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1 IX ENCONTRO ABCP 1964-2014 Autoritarismo, Democracia e Direitos Humanos Ensino e pesquisa em Ciência Política e Relações Internacionais TRABALHANDO A CIÊNCIA POLÍTICA EM SALA DE AULA: RECURSOS DIDÁTICOS E METODOLÓGICOS Naiara Dal Molin Doutora em Ciência Política-UFRGS Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política/UFPel. Marcelo Pinheiro Cigales Licenciado em Ciências Sociais-UFPel Mestre em Educação-UFPel Brasilia, DF 04 a 07 de agosto de 2014

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IX ENCONTRO ABCP 1964-2014 Autoritarismo, Democracia e Direitos Humanos

Ensino e pesquisa em Ciência Política e Relações Internacionais

TRABALHANDO A CIÊNCIA POLÍTICA EM SALA DE AULA: RECURSOS DIDÁTICOS E METODOLÓGICOS

Naiara Dal Molin Doutora em Ciência Política-UFRGS

Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política/UFPel.

Marcelo Pinheiro Cigales Licenciado em Ciências Sociais-UFPel

Mestre em Educação-UFPel

Brasilia, DF

04 a 07 de agosto de 2014

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TRABALHANDO A CIÊNCIA POLÍTICA EM SALA DE AULA: RECURSOS DIDÁTICOS E METODOLÓGICOS

Naiara Dal Molin Doutora em Ciência Política-UFRGS

Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política/UFPel.

Marcelo Pinheiro Cigales Licenciado em Ciências Sociais-UFPel

Mestre em Educação-UFPel

Resumo

A questão das metodologias de ensino na área da Ciência Política há tempos é abordada pela legislação que regula o ensino de licenciatura em Ciências Sociais no Brasil. Dessa forma, o presente trabalho é uma tentativa de buscar alternativas metodológicas para o ensino de conteúdos da área de Ciência Política, que visam abordar conceitos chave como democracia, participação política, representação política e cidadania em sala de aula. A partir do conceito de transposição didática sugere-se a análise de músicas que possuem em suas letras temas relacionados às questões políticas e sociais no Brasil no contexto de redemocratização política após a ditadura civil-militar de 1964. Esse recurso didático e metodológico possibilita que o professor sensibilize o aluno e viabilize o aprendizado, que pode ser entendido como o processo de transformação de um saber a ensinar em um objeto de ensino. Em outras palavras, é o conhecimento científico transposto em conhecimento escolar.

Palavras-chave: Ciência Política, Metodologia de Ensino, Transposição Didática, Democracia.

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1. Introdução

Os cursos de licenciatura em Ciências Sociais no Brasil apresentam, conforme

recentes pesquisas (FREITAS, 2010; 2011), problemas referentes à formação de

professores (MORAES, 2011). Um dos fatores que agrava essa questão é a pouca

valorização do professor em relação ao pesquisador (RAIZER, MEIRELLES, PEREIRA,

2011). Essa característica fez com que as orientações de estágios de Ciências Sociais,

fossem relegadas às Faculdades de Educação e não mais lecionadas por professores da

área de Ciências Sociais (CUNHA, 1992; DIAS DA SILVA, 2002). Esse distanciamento

possivelmente causou um déficit na formação dos professores desta área. Porém, medidas

estão sendo tomadas para a melhoria desse quadro, uma delas é a criação do Programa

Institucional de Incentivo à Docência – PIBID, que visa aproximar os estudantes de

licenciatura da realidade educacional no Brasil. No entanto, alguns problemas ainda são

perceptíveis, como a dificuldade de desenvolver metodologias de ensino mais atrativas e

próximas da realidade dos estudantes, com ênfase para a Ciência Política.

A questão das metodologias de ensino na área da Ciência Política há tempos é

abordada pela legislação que regula o ensino de licenciatura em Ciências Sociais no Brasil.

A referida legislação aborda a dimensão prática que a área deve exercer no processo de

formação dos professores, deixando claro que teoria e prática devem estar presentes desde

o início do curso, de forma a facilitar tanto a aprendizagem como o desenvolvimento de sua

prática docente (CNE/CP 1, 2002). Dessa forma, o objetivo deste trabalho é proporcionar

aos estudantes de licenciatura em Ciências Sociais e professores da área uma possibilidade

de abordar conteúdos da disciplina de Ciência Política através da música. É possível pensar

que a música é um recurso que pode aproximar e relacionar as experiências subjetivas e o

cotidiano dos estudantes com conceitos e conteúdos da área de Ciência Política, tais como:

democracia, participação política, representação política e cidadania em sala de aula.

Nesse sentido, o referencial teórico se apoia no conceito de transposição didática de

Chevallard (2013) para analisar quatro músicas que possuem em suas letras temas

relacionados às questões políticas e sociais no Brasil em períodos que abrangem o contexto

da ditadura civil-militar de 1964 e posteriormente a subsequente redemocratização. Dessa

forma, serão trabalhados alguns conceitos - chave na área de Ciência Política, estimulando

uma reflexão sobre democracia, participação, representação política e cidadania. É

importante ressaltar que as músicas apresentadas devem ser observadas no contexto

histórico-social em que foram produzidas. Portanto, não são completas e acabadas e

tampouco pretendem servir de padrão para trabalhar o assunto em voga, mas sim despertar

a possibilidade de abordar o tema de uma maneira interdisciplinar, fazendo com que os

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alunos possam relacionar seu cotidiano com os conceitos de Ciência Política através da

música.

As músicas escolhidas para essa tarefa fazem parte do próprio contexto político e

social histórico que deixou marcas profundas em nosso país, e ainda hoje são frutos de

discussões e temas de pesquisas no campo acadêmico. Para além do conteúdo

propriamente dito é possível destacar a diversidade em relação aos ritmos, como o rock

nacional e música popular brasileira - MPB . As canções: a) “Disparada” de Geraldo Vandré;

b) “Apesar de Você” composta por Chico Buarque; c) “Que país é esse?” da Legião Urbana

e d) “É” de Gonzaguinha, serão detalhadas e contrastadas, sugerindo possibilidades de

serem trabalhadas em sala de aula.

Pensamos que trabalhar com a música é mais do que buscar um recurso didático

atrativo para se abordar conceitos em sala de aula, é também, assumir o compromisso de

trabalhar a interdisciplinaridade, pois além de ser acessível a grande maioria dos alunos,

este recurso se apresenta como uma expressão artística e cultural inserida em quase todos

os contextos sociais.

Através da análise de conteúdo foi possível contextualizar e relacionar as letras

musicais com os conteúdos da Ciência Política. A análise de conteúdo pode ser entendida

como “um conjunto de técnicas de análise das comunicações” (ROCHA e DEUSDARÁ,

2005, p.308), e tem por objetivo buscar uma significação profunda, legítima e científica de

um texto ou documento. Através dessa metodologia é possível, portanto, “ultrapassar as

aparências, os níveis mais superficiais do texto, residindo nesse processo de descoberta a

desconfiança em relação aos planos subjetivo e ideológico [...]” (ROCHA e DEUSDARÁ,

2005, p.310).

2. A transposição didática através da música

O conceito que perpassa a escrita do trabalho surge a partir de Yves Chevallard, que

em seu livro “La transposition didactique: Du savoir savant au savoir enseigné”1, busca

analisar como o conhecimento científico é transposto em conhecimento escolar. Apesar de

Chevallard ser um pesquisador ligado a didática da matemática, muitas reflexões

enquadram-se perfeitamente na análise de outras áreas como das Ciências Sociais.

A transposição didática é realizada por uma esfera que o autor chama de noosfera,

uma esfera pensante, onde se encontram os aspectos objetivos do conhecimento a ser

ensinado. Dessa forma, leis, decretos, pesquisadores, professores, instituições,

1 Publicado pela primeira vez em 1991 e traduzido para o espanhol com o título de “La transposición didáctica: del saber sabio al saber enseñado” alcançou a quarta reimpressão da terceira edição em 2013 pela editora Aique/Buenos Aires.

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universidades, especialistas, etc, irão definir o que e de que forma serão ensinados os

conteúdos escolares.

Na noosfera, pois, os representantes do sitema de ensino, com ou sem o mandato (desde o presidente de uma associação de ensino até o simples professor militante), se encontram, diretamente ou indiretamente, (por meio da comissão de ética, projetos transacionais, comissões ministeriais) com os representantes da sociedade (pais dos alunos, especialistas da disciplina que militam em torno de seu ensino, os emisários do orgão político). (CHEVALLARD, 2013, p. 28-29, traduzido pelos autores)2.

Nesse sentido, para Chevallard (2013, p.11- 44) a trajetória do saber passa por três

níveis distintos. Do momento em que é produzido (conhecimento científico), passando pela

escola (conhecimento escolar) e chegando a sala de aula (trabalho interno de transposição)

que encontra no professor o responsável por seu planejamento e gestão, podendo ocorrer

formas de negociação com a turma, etc. Nesse processo, o professor define o conhecimento

a ser transposto, passando assim por aspectos subjetivos de quem o ministra. Dessa forma,

as experiências e práticas subjetivas do professor afetam a forma como o saber será

transposto.

A transposição didática, portanto, é um conceito importante para se compreender

como ocorre o processo de ensino. Este não é algo estático, parado no tempo, imóvel. Há

dessa forma, inúmeras variáveis que devem ser levadas em conta nesse processo, não

somente a nível específico, tais como o conhecimento do professor e do aluno, mas a nível

geral, como currículo, curso, parâmetros currículares e o próprio campo (BOURDIEU, 2012)

acadêmico onde o conhecimento é produzido e reproduzido. Conhecer esses aspectos não

é tão simples, pois muitos agem de forma disimulada legitimando suas práticas e

concepções. Discutir essas questões nem sempre é confortável para o professor, pois trata-

se de uma estrutura vertical em que poucos se questionam, por que ensinar isso e não

aquilo? Por que aquele conhecimento deve estar no programa e não este? Enfim, a

transposição didática vai além do simples processo de transformação do saber científico em

conhecimento escolar, na medida em que apresenta diversos questionamentos sobre o

sistema de ensino.

Dessa forma, entende-se que a transposição didática pode ser pensada a partir de

diferentes esferas, e portanto ocorre de diversas maneiras, pois não há uma fórmula pronta

2 Traduzido do original: “En la noosfera, pues, los representantes del sistema de enseñansa, con o sin mandato (desde el presidente de una asociación de enseñantes hasta el simple profesor militante), se encuentran, directa o indirectamente, (a través del libelo denunciador, la demanda conminatoria, el proyecto transaccional o los debates esordecidos de uma comisión ministerial), con los representantes de la sociedad (los padres de los alumnos, los especialistas de la disciplina que militan en torno de su enseñanza, los emisarios del órgano político)”. (CHEVALLARD, 2013, p.28-29).

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e acabada de transpor saberes. Esta aquisição se dá de forma diversificada, podendo variar

de indivíduo para indivíduo. Cabe salientar que a forma tradicional da educação, apesar de

toda a crítica acumulada no decorrer de décadas, ainda hoje se faz presente em grande

parte do cenário educacional brasileiro. Talvez porque o professor não encontre novas

abordagens metodológicas que valorizem a experiência dos educandos, e que estes a partir

de suas vivências possam relacionar os conteúdos disciplinares e conceitos da área que se

dedicam.

Nesse sentido, é importante ressaltar que as músicas apresentadas podem servir

para essa prática, desde que se levem em consideração os aspectos do contexto histórico-

social em que foram produzidas, assim como da subjetividade dos alunos e professores.

Nesse sentido é importante ressaltar que esta interpretação também faz parte de nossas

experiências pessoais, que de forma geral orientaram nossas escolhas e análises. Em sala

de aula, caberá ao professor conseguir conciliar estes aspectos (subjetividade do aluno;

sua própria subjetividade e, conceitos científicos que pretende transpor). É importante

salientar que a metodologia proposta para este trabalho não é completa e acabada e

tampouco pretende servir de padrão para trabalhar os conteúdos das Ciências Sociais, mas

sim despertar a possibilidade de abordar o tema de uma maneira interdisciplinar, lúdica e

criativa, fazendo com que os alunos possam encontrar sentido prático a partir dos conceitos

de Ciência Política e de uma maneira geral dos cursos de Ciências Sociais através da

música.

3. Análise das músicas

A música abre janelas de um novo mundo para educadores e educandos,

descortinando aspectos culturais que poderão ser aproveitados no processo de

aprendizagem. Devemos salientar, no entanto, que a opção por trabalhar com essas quatro

músicas deveu-se à nossa perspectiva teórica e prática, e que outras escolhas poderão e

deverão ser feitas pelos professores de Ciência Política e ou de outras disciplinas

dependendo do objetivo que o professor tenha ao desenvolver sua aula.

As quatro músicas que ora abordaremos refletem a história política e social do Brasil.

“Disparada” de Geraldo Vandré e Theo Bastos, assim como “Apesar de você” de Chico

Buarque, foram elaboradas no contexto do golpe de 1964 que instalou a ditadura civil-militar,

e que neste ano de 2014 completa cinquenta anos. Tais canções fazem várias críticas a

este momento político, social e cultural do Brasil, porém, não se restringem a isso, visto que

apresentam horizontes que vislumbram uma democracia possível. Enquanto a primeira é

composta antes do AI5, a segunda retrata uma realidade após esse decreto, que retirou

muitos dos direitos civis, políticos e sociais da população. As músicas foram produzidas em

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sentido figurado e são marcadas pela época em que criticar o governo poderia gerar uma

série de represálias, inclusive a tortura e a morte. Dessa forma, estas duas primeiras

músicas foram compostas no período da ditadura civil-militar, enquanto as duas últimas no

período de redemocratização. “Que país é esse?” de Renato Russo e “É” de Gonzaginha

representam um novo horizonte no processo de transição para a democracia no Brasil.

Enquanto, a música “Que país é esse?” abordará o tema da corrupção política e da falta de

um sentimento de nação, a música “É” se focará no despertar da consciência política da

população brasileira no processo de redemocratização e na participação da sociedade civil

exigindo seus direitos. De certa forma, são estes os aspectos sociais e políticos sobre os

quais as análises se debruçarão.

Antes de entrarmos na análise propriamente dita das músicas devemos abordar o

conceito de democracia. Uma vez que estamos abordando um período de ditadura no Brasil,

devemos caracterizá-lo através da falta de democracia. Segundo o clássico estudo de Dahl

(2012) sobre poliarquia, duas dimensões são consideradas para a existência da democracia,

a saber: a contestação pública e a participação política. Um regime que contém limitações à

competição política e parcelas expressivas da população às quais seja negado o direito de

voto não pode ser considerado democrático.

Para adentrarmos na forma como essa falta de democracia se expressa no nosso

objeto de estudo, passamos à análise da primeira música denominada “Disparada”

composta por Geraldo Vandré e Theo de Barros.

DISPARADA

Prepare o seu coração prás coisas que eu vou contar Eu venho lá do sertão, eu venho lá do sertão Eu venho lá do sertão e posso não lhe agradar Aprendi a dizer não, ver a morte sem chorar E a morte, o destino, tudo, a morte e o destino, tudo Estava fora do lugar, eu vivo prá consertar Na boiada já fui boi, mas um dia me montei Não por um motivo meu, ou de quem comigo houvesse Que qualquer querer tivesse, porém por necessidade Do dono de uma boiada cujo vaqueiro morreu Boiadeiro muito tempo, laço firme e braço forte Muito gado, muita gente, pela vida segurei Seguia como num sonho, e boiadeiro era um rei Mas o mundo foi rodando nas patas do meu cavalo E nos sonhos que fui sonhando, as visões se clareando As visões se clareando, até que um dia acordei Então não pude seguir valente em lugar tenente E dono de gado e gente, porque gado a gente marca

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Tange, ferra, engorda e mata, mas com gente é diferente Se você não concordar não posso me desculpar Não canto prá enganar, vou pegar minha viola Vou deixar você de lado, vou cantar noutro lugar Na boiada já fui boi, boiadeiro já fui rei Não por mim nem por ninguém, que junto comigo houvesse Que quisesse ou que pudesse, por qualquer coisa de seu Por qualquer coisa de seu querer ir mais longe do que eu Mas o mundo foi rodando nas patas do meu cavalo E já que um dia montei agora sou cavaleiro Laço firme e braço forte num reino que não tem rei

Fonte: <http://www.vagalume.com.br/geraldo-vandre/disparada.html>

Segundo o Dicionário de Língua Portuguesa de Bueno, disparada é “desembestada,

corrida”. E o significado de desembestada é “galopada, disparada, corrida insofreável do

cavalo, disparada, chispada” (1955, p.331).

Pelo significado do título da canção já se pode ter uma ideia de sua proposta. A

música de composição de Geraldo Vandré e Theo de Barros foi interpretada no Festival

Popular da Canção por Jair Rodrigues em 1966. A canção divide o prêmio de primeiro lugar

com “A Banda” de Chico Buarque. Contudo, é visível para quem assiste ao vídeo do festival

daquele ano a preferência do público por “disparada”3.

A canção se insere nas músicas de protesto que foram produzidas durante o período

da ditadura civil-militar brasileira implementada a partir de 1964. A letra se desenvolve numa

espécie de narrativa de um boiadeiro que desperta para a realidade vivida naquele momento

no país e retrata a conscientização política desse sertanejo.

É importante lembrar que as artes de um modo geral e a imprensa sofreram um duro

processo de censura pelo Estado autoritário. No período em que a música foi composta há,

por parte do governo militar, uma preocupação com a institucionalização do novo Estado,

assumindo grande importância a redação de uma nova Constituição. Esta, deveria

incorporar as várias medidas incluídas nos atos institucionais decretados até aquele

momento, a saber: os AIs 1, 2 e 3.

Com o AI 1 são suspensos temporariamente as garantias da imunidade parlamentar,

dando ao Executivo o poder de cassar os mandatos de representantes governamentais.

Com esse ato os poderes do Congresso Nacional ficaram drasticamente limitados e muitos

poderes foram transferidos ao Executivo. O Presidente da República poderia introduzir

emendas constitucionais e através do mecanismo de decurso de prazo, os projetos

3 O vídeo do Festival de 1966 pode ser visualizado no link

<https://www.youtube.com/watch?v=82dRs2z6iQs>. Acesso em maio de 2014.

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considerados urgentes seriam automaticamente aprovados caso o Congresso não decidisse

em contrário no prazo de trinta dias. O Executivo passava a ter competência exclusiva em

legislação financeira ou orçamentária. Além disso, transferia do Congresso ao Executivo o

poder de decretar Estado de Sítio, reservando ao Executivo o direito de rejeitar ou aprovar a

iniciativa (ALVES, 2005).

Já o AI 2, segundo Alves (2005), implementa três categorias de medidas destinadas a

controlar o Congresso Nacional, o Judiciário e a representação política. Esse ato previa a

redução de maioria de dois terços para a maioria simples, o número de votos necessários à

aprovação de emenda constitucional apresentada pelo Executivo. Fixava em 45 dias o prazo

máximo para o Congresso discutir qualquer projeto de lei de iniciativa do Presidente da

República, e de 30 dias para os projetos de urgência.

O ato institucional aumentava o número de ministros do Superior Tribunal Federal

indicados pelo Presidente para garantir maioria em caso de interesse do Executivo.

Também transferia aos Tribunais Militares os processos que envolviam questões de

segurança nacional, eliminando a possibilidade de recurso. Previa que o Presidente da

República e o vice presidente seriam eleitos indiretamente por um Colégio Eleitoral, eleição

que ocorreria em sessão pública com voto nominal. Os direitos políticos seriam suspensos

por dez anos para aqueles que desafiassem a segurança nacional e as cassações não

teriam substituições.

Talvez o fato político mais importante do AI2 foi a extinção dos partidos existentes.

Como as exigências para a constituição de novos partidos eram muito grandes, na prática,

constitui-se no Brasil o bipartidarismo forçado. De um lado representando o governo, estava

a ARENA (Aliança Renovadora Nacional) e de outro, uma oposição responsável que

oferecesse crítica construtiva ao governo, na visão dos idealizadores do Estado, o MDB

(Movimento Democrático Brasileiro).

Segundo Alves (2005), o Estado começou a construir uma base paralela de poder em

seu próprio quadro legal através dos atos institucionais, bem como no Aparato Repressivo.

Estabeleceu-se um conflito permanente entre os dois grupos dentro do Estado. A extinção

dos partidos políticos desarticulou a oposição, permitindo ao Presidente Castelo Branco

aprofundar medidas para a institucionalização definitiva do Estado de Segurança Nacional.

O AI 3 decretado a 5 de fevereiro de 1966 estabelecia que a partir daquele momento

os governadores seriam eleitos indiretamente por maioria absoluta das assembleias

legislativas. A votação seria pública e nominal. Os prefeitos de todas as capitais seriam

nomeados pelos governadores, os demais poderiam ser eleitos por voto popular secreto

(ALVES, 2005).

É nesse contexto que é composta a música disparada. Uma tentativa dos autores

de despertar a consciência política da população para a realidade da ditadura vivida no país.

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É uma canção engajada politicamente na crítica ao regime. O hipotético narrador da sua

história deixa bem claro que pode não agradar a todos, mas que não irá se furtar de dizer,

ou “cantar” o que pensa. Isso fica claro nos versos em que reforça sua identidade de

sertanejo, “Eu venho lá do sertão e posso não lhe agradar”. A afirmação da identidade de

protesto aparece várias vezes na letra da música, como nos versos a seguir: “Aprendi a

dizer não, ver a morte sem chorar”. A coragem do narrador mistura a noção da coragem do

boiadeiro, do vaqueiro, com a coragem para a luta política. A morte causada pelo aparelho

repressivo do Estado fazia parte da realidade brasileira naqueles anos. “E a morte, o

destino, tudo... estava fora de lugar, eu vivo pra consertar”. Vemos aí a disposição do

narrador em mudar a realidade, consertar o que está errado. As coisas estão fora de lugar,

não deveriam estar assim e o objetivo do narrador é consertar. Quando afirma “eu vivo pra

consertar” é mais do que apenas uma disposição de mudar a realidade, ele afirma que o

próprio objetivo de sua vida é consertar. E isso é apresentado em tom de desafio por

alguém que vê a morte sem chorar.

Os versos da segunda estrofe narram a história do boiadeiro. “Na boiada já fui boi,

mas um dia me montei...”. Aborda as circunstâncias em que o narrador se torna um

boiadeiro... “por necessidade/do dono de uma boiada cujo vaqueiro morreu”. No entanto, a

expressão “na boiada já fui boi” pode também se referir ao fato de que ele fora mais um,

sem senso crítico, que apenas seguia o rumo da boiada, ou dos outros, sem se questionar

sobre a realidade que o cercava.

Os próximos versos, que figuram na terceira estrofe narram a saga do boiadeiro:

“Boiadeiro muito tempo, laço firme e braço forte/Muito gado, muita gente pela vida segurei/

Seguia como num sonho, e boiadeiro era um rei”. Retrata o sonho no qual vive o autor,

muito longe da realidade de falta de liberdade do país. Pode significar que na esfera

pessoal, o autor estava plenamente realizado no cumprimento de seu ofício de boiadeiro,

mas também pode significar de um ponto de vista mais abrangente, em termos das classes

sociais, que o boiadeiro era o rei, não era contestado, tinha o domínio do gado e das

pessoas que estavam abaixo dele na escala social. O fato de ser boiadeiro era suficiente

para fazer a felicidade do narrador, ele era uma pessoa realizada através de seu ofício, de

seu trabalho. Podemos aproveitar esse momento para abordarmos que muitas pessoas no

Brasil viveram o período da ditadura e não se deram conta da falta de liberdade, das

prisões, torturas e mortes que ocorreram no período. Podemos inclusive trabalhar com os

dados sobre a democracia no Brasil e veremos que uma grande percentagem da nossa

população não tem a democracia como um valor a ser defendido nos dias atuais. Tanto que

é comum se ouvir falar que no tempo dos militares não havia tanta bagunça, problemas com

drogas e favelas como existem hoje.

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Os versos seguintes da terceira estrofe “Mas o mundo foi rodando nas patas do meu

cavalo/E nos sonhos que fui sonhando, as visões se clareando/As visões se clareando, até

que um dia acordei” apontam para a conscientização política do narrador. Ele acordou de

um sonho, pois enquanto não tinha consciência da realidade que o cercava vivia em pleno

sonho. Mas o movimento do mundo rodando nas patas do seu cavalo fez com que houvesse

uma mudança, a ideia de que o movimento pode levar à mudança aparece aqui. E a clareza

da realidade o desperta daquele sonho, daquela fantasia que vivera até então. O narrador

aposta que ao contar a sua história de seu despertar político poderia fazer com que outros

também despertassem do sonho para a realidade da ditadura no Brasil. Era como se

dissesse: acorda, o Congresso está com seus poderes diminuídos, os partidos foram

extintos, não temos liberdade de opinião e de expressão no país. As pessoas estão sendo

presas, torturadas, mortas, perdendo seus direitos políticos. Não podemos mais escolher

nossos governadores e nem os prefeitos das capitais.

Os versos da quarta estrofe simbolizam o período após o despertar político do

narrador que não pode seguir como se nada tivesse acontecido. E afirma: “E dono de gado

e gente, porque gado a gente marca/Tange, ferra, engorda e mata, mas com gente é

diferente”. Trata-se de um alerta, para aqueles que dominam pela força e apostam na

subserviência dos demais, de apenas seguir como ruminantes, sem pensar. Aqui o narrador

estabelece a diferença entre gado e gente e alerta. Gente pensa, pode despertar para a

realidade, acordar do sonho a qualquer momento. É ao mesmo tempo um alerta para as

autoridades do Estado de Segurança Nacional, para as classes dominantes de um modo

geral, e um chamamento para as classes populares dominadas, ou para a população em

geral, para que despertem para a realidade. Lembremos que nesse período ainda não havia

sido decretado o AI5 (denominado o golpe dentro do golpe), o mais restritivo dos atos

institucionais que marca a ascensão da linha dura ao poder. Em 1966 havia a esperança de

que o Brasil pudesse voltar a ser uma democracia. Essa foi a promessa dos militares ao

assumir o poder em 1964 e continuava sendo em 1966, numa dialética relação entre Estado

e oposição (ALVES, 2005).

Os últimos versos da quarta estrofe se referem àqueles que não concordam com a

visão do narrador. O narrador afirma que se isso acontecer... “não posso me desculpar/Não

canto pra enganar, vou pegar minha viola/Vou deixar você de lado, vou cantar noutro lugar”.

Com certeza haveria aqueles que não concordariam com o canto conclamando para o

despertar da consciência política do autor. Mas o autor, não iria se desculpar, iria utilizar

seus versos, que funcionam aqui como um discurso político, para convencer outros para a

sua causa, que era a causa da liberdade e de certa dose de igualdade que aparece no

último verso da música: “Laço firme e braço forte num reino que não tem rei”. A ousadia e a

coragem dos autores teve seu preço. Geraldo Vandré teve sua coragem testada pelo regime

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militar a ponto de ser preso e torturado. E hoje ao assistirmos a documentários e entrevistas

com Vandré não conseguimos reconhecer o jovem corajoso que escrevera esses versos e

tantos outros, desafiara um regime de exceção com suas lindas canções conclamando a

todos para lutar pela liberdade e falar das flores em tempos de canhões.

APESAR DE VOCÊ Hoje você é quem manda Falou, tá falado Não tem discussão A minha gente hoje anda Falando de lado E olhando pro chão, viu Você que inventou esse estado E inventou de inventar Toda a escuridão Você que inventou o pecado Esqueceu-se de inventar O perdão Apesar de você Amanhã há de ser Outro dia Eu pergunto a você Onde vai se esconder Da enorme euforia Como vai proibir Quando o galo insistir Em cantar Água nova brotando E a gente se amando Sem parar Quando chegar o momento Esse meu sofrimento Vou cobrar com juros, juro Todo esse amor reprimido Esse grito contido Este samba no escuro Você que inventou a tristeza Ora, tenha a fineza De desinventar Você vai pagar e é dobrado Cada lágrima rolada Nesse meu penar

Apesar de você Amanhã há de ser Outro dia Inda pago pra ver O jardim florescer Qual você não queria Você vai se amargar Vendo o dia raiar Sem lhe pedir licença E eu vou morrer de rir Que esse dia há de vir Antes do que você pensa Apesar de você Amanhã há de ser Outro dia Você vai ter que ver A manhã renascer E esbanjar poesia Como vai se explicar Vendo o céu clarear De repente, impunemente Como vai abafar Nosso coro a cantar Na sua frente Apesar de você Amanhã há de ser Outro dia Você vai se dar mal Etc. e tal Fonte: < http://www.vagalume.com.br/chico-buarque/apesar-de-voce.html>

A música “Apesar de você” de Chico Buarque foi composta em 1970, período

imediatamente posterior à decretação do AI5. Para driblar a censura, o autor utiliza uma

linguagem figurada, que sugere que a música trata de uma relação amorosa, onde a mágoa

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do autor poderia ser interpretada como a mágoa ou o despeito por um amor não

correspondido. No entanto, a música tem claros objetivos políticos e fora censurada sendo

que só foi incluída em um álbum do cantor em 1978.

O AI5 dava plenos poderes ao Executivo para fechar o Congresso Nacional, as

assembleias estaduais e câmaras municipais. Também permitia a cassação de mandatos

eleitorais de membros dos poderes Executivo e Legislativo nos níveis federal, estadual e

municipal (ALVES, 2005).

Além disso, previa o direito de suspender por dez anos os direitos políticos dos

cidadãos e a reinstituição do “Estatuto dos Cassados”. O AI5 previa o direito de emitir

remover aposentar, por em disponibilidade funcionários públicos, juízes, bem como afetava

a vitaliciedade, inamobilidade e estabilidade do Judiciário. Dava ao Executivo o poder de

decretar estado de sítio, direito de confiscar bens, como punição por corrupção.

Um dos direitos civis mais fundamentais foi suspenso, que é a garantia do habeas

corpus, em todos os casos de crimes contra a Segurança Nacional. O julgamento de crimes

políticos passa a ser realizado por tribunais militares. O AI5 dava ao Executivo o direito de

legislar por decreto e baixar outros atos institucionais ou complementares. Previa também a

proibição de apreciação pelo Judiciário de recursos impetrados por pessoas acusadas pelo

AI5. Segundo Alves (2005), o AI5 marca o fim da primeira fase de institucionalização do

Estado de Segurança Nacional e provoca um padrão constante de sublevação oposicionista

contra-ofensiva por parte do Estado.

Talvez seja por esse motivo que o autor inicia a música afirmando o poder de mando

do Estado. “Hoje você é quem manda/Falou tá falado/Não tem discussão”. As

consequências dessa falta de liberdade de opinião vem logo a seguir: “A minha gente hoje

anda/Falando de lado/E olhando pro chão, viu”.

A responsabilidade por tudo que está acontecendo é imputada ao governo ou ao

Estado repressor: “Você que inventou esse estado, e inventou de inventar toda a escuridão”.

Esse Estado não perdoa, não permite oposição, segundo o autor: “Você que inventou o

pecado/Esqueceu-se de inventar o perdão”.

Na segunda estrofe percebemos o estado de espírito do autor que demonstra

esperança na mudança do rumo político do país. “Apesar de você”, desse Estado autoritário,

desse governo.... “Amanhã há de ser outro dia”. Em seguida surgem várias expressões que

demonstram essa esperança e esse otimismo: “enorme euforia”, “Água nova brotando/E a

gente se amando sem parar”. Ao mesmo tempo em que há essa esperança de mudança, há

também um tom provocativo do autor ao governo. Isso fica evidente no trecho “Como vai

proibir/Quando o galo insistir em cantar”. Percebemos que o autor está querendo dizer que

não dá para calar a todos o tempo todo.

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Ao analisarmos essa letra, percebemos que Chico Buarque dedica somente a

primeira estrofe para falar da escuridão da ditadura, enquanto nas três estrofes restantes

encontramos a alternância entre essa grande esperança de mudança e a provocação ao

governo, ao regime e ao Presidente. A provocação fica evidente nos versos: “Inda pago pra

ver/O jardim florescer qual você não queria”. O autor afirma que o governo (que aqui poderia

parecer se tratar de um amor não correspondido)... “Vai se amargar/Vendo o dia raiar/Sem

lhe pedir licença”. Em tom sarcástico o autor afirma que “E eu vou morrer de rir/Que esse

dia há de vir/Antes do que você pensa”.

Na penúltima estrofe temos novamente o refrão: “Apesar de você/ Amanhã há de ser

outro dia. E diante desta nova situação que se afigura, o Presidente, terá que admitir “A

manhã renascer/E esbanjar poesia”. O governo é questionado: “Como vai se explicar...”

Lembrando que em algum momento, depois das mudanças e do retorno à liberdade, o

governo será chamado para explicar as prisões, torturas e mortes, bem como o

cerceamento da liberdade. Afinal de contas: “O céu vai clarear de repente/impunemente”.

Esse último termo tem uma função importante na letra, ao remeter à ideia de punição. Um

regime que pune constantemente seus críticos não poderá punir para sempre aqueles que

desejam a mudança política. Aqueles que buscam a luz que vem clarear o horizonte, acabar

com a escuridão. Afinal não há como punir, nem como abafar o coro do povo que está a

“cantar na sua frente”.

Na última estrofe ressurge a dura realidade de um regime sem liberdade, de “Todo

esse amor reprimido/Esse grito contido/Esse samba no escuro”. Mas novamente temos a

presença da esperança em um momento de redenção onde “Esse meu sofrimento/Vou

cobrar com juros, juro”. Quando esse momento chegar, onde o regime ou o Presidente

tenham a fineza de desinventar a tristeza, será um momento de acerto de contas do

governo com seu povo. Afinal “Você vai pagar e é dobrado/Cada lágrima rolada/Nesse meu

penar. E a música é encerrada num tom ameaçador apontando para esse novo dia, onde o

governo “...vai se dar mal/Etc. e tal”.

Esse tom provocativo de Chico Buarque lhe causou perseguições durante todo o

período do regime militar. O compositor chegou a utilizar pseudônimos para driblar a

censura. “Apesar de você” é o exemplo vivo da criatividade de um compositor que utiliza

uma série de figuras de linguagem para expressar a esperança de mudança em um tempo

em que não se podia dizer abertamente o que se pensava, não impunemente, como bem

retrata a letra.

QUE PAÍS É ESSE? Nas favelas, no senado Sujeira pra todo lado

Que país é esse? Que país é esse?

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A música “Que país é esse?” da banda Legião Urbana, cuja composição é de seu

vocalista Renato Russo retrata a rebeldia de uma geração que acabara de viver a ditadura

no Brasil. Foi lançada em 1987, momento em que ainda vivíamos uma transição para a

democracia. Uma longa transição pactuada pela elite militar e pela oposição, que havia

colocado no poder um Presidente civil, José Sarney. Este assumira a presidência por obra

da fortuna, como diria Maquiavel, após a morte do Presidente eleito Tancredo Neves.

A mesma transição que negou ao povo brasileiro a oportunidade de eleger pelo voto

direto o seu Presidente, após a rejeição no Congresso Nacional da emenda Dante de

Oliveira. Segundo Kinzo (2001) esse tipo de transição irá marcar a futura democracia

brasileira. Para a autora, a democratização não foi produto de uma ruptura com a antiga

ordem, pois a reconstrução do sistema político deu-se através de acomodações e do

entrelaçamento de práticas novas e antigas.

A geração do período em que a música foi composta é a que viu a banda Legião

Urbana estourar como um novo fenômeno do rock nacional, podemos caracterizá-la como

uma geração impaciente. Cansada de promessas vãs de democracia e participação popular,

essa geração queria tudo para ontem.

Com o fim da ditadura começaram a estourar denúncias de corrupção que são

retratadas na música. O tom questionador, tão característico de Renato Russo, já pode ser

sentido no título da música: “Que país é esse?” Questionamento profundo sobre o país, sua

identidade, seu lugar no cenário mundial. A denúncia à corrupção já aparece nos primeiros

versos: “Nas favelas, no Senado/Sujeira pra todo lado”. Esse trecho retrata a corrupção

disseminada na sociedade brasileira e nas suas instituições representativas como o Senado.

O debate sobre a corrupção pode levar a outro, abrangendo a questão da representação

política. Em outras palavras, até que ponto a corrupção afeta a representação política?

Ninguém respeita a constituição Mas todos acreditam no futuro da nação Que país é esse? Que país é esse? Que país é esse? No Amazonas, no Araguaia, na Baixada fluminense No Mato grosso, Minas Gerais e no Nordeste tudo em paz Na morte eu descanso mas o sangue anda solto Manchando os papéis, documentos fiéis Ao descanso do patrão

Que país é esse? Que país é esse? Terceiro Mundo se for Piada no exterior Mas o Brasil vai ficar rico Vamos faturar um milhão Quando vendermos todas as almas Dos nossos índios num leilão. Que país é esse? Que país é esse? Que país é esse? Que país é esse? Legião Urbana - Compositor: Renato Russo Fonte <http://www.vagalume.com.br/legiao-urbana/que-pais-e-esse.html>.

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Lembrando que para Miguel (2014), a noção moderna de representação política envolve

quatro problemas fundamentais que são: a separação entre governantes e governados, a

formação de uma elite política distanciada da massa da população, a ruptura do vínculo

entre a vontade dos representados e a vontade dos representantes e por fim, no caso da

representação eleitoral, há a distância entre o momento em que se firmam os compromissos

de campanha e o momento do exercício do poder, que corresponde ao mandato. Quando

ocorre a corrupção esses quatro elementos se misturam e geram uma crise de

representação.

Segundo Carvalho (2008) a corrupção política é um processo histórico, ela é antiga e

mutante. Para o autor houve uma mudança semântica em relação à corrupção no Brasil a

partir de 1945. Até esse período a acusação de corrupção era dirigida ao sistema, não às

pessoas individualmente e contra a sua falta de moralidade.

Ainda segundo Carvalho (2008) mudou também o tamanho da corrupção política, pois

ela depende da natureza e do tamanho do Estado. Segundo o autor: “Quanto maior o

Estado, quanto mais recursos ele controlar, maior as oportunidades de corrupção”

(CARVALHO, 2009, p. 239). Desse ponto de vista a corrupção aumentou após 1930,

quando houve uma considerável ampliação da máquina estatal. Outro fator que pode

beneficiar o aumento da corrupção é a impunidade.

Mudou também, segundo Carvalho (2008) a reação à corrupção. Ele afirma que a

reação à corrupção varia na razão direta do tamanho da classe média, pois é ela que está

mais cercada pela lei em função de sua inscrição profissional, e é ela que se beneficia das

políticas sociais. Sua alta escolaridade favorece a elaboração de uma visão crítica da

política e dos atores políticos.

José Murilo de Carvalho (2008) credita boa parte da reação à corrupção brasileira ao

processo de democratização brasileiro vivido no período em que a música foi composta. Ele

tem uma visão otimista sobre o futuro da reação à corrupção, prevendo que aos poucos,

teremos uma curva descendente da corrupção. O processo de pressão por reformas

políticas, no sistema policial e judiciário para impedir a corrupção teve um importante

incremento no país após 1985 e tende a crescer segundo o autor.

O Brasil, na visão do compositor da música é um país onde “Ninguém respeita a

constituição/Mas todos acreditam no futuro da nação”. Mais uma vez retrata a questão da

corrupção em toda a sociedade, o patrimonialismo e o desrespeito à lei. Remete a ideia de

que acredita-se que no final tudo vai dar certo, mesmo que eu não faça a minha parte na

sociedade, o meu dever cívico.

Após o refrão: “Que país é esse?”, na terceira estrofe o autor cita algumas regiões do

Brasil. “No Amazonas, no Araguaia, na Baixada Fluminense/No Mato Grosso, Minas Gerais

e no Nordeste tudo em paz”. Esse trecho remete mais à paz da morte onde “eu descanso

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mas o sangue anda solto/Manchando os papéis, documentos fiéis/Ao descanso do patrão”.

Nesse momento surge a crítica à exploração do patrão sobre o empregado. A paz está

ligada à morte e ao descanso do patrão, que é o único a desfrutar desse prazer, nunca o

trabalhador.

A quinta estrofe situa o Brasil no contexto internacional: “Terceiro Mundo se for/Piada

no exterior/Mas o Brasil vai ficar rico/Vamos faturar um milhão/Quando vendermos todas as

almas/Dos nossos índios num leilão”. Essa estrofe pode ser utilizada para trabalhar o plano

estratégico que os militares tinham para o Brasil no plano internacional. A ideia, defendida

pelos militares, de que o Brasil era um aliado privilegiado dos Estados Unidos no contexto

da Guerra Fria e que deveria exigir um tratamento especial por isso.

O milagre econômico brasileiro que foi feito graças aos empréstimos estrangeiros e ao

sacrifício das classes populares com o arrocho salarial e a hiperinflação. Tudo isso visava a

promover o desenvolvimento nacional capaz de colocar o Brasil no rol das grandes nações.

Um sonho muitas vezes posto no horizonte das elites brasileiras. Um país que no passado

já havia sacrificado seus índios, negros e brancos pobres. Percebemos os últimos versos

como um retorno ao passado, de exploração e de escravidão indígena, e a venda da alma

dos índios num leilão futuro parece significar a permanência de mazelas da nossa nação,

como a desigualdade social que tem um corte racial e de gênero. Apesar do autor apontar

para o futuro, ele também quer relembrar o passado.

Acreditamos que o título e o refrão da canção retratam muito bem o contexto político

do período em que ela foi composta. Um período de muitas expectativas geradas pela

redemocratização política, mas em que não se sabia quais caminhos o país iria seguir.

Tempo de esperança, mas de incerteza, onde ninguém se aventuraria a responder com toda

a certeza ao provocativo questionamento de Renato russo: “Que país é esse?”. Nos

perguntamos se hoje teríamos condições de responder a esse questionamento tão

instigante desse rapaz de Brasília que levou multidões de jovens a cantar suas músicas,

ansiosos por um novo país, menos corrupto, mais democrático e mais transparente.

É a gente quer valer o nosso amor a gente quer valer nosso suor a gente quer valer o nosso humor a gente quer do bom e do melhor a gente quer carinho e atenção a gente quer calor no coração a gente quer suar mas de prazer a gente quer é ter muita saúde a gente quer viver a liberdade

É a gente não tem cara de panaca a gente não tem jeito de babaca a gente não está com a bunda exposta na janela pra passar a mão nela É a gente quer viver pleno direito a gente quer é ter todo respeito a gente quer viver numa nação

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a gente quer viver felicidade

a gente quer é ser um cidadão Fonte:<http://www.vagalume.com.br/gonzaguinha/e.html>

A música “É” de Gonzaguinha foi lançada em 1988, no ano da promulgação da

Constituição, denominada Constituição Cidadã. Segundo a visão de Ângela Castro Gomes:

A Constituição de 1988 consagrou um novo patamar para os direitos da cidadania no Brasil, expandido os políticos, resguardando os civis e incorporando os sociais. Desse modo, tornou-se conhecida como a ‘Constituição Cidadã’, particularmente por inaugurar novas dimensões de direitos, como o direito do consumidor, e por fortalecer instituições, como o Ministério Público, cujo papel na salvaguarda da cidadania tem-se demonstrado valioso e crescente (GOMES, 2002, p.63).

A música analisada retrata de modo vivo o período final da redemocratização no Brasil

e a efervescência dos movimentos sociais que despontam após longos anos de ditadura

civil-militar. Registra-se aí os movimentos populares de bairros, o movimento feminista e o

movimento sindical, só para citar alguns exemplos. O movimento sindical que explode com

as greves do ABC paulista, concentradas principalmente no período de 1978 a 1980, mas

que se espalham no tempo e no espaço. As greves foram presentes de forma intensa no

Brasil dos anos 1980 em várias regiões do país.

A canção foi composta após o fim do Estado de Segurança Nacional implantado no

Brasil, quando se buscava uma participação política mais intensa. Em um momento

histórico-político em que os brasileiros viram frustrada a aprovação da emenda Dante de

Oliveira no Congresso, que propunha eleições diretas para Presidente da República. A

campanha das “Diretas Já” conseguiu reunir milhares de pessoas em praças públicas, numa

espantosa demonstração de participação política exigindo o direito de escolher o presidente.

O compositor Gonzaguinha mistura a esfera pública e privada na música, colocando

como sujeito “a gente” e passa a listar uma série de direitos que estavam e estão no

horizonte do conceito de cidadania. Este é um conceito chave que pode ser trabalhado com

a música. Podemos utilizar o clássico conceito de Marshall de cidadania cunhado na obra

“Cidadania, classe social e status”, onde o autor resgata o desenvolvimento da cidadania no

fim do século XIX e no século XX. Marshall divide o conceito de cidadania em três partes:

civil, política e social. Nas palavras do próprio autor:

O elemento civil é composto dos direitos necessários à liberdade individual – liberdade de ir e vir, liberdade de imprensa, pensamento e fé, o direito à propriedade e de concluir contratos válidos e o direito à justiça (...) Por elemento político se deve entender o direito de participar no exercício do poder político, como um membro de um organismo investido da autoridade

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política ou como um eleitor dos membros de tal organismo (...) O elemento social se refere a tudo que vai desde o direito a um mínimo de bem-estar econômico e segurança ao direito de participar, por completo na herança social e levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade (MARSHALL, 1967, p.63-64).

É nesse sentido que podemos entender a música como uma versão poética da

exigência de direitos no Brasil. Misturando questões mais ligadas à esfera pessoal, privada,

ou mais ligada aos sentimentos do coração como amor, carinho e atenção, prazer, humor, o

compositor traz também os direitos coletivos. Ele afirma “a gente quer é ter muita saúde, a

gente quer viver a liberdade”. Isso remete aos direitos sociais, como o direito à saúde, bem

como aos direitos civis e políticos, como o direito à liberdade que envolve os direitos civis de

ir e vir, e o direito à livre expressão, tão cerceado no período da ditadura civil-militar

implantada em 1964.

Gonzaguinha encerra a primeira parte da música com a expressão “a gente quer viver

felicidade”. Para se ter felicidade, precisamos (a gente) ter o nosso amor, nosso suor, do

bom e do melhor, carinho e atenção, suar mas de prazer, ter muita saúde, viver a liberdade.

As marcas da visão coletiva do autor está presente nas expressões “a gente” e “nosso”.

Até o humor é nosso. Afinal para se ter calor no coração não significa que isso seja

algo individual, mas é algo da gente brasileira. E o carinho e a atenção não tem que ser

necessariamente do ponto de vista individual, mas pode ser o carinho e a atenção das

autoridades, dos políticos ou daqueles que tomam as decisões políticas. A música fala em

nome dessa gente brasileira que está dizendo o que quer nesse momento específico da

história política do Brasil. Por isso o termo “quer” também tem um significado chave na letra

e remete a várias demandas contidas do querer do povo ao longo da história de nosso país.

Essa gente brasileira que quer do bom e do melhor e não está disposta a se contentar

com pouco. É o momento de expressar esse “querer mais” da população sufocada por 21

anos de ditadura e sem acesso ao mínimo de bem-estar, assolada pelo arrocho salarial e

pela inflação. Gente essa que teve pouca participação política ao longo da nossa história.

Gente que não figurou como ator político importante na Independência do país, nem na

Proclamação da República. Que teve os direitos sociais “concedidos” pelo Estado após

1930, antes mesmo dos direitos civis e políticos serem assegurados.

Entendemos essa letra como uma tentativa de abordar a visão da população brasileira

e de seus quereres. Ao mesmo tempo em que o autor afirma isso na primeira estrofe, na

segunda afirma o que não é. A interjeição de negação tem um papel fundamental aí. Afinal

“a gente não tem cara de panaca/a gente não tem jeito de babaca...” Isso pode ser

analisado do prisma que está havendo uma conscientização da população em busca dos

seus direitos fundamentais e que não será fácil enrolar o povo com promessas vãs. Afinal “a

gente não está com a bunda exposta na janela pra passar a mão nela”.

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Podemos trabalhar nesse momento em sala de aula com a noção de consciência

política da população e do despertar na luta por direitos. O autor sinaliza para o fato de que

o povo, a população ou essa gente está sabendo dos seus direitos e não se deixará

enganar facilmente.

Na última estrofe da música Gonzaguinha afirma que “a gente quer viver pleno

direito/a gente quer é ter todo respeito”. Esses versos remetem à busca da plenitude dos

direitos, tão distantes ainda de serem alcançados no Brasil, um dos países mais desiguais

do mundo. Aparece outra categoria fundamental para se entender a visão do autor que é a

noção de respeito. Por um lado, expressa a visão da população exigindo respeito dos seus

governantes, das elites do país que demonstraram pouco respeito pelo povo ao longo da

nossa história. Por outro lado pode ser visto também como o respeito que o povo deve ter

pelo bem público, fazendo a sua parte para que as coisas funcionem.

Nos últimos versos dois conceitos fundamentais podem ser trabalhados de forma

individual ou conjunta, que são os conceitos de nação e cidadão. Nos versos “a gente quer

viver uma nação/a gente quer é ser um cidadão”. É o fechamento da letra que remente para

a noção de uma nação onde a cidadania passa a ter um papel central.

Esses dois conceitos remetem à visão do autor sobre a ideia da nação brasileira.

Tema que já foi a preocupação de tantos pensadores e artistas brasileiros, que vêm lá de

José de Alencar tentando consolidar nossa identidade utilizando como categoria central

nossa herança indígena. A preocupação central de Gonzaguinha talvez não seja mais a

questão da identidade nacional baseada na raça, mas com certeza a questão da

desigualdade e do preconceito de cor estão presentes quando se trata de cidadania. O

acesso aos bens e informações em nosso país sempre estiveram interligados a questões

raciais e de gênero.

A nação presente na música de Gonzaguinha é a nação de direitos plenos, onde o

povo quer ser cidadão. É uma nação que respeita os direitos da sua gente que quer

expressar sua opinião e sua vontade (o querer é a expressão da vontade na música).

Vontade essa, que deve ser respeitada por aqueles que tomam as decisões, pois a

população está expressando sua visão através da luta por direitos, luta cada vez mais

presente na sociedade brasileira.

A música também pode ser vista, como um sinal de alerta para o despertar da

consciência política da população brasileira no processo de redemocratização. Seja a partir

de um viés crítico representado pela luta pelos direitos, seja por meio de um momento de

esperança, de um novo tempo de maior participação política. O período em que a música foi

composta foi um momento crítico do ponto de vista econômico, com uma hiperinflação e um

endividamento externo crescente do Brasil, onde era cada vez mais difícil para as classes

mais baixas da população ter “do bom e do melhor”. De qualquer forma remete à discussão

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sempre presente e tão atual que é a da constituição da nação brasileira. Uma nação que

para Gonzaguinha não pode prescindir da cidadania.

4. Considerações finais

Após esta reflexão, concluímos que trabalhar com a música nas aulas de Ciência

Política é buscar uma metodologia diferenciada para a transposição de conceitos. Através

deste trabalho foi possível fazer com que os alunos compreendessem e relacionassem os

conteúdos das aulas com o cenário político e social que foi abordado nas letras musicais. A

transposição didática tem papel fundamental nesse processo, pois é através dela que o

professor poderá sensibilizar o aluno e viabilizar o aprendizado, que pode ser entendido

como o processo de transformação de “um saber a ensinar em um objeto de ensino”

(CHEVALLARD, 2013, p.45), em outras palavras, é o processo ao qual o conhecimento

científico passa para então ser transformado em conhecimento escolar.

Este processo não pode ser entendido como uma linha vertical e finita, e sim como

um processo contínuo, dialogado e prazeroso. Além disso, praticizar a teoria e teorizar a

prática (FREIRE, 2005) é um movimento intelectual que precisa ser exercitado cada vez

mais nos cursos de Ciências Sociais e pensamos que a música pode se tornar um suporte

importante para realização dessa tarefa.

Desse modo, foi possível abordar categorias e conceitos da área de Ciências Sociais

que podem ser aplicados na prática educativa nas aulas de Ciência Política, como:

democracia, ditadura, cidadania, representação, governo, nação, corrupção, participação

política, etc. Mais que uma proposta metodológica, é uma tentativa de conciliar a teoria com

a prática, uma prática que esteja contemplada no cotidiano do aluno, e que, portanto,

possibilite a concretização do que prevê as resoluções concernentes ao ensino de

Licenciatura em Ciências Sociais no Ensino Superior (CNE/CP 1, 2002).

Referências

ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil: 1964-1984. Bauru-SP: Edusc, 2005. BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. A Reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. 16. ed. Tradução de Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012.

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BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Resolução CNE/CP 1 de 18 de fevereiro de 2002, institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica, em nível superior, curso de licenciatura, de graduação plena. Disponível em <http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/res1_2.pdf> acesso em 14 de dezembro de 2013. CARVALHO, José Murilo de. Passado, presente e futuro da corrupção brasileira. In: AVRITZER, et all. Corrupção: ensaios e críticas. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2008, p. 237 a 242. CHEVALLARD, Yves. La transposición didática: del saber sabio al saber enseñado. 3. ed. Buenos Aires: Aique Grupo Editor, 2013. CUNHA, Luis Antônio. A educação na Sociologia: um objeto rejeitado? Cadernos Cedes: Sociologia da Educação: diálogo ou ruptura, São Paulo: Papirus, 27, p. 9-22, 1992. DAHL, Robert. Poliarquia: participação e oposição. São Paulo: EDUSP, 2012. DIAS DA SILVA, Graziella Moraes. Sociologia da Sociologia da Educação: Caminhos e Desafios de uma Policy Science no Brasil (1920-1979). Bragança Paulista: EDUSF, 2002. FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 41. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005ª. FREITAS, Revalino Antonio de. Estágio supervisionado: um espaço privilegiado de formação na licenciatura em Ciências Sociais. In: OLIVEIRA, Dijaci David de; RABELO, Danilo; FREITAS, Revalino Antonio de. Sociologia no ensino médio: experiências e desafios. Goiânia: UFG/FUNAPE, 2010. __________________________. A licenciatura em Ciências Sociais diante da reinserção da Sociologia no ensino médio. In: OLIVEIRA, Dijaci David de; RABELO; FREITAS, Revalino Antonio. Ensino de Sociologia: currículo, metodologia e formação de professores. Goiânia: UFG/FUNAPE, 2011. GOMES, Angela de Castro. Cidadania e direitos do trabalho. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002. KINZO, Maria D’Alva G. A democratização Brasileira: um balanço do processo político desde a transição. São Paulo em Perspectiva, n. 15 (4), 2001. MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967. MIGUEL, Luis Felipe. Democracia e representação: territórios em disputa. São Paulo: Editora da UNESP, 2014. MORAES, Amaury Cesar. “Ensino de Sociologia: periodização e campanha pela obrigatoriedade”. Cadernos CEDES, v. 31, p. 359-382, 2011. RAIZER, Leandro; MEIRELLES, Mauro; PEREIRA, Thiago Ingrassia (orgs). Ensino de Sociologia no Rio Grande do Sul: desafios docentes e metodologia de ensino. In: OLIVEIRA, Dijaci de; RABELO, Daniel; FREITAS, Revalino Antonio de. Ensino de Sociologia: currículo, metodologia e formação de professores. Goiânia: UFG/FUNAPE, 2011. ROCHA, Décio; DEUSDARÁ, Bruno. Análise de Conteúdo e Análise do Discurso: aproximações e afastamentos na (re)construção de uma trajetória. Alea. v. 7, n.2, p. 305-322, 2005.