mais que se pretenda utilizar o Direito de maneira inovadora e crítica deve-se atentar que: o Direito é um instrumento de dominação social, o principal instrumento de expressão do status quo. Obviamente, refere-se aqui ao Direito numa perspectiva histórica. Trata-se do Direito Europeu Ocidental moderno do qual o Brasil é eminente herdeiro. Não se pretende traçar considerações pormenorizadas sobre a referida afirmação nesse artigo mas apenas se ressalta que o Direito no Brasil é, salvo exceções, instrumento de dominação. (2) Em segundo lugar o Direito é um espaço de luta política. Assumir essa perspectiva revoluciona o cenário jurídico. O Direito não é absoluto. Os direitos são pautados em escolhas políticas. As escolhas políticas podem mudar. Todavia, a mudança das escolhas políticas está necessariamente vinculada a regras para sua mudança, ou seja, em regras de poder. Numa sociedade democrática como a brasileira as regras de poder são pautadas pela razões democráticas. E a própria Democracia, por excelência, só é Democracia quando está aberta a críticas, inovações e aperfeiçoamento. Por fim, o Direito é um espaço de luta hegemônica. O Direito apesar de ser utilizado, via de regra, como instrumento de dominação social pode desenvolver um importante papel na luta contra-hegemônica. O Direito pode ser usado para auferir conquistas políticas importantes para populações oprimidas, através do chamado uso crítico do Direito por operadores jurídicos conscientes do ideário

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Novas tendências da extensão universitária em Direito: da Assistência à Assessoria Jurídica (Ivan Furmann)

Considerações iniciais

Escrever sobre o Direito e, em especial, sobre alternativas inovadoras ao uso do Direito mostra-se como tarefa de múltiplas implicações. Primeiramente, reconhecer que se lida com um saber-poder (1), com a especial função de dominação e controle, desenvolvido na racionalidade moderna. Por mais que se pretenda utilizar o Direito de maneira inovadora e crítica deve-se atentar que: o Direito é um instrumento de dominação social, o principal instrumento de expressão do status quo. Obviamente, refere-se aqui ao Direito numa perspectiva histórica. Trata-se do Direito Europeu Ocidental moderno do qual o Brasil é eminente herdeiro. Não se pretende traçar considerações pormenorizadas sobre a referida afirmação nesse artigo mas apenas se ressalta que o Direito no Brasil é, salvo exceções, instrumento de dominação. (2)

Em segundo lugar o Direito é um espaço de luta política. Assumir essa perspectiva revoluciona o cenário jurídico. O Direito não é absoluto. Os direitos são pautados em escolhas políticas. As escolhas políticas podem mudar. Todavia, a mudança das escolhas políticas está necessariamente vinculada a regras para sua mudança, ou seja, em regras de poder. Numa sociedade democrática como a brasileira as regras de poder são pautadas pela razões democráticas. E a própria Democracia, por excelência, só é Democracia quando está aberta a críticas, inovações e aperfeiçoamento.

Por fim, o Direito é um espaço de luta hegemônica. O Direito apesar de ser utilizado, via de regra, como instrumento de dominação social pode desenvolver um importante papel na luta contra-hegemônica. O Direito pode ser usado para auferir conquistas políticas importantes para populações oprimidas, através do chamado uso crítico do Direito por operadores jurídicos conscientes do ideário político por detrás das regras aparentemente neutras. Mas o Direito também pode servir para uma outra função importante, quiçá mais importante, ele pode servir para desvelar o mundo. O Direito pode servir como meio para retirar o véu da dominação social, desmascarar a sociedade e auxiliar a conscientização da população oprimida, isso ocorre quando expostas suas contradições e revelada sua realidade política. Assim, é possível desenvolver no povo brasileiro algo que lhe é estranho, a experiência democrática através do diálogo político. É sobre esse espaço de luta contra-hegemônico que se pretende dissertar brevemente.

Portanto, o Direito, quando devidamente problematizado, pode torna-se substrato para consciência política e democrática. E como Paulo Freire já dizia: "O problema para nós prossegue, transcende a erradicação do analfabetismo e se situa na necessidade de erradicarmos também a nossa ‘inexperiência democrática’, através de uma educação para a democracia, numa sociedade que se democratiza" (FREIRE, 2001, p. 87).

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O Tripé da Universidade e a Extensão

A expressão ‘extensão’ é utilizada pela Constituição da República para nomear um dos "tripés" fundamentais da Universidade brasileira. (3) Conforme o conceito delineado pelo Fórum Nacional de Pró-Reitores de Extensão de Universidades Públicas Brasileiras: "A extensão universitária é o processo educativo, cultural e científico que articula o ensino e a pesquisa de forma indissociável e viabiliza a relação transformadora entre a universidade e a sociedade" (NOGUEIRA, p. 11). Perceba-se que a extensão foi conceituada, via de regra, pelo Fórum Nacional de Pró-Reitores como processo educativo que articula ensino e pesquisa. Extensão não é um elemento novo dentro da Universidade mas uma maneira de articular ensino e pesquisa. Nesse sentido Paulo Freire já sugeria não apenas a substituição da expressão "extensão" por outra expressão "comunicação" (FREIRE, 1975, passim), mas tentava demonstrar que a extensão é o ato dialogal da Universidade com a sociedade. É o momento em que a universidade conversa com a sociedade.

Nesse sentido, não se estranha que a extensão universitária tenha emergido da perspectiva de responsabilidade social da Universidade. A proposta que estimulou a extensão "(...) se traduziu na crítica do isolamento da universidade, na torre de marfim insensível aos problemas do mundo contemporâneo, apesar de sobre eles ter acumulado conhecimentos sofisticados e certamente utilizáveis na sua resolução" (SANTOS, 2002, p. 100-1).

Contra o objetivo genuíno da responsabilidade social da universidade contrapuseram-se interesses diversos, especialmente os relacionados à formação de uma massa de técnicos especializados para a manutenção da burocracia estatal-social. Esse papel foi assumido de maneira singular pelas Faculdades de Direito no Brasil, desde de suas origens até os dias atuais. (4) Não é difícil observar a falta de comunicação das Faculdades de Direito com a sociedade, em especial, com as classes oprimidas. Sem dúvida, um dos grandes equívocos das Faculdades de Direito é a manutenção de sua postura tecnicista. (5) Assim, "As universidades parecem transformar-se cada vez mais em escolas de profissionais destinadas a produzir funcionários, técnicos em todos os níveis, esquecendo-se de sua missão de formar a inteligência, de promover, inventar e reinventar, a cultura no seio de um mundo que se desfaz e refaz" (JAPIASSU, p. 181).

Parte-se, portanto, da necessidade de renovação das perspectivas sobre a função da universidade. Essa mudança se conjuga com a idéia de extensão enquanto processo educativo e, principalmente, comunicativo. O que se pretende com a extensão não é simplesmente o aperfeiçoamento técnico mas sobretudo a educação para o pleno desenvolvimento da cidadania a partir do diálogo.

Extensão e Pesquisa em Direito

A pesquisa e a extensão são duas atividades que contribuem incisivamente para a superação do paradigma tradicional. "Pesquisa e extensão são ausências injustificáveis no processo do ensinar, ausências que fecham portas à realidade. A volta da escola à rua – a consolidação da união entre ensino, pesquisa e extensão – permite o confronto entre as teorias e o mundo, e permite arejar o discurso do ensino" (CORTIANO JR., p.

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237-8). Enfim, na Universidade é possível a elaboração de novos saberes. Uma nova visão de extensão somente é viável a partir do desenvolvimento de novas teorias sobre o Direito, ultrapassando os limites da dogmática tradicional, ou seja, conciliando a pesquisa e a extensão. Fazendo o saber acadêmico dialogar com a sociedade.

O envolvimento da Universidade no mundo é essencial na construção de um novo paradigma universitário. As Universidades Públicas, em especial, detém o potencial desvelador da mentalidade pública entre os estudantes, (6) qualidade essa que somente o desenvolvimento cultural e cidadão pode proporcionar. Assim, o desenvolvimento cultural e cidadão deve ser uma das prioridades das Universidades, que não podem assumir um papel de centros técnicos superiores. "É necessário imiscuir-se tanto em questões internas vividas pela faculdade, como em questões externas, principalmente aquelas ligadas ao acesso à justiça. Aproxima-se, por um lado, da atividade desempenhada pelos movimentos sociais. Em poucas palavras, politizam-se a entidade e os estudantes. Insere-os na realidade, não como mero espectador, mas como sujeito atuante" (CARVALHO, Lucas, p. 232), vislumbrando aos estudantes novas visões sobre a realidade social. "A ‘abertura ao outro’ é o sentido profundo da democratização da universidade, uma democratização que vai muito além da democratização do acesso à universidade e da permanência nesta. Numa sociedade cuja quantidade e qualidade de vida assenta em configurações cada vez mais complexas de saberes, a legitimidade da universidade só será cumprida quando as atividades, hoje ditas de extensão, se aprofundarem tanto que desapareçam enquanto tais e passem a ser parte integrante das atividades de investigação e de ensino" (SANTOS, 1997 (2), p. 225). A extensão é uma oportunidade única de pensar o ensino de forma indissociada da pesquisa.

Pensar o ensino indissociado da pesquisa é pensar o ensino com base na lógica da pesquisa, isto é, como ela se constitui. Percebe-se então, que é possível tomar diferentes caminhos para a realização de uma investigação, mas é forçoso admitir que não há pesquisa sem dúvida, sem questionamento. Isso significa reconhecer que a pesquisa tem a dúvida como princípio fundamental. É ela que nos impulsiona a refletir, a levantar questões, a procurar respostas, a imaginar possibilidades, enfim, a estudar e a construir o conhecimento. Foi assim que, historicamente, a humanidade se comportou ao trilhar a trajetória do conhecimento, O novo sempre foi fruto da necessidade, da perplexidade e da insegurança, originárias do raciocínio e da observação (CUNHA, p. 27-38).

Extensão e a democracia na Universidade

A inovação do paradigma universitário, logo, precede da democratização do espaço universitário. A democratização do espaço universitário começa com a rearticulação das relações alunos-professores. Gramsci já denunciava o modelo asséptico que as Universidades de seu tempo adotavam e que não é muito diferente do atual:

(...) nas universidades, o contato entre professores e estudantes não é organizado. O professor ensina, de sua cátedra, à massa dos ouvintes, isto é, dá a sua lição e vai embora. (...) Para a massa dos estudantes, os cursos não são mais do que uma série de conferências, ouvidas com maior ou menor atenção, todas ou apenas uma parte: o

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estudante confia nas apostilas, na obra que o próprio professor escreveu sobre a matéria ou na bibliografia que indicou (GRAMSCI, p. 146).

A inovação não pode ser feita sem se levar em consideração o estudante. O método de ensino e de gestão universitária tradicional imobiliza o estudante e o condiciona como um consumidor ou cliente de um serviço. A educação não deve se constituir num serviço mercantilizável. A Universidade, para que não se torne mera mercadoria, precisa urgentemente de uma transformação gestionária superando posturas unilaterais e coisificantes. É preciso, pois, sopros de democracia nos ares viciados das Universidades. "A Universidade é o lugar da prática democrática, pois nela é que os princípios, a sociedade e o futuro são pensados. Espera-se que a Universidade esteja sempre além de seu tempo pois, em um ambiente em que o nível intelectual é bem superior à média da comunidade, o razoável é ter sempre a Universidade como um modelo a ser seguido. Neste sentido, é relevante a responsabilidade da Universidade para com a democracia e o Estado de Direito" (MALISKA, p. 218). O papel dos estudantes é fundamental nessa transformação. (7) "De fato, ‘sem a ação dos estudantes não haverá muitos avanços significativos na instituição de ensino à qual se vinculam. Mesmo sob a iniciativa de professores progressistas, qualquer avanço estará condicionado à politização do estudante do conteúdo das mudanças pretendidas’. Fundamental assim é o papel do estudante" (CARVALHO, Lucas, p. 233).

A universidade não poderá promover a criação de comunidades interpretativas na sociedade se não as souber criar no seu interior, entre docentes, estudantes e funcionários. Para isso é necessário submeter as barreiras disciplinares e organizativas a uma pressão constante. A universidade só resolverá a sua crise institucional na medida que for uma anarquia organizada, feita de hierarquias suaves e nunca sobrepostas. Por exemplo, se os mais jovens, por falta de experiência, não podem dominar as hierarquias científicas, devem poder, pelo seu dinamismo, dominar as hierarquias administrativas. (SANTOS, 1997 (2), p. 225).

Democratizar, inclusive, a universidade, para a co-gestão de professores, estudantes e funcionários, desmascarando o sofisma da reação, que recusa o chamado ‘assembleísmo’, a fim de manter a ditadura dos autoproclamados ‘competentes’: é claro que não se pode resolver um problema científico pelo voto, mas pode-se determinar pelo voto paritário a direção de programas, a distribuição das verbas, a administração e, em geral, o destino da instituição (LYRA FILHO, 1986, p. 314).

Os projetos de extensão constituem-se como espaço ideal para o início desse novo paradigma democrático. Por isso, o ideal é que não existam hierarquias internas nas atividades de extensão, rompendo a tradição burocrático-hierarquizada da estrutura universitária. Assim, o conhecimento produzido e sua gestão se tornam coletivos; a tarefa do professor deixa de ser a de ‘coordenar’ para se tornar a de ‘orientar’ – seu conhecimento orienta as atividades mas não prescreve as ações dos alunos; o coletivo não se submete à ordem ou às idéias de uma pessoa pela simples condição hierárquica; a integração é solidária e não existindo hierarquias verticais entre os estudantes; cargos e funções são apenas distribuições de atividades e não posições hierárquicas; a participação de funcionários também não os coloca como empregados

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mas como participantes em paridade de condições com os estudantes e professores; um espaço interno democrático e sem hierarquias se refletirá na atividade de extensão, na atividade com a comunidade, possibilitando a participação da própria comunidade na organização do projeto de extensão; a quebra da hierarquia serve de exemplo para a comunidade e educa para a participação.

Atente-se, enfim, que um novo modelo de Universidade não teme enfrentar a questão política. A Universidade, por estar inserida dentro da sociedade e estar ligada a todas as forças políticas resultantes desta. "Num notável texto de reflexão escrito no meio da turbulência estudantil, Wallerstein afirmava que ‘a questão não está em decidir se a universidade deve ou não deve ser politizada, mas sim em decidir sobre a política preferida. E as preferências variam’ " (SANTOS, 1997 (2), p. 207). (8) A Universidade, em sentido amplo, e as atividades de extensão, em um sentido estrito, estão de alguma forma ligadas a uma atuação política.

A extensão universitária pode se constituir em um elemento daquilo que Gramsci denomina ação orgânica ou, ainda, ação pedagógico-política. Quanto mais ela for acompanhada de pesquisa, mais força ou caráter orgânico ela poderá ter. A ação orgânica, a nosso ver, necessariamente tem de elevar as pessoas da camada popular e/ou a camada popular como um todo (quando se trata de políticas/iniciativas em nível de Estado ou em nível de sociedade global). Em outros termos queremos dizer que a extensão, caracterizada como orgânica, deve ser emancipadora, libertadora, possibilitar a autonomia e elevar o pensamento para além do senso comum (JANTSCH e SCHAEFER, p. 150).

Por isso é essencial ter-se em mente a pergunta: O que se pretende estender? Ou melhor, o que se pretende dialogar? (9) Será que o conhecimento que se pretende disponibilizar para a comunidade está impregnado com alguma ideologia? Qual?

Atentar-se às referidas perguntas é essencial pois a atividade de extensão pode (se feita sem reflexão) servir apenas para solver problemas superficiais, sem atingir as causas efetivas. Estender o Direito pode servir, portanto, para estender a ideologia dominante. Por isso, o conteúdo e a forma não se resumem a uma ‘forma de atuação’ mas se figuram como postura política da atividade de extensão. O conteúdo e o método irão determinar que se estenda o Direito como um espaço a ser conquistado – dialogando através dos direitos uma postura de participação democrática e popular.

Método Tradicional de Extensão: Assistência

O discurso jurídico tradicional utiliza-se das expressões ‘Assistência’ e ‘Assessoria’ indistintamente e como sinônimas. A distinção ocorreu apenas dentro dos movimentos sociais, sob a influência do discurso pedagógico de Paulo Freire, ao repudiar a idéia de assistencialismo. O movimento estudantil (em especial as denominadas AJUs – Assessorias Jurídicas Universitárias) assumiu essa distinção, mas por contradizer o conhecimento douto estabelecido acabou por conviver com uma intrigante contradição. Mesmo sabendo na prática as diferenças entre uma Assessoria e uma Assistência não há substrato teórico estabelecido sobre o tema. Por isso, essa discussão ganha relevância teórica e política.

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O conhecimento "científico" do Direito conhece duas acepções de Assistência, usualmente referida nos livros sobre acesso à justiça e nos manuais de direito processual. A distinção ocorre entre assistência jurídica e judiciária. Assistência judiciária seria a elaboração de trabalhos processuais para defesa dos direitos dos hipossuficientes pela via do Poder Judiciário e de forma gratuita. Os exemplos de instituições que prestam assistência judiciária mais citados são os escritórios-modelo, a defensoria pública e os escritórios de advocacia popular. (10) O conceito de assistência jurídica pode ser retirado da Constituição Federal da República do Brasil de 1988, em seu artigo 5º, inciso LXXIV; " – O Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos" (11). Pode-se observar que a expressão utilizada na Constituição da República é: ‘assistência jurídica integral’. Por isso a doutrina tem considerado que a Constituição pretendeu ampliar a idéia de Assistência, incluindo, além da assistência judiciária, o que se entende por assistência jurídica. Logo, a assistência jurídica não está mais limitada à utilização do Poder Judiciário, mas também inclui meios extrajudiciais de conciliação, prestação de informações jurídicas por meio de consultorias, representação junto à administração pública, atividades de mediação de conflitos e atividades com o objetivo da educação (como a criação de cartilhas sobre direitos, palestras, etc.), entre outros.

É possível observar que essa distinção está calcada no uso (ou não) do Poder Judiciário. Enquanto a Assistência judiciária mantém-se ligada ao uso do Poder Judiciário a Assistência jurídica aceita novas possibilidades de resolução de conflitos. A primeira está ligada a uma concepção monista de Direito (o Direito é tudo que provém do Estado), já a segunda a uma concepção utilitarista do Direito (o Direito é tudo que resolve conflito). Além disso, ao se adotar essa terminologia proposta nos manuais, adota-se a idéia de que interessa apenas distinguir o que ‘é’ ou ‘não é’ assistência processual oficial, colocando-se todas as demais atividades de resolução de conflitos dentro do mesmo balaio de gato.

Não seria demasiada ousadia afirmar que a influência do positivismo jurídico está arraigada na base dessa concepção, adotando um viés monista e formalista do Direito. O que, obviamente, não se presta a atividades inovadoras de extensão jurídica universitária. Além do que, separa o Direito das demais áreas do conhecimento, ignorando a interdisciplinariedade.

Através das idéias de Paulo Freire, foi possível observar que as atividades de extensão universitárias (nesse caso as relativas ao Direito) se revelam, via de regra, como Assistência. Esse autor distingue duas possibilidades de Assistência: a intelectual e a material. Na primeira o sujeito recebe informações que são depositadas em sua mente, geralmente por meio de palestras (pelo que Freire chama de método bancário de ensino), ignorando-se a cultura popular e a experiência do sujeito, não transformando nem o "atendido" em sujeito do conhecimento (12) e muito menos a universidade. A segunda possibilidade é mais autoritária ainda, apenas se fornecendo algum produto pronto, como no caso de elaboração de petições sem a menor disposição ao diálogo. Esses duas possibilidades de assistência pautam-se na centralidade do solvimento do litígio pelo sujeito da universidade. O objetivo de ambas é a diminuição da litigiosidade. Mesmo quando a ‘assistência intelectual’,

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pretensamente, quer estimular a educação para autonomia e cidadania não o faz efetivamente porque atua como se o ‘atendido’ fosse apenas um ‘objeto’, um depósito a ser preenchido. Além disso, tanto a assistência intelectual quanto a material se limitam ao legal instituído. Portanto não superam a concepção monista de Direito, ignorando o pluralismo jurídico.

Ao primeiro contato com o tema, não raro, confunde-se ‘Assistência intelectual’ com a ‘Assessoria Jurídica’ pois a primeira objetiva a educação para os direitos assim como a segunda. Todavia, algumas características da primeira fulminam tal compreensão. Assistência intelectual objetiva a educação para a solução de litígios. A cidadania se resume a entender os direitos conferidos e exercê-los através do ordenamento jurídico já instituído. A assistência intelectual serve apenas para informar o cidadão de sua cidadania. A cidadania existe pronta em alguma legislação. O vazio da proposta de ‘assistência intelectual’ se encontra no conceito de cidadania, o qual se resume a um amontoado de direitos. Se assim se considerar, educar não conferirá cidadania a ninguém, mas somente a aperfeiçoará e torná-la-á consciente. A cidadania não seria uma conduta desejável (ética cidadã), porém apenas um conjunto de direitos concedidos pelos Getúlios desse berço esplêndido. (13)

A Assistência jurídica é predominante no meio acadêmico de Direito porque se utiliza de preconceitos para se naturalizar. Acredita-se na superioridade do conhecimento universitário, o que, consequentemente, leva à invasão cultural e à supressão do diálogo. "O diálogo verdadeiro só é possível entre iguais ou entre pessoas que desejam igualar-se" (BORDENAVE, p. 51). Para a Assistência o conhecimento universitário é dádiva que solverá todos os problemas da sociedade e a experiência histórica do sujeito comunitário de nada vale. De outro lado, acredita-se na vanguarda da universidade, a qual intitula-se centro da crítica na sociedade, pretendendo conferir a todos um conhecimento superior e puro (14). Por fim, com especial relevância nas universidades públicas, acredita-se retribuir (e até pagar) a gratuidade do ensino oferecendo um ‘serviço’ a sociedade. Na perspectiva de ‘serviço’ se oferece o conhecimento universitário na forma de ‘mercadoria’, mesmo que gratuita. (15)

Essa perspectiva, pautada em preconceitos, é chamada por Paulo Freire de ‘assistencialismo’ e, em resumo, é criticada pelo mesmo pois:

Opúnhamo-nos a estas soluções assistencialistas, (...) Em primeiro lugar, contradiziam a vocação natural da pessoa – a de ser sujeito e não objeto, e o assistencialismo faz de quem recebe a assistência um objeto passivo, sem possibilidade de participar do processo de sua própria recuperação. Em segundo lugar, contradiziam o processo de ‘democratização fundamental’ em que estávamos situados. (...) O grande perigo do assistencialismo está na violência do seu antidiálogo que, impondo ao homem o mutismo e passividade, não lhe oferece condições especiais para desenvolvimento ou a ‘abertura’ de sua consciência que, nas democracias autênticas, há de ser cada vez mais crítica. (...) O assistencialismo (...) é uma forma de ação que rouba ao homem as condições à consecução de uma das necessidades fundamentais de sua alma – a responsabilidade. (...) É exatamente por isso que a responsabilidade é um dado existencial. Daí não pode ser ela incorporada ao homem intelectualmente, mas

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vivencialmente. No assistencialismo não há responsabilidade. Não há decisão. Só há gestos que revelam passividade e ‘domesticação’ do homem (FREIRE, 1969, p. 57-8).

Observe-se que, quando a Assistência Jurídica ganha traços de ‘assistencialismo’, sua proposta perde todo o significado político e social radicais que a extensão universitária inovadora pretende. Um Estado democrático deve oferecer ‘Assistência jurídica’ como direito fundamental ao hipossuficiente e a Universidade Pública pode ser um caminho para possibilitar tal direito. Todavia, duas características são estreitas a essa questão: a necessidade e a excepcionalidade da Assistência. (16) Quando a Assistência não é necessária ou se normaliza recai-se no paternalismo e no assistencialismo. A ‘Assistência jurídica’ se justifica pelos obstáculos econômicos ao acesso à justiça. Todavia, a moderna doutrina sobre o Acesso à Justiça identifica, além dos obstáculos econômicos, obstáculos socioculturais (17). Ao se falar em obstáculos ao Acesso à Justiça não se trata só da pobreza econômica, mas também de seus efeitos culturais, sociais e políticos que levam ao desconhecimento e à descrença nos direitos. A Assessoria jurídica desenvolveu-se, precisamente, sobre a crítica do ‘assistencialismo’ e não sobre a crítica da ‘Assistência’ jurídica como direito fundamental.

Na exemplificação das atividades assistencialistas interessa referir-se ao chamado escritório-modelo. Sua influência está presente em todas as demais atividades de ‘extensão’ em Direito, as quais, em geral, buscam levar o escritório-modelo para comunidades marginalizadas. Esse talvez seja o grande problema da extensão em Direito: reproduz-se um método sem reflexão. Daí a importância de desconstruir a concepção metodológica do escritório-modelo para se visualizar a ideologia que o permeia. Obrigatório para a formação do aluno, o escritório-modelo parte, tanto na teoria como na prática, de uma concepção assistencialista. O grande problema metodológico da concepção do escritório-modelo é a tentativa de conciliação da prática assistencialista com o ensino da prática judiciária (18) para o acadêmico de Direito. Entretanto, geralmente, não se pratica "Assistência" jurídica livre do assistencialismo, assim como o ensino de prática é muito limitado e improvisado.

Outras propostas de extensão em Direito se limitam a "Assistência" intelectual, como na formulação de cartilhas, panfletos, folders e todo o tipo de material informativo sobre o Direito, ou na realização de palestras, conferências e cursos. Todavia, não há diálogo com a comunidade e a efetividade destas atividades de pretensa educação é questionável. Falta atenção a metodologia de ensino. As atividades de mediação e conciliação, geralmente, são feitas com o intuito de solver problemas específicos como separações, divórcios, pequenos danos, acidentes de trânsito, brigas de vizinhos, entre outros. Objetivam evitar o trâmite no Poder Judiciário, o que demonstra falta de sincronia desse com os problemas e a realidade social atual. Muitas vezes se oferecem acordos (su)geridos por um ‘conciliador’ que irá avaliar a situação jurídica, prever as conseqüências e propor a solução. As partes figuram como espectadores. Sua participação se resume a concordar ou discordar do acordo, sob a coação de enfrentamento do moroso e custoso Poder Judiciário.

Comparando os serviços legais tradicionais e os inovadores Campilongo desenvolveu no início da década de 80 uma tipologia dos serviços legais no Brasil, sendo a primeira

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reflexão sobre a questão dos serviços legais e o surgimento de novas realidades sociais. Sua tipologia divide os serviços legais tradicionais e inovadores:

Características dos Serviços Jurídicos na Tipologia de Celso Fernandes Campilongo

Serviços Legais Tradicionais: individual; paternalismo; apatia; mistério; legal; controle de litigiosidade; técnico jurídico; demandas clássicas; ética utilitária; certeza jurídica.

Serviços Legais Inovadores: coletivo; organização; participação; desencantamento; extralegal; explosão de litígios; multiprofissionalismo; demandas de impacto social; ética comunitária; justiça. (19)

A partir da crítica aos modelos de tradicionais de serviços legais começaram a surgir novas experiências de extensão universitária em Direito. A conciliação dessa nova perspectiva de serviços legais desenvolvida no período de redemocratização brasileira com as críticas pedagógicas freirianas formularam a nova perspectiva de extensão que os estudantes, apropriando-se do nome criado nos movimento sociais, denominaram Assessoria.

Método Inovador de Extensão: Assessoria

Como anteriormente aludido, a Assessoria parte do diálogo entre a Universidade e a Sociedade. (20) O agente do processo de Assessoria Jurídica não é somente o membro da comunidade nem somente o operador jurídico. Dentro da Assessoria jurídica somente o diálogo pode construir um conhecimento. Parte-se da proposta de que cada um, por ter uma experiência de vida diferenciada, detém um conhecimento e somente a partir do diálogo entre o popular e o acadêmico é possível construir um conhecimento crítico. Somente com a congruência do conhecimento acadêmico e do popular, um de cunho preponderantemente teórico e outro de cunho preponderantemente prático, é possível estabelecer diálogo e, por fim, um conhecimento crítico a partir de práxis (direito vivo). O que se busca não é impor conhecimentos ao membro da comunidade mas lhe possibilitar, a partir do diálogo, a construção do seu próprio conhecimento.

Para o membro da comunidade o conhecimento não se limitará à experiência inativa, pois adquirirá experiência de ‘como’ a questão jurídica pode ser problematizada e ‘como’ poder-se-á encontrar uma solução a partir do intercâmbio de conhecimentos. O diálogo desenvolver-se-á com outros sujeitos, com o próximo, com a própria comunidade (21). Ocorre neste sentido o desenvolvimento da postura coletivista. Logo, quem irá desenvolver a solução para as questões será o coletivo, pois o individual precisa do coletivo para dialogar e construir o seu conhecimento.

A Assessoria se encontra na terceira onda de Acesso à Justiça, preocupada com os obstáculos socioculturais ao acesso à justiça. "Podemos afirmar que a primeira solução para o acesso – a primeira ‘onda’ desse movimento novo – foi a assistência judiciária; a segunda dizia respeito às reformas tendentes a proporcionar representações jurídicas para os interesses ‘difusos’, especialmente nas áreas da proteção ambiental e do consumidor; e o terceiro – e mais recente – é o que nos propomos a chamar

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simplesmente ‘enfoque de acesso à justiça’ porque inclui os posicionamentos anteriores, mas vai muito além deles, representando, dessa forma, uma tentativa de atacar as barreiras ao acesso de modo mais articulado e compreensivo" (CAPPELLETTI e GARTH, p. 31). (22)

A Assessoria articula-se também a partir da crítica a linguagem pedante ou academicista do saber jurídico. "Na verdade, as linguagens não se esgotam nas informações transmitidas, pois elas engendram uma série de ressonâncias significativas e normalizadoras das práticas sociais" (WARAT, p.15). Essa característica da linguagem de transmitir mais do que o seu significado tem extrema relevância para o Direito e sua democratização. A linguagem adornada e pomposa da ciência jurídica transmite algo além da informação nela contida. Foucault aprofunda a questão quando afirma que: "(...) suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade" (FOUCAULT, p. 09). O controle do discurso se faz através da linguagem. Linguagem dominada por poucas pessoas. Domínio que se confunde com poder. Enfim, o que Foucault denomina saber-poder. (23)

Marilena Chauí, por viés epistemológico diverso, elenca a questão do discurso competente, discurso que é proferido por determinadas pessoas em determinadas posições sociais. Assim, o Direito é assunto que somente ao jurista cabe tratar. "O discurso competente é aquele que pode ser proferido, ouvido e aceito como verdadeiro ou autorizado (...) porque perdeu os laços com o lugar e o tempo de sua origem. (...) O discurso competente é o discurso instituído. É aquele no qual a linguagem sofre uma restrição que poderia ser assim resumida: não é qualquer um que pode dizer a qualquer outro qualquer coisa em qualquer lugar em qualquer circunstância" (CHAUÍ, p. 07). (24) Na atual sociedade o Direito é isolado da maioria da população, sendo assunto de pequena casta de intelectuais.

Além do referido controle discursivo, pode-se afirmar que a linguagem utilizada não detém o significado (a norma) em si. "Texto e norma não se identificam. A norma é a interpretação do texto normativo" (GRAU, p. 17). A ambigüidade e a imprecisão, ao contrário do que pretendia o positivismo, são características do discurso jurídico. "Assim, ambigüidade e imprecisão são marcas características da linguagem jurídica. Manifesta-se a primeira virtude de as mesmas palavras em diversos contextos designarem distintos objetos, fatos ou propriedades. A mesma palavra em contextos diversos conota sentidos diversos. (...) Quanto à imprecisão, decorre da fluidez de certas palavras, cujo limite de aplicação é impreciso" (GRAU, p. 197-8). (25)

Os juristas tradicionais protegem-se na masmorra do discurso competente e nas calabouços da ambigüidade e vagueza formando um enorme castelo jurídico kafkaniano. "(...) Na perplexidade em que se encontram, percebem sua perda de prestígio, para que não encontram salvação no preciosismo de sua linguagem, precisamente porque ela lhes é demasiado peculiar e, por isto, incapaz de comunicar significados por que o povo anseia e espera" (AZEVEDO, p. 14).

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O primeiro passo na democratização do Direito, para a Assessoria jurídica, é a democratização da linguagem jurídica, simplificação que não recaia em simplismo. (26)

"É preciso transmutar a linguagem jurídica para a linguagem do povo, tornando-a compreensível e real" (ARAUJO e OLIVEIRA, p. 156). Tal democratização não ocorre por um ato de autoridade mas por uma transformação cultural. "A democratização da justiça, na verdade, deve passar pela democratização do ensino e da cultura, e mesmo pela democratização da linguagem, como instrumento de intercâmbio de idéias e informações" (MARINONI, p. 79-80).

De outro lado, busca a materialização de democracia, não apenas de cunho formal mas de cunho material. Pretende-se instrumentalizar o povo com conceitos críticos para o desenvolvimento de uma democracia radical. Assim, a Assessoria é uma proposta pautada no anseio de uma sociedade democrática e socialista. Logo, a Assessoria Jurídica pretende educar os indivíduos para o exercício da democracia.

Objetivando orientar o desenvolvimento das atividades de ‘Assessoria jurídica’, reporta-se à delimitação principiológica apresentada na oficina desenvolvida pelo projeto SAJUP-UFPR (24 de maio de 2003):

1.Superação do individualismo e preferência pelo coletivo (negar o individualismo);

2.Participação Comunitária e Acadêmica Horizontais para Conscientização (negar o paternalismo e a subordinação);

3.Construção de um Direito Crítico (negar o dogmatismo e o positivismo jurídicos);

4.Presentificação (negar o absenteísmo).

Negar o individualismo. A perspectiva do coletivo em contraposição ao individual é uma tendência do movimento de Acesso à Justiça. A perspectiva da ‘solidariedade’ ganha nova feição pois os direitos e a cidadania deixam de ser entendidos individualmente para se tornarem uma condição coletiva. Basta observar a moderna concepção de Direitos Humanos (27) e a indivisibilidade entre os direitos individuais e sociais. Isso não significa um abandono do individual, pelo contrário, entende-se que o indivíduo somente terá capacidade de afirmar-se enquanto tal quando coletivamente inserido, culturalmente inserido em sua comunidade. Tendo em vista o sistema econômico capitalista, o qual desnatura o indivíduo no individualismo, cabe à Assessoria propor o reencontro com o coletivo, com o comunitário. Vale dizer, ainda, que coletivamente a força política para o exercício de direitos e para a conquista de novos direitos se potencializa. Portanto, também é uma estratégia para luta política.

Negar o paternalismo e a subordinação. A Assistência pressupõe o comando das atividades por aquele que detém o conhecimento para resolver o problema jurídico: quando Assistência judiciária propõe a solução dada pelo Poder Judiciário; quando Assistência material a solução dada pelo técnico (advogado, estudante, ou jurista); quando Assistência intelectual a solução (conhecimento) ministrada pelo intelectual. Percebe-se o assistente dirigindo a atividade. Isto porque para a Assistência o membro da comunidade não é capaz de resolver a questão. Ao incapaz se destina o

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paternalismo. A relação de subordinação é conseqüente. Para superar tal aspecto a Assessoria se baseia na participação ativa do membro da comunidade em todos os momentos da atividade de Assessoria. No mesmo sentido, a participação só é efetiva quando se trava de maneira horizontal.

Negar o dogmatismo e o positivismo jurídicos. A Assistência, desde suas classificações até sua prática, apresenta-se conexa ao Direito estatal concebido estritamente pela lei (28). Diversas são as críticas ao positivismo, que resume o direito a lei estatal, e ao dogmatismo. Uma das principais tarefas da Assessoria jurídica é desconstruir os mitos do positivismo e do dogmatismo principalmente quando ligados à noção de cidadania (29). O que qualifica essencialmente a Assessoria enquanto Jurídica é exatamente a sua crítica, não apenas teórica, mas de igual sorte prática, ao Direito tradicional.

Negar o absenteísmo. Este princípio se mostra enquanto postura ética da Assessoria. Absenteísmo significa o estado de alheamento à realidade, ao ambiente e ao mundo exterior. Quando pratica a ‘Assistência jurídica’, o jurista não detém verdadeiro contato com a sociedade, não há interação entre os seres humanos. Para que os seres humanos realmente interajam é preciso uma intenção ética. É preciso deixar de ser um técnico jurídico e se tornar um ser humano (30). Estar presente na atividade de Assessoria é sentir, vivenciar sentimentos. Nisto consiste a presentificação. O envolvimento pessoal, humano e emocional com o coletivo. Isso não significa o abandono do racional ou da técnica, pelo contrário, se pretende desmitificar o pressuposto da neutralidade axiológica impregnado naqueles. Entender-se humano, repleto de emoções que não podem ser ignoradas, perfaz um novo sentido no contato entre humanos presentes na comunidade.

Para encontrar os limites de distinção da Assistência e da Assessoria interessante é a provocação do professor Pedro DEMO: "Mesmo fazendo parte do mesmo contexto da política social e dos direitos sociais, assistência e promoção comunitária contêm lógicas diferentes e mesmo polarizadas dialeticamente" (DEMO, p. 98). (31)

A contradição entre os métodos é nítida. A ‘Assistência jurídica’ pretende a igualdade mediante reformas, solução de litígios. Para a Assistência as reformas diminuem as desigualdades sociais. A perspectiva é reformista, melhorista. Já a Assessoria parte da noção de revolução porque fundada na contestação ao sistema social. A conscientização do homem se realiza na sua humanização, na passagem da posição de objeto para sujeito. O sujeito ao se humanizar não pode mais conviver com um mundo que o reifica, o coisifica. Por outro lado, questionando-se sobre a perspectiva politico-ideológica, de igual sorte incongruentes as metodologias da Assistência e da Assessoria. Enquanto a ‘Assistência jurídica’ visa à manutenção do capitalismo e da democracia meramente formal, a ‘Assessoria jurídica’ busca, ao contrário, o socialismo democrático (democracia material). Operando-se com propostas assistencialistas, estimula-se a confiança nas medidas reformistas do sistema (do status quo). Por isso, quando se desenvolvem propostas assistencialistas, coopta-se o membro da comunidade ao sistema (e, consequentemente, à ideologia da reforma) ao invés de lhe despertar uma concepção crítica sobre o mesmo. Por isso, a mudança do método de

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educação (32) acaba por despertar no homem uma nova postura política. Conclui-se pela impossibilidade de conciliação dos métodos.

Assessoria e Assistência não podem ser conciliadas. Suas concepções ideológicas e políticas são estranhas. Logo, o que identificará a metodologia empregada é seu fim político-ideológico.

Por outro lado resta averiguar a questão relativa aos projetos/programas de extensão universitária que se utilizam das metodologias, simultaneamente, da Assistência e da Assessoria – seja por falta de reflexão do método, seja por outro motivo. Essas atividades tenderam a adotar apenas uma metodologia. Isto ocorre face a contradição finalística das metodologias, as quais caminharão para fins diversos. A tendência, portanto, será a de se adotar apenas um método.

Em geral, tendencialmente, predominará a metodologia assistencialista porque esta confere resultados imediatos e quantitativos (mesmo que superficiais e momentâneos), apreciáveis em menor tempo. Portanto, além de serem inconciliáveis, inexistindo método misto, também não permaneceram sendo desenvolvidas simultaneamente.

Se de um lado inexiste método misto de Assessoria e Assistência, por outro lado se deve ponderar pela dificuldade de aplicação pura dos referidos métodos. Para se identificarem, na prática, as diferenças, sugere-se a avaliação teórica e prática da finalidade e o resultado da atividade de extensão. Uma avaliação qualitativa só é possível em contrastando-se a teoria a que se propõe a atividade e sua prática. Isso sugere, portanto, um olhar casuístico.

Servindo como indicativo, as atividades de Assistência não precedem de explicitações teóricas pois se utilizam apenas das teorias dominantes de Educação e Direito. Já a Assessoria necessita de constante pesquisa teórica sobre Educação e Direito. A contestação não se suporta, enquanto atividade acrítica, sem reflexão teórica. Já a consecução prática da Assessoria depende de avaliações metodológicas (e não quantitativas) constantes. Portanto, a constante busca pela teorização caracteriza a Assessoria jurídica como método inovador.

Como se pode observar, nem sempre as Assessorias conseguiram (talvez nunca conseguirão) superar todos os obstáculos a que se propõem. A superação, portanto, exige um constante e rígido processo de auto-avaliação.

Considerações Finais

Interessa, aqui, notar que atualmente os modelos institucionais da metodologia da Assessoria jurídica são os denominados SAJUs (Serviços de Assessoria Jurídica Universitária). Alguns contêm longo histórico, como o SAJU- UFRGS (33) e SAJU-UFBA - este fundado em 1963, e aquele em 1950. (34) Apesar de inicialmente desenvolverem projetos de cunho assistencialista, começaram a tomar uma nova configuração metodológica em suas atividades a partir do fim da década de 80 e início da década de 90 devido à redemocratização, à eclosão da teoria crítica do Direito no Brasil (35) e à

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influência dos novos movimentos sociais. Com a crítica do modelo jurídico existente logo criticou-se também a extensão (a final, um ato de ‘estender’) desse modelo. A interdisciplinaridade também renovou os ares das propostas extensionistas, o que gerou a progressiva mudança metodológica desses projetos (36). Especialmente neste sentido, a metodologia freiriana e sua ‘Pedagogia do Oprimido’ tiveram influência decisiva para a tentativa de superação do método assistencialista.

Na década de 90 surgem os novos SAJUs. Estes se diferenciam pela proposta baseada, desde a origem, na concepção metodológica da AJUP. O apoio institucional aos SAJUs é reduzido e a grande luta é pela existência. Entre eles podem ser citados: NAJUP – Negro Cosme/UFMA, CAJU/UFCE, NAJUC/UFCE, Cajuína/UFPI, SAJU/UFS, SAJU/UNIFOR-CE e o SAJUP-UFPR. Há notícia ainda de novos projetos ainda não integrados à RENAJU como: SAJU-USP, SAJU-PUCAMP e o NAJUP-PUC/RS. Para o desenvolvimento destes projetos foi criada em meados da década de 90 a Rede Nacional de Assessoria Jurídica Universitária (RENAJU), que pretende, por meio de trocas de experiências, discutir e desenvolver a concepção da metodologia da AJUP, bem como divulgar e expandir esta proposta inovadora através do movimento estudantil de Direito, em especial através de encontros universitários. Além disso, existe o estímulo a teorizar as experiências a fim de que não ocorra o retrocesso às atividades de cunho assistencialista.

Recuperar essa história, micro-história, é tarefa contínua dos movimentos inovadores. Como afirma Walter Benjamin: "O cronista que narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história" (BENJAMIN, p. 223). A partir da experiência de novas propostas inovadoras pode-se vislumbrar um novo rumo para o uso do Direito no Brasil e, especialmente, para a finalidade da extensão na Universidade. Trabalho que pode parecer pequeno mas que gera grandes mudanças em quem atua com disposição nele.

Notas

1 Diversas obras de Michel FOUCAULT trabalham esse conceito. Todavia, recomenda-se a leitura de pequeno artigo que resume a percepção do Direito para Foucault: LOSCHAK, Danièle. A questão do Direito. In: ESCOBAR, Carlos Henrique de.(org.) Michel Foucault - Dossier. Rio de Janeiro: Taurus, 1984. (122-4)

2 Para maiores detalhes recomenda-se a leitura da primeira parte do livro: FONSECA, Ricardo Marcelo. Modernidade e Contrato de Trabalho: do sujeito de direito a sujeição jurídica. São Paulo: LTr, 2002.

3 "Art. 207 - As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão." Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. 22ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999.

4 "(...) sustentam que as academias de Direito foram responsáveis por uma prática de tal modo comprometida com os processos de exploração econômica e de dominação política que o bacharel não foi preparado para o exercício da função crítica" (ADORNO, p.159).