19
I As pinturas pré-Renascentistas (p. 691) Mais do que uma época fecunda em pinturas, o Renascimento criou a pintura. Fixou a arte que chamamos hoje pintura. Até o Renascimento, o objeto pintado não estava em nenhuma relação com os limites da superfície que o continha. Estava tão solto no espaço como uma estátua qualquer. A parede da caverna ou a madeira do retábulo eram mais bem o vazio. Eram como um elemento neutro, cuja função estava, unicamente, em conter, suportar a figura pintada. Paralelamente, a superfície – definida por seus limites – existia, como elemento essencial, em outro tipo de arte: na decoração. Na pintura decorativa, o objeto (quando acontece, ou aparece; quando não se esvazia em sua estilização, quando não se apaga em favor da superfície) não pretende agir por si, como o bizonte ou o santo primitivo. Ele se aula na sintaxe onde se inscreve, na superfície ativa ao serviço da qual o puseram. A criação da pintura Pode-se dizer que o Renascimento associou esses dois tipos de arte, de funções. Associou o objeto, isto é, a representação utilitária, ou a utilidade da representação, à superfície decorada, isto é, à utilidade da contemplação. Dessa associação nasceu a pintura, o que tem sido para nós a pintura, o quadro. A partir de então, já uma superfície ativa onde se inscreve, também ativo, um bizonte. Dessa associação, nasceu um gênero novo, mais ágil do que a escultura (já que trazia cor, já que se libertava das leis do mundo físico que pesavam demais sobre a pedra); uma espécie de escultura mais rica de possibilidades para o crescente espírito científico de então (que em arte, ia mais e mais esgotando os graus da aparência); uma escultura mais fácil de ser produzi- (p. 692) da e, portanto, mais apta a satisfazer as necessidades do consumidor individual de obras de arte, entidade que se ia cristalizando naquela época de expansão e de fermentação. Contudo, nessa associação, a presença do objeto representado parece ter sido violenta demais para permitir um equilíbrio de forças. A presença intelectual do objeto desenvolveu-se à custa da utilização sensorial da superfície. Porque o aperfeiçoamento na representação do objeto terminaria por passar do desejo de obter a ilusão do relevo desse mesmo objeto – já lograda, aliás, anteriormente ao Renascimento – ao desejo de obter a ilusão do ambiente em que ele se situava. Isto é: a pintura desenvolveu-se em outra dimensão. Em profundidade (o que é mais do que relevo). Terceira dimensão e estatismo

Joan Miró - João Cabral de Melo Neto

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Texto de João Cabral de Melo Neto sobre Joan Miró publicado originalmente em Barcelona em 1950.

Citation preview

  • I

    As pinturas pr-Renascentistas

    (p. 691)

    Mais do que uma poca fecunda em pinturas, o Renascimento criou a pintura. Fixou a arte que

    chamamos hoje pintura.

    At o Renascimento, o objeto pintado no estava em nenhuma relao com os limites da

    superfcie que o continha. Estava to solto no espao como uma esttua qualquer. A parede da

    caverna ou a madeira do retbulo eram mais bem o vazio. Eram como um elemento neutro,

    cuja funo estava, unicamente, em conter, suportar a figura pintada.

    Paralelamente, a superfcie definida por seus limites existia, como elemento essencial, em

    outro tipo de arte: na decorao. Na pintura decorativa, o objeto (quando acontece, ou

    aparece; quando no se esvazia em sua estilizao, quando no se apaga em favor da

    superfcie) no pretende agir por si, como o bizonte ou o santo primitivo. Ele se aula na sintaxe

    onde se inscreve, na superfcie ativa ao servio da qual o puseram.

    A criao da pintura

    Pode-se dizer que o Renascimento associou esses dois tipos de arte, de funes. Associou o

    objeto, isto , a representao utilitria, ou a utilidade da representao, superfcie

    decorada, isto , utilidade da contemplao. Dessa associao nasceu a pintura, o que tem

    sido para ns a pintura, o quadro. A partir de ento, j uma superfcie ativa onde se inscreve,

    tambm ativo, um bizonte.

    Dessa associao, nasceu um gnero novo, mais gil do que a escultura (j que trazia cor, j

    que se libertava das leis do mundo fsico que pesavam demais sobre a pedra); uma espcie de

    escultura mais rica de possibilidades para o crescente esprito cientfico de ento (que em arte,

    ia mais e mais esgotando os graus da aparncia); uma escultura mais fcil de ser produzi- (p.

    692) da e, portanto, mais apta a satisfazer as necessidades do consumidor individual de obras

    de arte, entidade que se ia cristalizando naquela poca de expanso e de fermentao.

    Contudo, nessa associao, a presena do objeto representado parece ter sido violenta demais

    para permitir um equilbrio de foras. A presena intelectual do objeto desenvolveu-se custa

    da utilizao sensorial da superfcie. Porque o aperfeioamento na representao do objeto

    terminaria por passar do desejo de obter a iluso do relevo desse mesmo objeto j lograda,

    alis, anteriormente ao Renascimento ao desejo de obter a iluso do ambiente em que ele se

    situava. Isto : a pintura desenvolveu-se em outra dimenso. Em profundidade (o que mais

    do que relevo).

    Terceira dimenso e estatismo

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

  • Desenvolveu-se em profundidade: esse aparente enriquecimento da superfcie vinha, na

    realidade, limit-la. Por exigncia da terceira dimenso se anulava na superfcie a possibilidade

    de receber o tempo ou uma grafia qualquer que exigisse para sua contemplao um ato no

    esttico do espectador.

    A terceira dimenso em pintura anula a existncia do dinmico (essa riqueza da antiga pintura

    decorativa) porque para ser percebida, em sua iluso, exige a fixao do espectador num

    ponto ideal a partir do qual, e somente a partir do qual, essa iluso fornecida. Essa iluso s

    pode ser apreendida enquanto conjunto. E esse ponto terico, onde devem deter-se os dois

    ou trs segundos iniciais da ateno do espectador, que so o essencial de sua contemplao

    (j que a apreciao do detalhe se d intependentemente da apreenso do conjunto),

    importantssimo. Esse ponto o nico em que, as trs dimenses, por se reunirem em sua

    mnima medida material, podem ser apreendidas simultaneamente.

    Essa iluso fornecida atravs de certas convenes lgicas e para ser recebida necessita que

    o espectador se submeta a uma conveno a uma posio preliminar. Desse modo, o

    enriquecimento trazido pela inveno dos meios de reproduzir a terceira dimenso priva o

    espectador de usar livremente de sua ateno.

    (p. 693)

    E, noutra ordem de fenmenos, ela significa o abandono do ritmo pelo equilbrio. Equilbrio e

    ritmo: dois empregos possveis da superfcie, anulado o ltimo quase completamente (ou at

    um ponto de difcil recnhecimento) pela pintura criada com o Renascimento.

    , portanto, fcil de compreender aquilo para que tende sempre a composio de tal pintura.

    Ela busca fazer instantnea a contemplao do quadro e obrigar a ateno a deter-se naquele

    ponto ideal de onde possvel a apreenso das trs dimenses, a iluso de profundidade.

    Nela por isso, essencial, a idia de equilbrio. Equilbrio significa estabilidade obtida por meio

    de uma correlativa distribuio de foras. Num tipo de arte que pede a fixao da ateno

    fcil de compreender como qualquer fora excessivamente poderosa, por atra-la, por impor-

    lhe mobilidade, seria fatal ordem do conjunto. Mais do que ordem: existncia desse

    conjunto como expresso de um mundo em profundidade. E ao equilbrio que se confia a

    misso de defender aquele ponto terico, chave dessa iluso.

    Mais sobre o equilbrio

    A busca de equilbrio , assim, subjacente a todas as leis que constituem o bem-compor

    renascentista ainda o nosso bem-compor. E no somente, quelas que constituem o

    equilbrio teorizado nas preceptivas. So consideraes de equilbrio que existem no fundo de

    princpios como proporo, destaque, contraste e, inclusive, no fundo da prpria eleio da

    anedota. Inclusive, so submetidos s razes de estado do equilbrio, ou plasmados por ele, os

    dbeis movimentos que as preceptivas denominam ritmos: permitidos apenas enquanto

    contribuam para realar essa estabilidade geral ou enquanto no a perturbem nem a

    ameacem.

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

  • Da mesma maneira que a contemplao esttica, instantnea, a conveno a que se

    submete o contemplador desta pintura, o estatismo, nascido daquela conveno, o que se

    poderia chamar seu estilo, o estilo de sua organizao. A princpio cientificamente elaborada,

    depois obscuramente obedecida, uma arquitetura abstrata existe sempre por detrs das obras

    executadas nestes sculos de pintura ocidental pos- (p. 694) teriores ao Renascimento

    assegurando uma ordem esttica anedota aparente, mesmo quando essa anedota pretende

    uma significao de movimento.

    O estatismo como estilo

    Esse estatismo, imposto pela presena e pelos interesses da terceira dimenso, define a

    pintura renascentista, que (ao menos a chamamos), hoje, a Pintura. Parece inclusive

    contribuir para a definio da idia de beleza da poca (pensemos nas palavras que nos

    acostumamos a associar a essa idia: serenidade, impassibilidade. Baudelaire, um dos autores

    que mais violentamente subverteram esse mesmo conceito de beleza, a faria chamar-se rve

    de pierre), que como marcada pelo desejo de construir um tipo de universo que, depurado

    pela realidade, habitasse uma dimenso de serenidade e afastamento do ambiente. Idia de

    beleza que ainda nossa, embora j no seja a nossa (e por isso, palavra beleza preferimos

    poesia com seu sentido extrado de no sei que perturbadora atmosfera metafsica).

    (p. 695)

    Mir contra a pintura

    Seria possvel outra forma de composio Seria possvel devolver superfcie aquele sentido

    antigo que seu aprofundamento numa terceira dimenso destruiu completamente A pintura

    de Mir me parece responder afirmativamente a esta pergunta. Ela me parece, analisada

    objetivamente em seus resultados e em seu desenvolvimento, obedecer ao desejo obscuro de

    fazer voltar superfcie seu antigo papel: o de ser receptculo do dinmico. Ela me parece

    uma tendncia para libertar o ritmo do equilbrio que o aprisiona e que aprisiona toda a

    pintura criada com o Renascimento.

    A partir desse ponto de vista, examinaremos o sentido em que Mir fez explodir as normas da

    composio renascentista. O sentido e a histria dessa exploso: a histria de sua luta contra o

    esttico e, assegurada sua vitria sobre este, a maneira como se entregou s possibilidades de

    um ritmo livre de qualquer limitao.

    Os primeiros passos da originalidade de Mir e do que, a meu ver, significa a revoluo que

    sua pintura trouxe Pintura, so comuns aos primeiros passos de muitos contemporneos

    seus. Em relao a alguns, at posteriores. Entretanto, Mir ao contrrio de muitos deles

    levou mais ao extremo o caminho iniciado.

    Este no fixar-se numa soluo para convert-la em maneira, este saber-passar permanente

    de uma a outra soluo impediu qualquer estagnao no artista. Foi esse saber-no-chegar

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaNota

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

  • que lhe permitiu dar a sua obra uma continuidade que nada tem a ver com a versatilidade de

    muitos de seus contemporneos.

    H em sua obra a partir do momento em que aboliu de sua pintura a terceira dimenso um

    caminho. Mas esse caminho tem um sentido: Mir, colocado diante da superfcie, comeou a

    fazer, em sentido inverso, o caminho que a superfcie havia percorrido at que pudesse conter

    aquela terceira dimenso imaginria.

    (p.696)

    Sua histria: abandono da terceira dimenso

    importante assinalar sua sensibilidade para compreender o que em cada nova soluo

    conduz soluo seguinte. Mir no era o primeiro pintor do mundo a abandonar a terceira

    dimenso. Mas talvez ele tenha sido o primeiro a compreender que o tratamento da superfcie

    como superfcie libertava o pintor de todo um conceito de composio.

    contra o conceito limitado de compor (compor como equilibrar) que Mir empreende ento

    sua luta obscura. Como fcil de se compreender, essa libertao, por no se dar com bases

    em princpios tericos, no se processa bruscamente. A composio renascentista em Mir

    no bruscamente destruda. Aquela libertao se exprime em luta, numa luta lenta, em que

    o novo tipo de economia se vai fazendo mais e mais presente em cada quadro, e esse quadros

    mais e mais numerosos dentro da obra do pintor.

    Os primeiros passos de Mir contra a composio renascentista se do a partir dos quadros de

    1924. neles que Mir abandona a terceira dimenso e toda a slida estrutura que se pode

    notar em sua primeira fase. Estrutura esta, absolutamente clssica, ou renascentista, dentro

    da qual esse ps-cubista se ocupava em criar variaes to seguras. Variaes, jogos tericos

    de composio, que estavam a denunciar nele muito mais do que a existncia de um simples

    domnio instintivo.

    Embora poucos tenham se detido a falar disso, j que a crtica prefere realar, em tal primeira

    fase, seus dons de colorista e de lrico, a verdade que quadros como La Masa apresentam

    uma estrutura to cerrada, uma ordenao to firmemente estabelecida, que no seria demais

    defini-los como obra de um pintor essencialmente marcado pela preocupao de construir.

    Um quase Lhote.

    Sua histria: uma composio descontnua

    Nos quadros que realizou a partir daquele ano, Mir comeou a pintar aquelas figuras

    simplificadas, verdadeiras cifras da realidade, que para muita gente constitui, ainda hoje, e

    somente, a maneira Mir. Essas figuras, alis, atravessaro quase toda sua fase de pesquisa.

    Essa simplificao da realidade mais imediata porm levada a um (p. 697) ponto de abstrao

    sempre crescente, tem mesmo uma importncia primordial: foram elas que lhe permitiram

    desvencilhar-se da terceira dimenso, j que tudo ficava colocado como que num primeiro

    plano absoluto. Nessas figuras ntidas e recortadas, mesmo a sensao de relevo era anulada.

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

  • O abandono da terceira dimenso foi seguido do abadondo, quase simultneo, da exigncia de

    centro do quadro. Mir que, ao desenhar cada uma das figuras estilizadas de seus quadros de

    ento continuava obediente s propores e aos ritmos renascentistas (isto , individualmente

    em cada uma das figuras), lana-se contra qualquer hierarquizao de elementos de seu

    quadro. idia da subordinao de elementos a um ponto de interesse, ele substitui um tipo

    de composio em que todos os elementos merecem um igual destaque. Nesse tipo de

    composio no h uma ordenao em funo de um elemento dominante, mas uma srie de

    dominantes, que se propem simultaneamente, pedindo do espectador uma srie de fixaes

    sucessivas, em cada uma das quais lhe dado um setor do quadro.

    Sua histria: ainda o discontnuo

    Isso no significa que Mir haja abandonado completamente, desde ento, a preocupao de

    equilibrar. o equilbrio que preside construo de cada um desses quadros inscritos num

    quadro, cada um por si uma pequena estrutura clssica. O que Mir parece ter pretendido

    ser impossvel dizer. O que Mir obteve foi uma desintegrao da unidade do quadro.

    Essa fragmentao do quadro tambm no constitui descoberta de Mir. Alis, esse tipo de

    composio apenas superficialmente vai de encontro ao estatismo renascentista. Ele

    multiplica quadros dentro de um quadro e obriga o espectador a uma srie de atos

    instantneos, a uma contemplao descontnua. Mas, em sua natureza, a composio esttica

    continua inaltervel.

    Aquele tipo de composio, ainda hoje caro a alguns pintores, principalmente quelas que,

    realizando uma pintura em duas dimenses no se podem socorrer da profundidade para

    ajud-los a organizar superfcies muito grandes, no o seduziu muito. Pou- (p. 698) co depois,

    Mir abandona essas superfcies como em ebulio para abordar composies de estrutura

    menos complexas. Quadros menor, apresentando objetos individuais ou pequenos grupos de

    objetos. Suas cifras se fazem talvez mais hermticas; sua anedota mais pobre: sintomas que se

    poderiam interpretar como de uma maior preocupao de construir.

    Sua histria: o objeto e a moldura

    Neste seu passo e este Mir o deu sozinho o pintor ainda est longe de sua posterior

    inveno. Mas ele constitui sua primeira incurso fora do estatismo. O s abandono da

    terceira dimenso e do conceito de centro do quadro, na evoluo de Mir, tem um sentido,

    hoje, porque o pintor no permaneceu a; a abolio da terceira dimenso e do centro de

    interesse se no se acompanhava do abandono de todo aparato compositivo criado para ela,

    pouco, ou nada significava em favor da superfcie.

    Esse primeiro ataque direto contra o estatismo vai dirigido contra leis em que este se apoiava

    essecialmente: aquelas que determinam a situao de um objeto na superfcie: a relao entre

    o objeto e a moldura.

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaNota

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaNota

  • Da mesma maneira como se pode dizer que o trabalho de composio do pintor renascentista

    busca chegar a um ponto focal principal, se pode dizer, que esse trabalho parte do limite (a

    contemplao far, posteriormente, o caminho contrrio: ela se concentra nesse ponto focal j

    estabelecido e se vai diluindo at a beira da superfcie pintada), isto , da moldura do quadro.

    a contar da que se estabelece a situao daquele ponto e, posteriormente, os pesos desse

    jogo de equilibrar.

    Sua histria: o falso dinamismo

    Pouco interessado em equilibrar, em fixar, as experincias que Mir realiza nessa poca

    parecem buscar uma medida fora daquela medida fatal, por meio da qual se obtm o

    equilbrio slido e no ameaado da pintura nascida do Renascimento. Nessa poca, ainda

    distante do dinamismo posterior, o que Mir explora no um ato temporal do espectador.

    mais bem uma forma de energia, at ento no descoberta: a que pode advir da colocao de

    uma figura numa posio tal, dentro da superfcie, que produz no espectador uma sensao de

    que ela se vai precipitar, mudar de lugar.

    (p. 699)

    Essa energia, evidentemente, uma iluso. A um olho no automatizado, no acostumado

    inconscientemente s propores e ao equilbrio que se adquirem na contemplao de

    museus e reprodues, ou melhor, a um olho selvagem, virgem dessas formas com as quais o

    hbito visual amoldou nossa contemplao, essa energia imperceptvel. Sempre que no se

    d a tendncia espontnea de todo olho, de colocar a coisa onde se acostumou a ver as coisas

    colocadas, essa energia, essa sensao de coisa que se precipita e quer buscar sua prpria

    estabilidade, ser imperceptvel.

    Mir parece haver conseguido essa libertao da moldura nos quadros que pintou antes da

    guerra de 1939. Essa libertao no assinalada por uma exclusividade da maneira dentro de

    suas obras dessa poca, e sim, pela freqncia sempre maior que se nota no emprego dessa

    liberdade. uma libertao no sistemtica, interrompida por outras experincias contrrias,

    em que o artista parece medir-se.

    (p. 700)

    Mir no-gramatical

    Esse aspecto da evoluo da pintura de Mir na qual distingo uma continuidade coerente,

    embora nem sempre uma exclusividade absoluta dentro das fases que constituem a histria de

    seu estilo me parece perfeitamente compreensvel se se tem em conta o carter no terico

    do artista. Mesmo em sua ltima fase, quando parece estar mais seguro de sua composio, se

    observaro no conjunto de seus quadros essas oscilaes, normais num trabalho que no se

    baseia em sistemas, isto , em algo preciso e inaltervel.

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

  • Mir no realizou um sistema de composio. No existe uma grmatica Mir. Mais ainda:

    Mir no s no a formulou jamais como, e estou seguro disso, no possui um conceito exato

    do que tecnicamente, ou esteticamente, pode constituir sua maneira atual de compor.

    Mais ainda: creio que, mesmo sumariamente, o que consitui sua maneira de compor no pode

    ser reduzido a leis. Seno a leis negativas. Mas a indicao das leis tradicionais que em tal ou

    qual quadro ele desobedece, ter alguma utilidade Para os que acreditam que sim, deixo a

    sugesto, sem acompanh-los porm no exerccio, que, de resto, no oferece nenhuma

    dificuldade.

    Mir anti-gramatical

    Eu, por mim, creio que no. Mir no aborda as leis da composio tradicional para combat-

    las. Mir no busca construir leis contrrias, uma nova preceptiva paralela dos pintores

    renascentistas. O que Mir parece desejar desfazer-se delas, precisamente porque so leis.

    Livrar-se, lavar-se delas, coisa a meu ver absolutamente diversa da atitude de substitu-las ou

    de us-las pelo avesso.

    Dito de outra maneira: Mir parte de uma atitude psicolgica. E da mesma maneira como a ela

    se deve atribuir as causas de sua inveno e isso ser o objeto da segunda parte deste ensaio

    a ela que se deve (p. 701) atribuir o desenvolvimento conseqente que se observa na

    evoluo do estilo de Mir. Na qual, apesar daqueles recuos aparentes e da coexistncia de

    maneiras dentro dos quadros de uma mesma poca, existe como que uma luta oculta, mas

    constante, entre a velha maneira de compor e certos elementos perturbadores que a vo

    corroendo internamente. Luta que se resolve pela vitria posterior desses elementos, que

    acabam por se tornar predominantes nas obras que o artista pintou nestes ltimos anos.

    (p. 702)

    Aparece o dinamismo

    libertao da moldura como ponto de partida do trabalho de compor, seguir-se-ia, na

    pintura de Mir, a explorao e a consolidao das possibilidades dinmicas da superfcie.

    Historicamente, creio que ela data de sua volta Espanha, durante a ltima guerra eurpia, e

    de seu isolamento em Maiorca. Ali, Mir parece haver encontrado uma disposio de esprito

    favorvel a um demorado dilogo com sua pintura. Demorado e tranqilo. Mantido nesse

    plano simples do fazer, artesanal, em que a mo fabricadora, por no estar dissociada da

    inteligncia fabricadora, no necessita criar expresso terica para sua norma.

    (Apesar da impossibilidade de haver uma gramtica Mir, creio que possvel esboar, atravs

    de seus resultados objetivos, o que se pode chamar a constante dinmica que vemos hoje

    predominar nos quadros do mais recente Mir. Essa constante dinmica se expressa por um

    crescente poder da linha e pelo desejo de obter, com sua linha, melodias absolutamentes

    livres das limitadas melodias admitidas pela pintura fundada no Renascimento.

    ManuelaRealce

    ManuelaNota

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaNota

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

  • O que o dinamismo de Mir

    Antes porm de estudar esses aspectos objetivos do dinamismo de Mir, deve salientar-se que

    o artista no parece jamais interessado em realizar quadros obedientes a um plano geral de

    circulao, grandes painis e que o percurso do olho do espectador seja cuidadosamente

    previsto e controlado. O dinamismo dessa pintura mais recente se caracteriza bem mais pela

    presena de pequenas melodias dentro do quadro, que o olho aborda por onde melhor lhe

    parece. Esses quadros no impem ao espectador um movimento continuado e nico, como

    nico e exclusivo o ponto a partir do qual se aborda a composio esttica.)

    O que caracteriza seu trabalho, a partir de 1940, um crescente poder da linha. Uma mancha

    de cor, uma superfcie dentro de outro superfcie pertencem (p. 703) categoria do esttico. A

    ateno, para apreend-las, no obrigada a realizar um ato temporal. Uma linha, pelo

    contrrio, pertence categoria do dinmico e exige, para ser percorrida, um movimento do

    espectador. O corpo de uma linha pode ser mesmo, a expresso de um movimento.

    Importncia da linha

    Nesta composio, a linha no um elemento perigoso como se d com a composio

    tradicional, onde ela, se no est dominada, um elemento dissociador. Nesta composio, a

    linha a mola. no somente o que contemplar, mas a indicao, o guia, a norma da

    contemplao. Ela vos toma pela mo, to poderosamente, que transforma em circulao o

    que era fixao; em tempo o que era instantneo.

    A, agora, j o dinamismo no ilusrio como no caso daquela energia que Mir se dedicou a

    criar, ao propor o olho automatizado, relaes contrrias a seu automatismo. Trata-se, agora,

    de uma sensao real, que pode ser verificada. O que essas linhas vos do, no uma iluso de

    movimento. Elas vos impem um verdadeiro movimento.

    Evidentemente, esta pintura que exige um discorrer da ateno sobre a superfcie, isto , que

    exige um novo tipo de contemplao, necessita assegurar-se de que as linhas em que ela se

    baseia so poderosamente fortes para impor circulao. Porque em caso contrrio, isto , se

    essas linhas no so suficientemente fortes como guia, e no obrigam ao espectador esse

    dinamismo visual, todo o edifcio do quadro desmorona.

    Na composio esttica renascentista, a linha est deliberadamente empobrecida. Porque sua

    natureza essencialmente dinmica, isto , inimiga, a linha eliminada ou anulada. Basta

    pensarmos no que os preceptistas chamam ritmo. Esse mnimo de movimento estabelecido

    segundo minuciosa polcia e autorizado apenas em algumas poucas formas, simples e dbeis,

    j montonas. Isto : o ritmo permitido apenas enquanto no ameace o esttico ou

    enquanto seja mantido como um elemento acessrio, margem da iluso de profundidade.

    A linha na estrutura esttica

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaNota

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

  • Se pode mesmo afirmar que naquela composio se permitem unicamente as linhas

    plasmadas pelas (p. 704) exigncias do esttico. So geralmente formas simples, de base

    geomtrica, curvas que sempre se voltam sobre si mesmas, em desenvolvimentos harmnicos

    que asseguram seu prprio equilbrio. Isto : so formas em que se anulou, completamente,

    qualquer excitao ao dinmico. Quer por se haverem anulado, criando sua prpria

    estabilidade e repouso, quer por se entregarem ao espectador, desde seu primeiro

    movimento.

    Portanto, linhas capazes de ser apreendidas instantaneamente. No primeiro caso, porque,

    havendo criado seu prprio equilbrio se revelam ao espectador mais como massa ou

    superfcie do que como linha; e no segundo porque o olho, que advinha desde o primeiro

    momento, nada encontra que o obrigue a percorr-las completamente.

    A datar desses quadros que pintou na Espanha, vemos que Mir vai abandonando as pobres e

    repetidas melodias da linha renascentista. J no com a linha elegante ou harmoniosa,

    formas plasmadas pelas necessidades do equilbrio, que ele conta. Ele tem de reencontrar a

    funo da linha. Tem de abandonar as linhas onde a contemplao permanece estagnada e

    entregar-se criao de novas melodias.

    A linha na pintura de Mir

    Mir parece haver compreendido perfeitamente a fora de sua linha. Observemos os quadros

    que pintou a partir dessa poca. Veremos como so mais freqentes neles essas linhas soltas,

    colocadas pelo pintor em posio essencial entro da obra. Observemos suas formas, essas

    manchas to simples to limitadas como vocabulrio, como literatura luas, estrelas,

    circunferncias. Podemos notar como se vai fazendo mais e mais poderoso, nelas, seu

    contorno, sua linha. Essas formas, que em seus quadros antigos eram desenhadas quase

    geometricamente, ou melhor, dentro do esprito harmnico da linha renascentista, em sua

    verso atual incitam a que as exploremos completamente, em todos os milmetros de sua

    fisionomia e de seu contorno, mesmo quando no existentes como linhas em si, mas como

    limite de uma figura e de uma mancha. A, ainda, uma luta cntra o esttico da ateno que

    vemos em Mir: uma dupla luta, contra o esttico prprio da cor e contra o esttico prprio da

    (p. 705) contemplao de figuras conhecidas e apreendidas de memria.

    a esse exerccio que Mir parece entregar-se. Em seus quadros dessa poca, suas linhas

    aparecem com uma liberdade de destinao que nosso olho desconhecia. Mais do que a uma

    linha, isto , em lugar daqueles organismos harmnicos e frios, sobre os quais nossa ateno

    deslizava meio indiferente, que nos agradavam precisamente pela indiferena com que

    podamos executar nelas melodias conhecidas, o que nos parece assistir, diante de suas obras

    dessa poca ao prprio crescimento de um organismo. Assistimos, temos a iluso de assistir,

    ao nascimento dessa linha, que parece estar crescendo a nossos olhos, acabada de nascer com

    mil reservas de surpresa.

    O segredo de sua linha

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

  • O que chamei surpresa nelas essencial. Sua linha, a partir dessa poca se vai estabelecendo

    medida que a contemplais. Vosso olho no pode prever, absolutamente, a seguinte direo de

    qualquer desses organismos. Eles parecem recomear a cada momento um novo caminho.

    Parecem burlar-se de vossos olhos automatizados, parecem interessados em livrar-se do

    caminho fatal que vosso olho automatizado, ou vossa mo automatizada de pintor deseja para

    eles, ao qual deseja conden-los.

    Atravs dessa luta entre vosso costume e sua surpresa essencial, de cada milmetro, essas

    linhas se apoderam de vossa ateno. Elas sujeitam vossa ateno, acostumada a querer

    adivinhar as linhas, e a mantm presa atravs de uma srie ininterrupta de pequenas e

    mnimas surpresas. Aqui, vossa memria no ajuda vossa contemplao, permitindo-vos

    advinhar uma linha da qual apenas percebestes um primeiro movimento. Aqui no podeis

    adivinhar, isto : dispensar, nada. O percurso tem de ser feito, e isso s pode realizar-se

    dinamicamente.

    (p. 707)

    II

    Quando a estrutura foi pesquisa

    Os primeiros pintores do Renascimento inventores do que hoje a Pintura eram obrigados

    a um trabalho de criao eminentemente intelectual. Em teoria, podemos imaginar esse tipo

    de artista. Ele estava colocado diante de um problema permanente que resolver. O mnimo

    detalhe de sua composio significava problema.

    Que resolver cientificamente (Para ele, as idias de crincia e de arte no se tinham dissociado

    como posteriormente, at se tornarem antagnicas). A criao de uma pintura coincidia,

    ento, com a criao da Pintura. Ele ainda no dispunha de uma arte de uma tcnica e,

    muito menos, de memria. Era, a sua, uma pesquisa de cada minuto, num campo

    desconhecido, lcida e intelectual. Era ainda, e essencialmente, inveno. Posteriormente

    passaria a ser descoberta.

    A inteligncia, eminentemente pragmtica, resolve cada problema de uma vez por todas.

    Mata cada problema ao resolv-lo. Anula o que pesquisa, convertendo resultados em leis,

    isto , em receitas.

    Quando a estrutura foi gramtica

    Depois, o sistema dessas leis, dessa experincia, passou a poder ser transmtido. O pintor j

    possua ento a sua arte. O trabalho de criao era reduzido, da pesquisa de uma soluo

    conveniente, para a aplicao do que se sabe ser a soluo conveniente. A lei desintelectualiza

    o trabalho de criao, j que foi formulada para que esse trabalho no tivesse de se repetir

    sempre.

    O pintor que j no criava uma lei mas aplicava uma experincia recebida de outro, o pintor j

    artista, vai-se tornando cada vez menos intelectual. Ele, nessa poca, j o era, apenas,

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

  • parcialmente: apenas enquanto a manipulao dessas solues artsticas continham esforo,

    aprendizado. Mas medida em que essas solues doram sendo mais dominadas, em que o

    con- (p. 708) junto de regras se foi fazendo instinto e habilidade, sua desintelectualizao se

    foi acentuando.

    Evidentemente, no existiu aquele pintor inicial, colocado diante de todo um gnero a criar.

    Mas o artista daquele tempo e tanto mais quanto recuamos dentro do Renascimento era

    obrigado a um trabalho de criao lcido e minucioso, que exigir a participao inteira de sua

    personalidade, mobilizada pelo esforo no que ela possua de melhor e mais potente.

    Com o tempo, no s o nmero de cadveres de problemas, tanto vale dizer: de problemas

    resolvidos, de leis, foi aumentando, como tambm a freqncia na manipulao dessas

    solues. E por esse motivo se foi criando o hbito dos resultados dessas solues, seu

    automatismo. Com o tempo, a transmisso do conjunto de leis que constitua a arte da pintura

    se foi fazendo menos e menos terico. Isto : mais e mais intil. Talvez o mal das academias,

    hoje, no esteja na mutilao que possam representar para a livre expresso da personalidade.

    Talvez seu mal maior esteja em sua meio ridcula inutilidade.

    Quando a estrutura instinto

    escola susbstituiu o museu; ao trabalho intelectual, a criao intuitiva; inteligncia, a

    memria. quele tipo de pintor intelectual, mais ou menos intelectual segundo sua prtica ou

    sua poca, obediente ao terico no pelo gosto da limitao como se d com o acadmico

    e sim porque somente atravs do terico lhe podiam chegar as solues que o problema de

    seu trabalho lhe propunha, substituiu um tipo de pintor que, sem conhecimento do terico,

    com desprezo dele ou mesmo voltado contra ele, termina sempre por encontrar-se com os

    mesmos resultados. Um tipo de pintor integrado numa tradio, isto , num automatismo que

    lhe advm da impregnao desses sculos de arte anterior contemplados.

    Evidentemente, a atitude da pintura posterior ao Renascimento no tem sido, sempre, uma

    atitude conformista. Nela, atitudes as mais violentas anti-renascentistas se podem apontar:

    quanto ao tratamento da cor, ou da luz, dos valores, da matria. (Isto : tem havido

    momentos, na histria da pintura, em que (p. 709) ela se manifesta estranhamente

    sensibilizada em relao a um desses aspectos particulares da tradio recebida. Ela ento

    expulsa todos os cadveres venerveis relacionados com tal ou qual aspecto e se entrega, por

    um momento, a um trabalho de criao absoluta.) Mas no que diz respeito estruturao do

    quadro, nenhuma transformao se verificou. Mais ainda: at o advento dos cubistas todas as

    transformaes tm acontecido absolutamente margem dos problemas que com ela se

    relacionam.

    A estrutra inaltervel

    No me parece simples coincidncia o fato de haver permanecido inaltervel, debaixo das

    transformaes mais violentas, o esqueleto da construo renascentista. A automatizao

    daquela composio no adquirida, unicamente, pela repetio de maneiras de fazer. No

    s o costume que adquire a mo, ao fazer e refazer um gesto, mas o hbito de aparncias

    ManuelaRealce

  • construdas de maneira uniforme, verdadeiras fmeas moldando a viso do homem. ,

    sobretudo, uma automatizao da sensibilidade.

    Isto : ela se processa num plano estranho ao dos eelementos anedticos de um quadro, sobre

    os quais o espectador exerce normalmente sua anlise. A composio um elemento oculto

    no quadro; sustenta a aparncia mas se apaga nela. Serve aparncia. A composio no

    existe para ser analisada. Teoricamente, a composio s deve propor-se ao espectador

    atravs de seus defeitos: quando esteja imperfeitamente realizada.

    Porqu da estrutura inaltervel

    Portanto, a composio recebida sem que a ateno se d conta. nesse plano, em que a

    inteligncia no se d conta, que ela se cristaliza em hbito. E desse plano obscuro de

    memria, como instinto, que ela se impor ao pintor de hoje quando ele dispuser sobre a tela

    os elementos de sua obra. Porque nesse trabalho no uma frmula terica que dirige o

    pintor integrado na tradio. a busca de uma harmonia, de um equilbrio conhecido, que ele

    no sabe definir e sim, reconhecer. Ao qual ele chegou pela sensibilidade. Que ele no inventa,

    descobre.

    Esse elemento, a composio, que deve ter exigido dos criadores da pintura renascentista um

    mximo de (p. 710) elaborao intelectual, terminou por ser o mais instintivo dentro dos

    diversos componentes da pintura. Pode-se mesmo dizer que em todo quadro h boa

    composio, isto , composio renascentista, equilbrio; e que a presena dessa composio

    que d, normalmente, a um quadro, a categoria de pintura. Ela um elemento que o

    espectador, mesmo o menos informado, pressupe, obscuramente.

    Afirmar isso no significa afirmar que todos os pintores tm sabido, ou sabem, jogar com as

    possibilidades desse mesmo elemento (como Rafael, Seurat, Lhote). Sim, que existe sempre,

    mesmo naqueles que no tomam as regras do jogo como ponto de partida, um certo instinto

    do quadro, um mnimo de composio capaz de assegurar a estabilidade do olho espectador

    exigida pela iluso de terceira dimenso.

    (p. 711)

    Psicologia de sua composio

    Seria possvel a existncia de uma atitude criadora contrria a essa Seria possvel uma pintura

    voltada contra essa instituio, contra essa memria obscura que parece fazer inevitveis os

    gestos da pintura contempornea A obra de Mir me parece uma resposta a essa pergunta.

    Ela me parece nascer da luta permanente, no trabalho do pintor, para limpar seu olho do visto

    e sua mo do automtico. Para colocar-se numa situao de pureza e liberdade diante do

    hbito e da habilidade.

    Mir parte, portanto, de uma atitude psicolgica. Se conseguimos entend-la, teremos, a meu

    ver, a explicao de sua originalidade em relao pintura posterior ao Renascimento. E,

    sobretudo, a explicao do processo atravs do qual essa originalidade se foi consolidando,

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

  • apesar das oscilaes prprias a um trabalho que no quer apoiar-se no terico, e adquiriu

    uma continuidade perfeitamente conseqente. Em todo caso, absolutamente distinta do

    simples e ocasional abandono deste ou daquele princpio compositivo tradicional (como em

    Bonard, Matisse, Chagall).

    O gosto pelo fazer

    Em Mir, mais do que em nenhum outro artista, vejo uma enorme valorizao do fazer. Pode-

    se dizer que, enquanto noutros o fazer um meio para chegar a um quadro, para realizar a

    expresso de coisas anteriores e estranhas a esse mesmo realizar, o quadro, para Mir, um

    pretexto para o fazer. Mir no pinta quadros. Mir pinta.

    Essa valorizao do trabalho de criar implica, forosamente, deixar em plano secundrio tudo

    aquilo que assuntos, anedotas, intenes constitui normalmente o mvel, e a justificao,

    desse trabalho. Em Mir, isso muito fcil de ser comprovado. H em toda sua obra um

    absoluto desinteresse pelo tema, expressado na limitao e mnima variao de sua lin- (p.

    712) guagem simblica e, sobretudo, no esvaziamento desse mesmo simblico.

    Uma estrela ou uma lua, num quadro, podem pertencer ao domnio do idiomtico ou do

    caligrfico. Mesmo em pocas em que parece mais interessado em fazer uma pintura literria

    (isto , em empregar um idioma) fcil constatar coo o pintor vai corroendo internamente seu

    vocabulrio essa lua ou essa estrela at deix-lo inteiramente vazio de qualquer valor

    semntico. No sei se tm pensado nisso os que propem para essa obra chaves de decifrao,

    como se se tratasse de um volapuque lrico.

    O fazer como ponto de partida

    Essa valorizao do trabalho criadorcomo pura atividade implica, forosamente tambm, em

    deixar a iniciativa ao que possa surgr dessa luta entre a mo fabricadora e a matria dura e

    irredutvel. Aqui est a razo do que se poderia chamar seu experimentalismo, de suas

    cuidadosas pesquisas com a matria e, principalmente, de sua curiosade e capacidade de

    adaptao s tcnicas grficas mais diferentes.

    Mas sobretudo, essa valorizao do fazer, esse colocar o trabalho em si mesmo, esse partir das

    prprias condies do trabalho e no das exigncias de uma substncia cristalizada

    anteriormente, tem, na explicao da obra de Mir, uma outra utilidade. Esse conceito de

    trabalho, em virtude, principalmente, dessa disponibilidade e vazio inicial, permite, ao artista,

    o exerccio de um julgamento minucioso e permanente sobre cada mnimo resultado a que seu

    trabalho vai chegando.

    Talvez pudssemos chamar a isso, o intelectualismo de Mir, aproveitando o que na palavra

    possa indicar uma atitude de vigilncia e lucidez no fazer, e, ao mesmo tempo, de contrrio ao

    deixar-se fazer e ao saber fazer, ou por outra, ao espontneo e ao acadmico.

    (p. 713)

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaNota

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

  • Mir e o Surrealismo

    Esse conceito do trabalho de criao, que acaba resultando, essencialmente, em uma luta

    contra o instintivo, coloca a obra de Mir numa posio muito especial em relao aos

    surrealistas a que esteve associado em determinado momento.

    Especial: porque se oposta, essencialmente, ao automatismo psquico que os surrealistas

    apontavam como norma de criao, evidente que Mir no parece haver sido estranho ao

    programa daqueles mesmos surrealistas, de buscar uma arte que pudesse atingir, e revelar,

    um fundo existente no homem por debaixo da crosta de hbitos sociais adquiridos, onde eles

    localizavam o mais puro e pessoal da personalidade.

    A originalidade de Mir em relao a eles est em que buscaria realizar de maneira

    inteiramente diferente essa proposio inicial. A Mir, a seu esprito artesanal, quase, haveria

    de soar estranhamente a esttica antiplstica dos surrealistas, que pareciam interessados em

    criar um tipo de arte superior e independente dos gneros de arte, pairando independente da

    realizao objetiva de uma obra e, s vezes, capaz de existir apesar de uma obra.

    Entendimento do Surrealismo

    Se essa esttica ou mais justamente: essa tica termina por significar um enorme desprezo

    pela forma, isto , pela presena objetiva de uma obra, o meio que ela prope, esse

    automatismo psquico, significa e a isso Mir haveria de ter sido mais sensvel um desprezo

    absoluto pelo fazer, pelo trabalho, de criao da obra. Que o surrealismo tenta anular, reduzir

    ao mximo, submetendo-o ao ditado do espontneo; ou menosprezar completamente,

    admitindo o frio e amaneirado registro de estados psicolgicos ou vises onricas, realizado

    posteriormente, dentro do clima de academia.

    A Mir, to pintor, isto , to unicamente pintor, ou pintor to pouco literrio, esses tipos de

    (p. 714) antipintura no devem ter absolutamente interessado. Ele aceitou aquela proposio

    inicial do surrealismo, mas transformou-a num outro sentido. Ele entendeu-a no como a

    introduo do subjetivo e do psicolgico como assunto da pintura de seu tempo. O que ele

    aceitou foi a idia de levar at o campo mais profundo do psicolgico a busca de renovao

    formal a que a pintura se entrega h um sculo, com uma intensidade somente interrompida

    nos anos de ascendncia dos pintores surrealistas.

    Ainda o Surrealismo

    Assim, ao automatismo psquico Mir ops o que havia em seu esprito de mnimo e

    minucioso, de artesanal. anulao da razo como caminho para aquele autntico humano,

    preferiu o excesso de razo, de trabalho intelectual, na luta pelo autntico. Uma atitude de

    luta, a sua, absolutamente contrria atitude de abandono dos surrealistas que, entregues ao

    puro instintivo, foram encontrar, mais intensos, os hbitos visuais armazenados, a memria.

    Contrariamente tambm aos surrealistas, no uma pintura psicolgica, de tema ou de tese,

    de anedota psicolgica, que Mir realiza. Mir sempre quis, e quase sempre o conseguiu,

    realizar pintura. Essa atitude psicolgica, a partir da qual ele empreende sua aventura, informa

    apenas seu trabalho criador, seu processo mental de criao.

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

  • H quem imagine que Mir pinta vises ou registra, plasticamente, estados psicolgicos. J se

    tem falado at de psicografia, a respeito de sua obra. Entretanto, essas pessoas no se do

    conta de que Mir tem pintado, somente, o que at hoje tem sido objeto de representao

    pela pintura. O que acontece que ele apresenta esses objetos num estado de criao e de

    inveno que no conhecamos. Aquela lua ou estrela no so jamais luas metafsicas ou luas

    de sonho. So luas e estrelas pintadas absolutamente puras de outras representaes de luas

    ou de estrelas.

    (p. 715)

    Continua a psicologia de sua composio

    O trabalho criador do pintor catalo, que tento me representar tanto quanto esboar, traz

    consigo um problema especial. Sua conscincia, seu rigor, no se apia num elemento

    concreto: a lei, a norma exterior. Quando este elemento est presenta, o trabalho da

    conscincia se exerce no sentido, apenas, de uma fiscalizao de resultados. E o rigor dessa

    conscincia estar em eliminar ou ajustar tudo o que no se adpte a essa regra ou idia, slida,

    externa ao artista e para ele uma realidade precisa, inaltervel. E a qualidade do artista estar

    na maior ateno com que exera essa polcia e em sua capacidade de aceitar os

    despojamentos a que ela o obrigue.

    Inegavelmente esse tipo de trabalho pode evitar o espontneo e o no autntico. Mas

    somente at um certo momento. Porque a verdade que essas formas exteriores, intelectuais

    apenas enquanto se opem a uma fcil manipulao, podem ser prontamente transformadas

    em hbito. Elas acabam mesmo, sempre por perder esse carter inicial de disciplina e se

    transformam em excitante do espontneo e do instintivo. possvel a uma pessoa acostumar-

    se a conversar em sonetos camoneanos como foi possvel ao olho ocidental acostumar-se com

    as sutis e complicadas propores da pintura nascida com a explorao da terceira dimenso.

    Intelectualismo de Mir

    No trabalho de Mir, essa norma fixa de julgamento no existe. Nada existe exterior sua

    atividade. Nada a que ele confie seu problema permanente, nenhuma frmula qual ele deixe

    a misso de buscar tal soluo, com a qual ele compara sua criao. Ser a sua uma espcie de

    criao absoluta, em que cada mnimo passo tem de ser realizado O trabalho de criao de

    Mir, eu o imagino como o de um homem que para somar 2 e 2 contasse nos dedos. No por

    ignorncia de sua tabuada como se d com a pintura infantil. Mas (p. 716) e nessa

    capacidade de esquecer sua tabuada est uma das coisas mais importantes de sua experincia

    pelo desejo de colocar seu trabalho, permanentemente, num plano de inveno da

    aritmtica.

    Se verdade que a lucidez da criao de Mir no se apia em leis ou elementos tericos a

    que obedecer ou desobedecer verdade tambm que seu julgamento e a lucidez no

    mais do que um uso de estado de julgamento permanente no pode dispensar uma base, um

    critrio de escolha e apreciao. Mir, e nisso ele se assemelha ao artista automatizado de seu

    tempo, usa, tambm, o critrio de seu gosto, a reao de sua sensibilidade.

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

  • Ainda seu intelectualismo

    Mas somente nessa atribuio, que ambos fazem sensibilidade, da misso de apreciar.

    Porque enquanto o pintor integrado na tradio trabalha em sua linha at chegar a reconhec-

    la, at dar-lhe tal aparncia que ele no sabe porque chega a satisfazer-lhe, at coloc-la na

    linha da tradio e da memria, Mir luta para que, em nenhum momento, possa vir a

    reconhecer, na sua, harmoniar obscuramente aprendidas. Isto : em Mir, no coincidem seu

    gosto e seu impulso obscuro; o gosto no nele expresso de cultura, de hbito visual.

    Assim, o processo mental dessa conscincia de Mir essencialmente negativo. No o rigor

    para reproduzir o visto, para criar variaes novas dentro de harmonias vistas, mas uma

    depurao de todo costume. a expresso dessa luta que aparece no quadro de Mir. Sua

    pintura a expresso desse fazer com luta, desse fazer em luta. Jamais fceis criaes de um

    homem que tenha anulado em si todo o costume e a memria.

    No seria difcil copreender-se a natureza dolorosa de um trabalho dessa ordem. Para o artista

    contemporneo que imaginamos, integrado nessa tradio e aceitando-a inconscientemente,

    haver luta e esforo, apenas, enquanto no houver domnio e habilidade. Para Mir, essa luta

    ser permanente. Trabalhar contra seus hbitos visuais no significa anul-los. Esse esforo

    para venc-los tera de renovar-se cada dia. O mnimo gesto criador ser, necessariamente

    para ele, uma luta aguda e continuada.

    (p. 717)

    Um rigor sempre mais agudo

    Nesse trabalho, no h, assim, momentos de facilidade em que as coisas se resolvem ajudadas

    por uma descoberta anterior. No h solues que signifiquem uma vitria mais longa que a

    de um momento. Cada milmetro de linha tem de ser avaliado. No h, como no trabalho de

    certos poetas, o equivalente daquela primeira palavra, fecunda de associaes e

    desenvolvimentos, que contm em si todo o poema. A luta, aqui, se d na passagem de uma a

    outra palavra e se uma dessas palavras conduz uma outra, em lugar de aceit-la em nome do

    impulso que a trouxe, essa conscincia lcida a julga, e ainda com mais rigor, precisamente por

    sua origem obscura.

    Essa atitude equivale a colocar-se, permanentemente, no diante de um quadro a criar, mas

    diante da pintura a criar. uma aspirao a de colocar-se num ponto anterior primeira grafia

    pelo abandono de toda experincia que significa a pintura que existido at ele. No por

    desprezo dessa experincia ou de seu valor. Apenas, para encontrar e explorar em sua obra, a

    virgindade do homem anterior ao primeiro quadro, que podia traar sua linha em condies de

    absoluta liberdade.

    Criar como inventar

    Criao, portanto, como equivalente de inveno e no de descoberta. Equivalente a uma

    inveno permanente. Porque o rigor dessa conscincia, a nica talvez que conseguiu passar

    ManuelaRealce

    ManuelaNota

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

  • da luta contra o ponto de partida da regra, levando-a mais longe, luta contra o resultado da

    regra assimilado a ponto de hbito, exerce-se tanto contra esse mesmo hbito como contra a

    soluo ou a maneira por meio da qual, momento atrs, ele conseguiu criar margem do

    costume.

    Colocado pela permanente depurao de seus hbitos visuais, atravs da luta contra o

    hbito e a habilidade nesse ponto anterior pintura, Mir refez a sua em sentido diverso do

    que realizou a pintura posterior ao Renascimento. No se pode dizer que Mir tenha desejado

    nem mesmo que ele tenha uma conscincia terica disso realizar aquele tipo de pintura

    para o qual tentei oferecer uma teoria na primeira parte deste trabalho. O trabalho de Mir

    busca simplesmente outra coisa: a validade de seus resultados. O que (p. 718) acontece que

    nossos hbitos visuais estavam moldados por mil maneiras de composio esttica e fugir a

    eles significou, simplesmente, fugir ao estatismo.

    Sentido do vivo

    Na curta conversa de Mir, uma palavra existe: vivo, a meu ver muito instrutiva. Vivo o

    adjetivo que ele emprega, mais o que para julgar, para cortar qualquer incurso ao plano do

    terico onde jamais se sente vontade. Vivo parece valer ora como sinnimo de novo, ora de

    bom. Em todo caso, expresso de qualidade. Essa palavra a meu ver indica bem o que busca

    sua sensibilidade e, por ela, sua pintura. Essa sensao de vivo o que existe de mais oposto

    sensao de harmnico ou de equilibrado. Ela nos dada precisamente pelo que sai desse

    harmnico ou desse equilibrado, diante do qual nossa sensibilidade no se sente ferida, mas

    adormecida.

    a esse vivo que parece aspirar a pintura de Mir. Isto , a algo elaborado nessa dolorosa

    atitude de luta contra o hbito e a algo que v, por sua vez, romper, no espectador, a dura

    crosta de sua sensibilidade acostumada, para atingi-la nessa regio onde se refugia o melhor

    de si mesma: sua capacidade de saborear o indito, o no-aprendido.

    A descoberta desse territrio livre, onde a vida instvel e difcil, onde o direito de

    permanecer um minuto tem de ser duramente conseguido e essa permanncia

    continuadamente assegurada, no tem uma importncia psicolgica em si, independente do

    que no campo da arte ela pudesse ter produzido

    (p. 719)

    P.S.

    A obra de Mir significa, para a pintura, muito mais do que a aportao de um estilo pessoal;

    muito mais do que o enriquecimento afinal relativo, por estagnado que pode advir,

    pintura, da inveno de um formalismo a mais. Ela tambm isso; e, infelizmente, isso, o

    que nela existe de estilo individual, que tem levado os crticos a valoriz-la.

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaNotavivo

    "Orgnico" LC e HO

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaNota

  • Entretanto, ela tambm outra coisa. Por debaixo do conjunto de maneiras pessoais que

    constituem a frmula-Mir, h uma luta que transcende o limitados alcance de uma exclusiva

    busca de expresso original. H uma luta contra todo um conjunto de leis rgidas que vem

    estruturando a pintura posterior ao Renascentismoo e o que est presente, sem exceo, por

    debaixo das frmulas individuais mais contraditrias, exploradas por pintores de hoje.

    A obra de Mir , essencialmente, uma luta para devolver ao pintor uma liberdade de

    composio h muito tempo perdida. No uma liberdade absoluta, nem uma anglica

    libertao de qualquer imposio da realidade ou da necessidade de um sistema para aordar a

    realidade. sim, uma luta para libertar o pintor de um sistema determinado, de uma

    arquitetura que limita os movimentos da pintura.

    Essa luta d histria do pintor Mir a continuidade de um sistema e explica certas questes

    que algumas pessoas conhecidas do pintor no se podem deixar de propor. Explica, por

    exemplo, porque este homem, em cujos comeos se notava to grande amor realidade, e em

    que se nota, ainda hoje, to desmedido amor por esse outro tipo de realidade os materiais

    humildes de sua arte, dos quais sempre parte foi levado a um ponto extremo de estilizao,

    de abstrao.

    De certa maneira, se pode dizer que o abstrato est nos dois plos do trabalho de

    representao da realidade. abstrato o que apenas se balbucia, aquilo a que no se chega a

    dar forma, e abstrato o que se elabora ao infinito, aquilo a que se chega a elaborar to

    absolutamente que a realidade que podia conter se faz transparente e desaparece. No

    primeiro caso, a figura abstrata por ininteligvel; no segundo, por disfarada. No primeiro, se

    permanece aqum da realidade; no segundo, se nega a realidade. O movimento que me

    parece haver determinado na obra de Mir o que se poderia entender como um desejo de dar

    caa realidade, no me pare- (p. 720) ce poder enquadrar-se nessas duas formas de dio ou

    desprezo. Nesse homem to prximo ao que h de mais concreto na natureza e em seu

    trabalho, nesse slido arteso da Catalunha, impossvel seguir o rastro de qualquer

    idealismo. No h nele nenhuma inteno de expulsar o assunto. (Ele poder, mesmo, vos

    decifrar qualquer das manchas de seu quadro; ele at parece se manifestar surpreendido de

    que no as possais decifrar imediatamente.)

    Melhor se definir seu caso dizendo que, interessado em criar uma dinmica para seu quadro

    embora nem sempre se trnha dado conta disso Mir teve de ir simplificando, a um ponto

    de puros esquemas, o assunto de seus quadros. A estilizao abstrata na obra de Mir est

    determinada pela luta de lograr uma mecnica diferente para a pintura; est determinada

    pelas exigncias desse trabalho que se poderia chamar terico.

    esta inteno e, principalmente, os resultados objetivos a que ela chegou, que salvam sua

    obra de ser um formalismo a mais. No necessrio que o pintor, agora seguro de sua

    mecnica, inicie a volta a um assunto e a uma pintura mais largamente humana, independente

    de tudo o que, excesso de valorizao do indivduo, mantm a arte e as artes estagnada e

    sem sada possvel. Com sua nova mecnica, e com a liberdade de composio que logra em

    sua obra, Mir ter reaberto uma perspectiva. E a pintura, quando se lance numa nova

    histria, mais arejada e menos fechadamente individualista, quando empreenda a sntese dos

    elementos tcnicos positivos em que h em tal ou qual pintura de hoje, que h nas pinturas de

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaRealce

    ManuelaNota

    ManuelaRealce

  • hoje (no foi, na verdade, a pinturas diferentes, a gneros de pinturas diferentes que nos

    conduziu o formalismo atual), saber aproveitar o exemplo e os ensinamentos do pintor de

    Barcelona.