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DEFEITOS DA PEDAGOGIA Jeanne Hersch Uma professora primária contou-me o seguinte: ela disse a Cecília: “Você vai ser castigada”. Cecília olhou-a estupefata e, pondo a ponta do dedo na têmpora, falou: “Você não está regulando bem, está?” Feliz criança, pensará você, enfim liberada, depois de séculos de servidão, espontânea, sincera, sem mais medos agora. A pedagogia contemporânea. é prisioneira de um sistema de clichês tão denso que se tornou quase impossível combatê-lo. Para fazê-lo, é preciso voltar às evidências primárias da condição humana, e este esforço intimida. E preciso, além do mais, opor-se à quase unanimidade dos experts, cuja abertura do espírito futurista só se iguala ao dogmatismo sempre um pouco ameaçador. Alguns destes clichês: o professor e os alunos encontram-se, salvo casos de cumplicidade contra a ordem estabelecida, em situação de luta de classes, constituindo os alunos a classe oprimida. O aluno é, a princípio, um ser humano livre, justo,

Jeanne Hersch - Defeitos Da Pedagogia

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DEFEITOS DA PEDAGOGIA

Jeanne Hersch

Uma professora primária contou-me o seguinte: ela disse a Cecília: “Você vai ser castigada”. Cecília olhou-a estupefata e, pondo a ponta do dedo na têmpora, falou: “Você não está regulando bem, está?”

Feliz criança, pensará você, enfim liberada, depois de séculos de servidão, espontânea, sincera, sem mais medos agora.

A pedagogia contemporânea. é prisioneira de um sistema de clichês tão denso que se tornou quase impossível combatê-lo. Para fazê-lo, é preciso voltar às evidências primárias da condição humana, e este esforço intimida. E preciso, além do mais, opor-se à quase unanimidade dos experts, cuja abertura do espírito futurista só se iguala ao dogmatismo sempre um pouco ameaçador.

Alguns destes clichês: o professor e os alunos encontram-se, salvo casos de cumplicidade contra a ordem estabelecida, em situação de luta de classes, constituindo os alunos a classe oprimida. O aluno é, a princípio, um ser humano livre, justo, criativo, dotado de espírito crítico, que precisa apenas de encorajamentos. Em caso de conflito, forçosamente é ele quem tem razão, já que a causa do conflito está no professor. O professor, se tem autoridade, manipula o aluno, sujeitando-o a seus próprios interesses e aos privilégios da sociedade da desigualdade que o emprega. Os alunos sonham viver com o professor em liberdade, igualdade, um companheirismo que lhes deixa uma espontaneidade plena e inteira, espontaneidade favorável a seu espírito criador. O espírito criador do aluno é, aliás, quase sempre superior ao do professor, e, como não se trata de aprender, mas de inventar, a superioridade do professor é nula e o exercício de sua autoridade, ilegítimo. Reino da fórmula nietzschiana: tudo é permitido.

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Este quadro ideológico é forçado? Muito pouco. Se ele parece excessivo, é que na prática

inevitavelmente aparecerão incoerências. Assim, se quiséssemos ser consequentes, deveríamos suprimir a escola, pura e simplesmente.

Neste quadro, quase todos os elementos podem ser invertidos. Tentemos.

Os alunos são a razão de ser, a finalidade da escola. A escola, os professores, estão ali a serviço deles.

Os alunos são, de início, crianças inseguras que acabam de largar as mãos dos pais. Estão ansiosos por perguntar, são confiantes, procuram receber respostas verdadeiras, admirar exemplos válidos, orientar-se num mundo onde, sozinhos, se sentem perdidos. Eles repetem as palavras dos outros, aprendem a língua da tribo, porque já têm necessidade de dizer para poder fazer - porque obscuramente, sendo filhotes, procuram, através dos outros, tornar-se eles mesmos, quer dizer, livres. Eles sentem, desde o começo, que para serem livres é preciso aprender, aprender o universo, aprender os outros, e a língua dos outros. Querem saber o que permitido e o que é proibido, e que o limite entre os dois seja nítido e constante. Isto os tranquiliza, numa idade em que têm grande necessidade de ser tranquilizados, e que vai muito além da primeira infância.

Nenhuma espécie gera filhotes tão inacabados ao nascerem como a espécie humana. Por isso o processo do tornar-se humano é inextricavelmente biológico e sócio-cultural. Além disso, o meio sócio-cultural pertence a uma civilização desenvolvida, e, quanto mais demora o processo, mais tarde a criança chega à idade adulta. A precocidade sexual não muda nada. Logo, os alunos precisam dos professores. Quanto mais eles progridem em direção à liberdade responsável, melhor sabem que não são ainda livres, que devem ser. Eles desejam a autoridade dos adultos. Quando ela falta, e mesmo se dissessem o contrário, eles sofrem uma espécie de angústia, no vazio.

A liberdade, se exercida na segurança e na plenitude, não se

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confunde com o tumulto no vazio. Em 1968, quando os jovens, em vários lugares, descobriram

que seus pais e professores, encantados ou covardes diante de seus slogans e barricadas, não eram adultos, mas adolescentes envelhecidos, quando os governos quase desmoronaram diante deles, ficaram traumatizados, muito mais pelo sucesso do que pelas derrotas que se seguiram. Muitos, mais fracos e mais sensíveis que os outros, não se recuperaram jamais. Não são, portanto, as crianças e os jovens que não são suficientemente livres, nas famílias ou na escola. São os adultos, pais e professores, que não são suficientemente livres para ter a autoridade que os jovens precisam. Frequentemente, eles nem sabem, nem vivem, o que “livre” quer dizer.

Há, num romance de Czeslaw Milosz, uma cena em que um menino cospe a hóstia da comunhão e, no topo de uma colina, diante de um enorme rochedo, quebra-a solenemente diante de Deus, esperando que o céu caia sobre ele. Desespero sob a calma do céu.

Os desafios atuais, na escola, na família, têm, frequentemente, muitos traços em comum com este gênero de provocação. As crianças, os alunos, os jovens, em quase todos os lugares, tentam suscitar diante deles verdadeiros adultos, livres e capazes de exercer autoridade. Geralmente, em vão. Fazem uma descoberta terrível: estão sós no mundo, pois não existem adultos.

A liberdade não é o arbitrário. Ela não é qualquer coisa, de qualquer jeito, em qualquer lugar. Está ligada à verdade. A verdade, ninguém a possui. Ma todos a possuem mais ou menos. É normal e necessário, na infância e adolescência, ter confiança em certos adultos, cuja autoridade é, para sua liberdade em desenvolvimento, a figura provisória da verdade.

A força de reprimir detida pelo professor não constitui a autoridade, mas é apenas seu símbolo. E que a autoridade é de natureza simbólica, ela se dirige à liberdade em desenvolvimento do aluno e não tem sentido senão para ela. (Deste modo, ela parece com o direito, que se impõe simbolicamente aos cidadãos,

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ao mesmo tempo que têm a possibilidade de recorrer à força da polícia.) A autoridade exercita-se, então, ao mesmo tempo (e por isto ela é simbólica) como tolhimento exterior e como coisa reconhecida pelo íntimo. O professor que exerce autoridade deve saber também obedecer às exigências da verdade, e os alunos aceitam sua autoridade quando estão convencidos dela. Neste ponto, o julgamento dos jovens é remarcavelmente seguro.

Existe uma idade para a rebelião. O adolescente revolta-se, porque este mundo não responde a suas exigências absolutas: o adulto não é suficientemente verdadeiro, nem suficientemente constante, a sociedade é muito injusta, os esforços não são devidamente recompensados, há muito sofrimento, não muito rigor, muita mentira, o mundo que lhe oferecem não é nem o paraíso, nem o campo poético da grande aventura. Deus não existe, ou está escondido. O adolescente deve passar pela experiência da revolta e medir, dentro desta revolta, as exigências que é capaz de dirigir a si mesmo. Mas, para que esta revolta seja boa e faça dele um adulto, capaz de exercer uma autoridade viva entre as necessidades contraditórias de estabilização e ruptura, ainda é preciso que ele tenha adquirido, graças à autoridade dos adultos, durante sua aprendizagem da liberdade, a segurança profunda indispensável. Ainda é preciso que sua revolta se choque agora com uma autoridade -- senão ela se perderá nos gritos e no nada, e ele se destruirá.

A liberdade não existe sem respeito. O aluno cresce em liberdade graças à autoridade, mesmo se um dia ele é contra a autoridade. O professor, se é livre, respeita no aluno sua liberdade em desenvolvimento. Suas exigências nascem desse respeito, pois o respeito é o contrário da complacência.

Quando o professor respeita o aluno, ele não o “trata” (no sentido quase médico do termo) como um objeto sobre o qual ele teria, por sua formação profissional, um conhecimento psicológico que lhe permitiria aplicar as “técnicas” da pedagogia contemporânea. Ele trabalha com o aluno em outra coisa, quer se trate de aprender, compreender ou descobrir. Seu ponto de

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encontro com o aluno é o objeto de estudo que lhes é comum, e é, de imediato, no saber e na competência do professor em relação a esse objeto que se fundamenta sua necessária autoridade. Os pedagogos que não têm nenhuma matéria para ensinar na escola só podem tomar como objeto o aluno, o que é contrário ao respeito, à liberdade e à autoridade. O aluno forma-se indiretamente durante um estudo em que seus esforços convergem com os do professor em direção a um objetivo comum.

Quando falta autoridade, a liberdade perde-se no arbitrário, a falta de sentido domina, não existe mais para os jovens um verdadeiro caminho que os conduza a si mesmos. Os mais fortes — nesta escola que se diz anti-elitista — escapam com a ajuda da autoridade que nos fala ainda através das grandes obras do passado. Os mais fracos naufragam. Ou, então, aceitam, no vazio, qualquer obediência cega, que conduz à violência e ao terror.

Em O Estado de São Paulo, “Suplemento Cultura”, 09/05/1982. Originalmente

publicado em Commentaire.