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João Alves Dias

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sana

EPÍLOGODepois desta interessante e importante viagem no tempo, re-

montando à década de sessenta, em que a expectação e o interesse

pela descoberta, pelo conhecimento de uma causa geradora de vanta-

joso fruto, fortalecido há meio século, são alimentados, de forma siste-

mática, cabe finalizar a narrativa com algumas considerações.

“Nos Alvores da Obra Diocesana” assume publicação de mar-

cante valor histórico, social, cultural e afetivo. Mostra como a força da

realização e o poder do empreendedorismo social, materializados na

ajuda ao próximo, se tornam exequíveis, ainda que os requisitos se afi-

gurem complexos e desmotivadores.

Salienta-se em todo o relato a vontade, individual e grupal, con-

sistente e coesa, de seguir em frente, com perseverança e confiança, em

busca do grande objetivo: a solidariedade social, a promoção social e a

quebra das desigualdades, num semear de distintas oportunidades aos

mais desamparados, em sítios fulcrais da cidade do Porto.

Sente-se em toda a descrição o palpitar do acreditar, com fé e

oração, para encontrar a solução, as soluções, não obstante as contrarie-

dades, as vicissitudes, as divergências…

Como se trata de um livro elaborado sob a luz do testemunho

vivo do seu autor, que acompanhou e experienciou, bem de perto e

com muita alma, os multifacetados trâmites da criação da Obra Dio-cesana de Promoção Social, oferece a apetecida autenticidade dos

factos, acontecimentos, vivências ímpares, curiosidades estimulantes,

alusões às realidades da época… numa composição, harmoniosa e feliz,

que conta com a beleza e a profundidade de algumas citações bíblicas,

encontradas com desvelo e perfeição, proporcionando, no seu conjun-

to, espaço para reflexão e introspeção.

Este livro, que termina aqui, traz consigo a intencionalidade de

dar a saber, com ênfase e pormenor, como nasceu a ODPS, a instituição

que escreve, com alegria, abonada história na vida das populações.

Observando a contemporaneidade e colocando o pensamento

há cinquenta anos atrás, tudo era diferente… porém, um ponto comum

ressalta, com agrado – o desejo de fazer o bem, de construir pontes e

edificar a paz. O valor social conseguido até hoje faz sorrir e deleita o

coração.

“Nos Alvores da Obra Diocesana” cumpre bem a sua parte.

Aos homens compete fazer o restante numa continuidade de propósi-

tos sempre prontos a servir e a amar com inteligência e sabedoria.

Américo Ribeiro

João Alves Dias, presbítero casado, licen-

ciado em filosofia e professor aposentado.

Colaborou na criação da Obra Diocesana

de Promoção Social como “sacerdote res-

ponsável”, esteve na génese da paróquia

de Nossa Senhora do Calvário no Porto e

fez parte do primeiro Conselho Presbite-

ral da diocese do Porto. Presidiu aos con-

selhos diretivo e pedagógico da Escola

EB2,3 de Rio Tinto, foi diretor pedagógico

do Colégio D. Duarte e pertenceu à dire-

ção da AEPP. Foi membro da Assembleia

de Freguesia de Campanhã e da Comissão

de Ética do Hospital Joaquim Urbano, pri-

meiro presidente da assembleia geral da

Comissão de Moradores do Bairro do Fal-

cão e fez parte do conselho fiscal da CER-

PORTO e do Internato Juvenil de Campa-

nhã. Participou nas obras “Manuel Álvaro

de Madureira in memoriam”, “Repensar a

Teoloxia, Recuperar o Cristianismo”, “Can-

cro, Vidas em Reconstrução”. É coautor

dos manuais escolares ”Conhecer Portu-

gal- Estudos Sociais”, “Pela História Fora…”,

”Descobrir Portugal…”, “Grande Viagem”.

Escreve na “Voz Portucalense”, semanário

da diocese do Porto, e no “espaço solidá-

rio”, revista da Obra Diocesana. Faz parte

das direções da Fundação Voz Portuca-

lense, do Coro Gregoriano do Porto e do

“Grupo Boa Memória”.

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Obra Diocesana

NosAlvoresNosNosdaee

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Ficha Técnica

Título: Nos Alvores da Obra Diocesana

Autor: João Alves Dias

Edição: Obra Diocesana de Promoção Social,

Rua D. Manuel II, 14 - 4050-342 Porto

Revisão: Ana da Conceição Pinheiro de Magalhães Alves Dias

Fotografias: do autor

Dep. Legal: 367968/13

Execução gráfica: Lusoimpress - Artes Gráficas, S.A.

Tiragem: 2000 ex.

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DEDICATÓRIA

A minha esposa, minha sogra, nossos filhos, nora e neto Francisco, “sacra-

mento da presença viva de Deus”.

A quantos, no passado e no presente, deram e dão vida a este sonho que,

há já cinquenta anos, anima a Igreja do Porto.

A todos os utentes da Obra Diocesana, razão primeira da sua existência.

Ao amigo P. Lino Maia, presidente da Confederação Nacional das Institui-

ções Particulares de Solidariedade (CNIS), por tudo o que tem feito ao serviço da

missão socio-caritativa da Igreja. E pelas palavras que abrem este meu peregrinar

pela memória.

AGRADECIMENTO

Aos meus pais, à “mestra Maruja” e a todos os mestres a quem muito devo.

A D. Florentino de Andrade e Silva e D. António Ferreira Gomes que me

confiaram a missão de “sacerdote responsável” da Obra.

Aos que comigo trabalharam na Obra, desde a sua fundação até 1975.

Ao Conselho de Administração da Obra Diocesana, na pessoa do seu Presi-

dente, Américo Ribeiro, que me desafiou para este “mergulho” na memória. E pelas

palavras com que se dignou encerrar esta romagem às origens.

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ÍNDICE

Prólogo - Pe. Lino Maia.................................................................................................................................................. 7

Em jeito de testemunho .......................................................................................................................................... 11

Abertura ........................................................................................................................................................................................ 13

Retalhos de memória .................................................................................................................................................. 15

Nos bastidores da Obra ............................................................................................................................................ 17

A génese ....................................................................................................................................................................................... 21

A Obra e o Secretariado ........................................................................................................................................... 23

O caráter inovador da Obra ................................................................................................................................. 25

Dois Bispos – Dois Carismas ................................................................................................................................ 31

- D. Florentino de Andrade e Silva ................................................................................................................... 31

- D. António Ferreira Gomes ................................................................................................................................... 33

- “Fruto de um único Espírito” ............................................................................................................................... 38

A Obra e a Câmara Municipal do Porto ............................................................................................... 39

Instituto de Serviço Social do Porto ......................................................................................................... 45

O papel dos leigos ........................................................................................................................................................... 47

- Dr. Francisco Sá Carneiro ........................................................................................................................................ 47

- Arquiteto Fernando Távora .................................................................................................................................. 52

Conselho Técnico Consultivo ............................................................................................................................ 55

Primeiros passos ................................................................................................................................................................. 57

Uma filha da Obra ............................................................................................................................................................ 63

- Primeira Missa no bairro do Cerco do Porto .................................................................................... 65

- Início do trabalho pastoral em S. Roque da Lameira ............................................................ 67

- A capela de Nossa Senhora do Calvário ............................................................................................... 68

- A ereção canónica da paróquia de Nossa Senhora do Calvário .............................. 71

- “Aqueles que passam por nós…” ................................................................................................................. 72

- Clube de Pesca do bairro do Cerco do Porto ................................................................................................ 78

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Notas de Imprensa .......................................................................................................................................................... 81

1.ª - Uma Obra de vasta projeção futura ................................................................................................. 81

2.ª - Obras Sociais no bairro do Cerco do Porto .............................................................................. 83

3.ª - Obra Diocesana de Promoção Social .............................................................................................. 83

4.ª - A nova capela do bairro do Cerco do Porto ............................................................................ 84

5.ª - Ereção canónica da paróquia de Nossa Senhora do Calvário ........................... 85

6.ª - O bairro do Cerco do Porto ......................................................................................................................... 86

7.ª - Bloco 12 – Entrada 160 – Casa 11 .......................................................................................................... 87

8.ª - Em memória de Manuel Joaquim Alves de Oliveira ..................................................... 88

9.ª - Um teólogo com coração ............................................................................................................................. 89

10.ª - A lembrar João XXIII .......................................................................................................................................... 90

Uma Palavra Final ............................................................................................................................................................. 93

Epílogo - Américo Ribeiro

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PRÓLOGO

Nos alvores da OdpsContemplamos hoje a ODPS na sua expressiva dimensão: pelos vários

bairros sociais da cidade, com múltiplos serviços em favor das famílias e desenvol-

vendo muita ação com muito dinamismo... Diariamente, entre voluntários, cola-

boradores e utentes (crianças, jovens e idosos) são perto de cinco mil as pessoas

que “respiram” Odps. Maioritariamente, dos próprios bairros. Direta ou indireta-

mente, muitas e muitas outras se dessedentam a partir da Odps.

Reconhecidamente, a Odps é uma das mais nobres instituições da cidade.

Sendo o Porto uma das cidades europeias com maior população em bairros so-

ciais (cerca de 20%), simultaneamente, é uma das cidades em que se acalenta me-

lhor harmonização social. Certamente, a Odps é uma das instituições da cidade a

contribuir mais intensamente para uma cidade boa para as pessoas.

Pesquisamos o seu passado e vemos que a Odps foi inspiradora de diag-

nósticos, metodologias, estilos e respostas... Continua a ser. São várias as ações

sociais que ali foram ensaiadas para, posteriormente, serem replicadas pelo país

fora. São muitos os técnicos e, sobretudo, as técnicas, que por ali estagiaram para,

aí, saborearem um estilo e uma marca de ações mais humanas, mais próximas e

mais envolventes das pessoas.

No passado e no hoje, vemos a Odps na sua capilaridade, na sua gratui-

dade, na sua opção preferencial pelos mais carenciados, na sua proximidade, nos

seus envolvimentos. Apreciamo-la na sua forma de estar e de agir, de saber crer e

saber querer. Reconhecemo-la na sua matriz cristã. Marcas que vai “exportando”

para todas as outras instituições de solidariedade congéneres.

E tudo começou com poucos que tinham um grande coração a bater ao

ritmo de uma grande alma. Entre “esses”, destaca-se o Padre João Alves Dias, refe-

rência para outros, da diocese do Porto ou de outras dioceses, que vieram a ser

ordenados para o exercício do presbiterado e mesmo do episcopado.

Recentemente, o Papa Francisco mostrava a sua preferência pelos pasto-

res que “cheiram às suas ovelhas”. Há cinquenta anos, João Alves Dias foi o eleito

para ensaiar um processo para o qual o Papa usou agora uma imagem bem

feliz. Neste seu livro/testemunho, mostra-nos um pouco do muito que ele foi

nos alvores de uma Obra que, indelevelmente, transportará a sua marca pelos

tempos fora.

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Ainda muito jovem, quando dava os primeiros passos na sua experiên-

cia pastoral, ele foi “atirado” para ser pastor numa comunidade que ainda não

o era. Eram pessoas que para ali iam e que vinham de desenraizamentos nem

sempre desejados mas vistos como necessários para um presente e um futuro

algo melhores. Pessoas de proveniências várias e bem difíceis para um devir

comum e preferível. O Padre já o sabia mas, ali, experimentou vivencialmente

que o homem só o pode ser quando começa a apreciar o espaço em que está

e as pessoas com quem vive ou com quem se encontra. Para fazer comunidade

ele intuía ser necessário conhecer e amar aqueles a quem queria servir sem ser

imposto. Ali, num bairro em que a pressa de o fazer contrariara o aconselhamen-

to da insuficiência de dar uma casa sem proporcionar a sociabilidade e ensinar a

sua operacionalidade, ele logo viu que se impunha fazer algo para que o ser do

homem e a sua circunstância humana se harmonizassem visando um devir mais

plenamente humano. Era necessário estar no meio das pessoas, das “ovelhas”.

“Cheirá-las”.

Sem muitas presciências técnicas nem sequer rigores doutrinais, de cora-

ção aberto, um padre apareceu num meio pobre como criador de sonhos, como

alimentador de esperanças. Fez-se próximo e humano. Ouvindo e envolvendo.

Não tendo receitas previamente prescritas nem espiritualidades à mão ou de

mãos erguidas para todos os problemas, mas simplesmente saboreando a certeza

de que “a vida é geradora de vida” percebendo que “o pouco feito com muitos

vale mais que o muito feito com poucos”. E assim, num contexto pobre, envol-

vendo os pobres como agentes do seu devir, a Obra dos Bairros marcava a sua

ação. Com a consciência de que “das coisas simples e pequenas nascem grandes

coisas”. Acompanhando as pessoas ora no silêncio a que o sofrimento obriga ou

na palavra que urge quando se torna incómoda, ora na ação que envolve e abre

caminho. Partilhando alegrias que lhe são contadas e deixando-se comungar nos

sorrisos. Foi para o meio das “ovelhas”, amou-as, caminhou com elas, serviu-as e

ficou a “cheirar o seu cheiro”. Elas cresceram com ele e ele cresceu com elas. E a

“Obra dos Bairros” assim nasceu e assim se fez Grande Obra. Com ele, com elas e

com “muitos outros eles e com muitas outras elas”. Mas com o Padre João Alves

Dias nos seus alvores e a marcá-la. Com ele, tanto a Obra dos Bairros como a sua

maior expressão - a Obra Diocesana de Promoção Social - não impôs, não im-

põem e jamais poderão impor caminho: ele amou e a Obra ama para seduzir os

caminhantes, para serem, eles próprios, a abrirem caminhos.

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Na parábola do bom samaritano (Lc 10, 25-37), não são nem o sacerdote

nem o levita judaico os apresentados como modelos do discípulo de Cristo. Mas

aquele que desceu do seu cavalo para «cheirar» o homem maltratado na berma

da estrada, tratá-lo num primeiro e necessário socorro e conduzi-lo depois à es-

talagem para aí completar a recuperação e dali poder sair para plena integração

e vivência entre os irmãos.

Percorrendo este belo “livro/testemunho” e conhecendo o Padre João

Alves Dias e a Obra Diocesana de Promoção Social que começou simplesmente

como “Obra dos Bairros”, vemos aquelas que devem ser as marcas de uma ação

social da Igreja. Precisa de padres e cristãos-leigos que façam da diaconia da ca-

ridade um anúncio e um culto. Sentir-se enviado só “com as sandálias nos pés”,

estar no meio de todos e trazer para o seu colo os mais carenciados, “acariciá-los”

com ternura, “falar-lhes” com simplicidade e envolvê-los no seu devir. “Aproximan-

do” também os companheiros e envolvendo-os numa construção comum. É de-

safio permanente para uma Igreja que faz do homem o seu caminho e de Cristo

o seu Mestre..

Desde os seus alvores - e excelentemente - foi vivência ensaiada pelo Pa-

dre João Alves Dias e pela Obra dos Bairros.

É a marca que se quer indelével e perpétua da Obra Diocesana de Promo-

ção Social...

Lino Maia

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EM JEITO DE TESTEMUNHO

“Aqueles que passam por nós não vão sós, não nos deixam sós. Deixam um

pouco de si, levam um pouco de nós.” (Antoine de Saint-Exupéry – O Principezinho)

“Não se pense por isso que sou de temperamento conservador e tradicio-

nalista. Sou um homem que ama verdadeiramente o passado. Os tradicionalistas,

ao contrário, não o amam; querem que não seja passado, mas presente. Amar o

passado é congratular-se com que efetivamente tenha passado, e que as coisas,

perdendo essa rudeza com que ao achar-se no presente arranham os nossos olhos,

os nossos ouvidos e as nossas mãos, ascendam à vida mais pura e essencial que têm

na reminiscência. O valor que damos a muitas das realidades presentes não o mere-

cem estas por si mesmas; se nos ocupamos delas é porque existem, porque estão

aí, diante de nós, ofendendo-nos ou servindo-nos. A sua existência, não elas, tem

valor. Ao contrário, naquilo que foi, interessa-nos a sua qualidade íntima e própria.

De modo que as coisas, ao penetrarem no âmbito do pretérito, ficam despojadas

de toda a adesão utilitária, de toda a hierarquia fundada nos serviços que como

existentes nos prestaram, e assim, em puras carnes, é quando começam a viver o

seu vigor essencial.” (Ortega y Gasset- Andar e Viver)

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ABERTURA

Quando, em 23 de maio de 2013, no final do ”Jantar de Beneficência”

organizado pela Liga dos Amigos e pelo Conselho de Administração da Obra

Diocesana de Promoção Social, o senhor Américo Ribeiro, presidente deste Con-

selho, me lançou o desafio de escrever um testemunho pessoal sobre a génese

da Obra, a minha adesão não foi imediata. Lembrei-me do que D. António Fer-

reira Gomes me dissera quando, um dia, lhe perguntei se estava a redigir as suas

memórias: “ainda não estou em tempo de viver do passado” e do que escrevera

nas suas Cartas ao Papa, “Evidentemente não vou escrever “memórias”, como

tais. Não teria já tempo, mas também considero inútil falar, por falar, de si, dos

seus feitos e defeitos, enfim compor a sua imagem para a história, que talvez

não venha a interessar a muitos”. Mais ainda, dada a intensidade com que vivi

esses tempos, não me é possível destrinçar a minha vida da vida da obra. Falar

da Obra obrigar-me-ia a falar de mim. E, também, não sabia se arranjaria tempo

para o fazer porque meu neto Francisco quando me vê ao computador, sempre

me diz “outa vez aí, avô!” e logo me sobe para os joelhos a fim de ver os “com-

boios e barcos a vapor” no filme “O pintor e a cidade” de Manoel de Oliveira,

rodado em 1956 que, por coincidência, nos mostra como era a cidade do Porto

quando a Obra estava a germinar. Foi, nesse ano, que D. António Ferreira Gomes

fundou o Instituto de Serviço Social do Porto, um dos grandes pilares em que

D. Florentino se apoiou ao criar o Secretariado Diocesano e a Obra dos Bairros.

Mas, quando assim hesitava, o acaso pôs na minha frente dois pensa-

mentos: “Aqueles que passam por nós não vão sós, não nos deixam sós. Deixam

um pouco de si, levam um pouco de nós” (Antoine de Saint-Exupéry); “Sempre

que um homem sonha o mundo pula e avança como bola colorida nas mãos de

uma criança” (António Gedeão). Acresce, ainda, que, nas “comemorações dos 50

anos da Missa Nova do P. Manuel Correia Fernandes”, diretor da “Voz Portucalen-

se”, jornal oficial da diocese do Porto, ouvi a sua irmã mais nova citar um texto

do filósofo espanhol Ortega y Gasset com que me identifico e que transcrevi, no

início deste texto. Como disse Theophile Gauther (1811/1872), “o acaso é, talvez,

o pseudónimo de Deus, quando não quer assinar”. Por tudo isto, quebrou-se

a minha indecisão e aceitei o desafio. Não sem, primeiro, pedir desculpa por

alguma imprecisão ou confusão que o nevoeiro do tempo poderá levar-me a

cometer.

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Falar da génese é falar de um sonho que acalentou a vida de muita gen-

te e me influenciou para sempre. É prestar homenagem a todos esses que, ao

passarem por mim, deixaram um pouco de si. Muitos já partiram para a “Casa do

Pai”, onde, espero, terão recebido a sua recompensa. Como Ortega e Gasset, “sou

um homem que ama verdadeiramente o passado” porque as coisas, libertas das

pressões do presente, ascendem “à vida mais pura e essencial que têm na reminis-

cência”. Lembro o passado como passado e não anseio que ele se faça presente.

O passado nunca é um modelo. Quando muito poderá fornecer exemplos. É que

o modelo direciona-nos para o futuro. Indica a meta a atingir, convoca-nos para

a utopia que, como a linha do horizonte, quanto mais avançamos, mais de nós

se afasta. Nunca se alcança mas ajuda-nos a caminhar. Abre-nos à esperança. O

exemplo, pelo contrário, é o modo como cada pessoa e instituição, à sua maneira

e dentro da “sua circunstância”, procura realizar esse modelo. O exemplo funciona

sempre como um incentivo. Se este e aquele, por que não eu? Interrogava-se Santo

Agostinho. A Obra Diocesana, porque de e da Igreja, tem por modelo Cristo e por

lema dois dos seus mandamentos: no acolhimento aos outros – Amai-vos uns aos

outros como eu vos amei (Jo 15,12); na qualidade do serviço – Sede perfeitos como

vosso pai celeste é perfeito (Mt 5,48).

A evocação dos primórdios poderá ajudar-nos a ver como, nas limitações

dos seus agentes e instrumentos, a Obra procurou realizar o sonho que lhe deu

origem.

Foi este o espírito que me levou a revisitar uma memória que se vai esba-

tendo nas lonjuras do tempo. Mais não é que um testemunho pessoal.

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RETALHOS DA MEMÓRIA

Ao abrir a arca das recordações, logo me surgiu a parábola evangélica que

fala de um tesouro donde se tira “coisas novas e velhas” (Mt 13,52). Um tesouro

que me faz reviver tempos de juventude animada pelo desejo de transformar o

mundo. Coisas velhas porque se esbatem em horizontes longínquos com cerca

de cinquenta anos; novas porque nos chegam envoltas em cambiantes sempre

renovados de afetividade. A memória, faculdade de reter e evocar, seleciona os

acontecimentos em função do colorido emocional com que foram vividos e da

influência que tiveram no porvir. A vida é um continente que o tempo transforma

em arquipélago. Num continente, montanhas e vales, planícies e planaltos suce-

dem-se sem quebras ou interrupções. Assim, a vida é um contínuo em que os

“tempos fortes” das emoções se intercalam com os “tempos fracos” da monotonia

quotidiana. A passagem dos anos vai submergindo as planuras da vida, deixando

que apenas aflorem à superfície da consciência os momentos cuja vivência foi

mais intensa. E é com esses picos do passado que a memória pontilha a renda

que vai tecendo. E nem sempre terão sido os mais significativos. Se a esta sub-

jetividade se acrescentar o facto de terem sido vividos com paixão – e um ser

apaixonado é sempre exagerado – então este meu texto não pode ser encarado

como história mas como uma vivência revisitada, após longos anos de ausência.

Acresce a tudo isto o facto de, por temperamento ou caráter, do passado só re-

cordar aquilo que me deu felicidade, esquecendo o que, na ocasião, me possa ter

causado dissabores e aborrecimentos. É nesta perspetiva que deverão ser lidos

estes meus retalhos que assumem caráter autobiográfico. Para conhecer a história

da Obra Diocesana, aconselho a leitura de Obra Diocesana 40 Anos de Promoção

Social de Bernardino Chamusca. Para conhecer a pessoa e obra do fundador da

Obra, sugiro Para a História da Diocese do Porto Dom Florentino de Andrade e Silva de

António Teixeira Fernandes de que destaco o Capitulo I “Secretariado Diocesano

de Acção Social” e capítulo II “Obra Diocesana de Promoção Social nos Bairros

Camarários do Porto”. Já para conhecer D. António e o seu pensamento, aconse-

lho Dom António Ferreira Gomes – Bispo do Porto ao serviço da liberdade e, muito

especialmente, as suas Cartas ao Papa.

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NOS BASTIDORES DA OBRA

Ao abrir os caboucos desse tesouro, vejo que eles remontam aos primeiros

anos da década de sessenta quando um grupo de seminaristas, com o incentivo

do seu reitor, Monsenhor Miguel Sampaio, abriu a igreja de S. Lourenço (dos Grilos)

aos moradores do bairro da Sé, um viveiro de gente pobre e desprezada que lhe

ficava à ilharga. Para além da catequese, dos cursos para jovens e da sala de convívio

para adultos, criaram, num espaço adjacente à igreja, cedido pela Câmara Munici-

pal do Porto (hoje, um belo miradouro sobre a Ribeira), um parque infantil onde

as muitas crianças das redondezas brincavam sob a vigilância duma moradora a

quem chamavam “madrinha”. Esta experiência socio-pastoral despertou a atenção

de D. Maria José Novais, uma católica muito sensível aos problemas sociais e então

vereadora da Câmara Municipal do Porto (1960 – 1967). D. Florentino de Andrade

e Silva, Administrador Apostólico

da Diocese do Porto durante o

exílio (1959 -1969) do seu bispo

titular, D. António Ferreira Gomes,

sempre acarinhou este trabalho

dos seminaristas.

Em 1961, dois desses se-

minaristas realizaram, durante 15

dias, em Albergaria das Cabras

(agora, da Serra), no alto da Serra

da Freita, em Arouca, uma coló-

nia de férias com 19 meninos da

Sé, dos 6 aos 13 anos. A acompa-

nhá-los, como representante do Seminário, esteve, no primeiro dia, o Dr. Ângelo

Alves, agora monsenhor e cónego da Sé do Porto, e, nos restantes, o Dr. Armindo

Lopes Coelho, que, já bispo do Porto, como me informou o seu secretário, gostava

de recordar peripécias dessa sua experiência numa terra sem eletricidade e onde,

para se barbear, tinha de servir-se da água que passava no rego junto da escola. Isso

mesmo pude confirmar quando, com a direção da Fundação Voz Portucalense, o

fui visitar, pouco tempo antes da sua morte, na Quinta da Senhora da Mão Pode-

rosa, em Ermesinde. A evocação dessa “colónia de férias” deu-lhe felicidade, como

escreveu, já com mão trémula, no cartão de agradecimento que me enviou: “Grato

D. Florentino no parque infantil do Seminário Maior

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pela visita que serviu para matar

saudades” e assinou: “Dr. Armindo

Lopes Coelho”. Mais que o bispo

era o meu “velho professor” que

agradecia a visita.

Nesse tempo, não havia

estrada para Albergaria das Ca-

bras. A única que a ligava à vila

terminava no local onde, ainda

hoje, se situa o radar. Todo o res-

to do percurso era feito a pé por

caminhos íngremes e fragosos. Mas, apesar destas dificuldades, D. Florentino foi

visitá-los e almoçou com as crianças na escola primária. Como pastor da diocese,

aproveitou esta subida à serra para visitar alguns doentes da aldeia. Foi bonito ver o

contraste entre a sua simplicidade com as crianças e a solenidade reverencial com

que entrava nos humildes casebres que, por graça, dizia “tinham aquecimento cen-

tral” porque ”de um lado fica a cozinha, do outro, o quarto de dormir e, no meio, a

corte das ovelhas que a ambos aquece”.

Evoco estes factos porque indiciam preocupações que muito irão ajudar a

ação da Igreja nos bairros camarários. A partilha de interesse gerou “cumplicidades”

que marcaram o futuro. D. Maria José assistiu à “Missa Nova” de um desses semi-

naristas que, por sua vez, foi assistente espiritual do “Abrigo de Nossa Senhora da

Esperança” que ela criara, na Rua

de Santa Catarina, para acolher

mulheres idosas doentes incurá-

veis. D. Florentino irá poder con-

tar com uma aliada no interior da

direção da Câmara Municipal. E

foram precisamente esses dois

seminaristas, já presbíteros, que,

por nomeação de D. Florentino

foram, em 1964, morar em bairros

camarários: um foi viver no bloco

17 do bairro da Pasteleira onde,

para além duma intensa ativida-

Cartão de D. Armindo Lopes Coelho

Albergaria das Cabras- crianças com alguns pais que as

foram visitar.

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de socio-pastoral, lançou os alicerces da paróquia da Senhora da Ajuda, enquanto

o outro assumiu a responsabilidade pela Obra dos Bairros e foi morar no bloco 15

do bairro do Cerco do Porto onde preparou e acompanhou a criação da paróquia

de Nª Senhora do Calvário. Acrescem ainda as palavras enigmáticas de D. Florentino

quando, no início da década de sessenta, lhe fui pedir autorização para abandonar

o seminário do Porto e ingressar no “Regnum Dei”, um instituto vocacionado para a

evangelização do Alentejo: “Autorizo, mas, se quiser trabalhar com pobres, não lhe

vai faltar lugar na diocese”. A que propósito me falou em “trabalhar com pobres na

diocese” se eu apenas lhe referi a missionação no Alentejo? Agora, julgo adivinhar o

pensamento que lhe ocupava o espírito.

Estes factos fazem-me crer que a ideia da criação da Obra dos Bairros teve

uma longa gestação no coração e na mente de um bispo para quem os pobres

eram prioritários na sua ação episcopal. Preocupava-o a presença da Igreja nos no-

vos aglomerados populacionais que iam surgindo na cidade e muito especialmente

o apoio às populações desenraizadas das “ilhas do Porto” acantonadas nos grandes

bairros que a Câmara Municipal estava a construir. Esta prioridade irá levá-lo à cria-

ção da “Obra dos Bairros” e, também, a uma reorganização paroquial da cidade com

o projeto de oito novas paróquias, seis das quais nas periferias onde se localizava a

grande maioria desses bairros: Senhora do Porto, com os bairros do Viso e Ramalde

do Meio; Senhora da Ajuda, com os bairros da Pasteleira e Rainha D. Leonor; Senhora

do Calvário com os bairros do Cerco do Porto e S. Roque da Lameira; Azevedo de

Campanhã com o bairro do Lagarteiro; Senhora do Amial com os bairros do Regado

e do Carriçal e Senhora da Areosa com o bairro Pio XII e S. João de Deus.

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A GÉNESE

Ao falar do nascimento da Obra Diocesana, logo me vem à mente aquele

professor de geografia que, ao lecionar os rios portugueses, começava por motivar

os seus alunos, dizendo que um dia bebeu o rio Mondego. Perante a incredulidade

dos ouvintes, explicava: não foi em Coimbra e muito menos na Figueira da Foz. Foi,

sim, no cimo da serra da Estrela,

no lugar do Mondeguinho onde

a sua nascente brota de um fon-

tenário. Ao beber na bica dessa

fonte, estanquei toda a sua água.

Os alunos diziam: assim não vale,

até nós fazíamos. O professor

sorria porque tinha captado a

atenção de toda a sala. E con-

cluía: “ as coisas grandes nascem

sempre pequeninas. Assim o

vosso futuro”.

Lembro-me ainda da pa-

rábola que Cristo conta no Evan-

gelho de São Mateus, 13,31-32:

“O reino dos céus é comparado a um grão de mostarda que um homem toma e

semeia em seu campo. É esta a menor de todas as sementes, mas quando cresce,

torna-se um arbusto maior que todas as hortaliças, de sorte que os pássaros vêm

aninhar-se em seus ramos”.

Assim, também a Obra nasceu pequenina. Ainda ressoavam as palavras do

bom Papa João XXIII na abertura do Concílio Vaticano II: “A Igreja (…) abre a fonte da

sua doutrina vivificante, que permite aos homens, iluminados pela luz de Cristo, com-

preender bem aquilo que eles são na realidade; a sua excelsa dignidade e o seu fim; por

meio dos seus filhos, estende ainda a toda a parte a plenitude da caridade cristã, que é

o melhor auxílio para eliminar as sementes da discórdia.” E que ganhariam corpo na

Gaudium et Spes: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens

de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e

as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo. (…) Por esse motivo, a

Igreja sente-se real e intimamente ligada ao género humano e à sua história”.

O Mondeguinho na Serra da Estrela.

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A Obra Diocesana traz consigo a marca da sua época: os “anos sessenta” das

grandes utopias, em tempos de Vaticano II. É uma Obra de e da, mas não para a Igreja;

uma obra eclesial mas não eclesiástica e, muito menos, clerical. Ao serviço de todos sem

distinção de género, idade, cultura, classe ou credo, é de leigos e dirigida por leigos.

Porém “não é laica, mas assente nos princípios francamente cristãos e acompanhada da

acção espiritual (sem a qual toda a promoção humana resulta mutilada) ”, como, em 17

de Outubro de 1964, dizia “A Voz do Pastor”, o jornal oficial da Diocese do Porto.

Gerada no coração de

um bispo, acalentada pelo hu-

manismo de um presidente da

Câmara Municipal do Porto, ga-

nhou vida na dedicação e saber

de uma mulher. O bispo foi D.

Florentino, preocupado com as

gentes pobres compactadas em

bairros camarários; o presiden-

te foi dr. Nuno Pinheiro Torres,

apoiado pela vereadora D. Ma-

ria José Novais, para quem não

bastava dar casa às pessoas, era

preciso dar alma; a mulher cha-

mava-se D. Julieta Cardoso, diretora do Instituto de Serviço Social do Porto que foi

o berço inicial da Obra. Este é o tripé em que assenta a origem da Obra Diocesana.

Se D. Florentino foi a sua “alma-mater” e Nuno Pinheiro Torres o patrocinador, já D.

Julieta Cardoso foi a “abelha-mestra”.

Cerco do Porto - D. Florentino e o Presidente da Câmara,

Dr. Nuno Pinheiro Torres

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A OBRA E O SECRETARIADO

A Obra deu os seus primeiros passos no seio do Secretariado Diocesano

de Ação Social, criado, em 1963, por D. Florentino e cuja direção era formada pelo

Pe. Teixeira Fernandes, dr. Pedro Cunha e a já referida D. Julieta Cardoso. Quando se

verificou que a ação junto dos bairros camarários exigia uma obra vocacionada ex-

clusivamente para esse efeito, foi criada a “Obra dos Bairros” que, pouco a pouco, se

autonomizou do Secretariado. Foi em fevereiro de 1964 – o dia não posso precisar

- que D. Florentino me chamou para falar do Secretariado Diocesano e do trabalho

que iria desenvolver. Explicou-me que, de acordo com o seu projeto, eu, embo-

ra continuasse coadjutor em Santo Ildefonso, iria colaborar com o Secretariado no

trabalho que estava para ser lançado no bairro do Cerco do Porto. Queria que assu-

misse, como seu representante, a responsabilidade da Obra dos Bairros que estava

a ser criada. Disse-me, ainda, que era sua intenção erigir uma nova paróquia nessa

zona oriental da cidade onde se implantaram vários bairros com um extraordinário

aumento da população. Por isso, eu começaria pela ação social e pastoral no bairro

do Cerco e, progressivamente, deveria alargar a ação social da Obra a outros bairros

camarários ao mesmo tempo que a minha ação pastoral se estenderia a todo o

território da futura paróquia.

No início, a ligação entre Secretariado e Obra foi total. A Obra era o Secre-

tariado em ação. Era a linha da frente na concretização do seu objetivo que visava

contribuir para a promoção das populações dos bairros do Porto. Enquanto per-

maneci como coadjutor de Santo Ildefonso, e embora já participasse na direção da

Obra, o meu trabalho quase se limitava ao bairro do Cerco e a conexão com a dire-

ção do Secretariado era feita através do P. Teixeira Fernandes e de D. Julieta Cardoso.

Só, quando em novembro de 1964, fiquei a tempo inteiro ao serviço da Obra é que,

verdadeiramente, assumi responsabilidades de direção. Mas a relação umbilical da

Obra com o Secretariado apenas terminou, no plano jurídico, com a aprovação dos

seus Estatutos em 1967, o que motivou alguma confusão na Câmara Municipal que,

nos documentos, se referia sempre ao Secretariado Diocesano mas, na ação, todo o

diálogo era feito com a Obra e seus responsáveis.

Entretanto, a distinção entre Secretariado Diocesano de Ação Social e Obra

Diocesana de Promoção Social na Cidade do Porto foi-se tornando notória não só

nos seus objetivos mas também no que concerne ao âmbito do seu trabalho: Ação/

Promoção; Diocese/Cidade. No meu caso, nunca pertenci à direção do Secretaria-

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do nem, desde que assumi a responsabilidade pela Obra, senti qualquer desejo de

interferência sua, bem pelo contrário, sempre houve um respeito total pela nossa

autonomia. Tudo se fez com muita tranquilidade. Unia-nos o mesmo espírito, ani-

mava-nos o mesmo sonho. Servíamos a mesma Igreja.

Direção da Obra em 1967: dr. Vitor Capucho, presidente (3º da direita), eng. Pinto Resende, tesoureiro,

e dr. Rocha Leite, vogal. (“Notas de Imprensa” n. 3)

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O CARÁCTER INOVADOR DA OBRA

Para realçar o carácter inovador da Obra, refiro o nome, o âmbito de ação e

seus objetivos.

O seu nome foi mudando. Começou por ser a “Obra dos Bairros” (Um dia

recebi uma carta enviada por um sacerdote de Vila Real com o único endereço “ Rev.

Senhor Padre João dos Bairros - Porto” e a verdade é que a carta me foi entregue

na casa onde já morava no bairro do Cerco do Porto). Depois, foi “Obra Diocesana

de Acção Social nos Bairros da Cidade do Porto” e “Obra Diocesana de Acção So-

cial”. Com a aprovação dos seus estatutos e o reconhecimento da sua personalidade

jurídica por despacho de S. Exa o Ministro da Saúde e Assistência, de 17 de Abril

de 1967, consagrou-se como “Obra Diocesana de Promoção Social na Cidade do

Porto”. Em novembro de 1998, com a alteração dos estatutos, e numa época em

que o Secretariado Diocesano de Acção Social já não existia (fora extinto em 1970

por D. António Ferreira Gomes) passou a ter o seu nome atual: “Obra Diocesana de

Promoção Social”.

Apesar destas alterações, a sua designação sempre incorporou o termo

“diocesana” (com exceção do primeiro quando ainda era apenas um ramo do Se-

cretariado Diocesano). A pertença à diocese é uma das suas notas constitutivas. E,

contrariamente, nunca incluiu o termo “assistência” que era a palavra mais comum

na época para designar obras de solidariedade social. E, isso, como veremos, não foi

por acaso. Era a sua marca distintiva. A palavra “promoção” que acabou por ser con-

sagrada no diploma da sua constituição jurídica era aquela que mais correspondia

aos objetivos da Obra mas que mais colidia com a linha ideológica do Governo e

com a mentalidade dominante de alguma da dita alta burguesia do Porto.

Desde o início, a Obra perseguia os seguintes objetivos: “Promover a valori-

zação social dos grupos humanos em que exerce a sua actividade, consciencializando-

-os das suas potencialidades e levando-os a desenvolvê-las no sentido de dar resposta a

algumas das necessidades sentidas na comunidade em que estão integrados, por exº.

os bairros. Este trabalho é orientado por técnicos, em especial assistentes sociais,

e realizado por elementos do próprio meio” (A Voz do Pastor, 25 de Novembro de

1967).

A “Obra dos Bairros” – “Obra Diocesana de Promoção Social na Cidade do

Porto” queria promover o desenvolvimento integral do homem como agente da

sua própria história, fazer dos habitantes dos bairros “cidadãos de primeira” e aju-

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dá-los a criar novas comunidades quando tinham perdido as antigas referências de

vizinhança. Muitos eram os que se sentiam escorraçados das “ilhas” onde nasceram

e emprateleirados, como objetos anónimos, em grandes bairros da periferia urbana.

Hoje, ao reler todo este articulado, relembro as constantes deslocações a

Lisboa e compreendo as dificuldades por que passámos. Como foi difícil (e pergun-

to-me como foi possível?) conseguir que o Senhor Ministro da Saúde e Assistência

aprovasse um Obra de “Promoção Social “. No próprio documento da sua consti-

tuição, verifica-se alguma ambiguidade. Chama-lhe “instituição de assistência”. Não

havia lugar para a “promoção social”. Como foi possível o Governo de Salazar dar

personalidade jurídica a uma Obra que tinha por objetivo “ Promover a valorização

social dos grupos humanos… consciencializando-os das suas potencialidades…”? A

Obra Diocesana era caso único no País. Desenvolvia uma atividade comunitária em

que eram os próprios cidadãos os fautores do seu desenvolvimento o que os torna-

ria incómodos para os poderes instituídos, porque, conscientes das suas necessida-

des, reclamavam os seus direitos. Os “pobres” eram, agora, agentes da sua própria

transformação, do seu engrandecimento como comunidade. Esta aprovação, pen-

so, só foi possível porque a dra. Manuela Silva, nossa interlocutora, compreendeu

os nossos objetivos e nos apoiou junto do Diretor-Geral de Assistência, dr. Carvalho

da Fonseca. E deve-se também à extraordinária capacidade argumentativa de D.

Julieta Cardoso que, numa figura

discreta, escondia uma inteligên-

cia brilhante e uma cultura fora

de série.

Não foram encontros fá-

ceis… Foram negociações duras

e longas. O nome foi um triunfo

e “é um trunfo”, como realçou D.

Manuel Clemente no primeiro

jantar beneficente da “Liga dos

Amigos” em que participou no

ano de 2007.

Este objetivo esteve presente logo no início da Obra. “A Voz do Pastor”,

em 17 de setembro de 1964 (“Notas de Imprensa n.º 1), anunciou-o com o título

profético “Uma obra de vasta projecção futura: a Acção Social nos novos Bair-

ros”: Todo o trabalho é feito pela própria população e da sua responsabilidade, com

“A Voz do Pastor”, 17 de Outubro de 1964

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a devida ajuda de animadores (dos Cursos de Cristandade) e a coordenação duma

assistente social.

Foram convidadas todas as famílias a assistirem a reuniões preparatórias e

a exporem os problemas da comunidade. À medida que se apuravam as necessi-

dades mais importantes, assim se criaram comissões para cada grupo de neces-

sidades semelhantes.

Não foi só por ser uma obra de “Promoção Social” que tivemos dificul-

dades. Também o seu âmbito foi motivo de discussão junto do Governo e, es-

pecialmente, da Câmara do Porto: nasceu como sendo “Obra dos Bairros”. Mas…

Sempre quisemos que a população do bairro se integrasse no conjunto habi-

tacional onde se inseria. Por isso, a Obra não podia limitar-se aos bairros cama-

rários. Razão tinha a Voz do Pastor ao falar em “ aglomerados populacionais”

e “zonas” e não em bairros. Mas não era isto que pensava uma das fações diri-

gentes da Câmara. Que a Obra procurasse manter os “pobrezinhos” tranquilos e

sem sobressaltos, bem acantonados nos seus espaços, ainda bem, mas, mais do

que isso… e, especialmente, envolvê-los nas comunidades circundantes onde

viviam pessoas de outro nível social, isso é que não. E tudo fez para que a inten-

ção da Obra nunca se realizasse e a sua ação se confinasse ao interior de cada

um dos bairros. Mas o objetivo da Obra sempre foi o de promover a valorização

social e humana dos bairros de modo que a sua integração nas comunidades

envolventes fosse bem aceite por ambas as partes. Não era tarefa fácil. Neste

trabalho, a ação social da Obra precisava de ser apoiada pela ação pastoral de

uma Igreja que, na linha do Vaticano II, se conhecia como povo de Deus que

peregrinava no tempo e na sociedade dos homens. Quando esta colaboração

se deu, a integração foi feita com serenidade e mútuo proveito. Quando não…

Para realçar esta vertente de “cidade”, a Obra incluía a “cidade do Porto” na

sua denominação. E fê-lo intencionalmente para definir que o seu campo de

atuação, se não era coincidente com o do Secretariado que abrangia toda a

diocese, também não se confinava aos bairros camarários. Os bairros também

eram “cidade do Porto”. Hoje, os candidatos autárquicos não os esquecem, es-

pecialmente, em tempos eleitorais…

O antagonismo de posições ficou bem expresso quando a Câmara pe-

diu à Obra para ajudar na preparação da transferência das famílias ciganas que

viviam nas barracas que se concentravam ao fundo da Avenida de Fernão Ma-

galhães, junto da Areosa. Verificámos que a Câmara, no acantonamento dos ci-

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ganos, prosseguia uma política diferente da que tinha seguido com as “ilhas do

Porto”, habitadas por gente, na maioria vinda do interior, que, havia muitas gera-

ções, conquistara o direito de viver no centro do Porto. Eram tempos diferentes

dos de hoje. As comunidades ciganas não indiciavam qualquer perigo para os

poderes constituídos. Este residia, sim, nas “ilhas operárias” numa época em que

o Partido Comunista tinha grande implantação numa cidade ainda muito indus-

trial. Não podemos esquecer que as eleições com Humberto Delgado, que fize-

ram estremecer o “Estado Novo”, tinham acontecido poucos anos antes (1958).

Importava desfazer estas comunidades bem antigas e unidas por laços de forte

afetividade em que os moradores se queriam como família. É interessante que,

no dia 6 de agosto de 2013, numa reportagem do Jornal de Notícias, um mora-

dor duma das ilhas que ainda restam confessava “Se alguém está doente, toda

a gente deita uma mão. Somos uma comunidade e preocupamo-nos com os

vizinhos. Se alguém não é visto mais do que dois dias, vamos bater à porta. Se

não abrir, telefonamos-lhe para saber se tudo está bem”. E, por isso, a Câmara

dispersou-os por diversos bairros que acabavam povoados por pessoas que, em

grande parte, se desconheciam. Como era diferente o ambiente que se vivia nos

bairros em relação às antigas ilhas! Apenas três apontamentos que o revelam. O

primeiro é tirado da minha experiência pessoal. Como já disse, antes de vir tra-

balhar nos bairros, fui coadjutor em Santo Ildefonso onde havia muitas ilhas de

que recordo as de “S. Vitor”. Quando ia a essas ilhas visitar um pobre, os vizinhos,

ao saber quem ia visitar, logo me diziam: “coitadinho, bem precisa de que o aju-

dem” e nunca ninguém me disse “eu preciso mais do que ele”. Já no bairro do

Cerco, nos meus primeiros tempos, quando ia visitar doentes, nunca ninguém

me repetiu o que ouvira nas “ilhas” e sempre alguém aproveitava para se queixar

das suas dificuldades e até dizer “eu preciso mais do que ele”. Outro facto tem

a ver com as festas de S. João. Um hábito profundamente tripeiro e bem enrai-

zado nas tradições das ilhas. Cada uma empenhava-se em organizar, o melhor

possível, a sua festa em despique com as outras ilhas numa espécie de concurso

em que os juízes eram os próprios moradores e, por isso, a sua festa era sempre

a melhor de todas. Esta tradição perdeu-se nos bairros e, só a pouco e pouco,

é que foi sendo retomada mas sem o envolvimento comunitário e sem o bair-

rismo que animava as ilhas. O terceiro também faz parte da minha experiência.

Para sabermos donde provinham os moradores do bairro, bastava ouvir as suas

conversas sobre as mercearias donde gastavam, os sapateiros onde mandavam

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“deitar as meias-solas”, o barbei-

ro onde cortavam o cabelo, as

costureiras ou os alfaiates onde

mandavam fazer ou reparar a

sua roupa. É que, durante muito

tempo, continuavam a usar os

locais das suas antigas zonas de

residência. Só muito lentamen-

te é que começaram a frequen-

tar o comércio e os serviços da

nova residência.

Com os ciganos a Câ-

mara, em vez desta política de

dispersão, concentrou-os no

mesmo bairro, construído em

local bem isolado que os afastava dos lugares onde a sua presença denegria a

imagem da cidade e emprateleirou-os em blocos de vários pisos. A Obra, pelo

contrário, pensava que as antigas comunidades das “ilhas” deveriam manter-se

nos novos bairros, e, que, no caso das famílias ciganas, deveria encontrar-se um

modelo diferente de habitações, que respeitasse a sua cultura de matriz nóma-

da e patriarcal, em pequenos núcleos residenciais que evitassem a formação de

guetos e favorecessem a sua integração no meio circundante. Recordo-me de,

ao ver uma das habitações do bairro de S. João de Deus, perguntar a um enge-

nheiro da Câmara que me acompanhava: “Onde está a corte para o burro? E as

arrecadações para as suas mercadorias? Têm de as transportar para o 3ª e 4º an-

dar? Como, às costas?” É que muitas dessas famílias ciganas viviam do pequeno

negócio das feiras e eram os animais que transportavam os seus produtos. Não

havia elevadores nos blocos e o automóvel ainda era luxo de gente rica. Mas,

mais uma vez, a Obra, colocada perante factos consumados, não foi ouvida.

Nunca quis que os bairros fossem tratados como guetos e muito menos como

“reservas” onde os Estados Unidos juntaram os índios que não exterminaram.

Nem guetos nem “reservas” para onde se mandavam os “pobrezinhos”… Não,

os bairros camarários nunca deveriam ser “bairros dos índios” e muito menos

“Tarrafal” como era conhecido o bairro de S. João de Deus. Eram bairros de pes-

soas, de gente de bem, de cidadãos de corpo inteiro.

Equipa dos “Unidos ao Porto F. C” – oferecida em 20 de

junho de 1965 aquando da nossa primeira visita ao bairro

de S. João de Deus

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DOIS BISPOS – DOIS CARISMAS

Dois bispos, duas personalidades, dois carismas, em dois momentos diferen-

tes da Obra. Um fundou-a, outro consolidou-a. Um a gerou e embalou nos tempos da

sua meninice, outro a amparou nos momentos conturbados da adolescência.

D. Florentino de Andrade e Silva“A memória guarda o que foi bom daqueles que nos morrem”. E eu, de D. Flo-

rentino, recordo a sua índole mística e a preocupação pelas populações mais des-

favorecidas. Os tempos eram propícios para a criação da Obra. D. Florentino sabia

que podia contar com os novos padres saídos do Seminário onde, imbuídos pela

espiritualidade de Charles de Foucauld, se tinham aberto à pastoral socio-caritativa

junto dos pobres do bairro da Sé. Sabia que podia socorrer-se do entusiasmo dos

“cursistas” dos Cursos de Cristandade e dos militantes da Ação Católica, conscientes

do seu “ser-Igreja”. Sabia que podia apoiar-se no saber do Instituto de Serviço Social

vocacionado para o trabalho em favor do homem integral como agente da sua

promoção pessoal e comunitária. Sabia que tinha consigo o humanismo cristão do

presidente da Câmara, dr. Nuno Pinheiro Torres, que era apoiado pelo empenho

apostólico da vereadora da ação social, D. Maria José Novais.

Desde a sua criação, a “Obra” era a menina bonita de D. Florentino que, sem

interferir na sua autonomia, a acarinhava e acompanhava com particular desvelo.

Recordo a missa campal que celebrou no dia 15 de agosto de 1964, no bairro do

Cerco, em frente do bloco 19 (a primeira missa celebrada naquela que viria ser a

futura Paróquia de Nossa Senhora do Calvário).

Também foi a sua primeira visita ao bairro onde a Obra se iniciara. Nela,

realizou o primeiro contacto local com todos os habitantes empenhados nas di-

versas comissões de trabalho já em curso. Em maio de 1965, voltou ao bairro para

visitar, nas caves do bloco 2, a exposição organizada pelas comissões que quiseram

assinalar o primeiro aniversário do seu início, mostrando o trabalho já realizado e

perspetivado (“Notas da Imprensa” n.º 2). No dia 7 de março de 1966, celebrou missa

na capela da Senhora da Paz, mesmo no coração do bairro de S. Roque da Lameira.

Também aí tomou contacto com os habitantes empenhados nas diversas iniciativas

sociais que decorriam nesse bairro.

No dia 1 de novembro de 1966, voltou ao bairro do Cerco onde benzeu

a capela de Nossa Senhora do Calvário (“Notas da Imprensa” n.º 3). Mais uma vez

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recebeu os elementos das comis-

sões que animavam a vida social

do bairro.

No dia 31 de dezembro

desse ano, foi celebrar a missa

com que os cristãos costumavam

festejar a passagem de ano: de

ação de graças pelo que finda-

va e de oração pelo que nascia.

A partir dessa data, D, Florentino,

quando podia, aparecia e presi-

dia à Eucaristia dominical. Não havia preparações especiais. Presidia e fazia a homilia

e eu concelebrava. Sentia-se em casa. Os moradores habituaram-se a vê-lo como

seu pastor. As crianças tratavam-no com o mesmo carinho que dedicavam ao seu

padre e, como não sabiam o nome, saudavam-no simplesmente como ”Senhor Pa-

dre Bispo”, o que sempre fazia aparecer um sorriso na palidez ascética do seu rosto.

Para elas, bispo não era título de alguém importante mas nome próprio duma pes-

soa que as acarinhava. Este tratamento muito familiar terá surpreendido, como me

contou o P. Silva Martins, pároco da Madalena, D. António, na sua primeira visita ao

bairro, quando um pequenito se abeirou dele, estendeu-lhe a mão e disse: “como

está, senhor Padre Bispo?”

Das conversas semanais que procurou manter comigo, gostaria de evocar

duas porque representaram dois momentos de algum confronto de opiniões que

ajudaram a clarificar o estatuto e o trabalho da Obra.

A primeira aconteceu quando foi necessário estabelecer o primeiro orde-

nado para a assistente social que passara a trabalhar na obra a tempo inteiro. Até

aí, toda a atividade fora realizada em regime de puro voluntariado. Após uma longa

troca de ideias, concluímos que a Obra deveria pugnar para que os seus trabalha-

dores estivessem imbuídos pelo mesmo espírito de apostolado que animava os vo-

luntários. Mas não poderíamos querer praticar a caridade à custa da justiça. Aquele

era o seu “ganha-pão”. E não era com “espírito de apostolado” que as funcionárias

podiam pagar as despesas da mercearia no final do mês. O espírito de apostolado

é imprescindível, mas não suficiente. E até foi lembrado que “não pagar o salário a

quem trabalha” é um dos “pecados que bradam aos Céus”. E, por, isso, dentro dos

seus condicionalismos económicos, a Obra deveria pagar o justo salário aos seus

D. Florentino no dia da bênção da capela de Nossa

Senhora do Calvário

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trabalhadores. Ao dar trabalho a quem precisa, a Obra está também a praticar uma

obra de caridade. E aprovou a proposta de ordenado por mim apresentada que

passou a servir de referência para todas as contratações posteriores.

A outra aconteceu quando, embora reconhecendo a validade do seu tra-

balho, muitos lhe diziam que a Obra não aparecia como sendo da Igreja. Eu sabia

donde vinha este lamento. O problema não estava na vontade de servir mas na afir-

mação de poder. Foi sempre este o grande mal da Igreja que o atual Papa Francisco

muito quer extirpar. Vivíamos tempos em que ainda prevalecia forte a mentalidade

clerical. A Igreja como “povo de Deus” ainda não tinha entrado em muitas cabeças

para quem, se a obra era da Diocese, as assistentes sociais locais deveriam estar

subordinadas às orientações paroquiais. Como a Obra era autónoma e coordena-

da por leigos, a situação complicava-se. Ainda por cima, as assistentes sociais, im-

pregnadas das novas ideias conciliares que salvaguardavam a autonomia dos leigos

em campos que lhes eram específicos, tornaram-se muito sensíveis a tudo quanto

pudesse representar ameaça de uma intromissão ou lhes cheirasse a clericalismo.

Depois de uma longa conversa, ficou claro que a Obra gozava de liberdade para

trabalhar em qualquer bairro da cidade sem dependência da respetiva paróquia e

que as assistentes sociais locais não prestavam obediência às estruturas paroquiais.

No entanto, deveria haver colaboração de parte-a-parte mas sem dependências.

Embora fosse de fomentar um diálogo próximo da assistente social local com as

estruturas paroquiais, a ligação entre as assistentes sociais e as paróquias deveria

ser coordenada pela direção da Obra e, muito especialmente, pelo seu sacerdote.

Havia que harmonizar trabalhos que se completavam mas sem nunca se digladiar.

Eram faces da mesma Igreja. Mais ainda, a Obra deveria promover nos habitantes a

autonomia e a autoestima e não um sentimento de gratidão subserviente à Igreja.

E até nos sorrimos ao lembrar o mealheiro para as missões que estava, então, numa

farmácia da rua de Sá da Bandeira, onde havia a imagem de um “pretinho” que,

quando alguém dava uma esmola, ficava, vários segundos, a abanar a cabeça como

que a dizer “muito obrigadinho pela esmola”…

D. António Ferreira GomesDurante o seu longo e penoso exílio de dez anos, imposto pelo governo

de Salazar, D. António sempre seguiu de perto a vida da Diocese e, muito cedo, se

interessou por esta obra que D. Florentino criara. Nas duas visitas que lhe fiz antes

do seu regresso à diocese – uma em Alba de Tormes (Espanha) e outra em Fátima

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– quando soube quem eu era, quis falar comigo sobre a Obra, seus objetivos e rea-

lizações. Falámos longo tempo. Estava particularmente interessado em saber qual

o papel que, nela, desempenhava o Instituto de Serviço Social que ele havia criado

em 1956.

No nosso primeiro encontro após o seu regresso à diocese, as primeiras pa-

lavras que me disse foram:

-Por que é que sendo o senhor conhecido na Câmara como “o Padre Comunista”

ainda não foi preso?

- Porque não sou comunista, porque me limito a ser sacerdote, e porque não

sou ingénuo…

- Explique-me a terceira, pediu D. António.

E eu, sem demorar, comecei por explicitar a origem possível desse epíteto

numa sociedade onde trabalhar, defender e valorizar os pobres era ser comunista.

(Que pena que os cristãos tenham deixado fugir para outros os valores que estão

na sua matriz fundadora. Cristo sempre privilegiou os mais pobres. O mesmo já

acontecera aquando da Revolução Francesa em que “Igualdade, Liberdade e Frater-

nidade” foram assumidos como novos valores revolucionários contra a Igreja quan-

do eles são de origem claramente cristã.) E confidenciei-lhe os estratagemas que

usava para evitar cair nas malhas da PIDE. Disse-lhe: “critico muitas vezes a política

da Câmara, estou do lado dos moradores dos bairros. E isso faço-o abertamente. Já

quanto ao Governo, sempre que discordo da sua política, faço-o num enquadra-

mento litúrgico. Nunca fora da igreja. Quando quero distribuir um documento ao

povo, convido quem quiser a procurá-lo na sacristia. Assim não posso ser acusado

de estar a espalhar, na rua, panfletos subversivos. Mais, com outros colegas, conhe-

ço vários livreiros que, quando recebem um livro que pensam irá ser retirado pela

PIDE, avisam-nos e um de nós vai logo comprá-lo. Muitas vezes, aproveito esse livro

para o citar nas homilias, mas tendo sempre o cuidado de acrescentar: Estou a citar

o livro… que comprei na livraria… no dia… Nunca me podem acusar de me apoiar

em literatura clandestina porque não tenho obrigação de saber que o livro, quan-

do o citava, já fora retirado de circulação pela PIDE nem esta o queria confessar”.

Disse-lhe, ainda, que muitos dos meus acólitos e leitores eram polícias do bairro da

PSP. Quando vou fazer uma homilia que poderá ter leitura de ordem sociopolítica,

digo-lhes que não os quero a servir o altar, para não os comprometer. Em contra-

partida, eles, quando veem algum agente da Pide na capela, avisam-me. Recordo

o dia em que a homilia ia ser sobre um tema que poderia ter incidências políticas.

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Avisaram-me da presença da Pide e eu falei muito bem do céu… Uma desilusão

para os agentes… “ Depois de me ouvir, disse: “tenha cuidado e continue. Eu antes

quero um padre a trabalhar junto das populações que um herói na prisão”.

Não foram tempos fáceis os de D. António. A Obra passava novamente por

um período em que era preciso clarificar funções e poderes. E, agora, era bem mais

complicado que no tempo de D. Florentino. O conflito de poderes dava-se no inte-

rior da própria Obra, entre algumas assistentes sociais e a direção. De que grau de

liberdade gozavam as assistentes sociais, nos seus locais de trabalho? Qual o papel

da Direção? Não foi tarefa fácil. Só

a autoridade e prestígio de D. An-

tónio foi capaz de evitar uma ro-

tura que poderia ter ditado o fim

da Obra. Mesmo assim, algumas

feridas perduraram. Mas ficou

claramente dito que a política da

Obra era definida pela Direção,

embora respeitando a autono-

mia do trabalho das Assistentes

Sociais locais sob a orientação da

Assistente Social Coordenadora

que trabalhava com a direção.

Um sinal que me indicou

o quanto D. António estimava a Obra e a desejava engrandecer foi-me dado, logo

nos primeiros tempos, quando me mostrou vontade de convidar o dr. Francisco Sá

Carneiro, já então deputado da Assembleia Nacional, para seu presidente. Entendi-

-o, então, como uma forma implícita de mostrar o seu reconhecimento a um políti-

co que, devido ao seu prestígio junto de Marcelo Caetano, muito contribuíra para o

seu regresso à sua diocese do Porto. E, escolher para esta homenagem a direção de

uma instituição diocesana de que nem sequer fora criador, revelava-me a elevada

consideração que tinha pela Obra Diocesana. Este apreço saiu reforçado ao nomear

a nova direção em 1971 com a participação do dr. Sá Carneiro e arquiteto Fernando

Távora, diretor da Escola de Belas Artes, que, à época, já gozava de reconhecidos

méritos. O seu empenho na Obra ficou claramente expresso no jantar com que quis

agradecer e homenagear a direção, no Paço Episcopal, em 1971.

D. António junto da capela da Paz no bairro de S. Roque

da Lameira

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A sua confiança na direção foi reafirmada quando houve necessidade de

nomear uma nova coordenadora da Obra. Depois de pedir conselho a D. Julieta

Cardoso e ouvir toda a direção, apresentei a D. António o nome duma assistente

social muito ligada ao Instituto de Serviço Social. Disse-me que a sua nomeação

ficava ao nosso critério. Entretanto, algum cuidadoso “curador da moral pública”,

daqueles que são mais “papistas que o papa” e pululam em muitas instituições,

deu-lhe informações que eu não prestara. Quando, passados oito dias, voltamos a

reunir, perguntou-me se a coordenadora, de que lhe falara, era noiva de um pres-

bítero que havia pedido dispensa do exercício sacerdotal. Respondi-lhe que sim

e, se isso não lhe referira, foi porque considerava tratar-se de um assunto pessoal

que não interferia com a sua competência profissional nem com a sua dignidade

moral e cristã. “Mas há algum problema?” Perguntei. – “Não”, respondeu-me. – “Eles

podem viver em Famalicão e ela trabalhar aqui”. É que a concessão da “dispensa das

obrigações inerentes ao estado sacerdotal” impunha a quem a solicitava o dever de

“residir onde a sua condição de sacerdote não for conhecida”. E D. António cumpria,

apesar de não concordar com a expressão “redução ao estado laical” e de admitir

que a lei do celibato eclesiástico não era uma exigência evangélica e, como tal, iria

ser revista. A coordenadora continuou o seu serviço na Obra e D. António nunca

mais me falou no assunto.

Gostava de deixar aqui alguns registos que ajudam a compreender a perso-

nalidade do “famoso bispo do Porto”, como lhe chamou o papa João Paulo II, quan-

do ele lhe apresentava cumprimentos de despedida no Regimento de Artilharia da

Serra do Pilar. (Cartas ao Papa, página 15)

Recordo, como se hoje fora, o dia do funeral de Salazar. Quando, após o

almoço, caminhávamos da sala de jantar para a sala de audiências, passámos num

pequeno gabinete onde um televisor transmitia o final do funeral de Salazar no

cemitério de Santa Comba Dão. Parece que estou a vê-lo. Surpreendido, parou. Fi-

cou imóvel. Benzeu-se. E em total recolhimento assistiu ao baixar do caixão à cova.

Pareceu-me balbuciar uma oração. No final, voltou a benzer-se e, em jeito de desa-

bafo, disse para si mesmo: “este já não faz mais mal a ninguém”. E continuou o seu

trabalho como se nada tivesse ocorrido.

Num momento de grande tensão entre a Obra e o Governo, D. António

falava-me dos bispos do Porto que sempre pugnaram pela afirmação da liberdade

da Igreja face ao Poder Político, com grande destaque para D. António Barroso. E

quando lhe perguntei a razão para esta independência dos bispos do Porto, res-

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pondeu-me, de modo muito simples: É que nós não casamos as filhas dos Senhores

Ministros nem lhes batizamos os netos…

Quando monsenhor Alves de Oliveira, diplomata da Santa Sé (Nota de Im-

prensa n.º 8) pediu dispensa do exercício sacerdotal, D. António, que era seu íntimo

amigo, comentou comigo: a grande maioria dos que pedem dispensa são homens de

muito valor, eu espero que formem a retaguarda teológica da Igreja.

Num dia de inverno, estávamos a falar sobre sinais de pobreza na Igreja.

Então, D. António disse: é preciso ter cuidado com a autenticidade desses sinais.

Este paço episcopal, com grossas paredes de granito e tetos muito altos, é muito

frio e desconfortável no inverno. Eu podia ir viver para um apartamento muito mais

confortável. Há quem mo aconselhe. Essa atitude seria vista como um gesto de

pobreza e todos louvariam a minha coragem. Seria um sinal de pobreza mas eu é

que ficava beneficiado...

Na 2.ª feira de Páscoa de 1970, vários sacerdotes galegos, que eu conhecera

no Colóquio Europeu de Paróquias, em Turim, no ano anterior, vieram visitar-me e

mostraram grande desejo de cumprimentar D. António, recentemente regressado à

diocese. Informado, no Paço Episcopal, que se encontrava na sua casa de família em

S. Martinho de Milhundos, para lá nos dirigimos sem qualquer aviso ou marcação pré-

via. Quando lá cheguei e o informei de quem trazia comigo, logo os mandou subir

e, depois de saudar pessoalmente

cada um, disse com um sorriso

muito acolhedor: “então, falemos

um pouco em português arcai-

co”. Ao aperceber-se que, entre

esses presbíteros, se encontrava

um jovem professor de Teologia

no Seminário Maior de Santiago

de Compostela, de nome Andrés

Torres Queiruga, já então um es-

pecialista da “teologia da encar-

nação”, entabulou com ele um

profundo e longo diálogo sobre o contributo do cristianismo na afirmação da “nação

galega” e a “alma luso-galaica” tão apregoada pelo “Grupo Nós” de Castelao e Teixeira

de Pascoes. “Nasceu aí uma admiração mútua” (“Notas de Imprensa” n.º 9). Torres

Queiruga nunca mais esqueceu “aquel obispo valiente desterrado por Salazar”.

D. António no Cerco do Porto

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“Fruto do único Espírito”Disse Bento XVI, “graças aos carismas, a Igreja apresenta-se como um organismo

rico e vital, não uniforme, fruto do único Espírito que conduz a todos à unidade profunda, as-

sumindo a diversidade sem aboli-la e realizando um conjunto harmonioso”.

D. António, em 1956, patrocinou a criação da Associação de Cultura e Serviço

Social do Porto que dará suporte ao Curso de Serviço Social do Porto. Ao fazê-lo – é uma

mera hipótese- poderá ter pensado na fundação de uma instituição onde os alunos pu-

dessem aplicar os seus conhecimentos. E é de acreditar que poderia ter partilhado estas

realizações e intenções com o seu bispo auxiliar que, à data, era D. Florentino, sagrado

em 27 de março de 1955. Estou no campo das suposições pois, de facto, nunca nenhum

falou comigo sobre este assunto. Mas parece-me que são hipóteses verosímeis… A ver-

dade é que, como disse, D. António prestou a máxima atenção à Obra. Seja como for,

podemos concluir que, fruto do único Espírito, a Obra Diocesana tem, na sua génese, a

intuição intelectual de D. António Ferreira Gomes que o levou a fundar o Instituto de

Serviço Social e o coração de D. Florentino de Andrade e Silva que criou a Obra e apro-

veitou, inteligentemente, o saber e a disponibilidade desse Instituto.

Como eram diferentes estes dois bispos!... Estas diferenças estão bem patentes

na citação bíblica que cada um inscreveu nas suas “Armas de Fé”. D. Florentino escolheu

“Clarifica nomen tuum” Jo 12,28. (Pai, glorifica o teu nome). Um contemplativo, fazia da ação

um hino de louvor a Deus. Na Obra, valorizava a proteção e a dignificação do pobre que

via como sacramento de Cristo. Já D. António optou por “In lumine tuo videmus lumen Ps

35,10. (É na vossa luz que vemos a luz). Mais que um bispo edificante, D. António sempre se

viu como um bispo edificador, um educador, com a divisa “de joelhos diante de Deus, de

pé diante dos homens”. Privilegiava a “pastoral da inteligência” assente “na trilogia da Liber-

dade, Igualdade, e Fraternidade” (Cartas ao Papa). Na Obra, agradava-lhe, sobremaneira,

a promoção dos valores humanos que considerava essencial na missão da Igreja. Em D.

Florentino, sobressaía a dimensão pastoral, em D. António, a profética. E como era diferente

a minha atitude na sua presença. Com D. Florentino eu conversava e ele ouvia-me; com

D. António, eu ficava extasiado a ouvi-lo, tal era a riqueza dos seus conhecimentos. Não

esqueço a lição de história que um dia me deu ao falar do “Cerco do Porto”. Parecia que

tinha participado nele, tal a riqueza de pormenores da sua narrativa histórica. Na diferença,

se complementavam. Esta é a riqueza da Igreja que é Católica na diversidade das pessoas,

dos lugares e dos tempos. Como disse o Papa Francisco, na muito significativa entrevista

que concedeu ao diretor da “Civiltà Cattolica”, “Devemos caminhar unidos nas diferenças:

não há outro caminho para nos unirmos. Este é o caminho de Jesus”.

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A OBRA E A CÂMARA MUNICIPAL DO PORTO

Desde o início, pressentia-se que na Câmara se confrontavam dois projetos

diferentes para a Obra dos Bairros. O primeiro, que esteve na sua origem, via-a como

um serviço às populações desalojadas das ilhas. Era seu mentor o presidente, dr. Nuno

Pinheiro Torres, que contava com o apoio de D. Maria José Novais, vereadora da Ação

Social, dr. Carlos Lobo, diretor dos Serviços Centrais e Culturais em quem o Presidente

delegara competências para dialogar com a Obra e o engenheiro Amendoeira dos

Santos com interferências nos bairros. Esta visão humanista e cristã foi-me claramente

expressa numa conversa que tive com o senhor Presidente nas seguintes palavras:

a Câmara procura dar casas às pessoas. Mas isso não basta. É preciso dar-lhes alma. E

essa tarefa nós não sabemos nem podemos fazer. Vós, sim. Por isso, vos apoiamos. Esta

era também a perspetiva de D. Maria José Novais que, na reunião camarária de 25

de novembro de 1966, após assistir à bênção da capela do Cerco do Porto, afirmou:

temos de dar alma a esses corpos (os bairros camarários) que bem precisam de se realizar

plenamente. Em contraposição, foi-se afirmando uma outra conceção que via na Obra

um instrumento ao serviço da política camarária e visava a pacificação dos bairros,

cujos moradores tinham sido obrigados, na sua grande maioria, a abandonar as anti-

gas casas nas “ilhas” situadas no centro do Porto e ir viver para bairros periféricos sem

qualquer possibilidade de escolha.

A primeira conceção esteve na origem de todo o apoio dado pessoalmente

pelo senhor presidente que sempre respeitou a autonomia da obra e via a presença

dos sacerdotes nos bairros como um bem precioso. Não foi por acaso que pediu a D.

Florentino um padre para o bairro da Pasteleira e, no dia 15 de agosto de 1964, no fim

da primeira missa celebrada no bairro do Cerco a que assistiu, pediu a D. Florentino

que me deixasse ficar a tempo inteiro no bairro. Não foi por acaso que a Câmara pa-

trocinou a construção da capela da Pasteleira assim como a do Cerco do Porto a cuja

bênção, no dia 1 de novembro de 1966, por D. Florentino, assistiu. Não foi por acaso

que cedeu as instalações ocupadas pelos serviços de jardins e limpeza no bairro de S.

Roque da Lameira que deram origem à capela da Senhora da Paz, a cuja bênção, dada

por D. Florentino, assistiu, em representação da Câmara, D. Maria José Novais. Não foi

por acaso que concedeu e mandou preparar casas nos bairros da Pasteleira e do Cerco

do Porto para habitação dos sacerdotes que aí foram trabalhar. Não foi também, por

acaso que, para além do subsídio à Obra, deu seguimento a todos os pedidos que esta

lhe apresentava. O seu gabinete e telefone estavam sempre disponíveis para atender a

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sua direção. Para ele, os padres que trabalhavam nos bairros eram uns amigos e a Obra

a sua grande colaboradora na humanização dos novos espaços habitacionais.

A segunda conceção tornou-se dominante, a partir de 6 de março de 1969,

quando um brutal acidente de viação, na zona da Branca em Abergaria-a-Velha,

roubou a vida ao dr. Nuno Pinheiro Torres.

Mas já antes disso, estes dois conceitos se confrontaram embora de modo

discreto. Aconteceu a propósito do centro social do Cerco do Porto, inaugurado em

26 de outubro de 1968, e que passou a servir de modelo para os outros centros so-

ciais. Eis como tudo aconteceu. Quando iniciámos o trabalho no Cerco, começámos a

ocupar várias caves dos blocos que a Câmara nos cedia gratuitamente. Porém, havia

necessidade de juntar as diversas atividades num único local até porque essas casas

eram precisas para novos desalojados. Ao analisarmos o projeto do centro social que a

Câmara tencionava construir, vimos que não satisfazia as necessidades. Entabulámos

negociações. A situação era complicada porque implicava um investimento muito su-

perior ao previsto. Decorriam ainda as negociações, quando o vice-presidente, apro-

veitando umas férias do presidente, enviou para o Ministério da Saúde e Assistência

o projeto em discussão. O dr. Pinheiro Torres, ao regressar, deparou-se com um facto

consumado e, não querendo entrar em conflito com o seu vice-presidente, informou-

nos que já nada havia a fazer…

Mas, por vezes, acontecem imprevistos e felizes coincidências…

Passados uns dias, a direção da Obra recebeu um convite do Diretor-Geral da

Assistência que queria ouvir a opinião de diversas instituições do país a propósito de

um assunto que tinha entre mãos. Já não me lembro qual. Eu e D. Julieta logo pensá-

mos aproveitar esse encontro em Lisboa para falarmos com o Diretor-Geral sobre o

que se passava com o centro social do Cerco. Munimo-nos de estatísticas sobre o nú-

mero de crianças e jovens que tínhamos no bairro, fizemos uma pequena resenha dos

serviços que já estavam em funcionamento e dos que projetávamos incrementar. A

reunião seguiu os seus trâmites. No fim, o Diretor-Geral pediu-nos para ficar mais um

bocadinho porque gostaria de ouvir a nossa opinião sobre um assunto do Porto que

o Senhor Ministro lhe confiara. Aguardámos e qual não foi o nosso espanto quando

desdobrou na nossa frente o projeto do centro social do Cerco, pedindo-nos opinião.

Ignorava ele que o centro, embora construído pela Câmara, era para nosso serviço.

Depois de lhe explicar a finalidade do centro social, perguntámos: Senhor Doutor, a

creche que aí está prevista é para quantas crianças? E ele respondia (já não sei ao certo):

vinte. E nós informávamos: pelo inquérito feito, há no bairro cerca de duzentas (os nú-

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meros não são exatos…). E a sala de estudo? E o Centro de Convívio? E onde vai funcionar

o centro de jovens? E o Posto de Enfermagem? E?... Ao ouvir-nos, concluiu - Então isto não

chega para nada. – Não chega, não. Para fazer isto, é melhor deixar-nos nos atuais espaços,

respondemos - Vai ser um problema. Eu não posso indeferir… Por isso, vou deslocar-me ao

Porto para ter uma reunião na Câmara e com a vossa presença. E vocês apresentam estes

números. Está certo? Concordámos imediatamente.

Uns dias mais tarde, recebemos a esperada convocatória. O Diretor-Geral

começou por explicar os motivos daquela reunião, não fazendo qualquer alusão ao

nosso encontro em Lisboa. Depois de descrever todo o projeto, perguntou a nossa

opinião. Apresentámos os dados que já lhe havíamos exposto. E todos concluíram

que o centro social projetado não satisfazia as necessidades do Bairro nem da nossa

atividade. Logo ali, o Presidente da Câmara se comprometeu a mandar elaborar um

outro projeto. Assim foi feito. E de um orçamento previsto de 400 contos, o novo

centro passou, penso, para mais de 2.000 contos. (Não tenho a certeza da exatidão

destes números.) Houve, no entanto, um caso em que a “linha dura” da Câmara não

cedeu com o argumento de que não havia terreno disponível noutro local. Queríamos

que o centro fosse instalado na periferia do bairro para favorecer a interação com a

zona habitacional antiga e permitir um convívio entre as populações. Consideráva-

mos isso muito importante para se evitar a formação de “guetos”, mas não consegui-

mos. Sinal de que a Câmara não gostou deste nosso procedimento é que a Obra, por

lapso ou intenção, não foi convidada para estar presente na cerimónia da sua inaugu-

ração, em 26 de Outubro de 1968, pelo Presidente da República, Américo Tomás. E foi

simplesmente como pároco da já então paróquia experimental de Nossa Senhora do

Calvário que fui convidado para proceder à sua bênção. A inauguração foi feita quase

à socapa e a população do bairro nem se apercebeu da presença do Presidente da

República. Bem diferente foi o que aconteceu aquando da inauguração do Centro de

Formação Profissional do Cerco do Porto. O Professor Marcelo Caetano, que presidiu à

inauguração, tinha assumido o cargo de Presidente do Conselho havia pouco tempo.

No final da cerimónia, a população do bairro rompeu a barreira da segurança e, com

muita insistência, pediu-lhe que visitasse a sua capela “ que era muito bonita”. E de tal

modo o fez, que ele, quebrando todas as regras do protocolo, mandou-me chamar

e disse-me: - estão a convidar-me a visitar a sua capela. O senhor padre autoriza-me?

Face à minha resposta, pediu-me que seguisse na sua frente para lhe indicar onde

devia mandar parar o carro que o transportava. Quando parei, o seu carro estacionou

atrás do meu. E gerou-se enorme confusão.

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Na comitiva, ninguém se

apercebera da nossa conversa. Os

condutores dos outros carros fica-

ram aflitos quando viram parar o

carro presidencial; os seguranças,

em pânico, rodearam logo o meu

carro. Toda a gente corria: corria o

Presidente da Câmara para acom-

panhar o senhor Presidente; cor-

riam os seguranças para proteger o Presidente; corriam as pessoas para falar com ele,

e, então para as crianças, era uma festa, eram as que mais corriam... Ele saiu do carro,

sendo imediatamente rodeado pelos seguranças e pela multidão que o esperava. Se-

guiu-me até à capela, mandou os seguranças esperar à porta e entrou sozinho comi-

go e com umas crianças que corriam atrás de nós. O Presidente da Câmara, esbaforido,

lá conseguiu abeirar-se da capela, mas não entrou.

Os dois, com algumas crianças a saltar pelos bancos, percorremos a capela

toda. Admirou especialmente a imagem da Senhora do Calvário, cuja significação

lhe expliquei: -” mas que linda imagem!”

Depois da visita, organizei um álbum com as fotografias e enviei-o com um

cartão meu que dizia simplesmente: “ Que Vossa Excelência consiga realizar as espe-

ranças que o Povo Português deposita em si, neste momento”. Passados uns dias,

recebi um cartão da Presidência

do Conselho, escrito por ele, agra-

decendo o acolhimento de que

foi alvo e o álbum que lhe enviara.

A população ficou feliz. Eram os

primeiros tempos da “primavera

marcelista”…

Como estávamos dizen-

do… Foram vários os momentos

em que a Obra e o seu sacerdote

se tornaram suspeitos para esta

fação camarária.

Penso que a desconfiança

terá começado na “Comunhão

Professor Marcelo Caetano ao chegar à capela da

Senhora do Calvário

Marcelo Caetano, dentro da Capela da Senhora do

Calvário

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Pascal” de 1965 a que presidi por convite dos seus organizadores. Os funcionários

camarários, com os elementos da Presidência e da Vereação nos bancos da frente,

enchiam por completo a majestosa igreja da Trindade. Na homilia, por estas ou outras

palavras de similar conteúdo semântico, disse:

“Hoje é dia de festa. Mais uma vez a Câmara se reúne para celebrar a sua Co-

munhão Pascal. Estão todos de parabéns. Mas este gesto só será autêntico e fará sen-

tido, se for um sinal. Um sinal de que, na vida de cada dia na Câmara, sabeis acolher o

Cristo que vos visita na pessoa dos mais abandonados. Ele que disse “ o que fizerdes

aos mais pequeninos é a mim que o fazeis”. Não basta comungar Cristo na Eucaristia,

isso é o mais fácil; é preciso comungá-Lo na Vida, e isso é o mais difícil. Quando aten-

deis com carinho o morador do bairro que, a chorar, vos diz que não tem dinheiro para

pagar a renda, é a Cristo que estais a acolher, mas quando o recebeis com desprezo

ou arrogância é a Cristo que estais a maltratar…Quando prestais atenção aos seus

problemas e os procurais resolver é a Cristo que estais a ajudar, mas se o mandais

embora sem uma atenção, é a Cristo que estais a escorraçar”. Possivelmente, não era

deste tipo de homilia que a maioria dos presentes estava à espera. Só sei que não

voltei a ser convidado…

Outros episódios houve onde o confronto de opiniões gerou desconfianças

e desconforto.

O primeiro aconteceu em data que não posso precisar mas sei que foi anterior

a 1967 pois ainda vivia no bairro do Cerco do Porto. O engenheiro Távora, com quem

sempre mantive relações cordiais e de respeito mútuo, telefonou-me a propósito de

assunto que não me lembro e no fim perguntou: “Senhor Padre, isso por aí está tudo

sossegado?” Ao que respondi. “Está e só não está melhor por causa dos “castigados”

que vocês para cá mandam. Vêm revoltados porque foram obrigados a deixar o seu

bairro onde tinham toda a sua vida organizada. Que culpa tem o marido e os filhos

que a mulher se tenha pegado e andado à pancada com uma vizinha? Que culpa têm

porque o fiscal do bairro não gosta deles? A maior parte das vezes são razões ridículas

que estão na origem destes castigos. Por outro lado, a população do bairro recebe-os

de pé atrás porque só sabem que eles vieram por castigo. E assim surgem conflitos

que não tinham razão de existir. Com esta política de castigos nunca terão os bairros

sossegados. Já viram bem que género de fiscais têm no bairro?” Ouviu em silêncio e,

no fim, despediu-se com um seco “boa tarde”. Não gostou. Num simples telefonema

eu, e comigo a Obra, tinha posto em causa dois dos pilares da política camarária: as

transferências por castigo e os fiscais dos bairros. Estes eram, a fazer lembrar “os olhos

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e ouvidos dos reis” com que o Imperador Persa controlava as suas satrapias, os olhos

e ouvidos da Câmara sempre prontos a entrar na privacidade dos moradores. Alguns

deles estavam imbuídos de “espírito pidesco” e representavam uma ameaça cons-

tante para os moradores. Piores que o tirano, são os seus tiranetes… Eram odiados

e tinham atitudes execráveis. No entanto, eram o poder máximo da Câmara dentro

do bairro. Ai de quem ousasse enfrentá-los! Ai de quem não caísse nas suas graças…

Muitas vezes, bastava uma “penada” dum fiscal e a vida de uma família ficava estraga-

da para sempre. Sem pôr em causa a sua dignidade, nem fazer qualquer juízo de valor

sobre a sua moralidade pessoal, eram, devido às funções que exerciam e às pressões

que recebiam, desgraçados a desgraçar desgraçados. Certamente que haveria fiscais

que não se enquadram nesta descrição pouco abonatória. A esses peço desculpa

pela dureza desta narrativa. Mas como diz o povo “quem não se sente não é filho de

boa gente”. E eu vi muita gente a chorar...

Uns tempos mais tarde, a conversa foi também ao telefone mas, desta vez,

com o dr. Abel Monteiro. Sempre evitavam o frente a frente. A Pasteleira estava a viver

uma grande agitação por causa duma intervenção da Câmara. O caso foi o seguin-

te. De acordo com os regulamentos dos bairros camarários, um chefe de família que

iniciasse mancebia (agora diz-se “união de facto”), vivendo já no bairro, era expulso

e nunca mais poderia concorrer para qualquer bairro da Câmara. Aconteceu que, na

Pasteleira, uma mulher abandonou a casa, deixando o marido com três filhas, tendo

a mais velha quatro anos e a mais nova, menos de um ano. Depois disso, o marido/

pai “meteu em casa” uma colega da fábrica onde trabalhava. Passaram-se três anos e,

quando as crianças já chamavam mãe a esta senhora (a mais nova nunca conhecera

outra), alguém os denunciou à Câmara e esta pôs o seu inquilino perante o seguin-

te dilema: ou mandava a mulher embora ou era expulso. Soubemos do caso e, em

reunião de Direção, já tínhamos decidido intervir a favor daquela família, quando o

dr. Abel Monteiro, chefe da divisão dos bairros camarários, me telefonou para saber

a minha opinião como sacerdote da Obra Diocesana. Não era uma opinião o que

ele buscava, o que verdadeiramente procurava era o apoio de uma Obra da Igreja, já

então com prestígio, que apadrinhasse a atitude da Câmara, dando-lhe a necessária

cobertura moral. Foi uma conversa longa e dura. Disse-lhe que a Obra discordava

totalmente da atuação da Câmara não só porque a lei era injusta, como, naquele caso,

ia retirar a “mãe” a três crianças. Era uma violência. Já não lhes bastava ter sido abando-

nadas pela verdadeira mãe… O dr. Abel não quis ouvir mais e desligou, não sem antes

se despedir, como homem educado que sempre foi.

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INSTITUTO DE SERVIÇO SOCIAL DO PORTO

Quando mencionei D. Julieta Cardoso como um dos tripés em que assen-

tou a Obra, quis, nela, homenagear a ação de todo o Instituto de que era diretora.

Se ela, como disse, foi a verdadeira “abelha-mestra” da Obra, poderá dizer-se que o

Instituto foi o berço que a acolheu e acalentou. Muitas vezes me interrogo: o que

seria da Obra Diocesana se não houvesse o Instituto de Serviço Social? Foi nele que

ela nasceu. No seu edifício, na Avenida Rodrigues de Freitas, nº 202, funcionou a sua

sede até que se transferiu para o Paço Episcopal. Partilhou os seus serviços adminis-

trativos. No início, Obra e Instituto quase não se distinguiam. Foi o alfobre de todas

as estagiárias e assistentes sociais que deram vida à Obra. Na impossibilidade de

mencionar todos os seus nomes – e foram muitos – quero destacar a sua diretora,

D. Julieta Cardoso que não só participou no seu nascimento como a amparou nos

primeiros anos de vida e sempre me acompanhou. Era grande a confiança que D.

Florentino nela depositava. Licenciada em letras pela Universidade de Lisboa e as-

sistente social, pertencia à Sociedade das Filhas de Maria. Aliava, assim, uma grande

preparação teórica e técnica, a uma profunda vivência espiritual como pude com-

provar na semana que, a seu convite, passei na casa da Sociedade em S. Cosme do

Vale, Famalicão, onde, por sugestão sua, li o livro “Como estudar uma paróquia” que

muito ajudou a minha ação pastoral. Também não posso esquecer D. Maria Augusta

Negreiros, a primeira assistente social a trabalhar na Obra e sua primeira assistente

coordenadora que só deixou quando, por razões familiares e académicas, foi viver

para Lisboa. Como foram trabalhosos aqueles primeiros tempos no bairro do Cerco

do Porto! Quantas noites e fins-de-semana não passou ela a trabalhar com as muitas

comissões que então se formaram! Não havia horários. E, inicialmente, fazia-o em

total voluntariado. Nunca lhe ouvi um queixume. E ainda havia tempo para alguma

descontração. A primeira vez que foi falar comigo à igreja de Santo Ildefonso, o

“Senhor Abade”, P. Adriano Martins, ao vê-la, avisou-me: “está ali uma bruxa de saia

vermelha (sic) que quer falar consigo”. Ela também ouviu e, nos momentos de maior

tensão no trabalho, o epíteto “bruxa de saia vermelha” era motivo para comentários

jocosos. Animava-a sempre um grande entusiasmo e disponibilidade que aliava a

um perfeito domínio dos assuntos que tratava. Quanto a admirava e como sempre

respeitei a autonomia do seu trabalho! Não quero também esquecer a D. Maria Elisa

Acciaiuoli Barbosa que acompanhou a Obra e assumiu a sua direção durante a atri-

bulada década de setenta. As assistentes sociais foram, no seu conjunto, uma lufada

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de ar fresco que ajudaram a arejar as minhas ideias de tipo assistencialista, fruto de

uma educação muito conservadora e de matriz machista. Nem elas imaginam o

quanto me ajudaram a construir uma nova visão do homem e da sociedade! Para

elas a minha gratidão e homenagem.

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O PAPEL DOS LEIGOS

Como já disse, o nascimento e a caracterização da Obra Diocesana traz con-

sigo a marca da sua época. Como o Vaticano II defendia, havia que privilegiar a

função dos leigos num campo especificamente seu. No início, a Obra esteve assente

no trabalho de total voluntariado de leigos. E ainda hoje a direção depende desse

voluntariado laical assim como a Liga dos Amigos da Obra. Lembro a dificuldade

que tivemos em enquadrar nos estatutos a presença de um sacerdote. Não quería-

mos que fosse um assistente religioso - que não era- também não queríamos que

fosse um diretor e muito menos o presidente. Era uma Obra da Igreja que nascia por

iniciativa do Prelado da Diocese. E, por isso, D. Florentino queria ter um presbítero

que o mantivesse informado e o representasse junto da direção da Obra. E o que

ficou nos estatutos foi uma expressão um tanto ambígua: “ haverá um sacerdote

responsável”.

Muitos foram os voluntários leigos que trabalharam na Obra. Não posso

enumerá-los a todos até porque de muitos já esqueci os nomes. O que lamento.

Por isso, limito-me a referir aqueles de que me lembro e comigo colaboraram na

direção: dr. Vitor Capucho, o primeiro presidente da Obra após o reconhecimento

da sua personalidade jurídica (“Notas da Imprensa” – n.º 3); D. Maria Elisa Acciaiuoli

Barbosa que assumiu o cargo de presidente da direção por nomeação de D. An-

tónio e o desempenhou ao longo de vários anos; engenheiro Pinto Resende que

acompanhou o nascimento da Obra desde o seu início no Cerco do Porto (era ele

que fazia o favor de me ir buscar e levar à igreja de Santo Ildefonso, nas noites em

que se realizaram os primeiros encontros com os moradores do bairro) e, depois, foi

integrado na sua direção, engenheiro Francisco Alvelos, dr. Silva Carneiro, dr. Rocha

Leite, dr. Silva Ramos e D. Maria do Carmo Ramos - todos participaram, durante mais

ou menos tempo na direção da Obra. Se algum esqueci, as minhas desculpas.

Quero, no entanto, demorar-me um pouco a falar do dr. Francisco Sá Carnei-

ro, para retificar uma informação e colmatar uma lacuna documental e do arquiteto

Fernando Távora para me associar a uma homenagem.

Dr. Francisco de Sá Carneiro - No livro “Obra Diocesana 40 anos de Pro-

moção Social”, depois de, na página 66 dizer “Em reunião da Direção da ODPS rea-

lizada em 31 de agosto de 1970, o Padre João Alves Dias comunica as diligências

que tem levado a cabo para constituir uma nova direção, tendo já contactado três

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elementos: dr. Francisco Sá Carneiro…”. Na página seguinte, escreve ”Quanto ao dr.

Francisco Sá Carneiro, o seu nome, ventilado para a Direção, em 1970, apenas pas-

sou a fazer parte da Direcção, como vogal, no ano de 1975”. E, na página 136, ao

referir os membros da direção de 1971 a 1974, apenas indica o nome de D. Maria Elisa

Acciaiuoli Barbosa. Independentemente das opções ideológicas de cada um, certa-

mente, estaremos de acordo que Francisco Sá Carneiro foi o cidadão do Porto de

maior relevo na história política portuguesa do século XX. Porém, não é o estadista

que me interessa neste momento, mas o humanista e cristão que muito contribuiu

para o regresso de D. António Ferreira Gomes do seu longo exílio e de que a Obra

Diocesana se pode honrar de ter tido como membro da sua direção.

Vamos aos factos. Como já disse, D. António Ferreira Gomes, após o seu

regresso à diocese, logo me falou sobre o dr. Sá Carneiro. Quando, em 1970, foi

necessário proceder à nomeação de nova direção, mandatou-me para, em seu

nome, ir convidar o dr. Sá Carneiro para a sua presidência. E eu, não posso precisar

a data mas sei que era uma 4ª feira, fui falar como dr. Sá Carneiro ao seu escritório

de advogado na rua da Picaria, no Porto. Quando lhe explicitei o motivo daquele

encontro, agradeceu a confiança de D. António mas invocou dois motivos para

declinar o convite: não estava “muito enfronhado nesses temas” e, muito especial-

mente, não queria criar situações difíceis a D. António. Explicou-me então que ia

apresentar na Assembleia Nacional uma proposta de alteração à lei que impedia o

divórcio civil a quem casasse catolicamente. Sabia que essa proposta iria provocar

forte reação nos meios mais conservadores da Igreja e seria mal vista por grande

parte do episcopado português. Teve mesmo a amabilidade de ler parte do texto

que tinha preparado. Depois de o ouvir, disse-lhe: “compreendo que não possa

assumir o lugar de presidente dado o seu trabalho de deputado. Pelo que ouvi, o

senhor D. António, estará de acordo com a sua proposta e não se preocupará com

possíveis reações negativas por parte dos seus colegas no episcopado. Por isso,

altero o convite de D. António, e peço-lhe para ser vogal da direção. Se aceitar esta

minha proposta, vou já falar com D. António, e logo lhe comunico a sua posição”.

Ele sorriu e disse: “fico a aguardar a resposta de D. António”. Como eu previra, o se-

nhor Bispo esteve de acordo com a minha sugestão. Por telefone, comuniquei-lhe

a posição de D. António e ele imediatamente aceitou. Por isso, a direção da Obra

de 1971 a 1974 foi constituída por D. Maria Elisa Acciaiuoli Barbosa, presidente;

dr. Silva Ramos, secretário, dr. Silva Carneiro, tesoureiro, dr. Sá Carneiro e arqui-

teto Fernando Távora, vogais. Se alguma dúvida o tempo me levanta é no que

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respeita aos cargos exercidos

pelos drs Silva Ramos e Silva Car-

neiro. Quanto ao dr. Sá Carneiro

e arquiteto Távora não tenho

qualquer dúvida: eram vogais. E

que eram assíduos nas reuniões

semanais, também não. Com

uma diferença: se o arquiteto

Távora nunca faltava, o dr. Sá

Carneiro, enquanto foi deputa-

do da Assembleia Nacional, nem

sempre estava no Porto. Após a

sua resignação de deputado em

27 de janeiro de 1973, tornou-se

assíduo às reuniões semanais

em que sempre se mostrou em-

penhado. Após o 25 de Abril de

1974, com a formação do Partido

Popular Democrata e a partici-

pação no 1º Governo Provisório,

deixou de aparecer. Por isso, foi

por simpatia que o seu nome foi

mantido na direção de 1975.

Normalmente, antes de

iniciar a reunião, ele relatava os

acontecimentos mais relevantes

da política portuguesa por ele

vividos nessa semana.

Certo dia, vinha desa-

pontado com o rumo que a

“primavera marcelista”, em que

acreditara, estava a seguir. Tinha ido com uma comissão de deputados da Assem-

bleia Nacional falar sobre a situação dos “presos políticos” com o Ministro do Interior,

creio, Gonçalves Rapazote que, como ele, era advogado. Ao iniciar a conversa, co-

meçara por dizer-lhe: “O senhor Ministro como homem do direito…” Mas este logo

Dedicatória e capa dos livros oferecidos pelo Dr. Sá

Carneiro

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o interrompeu dizendo: “senhor deputado, o senhor está a falar com o Ministro, o

“homem do direito” ficou lá fora…”

Em abril de 1973, ofereceu-me o livro “Ser ou não ser DEPUTADO”, coorde-

nado por Silva Pinto, que continha todas as peças do processo do pedido de sus-

pensão que apresentara na Assembleia Nacional em 25 de janeiro desse ano. E, em

9 de janeiro de 1974, ofereceu-me, com dedicatória pessoal, o livro “Vale a pena ser

deputado?”, publicado pelo jornal do Fundão, com entrevistas a Sá Carneiro, Miller

Guerra e Oliveira Dias. Na entrevista, revela-se a grandeza de caráter e a coerência

deste portuense considerado como “ovelha ronhosa” da burguesia do Porto e que

alguns setores da Igreja ostracizaram.

Noutra ocasião, vinha satisfeito porque, disse ele “isto está a mudar por den-

tro. Um filho do ministro Rebelo de Sousa, afilhado de Marcelo Caetano, está do

nosso lado. Também se chama Marcelo. É um jovem muito inteligente e de bom

caráter”. Só muito mais tarde identifiquei este jovem como sendo o dr. Marcelo Re-

belo de Sousa que, e nisto Sá Carneiro estaria enganado, penso não ser afilhado de

Marcelo Caetano, embora tenha o seu nome próprio.

Em 1973, creio que já após a renúncia de deputado, apareceu com um ar

muito cansado. Interrogado sobre o porquê daquela aparência, explicou que, nessa

tarde, dera uma entrevista a um jornalista do “República”, um jovem açoriano muito

perspicaz. Disse que tinha ficado muito esgotado porque as perguntas eram muito

inteligentes e, por vezes capciosas, o que o obrigava a um cuidado redobrado nas

respostas para não dizer mais do que aquilo que queria dizer. Mais tarde, vim a des-

cobrir que esse jovem jornalista era dr. Jaime Gama.

Não mais esqueci uma afirmação que ele fez na presença do arquiteto Tá-

vora quando eu lamentava a falta de moralidade que campeava na sociedade por-

tuense. Disse-me: “e quanto mais se sobe na escala social maior é a podridão”. E o

arquiteto Távora esteve de acordo.

A presença nas reuniões da direção era prestimosa, não só pela sua visão

humanista da vida com forte influência personalista e a correspondente defesa dos

valores humanos, mas também pelo rigor lógico das suas análises. Mas era particu-

larmente importante nas reuniões que a direção tinha com os responsáveis cama-

rários onde sobressaía a sua força argumentativa. Não era por acaso que sempre as

marcávamos para dias em que pudesse estar presente. Mesmo quando não falava

por causa da presença da mãe, a sua participação fazia com que os representantes

camarários, por respeito ou timidez, repensassem melhor os argumentos da Obra.

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Antes de entrar para a sala de reuniões, sempre dizia: “se a mãe estiver, eu não falo”.

E era vê-lo “entrar mudo e sair calado”, como sói dizer-se, quando sua mãe, D. Maria

Francisca Lumbrales Sá Carneiro, vereadora da Ação Social, estava presente. Literal-

mente, não abria a boca. Não foram tempos fáceis…Numa figura franzina e ape-

quenada, escondia-se a robustez de um caráter que não recuava perante nada nem

ninguém. “Homem de antes quebrar que torcer”, defendia até à exaustão aquilo em

que acreditava. De trato cortês mas reservado, mantinha um perfeito domínio sobre

as suas emoções. Era fácil ver nele um sorriso. Mas a única vez que o ouvi soltar uma

gargalhada foi, em 1980, na inauguração do centro social de S. Roque da Lameira.

A direção da Obra de então teve a amabilidade de convidar para essa cerimónia

os antigos colegas do dr. Sá Carneiro na direção da Obra. Ao ver-nos, ficou muito

surpreendido e foi com alegria que a todos saudou. Ao cumprimentar-me, hesitou

um bocadinho e não disse o meu nome. Já não nos víamos desde a Páscoa de

1974 e, entretanto, a minha vida e a minha aparência física tinham sofrido grandes

alterações. Perante esta hesitação, o arquiteto Távora, com aquela descontração en-

cantadora que todos lhe conhecíamos, disse: “O doutor não está a reconhecer?” Ao

que ele respondeu: “conheço a voz, mas…” Então, o arquiteto Távora pergunta: “e se

eu lhe disser que é o nosso padre João?” – “Ah, pois é! ” Diz ele. E eu, com um sorriso,

acrescentei: “só que agora sou também “pai João” e apresentei-lhe o meu filho de

três anos que quisera acompanhar-me. Ficou surpreendido e, ao dar-me um abraço,

disse: “tem de me contar o que se passou”. E, assim, depois da cerimónia de inau-

guração e enquanto visitava as novas instalações, fomos a conversar longamente.

Entretanto, meu filho, agarrado à minha mão, de vez em quando puxava-me pelas

calças e dizia-me: “pai, eu quero fazer uma pergunta”. Fui ignorando o seu pedido

porque agora era com o Primeiro-Ministro que ia a falar. Já não era apenas o dr. Sá

Carneiro e muito menos o Chico, como familiarmente, por vezes, era tratado. O à-

vontade não era o mesmo de antigamente. Mas, perante a insistência, acabei por

dizer: “Doutor, desculpe, mas aqui o meu filho queria fazer-lhe uma pergunta”. Ele,

com um sorriso, baixou-se e disse-lhe: “então qual é a pergunta que me queres fa-

zer?” E o João Miguel, assim se chama o meu filho, muito senhor de si, pergunta: “Eu

ontem vi-o na televisão de nossa casa e agora o senhor está aqui. Como é que saiu

de lá para fora?”. Surpreendido, o Dr. Sá Carneiro dá uma gargalhada e, em vez de

responder, pega nele ao colo e dá-lhe um grande abraço. Toda a comitiva que nos

seguia ficou muito admirada com este gesto que não lhe era habitual e ele sentiu-se

na obrigação de explicar a razão daquele seu inusitado comportamento. Todos se

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riram, mas a dúvida do menino permaneceu… Depois disto, meu filho sempre que

o via na televisão, logo dizia: “olha ali o meu amigo”. E, por isso, quando, passados

uns meses, o dr. Sá Carneiro morreu, procurámos que ele não se apercebesse: “a

televisão tinha avariado”.

Com todos estes dados, espero que tenha ficado claro e não restem dúvidas

a ninguém que a Obra Diocesana se pode honrar de ter tido na sua direção, a partir

de 1971, como elemento interventivo, e durante vários anos, este grande vulto da

democracia portuguesa.

O Porto honra-se de ter estado em todos os grandes momentos que mar-

caram a história de Portugal: esteve nas raízes da nacionalidade dando-lhe nome e

contribuindo para a conquista de Lisboa; nas lutas pela independência com o apoio

ao Mestre de Avis; na empresa dos Descobrimentos com o Infante D. Henrique, na

monarquia liberal com a revolução de 24 de agosto de1820 e o Cerco do Porto; na

implantação da República com a revolta de 31 de janeiro de 1891. No derrube do

Estado Novo e na implantação do regime democrático, o Porto pode orgulhar-se de

ter Sá Carneiro como seu grande representante.

Arquiteto Fernando Távora - Quando começava a escrever estas linhas,

fiquei agradavelmente surpreendido com uma notícia publicada em 5 de junho de

2013 na “Voz Portucalense” que dizia “A Universidade do Porto assinalou os 90 anos

do nascimento do histórico arquiteto Fernando Távora, designando-o a “Figura Emi-

nente da Universidade do Porto 2013”.

Esta homenagem fez-me recordar um documentário exibido na RTP2, em

2006 sob o título “ Fernando Távora, um Homem de Cultura” e um texto publicado

no jornal Público nessa mesma data (18 de outubro de 2006) onde se afirmava

que ao arquiteto Távora, professor durante 50 anos na Escola de Arquitetura do

Porto, “ se deve grande parte das transformações que levaram a escola a ser uma das

mais importantes do país, onde se formaram, por exemplo, Siza Vieira e Souto Moura”.

Quero associar-me a esta homenagem ao “ homem de bem” que não es-

gotou a sua atividade como arquiteto e professor. O seu humanismo transbordou

pelas comunidades mais pobres do Porto como o Barredo e os Bairros Camarários. É

desse homem bom, de riso franco, de humor desconcertante, de emoção à flor da

pele, de humanismo encantador, que quero falar.

Quando, em 1970, D. António Ferreira Gomes, recém-regressado à sua

diocese do Porto, quis renovar a Direção da Obra Diocesana, já o Arquiteto Távora,

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como sempre foi conhecido, afirmara a sua componente de “homem do povo

e com o povo” no Centro Social do Barredo que se construiu no largo sob o ta-

buleiro inferior da Ponte de D. Luís. As assistentes da Obra tinham dele a melhor

das impressões e mostraram desejo de o ver na sua direção. D. António também

o desejava mas admitia que ele não pudesse aceitar mais um compromisso de

voluntariado social. No entanto, encarregou-me, como sacerdote responsável

pela Obra, de o contactar. Assim fiz. Telefonei-lhe, solicitando uma audiência, não

explicitando o que pretendia e apresentando-me apenas como P. João, represen-

tante de D. António. No dia e à hora combinada, compareci no seu atelier de ar-

quitetura. Recebeu-me cordialmente e, após uma descontraída conversa, acabou

por aceitar. Mais tarde, no já referido jantar no Paço, acabou por, com humor, es-

clarecer D. António que foi a juventude e o ar descontraído do emissário episcopal

que o levaram a aceitar o convite.

Da convivência que mantivemos semanalmente nas reuniões da Direção a

que sempre comparecia, apesar de já ser o diretor da Escola de Belas Artes do Porto

na Avenida Rodrigues de Freitas, realçarei apenas alguns momentos.

* O Diretor da Habitação da Câmara do Porto era, à época, o Engenheiro D.

Luís de Távora com quem, como já disse, nem sempre as relações da Obra foram

fáceis, atravessando mesmo certos momentos de conflito aberto. Quando, nós,

em tom de brincadeira, dizíamos “ aqui o Arquiteto é que podia ajudar, falava com

o primo Engenheiro e tudo se resolvia”, ele logo atalhava, “não, não somos primos, eu

não tenho títulos e o único brasão que possuo é o do meu trabalho”. Nunca apurei a

verdade desta afirmação. Que tinha o “brasão do trabalho” não duvido, mas se

tinha outros de caráter familiar não o revelou nem eu lhe perguntei.

O seu humor desconcertante também se fez sentir num momento (1973),

em que discutíamos as dificuldades que estávamos a ter com o Ministério de Saú-

de e Assistência que, a somar aos conflitos com a Câmara Municipal, faziam a Obra

passar por tempos muito difíceis. No silêncio da reflexão, ouviu-se o Arquiteto

dizer com ar convicto: estamos nós aqui cheios de dificuldades quando daqui a uns

tempos tudo irá mudar. Surpreendidos, todos nos virámos para ele e perguntámos:

mas porquê? E ele, muito sério, olhou para o dr. Sá Carneiro que, como costume,

estava a seu lado, e disse: “porque daqui a algum tempo quem vai mandar nisto tudo

é aqui o doutor”. Todos sorrimos e desejámos que a sua profecia se concretizasse.

E a verdade é que se cumpriu, como recordámos em 5 de Julho de 1980, em S.

Roque da Lameira.

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O Arquiteto Távora era sempre uma presença que trazia paz nos momen-

tos de intranquilidade; humor nas horas mais sombrias e a defesa intransigente

das populações mais desfavorecidas quando alguém as punha em causa. Quando

hoje vejo o reconhecimento internacional dos seus projetos de arquitetura, quando

vejo os nossos dois “Prémios Pritzker” (Siza Vieira e Souto Moura) reconhecerem-no

como seu mestre; quando vejo a Universidade do Porto curvar-se perante a grande-

za da sua obra e pessoa, eu interrogo-me: como lhe foi possível arranjar tempo para

estar em todas as reuniões semanais da direção da Obra, para participar nos muitos

encontros com a Câmara Municipal e outras instituições, para, quando preciso, ir

falar aos bairros? Só a sua vontade de servir e o amor pela Obra poderão explicar

este “milagre”.

Se, como diz Saint-Exupéry, todos “Aqueles que passam por nós não nos

deixam sós. Deixam um pouco de si”, o Arquiteto Fernando Távora e D. Julieta Car-

doso, sem qualquer desprimor para os restantes, foram, possivelmente, aqueles que

mais marcaram a minha passagem pela Obra.

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CONSELHO TÉCNICO CONSULTIVO

Este conselho era formado pelos representantes das principais instituições

da cidade do Porto. Nos inícios da Obra, teve a vantagem de criar uma relação de

pertença que muito facilitava o diálogo com essas instituições. Recordo que um

dia o dr. Domingos Braga da Cruz, provedor da Santa Casa da Misericórdia do Porto

e membro deste conselho, quando lhe agradecia o apoio que nos tinha dado na

criação de alguns “centros de enfermagem”, me ter respondido: “não fiz nada de

mais, a Obra também é nossa”. Recordo, ainda, como o diretor escolar do distrito

do Porto, de cujo nome não me lembro, facilitou a cedência das escolas dos bairros

para as reuniões da Obra e não só. No Cerco do Porto, foi na escola masculina que se

realizaram todas as reuniões com a população. O mesmo edifício funcionou como

capela dominical desde 15 de agosto de 1964 até ao fim de outubro de 1966. Mais,

a partir de outubro de 1964, foi-nos cedido um gabinete que foi transformado em

capela permanente. Também na Pasteleira a escola primária serviu para a realização

dos atos litúrgicos até ser construída a nova capela. E, no bairro de S. Roque da

Lameira, foi na escola masculina que decorreram todas as reuniões iniciais com os

elementos da população. Para não falar na cedência de escolas no distrito onde se

realizavam colónias de férias da Obra, como a escola do Calvário em Valongo e a

escola primária de Baltar. Também a pertença a este conselho de D. Maria do Carmo

Nunes, diretora do Instituto de Assistência à Família no Porto ajudou a sanar conten-

das e a resolver incompreensões quando as competências da Obra e do Instituto

poderiam conflituar.

Além do seu conselho sábio e experimentado, teve o mérito de nos abrir as

portas de muitas das instituições representativas da cidade e de favorecer a divul-

gação da Obra.

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PRIMEIROS PASSOS

O primeiro contacto com a população do bairro do Cerco fez-se no domin-

go de Páscoa de 1964, 29 de março, com o “compasso”. Como eu estava ocupado

na “visita pascal” em Santo Ildefonso, foi o Pe. Teixeira Fernandes, do Secretariado

Diocesano, que, com autoriza-

ção do Pároco de Campanhã, Pe.

Tavares Martins, “tirou o compas-

so” no bairro do Cerco. Ao visitar

as casas, falava sobre o trabalho

que iríamos iniciar e, como sinal

de novos caminhos, agradecia

mas não recebia o dinheiro que,

como era hábito, iam oferecen-

do.

Logo na 2.ª feira seguinte,

começaram os encontros com os

chefes de família dos blocos 1 e

2, na escola masculina do bairro.

Na primeira reunião, como nessa

noite continuava ocupado em

Santo Ildefonso, fui substituído

pelo P. António Teixeira Coelho,

do bairro da Pasteleira. A partir

dessa data, participei nos res-

tantes encontros. Havia uma equipa de leigos dos Cursos de Cristandade que, na

véspera do respetivo encontro, passava pelos blocos, convidando os “chefes de

família” para a reunião a realizar-se às 21 horas do dia seguinte. Como havia 32 blo-

cos e, em cada noite, reuníamos apenas com dois, as reuniões prolongaram-se por

mais de três semanas. Eram orientadas pela D. Julieta Cardoso, dr. Pedro Cunha, por

mim, e ainda pela assistente social, D. Maria Augusta Negreiros que secretariava.

Também participavam os voluntários que tinham feito os convites e iriam ser os

animadores das comissões que fossem constituídas. Pedindo desculpa àqueles, e

foram vários, de que me esqueci o nome, recordo perfeitamente o engenheiro Pin-

to Resende que apoiou a comissão do Centro de Convívio até ser substituído pelo

Convívio com Jorge Amado e Fernando Noronha

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engenheiro José Costa; Jorge Amado que animou a Comissão de Sala de Estudo

até que foi substituído pelo Manuel Silva morador no bairro; o Fernando Noronha

que muito contribuiu para a criação do Posto de Enfermagem; o José Moura que

esteve com a Comissão Missa e Catequese até ser criada a paróquia experimental

da Senhora do Calvário.

A Obra visava a promoção social das populações e, por isso, nada faria que

não resultasse da vontade expressa dos moradores e em que não contasse com a

sua colaboração. Nada seria sugerido ou imposto. Assim, no decorrer das reuniões,

os participantes eram incentivados a expor as necessidades do bairro. Depois de

inventariadas as carências, eram convidados a dar o seu nome para se constituírem

comissões que, com a ajuda da assistente social, de um leigo de fora do bairro e do

sacerdote da Obra, procurariam colmatar as necessidades sentidas. E foram muitas

as carências referenciadas: falta de telefone no bairro, de um marco de correio, de

um posto de enfermagem, de um mercado de levante, de transportes, de limpeza,

de um centro de convívio, de salas de estudo para as crianças, de dinheiro para

pagar as rendas, de policiamento, e… de missa e catequese no bairro E assim, entre

outras, formaram-se as comissões de “Sala de Estudo”, “ Centro de Convívio”, “Posto

de Enfermagem”, “Correio e Telefone”, “Higiene e Limpeza”, “Segurança”, “Transpor-

tes”, “Mercado”, “ Auxílio Mútuo”, “Missa e Catequese” (“Notas da Imprensa” n.º 1).

Enquanto eu me encarregava diretamente da “Missa e Catequese”, a D. Ma-

ria Augusta Negreiros, com o meu apoio, trabalhava com as restantes.

Como afirmou “A Voz do Pastor”, em 17 de outubro de 1964, o bairro do

Cerco do Porto apresentava-se como um paradigma. A Obra rapidamente se ex-

pandiu. Em 15 de maio de 1965,

“A Voz do Pastor” escrevia que “A

Obra Diocesana de Acção Social

dos Bairros do Porto continua a

desenvolver extraordinária acti-

vidade junto dos aglomerados

populacionais, designadamente

no Cerco, Fonte da Moura, Amial

e S. Roque da Lameira”.

Quando foi reconhecida

pelo Estado, em 1967, já exercia

“a sua acção, nas seguintes zo-Festa no Cerco com o “Pintarolas” morador no bairro

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nas: Cerco do Porto, S. Roque,

Fonte da Moura, Pasteleira, Rai-

nha D. Leonor, Amial, S. João de

Deus e nos sectores de Educa-

ção Infantil, Cultura e tempos

livres”. (“A Voz do Pastor”, 25 de

Novembro de 1967)

O processo de lançamento foi variando, de acordo com as circunstâncias

de cada bairro, mas havia uma ideia que presidia a todo o trabalho: envolver a

população local na deteção e na resolução dos seus problemas. Assim aconteceu,

também no bairro de S. Roque da Lameira. Iniciámos reuniões com os morado-

res do bairro camarário, na escola masculina de S. Roque, na Rua da Senhora de

Campanhã, com o apoio de uma assistente social e a colaboração de elementos

das comissões do Cerco, de que lembro o Manuel Silva, da “Salas de Estudo” e o

Armando Santos, do “Centro de Convívio”, e outras pessoas da vizinhança de que

destaco dois jovens muito interventivos: o Jorge Costa e Silva e o Carlos Sousa.

E assim, à semelhança do Cerco, foram constituídas várias comissões que

criaram designadamente o Centro de Convívio, inaugurado em 2 de abril, o Posto

de Enfermagem inaugurado em 28 de maio no bloco 15, e Salas de Estudo no blo-

co 14 inauguradas em 26 de novembro, todos no ano de 1966.

Aproveito para referenciar a Casa 11 – Entrada 160 - Bloco 12. Nela, a Obra

acolheu um jovem, num momento muito difícil da sua vida, que, quando faleceu,

mereceu as seguintes palavras do padre Tolentino de Mendonça: “Um dia, quan-

do se fizer a história do catolicismo português que

nos é agora contemporânea, há-de ver-se, em toda

a clareza, que um dos seus actores magistrais foi,

afinal, um frade e poeta, quase clandestino. Chama-

va-se José Augusto Mourão”. A seu respeito, escre-

veu António Marujo - “Foi músico, poeta, professor,

tradutor, investigador. E, além de tudo, frade domi-

nicano. Homem despojado, olhava para a estética

como central na experiência cristã contemporânea.

Vivia entre dois mundos, este homem discreto, tí-

mido: Estou entre o mundo de Deus e o mundo dos

homens – que não há outro”. E também António

Equipa responsável pelo Centro de Convívio de S. Roque

Capa de um livro de Frei Mourão

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Teixeira: “José Augusto Mourão fazia da subtileza um adorno da competência e

uma espécie de amortecimento da profundidade. Homem de enormes recursos,

foi padre, professor, poeta, ensaísta. Tem um lugar na história da cultura contem-

porânea”.

”Quando muita comunicação social se compraz em denegrir os bairros so-

ciais, é bom saber que houve uma casa camarária no caminho do P. Mourão. E ele

nunca mais o esqueceu” (“Notas de Imprensa” n.º 7).

No bairro da PSP do Cerco do Porto, a ação da Obra foi bem diferente. Pro-

priedade da Polícia de Segurança Pública, nele viviam exclusivamente agentes da

PSP e suas famílias que provinham, na sua quase totalidade, das aldeias do norte

de Portugal. Era constituído por 152 habitações. Quando a Obra começou a tra-

balhar no bairro camarário que lhe fica junto, logo os seus moradores se sentiram

atraídos por esta ação da Igreja. Mas havia que ter muito cuidado. Naquele tempo,

os polícias viviam num clima de terror sempre com medo dos castigos que lhes

manchavam a caderneta e a folha de serviço tão importante para a subida na

carreira. O comandante de então da PSP do Porto, coronel Santos Júnior, não era,

como diziam, “flor que se cheirasse”. Para não serem acusados de se meter em po-

lítica, o que lhes podia dar origem a um processo condenatório, nunca pertence-

ram formalmente a nenhuma das comissões, a não ser à de “ Missa e Catequese”.

No entanto, os seus filhos frequentavam a “Casa dos Rapazes” do bairro do Cerco

e as filhas participavam nos cursos para raparigas que a Obra promovia. Lembro

que D. Amélia, moradora desse bairro, ministrou um dos cursos de “rendas e bor-

dados”. As suas crianças começaram a frequentar as salas de estudo e o jardim

infantil. As primeiras funcionárias que a Obra admitiu para trabalhar no centro

social do Cerco eram, em grande parte, do bairro da Polícia.

Este trabalho pôs em contacto dois bairros que, embora próximos, até

aí se ignoravam, se olhavam de soslaio e mesmo temiam. Esbateram-se fron-

teiras. Fez-se comunidade. Foi então que os elementos das comissões do Cerco

se aperceberam duma situação que consideraram injusta. É que, segundo o re-

gulamento, as casas só podiam ser ocupadas por polícias enquanto estivessem

ao serviço. Quando, por reforma, doença ou morte, deixavam de pertencer aos

corpos ativos, tinham de abandonar as casas. No momento em que mais preci-

savam de ajuda, eles e suas famílias eram expulsos. Neste caso, não podiam ser

os moradores do bairro a lutar pelas suas reivindicações, pois, ao fazê-lo, pode-

riam meter-se sobre a alçada da lei que os puniria ou, no mínimo, cairiam em

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desgraça junto do seu comandante, com consequências imprevisíveis. Foram os

moradores do Cerco que, apoiados pela assistente social e pelo sacerdote da

Obra, com o conhecimento da sua direção, formaram uma comissão e foram falar

com o coronel Santos Júnior que lhes disse nada poder fazer porque se tratava

duma lei geral da polícia. Por isso, o sacerdote da Obra aproveitou uma peregri-

nação anual da polícia a Fátima para falar do assunto ao comandante geral da

PSP que, na presença do comandante do Porto, confirmou o que este dissera à

comissão do Cerco. Face a isto, fez-se uma exposição que o deputado, engenhei-

ro Armando Magalhães, antigo presidente da Câmara Municipal de Valongo, se

comprometeu a apresentar na Assembleia Nacional. O comandante do Porto era

informado de todas estas diligências que muito o contrariavam. Estávamos neste

processo quando ocorreu um episódio que a todos perturbou. Nesse bairro, ha-

via uma senhora, D. Maria Augusta, que, já antes da chegada da Obra, ensinava

catequese em sua casa às crianças da vizinhança. Quando, em setembro de 1964,

se organizou a catequese para toda a zona, incluindo o bairro camarário, assumiu

a função de secretária da “equipa da catequese”. Estas atividades e o seu modo

de estar tornaram-na muito estimada. O seu marido, o subchefe José Ribeiro da

Rocha, fazia parte da “Comissão de Missa e Catequese”. (“Notas da Imprensa” n.º

4). Era um casal sem filhos cujo tempo dedicavam ao serviço dos outros. Aconte-

ceu que o dito subchefe, em data que não sei precisar, mas posterior a novem-

bro de 1966, foi mobilizado para uma “comissão de serviço” em Angola, tendo

a esposa permanecido no bairro. O subchefe acabou por morrer no Ultramar. A

primeira ação da PSP foi dar ordens à esposa para abandonar a casa. Houve uma

revolta que só foi silenciosa porque o contrário seria muito perigoso para os seus

moradores. Foi com lágrimas que muitas das suas mulheres me manifestaram a

sua revolta. D. Augusta teve de ir viver para Penafiel sua terra natal donde, já havia

muitos anos, havia saído. Passado uns tempos, o corpo do subchefe foi trazido

de Angola e levado para o cemitério de Penafiel. Teve honras militares, com a

bandeira nacional a cobrir o féretro e a presença de muitos polícias, incluindo o

coronel Santos Júnior. Após as últimas preces, quando a guarda de honra reali-

zava a derradeira cerimónia e soaram as salvas de homenagem, o sacerdote da

Obra, ainda paramentado e com lágrimas nos olhos, denunciou, em voz alta e

com palavras fortes, a desumanidade e hipocrisia duma Pátria que, agora, honra

um dos seus mártires com salvas e bandeiras e, antes, expulsou de sua casa a

esposa que ele muito amava e que, certamente, lhe ocupava a mente na hora

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da sua morte. E retirou-se em silêncio. Em silêncio ficaram todos os presentes,

incluindo o comandante que estava na sua frente. O regulamento que esteve na

base desta desumanidade só foi alterado após o “25 de Abril”.

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UMA FILHA DA OBRA

A paróquia de Nossa Senhora do Calvário nasceu da Obra Diocesana. Em

primeiro lugar, porque teve como célula embrionária a “Comissão de Missa e Ca-

tequese” que se formou, como já referi, na sequência das primeiras reuniões que

a Obra dos Bairros realizou na es-

cola primária. Em segundo lugar,

foi a Obra que me deu disponibi-

lidade para cavar os alicerces da

futura “Paróquia Experimental de

Nossa Senhora do Calvário”, cria-

da por D. Florentino” no dia 1 de

janeiro de 1967.

Como já disse, quando

em fevereiro de 1964, comecei a

colaborar com a Obra, era coad-

jutor de Santo Ildefonso, função

que desempenhei, em acumula-

ção com o trabalho na Obra, até

final de outubro desse ano. No

início de novembro, D. Floren-

tino desvinculou-me de Santo

Ildefonso e nomeou-me a tempo

inteiro para a Obra com a obriga-

ção de ir viver para o bairro do

Cerco do Porto a fim de, ao mes-

mo tempo que trabalhava na di-

reção da Obra e na sua expansão,

ir lançando as bases da paróquia

que queria criar na zona do Cerco

do Porto e S. Roque da Lameira.

E foi assim que, no dia 3 de no-

vembro de 1964, passei a residir

no Bairro do Cerco do Porto, Blo-

co 15, Entrada 442, Casa12. Aí vivi

O Vigário da Vara, P. Joaquim Carvalho de Sousa, lê o

documento de ereção canónica da Paróquia de Nossa

Senhora do Calvário, na Eucaristia presidida por D.

António Ferreira Gomes, no dia 31 de dezembro de 1972,

no Centro de Formação Profissional do Cerco do Porto

D. António descerra a lápide da sala que lhe foi dedicada

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até 1967 data em que me desloquei para a rua de S. Roque da Lameira por ser mais

central em relação ao território paroquial. A casa no bairro do Cerco, depois de dar

morada a vários seminaristas e diáconos, foi sede do Agrupamento nº 300 do Corpo

Nacional de Escutas, entretanto fundado, que nela criou a Sala D. António Ferreira

Gomes em 1972.

No período que medeia a saída de Santo Ildefonso e a criação da paróquia

experimental, foi a Obra que me subsidiou a subsistência, possibilitando-me a for-

mação da paróquia sem qualquer custo para os seus moradores. Enquanto estive

em Santo Ildefonso e depois da fundação da paróquia experimental, o meu traba-

lho foi de total voluntariado e sem qualquer encargo para a Obra.

Como filha, a comunidade cristã foi-se tornando autónoma mas manteve

sempre com a “mãe” um relacionamento de complementaridade e apoio mútuo.

Como as instalações da Obra estavam disponíveis ao fim de semana, a comunidade

cristã utilizava-as para dar catequese às muitas crianças do bairro e das redondezas.

Era uma forma de ir dando conhecimento aos pais das zonas envolventes da ação

que a Obra desenvolvia no Cerco do Porto. Quando a Comissão de Salas de Estudo

quis organizar colónias de férias, a comunidade foi convidada a participar nas suas

despesas. Para isso, o sacerdote, na quaresma anterior, pediu aos cristãos que co-

messem apenas sopa no jantar de sexta-feira e o dinheiro que poupassem nessas

refeições, bem como noutras privações, como cigarros, cafés, bebidas, chocolates,

cinemas, seria entregue no ofertório de Domingo de Ramos para a colónia. Esta

“penitência quaresmal” manteve-se enquanto foram organizadas colónias de férias

que implicassem uma permanência das crianças longe das suas famílias. Mais, para

que a comunidade envolvente enviasse as suas crianças para o centro social que,

por imposição da Câmara, se localizava no centro do bairro, a assistente social ia

falar à comunidade nas missas dominicais sobre os serviços da Obra. Ainda recordo

como D. Dulce, então assistente social do Cerco, estava nervosa na primeira vez que

o fez. Ainda há dias, o diácono Freitas Soares, cujos filhos foram as primeiras crianças

de fora do bairro do Cerco a frequentar o seu centro social, me recordou esse dia.

Desde o início, a ação espiritual caminhou lado a lado com a promoção

social mas nunca conflituaram no poder e sempre se apoiaram no serviço. Era esta

a orientação da Obra que, embora dirigida por leigos, “não é laica, mas assente nos

princípios francamente cristãos e acompanhada da acção espiritual - sem a qual

toda a promoção humana resulta mutilada ”, como dizia “A Voz do Pastor” de 17 de

Outubro de 1964 (“Notas da Imprensa” n.º 1).

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Primeira Missa no Bairro do CercoO plano de trabalho que traçámos projetava para o dia 15 de agosto – Festa

de Nossa Senhora da Assunção - a primeira missa a celebrar no bairro, ao ar livre, por

D. Florentino com a presença do dr. Nuno Pinheiro Torres. Após essa data, haveria

missa dominical no átrio da Escola Masculina e a catequese deveria iniciar-se em

outubro.

Formámos um coro de rapazes e homens do bairro para cantar nas missas.

Encarreguei-me dos ensaios que decorriam, à noite, numa sala da escola masculina.

Desde a primeira hora, contámos com a inestimável colaboração do senhor Diretor

Escolar do Distrito do Porto e a ajuda da diretora da Escola Masculina que, com au-

torização daquele, nos entregou uma chave. Assim a Escola Masculina foi o nosso

primeiro local de trabalho e a nossa primeira capela. Pouco a pouco, começaram a

aparecer rapazes e homens (inicialmente, o coro era só masculino) do bairro da PSP,

de Pego Negro e do bairro da Maceda.

A comissão preparou tudo para a primeira missa (altar, altifalante, coro,

leitores, acólitos…) que, conforme o planeado, foi celebrada por D. Florentino no

largo em frente do bloco 19, no dia 15 de Agosto de 1964. E a rapaziada saiu-se

bem na sua cantoria ao ponto de

merecer elogios de D. Florentino

e do Presidente da Câmara que

também esteve presente. Foi

uma alegria.

A partir dessa data, a

missa começou a ser celebrada

todos os domingos no átrio da

referida escola, às 11 horas da ma-

nhã. Como eu continuava vincu-

lado a Santo Ildefonso, foi o meu

primo, P. Manuel Joaquim Alves

de Oliveira (“Notas de Imprensa”

n.º 8), que celebrou essa missa

dominical durante todo o verão.

A Comissão, com a orientação

do José Moura, de Gondomar, e

a ajuda do senhor Marta, do Bon- Convívio com José Moura e P. Alves de Oliveira

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fim, que deu a madeira, fez um estrado e um altar que montava e desmontava

todos os domingos.

As senhoras e raparigas limpavam o átrio de modo a tudo ficar impecável

para as aulas de segunda-feira. Nunca houve qualquer problema. A catequese ini-

ciou-se em outubro desse ano e era dada na escola e nas instalações da Obra.

Com o início das celebrações dominicais, foi enorme a adesão dos morado-

res do bairro da Polícia bem como de toda a área envolvente. Ainda me lembro que,

nas primeiras missas que celebrei

na escola, usei uns paramentos

velhos que o Paço Episcopal me

dera. Então as pessoas da rua de

S. Roque da Lameira fizeram uma

subscrição e ofereceram-me uns

paramentos novos: foi uma festa.

Os paramentos estiveram em ex-

posição numa casa comercial na

rua de S. Roque da Lameira. Eu

era, para a zona residencial en-

volvente, o padre pobre, o padre

dos pobres. Que belo título!

No início de novembro,

como já disse, passei a viver no

bairro do Cerco. Quem me mobi-

lou a casa foram as senhoras da

Obra de Nossa Senhora das Candeias (de que recordo as dras Carolina, Rogélia e

Angélica) a quem muito devo pelo testemunho de serviço aos pobres, pela simpli-

cidade de vida e, até porque, nos meus primeiros tempos do Cerco, era numa das

suas casas que almoçava. A pobreza evangélica foi a marca que deixaram presente

na minha casa e na minha vida sacerdotal. Estava em “terra de missão”. E só uma

Igreja pobre poderia ser verdadeiramente missionária. Só ela poderia evangelizar

pelo exemplo.

A partir dessa data, coloquei um altar e um sacrário no gabinete no piso su-

perior da escola masculina. Foi a nossa primeira capela com o Santíssimo Sacramen-

to e onde celebrava todas as manhãs às 8 horas. As missas dominicais continuavam

a ser no átrio da escola.

Casamento de dois catequistas, moradores no bairro do

Cerco, acompanhados por outros catequistas, em 19 de

junho de 1966

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Início do trabalho pastoral em S. Roque da LameiraNuma das noites em que reuni com moradores do bairro camarário de S.

Roque da Lameira, apareceu-me um grupo de habitantes do Bairro das Corpora-

ções, que lhe fica junto, falando-me da velha aspiração de construir uma capela

naquela zona.

Num dos dias subsequentes, ao passar em frente do bloco 9 do bair-

ro camarário, reparei num pequeno edifício, isolado, destinado aos serviços

de “Jardinagem e Limpeza da Câmara”. Acompanhado por dois representantes

da equipa, fui falar com o Presidente da Câmara, dr. Nuno Pinheiro Torres, que

transferiu esses serviços para a cave do bloco 1 e nos cedeu o edifício que esta-

va divido em duas secções: numa fizemos a capela; a outra servia para cateque-

se, sala de reuniões e exposições. A comunidade encarregou-se do mobiliário

e do sino. Era verdadeiramente uma igreja pobre entre os pobres. O espaço era

pequeno, apenas coberto por telhas sem qualquer espécie de forro e o pavi-

mento era de cimento. Esta pobreza esteve na origem de muitas conversões.

Era a encarnação da “Igreja Peregrina” de que falara o Concílio. Em data que

não posso precisar, a capela foi

remodelada pelo arquiteto Fa-

bião, da Câmara Municipal, que

eliminou a divisória central e

colocou um forro sob o telhado

e soalho no pavimento.

Entretanto, a equipa

promotora da criação da capela,

constituiu-se em “Comissão Ad-

ministrativa”.

Comecei a celebrar na

nova capela, em 7 de março de

1965, que, por sugestão de D.

Florentino, logo recebeu a denominação de “Capela da Senhora da Paz”. No ano

seguinte, nesse dia, D. Florentino veio celebrar à capela. Participou, nessa Missa, D.

Maria José Novais como vereadora da Câmara Municipal do Porto que, em 15 de

Novembro de 1966, numa reunião da Câmara falava da Capela no Bairro de S. Roque

que funcionava “ numa dependência cedida pela Câmara, sob a invocação de Nossa

Senhora da Paz”.

Colaboradores da capela da Senhora da Paz

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No dia 2 de abril de 1966,

o bairro de S. Roque da Lameira

esteve em festa. Inaugurou-se o

Centro de Convívio, o primeiro

fruto do trabalho social, e, na ca-

pela, celebrava-se o primeiro ca-

samento que o Jornal de Notícias

do dia 4 noticiou: “ Mais tarde, na

capelinha do bairro foi celebrado

um casamento o que deu moti-

vo a grande regozijo entre os seus

moradores que ali compareceram

em grande número” Era assim. As

duas dimensões, social e pasto-

ral, embora com coordenações

e obediências diferentes, sempre

se completavam e, mutuamente,

se apoiavam. Eram duas faces da

mesma Igreja.

No dia 31 de maio de

1965, realizou-se a primeira pro-

cissão de velas a unir os dois centros de culto (capela da Senhora da Paz e a es-

cola do Cerco) e foi a imagem de Nossa Senhora da Paz (a única que possuíamos

– a da Senhora do Calvário virá mais tarde) que foi transportada no andor. A sua

organização esteve a cargo das equipas de Liturgia do Cerco e de S. Roque (Paz).

Foi mais uma forma de unir duas comunidades que se desconheciam.

A Capela de Nossa Senhora do CalvárioEntretanto, ia sendo construída uma capela junto do bairro do Cerco. O pro-

jeto, acompanhado pelo arquiteto Paixão, da Câmara do Porto, deu origem a duas

capelas: no bairro da Pasteleira e no bairro do Cerco. Foi construída num terreno ca-

marário e com a participação da Câmara. Como ainda não tínhamos personalidade

jurídica, ficou propriedade da diocese.

No dia 1 de novembro de 1966, a capela foi sagrada por D. Florentino com a

presença do dr. Nuno Pinheiro Torres (“Notas da Imprensa” n.º 4).

“Os Pastorinhos” na primeira procissão de velas

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Para evitar situações de

conflito entre as populações de

S. Roque e do Cerco, a capela re-

cebeu a denominação de Nossa

Senhora do Calvário. Assim, os do

Cerco ficavam com a capela que

daria nome à futura paróquia; os

de S. Roque sabiam que o nome

da nova paróquia tinha a origem

num calvário que existira na sua

zona, ao cimo da rua da Senhora

de Campanhã.

A capela da Senhora do

Calvário, como a da Paz, tornou-

se num polo aglutinador de iden-

tidade e fazedor de comunidade

e muito contribuiu para abrir o

bairro ao meio envolvente. Me-

receu o apreço de crentes e não

crentes que viam nela o sinal de

uma “Igreja mestra em huma-

nidade”. Conto apenas três ca-

sos. Quando a capela estava em

construção, encomendei o sacrá-

rio a um serralheiro, irmão de um

morador do bairro, que tinha uma oficina metalúrgica em Rio Tinto. Quando o veio

colocar, perguntei-lhe quanto devia. Ao que ele me respondeu:- “Nada. É o meu

contributo para a capela”. E assim, o objeto mais sagrado da capela foi feito e ofe-

recido por um homem que, na vizinhança, era conhecido como alguém que “não

queria nada com a Igreja” e que ”quando via um padre mudava de passeio”. Eu dizia

que ele não ia à Missa mas ia aos “concursos de pesca”; não frequentava a Capela

mas era assíduo no ”clube de pesca” que era, como gostava de dizer, um outro tipo

de “capela”. Um dos meus lemas em pastoral era “em terra de missão, não são as

pessoas que vão à igreja, é a Igreja que vai às pessoas”. Sempre considerei que, numa

paróquia, o importante não é a territorialidade mas as relações de vizinhança e de

Capela de Nossa Senhora do Calvário

Equipa paroquial de Liturgia

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70

identidade. Por isso, a minha ação

desdobrava-se por muitos espa-

ços, desde o “Centro de Forma-

ção Profissional do Cerco”, casas

particulares, clubes recreativos,

desportivos, tertúlias de amigos,

cafés, mercearias e outros locais

que funcionavam como outras

“capelas”. A geografia da salvação

passava ainda pela rua e por ou-

tros locais pastoralmente estra-

tégicos como o cruzeiro de Vila

Cova e as carvalheiras de Pego

Negro. A Igreja era missionária

mas sem proselitismos.

Numa pastoral de pro-

ximidade, nunca me faltaram

lugares de encontro. Sagradas

são as pessoas e não os locais.

A sacralidade está nas pessoas e

não nos objetos. São elas quem

faz a Igreja e não as pedras. Os

templos são lugares de reunião da Igreja que fomentam e perpetuam memó-

rias. A Igreja é o povo de Deus que, pelos caminhos dos homens, peregrina para

o Pai. Sem triunfalismos nem subserviências. Só há anticlericalismo onde houver

clericalismo. O mal está no clericalismo que gera o seu contrário. O anticlerica-

lismo é a “mão esquerda” com que Deus acorda a Igreja quando ela adormece

na arrogância do poder e esquece a sua missão de servir. Se o clericalismo se

esbater, o anticlericalismo atenua-se ou até desaparece. É ver o que está acon-

tecer com a simplicidade do Papa Francisco. Todos, independentemente da sua

crença, se curvam perante a sua bondade. Todos? Talvez não. Na sociedade, há

forças ideológicas que se arrogam o monopólio da defesa dos pobres e, portan-

to, a Igreja do Papa Francisco não lhes convém. E na Igreja há forças poderosas

que não gostam de ver afrontados os seus privilégios. E tudo farão para fazer

calar a sua voz incómoda...

D. António junto do “cruzeiro de Vila Cova”

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Um outro episódio bem ilustrativo do carinho que os moradores do bairro

do Cerco tinham pela sua capela, sucedeu, como já contei, aquando da inaugura-

ção do Centro de Formação Profissional do Cerco do Porto pelo Professor Marce-

lo Caetano, que tinha assumido o cargo de Presidente do Conselho havia pouco

tempo. O terceiro episódio aconteceu com o 25 de Abril. Quando este se deu, eu

não estava no Porto. No sábado seguinte, ao dirigir-me para a capela, vi que todos

os muros da rua do Cerco do Porto tinham sido “pichados” com mensagens revo-

lucionárias e interroguei-me: como estará a capela? E qual não foi o meu espanto

ao verificar que a sua grande parede lateral continuava limpa e sem qualquer risco.

Passados uns tempos, ao comentar o sucedido com um jovem da rua do Cerco,

aluno na Faculdade de Economia e que pertencia a esses grupos revolucionários,

ele disse-me: “nem imagina o que aconteceu naquela noite. Os de fora, ao ver a

parede branca da capela, ficaram todos contentes e já se preparavam para escre-

ver, quando os de cá se opuseram com tal veemência que o grupo se desfez e

acabaram as pichagens. Ia dando porrada. Os de fora, zangados, foram-se embora,

mas nós, com medo que eles regressassem, ficamos a vigiar”. E este jovem não era

dos que frequentavam a capela…

A ereção canónica da Paróquia de Nª Sª do CalvárioO nome da paróquia resultou da vontade expressa de D. Florentino que,

nessa data, queria criar várias paróquias na cidade do Porto, dedicadas a Nossa Se-

nhora (do Porto, do Amial, da Ajuda, da Boavista, da Areosa, do Calvário), para assi-

nalar a consagração de Nossa Senhora como padroeira da cidade do Porto (Decreto

Pontifício da Proclamação da Padroeira Portucalense. Sagrada Congregação dos

Ritos . Prot. N.P. 28/962 de 3 de Fevereiro de 1964). Como, no monte sobranceiro ao

local onde hoje sobe a rua da Senhora de Campanhã, existira um calvário de que já

não restavam vestígios mas que ainda perdurava na memória do povo, D. Florentino

resolveu dedicar a nova paróquia a Nossa Senhora do Calvário, a Senhora que, de

pé, aguentava firme o sofrimento junto da cruz de seu filho - “Stabal Mater dolorosa

juxta crucem lacrimosa dum pendebat Filius”. (O pároco atual, cónego Fernando Mi-

lheiro, com a preocupação de explicitar esta mensagem, mandou gravar as palavras

”Stabat Mater” na base da imagem da igreja paroquial, réplica da original da capela

do Calvário, que encomendou ao mesmo escultor. Bem haja!) E assim, em 31 de

janeiro de 1966, nascia a “Paróquia Experimental de Nossa Senhora do Calvário” com

todos os direitos inerentes a uma paróquia que podiam ser exercidos, indiferente-

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mente, em cada uma das capelas

que passaram a funcionar como

“igreja paroquial”.

Quando, em 1971, se deu

início ao processo de ereção da

paróquia definitiva, D. António

Ferreira Gomes, que retornara à

sua Diocese em 1969, sugeriu o

nome de Nossa Senhora de Cartes,

porque “Cartes”, uma zona anti-

ga da paróquia onde hoje passa

a “Avenida de Cartes” fazia lem-

brar “Chartres-Caritas-Caridade”.

Coloquei a questão aos elemen-

tos do Conselho Paroquial que,

depois de perscrutarem o sentir

da comunidade, optaram pela

continuação do nome inicial.

Na missa de ereção da Paróquia,

no dia 31 de dezembro de 1972,

no salão de festas do Centro de

Formação Profissional, D. António

Ferreira Gomes manteve o nome

inicial da paróquia e confirmou a

função de igreja paroquial às ca-

pelas de Nossa Senhora do Cal-

vário e de Nossa Senhora da Paz (“Notas da Imprensa” n.º 5).

“Aqueles que passam por nós (…) deixam um pouco de si, levam um pouco de nós.”

Se este pensamento de Antoine de Saint-Exupéry esteve subjacente a todo

o meu testemunho de gratidão a quantos comigo conviveram na Obra Diocesana,

não posso terminar sem uma palavra a quem comigo partilhou o sonho de uma

pastoral em favor de uma Igreja que se apresenta como “pobre” sacramento de

salvação para todos e cada um dos homens. Sendo um dos meus lemas “em Igreja

D. António observa o mapa da nova paróquia

Eucaristia da ereção da Paróquia

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mais vale pouco feito por muitos que muito feito por poucos”, o que fazia com

que ninguém ocupasse mais que um cargo ou exercesse mais que um ministério,

é impossível individualizar os muitos leigos que deram o melhor de si ao serviço

desta Igreja.

Não podendo nomear toda essa “multidão incontável”, limitar-me-ei a re-

ferir aqueles que, vindos de fora da paróquia, nos ajudaram a construí-la e, através

dela, contactaram com a Obra Diocesana.

Vários seminaristas do Seminário Maior começaram a vir ajudar-me ao fim

de semana. E muitos foram os que comigo colaboraram nas celebrações da Páscoa.

Destes, entre muitos outros, lembro-me do Serafim Assunção, hoje responsável pe-

los “Companheiros de Emaús”, do Albino…

Éramos uma espécie de sucursal do Seminário desde o tempo em que era

reitor o dr. Albino Carvalho Moreira e, depois, o dr. Armindo Lopes Coelho. O pri-

meiro seminarista a vir trabalhar foi o António Taipa - atual bispo auxiliar do Porto.

Também o António Marto (bispo de Leiria-Fátima) colaborou ao fim de se-

mana quando, embora sendo de Vila Real, frequentava o Seminário do Porto

Em 1965/66, o Martins de Almeida viveu na casa do Cerco, enquanto fazia

estágio profissional e colaborava no trabalho da Obra com os jovens na “Casa dos

Rapazes”.

Em 1967/68, vinham ensaiar o nosso coro dois seminaristas: o Pedroso, hoje

pároco de Santo Ildefonso e membro do Secretariado Diocesano de Liturgia, e o

Gaspar que foi padre operário e já faleceu.

Visita Pascal junto da capela da Senhora da Paz

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Em 67/68, quando já

morava na rua de S. Roque, vi-

veram na referida casa do bloco

15 quatro seminaristas que es-

tavam em estágio profissional e

colaboravam na ação pastoral:

o Bento, o Azuil, o Castro e o

Coelho.

Em 1968/69, veio fazer

estágio na paróquia o diácono

Joaquim Soares que partilhava

a referida casa do bairro do Cer-

co com mais três diáconos que estagiavam nas paróquias das Antas, Pedrouços,

Azevedo.

Em 1971, fez estágio diaconal o José Domingues Moreira que, depois de

ordenado presbítero, ficou a trabalhar na paróquia até ir para o Ultramar como

capelão militar. Em 1975, D. António, a meu pedido, nomeou-o meu substituto. O

último foi o Norberto Martins que vivia em minha casa enquanto realizava estágio

profissional.

Se algum lapso de memória possa haver no que respeita aos anos, já o mes-

mo não acontece quanto aos nomes.

Apenas uma palavra

para o primeiro seminarista que

colaborou comigo no Cerco do

Porto. Para além de participar

na preparação e dinamização

da Missa dominical na escola,

dava, no final, um curso de for-

mação moral e religiosa a jovens

e adultos. Esse aluno brilhante

que todos os domingos se des-

locava ao bairro, pondo o saber

e entusiasmo apostólico ao ser-

viço da comunidade, chamava-

se António Maria Bessa Taipa.

Junto da Capela da Senhora do Calvário - Estagiários e

suas famílias acompanhados pelo reitor do Seminário

Maior, P. Albino, e pelo diretor espiritual, P. Marcelino

Convívio Paroquial - P. José Domingues e Norberto

Martins.

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De tal modo foi acolhido que, quando se ordenou diácono, aquele núcleo de

cristãos, semente da futura paróquia de Nossa Senhora do Calvário, encheu a

Sé Catedral, festejando a sua ordenação como se de um familiar se tratasse. Na

Missa do domingo seguinte, todos os comungantes quiseram ter o privilégio de

receber Cristo das suas mãos jovens que tremiam de emoção. Foi uma festa!...

Esta comunhão de sentimentos foi ainda mais longe. Quando, no dia 15 de

agosto de 1966, foi ordenado presbítero, a comunidade apresentou-se em

peso na Sé para participar na ordenação sacerdotal de alguém a quem muito

queria. Num gesto de amizade e gratidão, o novo sacerdote convidou vários

jovens para partilhar do almoço da sua “Missa Nova” na sua terra de Freamun-

de e escolheu para pregar nessa sua “Primeira Missa”, não um pregador afama-

do como era costume, mas sim o jovem sacerdote responsável pela Obra Dio-

cesana com quem trabalhara e que fora seu colega nos tempos do seminário.

Em síntese, atrevo-me a dizer que a escola/capela do bairro do Cerco, o primeiro

local de cultura e de culto da “Obra dos Bairros”, terá sido a primeira “cátedra” onde

o futuro professor deu as suas primeiras lições, assim como a primeira “catedral”

onde, como diácono, o futuro bispo, pela primeira vez, proclamou a Palavra e

distribuiu a Sagrada Comunhão.

Quero lembrar também o P. João Miranda, que, à época, era o reitor do Se-

minário do Bom Pastor e hoje é bispo, e o dr. Marcelino da Cunha Ferreira, então

diretor espiritual do Seminário Maior e hoje cónego da Sé do Porto. Foram os res-

ponsáveis pela celebração da missa do meio-dia na capela da Senhora da Paz no

bairro de S. Roque

Relembro, ainda, o dr. Justiniano Santos e o dr. Gabriel Costa Maia, profes-

sores do Seminário Maior, que vieram dar cursos de formação bíblica e litúrgica,

na casa do senhor Pereira na rua de S. Roque da Lameira. Parecia que estávamos

nos tempos da Igreja primitiva quando a “assembleia” se reunia nas casas particu-

lares dos cristãos. Não poderei esquecer o Jesuíta, dr. José Maria Cabral Ferreira e

o Pe. António Costa Mota que, em anos seguidos, durante uma semana, dinami-

zaram conferências/debates como preparação para a Páscoa. Apenas uma refe-

rência para diversos sacerdotes franceses (de Brest, de Paris, de Annecy, de Havre,

Ruão) que passavam o mês de julho em minha casa, aproveitando para aprender

a língua portuguesa de modo a melhor trabalharem com os emigrantes nas suas

dioceses e a alguns sacerdotes brasileiros que estudavam pastoral em Madrid e

vinham colaborar na celebração pascal.

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Pelo Cerco também pas-

saram vários amigos sacerdotes

que conheci no Colóquio Euro-

peu de Paróquias, entre os quais,

para além dos galegos Paco, Xao

do Rego, António Vilasó, recor-

do o Guy, pároco de S. Jean de

Montmartre em Paris, que nos

ajudaram a experienciar a catoli-

cidade da Igreja.

Também Andrés Torres

Queiruga, professor da Universi-

dade de Santiago de Compostela - “o maior teólogo católico vivo”, assim o apresen-

tou o P. Anselmo Borges, professor da Universidade de Coimbra, no dia 13 de outubro

passado, no Colóquio “Deus ainda tem futuro?” - conheceu a paróquia a partir de

1969, tendo sido recebido, como já referi, por D. António Ferreira Gomes, na Páscoa

de 1970. No livro “Repensar a Teoloxia, Recuperar o Cristianismo - Homenaxe a Andrés

Torres Queiruga”, evoca esse encontro. Escreveu: “Quie-

ro resaltar afanes comunes en su recuerdo de los Colo-

quios Europeus de Parroquias y nuestra visita de amigos

a António Ferreira, aquelo bispo valiente desterrado por

Salazar y a quien, por cierto, el cardenal Quiroga acogió

por tiempo en Santiago”.

Recordo, ainda, a colaboração do meu primo,

Pe. Oliveira, de que já falei. Quando já era monsenhor

e diplomata da Santa Sé em Jerusalém, veio falar sobre

as relações entre “Os Palestinianos e os Judeus” num

encontro para o qual convidei, de modo especial, os

paroquianos menos frequentadores da Igreja e com

elevado grau de formação académica. Foi um sucesso.

Ainda me lembro de, no fim, o senhor José Rodrigues,

da rua do Cerco do Porto, vir falar comigo, dizendo: “ eu sou dos “cristãos periféricos”

mas conte comigo para tudo o que precisar.”

Dos leigos que me ajudaram na fase inicial, para além dos muitos que cola-

boraram no lançamento da Obra, quero destacar o médico Luís Pereira Leite, profes-

O P. Celso da diocese de Petrópolis no Brasil

A temática do mal é nuclear na

teologia de Queiruga.

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sor catedrático da Faculdade de Medicina, infelizmente já falecido. Tendo-o conhe-

cido num Curso de Cristandade, tornou-se no médico a que recorríamos sempre

que havia um pobre a precisar de ajuda (ainda lembro o senhor “António Varredor”

do bairro do Cerco do Porto).

Ao terminar esta evocação, gostaria de realçar alguém em cuja vinda para a

paróquia sempre vi o dedo de Deus. Trata-se do “diácono Freitas Soares” que, como

noticiou o “espaço solidário”, de setembro de 2012, “ foi homenageado pelo Conse-

lho de Administração da Obra com a oferta de uma imagem de Nossa Senhora em

cristal – ex-libris da Instituição – num gesto de reconhecimento por toda a dedica-

ção, gratuidade e empenho demonstrado na preparação do Grupo Coral”. A sua

ligação à Obra começou lá bem longe no tempo.

Em Maio de 1968, realizou-se a reunião anual do meu curso teológico. Foi na

Aguda. Na grande maioria, éramos presbíteros. O colega Freitas Soares, que termi-

nara connosco o Curso de Teologia em 1963 mas não se ordenara, estava a contar

que residia na Ramada Alta no Porto num andar que não satisfazia as suas necessi-

dades. Para além dele, da esposa, de três filhas e da sogra, queria trazer para junto de

si o pai que vivia sozinho em Tabuado, Marco de Canaveses. E o grande problema

era que ele não queria abandonar o tear com que sempre trabalhara. Precisava,

por isso, de uma casa grande em que o tear coubesse e, se possível, com quintal

onde o pai e a sogra se pudessem ocupar no cultivo de flores e de alguns produtos

hortícolas muito úteis para uma família numerosa. Perguntei-lhe se iria viver para a

minha paróquia e ensaiaria os seus grupos corais, caso lhe arranjasse uma casa que

satisfizesse as suas necessidades ao que ele, imediatamente, anuiu.

Fiquei feliz com a esperança de passar a ter a colaboração de um compa-

nheiro que, desde o exame de admissão ao seminário, em Trancoso junto do colé-

gio de Gaia, sempre fora meu colega de carteira ao longo dos doze anos do nosso

percurso académico.

Por acaso (?), nessa mesma tarde, soube que iria ficar vaga uma casa na rua

Matias de Albuquerque que satisfazia plenamente as suas necessidades. Por outra

feliz coincidência, o seu proprietário era José Pereira, um grande amigo que muito

apoiava as nossas atividades paroquiais e que já referi. Quando lhe falei da casa, ele

ficou feliz por poder prestar mais este serviço e comprometeu-se a alugá-la logo

que estivesse disponível. Passado pouco tempo, já o meu amigo e a família estavam

na sua nova casa e o seu pai pôde vir viver com ele, trazendo consigo o seu velho

tear, companheiro de toda a vida. Os seus seis filhos, como também já disse, foram

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das primeiras crianças que, vivendo fora do bairro, frequentaram o novo centro so-

cial do Cerco do Porto. Sempre considerei que a vinda do Freitas Soares foi uma

graça de Deus que ajudou a perdurar o espírito que presidiu à criação da paróquia.

“Clube de Pesca do Cerco do Porto”Quando, nos meus primeiros tempos do Cerco, me deslocava a pé, nas ma-

nhãs de domingo, da escola do bairro, onde celebrava às 8 horas, para a Missa das

9,30 horas na capela da Senhora da Paz, sempre me cruzava com homens que, de

cana às costas, iam pescar para o rio Douro. Um dia, em conversa com o senhor

Adelino Costa, morador no bairro do Cerco e grande entusiasta desse desporto, per-

guntei-lhe se nunca tinham pensado em fundar um clube de pesca que agregasse

todos aqueles pescadores. Respondeu-me: - pensar, pensamos, o pior é arranjar uma

sede. – Então, vamos procurar essa sede, disse eu. Acontece que, nessa data, ainda es-

tavam na minha mão as chaves das duas caves do bloco 2 do bairro do Cerco onde

tínhamos realizado a exposição de que já falei. Quando fomos à Câmara entregar as

chaves, aproveitámos a oportunidade para pedir ao dr. Nuno Pinheiro Torres uma

das caves para sede do clube de pesca que queríamos criar. E ele, como sempre que

a Obra lhe pedia, cedeu. Assim o clube, com o lema “Pesca - só pesca - tudo pela

pesca”, foi criado oficialmente em 15 de agosto de 1966 (no segundo aniversário da

Convívio paroquial – Também se fazia Igreja num jogo de futebol entre casados e solteiros

capitaneados (?), respetivamente, pelo Freitas Soares e pelo pároco. “Um santo triste é um triste

santo” já dizia S. Francisco de Sales.

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primeira Missa no bairro) e, passados estes anos todos, ainda lá funciona. É autóno-

mo. Não depende nem da Paróquia nem da Obra, mas sempre foi um local onde

a minha presença era bem-vinda. Até tiveram a amabilidade de atribuir o título de

sócio honorário a quem nunca pegou numa cana de pesca…. Em 1986, no seu 20º

aniversário, fui convidado para presidir à cerimónia de distribuição de prémios do

“II Grande Concurso Nacional de Pesca Desportiva de Rio” que o clube organizara.

Também ele deve a sua existência ao patrocínio da Obra Diocesana.

Clube de Pesca do Cerco do Porto

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NOTAS DA IMPRENSA

Das referências que a imprensa foi fazendo ao longo dos tempos, muitas das

quais constam nos livros mencionados (“Para a História da Diocese do Porto – Dom

Florentino de Andrade e Silva” e “Obra Diocesana 40 anos de Promoção Social”), des-

tacarei apenas algumas das que respeitam ao período de que venho tratando.

1ª - UMA OBRA DE VASTA PROJECÇÃO FUTURA: A ACÇÃO SOCIAL NOS NOVOS BAIRROS

É já conhecida dos nossos leitores que está a desenvolver-se um importante

movimento de acção social, educativa e religiosa na zona dos novos blocos cama-

rários desta cidade. A iniciativa, por agora, vive ainda o seu período de organização

e experiência, mas os primeiros resultados deixam entrever uma vasta projecção

futura. Não se trata de prestar auxílio material às famílias necessitadas (tarefa das

Conferências Vicentinas e de outros organismos): o que se pretende é ajudar essas

populações, desenraizadas e heterogéneas, a resolver os seus próprios problemas –

sustento, emprego, habitação, doenças, promoção educativa, cultural e social, etc.

Um pouco segundo o estilo da FAO, que procura levar os povos subdesenvolvidos

a elevarem-se através do seu próprio esforço, embora mediante a colaboração (não

“substituição”, “esmola”, ou “paternalismos”) dos países mais afortunados e sob a

orientação de organismos específicos. Com a diferença de que a “assistência so-

cial” nos nossos Bairros não é laica, mas assente nos princípios francamente cristãos

e acompanhada da acção espiritual (sem a qual toda a promoção humana resul-

ta mutilada). Para esse efeito, criou-se o Secretariado Diocesano de Acção Social,

patrocinado com o mais vivo entusiasmo pelo Senhor D. Florentino de Andrade e

Silva. Nele trabalham Assistentes Sociais especializadas, elementos dos Cursos de

Cristandade, da A.C. e de outros organismos. É obra de leigos católicos, embora sob

a orientação de sacerdotes competentes, incumbidos da parte religiosa e moral.

Por enquanto, o Secretariado ainda dispõe somente da Obra dos Bairros (e já não é

pouco!), mas novas secções surgirão oportunamente. Devemos acrescentar que a

Exmª Câmara facilita e auxilia a prestantíssima tarefa.

UM PARADIGMA: O BAIRRO DO CERCO DO PORTO – Por motivos vários,

sobretudo por causa da distância que o separa dos centros religiosos, o Bairro do

Cerco do Porto foi o primeiro a beneficiar mais amplamente da benemérita Obra.

Eis como a Assistente Social D. Maria Augusta, em serviço na equipa daquela zona,

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expôs no jornalzinho “Vontade” (já existe um porta-voz do Bairro!) o modo de fun-

cionamento da instituição local. Note-se que, em outras zonas residenciais estão a

esboçar-se iniciativas mais ou menos análogas à que passamos a descrever. Todo o

trabalho está coordenado por uma equipa de acção, constituída por um sacerdote,

Rev. Pe. João, uma assistente social e leigos.

Conforme se auscultavam as necessidades das populações, assim se cria-

vam várias comissões de trabalho, como as que seguem:

- Comissão para a instalação de telefone e marco de correio.

- Comissão de Missa e Catequese.

- Comissão para a instalação de um mercado.

- Comissão para um posto de enfermagem e creche.

- Comissão para o estudo e obtenção de transportes, e ainda uma comissão

de fundo de auxílio, esta com características inovadoras e com o objectivo de sub-

vencionar as famílias que por um equilíbrio orçamental não culpável e aprovado,

não puderem pagar o aluguer da casa que habitam. Esta comissão funciona com

um carácter mutualista em que os interessados neste benefício devem contribuir

mensalmente com uma certa quantia, reservando-se-lhes o direito de ser subven-

cionado nos casos em que o auxílio deva ser dado. Assim o benefício é-o por um

direito e não por um acto de caridade, o que é muito mais deprimente.

Todo este desenvolvimento comunitário tem como características primor-

diais as seguintes:

- Todo o trabalho é feito pela própria população e da sua responsabilidade,

com a devida ajuda de animadores estranhos ao bairro e a coordenação de um

sacerdote e duma assistente social.

- Todo o trabalho é baseado nas actividades da população e enquadrado

nas estruturas já existentes.

Como começaram os trabalhos das comissões e qual o seu futuro?

Foram convidadas todas as famílias a assistirem a reuniões preparatórias e a

exporem os problemas da comunidade. À medida que se apuravam as necessidades

mais importantes, assim se criaram comissões para cada grupo de necessidades seme-

lhantes. Cada comissão é assistida dum animador, um leigo exterior à população e que

poderá mais tarde desligar-se dela por o seu trabalho ter sido concluído ou por auto-

suficiência da própria comissão. Surgiram assim as comissões que nós referimos atrás.

São estes os magníficos e fecundos trabalhos que actualmente decorrem

no populoso Bairro do Cerco do Porto. (A Voz do Pastor, 17 de Outubro de 1964)

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2ª. - OBRAS SOCIAIS NO BAIRRO DO CERCO DO PORTOA Obra Diocesana de Acção Social nos Bairros do Porto continua a desenvol-

ver extraordinária actividade junto dos aglomerados populacionais, designadamen-

te no Cerco, Fonte da Moura, Amial e S. Roque da Lameira. As iniciativas sucedem-

se. Há dias, foi inaugurado um Posto de Enfermagem no Bairro do Cerco do Porto,

graças ao magnífico trabalho desenvolvido pelo Padre João. Montado nos rés-do-

chão de um dos blocos, este posto, embora modesto já que a obra não conta com

grandes auxílios, além de uma sala de espera tem outras duas, onde são tratados

os doentes. Em princípio, proceder-se-á à aplicação de injecções e pequenos cura-

tivos, estando os serviços de enfermagem a cargo das Irmãzinhas da Assunção. No

domingo, procedeu-se também à inauguração de uma exposição que documenta-

rá o trabalho já efectuado e projectado para o futuro pelo respectivo Centro Social.

Na montagem do certame trabalharam os moradores do Bairro sob a orientação do

Padre João e assistente social. Obra de extraordinário alcance a que está a ser pro-

movida nos bairros populares desta cidade, ela bem merece o carinho e o auxílio de

todas as entidades. (A Voz do Pastor, 15 de maio de 1965)

3.ª - OBRA DIOCESANA DE PROMOÇÃO SOCIALO sr. D. Florentino de Andrade e Silva empossou a nova direcção da Obra

Diocesana de Promoção Social na cidade do Porto, composta da seguinte forma:

presidente dr. Vitor Manuel da Silva Capucho; tesoureiro, eng. Alberto Pinto de Re-

sende; secretário dr. Joaquim da Silva Carneiro; vogais, assistente social Maria do

Carmo Matos Graça Bento e dr. Rui Rocha leite.

Esta Obra foi criada em fevereiro de 1964 e os seus estatutos foram aprova-

dos por despacho ministerial de 17 de Abril de 1967, publicado no “Diário do Gover-

no n.º 106, 3ª série de 4/5/67.

Os seus objectivos são os seguintes: promover a valorização social dos

grupos humanos em que exerce a sua actividade, consciencializando-os das suas

potencialidades e levando-os a desenvolvê-las no sentido de dar resposta a algu-

mas das necessidades sentidas na comunidade em que estão integradas, por exº,

os bairros.

Este trabalho é orientado por técnicos, em especial assistentes sociais, e rea-

lizado por elementos do próprio meio.

Actualmente, a Obra exerce a sua acção, nas seguintes zonas: Cerco do Por-

to, S. Roque, Fonte da Moura, Pasteleira, Rainha D. Leonor, Amial, S. João de Deus

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e nos sectores de Educação Infantil, Cultura e tempos livres. (A Voz do Pastor, 25 de

Novembro de 1967)

4ª. - A NOVA CAPELA DO BAIRRO DO CERCO DO PORTO FOI ONTEM ABERTA AO PÚBLICO PELO ADMINISTRADOR APOSTÓLICO

Para os lados de S. Roque da Lameira, entre as freguesias do Bonfim e de

Campanhã, está a desenvolver-se um aglomerado populacional que reúne alguns

milhares de pessoas em sistemas comunitários de bairros.

Nela se integra a comunidade de Nossa Senhora do Calvário, com mais de

duas mil pessoas do Bairro do Cerco do Porto. Nesse ambiente se situa a nova cape-

la ontem aberta ao culto pelo Administrador Apostólico da diocese.

A edificação é distinta de forma rectangular e predisposta já a abranger ain-

da futuras habitações da comunidade. Além da sua especificidade para meio milhar

de fiéis, o templo dispõe ainda do recinto apropriado a sacristia e de um salão para

reuniões catequéticas.

Na obra despenderam-se cerca de quatrocentos contos e nela compartici-

param além dos moradores, a Câmara Municipal e o Ministério das Obras Públicas.

O acto inaugural foi assim um motivo de festa, estando todo o Bairro do

Cerco do Porto engalanado e com tapetes de verdura no centro do ambiente po-

pulacional.

Quando o sr. D. Florentino de Andrade e Silva ali chegou, pelas 10 horas

de ontem, acompanhado do seu fámulo, rev. Cardoso, foi recebido com pétalas de

flores e estralejaram foguetes, dando conta do entusiasmo da população. No adro

da nova Igreja, o administrador apostólico foi recebido pelo respectivo capelão, rev.

João Alves Dias, e pela comissão delegada dos habitantes da comunidade, srs José

Ribeiro da Rocha, Guilherme Saraiva de Castro, Alexandre Augusto Feliciano e An-

tónio Joaquim Relvas. Estavam também presentes o sr. Dr. Nuno Pinheiro Torres,

presidente da Câmara, os vereadores sr. Simões Carneiro e sr.ª D. Maria José Novais;

capitão Falcão, da P.S.P. ; o presidente da Junta da Freguesia de Campanhã, sr. João

Brochado; o rev. Francisco Ribeiro da Silva e os párocos do Bonfim e Campanhã.

Depois de se paramentar na sacristia o sr. D. Florentino de Andrade e Silva procedeu

à bênção da nova capela. O cerimonial foi demorado, começando pelo ritual da as-

persão da água benta pelas paredes exteriores para culminar no próprio salão que

assim ficou transformado em igreja – templo.

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Entretanto um grupo coral misto entoou cânticos que eram transmitidos

para o exterior através de altifalantes.

Terminada a cerimónia da bênção, o rev. D. Florentino de Andrade e Silva ce-

lebrou missa solenizada, abrindo assim ao culto a capela da Comunidade de Nossa

Senhora do Calvário. Acolitaram o administrador apostólico o rev. Ribeiro da Silva e

o pároco do Bonfim. Os cânticos intercalares da cerimónia religiosa foram entoados

pelo coro misto da comunidade e foi ainda um dos seus habitantes que leu o trecho

da Epístola.

Depois do Evangelho de S. Mateus lido pelo rev. Ribeiro da Silva, o sr. D.

Florentino fez uma homilia, falando primeiramente sobre o significado do Dia de

Todos os Santos que considerou essencialmente Dia da Igreja, confrontando-o com

o significado do Dia de Fiéis para, depois, reunir ambos no pensamento da caridade

Cristã. Depois, o administrador apostólico expressou o seu reconhecimento ao pre-

sidente da Câmara Municipal do Porto e ao ministro das Obras Públicas que com a

sua colaboração auxiliaram a edificação daquele templo.

E concluiu felicitando os habitantes da comunidade e o capelão pelo êxito

dos esforços que tornaram possível a abertura ao culto da nova Igreja, caminho

aberto para uma nova paróquia, abrangendo também outros bairros daquele aglo-

merado de São Roque da Lameira. Será, então, precisa uma Igreja paroquial e ela

surgirá com tempo, para trazer mais luz, mais e maior sentido de caridade cristã.

A missa prosseguiu depois no ambiente solenizado, tendo, no momento

próprio, comungado dezenas de fiéis.

As cerimónias terminaram cerca do meio-dia. Quando o sr. D. Florentino de

Andrade e Silva se retirava do bairro, centenas de pessoas dispensaram-lhe calorosa

ovação e o administrador apostólico foi de novo envolvido numa apoteótica manifes-

tação com milhares de pétalas de flores. (Jornal de Notícias, 2 de Novembro de 1966)

5.ª – ERECÇÃO CANÓNICA DA PARÓQUIA DE NOSSA SE-NHORA DO CALVÁRIO

No sector oriental da Cidade do Porto, nas zonas de S. Roque da Lameira

e Cerco do Porto, cresceu, da há uns anos a esta parte, um grande núcleo habita-

cional. Por essa razão, e para que a Igreja pudesse estar presente a essa população

nova, o então Administrador Apostólico da Diocese, D. Florentino de Andrade e

Silva, criou, em 1967, uma Paróquia experimental, englobando as duas supra-men-

cionadas zonas, com uma população de cerca de 12 000 pessoas.

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Após seis anos de vida paroquial, em regime experimental, o Senhor Bispo,

D. António Ferreira Gomes, ouvidos todos os interessados, julgou chegada a hora de

proceder à erecção canónica desta Paróquia da Senhora do Calvário. O dia marcado

é amanhã. O Senhor Bispo estará presente.

O programa que assinala o dia da erecção canónica é significativo da vi-

vência eclesial daquela Comunidade: Às 10 horas – na Rua de S. Roque da Lameira,

perto do entroncamento com a Rua do Cerco do Porto, o Senhor Bispo será cum-

primentado pelos elementos das Equipas Paroquiais; Às 10,30 horas – na Sala de

Actos do Centro de Formação Profissional Acelerada, ao Cerco do Porto, o Senhor

Bispo presidirá a uma Eucaristia, concelebrada por todos os Párocos vizinhos; Após

a Missa, o Senhor Bispo, sem qualquer formalidade, cumprimentará toda a Assem-

bleia presente; findo este momento de convívio informal do Bispo da diocese com a

Comunidade paroquial, o Prelado visitará os locais de actuação paroquial, tais como:

Casa do Escutismo, Centro Social, Capelas Paroquiais, Secretaria Paroquial, etc, to-

mando contacto com todo o território paroquial. (Voz Portucalense, 30 de Dezembro

de 1972)

6.ª – O BAIRRO DO CERCO DO PORTOO Bairro do Cerco do Porto foi inaugurado em 1963, meses antes da génese

da “Obra Diocesana de Acção Social nos Bairros da Cidade do Porto”.

Logo em Abril de 1964, a Obra iniciou a sua acção no Bairro do Cerco. D.

Florentino de Andrade e Silva havia entregue a responsabilidade pastoral da zona

do Cerco do Porto ao Padre João Alves Dias que, em meados de 1964, passa a fazer

parte do grupo directivo da Obra. Em 31-12-1966, o citado Prelado concedeu ao

Cerco do Porto o estatuto de “quasi-paróquia” e em 31 -12-1972, D. António Ferreira

Gomes criou formalmente a Paróquia da Senhora do Calvário, com sede na capela

construída no Bairro. Em 26 de Outubro de 1968, foi inaugurado o Centro Social

do Bairro do Cerco do Porto, “ primeiro e modelo duma série de Centros Sociais a

serem implantados nos Bairros Camarários”, por ocasião de uma visita ao Porto do

Presidente da República Almirante Américo Tomás. (Voz Portucalense, 31 de Janeiro

de 2007)

7.ª – BLOCO 12 – ENTRADA 160 – CASA 11 José Augusto Mourão fazia da subtileza um adorno da competência e uma

espécie de amortecimento da profundidade. Homem de enormes recursos, foi pa-

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dre, professor, poeta, ensaísta. Tem um lugar na história da cultura contemporânea”.

(António Teixeira, JN, 12/05/11)

“Foi músico, poeta, professor, tradutor, investigador. E, além de tudo, frade

dominicano. Homem despojado, olhava para a estética como central na experiên-

cia cristã contemporânea. Vivia entre dois mundos, este homem discreto, tímido:

Estou entre o mundo de Deus e o mundo dos homens – que não há outro. (António

Marujo, Público, 10/5/11)

Que têm estes textos a ver com o título desta crónica?

É que, numa fase determinante da vida, o jovem Mourão viveu nesta casa

do bairro de S. Roque da Lameira, no Porto.

Foi na Páscoa de 1970. O Dr. Albino, de boa e saudosa memória, Reitor do

Seminário Maior do Porto, entrou, muito preocupado, na Obra Diocesana de Pro-

moção Social. E contou que o Bispo de Vila Real, por causa de uma carta que lhe

escreveram a propósito da “procissão do enterro” de Sexta-Feira Santa na cidade de

Vila Real, acabava de expulsar dois excelentes seminaristas, o Domingos, do último,

e o Mourão, do penúltimo ano de Teologia. Só faltavam três meses para terminar o

ano lectivo. Não podiam continuar a viver no seminário, mas ele podia autorizá-los

a frequentar as aulas como alunos externos. A dificuldade era que, sendo de Vila

Real, não tinham, no Porto, onde morar. Só precisavam de uma casa para dormir. E

de uma família de confiança onde, à noite, pudessem ver um pouco de televisão.

Pedia um total sigilo porque não queria conflitos com o bispo de Vila Real e, muito

menos, queria causar problemas ao seu bispo, D. António Ferreira Gomes, recém-

chegado do exílio.

Como a Obra, nesse momento, tinha disponível aquela casa, nela foram vi-

ver. Quando muita comunicação social se compraz em denegrir os bairros sociais,

é bom saber que houve uma casa camarária no caminho de P. Mourão. E ele nunca

mais o esqueceu. Ainda no dia 24 de Setembro último, quarenta anos passados,

quando veio ao Porto fazer a conferência Um entre os outros (À escuta do Outro), o Frei

José Augusto Mourão e o Domingos foram visitar a família onde costumavam ver

televisão. É bem verdade que a gratidão embeleza a alma e espelha a sua nobreza.

Como são insondáveis os caminhos de Deus!...

O P. Tolentino Mendonça disse:Um dia, quando se fizer a história do catolicis-

mo português que nos é agora contemporânea, há-de ver-se, em toda a clareza, que um

dos seus actores magistrais foi, afinal, um frade e poeta, quase clandestino. Chamava-se

José Augusto Mourão. (Voz Portucalense, 11 de maio de 2011)

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8.ª - EM MEMÓRIA DE MANUEL JOAQUIM ALVES DE OLI-VEIRA

No dia 30 de junho, faleceu, em Roma, Manuel Joaquim Alves de Oliveira

que foi sepultado na capela-jazigo do Colégio Português onde, entre outros, jazem

os restos mortais de D. Custódio Alvim, Arcebispo de Lourenço Marques.

Natural de Campo, Valongo, foi aluno brilhante dos seminários do Porto. Or-

denado presbítero em 1959, foi professor no Seminário de Vilar. Em 1960, a Diocese

enviou-o para Roma estudar Direito Canónico na Universidade Gregoriana, onde se

doutorou.

Ainda estudante, colaborou com o Protocolo do Concílio Vaticano II. Foi en-

tão que acompanhou de perto os primeiros tempos de exílio de D. António, como

recorda no livro “Dom António Ferreira Gomes – Bispo do Porto ao Serviço da Liber-

dade”, com o texto “Um Natal com D. António”. Findo o Concílio, a Santa Sé convidou-

-o para a “Academia dos Nobres” onde se formam os Núncios Apostólicos.

Já como diplomata em Taiwan, seguiu a par e passo a Revolução Cultural

Chinesa. Enviado pelo Vaticano para Jerusalém, lidou com a complexa questão pa-

lestiniana. Como secretário da Nunciatura no Peru deparou-se com a problemática

da nascente “Teologia da Libertação”.

Quando se avizinhava a promoção a Núncio Apostólico, Monsenhor Olivei-

ra, após madura reflexão, renunciou a tão promissora carreira diplomática, pedindo

dispensa das “obrigações inerentes ao estado sacerdotal”. Constituiu família e ini-

ciou, então, um novo caminho profissional de excelência como diretor da maior

empresa farmacêutica europeia.

Quando se aposentou, por convite de D. José Policarpo passou a colaborar

na administração do Colégio Português em Roma, onde fez amizade com a maioria

dos bispos portugueses. Como expressão de reconhecimento e amizade, o P. Cor-

deiro, antigo reitor, deu-lhe lugar de honra na sua sagração episcopal em Bragança

e o P. Caldas, atual reitor, visitou-o diariamente no hospital onde, a seu pedido, lhe

ministrou os últimos sacramentos. D. Manuel Clemente, no dia 29 de junho, depois

de ter recebido o pálio das mãos do Santo Padre como novo Arcebispo de Lisboa,

foi vê-lo ao hospital onde veio a falecer no dia seguinte.

Sempre transportou o Porto no seu coração e de tal modo o amava que os

filhos decidiram colocar dentro do seu caixão um símbolo desta sua cidade. Quando

as circunstâncias o permitiam, confessava a sua admiração pelos seus professores

do Porto. Fê-lo no ciclo de conferências com que o Colégio Português assinalou o

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”quinquagésimo aniversário da abertura do Concílio” em que, com o Cardeal Ravasi,

participou: “Ao preparar estas notas, recordei dois dos meus professores de Seminário

do Porto: o padre Luís Faria; o Dr. Xavier Coutinho”, publicado no livro “O Mundo no

Coração da Igreja”. O mesmo sucedeu quando, a pedido do Cardeal Patriarca, veio

falar ao clero de Lisboa.

Nas exéquias, D. Carlos Azevedo, em breves e sentidas palavras, realçou a

sua dedicação à Igreja com uma referência especial ao trabalho no Colégio Portu-

guês e à amizade que o ligava a D. António Ferreira Gomes.

Por sua vez, o seu pároco enalteceu o colaborador, o pai de família, o ho-

mem discreto que “era grande na humildade, na bondade, na simplicidade, na sere-

nidade e na profundidade com que abordava todas as situações”. A presença, entre

outros sacerdotes, do reitor da igreja de Santo António dos Portugueses foi uma

homenagem silenciosa ao homem de cultura que sempre se afirmava como cristão

e português.

A Voz Portucalense apresenta sentidas condolências aos seus familiares,

amigos e condiscípulos. (Voz Portucalense,10 de julho de 2013)

9.ª – UM TEÓLOGO COM CORAÇÃOO texto “Andrés Torres Queiruga homenageado na Universidade e censu-

rado pelo Episcopado espanhol”(VP 25/4/12) apresentava “a sua reflexão teológica,

não como dogmática nem irredutível mas dialógica e nunca agressiva”.

Sem me imiscuir em tensões dialéticas que sempre marcaram a convivência

entre Magistério e Ciência teológica, apresento algumas notas que fundamentam o

título que retirei do prefácio ao livro Creo en Deus Pai. O Deus de Xesús e a autonomía

humana, Vigo, 1986.

- Torres Queiruga nasceu em Aguiño, aldeia piscatória da “Costa da Morte”

galega onde o mar é berço e túmulo. Foi a fidelidade às raízes que o levou a escrever

todos os livros na sua língua materna.

- Em 1970, era ele ainda muito jovem, D. António Ferreira Gomes recebeu-o

em Milhundos. E foi longa a conversa sobre a encarnação do cristianismo na socie-

dade galega e os pontos de convergência com a cultura portuguesa. Nasceu aí uma

admiração mútua. Não foi por acaso que o Dr. Godinho, mais tarde, o convidou para

participar em “Jornadas Teológicas do Clero”.

- Num jantar no Porto, ao ouvir uma senhora dizer “eu só sei dizer que, em

Fátima, me sinto bem, gosto de lá rezar e meditar”, virou-se para o sacerdote que

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estava a pôr em causa as aparições de Fátima e disse-lhe: “Padre F., isto é que é impor-

tante, isto é que é preciso saber ouvir”.

- Quando o Coro Gregoriano do Porto foi cantar a “Misa do Peregrino” a

Santiago, foi ele quem falou com o Deão da Catedral e marcou o almoço no “cam-

pus universitário”. E ainda teve a amabilidade de o acompanhar na Eucaristia e na

refeição.

- Anos atrás, por convite dum movimento de jovens cristãos, deslocou-se,

no seu carro, a Gouveia para orientar um encontro ibérico. Quando, no final, alguém

lhe perguntou se tinham pago pelo menos a gasolina, limitou-se a responder: os

jovens não têm dinheiro para eles, como podem ter para estas coisas…

- Logo que soube da morte dum familiar dum casal amigo, veio visitá-lo ao

Porto. Regressado a casa, escreveu-lhes “ante todo, moitísmas grazas por ter podido

compartir con todos ese día tan intenso, tan humano, tan divino. (…) Espero que a dor

vai cedendo cada vez máis espazo á serneidade, á esperanza e á comuñón”. Na Páscoa

passada, enviou -lhes um email: “nestes días de pascua deséxovos que a luz da resurrec-

ción sexa facho quente e luminoso, pois sei ben que o precisades”.

- “Eu só quero ter a Fé de minha mãe”, respondeu quando lhe perguntaram

como conciliava a sua Fé com a investigação teológica. E os seus pais eram pessoas

simples como simples é o epitáfio que colocou no seu túmulo: xuntiños na terra

xuntiños no ceo.

Foi na “via-sacra” do seu povo e no aconchego cristão da sua família que

ele bebeu a Fé no Deus-Pai/Mãe, o “Abbá” de Jesus, que inspira todo o seu trabalho

teológico.

(Voz Portucalense, 6 de junho de 2012)

10.ª A LEMBRAR JOÃO XXIII“Aconteceu que, inesperadamente, a coragem, o calor humano, o bom humor e

a bondade de João XXIII conquistaram o afeto de todo o mundo católico e a estima dos

não-católicos. (…) Tinha uma fé inabalável em Deus, na presença contínua do Espírito

Santo como guia da Igreja e uma abertura total ao diálogo com todos, sem dilações nem

condições”.

Estas palavras do nosso conterrâneo Manuel Oliveira na palestra inaugural

da “celebração do quinquagésimo aniversário da abertura do Concílio Vaticano II”,

no Colégio Português de Roma, referem-se ao bom Papa João, mas poderiam apli-

car-se ao Papa Francisco. O novo papa tem gestos que me fazem recordar o que,

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na mesma comemoração do Colégio Português, disse monsenhor Crispino Valen-

ziano: “vivemos então o novo Pentecostes”. Para o comprovar, contou dois episódios a

que chamou as “intuições” de João XXIII. O primeiro aconteceu em 11 de setembro

de 1962 em São João de Latrão. “Começou por dizer: daqui a um mês, reunir-nos-e-

mos em Concílio e virão muitos… mas, repentinamente, num salto de pensamento

sem nexo algum, disse: Lumen Christi e todos cantam: Deo gratias. Mas não só Lu-

men Christi, também Deo gratias, lumen ecclesiae. Deo gratias, lumen gentium… O que

estava o papa a dizer? Não havia sintaxe. Tive a impressão clara de que estava a pro-

fetizar. Lumen Christi – lumen ecclesiae – lumen gentium. Depois retomou o discurso,

como se estivesse a sair dum transe”.

O segundo foi em 10 de outubro, na véspera da inauguração do Concílio.

“Monsenhor Capovilla, secretário de João XXIII, conta que, quando surgiu a procis-

são das velas, o papa estava lá e observava tranquilamente. Então, disse-lhe: “San-

tidade, veja o que está na praça” ao que ele respondeu: “Não, não, não. Acabei. Aca-

bou-se.” Depois, levantou-se, foi olhar no outro lado do apartamento que não dava

para a Praça de S. Pedro, mas para o castelo de Sant’Angelo. De repente, abriu a

janela: ”Filhinhos, filhinhos!” E recomeçou novamente este discurso sem sintaxe, um

discurso sem sentido: Estamos. Nesta manhã. Irmão. Eu sou vosso irmão, mas um ir-

mão que também se tornou pai. E verdadeiramente queiramos agradecer… devemos…

mas fraternidade, paternidade e tudo em conjunto. E olhai também para a Lua, nesta

noite, apressou-se… Entre estes dois sem-sentido, percebeu-se para onde o papa

queria levar a Igreja”.

O profeta anuncia novos horizontes de esperança mas nem sempre tem

consciência do alcance das suas palavras e gestos. O Papa João, ao convocar o Con-

cílio, certamente não previu os seus caminhos e o Papa Francisco nunca imaginaria

a repercussão que iriam ter a sua apresentação e a saudação “Irmãos e irmãs, boa noi-

te!”, após ser eleito. São intuições. Que os “ricos” da Igreja e do Mundo não impeçam

esta “passagem do Espírito”... (Voz Portucalense, 8 de maio de 2013)

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UMA PALAVRA FINAL

Ao revisitar o passado, a mente enche-se de nomes e o coração de

amizades e gratidão. E dou graças por todos aqueles que Deus pôs no meu

caminho e deixaram em mim um pouco de si. Estes retalhos de memória não

passam de pequenas centelhas que gravitam em torno da fogueira que muitos

ajudaram a atear.

A vida humana é como uma árvore. Quando é que a árvore é mais árvo-

re? Despida no inverno, em flor na primavera, com frutos no verão? Não. Ela é

o “todo” que se torna presente em cada uma das determinações que vai assu-

mindo ao longo do ano. Assim a nossa vida. Em cada “hoje” eu realizo a síntese

do “ontem” que fui e do “amanhã” que serei. Cada dia que nasce é um dom de

Deus – um Seu presente - onde o passado frutifica e germina o futuro. François

Jacob, prémio Nobel da Medicina em 1965, diz que, ao longo da vida, vamos

moldando uma estátua interior que dá unidade e sentido às nossas ações e que

nos identifica.

Se é verdade que não há vida humana sem passado, também não há vida

plenamente humana sem futuro. Razão tinha quem afirmou “eu sou o que persi-

go”. O homem busca sempre a realização de um sonho. Armando Matteo no seu

livro “A primeira geração incrédula” ao falar dos jovens atuais diz que eles “parece

ter-se detido no limiar de um presente suspenso”. E acrescenta que “É a ausência de

futuro que dá razão a tudo isto, ou seja o pensamento de não ter futuro, de não

poder apostar na fiabilidade do futuro que entrega os jovens aos braços niilistas

do presente”. Com um passado que não cultivam e um futuro que não os motiva,

os jovens, com muitas e felizes exceções, andam à deriva na fugacidade do pre-

sente, sem bússola nem norte.

Assim as instituições. Cada instituição tem uma história que alimenta e

segura as suas raízes. Mas também precisa de ser avivada pelo sonho de novos

projetos que se abram para outros horizontes. Celebrar os 50 anos de uma insti-

tuição, mais do que relembrar uma data e homenagear a sua história, é buscar,

no passado, linhas condutoras que a ajudem a modelar o presente com sentido

e esperança.

Ao celebrarmos as “bodas de ouro” da Obra Diocesana, gostaria de rea-

firmar o espírito que esteve na sua origem. E faço-o com as palavras do Papa

Francisco na sua primeira encíclica “A luz da Fé”. Na fé, dom de Deus e virtude sobre-

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natural por Ele infundida, reconhecemos que um grande Amor nos foi oferecido, que

uma palavra estupenda nos foi dirigida: acolhendo esta Palavra que é Jesus Cristo – Pa-

lavra encarnada - , o Espírito Santo transforma-nos, ilumina o caminho do futuro e faz

crescer em nós as asas da esperança para o percorrermos com alegria. Fé, esperança e

caridade constituem, numa interligação admirável, o dinamismo da vida cristã rumo

à plena comunhão com Deus.

E um voto me assalta o pensamento: Que a Fé, onde a Obra mergulha as raí-

zes, possa alimentar a Esperança de quantos nela trabalham e, com Amor, os ajude

a ver, em cada homem, um irmão. A nós, a memória, a vós o projeto. Que o Espírito

ilumine o futuro da Obra Diocesana! Há sempre caminhos novos por andar. Que

Deus seja louvado no e pelo homem, Sua imagem!

Seja-me permitido terminar esta minha romagem à memória, com uma ho-

menagem a João XXIII que irá ser canonizado em 27 de abril - o “bom Papa João”

que encheu de esperança a nossa juventude. Dele se escreveu Aconteceu que, ines-

peradamente, a coragem, o calor humano, o bom humor e a bondade de João XXIII con-

quistaram o afeto de todo o mundo católico e a estima dos não-católicos. (…) Tinha

uma fé inabalável em Deus, na presença contínua do Espírito Santo como guia da Igreja

e uma abertura total ao diálogo com todos, sem dilações nem condições. Vivemos então

o novo Pentecostes (“Notas de Imprensa” n.º 10).

E faço-o com as palavras da sua magistral encíclica “Mater et Magistra”(15 de

maio de 1961) que dão sentido ao nosso agir em Igreja. “Somos membros de corpo

místico de Cristo, que é a sua Igreja: “Com efeito, o corpo é um e, não obstante,

tem muitos membros, mas todos os membros do corpo, apesar de serem muitos,

formam um só corpo: assim também acontece com Cristo (I Cor 12,12). Convidamos,

com paternal insistência, todos os nossos filhos, do clero e do laicado, a que tomem

profunda consciência de tão grande dignidade e grandeza, pois estão enxertados

em Cristo, como sarmentos: “Eu sou a videira e vós os ramos” (Jo 15,5) e, por esse

motivo, são chamados a viver a sua mesma vida. Todo o trabalho e todas as activi-

dades, mesmo as de carácter temporal, que se exercem em união com Jesus, divi-

no Redentor, se tornam um prolongamento do trabalho de Jesus e dele recebem

virtude redentora: “Aquele que permanece em mim e eu nele, produz muito fruto”

(Jo 15,5). É um trabalho, através do qual não só realizamos a nossa própria perfeição

sobrenatural, mas contribuímos para estender e difundir aos outros os frutos da re-

denção, levedando assim, com o fermento evangélico, a civilização em que vivemos

e trabalhamos”.

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A bondade do Papa João e a doutrina do “Corpo Místico” foram molas im-

pulsionadoras da criação e da ação da Obra Diocesana.

O trabalho social em Igreja é a “escada de Jacob” (Gn 28,12) que, da beleza

do humano, nos eleva à transcendência do divino. E o Deus de Jesus é um mistério

de ternura. Acolhemo-Lo quando prestamos auxílio a quem precisa, como Ele pró-

prio afirmou: Vinde, benditos de meu Pai, tomai posse do reino que vos está preparado

desde a criação do mundo, porque tive fome e me destes de comer. (…) Em verdade vos

declaro: todas as vezes que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, foi a

mim mesmo que o fizestes (Mt 25,31-40).

Já este texto-memória estava no prelo quando o Papa Francisco publicou a

sua primeira Exortação Apostólica “Evangelii gaudium” (24 de novembro de 2013).

Fiquei de tal modo encantado com a delicadeza humana e a vivência evangélica da

sua mensagem que não resisti a transcrever dois pequenos excertos. Começo com

um convite à alegria: A alegria do Evangelho enche o coração e a vida inteira daqueles

que se encontram com Jesus. Com Jesus Cristo, renasce sem cessar a alegria. E finalizo

com um apelo à ternura: A verdadeira fé no Filho de Deus feito carne é inseparável do

dom de si mesmo, da pertença à comunidade, do serviço, da reconciliação com a carne

dos outros. Na Sua encarnação, o Filho de Deus convida-nos à revolução da ternura.

Alegria no serviço e ternura no encontro... que bela chave! E que magnífica

síntese para o que foi, é e será o trabalho da Obra Diocesana.

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Obra Diocesana

NosAlvoresda

João Alves Dias

João

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Nos

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ioce

sana

EPÍLOGODepois desta interessante e importante viagem no tempo, re-

montando à década de sessenta, em que a expectação e o interesse

pela descoberta, pelo conhecimento de uma causa geradora de vanta-

joso fruto, fortalecido há meio século, são alimentados, de forma siste-

mática, cabe finalizar a narrativa com algumas considerações.

“Nos Alvores da Obra Diocesana” assume publicação de mar-

cante valor histórico, social, cultural e afetivo. Mostra como a força da

realização e o poder do empreendedorismo social, materializados na

ajuda ao próximo, se tornam exequíveis, ainda que os requisitos se afi-

gurem complexos e desmotivadores.

Salienta-se em todo o relato a vontade, individual e grupal, con-

sistente e coesa, de seguir em frente, com perseverança e confiança, em

busca do grande objetivo: a solidariedade social, a promoção social e a

quebra das desigualdades, num semear de distintas oportunidades aos

mais desamparados, em sítios fulcrais da cidade do Porto.

Sente-se em toda a descrição o palpitar do acreditar, com fé e

oração, para encontrar a solução, as soluções, não obstante as contrarie-

dades, as vicissitudes, as divergências…

Como se trata de um livro elaborado sob a luz do testemunho

vivo do seu autor, que acompanhou e experienciou, bem de perto e

com muita alma, os multifacetados trâmites da criação da Obra Dio-cesana de Promoção Social, oferece a apetecida autenticidade dos

factos, acontecimentos, vivências ímpares, curiosidades estimulantes,

alusões às realidades da época… numa composição, harmoniosa e feliz,

que conta com a beleza e a profundidade de algumas citações bíblicas,

encontradas com desvelo e perfeição, proporcionando, no seu conjun-

to, espaço para reflexão e introspeção.

Este livro, que termina aqui, traz consigo a intencionalidade de

dar a saber, com ênfase e pormenor, como nasceu a ODPS, a instituição

que escreve, com alegria, abonada história na vida das populações.

Observando a contemporaneidade e colocando o pensamento

há cinquenta anos atrás, tudo era diferente… porém, um ponto comum

ressalta, com agrado – o desejo de fazer o bem, de construir pontes e

edificar a paz. O valor social conseguido até hoje faz sorrir e deleita o

coração.

“Nos Alvores da Obra Diocesana” cumpre bem a sua parte.

Aos homens compete fazer o restante numa continuidade de propósi-

tos sempre prontos a servir e a amar com inteligência e sabedoria.

Américo Ribeiro

João Alves Dias, presbítero casado, licen-

ciado em filosofia e professor aposentado.

Colaborou na criação da Obra Diocesana

de Promoção Social como “sacerdote res-

ponsável”, esteve na génese da paróquia

de Nossa Senhora do Calvário no Porto e

fez parte do primeiro Conselho Presbite-

ral da diocese do Porto. Presidiu aos con-

selhos diretivo e pedagógico da Escola

EB2,3 de Rio Tinto, foi diretor pedagógico

do Colégio D. Duarte e pertenceu à dire-

ção da AEPP. Foi membro da Assembleia

de Freguesia de Campanhã e da Comissão

de Ética do Hospital Joaquim Urbano, pri-

meiro presidente da assembleia geral da

Comissão de Moradores do Bairro do Fal-

cão e fez parte do conselho fiscal da CER-

PORTO e do Internato Juvenil de Campa-

nhã. Participou nas obras “Manuel Álvaro

de Madureira in memoriam”, “Repensar a

Teoloxia, Recuperar o Cristianismo”, “Can-

cro, Vidas em Reconstrução”. É coautor

dos manuais escolares ”Conhecer Portu-

gal- Estudos Sociais”, “Pela História Fora…”,

”Descobrir Portugal…”, “Grande Viagem”.

Escreve na “Voz Portucalense”, semanário

da diocese do Porto, e no “espaço solidá-

rio”, revista da Obra Diocesana. Faz parte

das direções da Fundação Voz Portuca-

lense, do Coro Gregoriano do Porto e do

“Grupo Boa Memória”.

Page 100: João Alves Dias - odps.org.pt · João Alves Dias João Alves Dias Nos Alvores da Obra Diocesana EPÍLOGO Depois desta interessante e importante viagem no tempo, re-montando à década