JESSOP, Bob. - Althusser, Poulantzas, Buci-Glucksmann.. Desenvolvimentos Ulteriores Do Conceito Gramsciano de Estado Integral

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    Althusser,Poulantzas,

    Buci-Glucksmann:desenvolvimentosulteriores doconceito gramsciano

    de Estado integral*BOB JESSOP **

    Este artigo explora alguns dos modos pelos quais as análises do Estado integrale da hegemonia feitas por Gramsci nos Cadernos do cárcere (1929-35) foraminterpretadas, criticadas e desenvolvidas nas décadas de 1960 e 1970 por dois

    marxistas franceses e um marxista grego radicado na França: Louis Althusser,Christine Buci-Glucksmann e Nicos Poulantzas. Embora os três tenham sido li-dos essencialmente como marxistas estruturalistas, suas apropriações de Gramsciforam marcadamente distintas e, na verdade, antagônicas. Aqui não tenho es- paço para apresentar o trabalho de Gramsci como ponto de referência para esseexercício, mesmo que uma leitura inocente fosse possível. Assim, inicio com arecepção, em geral crítica, que Althusser fez da filosofia da práxis de Gramsci esua visão alternativa da ideologia e dos Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE).Em seguida, retomarei três momentos na recepção mais positiva de Gramsci por

     parte de Poulantzas, notadamente no que se refere à especificidade histórica daluta burguesa pela hegemonia nacional-popular e o papel que o Estado capitalista

    *  Artigo publicado originalmente sob o título de Althusser, Poulantzas, Buci-Glucksmann: Weiter-entwicklung von Gramscis Konzept des integralen Staats. Sonja Buckel e Andreas Fischer-Lescano(Orgs.). Hegemonie Gepanzert mit Zwang. Zivilgesellschaft und Politik im Staats-verständnis AntonioGramscis . Baden-Baden: Nomos, 2007, p.43-65. Traduzido do inglês por Marcos Soares. Revisãotécnica de Andréia Galvão.

      **  Professor do Departamento de Sociologia da Universidade de Lancaster. Devido à variação das datasda primeira publicação de materiais até então não publicados e de suas traduções subsequentes,

    as datas são dadas primeiro pela edição empregada, seguida da data de redação do manuscrito ouprimeira data de sua publicação. (N.A.)

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    desempenha para assegurar a dominação de classe burguesa. Enfim, terminareicom a releitura filosófica que Buci-Glucksmann faz das notas de Gramsci sobre ahegemonia e o integraler Staat ( stato integrale) nos termos de seu novo conceitode erweiterter Staat ( stato allargato).

    Dos Aparelhos Ideológicos de Estado ao materialismo aleatório

    Althusser retornou com regularidade ao tema do Estado e da política desde a publicação de Politics and History. Montesquieu, Rousseau, Marx (1972) e emdiversas ocasiões desenvolveu sua teorização sobre o Estado, estabelecendo umdiálogo com Maquiavel, Rousseau, Marx, Lenin e Gramsci. Suas contribuiçõesmais significativas tratam da contradição e da sobredeterminação em conjunturasrevolucionárias; do papel do Estado na reprodução da classe dominante, comênfase especial nos papéis dos Aparelhos Repressivos de Estado e nos AparelhosIdeológicos de Estado; da ideologia e da sujeição; do Estado como um aparelho,uma máquina e um grupo de homens armados; e das condições conducentes a umaforma durável de governo. Embora Althusser tenha, por diversas vezes, elogiadoa abordagem materialista histórica do Estado desenvolvida por Gramsci, ele nãolevou adiante uma leitura sintomática do trabalho do escritor sardenho sobre oassunto. No máximo, ele citou a distinção que Gramsci estabelece entre a sociedadecivil e a sociedade política e a importância das instituições e das organizaçõescivis para a reprodução da dominação de classe nos campos econômico, políticoe ideológico. No outro extremo, acusou Gramsci de um “historicismo absoluto”

    e, em uma ocasião importante, rejeitou na íntegra a discussão de Gramsci sobrea hegemonia e sua recepção no pós-guerra (ver a seguir). Isso sugere que, emvez de ler os argumentos de Althusser sobre o Estado como se eles tivessem sidoderivados de Gramsci, seria melhor lê-los como uma alternativa direta e crítica aele. Na verdade, embora haja algumas semelhanças superficiais e insignificantes,suas diferenças são profundas e fundamentais.

    Para nossos propósitos, o comentário mais positivo de Althusser sobreGramsci está em A favor de Marx, onde ele argumenta que ainda faltava ao mar-xismo uma teoria adequada sobre a especificidade e a eficácia das superestruturas

    e que, depois de Marx e de Lenin, apenas Gramsci havia realmente elaborado esseaspecto, antes do próprio Althusser.1 Ele também comenta favoravelmente o con-ceito ampliado de Gramsci do intelectual2 e argumenta que, para uma compreensãoreal da sobredeterminação dos fatores econômicos, era necessário desenvolver “ateoria da eficácia específica das superestruturas e de outras ‘circunstâncias’”, baseando-se na “elaboração da teoria da essência peculiar dos elementos espe-

      1 Louis Althusser. For Marx . Londres: New Left Books, 1969 [1965], p.114.  2 Ibidem, ver nota p.105. Cf. também Louis Althusser e Etienne Balibar. Reading Capital . Londres:

    New Left Books, 

    1970 [1968], p.128.

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    cíficos da superestrutura”.3 Uma nota de pesquisa sobre a ideologia e os AIEs,escrita em 1969 como parte de seu trabalho mais extenso sobre a reprodução,amplia o comentário anterior:

    Ao que eu saiba, Gramsci é a única pessoa que avançou na direção que decidi tomar.

    Ele teve a ideia “singular” de que o Estado não poderia ser reduzido aos aparelhosestatais (repressivos), mas incluía, como ele mesmo disse, um certo número deinstituições da ‘sociedade civil’: a igreja, escolas, sindicatos etc. Infelizmente,Gramsci não sistematizou suas intuições, que permaneceram na forma de notas

     penetrantes, mas parciais.4 

    Em outra ocasião, Althusser incluiu Gramsci entre os poucos marxistas que,como ele próprio, reconhecera que a classe trabalhadora precisa da filosofia naluta de classes.5 E ainda, em dois ensaios posteriores sobre Maquiavel, ele notou

    que Gramsci havia interpretado corretamente a exigência do florentino por um“novo príncipe num novo principado” para unificar a Itália sob um estado nacionalrepublicano.6

    A despeito desses elogios às reflexões de Gramsci sobre o materialismo his-tórico e a luta de classes e sua contribuição para a filosofia, Althusser as retomaapenas gestualmente ao desenvolver sua própria teoria sobre os aparelhos deEstado, a ideologia e a luta de classes. Isso se deve provavelmente a sua visão deGramsci como alguém que desempenhara um papel importante na esquerda no quese refere ao desenvolvimento de um historicismo e humanismo revolucionários,

    sendo, portanto, um antagonista da afirmação de Althusser de que o marxismodeveria ser anti-humanista e anti-historicista.7 Embora ele tenha sido cuidadosoao distinguir entre, de um lado, sua crítica às falhas de Gramsci no emprego domaterialismo dialético e, de outro, o reconhecimento de suas grandes contribui-ções ao materialismo histórico,8 Althusser acaba concluindo que Gramsci “tendea fazer com que a teoria da história e o materialismo dialético coincidam com omaterialismo histórico, embora elas constituam duas disciplinas distintas”.9 Se-gundo sua visão, Gramsci confunde o desenvolvimento da filosofia e da história

    3 Louis Althusser. Theory, Theoretical Practice and Theoretical Formation: Ideology and IdeologicalStruggle. Philosophy and the Spontaneous Philosophy of the Scientists, and other Essays.  Londres,Verso, 1990 [1965], p.113-4, em itálico no original.

      4 Idem. Ideology and Ideological State Apparatuses. Lenin and Philosophy and Other  Essays. Londres:NLB, 1977 [1970], nota p.281, traduzido do alemão por Jessop. Cf. também Louis Althusser. TheTransformation of Philosophy. Philosophy and the Spontaneous Philosophy of the Scientists, andother Essays. Londres, Verso, 1990 [1976], p.257; e Louis Althusser. Marx in his Limits. Althusser,Louis. The Philosophy of the Encounter . Londres, Verso, 2006 [1978].

      5 Idem. Essays in Self-Criticism . Londres: Verso. 1976 [1973], p.37.  6 Idem. Machiavelli and us . Londres, Verso, 2002 [1972-86].  7 Althusser e Balibar, op. cit., p.119-20.

      8 Ibidem, p.126.  9 Ibidem, p.130.

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    real, não consegue fazer a distinção entre ideologia e ciência (tratando a teoriamarxista, portanto, como apenas outra visão de mundo), trata o marxismo comoexpressão direta de um período histórico particular e, logo, como parte da su- perestrutura, dissolvendo, portanto, a prática teórica na prática em geral.10 Esseataque insensato e errôneo é típico da rejeição altiva de Althusser de quase todasas escolas do marxismo que diferem de sua própria versão, qualquer que seja aque ele adote de tempos em tempos.11 Isso significa que Althusser precisava de-senvolver uma teoria do Estado, da ideologia e do Aparelho Ideológico de Estadoem sua própria abordagem do materialismo dialético, para não se contaminar como “historicismo absoluto” que ele identificava em Gramsci.12 Assim, ao comentarsobre as aparentes semelhanças entre a teoria da hegemonia de Gramsci e suas próprias análises dos AIEs, ele escreveu:

    Pareceu [aos meus críticos] que aquilo que eu sugeria já havia sido dito, e de modomuito melhor, por Gramsci (que realmente levantou a questão da infraestruturamaterial  das ideologias, mas dando a elas uma resposta mecânica e economicista).A ideia que prevalecia era a de que eu estava discutindo a mesma coisa, no mesmoregistro. Na realidade, parece-me que o trabalho de Gramsci não tem em vista omesmo objeto... Gramsci nunca fala sobre os Aparelhos Ideológicos de Estado; seutermo é “aparelhos hegemônicos”. Isso deixa uma questão por responder: o que

     produziria, nos aparelhos de Gramsci, o que ele chama de efeito de hegemonia?Em resumo, Gramsci define seus aparelhos nos termos de seu efeito ou resultado,a hegemonia, que também é muito mal definida. Da minha parte, procurei definir

    os AIEs nos termos de suas “causas motoras”: a ideologia. Além disso, Gramsciafirma que os aparelhos hegemônicos são parte da “sociedade civil” (que constituitodo o conjunto deles, ao contrário da sociedade civil tradicional, que é formada

     pela sociedade menos o Estado), sob o pretexto de que eles são “privados”.13

    A teorização sobre o Estado que Althusser propõe como alternativa14 parte dasinadequações da metáfora base-superestrutura. Gramsci também havia adotadouma posição fortemente crítica em relação ao economicismo, tanto em suas formasteóricas quanto políticas; mas Althusser propôs outra solução, adotando o estru-

    turalismo contra o humanismo e o economicismo.15 Ele identificou três regiõesrelativamente autônomas do modo de produção capitalista – a econômica, a política

    10 Ibidem, p.130-7.  11 Gregory Elliott. Althusser: the Detour of Theory . Londres. Verso, 1987, p.41-5, 131; para uma rejeição

    bem-humorada do epíteto de historicista usado contra Gramsci, ver Christine Buci-Glucksmann.  Gramsci and the State. Londres: Lawrence & Wishart, 1980 [1975], p.15-6, 49 e passim.

      12 Para uma leitura alternativa de seu historicismo, ver Esteve Morera. Gramsci’s Historicism: a RealistInterpretation. Londres: Routledge, 1990.

     13 Louis Althusser. Marx in his Limits, op.cit, p.138-9, em itálico no original.

      14 Idem. Ideology and Ideological State Apparatuses , op. cit.  15 Cf. Elliott, op. cit, p.60-3.

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    e a ideológica – e propôs que seus respectivos papéis e interações assimétricaseram “determinadas em última instância” pelo econômico. As regiões políticas eideológicas adquiriam, assim, uma efetividade distinta tanto em relação à regiãoeconômica quanto à formação social capitalista como um todo. Na verdade, preci-samente porque a economia não pode determinar todo o restante como uma causasem causa, a reprodução total das relações de produção nas formações sociaiscapitalistas depende da intervenção de um conjunto da superestrutura formado pelo Aparelho Repressivo de Estado (ARE) e diversos Aparelhos Ideológicos deEstado (AIEs) “relativamente autônomos”. O alcance e importância dos AIEsindicam que toda a sociedade é atravessada por relações de classe, submetidas aum poder de classe que é exercido por um conjunto de instituições, incluindo asentidades privadas, como a Igreja, os partidos, os sindicatos, a família e as asso-ciações culturais. Esse conjunto desempenha um papel crucial na manutenção dadominação burguesa e deve, por isso, ser tratado como parte do Estado e não, comoem Gramsci, como parte da “sociedade civil”. Essa última noção é rejeitada com base no fato de que a distinção entre “público” e “privado” é interna ao direito burguês e, complementada por seus reflexos na ideologia jurídico-política, ajudaa manter a ditadura de classe burguesa.16

    A coerência dessa combinação de regiões relativamente autônomas dependede “certa configuração política... imposta e mantida pela força material (exercida pelo Estado) e pelo poder moral (exercido pelas ideologias)”.17 Em contraposição,o aspecto econômico da luta de classes obedece à lógica do suplemento: as relações

    de produção/exploração que determinam, em última instância, a unidade complexado Estado dependem, para sua sobrevivência, do Estado que delas é derivado;em outras palavras, dependem das relações de dominação política e ideológicasuplementares que garantem sua reprodução. Tanto Sobre a reprodução quanto Marx dans ses limites, “apontam o ‘paradoxo’ do Estado capitalista. Para darfim à exploração, primeiro é necessário desmontar o Estado que, gerado por ela,a preside – constituindo o centro da ditadura que sustenta o regime econômicocapitalista”.18

    Partindo dessas ideias, Althusser argumenta que, enquanto o Marxismo havia

    desenvolvido, com Marx, Lenin e, talvez, Gramsci, uma importante descrição doEstado como instrumento da dominação de classe, essa descrição havia perma-necido num estágio essencialmente pré-teórico de desenvolvimento. Sua missãointelectual era a de dar a essa discussão uma forma teórica. Assim, ele propõe as

    16 Cf. Althusser e Balibar, op. cit., nota p.162; o ensaio sobre os AIEs em Lenin and Philosophy andother Essays . Londres: New Left Books, 1971 (ver nota de rodapé p.142, 144); e Jacques Bidet, Enguise d’introduction: une invitation à relire Althusser. Louis Althusser. Sur la reproduction. Paris:Presses Universitaires de France, 1995, p.11.

      17 Althusser e Balibar, op. cit.

      18 Goshgarian, G. M. Translator’s Introduction. Louis Althusser. Philosophy of the Encounter. Londres,Verso, 2006, p.xxxvii.

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    seguintes teses: (1) o centro do Estado é seu aparelho repressivo; (2) o Estadotambém inclui uma variedade de aparelhos ideológicos de Estado; (3) cada umdos AIEs tem sua ideologia e lógica próprias; (4) o Estado desempenha um pa- pel vital na reprodução das relações de produção e faz intervenções em todas asáreas que influenciam a reprodução dessas últimas; e (5) enquanto a exploraçãode classe econômica for constitutiva das fundações da sociedade, o Estado deveser mudado antes que a base econômica possa ser radicalmente reorganizada. Eledesenvolve essas teses básicas de diversos modos acentuadamente formalistas(por exemplo, nos termos das funções ideológicas secundárias dos AREs, dasfunções repressivas secundárias dos AIEs e das possibilidades de reversões nasfunções primárias de instituições específicas), mas diz pouco sobre ideologias particulares ou sobre os mecanismos de hegemonia, e ainda menos sobre situaçõeshistóricas específicas em que a hegemonia foi mantida ou entrou em crise. O queele oferece é uma análise formal e institucionalista com tons funcionalistas, que nãooferece explicação a respeito de como diferentes campos políticos e ideológicossão articulados, muito menos unificados, com exceção da afirmação, igualmenteformal, de que um dos AIEs será dominante (atualmente o sistema escolar – em- bora Debray19 e Poulantzas20 mais tarde defendam a posição de que agora são osmeios de comunicação de massas que detêm esse papel).

    Althusser diz pouco sobre a ideologia em geral ou sobre ideologias particularese enfatiza sua realização através do mecanismo ideológico da interpelação e suamaterialização nos AIEs.21 Na verdade, seus comentários sobre ideologia são na

    maior parte descritivos, afirmando que

    [n]uma sociedade de classes, a ideologia serve não apenas para ajudar as pessoasa viverem suas próprias condições de existência e realizarem suas tarefas, mastambém para ‘suportarem’ sua condição – seja a pobreza da exploração da qualsão as vítimas, ou o privilégio exorbitante do poder e da riqueza do qual são os

     beneficiários.22 

    Ou, novamente, que enquanto a ideologia está situada na superestrutura e tem

    sua efetividade em relação ao direito e ao Estado, ela também deve “ser pensadacomo algo que invade todas as partes do edifício e considerada um tipo particularde cimento que assegura o ajuste e a coesão entre os homens e seus papéis, suas

    19 Régis Debray. Teachers, Writers, Celebrities: the Intellectuals of Modern France . Londres: Verso,1981 [1979].

      20 Nicos Poulantzas. State, Power, Socialism . Londres: Verso, 1978. 21 Cf. Paul Ricoeur. Lectures on Ideology and Utopia. Nova York: Columbia University Press, 1986.  22 Louis Althusser. Theory, Theoretical Practice and Theoretical Formation: Ideology and Ideological

    Struggle. Philosophy and the Spontaneous Philosophy of the Scientists, and other Essays . Londres:Verso, 1990 [1965], p.25.

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    funções e suas relações sociais”.23 O que parece unificar os AIEs é seu modocomum de funcionamento. Não há indicação de que a forma possa problematizara função, que os AIEs possam sofrer divisões causadas por contradições e lutasde classe, de que exista um papel específico para os intelectuais, as forças polí-ticas etc. na luta de classes, ou de que a ideologia também possa ser produzidana organização da produção.24 Tampouco há qualquer explicação a respeito dasmediações discursivo-materiais da consolidação de ideologias em particular, con-forme diferentes elementos ideológicos são selecionados e retidos em formaçõesideológicas específicas.25 Num famoso  post-scriptum de seu conhecido ensaiosobre os AIEs, Althusser procurou corrigir seu teor funcionalista, insistindo na primazia da luta de classes sobre as instituições.26 Mas essa correção está fadadaa ser meramente gestual, enquanto não se realizarem esforços sérios para que se produzam os conceitos necessários para explorar as formas e as modalidades daluta de classes através de diversos campos – tarefa que Gramsci tomou para si eque daí em diante tem sido elaborada por teóricos como Poulantzas (ver a seguir).

    A crítica subsequente de Althusser aos limites teóricos e às crises do marxismo,especialmente no que se refere ao Estado, à ideologia e à organização da luta declasses, oferece importantes pistas sobre sua relação ambivalente com Gramsci.27 Argumentando que Marx e Lenin não haviam desenvolvido uma teoria adequadasobre o tipo de Estado capitalista, ele apresentou uma leitura sintomática de seustrabalhos. Elaborou o caráter do Estado como um aparelho especial  da ditadurade classe com características de uma máquina especial , que transforma a violência

    em poder legal e oculta sua natureza de classe por trás do contexto (ilusório) do poder popular e do serviço público. Nesse contexto, a luta de classes tem primaziae o combustível da máquina do Estado é a força e a violência. Além disso, emboraa unidade do Estado seja precária e sua reprodução exija trabalho político sério,Althusser nega que o Estado seja inteiramente atravessado pela luta de classes.Esse comentário é uma crítica das interpretações e estratégias contemporâneas quecontam com a intensificação das contradições e conflitos internos do Estado paralevarem adiante uma revolução democrática.28 Althusser dá sequência a essa linhade raciocínio com um ataque feroz contra a análise gramsciana da hegemonia e, in-

    diretamente, contra as correntes eurocomunistas neogramscianas, contra Poulantzase Buci-Glucksmann. Em particular, endossando a crítica de Perry Anderson às

    23 Ibidem.  24 Cf. as críticas de Buci-Glucksmann, op. cit, p.64-7; Nicos Poulantzas. Fascism and Dictatorship. 

    Londres: NLB, 1974, 1973 [1970], notas p.300-1, 305.  25 Cf. Bob Jessop. Critical Semiotic Analysis and Cultural Political Economy. Critical Discourse Studies ,

    1 (2), 2004, p.159-74; Martin Nonhoff. Politischer Diskurs und Hegemonie. Das Projekt SozialeMarktwirtschaft. Bielefeld: Transkript Verlag, 2006.

      26 Louis Althusser. Marx in his Limits, op. cit., citando Ideology and Ideological…, p.170-2; ver tambémSur la Reproduction, op. cit.

      27 Louis Althusser. Marx in his Limits, op. cit.  28 Cf., a esse respeito, as contribuições de Nicos Poulantzas. La Crise de l’État . Paris: PUF, 1976.

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    antinomias de Gramsci29 e adicionando seus próprios comentários, ele argumentouque, sem perceber, Gramsci fora contraditório em sua teorização do Estado, tentandoexplicar tudo sobre a política por meio da permuta entre apenas quatro conceitos:hegemonia, força, sociedade política e sociedade civil. Pior ainda, a hegemonia figu-rava três vezes nessa análise, a saber: como hegemonia, como aparelho hegemônicoe como efeito hegemônico da sociedade política combinada com a sociedade civil.Além do mais, Gramsci tratou a infraestrutura econômica e o Estado como neutros,reduzindo a ideologia à cultura e escondendo “a questão da natureza material damáquina estatal por trás de uma evocação alusiva da Hegemonia”.30 O resultado finalseria uma análise confusa e contraditória que, de modo indiscriminado, mistura asrealidades concretas da luta de classes no âmbito econômico, político e ideológico,esvaziando a hegemonia de qualquer poder teórico ou político.31

    Tais reflexões incitaram a um retorno a outro teórico político clássico. A aná-lise de Althusser em Machiavel et nous procurou teorizar o Estado e a políticasem recorrer ao esquema determinístico de base-superestrutura do materialismohistórico desenvolvido por Marx e, conforme ele alega, por Gramsci. Sua proposta baseia-se num materialismo aleatório que enfatiza o devir histórico, lastreando-sena primazia do evento ou de encontros aleatórios que excluem, em princípio, arealidade ontológica de cada lei estrutural ou progressão necessária na História.32 Althusser afirma que Maquiavel levanta a questão crucial a respeito de comoum Estado politicamente estável surge ex nihilo e fornece uma interpretação do papel do príncipe que difere radicalmente da visão de Gramsci sobre o “moder-

    no príncipe”. Ele ainda argumenta que, ao mesmo tempo que o príncipe funda oEstado moderno, este só pode atingir estabilidade mediante uma mudança de um principado despótico para uma república baseada nas regras da lei como forma ade-quada do Estado moderno. Apenas essa forma de domínio político pode assegurara reprodução da reprodução como um todo. Essa abordagem marca uma quebraepistemológica radical com a análise funcionalista da reprodução das relaçõesde produção em seus textos sobre os AIEs, localizando tal reprodução no desen-volvimento histórico contingente e aleatório e na sucessão de formas de Estado,em oposição à natureza necessária, sobredeterminada e eterna da reprodução no

    ensaio sobre os AIEs.33

     Além do mais, enquanto o povo era um sujeito passivoa ser interpelado e mobilizado pelos AIEs, agora “o povo” se torna o principalfoco de resistência e recusa diante dos poderes reprodutivos da repressão políticae da subjetivação ideológica. A despeito dessas acomodações teóricas, Gramsciainda desempenha um papel limitado na teorização de Althusser sobre o Estado.

      29 Perry Anderson. The Antinomies of Gramsci. New Left Review , 100, 1976, p.5-78.  30 Louis Althusser. Marx in his Limits, op. cit, p.148.  31 Ibidem, p.139-50.  32 Miguel Vatter. Machiavelli after Marx: the Self-Overcoming of Marxism in the Late Althusser. Theory

    and Event , 2004, disponível online.  33 Ibidem.

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    Do historicismo à centralidade das lutas hegemônicas

    Poulantzas chegou a Gramsci por seu interesse mais geral pelo marxismoitaliano – incluindo a epistemologia da Escola de Della Volpe e trabalhos sobre asociedade civil. Tratava-se de um período de transição – no qual ele se movia de

    uma análise existencial-marxista sartreana acerca da lei e da filosofia do direito para uma análise estrutural marxista da região do político nas formações sociaiscapitalistas –, um período no qual Poulantzas não apenas escreveu sobre a filo-sofia do direito e sobre aspectos jurídico-políticos do Estado, mas também sobreo estruturalismo marxista de Althusser, sobre a noção gramsciana de hegemoniae sobre o marxismo historicista de teóricos britânicos como Anderson e Nairn.Durante essa transição, Althusser forneceu-lhe os meios filosóficos para quebrarcom o “sobreontologismo”34 do existencialismo de Sartre, e, assim, ultrapassar umaexplicação humanista e historicista do Estado capitalista; enquanto Gramsci, por

    outro lado, forneceu-lhe os conceitos substantivos que lhe permitiram situar suasideias sobre a lei e o Estado num contexto mais amplo das sociedades capitalistas.Poulantzas tinha reservas sobre os méritos do trabalho de Gramsci quando

    entrou em contato com ele em 1964-68. Pois Gramsci era frequentemente vistona Itália e na França como um marxista ocidental que enfatizava a luta de classesem detrimento das circunstâncias materiais e limitações estruturais. Ecoando essaopinião (presente sobretudo na formulação de Althusser), Poulantzas apontou queas análises políticas de Gramsci eram frequentemente prejudicadas pelo histo-ricismo de Croce e Labriola e deviam ser usadas com cuidado.35 Assim, embora

    elogiasse suas contribuições para a análise da hegemonia, Poulantzas tentou sedistanciar do historicismo ao enfatizar as fundações estruturais do poder de classee as diferentes modalidades e possíveis disjunções entre níveis da luta de classes.36 Ele continuou a manter uma distância saudável de Gramsci a partir daí – embora asrazões de Poulantzas tenham mudado, conforme o autor modificava suas próprias posições teóricas e políticas.

    Entretanto, desde seu primeiro encontro com os escritos de Gramsci, elese interessou por sua abordagem da ideologia e da hegemonia como exercíciode liderança política, intelectual e moral. Poulantzas sugeriu que a liderança

    hegemônica era o traço central que definia o poder de classe nas sociedades ca- pitalistas avançadas, que, em sua opinião, eram baseadas economicamente num

    34 “Sur-ontologisme” é o termo usado por Poulantzas em Nature des choses et droit: essai sur ladialectique du fait et de la valeur  (Paris: R. Pichon e R. Durand-Avzias, 1965) para identificar umaênfase exagerada em questões ontológicas a expensas da pesquisa concreta. Poulantzas argumentaque há uma ambiguidade no trabalho de Sartre, considerando que a análise ontológica constante-mente sobrepõe-se à análise econômico-social (Cf. Bob Jessop. Nicos Poulantzas Marxist Theoryand Political Strategy , 1985, especialmente Cap. 2, Existentialism, Marxism, and Law).

      35 Nicos Poulantzas. Political Power and Social Classes . Londres: NLB, 1973 [1968], p.39, 138-9,194-7, 200-1; e Marxist Political Theory in Great Britain. New Left Review , 43, 1967 [1966], p.68.

     36 Ver especialmente Political Power...

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    individualismo possessivo e, politicamente, na cidadania individual em um Es-tado nacional. Ele também chamou a atenção para a ênfase de Gramsci no papelcrucial do Estado (entendido em termos gerais) na mediação e na organização dahegemonia do bloco no poder, assim como na desorganização das classes subal-ternas. Ele apresentou essas ideias pela primeira vez em “Préliminaires à l‘étudede l‘hégemonie dans l‘état”.37 Um segundo passo foi iniciado com a integraçãodessas ideias em sua análise marxista mais estrutural em Poder político e classes sociais. Essas ideias ainda influenciaram teoricamente o terceiro estágio de seudesenvolvimento, quando ele fez uma mudança significativa em seu trabalho so- bre o Estado capitalista, mas tiveram um papel bem menor em suas ideias sobreestratégias políticas revolucionárias.

    Em suas “Observações preliminares”, Poulantzas empregou Gramsci paracriticar a abordagem instrumental-voluntarista do marxismo ortodoxo. Ele insistiuno fato de que o Estado deve ser tratado como um conjunto estrutural específicoque acarreta efeitos próprios sobre a reprodução de uma sociedade dividida emclasses e de que as classes não têm uma consciência abstrata e unificada, mas sãoconstituídas como forças políticas pelo próprio Estado.38 Enquanto as relações capi-talistas de produção criam o espaço institucional para um tipo de Estado e políticasdiferentes daquelas características do feudalismo, é o papel historicamente únicoda hegemonia como princípio organizador do Estado capitalista que determinasuas formas e funções específicas. Enquanto nas relações sociais pré-capitalistasainda faltava uma separação clara entre as esferas econômicas, políticas ou sociais,

    o capitalismo se assenta em uma separação institucional entre a esfera privada dasociedade civil (a esfera da troca econômica) e a esfera pública da política. Isso criauma oposição entre os interesses privados dos produtores tomados individualmentena esfera econômica e seus interesses políticos comuns em um quadro ordenadoque possibilite as relações de troca. A organização da vida econômica em termosda produção de mais-valia e de trocas mediadas pelo mercado permite um mododistintivo, sui generis, de dominação política de classe que não se restringe a ummonopólio formal do poder político. Os Estados “econômico-corporativos” dassociedades escravocratas ou feudais eram baseados no princípio monárquico ou

    no direito divino e excluíam abertamente as classes exploradas da participaçãoefetiva na esfera política. Eles dependiam – assim como os Estados burguesesem períodos excepcionais – da força para impor os interesses econômicos priva-dos imediatos da classe dominante. De outro lado, o Estado capitalista normalé compatível com o poder popular e pode delegar a responsabilidade secular doEstado ao seu “povo”. O “povo” participa na política, pelo sufrágio universal,como cidadãos formalmente livres e iguais, mais do que conforme sua capacidade

    37 Nicos Poulantzas. Préliminaires 

    à l‘étude de l‘hégemonie dans l‘état. Les Temps Modernes , p.234-5,862-96, 1048-69, 1965.

      38 Ibidem, p.866-9.

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    de  produtores. O Estado burguês “hegemônico” deve, portanto, garantir (pelomenos de maneira formal e abstrata) o interesse universal e geral de todos os seuscidadãos como condição de sua legitimidade. Ele faz isso pela mediação entre osinteresses “privados” que competem entre si e seu interesse geral e “público”.39 O embate político está orientado para o controle dessa instância universalizante erequer que a classe dominante apresente seus interesses específicos como aquelesda nação como um todo. Assim, a política é constituída como o campo da hege-monia nacional-popular mais do que de confronto de classes.40

    Para Poulantzas, seguindo Gramsci, o Estado moderno não pode servir de modoinequívoco aos interesses econômicos imediatos da(s) classes(s) dominante(s).Enquanto os interesses de classes conflitantes no Estado pré-moderno estavamsujeitos, no melhor dos casos, a compromissos marginais e mecânicos e o poder político era fragmentado, o Estado capitalista deve ter um aparelho unitário eautônomo para organizar a hegemonia. Só então ele pode impor sacrifícios econô-micos de curto prazo para as classes dominantes a fim de assegurar sua dominação política de longo prazo. Os intelectuais e a luta de classes ideológica são cruciaisaqui, pois todas as relações sociais nas sociedades capitalistas aparecem comorelações de consentimento sustentadas, caso necessário, pelo recurso à violênciaconstitucionalizada e legítima.41 Isso vale não apenas para as relações políticasentre a classe dominante e a dominada, mas também para aquelas entre as diferen-tes frações da classe dominante. A diversidade de seus interesses requer que elessejam unificados num bloco no poder ( Block an der Macht ) através da hegemonia

    de uma fração específica do capital. O Estado de tipo capitalista desempenha um papel central na organização desse bloco e na garantia do consentimento ativodas classes subalternas.42

    A análise poulantziana da ideologia deve muito a Gramsci e Althusser. Elecriticou três visões comuns: primeiro, a visão de que o poder estatal é a expressãoimediata da consciência de classe da classe politicamente dominante qua sujeito daHistória; segundo, que a unidade de uma formação social é um efeito da imposiçãode uma visão de mundo específica de um sujeito da classe hegemônica; e terceiro,que as “ideias dominantes de uma época são as ideias da classe dominante”, cuja

    unidade é tomada a priori.43

     Tais argumentos devem ser rejeitados, porque negamqualquer autonomia intrínseca à superestrutura política na qualidade de um nívelespecífico da formação social.44 Como indicado acima, a alternativa de Poulantzasera enfatizar o significado do “bloco no poder” como uma unidade contraditória

    39 Ibidem, p.870-6.  40 Ibidem, p.880-2.  41 Ibidem, p.882-93.  42 Ibidem, p.1061-6.  43 Ibidem, p.864, 868, 870-1; Marxist Political Theory…, op. cit, p.62-4; cf. Althusser, Louis. Marx in

    his Limits…, op. cit., p.136-7.  44 Political Power..., op. cit, p.42, 199-200.

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    de várias classes e frações de classe e insistir nas mediações institucionais e or-ganizacionais cruciais envolvidas para assegurar a coesão e a hegemonia desse Block an der Macht . Ele também enfatiza as possibilidades de disjunção entreas diferentes formas de dominação de classe (econômica, política e ideológica)e/ou entre o conteúdo de classe aparente da ideologia dominante e seu papelobjetivo em assegurar ideologicamente a dominação de classe.45 A disjunção ea correspondência entre diferentes níveis devem ambas estar relacionadas a suaarticulação numa complexa “estrutura com dominante”, analisada por Althusser, eao papel da ideologia dominante de “cimentar” a formação social, como indicado por Gramsci e, num contexto diferente, por Althusser (ver acima).

    Esses resumos mostram que temas centrais da teoria de Poulantzas sobre oEstado têm origem direta em Gramsci e antecedem sua adoção de certas posiçõesdo marxismo estruturalista, diretamente inspiradas pela releitura sintomática de

    Althusser dos textos econômicos, políticos e filosóficos de Marx, Lenin e Gramsci.Entretanto, o encontro entre Poulantzas e Althusser levou o primeiro a rejeitardois temas de sua problemática inicial gramsciana. Primeiro, numa mudançaque, na verdade, o trouxe mais próximo à própria posição de Gramsci, rejeitousua distinção anterior entre a “sociedade civil” e o Estado como a base para teo-rizar a distinção entre interesses particulares e universais, porque tal distinçãoapontava que as bases da sociedade civil eram a troca e a circulação, mais doque a produção. E, segundo, Poulantzas se tornou mais ambivalente a respeitodo conceito de Grasmci de hegemonia devido a sua suposta contaminação pelo

    historicismo e procurou purificá-lo ao fundar sua necessidade, de maneira aindamais firme, na especificidade histórica do modo de produção capitalista e suasdistintas formas de Estado.

    Essa mudança se reflete na organização do primeiro livro de Poulantzas sobrea teoria do Estado, Pouvoir politique et classes sociales (1968). Inspirado pelomarxismo estruturalista de Althusser, ele argumentou que um estudo científico doEstado de tipo capitalista exige três desenvolvimentos teóricos inter-relacionados:(a) uma teoria geral  dos modos de produção, das sociedades divididas em clas-ses, dos Estados e da política – todos vistos isoladamente em relação a modos de

     produção específicos; (b) uma teoria específica do modo de produção capitalistaque determine o lugar e as funções exatas do Estado e da política em sua estruturageral; e que explique porque o Estado difere institucionalmente no próprio capi-talismo; e (c) uma teoria regional  do Estado e da política capitalista.46 Althusserforneceu os conceitos de materialismo dialético e histórico para o primeiro passoe a teoria inicial sobre a autonomia relativa do Estado e da política capitalista nosegundo passo. Por sua vez, a teoria jurídico-política (em especial Pashukanis)

    45 Marxist Political Theory…, op. cit, p.65; Political Power..., op. cit, p.41, 89-91, 155, 171, 203.  46 Political Power..., op. cit, p.12, 16-8, 142.

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    forneceu conceitos-chave para a identificação da matriz institucional específicado Estado de tipo capitalista que era necessária para completar o segundo passo efazer a ponte para o terceiro. Assim, Poulantzas definiu a forma normal do Estadocapitalista como um território soberano baseado nas regras da lei no qual a(s)classe(s) dominante(s) não detinha(m) o monopólio formal do poder de classe. Odireito e a ideologia jurídico-política duplicavam, portanto, a “fratura” da esferaeconômica “privada” na constituição do público como “cidadãos” individuais e/ou categorias políticas isoladas umas das outras. Diante disso, o papel do Estadoé produzir um “efeito unificador” que compense esse “efeito de isolamento” nasrelações econômicas e políticas. Logo, o Estado é visto como uma unidade públicaestritamente política (ou seja, não econômica) do povo-nação, tomada como asoma abstrata de sujeitos legais formalmente livres e iguais.47

    É ao analisar a forma substantiva dessa coesão e unidade que Poulantzas sevolta novamente a Gramsci, para indicar como essa forma reproduz a dominaçãode classe. Pois o Estado capitalista executa duas funções complementares, porémcontrastantes. Primeiro, deve impedir qualquer organização política das classesdominadas que possa dar fim a seu isolamento econômico e/ou a sua fragmentaçãosocial, permitindo que elas lutem como uma força unida. E, segundo, deve agirsobre as classes ou frações de classe dominantes para cancelar seu isolamentoeconômico e assegurar a unidade do bloco no poder e sua hegemonia sobre asclasses dominadas.48 Isso ocorre sob a liderança de uma classe específica, queconsegue apresentar seus interesses políticos gerais como aqueles do povo-nação

    como um todo. Esse processo envolve uma negociação de interesses contínua econflituosa num “equilíbrio instável de forças” (citando Gramsci) e requer conces-sões materiais reais (embora limitadas) aos interesses “econômico-corporativos”das classes subordinadas.49 Esse duplo papel é possível porque a separação formalentre o Estado-nação soberano e a economia capitalista de mercado permite con-cessões econômicas de curto prazo e manobras políticas de longo prazo; e porquesua forma como um Estado democrático constitucional encoraja as principaisforças políticas a ligarem seus interesses ao “nacional-popular” (ou universal).50 As concessões efetuadas para manter a coesão social numa sociedade dividida

    em classes também ajudam a desorganizar as classes dominadas e a reforçar aaparência de que o Estado democrático promove o interesse geral. Em resumo,o poder estatal deve ser visto em termos relacionais, ou seja, como fundado numequilíbrio instável entre forças de classe mais do que no monopólio de uma únicaclasse (ou fração).51 

    47 Ibidem, p.125, 133-4, 188-9, 213-6, 223-4, 276-9, 288, 291, 310, 348-50.  48 Ibidem, p.136-7, 140-1, 188-9, 284-9. 49 Ibidem, p.137, 190-1.

      50 Ibidem, p.190.  51 Ibidem, p.191-3.

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    Em argumentos que remetem fortemente às afirmações de Gramsci, Poulantzasexamina como o tipo capitalista de Estado funciona como o partido político dasclasses dominantes e ajuda na direção-organização do bloco no poder em face desuas divisões internas. Um bloco no poder é uma relação orgânica de longo prazoque se estende pelos campos econômico, político e ideológico e sua durabilidadedepende da capacidade de uma classe de transformar seus interesses econômicosnum projeto político que faz avançar os interesses comuns de todas as classesdominantes através da exploração econômica e da dominação política.52 A ex- plicação mais clara da liderança da classe hegemônica pode ser encontrada em Fascismo e ditadura (1970), que mostra como os partidos e/ou os Estados fascistasestabeleceram as precondições estruturais para a hegemonia do grande capital;e como a ideologia fascista ajudou a assegurar sua liderança política, intelectuale moral. Mas Poulantzas não explica como políticas e programas específicosconsolidaram seu apoio e neutralizaram a resistência durante os vários estágiosdo período fascista. Entretanto, esse se tornaria um tema central em seu trabalhosobre o estatismo autoritário na década de 1970.53

    Poulantzas também sugere que a hegemonia nacional-popular e a hegemoniano interior do bloco no poder geralmente se concentram na mesma classe ou fração.Entretanto, enquanto a hegemonia sobre o bloco no poder depende da posição po-lítica ocupada pela classe hegemônica no circuito do capital, a hegemonia populardepende da capacidade ideológica de definir o interesse geral do povo-nação.54 Mas ele também reconhece que essas duas formas de hegemonia podem ser des-

    locadas ou podem se desenvolver de forma desigual. Mas, em todos os casos, éa forma geral do Estado ou regime que é crucial; pois os laços específicos entreclasses e partidos em conjunturas particulares podem variar consideravelmentesem mudar as relações políticas fundamentais no interior do bloco no poder e suasdeterminações através da matriz institucional geral do Estado.55 Aqui e em análisesanteriores, Poulantzas baseia-se enormemente em Gramsci, assim como em Marx,Engels e Lenin, de quem extrai uma variedade ampla de conceitos mobilizadosem sua análise de lutas políticas concretas no nível da “cena política”, assim comoos padrões estruturais de dominação de classe que os sustentam. Entretanto, em

    comparação com os escritos do próprio Gramsci, pouca atenção real é dada ao papel dos intelectuais a esse respeito.Poulantzas escreveu seu primeiro trabalho teórico importante sobre o Estado

    antes que Althusser tivesse introduzido os conceitos de Aparelhos Repressivos eAparelhos Ideológicos de Estado. Ele se referiu a eles pela primeira vez em suacrítica a Miliband56 e, em seguida, integrou-os a sua própria teoria do Estado em

    52 Ibidem, p.239. 53 Cf. Nicos Poulantzas. State, Power, Socialism ..., op. cit.  54 Political Power ..., op. cit. p.240.  55 Ibidem, p.314-21.  56 Nicos Poulantzas. The Problem of the Capitalist State. New Left Review , 58, 1969, p.67-78.

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    suas análises do fascismo57 e em seus estudos teóricos e empíricos posteriores.58 Seguindo Althusser, ele define os AIEs nos termos de sua principal função – ainculcação e a transmissão ideológica em oposição à repressão – e também insisteque eles são parte do sistema estatal. Isso porque ajudam a manter a coesão social(que é a função genérica do Estado) e porque suas operações dependem do apoioindireto dos AREs. Também aponta, com Althusser, que os AIEs têm um graumaior de autonomia entre si e em relação aos AREs do que as diferentes ramifi-cações destes últimos, cuja autonomia é menor. Ainda assim, cada modificaçãoimportante do Estado afeta não apenas os AREs, mas também as relações entreos AIEs, assim como entre os AIEs e os AREs. Portanto, a transição para o so-cialismo deve não apenas dissolver os AREs, mas também transformar os AIEs.59

    A teoria de Poulantzas sobre o fascismo elabora e critica essas posições. Eleargumenta que as únicas ideologias são as ideologias de classe e que o conceitode AIEs deve ser relacionado de forma rigorosa à luta de classes e, a partir dessecontexto, afirmou que a abordagem de Althusser sobre os AIEs era abstrata eformal. Ele aponta que Althusser derivou a “unidade” dos AIEs de sua suposta permeabilidade em relação à ideologia dominante produzida pela classe quedetém o poder do Estado. Isso é inadequado porque equaciona a ideologia domi-nante com os “mecanismos da ideologia em geral”. Daí essa unidade ignorar ascontradições ideológicas intensas no interior dos AIEs que nascem da luta entreos “porta-vozes ideológicos” de diferentes classes e ignorar os deslocamentosem potencial no poder do Estado entre os AREs e os AIEs.60 Poulantzas também

    sugere que Althusser não pode estabelecer a autonomia relativa dos AIEs – sejaentre eles, seja em relação aos AREs – e sugere ele próprio que tal autonomia sefunda diretamente na luta de classes ideológica que atravessa esses aparelhos.61 Poulantzas também nota que quando a classe trabalhadora é incapaz de con-quistar os AIEs e os AREs, permite que a burguesia se reconstitua como classedominante através de bastiões entre os AIEs. Isso teria acontecido, por exemplo,na União Soviética.62 De modo mais amplo, Poulantzas argumenta que os AIEsconstituem com frequência os “refúgios” privilegiados de frações e classes nãohegemônicas, podendo constituir não apenas os últimos vestígios de poder para

    frações e classes em declínio, mas também as primeiras oportunidades de avanço para frações e classes ascendentes.63 Finalmente, ele nota que as lutas das massas populares repercutem nos AIEs e exercem uma influência marcante sobre aqueles

    57 Idem. Fascism and Dictatorship , op. cit.  58 Idem. Classes in Contemporary Capitalism . Londres: New Left Books, 1975; State, Power, Socia- 

    lism ..., op. cit.  59 Idem. The Problem of the Capitalist State, op. cit, p.76-9; cf. Idem. Sur la Reproduction, p.179-186.  60 Idem. Fascism and Dictatorship , op. cit, notas p.300-1, p.304-5.  61 Ibidem, p.304.

      62 Ibidem, p.230-3. 63 Ibidem, p.230-1, 308; cf. State, Power, Socialism ... , op. cit.

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    que – como sindicatos e partidos “social-democratas” – buscam a integração dasmassas.64 Em resumo, levando em conta a luta de classes e a resultante do “jogo”do poder de classe criado entre os AREs e os AIEs, não se pode postular, comofez Althusser, um mecanismo de ideologia em geral para explicar a operação dosAIEs, nem assumir que os aparelhos de Estado operam de modo unificado.

    Essas ideias são desenvolvidas em O Estado, o poder, o socialismo, em queo argumento é que o Estado desempenha um papel central na constituição dasclasses sociais porque recorre à repressão física organizada e também intervémna organização das relações ideológicas e da ideologia dominante. De fato, aideologia dominante é corporificada nos aparelhos de Estado e constitui um poder essencial da classe dominante. Enquanto os AIEs têm um papel central naelaboração, na doutrinação e na reprodução dessa ideologia, esse papel tambémé desempenhado pelos AREs e o Aparelho Econômico de Estado (AEE) – que,argumenta-se, é distinto dos AREs e dos AIEs.65 Na elaboração desses argumen-tos, entretanto, Poulantzas admite que o par AIE/ARE é, no melhor dos casos,descritivo e nominalista, não compreendendo a importância do AEE no Estadocontemporâneo, que constitui o ponto onde grande parte do poder da fração he-gemônica da burguesia se concentra.66

    Poulantzas também amplia a ideia do Estado integral, partindo da análise política e ideológica para as relações econômicas. Ele estudou as classes sociaisnos termos de sua “reprodução ampliada”, no lugar da perspectiva econômica“estreita” que olha seu lugar na produção, na distribuição e no consumo. Sua

    abordagem abrange as relações econômicas, políticas e ideológicas e envolve oEstado e a divisão entre trabalho, intelectual e manual, assim como o circuito docapital e das relações não capitalistas de produção. De fato, Poulantzas semprecolocou as relações sociais de produção nesse sentido expandido ou integral nocentro de suas análises da luta de classes. Ele também viria a analisar a reproduçãosocial nos termos da reprodução das condições inter-relacionadas entre economia, política e ideologia que têm impacto sobre a acumulação.67 Isso pode ser visto comouma extensão criativa importante das ideias de Gramsci, remetendo em parte asua reinterpretação do conceito de mercado determinado de Ricardo, assim como

    suas notas sobre o Americanismo e o Fordismo e os problemas de transferênciadesse novo modo de crescimento e socialização para a Europa.68 

    64 Idem. Fascism and Dictatorship , p.309.  65 Idem. State, Power, Socialism ..., op. cit, p.28.  66 Ibidem, p.33.  67 Idem. Las clases sociales. F. Fernandes et al. Las clasas sociales en America Latina. México: Siglo

    XXI, 1973, p.96-126; idem. Classes in Contemporary Capitalism , op. cit. e especialmente State,Power, Socialism ..., op. cit.

      68 Para uma discussão sobre o assunto, Derek Boothman, Gramsci als Ökonom. Das Argument , 185,1991, p.57-70; Bob Jessop e Ngai-Ling Sum. Gramsci as a Proto-Regulationist and Post-Regulationist.

     Jessop e Sum. Beyond the Regulation Approach: Putting Capitalist Economies in their Place. Chel-tenham: Edward Elgar Publishing, 2006, p.348-73.

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    A despeito desses diversos empréstimos e afinidades, a teoria do Estado dePoulantzas não pode ser reduzida a sua matriz gramsciana. Desde seu primeirocontato, ele criticou Gramsci e procurou remediar suas supostas falhas pela in-tegração de seu trabalho num quadro teórico mais amplo. Por exemplo, afirmouque Gramsci não havia localizado a especificidade das várias regiões da sociedadecapitalista nos termos de sua matriz institucional. No lugar de estabelecer a caracte-rística articulação das regiões econômica, política e ideológica no capitalismo, eleoperou com um contraste simples entre o caráter híbrido das sociedades feudais,decorrente do enxerto da política na economia, e a separação entre “sociedadecivil” e Estado no capitalismo.69 Essa crítica é bastante imodesta considerando quePoulantzas adotou a mesma posição em seus próprios comentários preliminaressobre a hegemonia e o Estado (1965, ver acima). De uma perspectiva mais ampla,embora Poulantzas concorde que o Estado se envolve ativamente na constituiçãoe na modificação de um equilíbrio instável de compromisso, ele apontou melhordo que Gramsci como isso ocorre através da materialidade institucional específicado tipo de Estado capitalista e suas diferentes formas, em diferentes estágios e emdiferentes conjunturas. Em compensação, Gramsci estava mais bem sintonizadocom as diversas e variadas modalidades pelas quais as forças sociais procuravammanter a dominação de classe e a coesão social, desde a hegemonia inclusiva, passando pela revolução passiva, até os mecanismos de força, fraude, corrupçãoe a guerra de classes direta e aberta.

    Assim, Poulantzas interpretou o  poder estatal como uma condensação, de-

    terminada pela forma, da correlação de forças nas lutas políticas e politicamenterelevantes. Isso exige atenção a dois aspectos do sistema estatal: (a) à forma doEstado como um conjunto institucional complexo, caracterizado por um padrãoespecífico de “seletividade estratégica” que reflete e modifica o equilíbrio deforças de classe; e (b) à constituição das próprias forças de classe e suas estraté-gias, incluindo sua capacidade de refletir e responder às seletividades estratégicasinscritas no interior do aparelho estatal como um todo. Gramsci tinha pouco adizer sobre isso em termos concretos, em parte talvez devido à fluidez do casoitaliano e, em parte, devido a seu interesse mais geral nas bases sociais do poder

    estatal, mais do que nos detalhes da constituição institucional.O Estado, o poder, o socialismo  parece marcar um afastamento parcial emrelação a Gramsci, já que Poulantzas passa a sofrer a influência da abordagemrelacional emergente e das ideias foucaultianas. Assim, o foco de Poulantzas muda, partindo da liderança hegemônica de classe em direção a outros dois tópicos: (a)à incoerência prodigiosa das micropolíticas promovidas pelo Estado; e (b) ao papel do Estado na codificação estratégica dessas microrrelações. Ele tambémargumenta que, em geral, não há uma estratégia política global e racionalmente

    69 Nicos Poulantzas. Political Power , op. cit., p.139-40.

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    formulada e que a linha geral da dominação política de classe (ou hegemonia?)em geral surge  post hoc de uma pletora de microestratégias e táticas mediadas pelo terreno estrategicamente seletivo do Estado. Isso parece colocar em dúvidao conceito da liderança hegemônica de classe, dissolvendo-o em favor de uma perspectiva mais foucaultiana do que gramsciana. Poulantzas também argumentaque Gramsci não havia dado a devida importância à democracia representativa,ao pluripartidarismo e à regra da lei para uma transição para o socialismo demo-crático. Isso estaria associado com certo “panpoliticismo” em Gramsci, que sereflete em seu tratamento do conjunto da sociedade civil como essencialmente político e sua visão do partido comunista como o centro através do qual todas asvárias esferas “privadas” são coordenadas e subordinadas a uma estratégia políticaglobal. Ao contrário, Poulantzas vê o Estado como um arcabouço institucional quecristaliza as contradições e os conflitos de classe nele mesmo e pode, portanto, serderrotado de dentro. A mesma preocupação emerge na afirmação de Poulantzasde que a estratégia gramsciana da guerra de posição ainda é leninista, porquetrata o Estado como uma entidade monolítica a ser cercada. Em oposição a essessupostos problemas em Gramsci, Poulantzas clama uma revolução copernicanano pensamento político socialista.

    Da crítica do economismo ao Estado expandido

    A grande obra de Buci-Glucksmann, Gramsci e o Estado (1975), é uma re-construção original da análise do Estado de Gramsci em torno de um conceito

    novo: o Estado ampliado. Há alguma confusão sobre o significado desse novotermo, tanto para Gramsci quanto para Buci-Glucksmann. Como nota de GuidoLiguori, o próprio Gramsci escreve sobre lo stato integrale, o Estado em seusentido inclusivo, em vez do stato allargato (ou Estado ampliado). Mas adicionaque o Caderno 6 , que é o texto crucial nessa discussão, apresenta a famosa formu-lação do Estado como “sociedade política + sociedade civil”, como “Hegemoniegepanzert mit Zwang”, e termos similares de modo a justificar esse novo concei-to.70 Minha opinião, entretanto, é que, embora seja errado ver uma convergênciaentre a teoria de Gramsci sobre lo stato integrale e a ideia do stato allargato, este

    último termo é útil para compreender a especificidade histórica do Estado em um período particular. Em outras palavras, enquanto o conceito de  stato integrale (o Estado em seu sentido inclusivo) tem um valor metodológico geral, ao tratar oEstado como um conjunto de relações sociais que é sempre, mesmo que diferen-cialmente, imerso em um conjunto mais amplo de relações sociais, o conceito de stato allargato tem um valor histórico específico, ligado a estágios específicosdo desenvolvimento capitalista e/ou a variedades do capitalismo.

    A própria Buci-Glucksmann parece indicar isso no Prefácio para a tradução

    70 Guido Liguori. Stato-societa civile. Fabio Frosini e Guido Liguori (Orgs.). Le Parole di Gramsci ,Roma: Carocci, p.208.

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    inglesa de Gramsci et l’État  (1980). Ela nota que, para o autor, o Estado ampliadose refere tanto a uma reorientação na teoria marxista geral do Estado quanto auma expansão do Estado capitalista em um período particular do desenvolvi-mento capitalista.71 De modo consistente com isso, o texto principal se referetanto à “expansão gramsciana do conceito de Estado” como “sociedade política+ sociedade civil”72 quanto à expansão profunda do aparelho hegemônico na erado Americanismo e do Fordismo na organização da produção e nas relações deconsumo, assim como nos vários campos da superestrutura.73 Uma ponte possívelentre essas posições é sua sugestão de que o “Estado integral” é uma forma distintado Estado capitalista que superou a fase “econômico-corporativa” da construçãodo Estado e é capaz de governar através da “hegemonia protegida pela couraçada coerção”.74 Entretanto, esse Estado integral poderia assumir diversas formas,e não apenas aquela típica do Americanismo e do Fordismo.75 Portanto, pareceválido distinguir entre (a) o Estado em seu sentido inclusivo (sociedade política+ sociedade civil) como um conceito teórico para a análise do Estado capitalistaque permitiu a Gramsci contrastar o Estado em seu sentido restrito (o governo toutcourt ) e seu sentido amplo ou integral e, portanto, identificar os limites teóricose políticos do instrumentalismo e do voluntarismo, assim como as variações em- píricas e as complexidades da intervenção do Estado durante as crises;76 e (b) oconceito histórico do Estado ampliado como uma articulação particular do Estadoem seu sentido inclusivo. Esse segundo significado é, certamente, aquele usado nadiscussão posterior de Buci-Glucksmann e Therborn sobre o Estado de Bem-Estar

    Social social-democrata keynesiano nos trinta anos de expansão econômica do pós-guerra (1982; cf. McEarchen 1990). A importância dessa distinção é reforçada pelo recente “retorno” neoliberal do Estado ampliado de maneira que transfor-maram significantemente a articulação entre a “sociedade política + sociedadecivil”, produzindo uma nova forma de Estado capitalista (cf. Poulantzas, 1978,sobre o estatismo autoritário; Hirsch, 1995, sobre o nationale Wettbewerbsstaat ;e Jessop, 2002, sobre os regimes de trabalho schumpeterianos pós-nacionais).

     Nada disso deve nos desviar da importância da cuidadosa reconstrução econtextualização que Buci-Glucksmann faz das análises teórica e politicamente

    sofisticadas de Gramsci sobre o poder estatal. Enquanto Althusser o consideravaum idealista incurável na tradição de Hegel, Croce, Gentille etc., e Poulantzastentou salvá-lo de sua contaminação pelo historicismo, Buci-Glucksmann leuGramsci como um teórico que procurava uma nova estratégia revolucionária

    71 Christine Buci-Glucksmann. Gramsci and the State, op. cit. Cf. Guido Liguori, op. cit, p.209-10,213-15, 220-221.

      72 Ibidem, op. cit. p.68, 70, 72, 91-2, 111, 273. 73 Ibidem, p. 83-6.  74 Ibidem, p.90-1, 274-5, 280-1, 283-5.

     75 Ibidem, p.280, 310-24. 76 Ibidem, p.92-3, 100-10.

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    apropriada para o Ocidente, em uma era de política de massas marcada por umacrise do movimento dos trabalhadores em face de sua derrota diante do fascismoe da virada histórica representada pelo Americanismo e pelo Fordismo, e pelaforma de Estado que lhe é correspondente. Poderíamos descrever tal períodocomo aquele quando o Estado integral  começa a crescer, tornando-se, assim, um Estado ampliado. De qualquer modo, a partir de 1924, Gramsci dirigiu todas assuas reflexões políticas para o desenvolvimento da teoria da hegemonia e suasimplicações teóricas e políticas. De acordo com Buci-Glucksmann, ele argu-mentou que a crise do movimento dos trabalhadores era também a crise de umacerta forma de marxismo, de uma análise falsa e unilateral do Estado. Ele foi, portanto, o primeiro marxista a desafiar uma concepção instrumental do Estado baseada numa distinção mecanicista e economicista entre a “infraestrutura” eas “superestruturas”,77 e fez isso ao desenvolver a ideia da ampliação do Estado(die Erweiterung des Staates) e ao explorar suas implicações para a estratégiarevolucionária. Em particular, ele introduziu (a) os conceitos inter-relacionadosde hegemonia, intelectuais orgânicos, ideologia orgânica, aparelho da hegemonia, bloco histórico e “Estado expandido” para discutir as aporias das superestruturas;e (b) uma nova estratégia revolucionária baseada no desenvolvimento máximodo momento superestrutural do poder de classe para criar uma liderança política,intelectual e moral antes da resolução militar final da luta de classes.78

    Discutirei essas duas inovações em separado, mas, antes, devo apontar queesta seção não poderia resumir o trabalho filológico importante no qual e pelo qual

    Buci-Glucksmann reconstrói o desenvolvimento intelectual e político de Gramsci.Este ensaio explora seu uso das ideias de Gramsci (reconstruídas e interpretadas porela) sobre o Estado integral e o Estado ampliado. Sobre a natureza da hegemonia,Buci-Glucksmann retoma, como Poulantzas,79 a distinção conhecida que Gramsciestabelece no Caderno 3 entre o Estado medieval e o capitalista:

     No Estado antigo e medieval, tanto a centralização político-territorial quanto asocial (a primeira sendo uma função da segunda) era mínima. Num certo sentido,o Estado era um bloco mecânico de grupos sociais, frequentemente de raças di-ferentes. Sob a restrição e a pressão político-militar que pesava sobre eles, e que

     podia às vezes assumir uma forma aguda, os grupos subalternos mantinham umavida própria, com instituições específicas.80

    Ainda citando Gramsci, ela diz que o Estado moderno substitui esse blocomecânico de forças sociais, com a subordinação dos grupos subalternos à he-

      77 Ibidem, p.x. 78 Ibidem, p.260, 263, 268-70.

     79 Nicos Poulantzas. Préliminaires 

    a l‘étude..., op. cit., e Political Power ..., op. cit.  80 Citado por Buci-Glucksmann, op. cit, p.274.

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    gemonia ativa do grupo dominante. Ele abole certas formas de autonomia, querenascem em outras formas: partidos, sindicatos, organizações culturais. Essatransição de um bloco mecânico para um bloco orgânico é precisamente o “blo-co histórico” no poder. Consequentemente, “a história dos Estados é a históriadas classes dominantes”.81 O bloco histórico envolve mais do que alianças declasse ou uma fusão de trabalhadores e intelectuais em uma genérica “frente declasse”. Pois ele pressupõe uma classe dominante que pode exercer hegemoniae um grupo social que pode assegurar a homogeneidade do bloco histórico (istoé, os intelectuais orgânicos).82 Ele também pressupõe um aparelho hegemônico,ou seja, um “conjunto complexo de instituições, ideologias, práticas e agentes(incluindo os “intelectuais”), [que] ... encontra sua unidade apenas quando a ex- pansão de uma classe está sendo analisada”.83 A esse respeito, deve-se notar queum aparelho hegemônico envolve muito mais do que AIEs à la Althusser: poisabrange não apenas o papel dos intelectuais, mas também é usado para analisardiferentes formas de transformação política do jacobinismo à revolução passiva.84

    Ao propor essa nova abordagem e, em particular, o conceito de bloco históri-co, “Gramsci procurou... manter, nas novas condições da guerra de posição, duasteses fundamentais do marxismo e do leninismo: (1) a economia é determinanteem última instância; (2) a política tem primazia sobre a economia: ela está “nocomando”. Mas essas duas teses exigem novas descobertas, uma nova investigaçãodo Estado em suas relações com o bloco histórico”.85 Em outras palavras, “o blocohistórico nem escapa do papel determinante em última instância da economia, nem

    dos antagonismos de classe, nem do Estado, que faz parte das superestruturas”.86

     Ao desenvolver esse conceito, ele também pode resistir a argumentos economicis-tas e espontaneístas que enfatizavam apenas ou o determinismo econômico ou aação política. Além disso, Gramsci ressaltou a realidade material das ideologias esua localização em um aparelho hegemônico que fazia parte integral do Estado.87 Pois o bloco histórico gramsciano “é cultural e político tanto quanto econômicoe exige uma relação orgânica entre o povo e os intelectuais, os governantes e osgovernados, os líderes e os liderados”.88

    Em segundo lugar, no que se refere à estratégia revolucionária, ao contrário

    de Poulantzas, que se apropriou dos conceitos de Gramsci essencialmente paraentender a constituição da hegemonia burguesa no tipo de Estado capitalista e que

    81 Ibidem, p.274.  82 Ibidem, p.275-9; cf. Hugues Portelli. Gramsci et le bloque historique . Paris, 1972. 83 Buci-Glucksmann, op. cit., p.48.  84 Ibidem, p.48-60.  85 Ibidem, p.277; cf. Louis Althusser. Sur la reproduction..., p.112, sobre a relação entre a economia

    e a política. 86 Buci-Glucksmann, op. cit., p.278.

      87 Ibidem, p.277-9; cf. Louis Althusser. Ideology and Ideological State Apparatuses, op.cit. 88 Buci-Glucksmann, op. cit., p.286.

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    continuou a se basear por algum tempo em uma concepção vanguardista leninistade estratégia revolucionária proletária, Buci-Glucksmann não apenas enfatiza anatureza do Estado integral para a hegemonia burguesa, mas também suas im- plicações para a estratégia revolucionária. Assim, enquanto nem Althusser nemPoulantzas utilizaram a distinção entre “Oriente” e “Ocidente” ou entre “guerrade posição” e “guerra de manobra”, Buci-Glucksmann as considera essencial para uma compreensão exata do “Estado integral” em sua mudança para o Estadoampliado e, a fortiori, para a estratégia revolucionária. Desse modo, ao comentara Nova Política Econômica, ela escreve que:

    a insistência de Gramsci numa liderança política hegemônica de massa, a impor-tância que ele deu às superestruturas na construção do socialismo e às relaçõesorgânicas que ele percebeu necessárias entre os líderes e os liderados, sugerem que,

     para ele, como para Lenin em 1922, o que estava envolvido era acima de tudo uma

    aliança política baseada na organização do consentimento, a luta por um Estado“integral” que mantivesse uma relação forte entre cultura e prática. O conceito deGramsci de hegemonia no bloco histórico socialista é mais amplo que a concepçãoeconomicista de Bukharin.89 

    O proletariado tinha de construir o socialismo baseado em uma unidadeorgânica e não mecânica do movimento dos trabalhadores.90 Desse modo, osCadernos do cárcere de Gramsci enfatizavam que o processo revolucionáriono Ocidente só pode ser um processo de massa, no curso do qual o “ModernoPríncipe”, a vanguarda do partido, deve lutar para ganhar as massas e combateras raízes do reformismo e do corporativismo, ou seja, deve se engajar em uma“guerra de posição” antes de avançar para uma resolução político-militar finalatravés de uma “guerra de manobra”. Esse objetivo estratégico é diametralmenteoposto à estratégia de revolução permanente. De fato, uma estratégia de ataquefrontal nas condições das sociedades capitalistas desenvolvidas reproduziria oeconomicismo e estava fadada a ser derrotada.91 Em resumo, Gramsci estabele-ceu ligações fortes entre a estratégia da guerra de posição e a luta por um novo bloco histórico, mediante as quais o movimento revolucionário deveria lutar pelaconquista do poder estatal em um sentido integral, em vez de obter apenas uma parcela no exercício dos poderes governamentais existentes. Isso depende, porsua vez, de uma gnosiologia política das superestruturas.92

    Buci-Glucksmann e Therborn desenvolveram essas ideias sobre a transforma-ção histórica do Estado capitalista em uma importante análise de diversas formas

    89 Ibidem, p.263  90 Ibidem, p.270.

      91 Ibidem, p.270-1.  92 Ibidem, p.281-2.

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    de socialismo e social-democracia na Europa e em outros lugares em seu livro Le Défi Social-Démocrate (1981). Partindo de algumas observações gerais sobrediferentes tradições socialistas, eles aplicam a noção de “Estado ampliado” aocompromisso institucionalizado e à forma estatal do Fordismo atlântico do pós--guerra. Nesse sentido, sua análise parece dever muito, direta ou indiretamente,às análises da escola de regulação parisiense.93

    Mais especificamente, eles argumentam que o Estado de Bem-Estar Socialkeynesiano, que corresponde ao regime de acumulação fordista, amplia (erweitert )o campo da política e do Estado e, a fortiori, também amplia o campo de lutas pela hegemonia.94 O Estado não está situado fora da economia e não intervémdo lado de fora, mas desempenha um papel constitutivo crucial na reproduçãoexpandida da economia. Além disso, no lugar de um Estado que assegurou a do-minação política pela atomização das massas na sociedade civil, o Estado agoraas organiza ao aceitar sua presença mais ou menos direta, de maneira mais oumenos corporativista, no interior do Estado. Em resumo, em vez de permanecerdo lado de fora do Estado, as classes dominadas são agora representadas no seuinterior.95 Pois a política se insere diretamente no campo do desenvolvimentoeconômico, penetrando a reprodução, a assistência médica, a educação, a vidafamiliar etc. Nesse contexto, o local crucial da ampliação do Estado é o Esta-do de Bem-Social, reorganizado em linhas fordista-tayloristas, generalizandonormas de consumo de massa e bem-estar trabalhista, desde a força de trabalhoorganizada até a população como um todo.96 Isso produz uma mudança radical

    nas relações entre a classe trabalhadora (outrora estigmatizada como as “classes perigosas”) e o Estado baseado no fordismo, no taylorismo e no keynesianismo,na negociação coletiva lastreada no sindicalismo responsável, num compromisso político tripartite institucionalizado, em um Estado de Bem-Social expandido ena urbanização.97 Nesse contexto, os partidos social-democratas se tornam cadavez mais clientelistas, corporativistas, interclassistas e tecnocráticos.98 As fron-teiras entre o público e o privado também são modificadas com o resultado queo Estado ampliado se torna um local de alianças e compromissos permanentes.Como tal, o Estado de Bem-Estar keynesiano deve ser estudado não apenas nos

    termos Estado/economia, mas também nos termos Estado/massas. Isso envolve

    93 Michel Aglietta. A Theory of Capitalist Regulation: the US Experience. Londres, Verso, 1979 [1976];Alex Demirovi. et al. (Orgs.). Hegemonie und Staat: kapitalistische Regulation als Projekt and Prozeß .Münster: Westfälisches Dampfboot, 1992; Alain Lipietz, Akkumulation, Krisen und Auswege aus derKrise. Einige methodologische Anmerkungen zum Begriff der „Regulation”. Prokla, 58, 109-000,1985.

      94 Ver: Christine Buci-Glucksmann e Göran Therborn. Le défi social-démocrate . Paris: Maspero, 1981,p.118-9.

      95 Ibidem, p.128-30.  96 Ibidem, p.121-5.

      97 Ibidem, p.120.  98 Ibidem, p.131.

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    uma conexão necessária entre Estado/capital e Estado/massas através do papel queo Estado assume na articulação de um modelo de desenvolvimento econômico ede um modelo hegemônico.99

    Em resumo, os quatro fatores centrais do Estado ampliado são: (1) a políticasalarial fordista baseada em uma negociação coletiva tripartite; (2) uma relação política lastreada em acordos mais do que na cidadania individual; (3) as institui-ções superestruturais do estatismo de bem-estar social keynesiano; e (4) o empregodo planejamento racional no lugar de um mercado liberal ou de uma economiade comando.100 A crise desse Estado ampliado surge a partir de 1965, se acelerou política e culturalmente em 1968-70 e se tornou economicamente grave a partirde 1974, pondo em dúvida sua viabilidade organizacional e sua legitimidade.Os autores identificam duas possíveis saídas dessa crise orgânica: um retornoao corporativismo liberal (Suécia) ou o crescimento do estatismo autoritário(Alemanha).101 É desnecessário dizer que a crise do Estado ampliado se intensificoue desenvolveu desde que Buci-Glukcsmann e Therborn finalizaram seu livro e, se, por um lado, a tendência ao estatismo autoritário tem certamente aumentado,102  por outro, também tem havido transformações significativas na natureza do Estadocapitalista que afetam suas formas de intervenção econômica e social, sua escalae escopo de operações e suas formas de governo e governabilidade.103

    Conclusões

    Os três autores considerados aqui interpretaram o trabalho de Gramsci sobre o

    Estado e a hegemonia de modos bem diferentes. Althusser rejeitou a “filosofia da práxis” de Gramsci como historicista, mas aprovou certas conclusões “histórico--materialistas” sobre a natureza ideológica e repressiva do aparelho de Estado.Em seguida, desenvolveu sua própria análise estrutural – e em parte funcionalista – do aparelho de Estado como um mecanismo especial de dominação de classe.Polantzas seguiu Althusser ao discernir certas tendências historicistas na obra deGramsci, mas buscou descontaminá-la ao integrar alguns dos conceitos centraisde Gramsci em uma teoria regional (mais tarde relacional) mais detalhada do tipocapitalista de Estado. Nesse sentido, ele se interessou mais pelos modos através

    dos quais o Estado democrático burguês desorganizou as classes subalternas eorganizou um bloco no poder capitalista ao promover o desenvolvimento de

    99 Ibidem, p.130.100 Ibidem, p.130-6.101 Ibidem, p.149ss.102 Cf. Nicos Poulantzas. State, Power, Socialism , op. cit; Bob Jessop. Veränderte Staatlichkeit: Verände-

    rungen von Staatlichkeit und Staatsprojekten. Grimm, D. (Ed.). Staatsaufgaben. Frankfurt: Suhrkamp,1996, p.43-74.

    103 Cf. Joachim Hirsch, Bob Jessop e Nicos Poulantzas. Die Zukunft des Staates : Denationalisierung,

    Internationalisierung, und Renationalisierung . Hamburg: VSA Verlag, 2001; e Bob Jessop. The Futureof the Capitalist State . Cambridge: Polity Press, 2002.

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    uma hegemonia nacional-popular. Ele mostrou pouco interesse explícito pelaanálise de Gramsci sobre a importância das guerras de posição e de manobra,aderindo de início a uma posição vanguardista marxista-leninista e, mais tarde,desenvolvendo sua própria estratégia revolucionária baseada na combinação delutas mantidas a uma distância do Estado, lutas no interior do aparelho de Estadoe lutas para transformar o aparelho de Estado. Buci-Glucksmann mostrou uminteresse mais detalhado e maior familiaridade com o trabalho de Gramsci, doqual permaneceu bastante próxima. Ela realizou uma atenta leitura “filológica”(ou, em termos althusserianos, “sintomática”) de seu trabalho antes e depois de1924, data que marcou, a seu ver, uma virada decisiva em suas análises teóricas e políticas. Também aplicou os argumentos que se desenvolveram após essa quebraem termos metodológicos gerais ao enfatizar a importância real do Estado em seusentido inclusivo (lo stato integrale) e suas ligações com o ético-político, comos intelectuais orgânicos e com o bloco histórico. Além disso, atenta a algumasobservações de Gramsci, ela desenvolveu uma leitura original do “Estado am- pliado” (lo stato allargato) como produto de uma transformação específica doEstado capitalista que seguiu a crise do capitalismo liberal e o crescimento doamericanismo e do Fordismo. De modos diferentes, esses textos demonstram quea obra de Gramsci permanece um “clássico” uma vez que, embora as respostasque ela dá aos problemas teóricos e políticos por ela identificados no períodoentreguerras não possam mais ser consideradas válidas, esses problemas aindasão pertinentes e provocativos e merecem estudo e elaboração séria na procura

    de melhores respostas.

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    o ato no qual os deputados do Terceiro Estado insurgiram-se contra uma decisão do rei edecidiram redigir uma Constituição. O projeto, porém, não se realizou, apesar de sua impor-tância – “grande e sublime” –, e da inventividade do pintor, que logrou formular o ineditismodo tema de modo inovador, como mostrou o desenho apresentado no Salão de 1791. Seufundamento político se esfacelara e o quadro perdera sua razão de ser, conforme anunciou

    David em setembro de 1792. Isso liquida a questão? Não. A não pintura, como negativo dodesenho, é hoje inseparável deste. Duas faces de uma mesma moeda, ambas contam de uma

     promessa desenhada e de sua negação – de uma modernidade desdobrada em seu outro.

     Palavras-chave: David; revolução; cosmos; Nação.

     Abstract : The canvas of the Jeu de Paume (Tennis Court) Oath is a non-painting and asynthesis-form of modernity. Commissioned by the Assembly (1790) to the painter David,the canvas would celebrate the event in which the Third Estate deputies opposed a resolu-tion by the king and decided to write a constitution. The project however did not come tofruition, in spite of its “great and sublime” importance, and of the painter’s inventiveness,who managed to express the theme’s novelty in an innovatory manner, as it is shown by

    the drawing presented in the 1791 Salon. Its political foundation had vanished and the picture had lost its raison d’être, as David announced in September 1792. Does that settlethe matter? No. The non-painting, as the drawing’s negative, is now inseparable from it.Two sides of one and the same coin, both tell of a promise drawn and of its negation – ofa modernity unfolded in its other.

     Keywords: David; revolution; cosmos; Nation.

    Althusser, Poulantzas,Buci-Glucksmann:desenvolvimentos ulterioresdo conceito gramsciano deEstado integral 

    BOB JESSOP

     Resumo: Este artigo explora alguns dos modos pelos quais as análises do Estado integral eda hegemonia feitas por Gramsci nos Cadernos do cárcere (1929-35) foram interpretadas,criticadas e desenvolvidas nas décadas de 1960 e 1970 por três marxistas radicados naFrança: Louis Althusser, Christine Buci-Glucksmann e Nicos Poulantzas.

     Palavras-chave: Estado integral; Estado ampliado; hegemonia.

     Abstract : This article explores some ways in which Gramsci’s analyses of the integralstate and hegemony in the Prison Notebooks (1929-35) were interpreted, critiqued anddeveloped during the 1960s and 1970s by three Marxists based in France: Louis Althusser,

    Christine Buci-Glucksmann, and Nicos Poulantzas. Keywords: Integral State; expanded State; hegemony.