João de Scatimburgo

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    JOÃO DE SCATIMBURGOQuinto ocupante da Cadeira nº 36, eleito em 21 de novembro de 1991, na sucessão de

    José Guilherme Merquior e recebido em 26 de maio de 1992 pelo Acadêmico MiguelReale. Faleceu em 22 de março de 2013, em Pacaembu (SP), aos 97 anos.

    Cadeira:36

    Posição:5

    Antecedido por:José Guilherme Merquior

    Sucedido por:

    Fernando Henrique CardosoData de nascimento:31 de outubro de 1915

    Naturalidade:Dois Córregos - SPBrasil

    Data d e e leição:21 de novembro de 1991

    Data d e p osse:26 de maio de 1992

    Acadêmico que o recebeu:Miguel Reale

    Data de falecimento:22 de março de 2013

    BIOGRAFIA

    João de Scantimburgo nasceu em Dois Córregos (SP), em 31 de outubro de 1915. Écasado com a condessa Anna Teresa Maria Josena Tekla Edwige Isabella Lubowiecka.Mestre em Economia e Doutor em Filosoa e Ciências Sociais (Política). Foi professor daFundação (universitária) Armando Álvares Penteado e da Universidade Estadual Paulista,UNESP.

    É jornalista, tendo sido diretor dos Diários Associados ( Diário de S. Paulo e Diário daNoite ) em São Paulo e do Correio Paulistano . Fundou e foi presidente da TelevisãoExcelsior (canal 9), posteriormente transferida. É diretor do Diário do Comércio , jornaleconômico-nanceiro, editado em São Paulo, do Digesto Econômico , revista bimestral de

    cultura, e da Revista Brasileira , da Academia Brasileira de Letras.

    http://www.academia.org.br/academicos/jose-guilherme-merquiorhttp://www.academia.org.br/academicos/fernando-henrique-cardosohttp://www.academia.org.br/academicos/miguel-realehttp://www.academia.org.br/academicos/fernando-henrique-cardosohttp://www.academia.org.br/academicos/miguel-realehttp://www.academia.org.br/academicos/jose-guilherme-merquior

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    Foi membro do Conselho Curador da Fundação Padre Anchieta – R ádio e Te levisãoEducativa (São Paulo). É membro da diretoria da Fundação Bunge, do Conselho Curador(vitalício) da Fundação Bienal de São Paulo e d a Irmandade da Santa Casa (mesaadministrativa).

    Pertence às s eguintes instituições culturais: Academia Brasileira de Letras; AcademiaPaulista de Letras; Instituto Brasileiro de Filosoa; Sociedade Brasileira de FilósofosCatólicos; Centro Dom Vital; American Catholic Philosophical Association, Washington DC;International Society for Metaphysics, Washington DC e Londres; Societá TomistaInternazionale, Roma; Archives Maurice Blondel, Louvain, Bélgica; Instituto Histórico eGeográco Brasileiro; Instituto Histórico e Geográco de São Paulo; e PEN Clube doBrasil; Academia Portuguesa da História.

    Prêmio (2) José Ermírio de Moraes, do PEN Clube de São Paulo; Prêmio AlfredJurzikowski, da ABL. Diploma e medalha Oscar Nobling, da Sociedade Brasileira deLíngua e Literatura.

    BIBLIOGRAFIA O Destino da América Latina – A Democracia na América Latina. São Paulo: Cia.

    Editora Nacional, 1966.A Crise da República Presidencial. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1969. 2.ª ed.revista e atualizada, com o subtítulo De Deodoro a Fernando Henrique Cardoso. SãoPaulo: LTr, 2000.

    A Extensão Humana – Introdução à Filosoa da Técnica. São Paulo: Cia. Editora Nacionale Editora da Universidade de São Paulo.Tratado Geral do Brasil. São Paulo: Cia. Editora Nacional e Editora da Universidade deSão Paulo. 2.ª ed., Livraria Pioneira Editora, 1978. 3.ª ed., São Paulo: LTr, 1998.José Ermírio de Moraes – O Homem e a Obra. São Paulo: Cia. Editora Nacional. 2.ª ed.,Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1975.Ilusões e Desilusões do Desenvolvimento. São Paulo: Editora Comercial, 1976.Concepção Cristocêntrica da História. São Paulo: Editora LTr, 1977.O Problema do Destino Humano, segundo a losoa de Maurice Blondel. São Paulo:

    Editora Convívio.O Café e o Desenvolvimento do Brasil. São Paulo: Cia. Melhoramentos Editora, 1977.O Poder Moderador – História e Teoria. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1978.Interpretação de Camões – À luz de Santo Tomás de Aquino. São Paulo: Cia.Melhoramentos e Editora da Universidade de São Paulo, 1979.A Filosoa da Ação – Síntese do Blondelismo. São Paulo: Editora Digesto Econômico,1980.O Segredo Japonês. São Paulo: Instituto Brasileiro de Altos Estudos – IBRAE, 1983.Os paulistas – E volução Social, Política e Econômica do Povo Paulista. Imprensa Ocial do

    Estado de São Paulo (Coleção Paulística), 1984. 2.ª ed., São Paulo: LTr, 2000.Gastão Vidigal e Seu Tempo. São Paulo: Fundação Gastão Vidigal, 1985.

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    O Brasil e a Revolução Francesa. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1989.O Drama Religioso de Rui Barbosa. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa.Memórias da Pensão Humaitá (crônica de reminiscências). São Paulo: Cia. EditoraNacional, 1992.

    No Limiar de Novo Humanismo. Rio de Janeiro: ABL, 1994. (Coleção Afrânio Peixoto, vol.22.)Eça de Queiroz e a Tradição. São Paulo: Editora Siciliano, 1995.História do Liberalismo no Brasil. São Paulo: Editora LTr, 1996.Introdução à Filosoa de Maurice Blondel. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosoa/FAAP,1995. 2.ª ed., 1997.A Empresa Moderna no Brasil. São Paulo: Digesto Econômico.Camões e o A verroísmo. Tese apresentada no Congresso de Estudos Camonianos. SãoPaulo, 1997.

    Galeria de Retratos. Rio de Janeiro: ABL, 1998. (Coleção Afrânio Peixoto, vol. 41.)O Mal na História: os Totalitarismos do Século XX. São Paulo: LTr, 1999. Traduçãoespanhola, Madri: Editora BAC, 2004.Amanhã, o Ano 2000. São Paulo: LTr, 1999.A Crise da República Presidencial, do Marechal Deodoro a Fernando Henrique Cardoso.São Paulo: Editora LTr, 2000.A Extensão Humana – Introdução à Filosoa da Técnica. São Paulo: Editora LTr, 2000.Os Olivais do Crepúsculo. Romance. São Paulo: Editora LTr, 2000.A Empresa Moderna no Brasil. São Paulo: Editora LTr, 2001.

    DISCURSO DE POSSE

    Recebi, com emoção, a honra de ser eleito para a Academia. Vindo a ocupar uma Cadeiranesta ilustre Casa, participarei da linhagem dos confrades que nos precederam e dos quenos vão suceder, para cumprir sempre a m issão da Academia na co nservação eenriquecimento da Língua, na guarda dos tesouros da criação literária. Quando elegeis umnovo acadêmico, vós lhe estais lembrando que a honra se acompanha da obrigação decorresponder à escolha. Não se chega sem deveres a esta altura. Tantos títulos ornaramos acadêmicos arrebatados pela morte e o rnam os presentes, que não sei como meacomodar em sua companhia. Suponho que reconhecestes, elegendo-me, a minhacontribuição às Letras Históricas, Políticas e Filosócas, especialmente a um gêneroliterário, o Jornalismo, cuja prática me tomou a vida inteira. A Academia assenta sobreuma espécie de sistema não escrito, admitido, aceito, com seu código de preferências edecisões. O ritual das campanhas, os compromissos, as escolhas, esse mecanismo dosistema é sutil e complexo. Quem não lhe descobrir as combinações, para o abrir, nãoconseguirá vir a sentar-se no santo dos santos das Letras, a Instituição Acadêmica, estailustre Companhia. Sei que há exceções nessa conguração, demasiado sumária, dosistema acadêmico. Mas, na sua composição, esse é o q uadro. Submete-se ao t empo o

    estranho ritual, exatamente como ensina o Eclesiastes. Há tempo para semear e tempopara colher. É preciso conhecer as épocas, as estações acadêmicas, das quais os

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    membros desta Casa conservam o sigilo. Cumpri o ritual, aceitando as suaspeculiaridades. Fui recompensado, aqui estou. Meus agradecimentos, senhoresacadêmicos. Ocuparei a Cadeira cujo Patrono é o Poeta Teólo Dias, da qual foi FundadorAfonso Celso, e sucessores, Clementino Fraga, Paulo Carneiro e José GuilhermeMerquior.

    Sobrinho de poeta, e poeta dos maiores da Língua, Teólo Dias admirava o tio, GonçalvesDias, mas, longe de sua terra e de seu meio, deixou-se fascinar pelo Simbolismo, que daFrança conquistava adesões no mundo da inteligência e do lirismo, como ideia nova.Tendo nascido em 8 de novembro de 1854, estava com 32 anos quando o poeta JeanMoreas lançou o manifesto simbolista, embora a nova poesia procedesse de anosanteriores. Sua vida, aventureira no início da mocidade, acabaria sedentária e plácida emSão Paulo. Nasceu em Caxias, no Maranhão, foi, ao que consta, militar, chegando asargento. Mudou-se para Belém do Pará, onde trabalhou no comércio, mas logo desceupara o Rio de Janeiro e, em 1878, com 22 anos, foi para São Paulo, na companhia deFontoura Xavier. Matriculou-se na Faculdade de Direito em 1877. Um ano depois, tomaparte na Batalha do Parnaso e pratica ato importante: casa-se com Gabriela FredericaRibeiro de Andrada, lha de Martim Francisco, o II, seu protetor nos dias da extremapenúria em que vivia. O poeta entrou, portanto, numa das mais importantes famíliaspaulistas. Graças ao apadrinhamento do sogro, foi diretor da Escola Normal e deputadoprovincial de 1885 a 1886, falecendo de parada cardíaca em 29 de março de 1889, com 35anos de idade.

    Simbolista ou parnasiano Teólo Dias? Sílvio Romero e Ronald de Carvalho o incluem

    entre os parnasianos. Péricles Eugênio da Silva Ramos, entre os simbolistas. Quer-meparecer que esta é a classicação acertada. Consoante Silva Ramos, sua “mescla deuidez do ritmo, aliterações e sinestesia” apontam-no para o Simbolismo. Bastam osversos baudelairianos de Cantos Tropicais e Fanfarras para estarmos de acordo com SilvaRamos. A poesia nova, anunciada por Jean Moreas, era a m esma em que versejavaTeólo Dias. Baudelaire, seu ídolo, fora, com Rimbaud, Laforgue e outros, um dosprecursores do movimento. Caracterizavam o Simbolismo, segundo Otto Maria Carpeaux,a musicalidade do verso, o preciosismo da expressão, a suntuosidade verbal, a evasão darealidade comum. Confessando-se poetas da decadência, os simbolistas desencadearamuma revolução na Arte Poética. Cito Baudelaire, o maior deles e um dos maiores em

    qualquer língua. Os simbolistas Cruz e Sousa e Venceslau de Queirós manifestaramanidade com Teólo Dias, chancelando, portanto, sua inclusão na poesia nova. Sonoro mar – a m úsica me envolve,E em éter vasto, sob um teto amargo,De brumas a minha alma, feita ao largo,Para o meu astro pálido se volve. Teólo Dias mostrou-se, em sua época, entusiasta paladino da Ideia Nova, e não só emPoesia. Foi republicano, antimonárquico e antirreligioso. Estava, portanto, distante do

    Parnasianismo, da “torre de marm” da Arte pela Arte. Cataloguemo-lo como simbolista.

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    Affonso Celso de Assis Figueiredo deve ser estudado por sua formação, pelo ambiente noqual nasceu e cresceu, sobretudo por sua fé, vivicada na fonte do catecismo daContrarreforma. Católico do credo e do mandamento, inteiriçamente católico, Afonso Celsotanto se destacou na rmeza da fé, que recebeu do Papa Pio X o título de Conde da SantaSé, numa época e numa idade histórica dominadas pelo laicismo. Se vivia Afonso Celsonum país ca tólico, onde a fé sincera do povo se manifestava, com frequência, nascerimônias católicas, nas missas e procissões, vivia, também, num meio saturado dolaicismo difundido pela França. Não hesito, portanto, em arrolá-lo entre os moralistascatólicos. Seu livro mais conhecido, Porque me Ufano do M eu País , justica a classicaçãoque lhe entendi rotular. Comprometeram-no os termos ufanista, ufanismo. Mas AfonsoCelso pretendeu, apenas, escrever um livro moralmente edicante e patriótico. Dirigido aoslhos, é singelíssimo o seu conteúdo. Noventa anos depois de publicado, está velho, nemo autor o queria sempre novo. Mas direi que se uma nação há necessitada de entusiasmo,essa nação é o Brasil. Povo ciclotímico, o brasileiro deriva, rapidamente, da euforia àdepressão. Onde via tudo róseo, passa a ver tudo negro. Não lhe iriam mal, portanto,algumas injeções de ufanismo, sem dúvida modernizado, de Afonso Celso, homem el aossacramentos, às penitências da Santa Madre Igreja e el, também, à Pátria onde nasceu emorreu.

    Do livro mais conhecido, passamos a outros, alguns estudos e escritos de circunstância,reunião de artigos de jornal, como as respostas ao combativo jornalista Ferreira de Araújo.Acusando a República, usa, em defesa da Monarquia, argumentos válidos ainda hoje.Afonso Celso, que foi republicano na Monarquia, converteu-se ao Antigo Regime logodepois de proclamada a República. Deu explicação de suas atitudes no opúsculo

    “Guerrilhas”. Paradoxal ou não, aderiu aos monarquistas inconformados com o advento daRepública, neste País de f atos consumados, embora a m udança de r egime, em 15 denovembro, tenha sido tão inesperada que, no Passeio Público, onde espairecia, oConselheiro Ayres não se dera conta dos acontecimentos do Campo de Sant’Anna.

    Um dos fundadores da Academia, Afonso Celso foi jornalista, parlamentar, poeta,historiador, ensaísta. Lançando-se a uma empreitada dicílima, a de escrever a biograado próprio pai, teve êxito. No gênero biográco, é modelo. Dá-nos a conhecer,minuciosamente, a vida do Visconde de Ouro Preto, em cujas mãos caiu o Império doBrasil. Contesta Afonso Celso que seu pai tinha sido o último presidente do Conselho de

    Ministros da Monarquia. Saraiva havia aceitado a incumbência de organizar novo gabinete.Mas os acontecimentos s e precipitaram e, historicamente, o 36.º gabinete, o último doImpério, foi presidido pelo Visconde de Ouro Preto. Afonso Celso, dedicado brasileiro,amou sua terra e sua gente.

    Sucedeu a Afonso Celso o médico, professor de Medicina, sanitarista e humanistaClementino Fraga. Sempre me fascinou a Medicina. Em anos longínquos de m inhainfância e adolescência, em pasmada cidade do interior paulista, bem me lembro domédico de família, levando, na visita aos doentes, a valise com os a parelhos de seu ofício.Católico, vi no pecado original, como ensinam os teólogos, contra o pelagianismo, a chave

    do sofrimento. Vivemos época de fé enfraquecida, não obstante a formidável presença doPapa João Paulo II, peregrino de Deus, na vasta cena do mundo, e o seu carisma no

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    convívio com as multidões. Apesar do penoso amortecimento da fé, creio, rmemente, ecom robusta certeza, que o dogma do pecado original explica, teologicamente, a dorhumana sobre a face da Terra. Todos somos herdeiros de uma primeira e maior dor, comosomos beneciários da redenção trazida à Terra por Cristo. Não importa que milhões dehabitantes do mundo não creiam em Deus, na Revelação Cristã e no destino eterno do serhumano. O dogma prescinde de adesões sem o amparo da graça. Numa de suasepístolas, diz São Paulo que o corpo é o receptáculo do espírito. Ensina a Filosoa daEscola que a pessoa humana é hipóstase de corpo e alma ou substância completa, dotadade natureza racional. Seu conceito tem sofrido mudanças profundas. Mas ospaleoescolásticos e o s neoescolásticos retomaram estudos e reexões do passado,demonstrando os fundamentos inalteráveis da Filosoa da pessoa. Os valores espirituaisforam diminuídos, embora toda uma corrente de pensamento tente revitalizá-los,enfrentando, resolutamente, o desao da Ciência e da Técnica, ou do cientismo e dotecnologismo, que, se não forem subordinados à soberania do espírito, nos converterãoem peças de sua g igantesca engrenagem.

    Por mais que a Ciência tenha feito progressos, limitada, ainda, é a sua capacidade pararesolver problemas psíquicos e físicos do ser humano, particularmente a Ciência Médica.Aplicando-se a defender e proteger a vida, a Medicina procura não só curar, como eliminar,ou, quando não lhe for possível, diminuir a dor. Não direi da tantas vezes insuportável dormoral. Essa, a Medicina está capacitada apenas a d isfarçar com os tranquilizantes. Não acura. Direi da dor física, para cujo combate o médico dispõe, e vai dispondo, cada vezmais, de vastos recursos. É a Medicina uma vocação altíssima, na qual só devempermanecer, como aconselha São Paulo, os para ela chamados. Clementino Fraga deixou

    fama de notável médico, de humanista, de cultor das Letras na sua castiça expressão, deser humano dotado de raros atributos morais. O enfermo para Clementino Fraga era o sercriado à imagem e semelhança de Deus. Sabia o médico que a função da Medicina élinimentar a dor e prolongar a vida para a distanciar da morte. Se o nosso itinerário nomundo é balizado de cruzes, cabe à Ciência Médica estender o mais longe possível essesmarcos do caminho da eternidade. Clementino Fraga cumpriu a sua vocação médica eainda lhe acrescentou a de escritor, destacando-se nas Letras com tanto brilho quanto naMedicina. Abstenho-me de mencionar os trabalhos médicos, estritamente prossionais etécnicos, para citar os estudos so bre o bovarismo, raro no Brasil; sobre Antero de Quental,sobre o Humanismo na Medicina, sobre a vocação liberal de Castro Alves, sobre a

    Medicina e os médicos na vida de seu glorioso conterrâneo, Rui Barbosa. Valiosa, emtodos os se ntidos, foi a bagagem literária deixada por Clementino Fraga. É o seu legado,com seu alto nome na Medicina.

    Na segunda quinzena de dezembro de 1955, próximo do Natal, assaltou-me a melancolia.Viúvo recente, sem lhos, nem mesmo o cargo de diretor de jornal me distraía a depressãoque, ameaçadoramente, me sitiava para me assaltar. Percebendo meu estado, umcaríssimo casal de amigos me convidou a passar o Natal e o Ano Novo em sua companhiaem Paris, onde possuía um apartamento. Aceitei o convite. O avião que me levou nãopôde, no entanto, pousar em Paris. Uma greve paralisara o aeroporto de Orly. Fomos, os

    passageiros, desviados para a alternativa de Bruxelas. Telefonei da capital belga aos meusamigos, avisando-os que chegaria de trem. Foram à estação me esperar. Quando

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    desembarquei, estava com eles, na plataforma, um desconhecido. Para mimdesconhecido. Após os cum primentos, a apresentação do desconhecido. Era PauloCarneiro. Assim começou a nossa amizade, no remoto inverno de 1955. Durante os diasque passei em Paris, encontramo-nos várias vezes, e depois, sucessivamente, sempre queeu ia à França, procurava avistar-me com o erudito amigo, mantendo, então, com ele,conversa de horas.

    Paulo Carneiro foi um espírito jovial, dotado de excelente humour . Por ter vivido muitosanos em Paris, tornou-se autêntico parigot . Era gourmet exigentíssimo. Lembro-me dealmoços e jantares com ele, da escolha dos pratos e dos diálogos com o sommelier sobrea appelation e o millèsime na escolha dos vinhos. Paulo Carneiro não dispunha derecursos pecuniários para manter trem de vida farto, mas era um dalgo, um grão-senhornos convites. Esse o l ado mundano, ameno, da vida de nosso saudoso predecessor. Outrolado deve colocá-lo entre os grandes brasileiros de seu tempo: o cientista, o lósofo, ohumanista. Engenheiro químico, especializou-se no estudo e aplicações do curare, venenoterrível dos índios da Amazônia. Deveulhe a Medicina o princípio ativo e o alcaloide, parauso terapêutico. No Instituto Pasteur, de Paris, Paulo Carneiro rmou reputação cientíca.Era respeitado pelo corpo de pesquisadores daquela instituição. Em todos os cargos queocupou, Paulo Carneiro sobressaiu-se pela Cultura, pelos predicados de sua belainteligência, pelo zelo que punha nas obras a realizar e no dever a cumprir. Num de nossos

    jantares, falou com paixão dos monumentos egípcios da Núbia, cuja salvação estava sobsua responsabilidade. A barragem de Assuam os submergeria. Impunha-se impedir essescrimes contra a Arte e o registro histórico. Paulo Carneiro presidiu a comissão daUNESCO, designada para essa missão; os recursos auíram, a tecnologia foi acionada, e

    os monumentos foram salvos. Paulo Carneiro já foi louvado pelo meu ilustre antecessor.Lembro aqui fatos aos quais quei ligado pelo acaso e o convívio. Em nosso último jantar,em Paris, prolongamos a estada à m esa, dialogando sobre tema losóco. Ele, delíssimoao pensamento de Auguste Comte; eu, liado à patrística, à escolástica e seusprolongamentos. Mas nosso diálogo não poderia ter sido mais agradável, nem maisexemplar. Deixou bem nítidas as duas posições. Para os lósofos, não há corrente depensamento, da qual discordamos, que não contenha uma parcela de verdade. SegundoPaulo Carneiro, a humanidade entrou no estado positivo, marcado pela era tecnológica.Para o positivista, foram superados os estados teológico e metafísico, e, na realidade doantiteísmo contemporâneo, cada vez mais extenso, com a anunciada morte de Deus, a

    humanidade é o grande ser submetido à lei do progresso. Argumentei que o ser humano énaturalmente atraído para a divindade, nutrido de metafísica, e a humanidade, segundoComte, uma cção. Argumentei, ainda, que para mim, católico, o positivismo traduz-se poruma tomada de posição metafísica. Insisti que não devemos reconhecer valorcomprovadamente histórico na lei dos três estados, embora concorde com a inegávelrealidade da conquista da Terra pela Ciência e a Tecnologia. Saímos tarde, cada qual comsua posição losóca. Deixou-me no hotel, quando nos despedimos, como sempre,cordialmente. No dia seguinte, parti para o Sul da França. Não mais o revi. Lembro-mecom saudade do caro amigo.

    Pela boca do profeta Isaías, diz o S enhor: “Os meus pensamentos não são os vossospensamentos; nem os meus caminhos são os vossos caminhos.” Deus somente decide o

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    nosso destino, sem que nada saibamos sobre o futuro, ainda que a Ciência tenha reduzidoem muito a margem do acaso na vida. Ninguém possui a chave da incógnita da morte. Umdos grandes lósofos deste século, e lósofo católico, Maurice Blondel, incluiu no seuestudo La Pensée um capítulo sobre a metafísica da morte. Segundo o lósofo de Aix,“nenhum estudo aprofundado se elaborou, do ponto de vista losóco, sobre a m orte, nãoobstante a sua realidade em nosso quotidiano”. Diante do mistério da morte, somosimpotentes para decifrá-la. Na sua sabedoria, ensina a Igreja a pensarmos na morte e naressurreição. É essa, mesmo, segundo Chateaubriand, no Le Génie d u Christianisme , aúnica licença, para a quebra do silêncio regular, concedida aos monges trapistas deMortagne. O homem não ignora, medita Heidegger, que vai para a morte. Filósofo daangústia, para Heidegger, o ser humano não sabe o q ue o espera depois da m orte. Paraos que têm fé, espera-os a ressurreição. Os místicos cristãos veem, mesmo na morte, aarmação da vida. Para os que não a têm, espera-os o nada, losocamente insustentável.Humildes, convençamo-nos dos imperscrutáveis segredos da Providência.

    Por que Deus Nosso Senhor – e falo como homem de fé – chamou tão cedo JoséGuilherme Merquior? No prefácio de seu último livro, Roberto Campos faz a mesmareexão: “A partida de José Guilherme Merquior, aos 49 anos, no apogeu da produtividade,parece um cruel desperdício. Deus faz dessas coisas. Fabrica gênios e depois quebra omolde.” Maurice Blondel considera a morte impensável. Não entro no amplo recinto ondecaberia debater a morte como m e como ressurreição. Aceitemos não serem ospensamentos de Deus os nossos pensamentos, nem os seus caminhos os nossoscaminhos. Lamentemos que a morte tenha levado José Guilherme Merquior quando o

    jovem pensador se encontrava na plenitude de seu talento e muito poderíamos esperar de

    sua inteligência fulgurante, de sua riquíssima produção cultural, de seus estudos so bre osproblemas do nosso t empo. Rendo homenagem ao meu predecessor. Considero um privilégio fazer o elogio de mortogalardoado de tantos méritos. Não conheci pessoalmente José Guilherme Merquior. Nuncanos encontramos. Nunca trocamos palavras. É provável que, em diálogo, divergíssemos, edivergiríamos em teses das m uitas que nos preocuparam e sempre me preocupam. Mas éirrelevante cogitá-lo. José Guilherme Merquior foi devorado pela curiosidade, que, comodizia, saborosamente, Eça de Queirós, nuns leva a descobrir a América e noutros a olharpelo buraco da fechadura. Merquior era da raça dos primeiros. Descobriu continentes. Ou

    os explorou com a ferramenta da sua inteligência. José Guilherme Merquior, carioca de nascimento, foi diplomata, polemista, ensaísta, críticoliterário, crítico cultural, numa palavra, polígrafo. A Diplomacia é uma vocação rara, pois odiplomata escolhe exílio voluntário e nele permanece longos anos. Depende a Diplomaciada arte da discrição, do uso comedido e sem ambiguidade das palavras. Escolaaprimorada em longa tradição, no Itamaraty se f ormam os membros da carrière, com talrigor, que nesse meio original consideram-no tão perfeito quanto o Foreign Office, o Quaid’Orsay e o State Department. Na Literatura, foram, não pouco, satirizados os diplomatas.Quem leu Proust lembra-se do Marquês de Norpois. Mas a Diplomacia é uma prossão

    seriíssima, especialmente no mundo contemporâneo, onde os problemas e as questõesinternacionais s ão cada vez mais complexos. Merquior foi embaixador precoce, pois tudo

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    em sua vida foi precoce. Serviu na Secretaria de Estado, em embaixadas, foi assessor deministros, embaixador do Brasil no México e faleceu como chefe da delegação do Brasil

    junto à UNESCO. Carreira brevíssima, prometida, no entanto, a outras missões, onde seusdotes culturais e o tirocínio de sua prossão se zessem necessários. Em Londres, Bonn,México, Paris, deixou rastro luminoso da vasta soma de conhecimentos que juntou comsofreguidão. Diplomata, polemista, ensaísta, crítico literário, crítico cultural. Considero difícil identicar odiplomata e o polemista na mesma pessoa. Sinto a tentação de admitir que sãohomônimos, tão longe da polêmica está a Diplomacia. Mas José Guilherme Merquior foitão ágil e valente polemista quanto, segundo os colegas, perfeito diplomata. Não épolemista quem quer, mas quem pode sê-lo. Usando a velha gura do espadachim, direique o polemista age como esses lutadores aos quais nos habituaram Alexandre Dumas,Edmond Rostand e o cinema de capa-e-espada. Com vivacidade, erudição e coragem,engalnhou-se em debates, agitando o ambiente cultural brasileiro, sempre se impondocom donaire .

    Nesta Academia, faço a imaginação trabalhar e vislumbro e ouço o fantasma do velhoMachado de Assis chamar o jovem Merquior, na Sala das Sessões, pedir-lhe para sentar-se ao seu lado e aconselhá-lo à concha do ouvido – lembrou-o Josué Montello – a não seenvolver em polêmicas de n enhuma espécie, para não colecionar dissabores. Sem faltarcom o respeito ao venerando mestre de tantas obrasprimas, o mestre que tinha horror àcontrovérsia, Merquior continuaria rme na ala dos polemistas. Na Academia, foram elesnumerosos e d estemidos. Lembro, dentre os mortos, Rui Barbosa, com esse notável

    exemplar do gênero, “A esfola da calúnia”; lembro Eduardo Prado, José do Patrocínio,Alcindo Guanabara, Carlos de Laet, Sílvio Romero, Assis Chateaubriand. Vemo-los,impávidos, caçando lugarescomuns, castigando a o usadia dos difamadores, enfrentando aprepotência dos detentores do poder, discordando de conceitos e julgamentos. Merquior foipolemista até os últimos dias de sua curta vida. Ensaísta, suas obras merecem aperenidade das estantes. Não nos deixou obra volumosa em número, mas todos os seu slivros dão o testemunho de uma inteligência superior, de formação característica nosgrandes centros universitários da Europa e dos Estados Unidos. Qualquer assunto de suapena ganhava dimensão autorizada. Era citado e comentado, fosse de sua autoria o artigode jornal, o ensaio de revista ou o livro. Fenômeno raríssimo, Merquior conquistou, sem

    oposição, a famosa República das Letras, na qual ocupou lugar eminente. A Academia oacolheu como um dos valores mais a ltos da intelectualidade brasileira. Editado, traduzido ecomentado nos Estados Unidos, na Europa, na América Ibérica e, evidentemente, noBrasil, era um dos nomes mais conhecidos e respeitados da Cultura Brasileira.

    Mas esse moço, que atropelou a vida, apressadamente, fazendonos lembrar o mito doBriareu, foi escolhido pela morte e partiu aos 49 anos. Com sua presença ativíssima napugna das ideias, provocante como desao, porou em fazer os b rasileiros se atualizarempela informação. Apegam-se, ainda, a ideologias de idade caduca, já sentenciadas à mortepela História, não poucos clérigos nas universidades, nos media , na Política. Contra eles,

    Merquior assestou suas baterias e os bombardeou, abatendo tantos deles e tantos delesferindo mortalmente. Prosseguiu no trabalho que outros, mais velhos, zeram antes, o da

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    introdução do Brasil na esfera da Modernidade, da qual necessitamos, para superar aignorância, vencer a pobreza e erguer a nação ao patamar das mais desenvolvidas. Seutalento, seu patrimônio cultural erigiram-no em crente el no poderio da inteligência e dapalavra pelo êxito de sua ação cultural e a admiração que suscitou. Como os maisconhecidos escritores da Língua Portuguesa, reunidos em antologias, Merquior era donode estilo pessoal na exposição de suas ideias. Escrevia bem. Sua língua tinha, comoqueria Chomsky, aspecto inventivo. Pensador, prestou inestimável e ainda de todoinavaliado serviço ao Brasil. É tal a riqueza de seu pensamento, tão expressiva a massade suas reexões, que devo selecionar-lhe trabalhos dos quais colho a sua dimensão, paracitá-los nos limites protocolares de um discurso acadêmico. Dos ensaios reunidos em Crítica , temos um Merquior de 23 anos a um Merquior de 48anos. Um quarto de século de leituras, de estudos, de pesquisas, de meditação, dematuração, de assimilação, de depuração. Nessa longa parábola, Merquior rmou-secomo analista de ideias dos mais a rgutos e lúcidos intérpretes dos fenômenos a rtísticos,políticos e sociais de nosso tempo. O primeiro ensaio da seleta Crítica , sobre a poética deGonçalves Dias, escrito aos 23 anos, já anuncia o crítico bem instrumentado. Basta-nos asua análise da música da “Canção do Exílio”, onde, nas suas palavras, ressoa, claramente,o motivo da obsessão com a aparência do estribilho, reforçando-se na energia com que sermava o ritmo. Temos aí o sentido da “Canção do Exílio”. No ensaio sobre Machado deAssis, Merquior salientou o schopenhaueriano que concebe a existência como umadesalentadora oscilação entre a dor e o tédio, acrescentando que talvez só Baudelaire secompare ao nosso compatriota, na argúcia com que dene os vários matizes do mal-estarmoral. Sobre Fernando Pessoa, Merquior considera-o um intrépido explorador de novos

    territórios no eixo vital do ego, com o que o poeta se afasta tanto da revolta românticaquanto do mito romântico sem se afastar da dor universal. É uma síntese admirável doenigma chamado Fernando Pessoa. Colocando-se acima e além de modismos, Merquiorfundou-se na losoa de Kant, para quem a Crítica é positiva pelo uso prático da razão. Foiesse o o condutor, a meu ver, da sua crítica, a Crítica Antiformalista, projetada da razão.Seus ensaios, reunidos nesse volume, o consagram como um dos maiores críticos deideias do Brasil contemporâneo. Para ele, a Crítica deve ser independente, julgando,sobretudo, o espírito da obra.

    Em O Elixir do Apocalipse , Merquior obedeceu ao modelo de Walter Benjamin, sopesando

    o valor dos textos literários em função de sua capacidade de iluminar os problemas daCultura Moderna, como se nos apresentam no crepúsculo do século XX. Proclamando-sehumanista, quis o Humanismo com raízes no et hos brasileiro. Daí armar no estudo“Gilberto (Freyre) e depois”: “Não conheço pior forma de colonialismo inconsciente, decriptomasoquismo intelectual que essa triste denegação a priori da racionalidade ao nossoespírito e à nossa cultura – como se a razão fosse um privilégio alheio, um atributo ubíquodo Norte, e não zesse parte da nossa humanidade.”

    Concordo com Miguel Reale quando diz que, em seu itinerário losóco, Merquior se opôsao irracionalismo de Heidegger, cujo pensamento analisou em várias passagens de seus

    ensaios. Em O Marxismo Ocidental , livro que li primeiramente em Inglês, por tê-loencontrado numa livraria da Bannhoffstrasse, de Zurich, Merquior focaliza a classicação

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    de Maurice Merleau-Ponty dentro do rmamento marxista e estuda o corpo de ideias,principalmente losócas, que abarcam a obra de autores tão diversos quanto GeorgLukács, Althusser, Walter Benjamin, Jean-Paul Sartre, Gramsci, Habermas. Procedeo distinguo . Não há um único Marxismo, porém vários. O Marxismo de Lenin e Stalin e oMarxismo Ocidental que, segundo Merquior, nasceu no começo da década de 1920, comoum desao doutrinário ao Marxismo Soviético. O Marxismo Ocidental pinta, segundoMerquior, o movimento como uma espécie liberal ou libertária do Marxismo innitamentemais próximo da visão humanista do jovem Marx do que da sombria política do RealismoSocialista implantado na União Soviética.

    Não vou me alongar. O Marxismo é tributário da Filosoa Imanentista de Hegel, pois oabsoluto imanente o domina, e nesse universo se manteve em suas versões plurais. OImanentismo Marxista, Soviético ou Ocidental, não se abriu para a transcendência, oautêntico Absoluto que enche a faculdade apetitiva do sujeito. Historicamente, pelo seuvazio metafísico, o Marxismo é uma utopia trágica, cuja instauração e realização pagou-secom sangue e lágrimas por milhões de servos do sistema. Insisto que o MarxismoOcidental nada mais tem sido, no seu Humanismo ateu, do que uma promessasoteriológica irrealizável. O temporalismo imanentista não garante a paz na CidadeTerrestre, não desvendando, portanto, a esperança da Cidade Celeste. Merquiorreconhece e acentua que a fase criativa do Marxismo Ocidental parece esgotada,acrescentando que, em conjunto, o Marxismo Ocidental “foi apenas um episódio na longahistória da velha patologia do pensamento ocidental cujo nome é, e continua a ser,irracionalismo”. Livro denso, escrito antes da derrocada do sistema comunista na EuropaOriental, mantém-se na crítica da doutrina. Tenho para mim, no entanto, que continuarão a

    escrever os marxianos e m arxólogos, mas o Marxismo da temporalização redentora, comoo quiseram seus epígonos, esse morreu. O messianismo está enterrado, seja o antigo,soviético, seja o ocidental. Enm, o Marxismo já não empolga e, a rigor, não interessa,senão a alguns acadêmicos da História das ideias. É o que acrescento às reexões deMerquior.

    O estudo sobre Carlos Drummond de Andrade obedece à técnica rigorosa da teseuniversitária, que, submetida à Sorbonne, foi aprovada com distinção. Temos nessa tese overso universo do poeta, desde o lirismo inicial do Modernismo aos últimos poemas, játocados na ironia melancólica da vida no ocaso. Merquior analisa em profundidade a

    poética drummondiana, nas várias fases por que transitou, mais do que evoluiu a suacriação. De “No meio do caminho” ao “José”, do Sentimento do Mundo ao Boitempo , ouniverso drummondiano foi inteiramente estudado, perquirido com fascinante identicaçãode quem lhe assimilou a mensagem. Merquior assinalou a universalidade do poeta,obcecado sempre por suas origens. Para Merquior, Drummond foi o mais importante poetade sua época, classicação altamente louvável em país de grandes poetas. Toda ainquietação de Drummond, repassada de lirismo, tantas vezes de lirismo irônico, não rarode lirismo prosaico, foi estudada no espaço de poética abundantemente múltipla.Em Verso Universo em Drummond , Merquior nos descerra o poeta na sua grandeza, nodenso segredo de onde lhe brotou a inspiração. Na poesia de Drummond, como numa

    concha acústica, reboou a dor do mundo, esse mundo que, se ele se chamasse

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    Raimundo, seria uma rima mas não seria uma solução. A tese de Merquior é denitiva econstitui peça essencial na bibliograa do poeta.

    Merquior dedicou um livro a Michel Foucault, gura central, até a sua morte, em 1984, daFilosoa Francesa desde Sartre. Arguiu-o Merquior de niilista da cátedra. Foucaultprocurou dar fundamento ético-político, acentua Merquior, ao Pós-Estruturalismo. Não ofez. Daí o rótulo de niilista da cátedra que Merquior lhe acolcheta. Em De Praga a ParisMerquior estuda o Estruturalismo, concluindo por armar o diagnóstico crítico da Culturade nosso tempo: A noção de que uma profunda crise cultural é endêmica à modernidade histórica parece tersido aceita de forma ansiosa, mas não propriamente demonstrada, sem dúvida porque,mais frequentemente, os que geralmente a aceitam, os intelectuais humanistas, têm omaior interesse em serem vistos como os médicos da alma de uma civilização enferma. Noentanto, o remédio é necessário, ou a enfermidade é real? Talvez devamos reconsiderartoda a questão. Não pôde fazê-lo. Merquior expõe o Estruturalismo de Lévi-Strauss, um dos maîtres àpenser da França contemporânea. Discípulo do autor de Tristes Trópicos , deu-nos, nesseensaio sobre o mestre, o depoimento de quem lhe conheceu profundamente a obra. Lévi-Strauss, que iniciou carreira universitária em São Paulo e tomou contato no Brasil com asculturas indígenas, é autor consagrado do Estruturalismo.

    Em De P raga a P aris , Merquior procede à ampla análise da obra do mestre, desde logo

    reconhecendo que “avaliar a obra de Lévi-Strauss é tarefa difícil”. Se o Estruturalismoapresenta-se com o caráter de sistema, como acentua Lévi-Strauss, Merquior o estuda sobesse prisma, praticando o método da dissecação. Reconhecendo que Lévi-Straussabarcava a H istória numa percepção ampla, dela tendo, mesmo, uma visão sombria,Merquior arma que o mestre “acende em nossos corações algo de que necessitamosterrivelmente: uma ética goethiana do respeito”. Prosseguindo na análise do Estruturalismoe do Pós-Estruturalismo, estuda o p ensamento de Roland Barthes, outro maître à

    penser da F rança contemporânea. Dedica-lhe quase tanto espaço quanto a Lévi-Strauss .Festejado em seu tempo, Barthes alçou-se a líder cultural, atraindo ao College de Franceondas de entusiastas de seus conceitos, sua prosa e sua percuciente análise dos textos,

    dos fenômenos linguísticos, do Estruturalismo. Para Merquior, Barthes teve papel crucialno Movimento Estruturalista, pois, acentua, foi, por assim dizer, o ocial de ligação entre oEstruturalismo e o Existencialismo; foi, em suma, o modernizador da revolução literáriaantiburguesa. Já em Jacques Derrida, Merquior zurziu o estadulho da crítica impiedosa. Adesconstrução, que teve em Jacques Derrida o seu mais ilustre nome, salienta Merquior,“vem a ser um negócio bastante melancólico – a lúgubre incidência de uma época”. Édifícil, como se vê, avaliar na sua dimensão total a obra riquíssima de Merquior. Daí aminha opção por excertos representativos de seus livros. Na crítica do Estruturalismo e

    Pós-Estruturalismo, reconhece no mestre Lévi-Strauss posição desbravadora em Ciência eum humanista com perfeito conhecimento de todas as culturas, sobretudo a do homem

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    que polui o ambiente. Merquior fala que o relógio da História não pode ser atrasado, aoestudar o eminente mestre, aduzindo que ele se entrega ao jogo de protestar contra oOcidente, derrubar a Modernidade e arrasar o progresso. O estudo de Merquior faz de DePraga a P aris obra de consulta necessária em bibliograa, não só brasileira comoestrangeira, sobre o Estruturalismo em seus vários ramos, inclusive os divergentes.

    Impossibilitado, pois, de analisar extensivamente toda a opulenta obra de Merquior,detenho-me no seu último livro, O Liberalismo – A ntigo e Moderno , antecipado pelo ANatureza do Processo e O Argumento Liberal . Não é o Liberalismo – ou os liberalismos –uma causa nova, mas renovada, com os tônicos restauradores do espírito moderno.Compreendeu-o, admiravelmente, Merquior, transmitindo-nos sua visão com o livro,herdado às Letras como testamento. Dentre os maîtres à p enser que mais inuênciaexerceram no rumo do pensamento mundial, na segunda metade do século, RaymondAron coloca-se em lugar eminente. Foi o maior e mais autorizado pregador do NovoLiberalismo, a quem Merquior dedicou a sua memória Liberalismo – A ntigo e Moderno .Tem variado o conceito de Liberalismo dos séculos passados ou, mais delimitadamente,do século passado a estes últimos dias do milênio. Sua longa história suscita, portanto,uma reavaliação, para integrá-lo no mundo moderno. Não entro no exame do LiberalismoReligioso, por não me caber fazê-lo. A Igreja ainda não mudou a sua posição doutrinária,não obstante o ecumenismo pós-conciliar mostrar-se tolerante a esse respeito, e aencíclica Centesimus Annus , de João Paulo II, já lhe constituir uma preparação. Excluído,pois, o Liberalismo na religião católica, vemos, na sua expressão secular, a doutrina liberalassegurar nas sociedades, quando corretamente praticada, as liberdades fundamentaisque exigem a dignidade da pessoa humana. Esboroaram-se os totalitarismos sob pressão

    do legítimo anseio de liberdade dos povos. Quem acompanha o movimento da História,nestes derradeiros anos do século, vê-se diante da reação da liberdade como forçaincoercível contra todas as formas de opressão. Corporicando-se no Liberalismo político,social e econômico, as liberdades da p essoa humana deram ao poder do Estadoconguração na qual a nota principal é a sua submissão ao império do direito e da lei.Falhas indigitam-se nessa conceituação. Não há negar. Mas o Liberalismo se impôs,embora possamos colocar a questão: “Qual Liberalismo?” Para Georges Burdeau, oLiberalismo é um estado de espírito, um acontecimento histórico como poder político euma losoa política. Todos os se res humanos aspiram à liberdade e lhe dão, mesmo, avida em sacrifício, mas os liberalismos não são iguais.

    Os vocábulos “liberal” e “liberalismo” foram deturpados. Devemos, por isso, tentar restituir-lhes o verdadeiro sentido. Se o Liberalismo político, social, econômico deve ser entendidocomo autonomia da pessoa e participação mínima do Estado no seu processo, cabe aopoder dobrar-se a esse princípio, cumprindo-o rigorosamente, do mesmo passo queprotege nas pessoas as liberdades. Para Merquior, a miragem neoliberal de uma economiasem Estado é, literalmente, uma utopia. Concordamos. Na sociedade plural em queestamos vivendo, o Estado liberal corresponde à diversidade de juízos, opiniões,tendências e posições s ociais, econômicas e políticas. Não se pode, portanto, falar de umaredução liberal a um só conceito, a uma única denição. Devemos, antes, nos conciliar em

    torno do vocábulo “liberalismo”, expurgando-o dos resíduos impuros que se lhe agregaram.Quando concluí a leitura do estudo de Merquior O Liberalismo – A ntigo e Moderno ,

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    convenci-me de que o trabalho, redigido com impressionante massa de argumentos, comrigorosa base losóca, autorizado suporte em autores clássicos da matéria, ainda nãoesgotou o tema. Se o autor não tivesse partido, provavelmente, iria, a meu ver, desenvolvê-lo em outras edições, revistas e a umentadas. Dotado de incomum capacidadesintetizadora, Merquior fez deslar diante de nós, à leitura de seu livro, os a utores queformaram e difundiram a Filosoa Liberal e sua prática, de Locke a Raymond Aron, esteum autêntico sucessor e continuador de Tocqueville, mas com maior ascendência nauniversidade e nos meios de comunicação de nosso tempo. Bobbio, também autor de suapreferência, antigo socialista, opta por um Social-Liberalismo, no fundo uma nuança doLiberalismo, como o devemos entender em nossos dias, quando o Estado tem,denitivamente, participação normativa no processo econômico e social, como admiteMerquior.

    Concluindo seu estudo, Merquior expõe o que chama de inexão nos meados do séculoXIX e desvio no término do mesmo século. Finalmente, nas duas últimas décadasrenasceu o Liberalismo com o liberismo e seus euentes, em economia. A corrente liberalestá formada; foram-lhe soldados os e los rompidos neste século pelos totalitarismos epelas d itaduras. Mas o Liberalismo continua plural. Pode ser salutar, pode desvirtuar-se.Devemos querer o Liberalismo substantivo, embora admitindo-lhe diversidades adjetivas.Na última página de seu substancioso estudo, acentua Merquior que, para algunssociólogos, nossa sociedade parece caracterizada por uma dialética contínua, emboracambiante, entre o crescimento da liberdade e o impacto em direção a uma maiorigualdade, de onde a liberdade parece emergir mais forte do que enfraquecida. OLiberalismo ainda não conquistou o mundo todo, nem mesmo em suas variantes. Como

    não nos devemos lançar em prospecções futuristas, lembremo-nos que o benefício játrazido às nações, onde funcionam as instituições liberais, anima a esperança de que aHistória será fecundada pelas liberdades timbradas com a sua etiqueta.

    Ao lermos e meditarmos as obras de Merquior, impressionados pela riqueza dasdissertações, a multiplicidade das questões examinadas, e, portanto, disputadas, comodiriam os escolásticos; ao indagarmos sobre o seu fundamento losóco, convencemo-nosde que estamos diante de uma Suma da Cultura Moderna, em vias de se formar, nomelhor estilo de suas congêneres do passado, ainda que pontilhada de níssima ironia. Setivesse vivido para completar sua obra, provavelmente nos daria a Suma com as

    grandezas e misérias da Cultura Moderna, neste século XX que termina em estertores decrise da civilização.

    Concordo com Miguel Reale que Merquior se o rientou a partir do Criticismo kantiano, parauma visão concreta da História de Hegel, visão que ele considerava indispensável paraarrancá-la do esquecimento. Foi o Criticismo idealista que Merquior cultivou. Mas o fortepensador brasileiro não se deixou imobilizar no gesso de um sistema. Original na suaWeltanschauung, Merquior enriqueceu a r eexão losóca, trazendo-lhe contribuiçãoprópria. É o signo predominante de sua posição no panorama losóco brasileiro. Nãocou estritamente ligado ao kantismo, nem à visão histórica de Hegel, cujo Historicismo

    não aceitou, como lembra Miguel Reale. Merquior foi um pensador cioso de suaindependência, não obstante, independente ou não, todos, no campo losóco, nos

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    liemos a uma vertente, ainda que sejamos heterodoxos, como não poucos se consideram,nas várias correntes em circulação na galáxia do pensamento. Se vivesse, quer-nosparecer que, ao elaborar o que denominamos Suma da Cultura Moderna, Merquior seinseriria na corrente fenomenológica. Partindo de alguns maîtres à penser para exercer seu clarividente espírito crítico, Merquiorclassicou Marx de agitador de ideias, tributário de Hegel; estudou Freud e a Psicanálise;a teoria de Jung; os existencialistas, as Artes, a Nova Crítica; enm, a maioria dasquestões que interessam à indagação da inteligência foram percucientemente estudadas.Houve quem dele discordasse. Sem dúvida. É o destino dos polemistas e dos debatedoresde ideias. Mas seu espólio é opulento. Tombou, com a sua morte, uma das colunas dainteligência brasileira. Muito ainda teremos de esperar que outra se erga para a substituir.Esse foi o fascinante espírito a quem me coube suceder na Academia.

    Nesta solenidade, para mim entre todas memorável, única em vida, cuja sombra se alongano ocaso, saúda-me um caríssimo amigo de meio século dedicado ao diálogo, àsdiscussões, aos debates sobre questões losócas. Não tem rugas essa amizade, e nãoociamos no mesmo altar do pensamento. O Acadêmico Miguel Reale e eu t emosformação losóca diferente. Mas não importa. Colocamos a Filosoa acima das liações.O Acadêmico Miguel Reale é uma das mais altas expressões da Filosoa do Direito emtodo o mundo. É preciso apelar para a imagem da rosa dos ventos se quisermos ilustrar aprocedência das cartas, das consultas, das indagações que lhe auem à mesa de trabalhode vários países e continentes. Sua teoria tridimensional do Direito é objeto de teses, detemas de congressos, de fonte de interpretação do fato jurídico, nos mais diversos

    institutos universitários e círculos culturais do mundo. Seu salão losóco, pontualmenteaberto em março e en cerrado em novembro, é cenáculo onde, uma vez por mês, um dosfrequentadores profere uma conferência que, em seguida, é debatida. É motivo de alegriaser recebido pelo eminente juslósofo e lósofo.

    Preside esta sessão o meu velho companheiro dos tempos heroicos dos DiáriosAssociados, o Acadêmico Austregésilo de Athayde. Uma grande aventura no planisfério dainformação teve início com Austregésilo de Athayde subindo, em companhia de AssisChateaubriand, as escadas do velho edifício do Centro do Rio de Janeiro. Levavam nobolso magra quantia emprestada por um advogado paulista, nosso predecessor, Alfredo

    Pujol. Compraram O Jornal . Assim nasceram os Diários Associados, cuja história está,ainda, para ser escrita. Admiro nesse bravo lutador o periodista notável, o estilista elegantedo idioma, o esgrimista de ideias, o erudito das Letras Clássicas, o espírito jovem que seretempera, a cada dia, em contato com a realidade, analisada em artigos concisos eprimorosos. Admiro, sobretudo no sólido Presidente desta Casa, o estrênuo idealista dosdireitos humanos. Foi providencial tê-lo nomeado o Governo brasileiro para a Comissãoque, em Paris, iria redigir o mais importante documento do século. Sua capacidade detrabalho assegurou-lhe a responsabilidade na redação nal escorreita, denitiva daDeclaração dos Direitos Humanos, segundo a qual todos partilhamos do mesmo direito, ode sermos iguais a inda que as injustiças deste mundo não tenham sido, infelizmente,

    eliminadas. Dou graças a Deus por ter-me premiado com essa municência de suabondade, a presidência desta sessão pelo Acadêmico Austregésilo de Athayde.

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    Poeta romântico, sensível, Casimiro de Abreu cantou sua terra: Todos cantam sua terra,também vou cantar a minha,nas débeis cordas da lira,hei-de fazê-la rainha. Permiti que eu louve a minha terra paulista. Nesta mesma tribuna, um de nossospredecessores, Alcântara Machado, lançou a expressão que se tornou divisa do antigopatriciado de minha terra: Paulista sou há quatrocentos anos. Não tenho essa ventura. Vieram para o B rasil meus avós p aternos no m do séculopassado com três lhos menores, e meus avós m aternos, no início do século, com duaslhas menores. Paulista sou, portanto, analogicamente, há 90 anos. Mas paulista somostodos quantos nos impregnamos do “espírito bandeirante”, de que falou Gilberto Freyre.Estamos certos, desde os remotos anos da nossa formação histórica, que a obra comum émais completa do que a individual, se a estudarmos à luz da Teoria Holista de Gellner.Todos precisamos de inter-relação e a praticamos num tácito concerto. Longe de mim,animado que sou de sentimento nacional, longe de mim pretender sobrancear São Pauloàs demais províncias da nossa Pátria. Cada uma delas guarda o seu tesouro cívicooriginal, a participação no grande todo. São peças da História de que muito nos

    orgulhamos, pois, nas latitudes tropicais, criamos uma civilização incomparável, por seudesenvolvimento e suas notas humanistas. Venho, no entanto, lembrar a obra épica dospaulistas, como justo preito ao meu povo. Gilberto Freyre, com sua luneta de atentoobservador, traçou o perl admirável do homem do planalto, o empreendedor, o criador deriqueza, o fundador de cidades, o perpétuo bandeirante, impregnado sempre do mesmoespírito que empurrou para os sertões os gr andes nomes do glorioso passado de SãoPaulo. Acentua Gilberto Freyre, com acertado julgamento sociopsicológico, que o quepermanece no bandeirismo do São Paulo étnica e culturalmente plural de hoje é,principalmente, o élan, o motivo, a condição do “espírito bandeirante”. Esse espíritosubsiste no planalto, imbuindo-se de seu uido, constante e forte, quantos vivem e

    trabalham em São Paulo, seja qual for sua origem e procedência. A missão de São Pauloé a de provocar emulação. Os bandeirantes partiram de São Paulo. Os empreendedoreslançaram-se no risco das empresas, sem outro suporte senão o da vontade. As iniciativas,o fermento social, o choque de opiniões, as correntes políticas, o dinamismo cósmico dospaulistas estão vivos, palpitantes, em todos os ramos da atividade humana. São Paulocumpre a sua missão, pois os p aulistas sã o permanentemente tocados pelo espíritoimpalpável que os acompanha no tempo e no espaço, “o espírito bandeirante”, feito decivismo e da glória de criar para a Nação. Esse é São Paulo. Ao encerrar seu formosodiscurso de posse, nesta mesma tribuna, disse o poeta Cassiano Ricardo: “Venho dePiratininga. Só não trago esmeraldas.” Também eu venho de Piratininga. Também eu não

    trago esmeraldas. Mas trago, e aqui a ofereço a vós todos, a minha inabalável fé paulistana grandeza do Brasil.

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    26/5/1992

    DISCURSO DE RECEPÇÃO – MIGUEL REALEDiscurso de recepção por Miguel Reale

    Volvidos quarenta e um anos, meu caro João de Scantimburgo, eis-nos, de novo, à portade uma grande Casa de Cultura. Mas que diferença espantosa! Entrais, agora, para serarmado cavaleiro das Letras Nacionais, recebendo a justo título colar e espada, o quemuito se harmoniza com vosso feitio de monarquista convicto, passando a pertencer aomais alto cenáculo da inteligência brasileira.

    No m da década dos quarenta, ao contrário da serena visão que tendes hoje do passado,o que surgiu à nossa frente era o futuro incerto de três dezenas de jovens amantes dePlatão e de Aristóteles, os quais, atendendo a meu apelo, se dispuseram a travar árduocombate para assegurar ao Brasil o lugar que lhe competia no diálogo das ideiasuniversais. Quanto sorriso maldoso, quantas demonstrações de comiseração tivemos de afrontar,alvejados com a alcunha de “losofantes”, que, com a conança irônica própria da

    juventude, achamos melhor recebê-la para dignicá-la. E tornamo-nos os losofantes deum Brasil irresignado com o melancólico e tradicional papel de admiradores incondicionaisou de simples comentaristas de textos concebidos a lhures. Pode-se dizer que, até então, a Filosoa no Brasil havia sido mais obra de autodidatassolitários, desde o Padre Feijó com seu rústico Cadernos de F ilosoa a té o espiritualismoromântico de Gonçalves de Magalhães, desde o bravio Tobias Barreto, depois catalogadona Escola do Recife, até o ensimesmado Farias Brito. Faltava-nos um diálogo brotado naimanência de nosso próprio viver histórico, sem o qual as nações não alcançammaturidade. O que queríamos era uma instituição na qual os pensadores nacionais pudessem serealizar, cada um segundo seus pendores pessoais, mas unidos todos pelo mesmo idealde correr o risco de não sermos simples destinatários passivos da última verdade trazida

    da Europa pelo último navio.Sem rompermos amarras com a tradição losóca ocidental – o que teria sido estultapetulância –, o que almejávamos era demonstrar, como procurei fundamentar em váriosescritos, que até mesmo no ato de sermos inuenciados havíamos revelado algo da almanacional, em virtude da prioridade conferida a estes e não àqueles outros temasuniversais, em função de nossas circunstâncias. Quereis um exemplo? Muito se fala dainuência dominante do Positivismo no Brasil, mas vai nisso um grande erro. E que há ograve equívoco de confundi-lo com a Filosoa Cientíco-Positiva, que, esta sim, dominou anossa elite pensante, desde o último quartel do século passado até a Primeira Grande

    Guerra, culminando numa cosmovisão ético-evolucionista baseada em um conjunto deideias do mesmo Comte, em sua primeira fase, de Haeckel, de Stuart Mill, de Spencer e

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    tantos outros, com aplausos de homens de letras como Renan, Anatole e Taine. Ora, numPaís marcado pelo dogmatismo da escolástica conimbricence e que não vivera os trêsmomentos da dúvida caracterizadora do espírito moderno – a dúvida metódica deDescartes, a alada de Voltaire e a crítica de Kant –, a Filosoa Cientíco-Positiva exerceuum papel bem diverso do desempenhado na Europa, constituindo, a seu m odo, a nossanecessária e benéca experiência crítica. Por ser, porém, parcial e incipiente, iria provocarnatural reação, cujo m foi superar a autossuciência cientista, abrindo campo a umavisão humanista da Cultura. Não creio sejam extemporâneas tais divagações losócas numa Academia que contou,entre seus mais ilustres membros, pensadores polêmicos e a guerridos como SílvioRomero e Graça Aranha, assim como inteligências serenas, mas não menos convictas,como as de C lóvis Beviláqua, Ivan Lins e Alceu Amoroso Lima. Nem se pode esquecer aFilosoa que lateja no âmago dos escritores do bruxo de Cosme Velho, sempre presenteem qualquer de nossas atividades espirituais. E, aqui, abro um parêntese para lembrarque, hoje em dia, outro bruxo de Cosme Velho também ama a Filosoa... Deixemos, todavia, tais cogitações para as reuniões periódicas do Instituto Brasileiro deFilosoa, que corajosamente ajudastes a fundar e o nde exerceis a s funções de secretárioda Revista Brasileira de Filosoa , cujos 165 fascículos trimestrais, reunindo colaboração depensadores de todas as tendências, constitui, fora de dúvida, o mais precioso acervo dopensamento nacional.

    O que me move a tais lembranças é o propósito de realçar um dos aspectos mais

    simpáticos de vossa personalidade, que é o destemor com que sabeis defender ideiasnovas, afrontando todos os obstáculos, e, em campo oposto, trabalhar por ideias antigasse as julgardes ainda vivas no presente, como seria a que denominais de “democraciacoroada”.

    A rigor, não sei se, como consequência da idade, de uns tempos para cá já não sou capazde distinguir entre o novo e o velho, ao vericar a atualidade de conitos s angrentos pormotivos de religião, de regionalismo ou de diferenças raciais, que julgávamosdenitivamente superados, enquanto se consideram anacrônicos valores como os dopatriotismo e do pundonor público e privado.

    A propósito de patriotismo, jamais tivestes receio de proclamá-lo, cultivando-o mesmo comcerto panache, com certo viés barroco (e ninguém mais do que eu admira o Barroco! queexorna vossas atitudes. Assim se deu quando se tornou obrigatório o estudo de Moral eCivismo em todos os graus de nosso Ensino, e dedicastes atenção especial a uma devossas obras melhores, esse rico e minucioso Tratado Geral do Brasil , graças ao qualdemonstrastes que é através dos valiosos ensinamentos de nossa História e do amor anossos bens culturais que podemos formar jovens conscientes de seus direitos e deveresperante a N ação e não mediante uma fria cartilha com máximas de b om comportamento.Houve, nesse episódio, uma demonstração eloquente de quanto amais resolver os

    problemas da ação à luz dos conhecimentos teóricos.

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    A problemática da ação, prezado João de Scantimburgo, representa, a meu ver, o cerne devosso ser pessoal, o que se manifesta em vossa atividade como jornalista e comunicador,por sinal que ocupando sempre postos de direção, à testa do Diário de São Paulo ,do Correio Paulistano , do Digesto Econômico , da Rádio Bandeirante ou da TelevisãoExcelsior –, bem como em vossos estudos de História e de Filosoa. Nenhuma prossão mais do q ue a de jornalista, máxime se em penhado na observação davida política, exige tão viva correlação entre a teoria e a praxe, pois os acontecimentoscotidianos, no plano do governo ou do parlamento, em sua fuga contraditória e incessante,somente adquirem verdadeiro signicado quando o crítico sabe penetrar em seu sentidoideal, isto é, na ideia que bem ou mal inspira os atos políticos. Quem deu exemploincomparável dessa missão teórico-prática foi o Patrono desta Casa, o nunca assazlembrado Machado de Assis das páginas aliciantes de O Velho Senado , onde oevanescente ganha a força da perenidade criadora. Foi o amor à ação que vos atraiu para o gênero biográco, quer ao retratar de corpo inteiroa gura realizadora do empresário José Ermírio de Moraes, quer ao procurar alterar aimagem de Camões, apresentado tradicionalmente como platônico, quando o consideraisum el seguidor de Santo Tomás. Perdoai-me a divergência, pois para mim o excelsopoeta não é nem tomista nem platônico, mas sim um homem do Renascimento, mas deum Renascimento à maneira lusíada, compondo em unidade inscindível empenhospráticos e exigências ideais, valores da Mitologia e do Cristianismo, graças à forçatransguradora da Arte.

    Por vosso amor à práxis, não é de estranhar que, ao estudar a História do Império noBrasil, vossa atenção tenha sido atraída para o exame do Poder Moderador, em livro quetivestes a gentileza de dedicar-me. É, penso eu, a nossa melhor análise sobre arepercussão das ideias do constitucionalista liberal franco-suíço, Benjamin Constant, nosdomínios do constitucionalismo pátrio, demonstrando que, nas circunstâncias de risco quecercavam a existência de uma Nação recém-libertada e ameaçada de ruinosa dispersão –como a que perdera a América hispânica – a concentração de poderes nas mãos daautoridade monárquica, livre do tumulto das paixões partidárias, era o único modo demanter em equilíbrio tanto o arquipélago das províncias como os três clássicos Poderes doEstado. Soubestes, em suma, pôr em realce a ressonância de uma teoria orleanista, sem

    repercussão em suas terras de origem, mas paradoxalmente ecaz neste lado do Atlântico,o que conrma a tão conhecida lei sobre a heterogeneidade dos ns na tela da História.

    Essa vossa atração pela práxis teve um resultado curioso, enleirando-vos, muito cedo,entre os raros discípulos de Maurice Blondel, autor de um único livro fundamental, cujotítulo diz tudo: L’Action . Como deve ter sido grato ao vosso coração o encontro dessepensador singular que compõe com tanta originalidade os valores da ação e datranscendência! Viestes, assim, conrmar o antigo ensinamento de Fichte de que aFilosoa que se tem depende do homem que se é.

    Permiti que vos diga, brevemente, em que consiste, no meu entender, a originalidade deBlondel, inconformado com o conceito de Deus-motor-imóvel da concepção aristotélica,

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    incompatível com a ideia de criação que é contribuição por excelência da tradição judaico-cristã, a qual importa em amoroso movimento do Criador no sentido da criatura, comofonte de caritas, de amor transcendental. Se Deus é o m absoluto, não pode deixar deser, com efeito, o alvo perene da ação do homem, fundindo-se ação com transcendência.Assim interpreto Blondel, o mais transcendente dos cultores da ação, que tanto vos atrai,concebida, conforme bem o lembrais, como “itinerário para a autêntica plenitude”.

    É sempre a problemática da ação que ainda vos leva a escrever livros dedicados ao“espírito paulista”, ou seja, a interpretar a razão comunitária e pioneira da gentebandeirante, desde os primórdios da colonização até a Semana de Arte Moderna, e essaadmirável integração dos e lementos alienígenas e m sua vida social e política, lado a ladocom paulistas de quatrocentos anos; ou, então, a procurar na cultura do café a razão deser da expansão industrial de São Paulo, sustentando, de maneira original, a tese segundoa qual a cafeicultura teria sido um dos sustentáculos da unidade nacional, como baseeconômica, durante decênios, de nossos quadros institucionais.

    Por m, como era de esperar-se, vossa obra losóca fundamental intitula-se A ExtensãoHumana – Introdução à Filosoa da Técnica , o que quer dizer da ação programadasegundo ditames da razão para a realização de objetivos práticos. Compreendestes quefoi a técnica que converteu o Mundo Moderno em mundo Contemporâneo, graças à suaforça revolucionária e uniformizante, como o notou Heidegger, pois, ao mesmo tempo queestende os poderes do homem, condiciona-o à potencialidade das máquinas. E na rupturatécnica que podemos encontrar a causa maior do desmoronamento do chamado“Socialismo real”, quando os russos se a perceberam que, não obstante o

    pseudocientismo socialista de K. Marx, não era possível haver duas e struturas paralelas econitantes de processo cientíco e econômico. A tecnologia, em suma, dissolveu aideologia socialista, assim como converteu o Capitalismo em Capitalismo Democrático.Ora, em vosso livro, que é de 1970, já apontais os valores positivos e negativos da técnica,não escondendo vossas preocupações.

    Mais não será necessário acrescentar, meu caro João de Scantimburgo, para demonstrarque, sendo, como sois, jornalista, pensador e amante dos estudos políticos e históricos,estais em condição de suceder a José Guilherme Merquior, o Álvares de Azevedo denossa Filosoa, não somente por ter-nos deixado tão cedo, mas também pelas intuições e

    interpretações geniais com que penetrou no âmago de nossa Cultura, descortinando-nosos valores do futuro. Poucas vezes t ive a ventura de conviver mais demoradamente com esse jovemsurpreendente, mas, em nossos encontros fecundos, jamais soube o que mais admirarnele, se a sua prodigiosa erudição, se o acume da inteligência na análise dos maissingulares problemas, sempre com admirável e compreensiva visão do todo. Foi a raraaltitude de seu intelecto, sensível a todas as palpitações da aventura humana, esobranceiro a todos os modismos losócos, artísticos e políticos – de que faziam ruidosapraça os medíocres e os fúteis – que lhe permitiu oferecer com segurança o diagnóstico de

    nossa época, não tendo tido necessidade da derrocada do muro de Berlim para iluminar-nos a rota essencial da História.

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    Polígrafo, como bem o qualicastes, deixa-nos Merquior um acervo de obras cujo sentidoglobal somente poderá ser captado através de reiteradas análises, que porão em realceseus méritos de historiador das ideias; de crítico, ora entusiasta, ora severo, de obrasnacionais e alienígenas; do demolidor corajoso de falsos ídolos, sem jamais deixar deaprontar o que neles pode haver de universalmente valioso, como o fez, por exemplo, aoexaminar as guras de Freud ou de Foucault; do hermeneuta profundo de nossopatrimônio literário, quando revela, como bem poucos o lograram, toda a riqueza de suasensibilidade estética; e, para marcar sua solidariedade com o drama de nossa gente, opesquisador das correntes políticas da mais palpitante atualidade.

    Ao longo de nossa existência, vamos compondo nossos rosários de lembranças – se ixosrolados de nossa existência coloquial – transguradas em contas inspiradas pelo afetofamiliar, ou, então, pelas que a amizade consagra, com outras mais que o convíviointelectual seleciona e projeta no horizonte ideal de nossos propósitos. Merquior foi umadas contas mais preciosas do meu doce e saudoso enleirar de imagens, as quais, anal,acabam se fundindo à luz do amor, da amizade e da admiração espiritual. Ai dos que nãosabem ir confeccionando, para sua alegria interior e a claridade das horas de solidão, ocolar dos personagens mais representativos de sua vida espiritual!

    Fique-nos, pois, a imagem de Merquior como um astro na galáxia de nossas recordaçõesmelhores, e, ao contemplá-lo, renovaremos a emoção de ouvir estrelas sentida pelo poetamaior do Parnasianismo, cujos valores estéticos ele soube isentamente assinalar notempo, por nunca ter subordinado seus juízos críticos à periodicidade das escolas. É noseio das Academias que se apreende o sentido da real eternidade das Letras, não

    obstante o uxo incessante das tendências literárias. É desse sentido de permanênciaestética, como intencionalidade perene de beleza sob innitas formas, que provem a nossatão incompreendida imortalidade, menos do sujeito que ama do que do objeto amado.

    E, agora, Acadêmico João de Scantimburgo, ides registrar vosso nome no Livro-Tomboquase secular desta Casa, para fazer jus ao colar e à espada com que se conclui o ritualdesta cerimônia. Nem sempre se atenta a seu signicado simbólico, que cada uminterpreta a seu modo, mas é preciso esclarecer-lhe a imagem.

    Em verdade, passais a pe rtencer à auriverde Companhia ocialmente reconhecida como

    guardiã da Língua, o solo sagrado da República das Letras, sendo o colar o símbolo dedelidade ao dever do bom combate em prol dos valores do Idioma, donde o singular usoda espada a serviço da Linguagem, o instrumento surpreendente que quanto mais se usatanto mais de aa.

    Com fardão, colar e espada, armado cavaleiro do Idioma de Luís de Camões a F ernandoPessoa, de Castro Alves a Guilherme de Almeida, Cassiano Ricardo e Menotti del Picchia,o trio de ouro de nossa Academia Paulista de Letras, e membros ilustres também daAcademia Mater ,

    Sede bem-vindo!

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    26/5/1992

    Impossibilitado de co mparecer à Academia n a n oite d a p osse, o Acadêmico Miguel Realeindicou seu confrade Acadêmico Josué Montello para saudar, em seu lugar, o Acadêmico

    João de Scantimburgo.

    TEXTOS ESCOLHIDOS

    EXCURSUS FINALIS

    Qual a psicologia do povo brasileiro, de que a política deve ser uma expressão?Apontamos, no curso desta obra, os defeitos, os vícios, os males emanados do sistemapolítico, implantado em 1889. Quem compulsar as coleções dos jornais - e eu o z muitasvezes -, da proclamação da República aos nossos dias, só encontrará críticas aosgovernos, indigitados, pelos autores dos c omentários, dos e ditoriais, como ineptos,desservidos de ecácia, mal amparados na mediocridade mais alarmante. Não é,contumazmente, contra o governo, o brasileiro. Não se assemelha ao espanhol daanedota, mas há uma razão para ser ele preferencialmente da oposição, emboraparadoxalmente situacionista. Dizia Paulo Prado que um dos traços do brasileiro é oadesismo. Procuramos demonstrá-lo nas páginas deste livro. O "barão" de Itararé, oimpagável Aporeli, já gracejava que no Brasil nem só os se los aderem. Uma dasexpressões lugar-comum mais usadas neste país é o "hipoteco solidariedadeincondicional" a quem está no poder, e nada mais lugar-comum do que as "manifestaçõesde apreço", assinalando a ascensão e a s nomeações de pessoas que até à véspe ra nãomereceriam um cumprimento de urbanidade de centenas de aderentes. Todos querem terrazão; todos querem ser atendidos; todos querem ser nomeados para algum cargo; todosse queixam de não ser lembrados; todos, enm, conduzem a vontade no sentido de seusimediatos interesses. É o Brasil. É a psicologia do povo brasileiro. Quem formou e como seformou essa mentalidade? Somos conduzidos por nossas idéias, dizia Maurice Blondel,mais do que as conduzimos, "et c’est de justice, parce qu’elles entrent dans ledeterminisme qu’a choisi la volunté et contribuent à em developper les consequences". Deonde, porém, vieram as nossas idéias? Somos por elas conduzidos, sim, na imensaprocissão nacional, que marcha na história. Mas, quem no-las herdou? optamos,politicamente, pelos candidatos que nos podem ser úteis de alguma forma. Até mesmo omais obscuro dos e leitores - o e leitor da imaginária, modorrenta Itaoca de Monteiro Lobato- dá seu voto em termos do que é útil, seja para sua comodidade no dia da eleição, sejapara formar um elo com o chefe político ou de cabo eleitoral do município onde vota.Quando pretendemos que o voto seja útil, desejamos que o seja por intermédio dascategorias s ociais, ao contrário do partidarismo democrático, que o envolve de utilidadeimediatista. Daí, a crise na qual bracejamos. Pretende João Camillo de Oliveira Tôrres, emcarta que me escreveu - datada do domingo da Santíssima Trindade de 1967 -, que obrasileiro segue, inconscientemente, a losoa de Duns Scot, a inteligência servindo avontade. Para o Doutor Sutil, só a vontade é a causa da volição na vontade. Nihil aliud a

    voluntate est causa totalis volitionis in voluntate. A inuência de Duns S cot na formaçãocultural dos sé culos XIV e XV, segundo Émile Brècher, foi muito grande, embora sua

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    nomeada não tenha igualado a de Santo Agostinho e Santo Tomás. Onde, porém, a meuver, parece acertada a tese de meu amigo correspondente, é se estudarmos o parentescoentre a losoa de Duns Scot e a de Avincena, estabelecido por Etiènne Gilson, para quema marca de voluntarismo, na losoa scotista, emana da inuência muçulmana, porém -acentua - num sentido inverso do que é entendido. "Não é o Deus da religião muçulmanaque sugeriu a Duns Scot reivindicar para o Deus cristão os plenos poderes duma liberdadesem limites, mas o Deus preso à necessidade grega dos lósofos árabes que provocarama reação cristã no pensamento de Duns Scot." Da penetração scotista-muçulmana naEspanha à sua transferência para a América Ibérica, o movimento obedeceu à tendêncianatural na marcha do pensamento. Quem observa o comportamento ibérico verica queele é voluntarista, como já estudei em outra obra - O destino da América Latina -, radicadona vontade, sem ser, embora, a meu ver, antiintelectualista. O conito entre inteligência evontade no Brasil tem causado os maiores transtornos em política. Reconhece o homembrasileiro os erros que se lhe apontam e, no entanto, os segue. Firma-se em convicções,em petições de princípio, em premissas falsas, embora concorde em que deva abandoná-las. Quem estuda, como z, a história política brasileira, vê-se diante desse convite àinterpretação scotista da nossa história. Não é a inteligência que comanda, mas a vontade,à qual ela serve. As mudanças que se vão operando na concepção de vida do homembrasileiro, no seu comportamento, nas suas inclinações, nas suas preferências, nas suasopiniões, nos seus julgamentos, nas suas adesões, não foram, ainda, tão profundas, nemtão extensas, que nos levem a esperar dele outra atitude em face da nossa problemáticapolítica, senão a que procurei estudar neste livro. Embora para o fabulista Trilussa Lalosoa é una scienza con la quale o senza la quale il mondo rimane tal e quale, o homemé animal losóco. O Brasil, a história política brasileira, o comprova, pela inuência que

    um lósofo, desconhecido provavelmente da maioria dos estudiosos brasileiros, exerceu eainda exerce, por efeito de repercussão, nas instituições políticas brasileiras. Comopoderemos operar a reforma da mente do homem brasileiro, é "outra história", que já nãocabe neste livro. Ficará para outro, se Deus mo permitir.

    (A crise da República presidencial, 1969)

    O BRASIL E O FUTURO

    Nunca o futuro esteve tão presente, como em nossa época. Se não tivemos, ainda, umainvasão de marcianos, tivemos, vê-se, uma invasão de profetas, que procuram decifrar ofuturo ou antecipá-lo, com muitas elucubrações. Se devemos, os contemporâneos queainda não perdemos a fé, temer pelo mundo, é porque a mecanização do espírito, adesespiritualização da técnica, a crise do homem, de sua crença das bases de seu amor,de sua angústia diante do insondável mistério, que o traz suspenso em face da imensidãode Deus, serem forças poderosas, sobretudo quando usam os veículos de comunicaçãode massa para difundir o mal.

    Que me conste, foi o lósofo Maurice Blondel o primeiro a usar o vocábulo prospectiva."Pensamento ou característica do pensamento, enquanto orientado no sentido do futuro." 2

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    Seu discípulo, Gaston Berger, lançou-o, porém, em circulação, fora dos limites e streitosdos meios losócos e ele adquiriu logo maioridade e autonomia. Que é, porém, aprospectiva? É a ciência que tem como objeto preparar o futuro, a m de que o homemnão seja deixado ao acaso. Sem se desabrigar do providencialismo, que atuam na história,a prospectiva vale-se da liberdade do homem, para que ele não marche no futuro portateamentos. A prospectiva nos a juda, portanto, a marchar de encontro ao futuro, comrelativa segurança, desde que as leis s uperiores do espírito sejam observadas pelassociedades, inclusive nos períodos de mudança, como este, do após-guerra e da ansiosaexpectativa pelo advento de novos tempos. Vamos, todos nós, entre descompassos,tentando reparar os nossos erros, com a ajuda da prospectiva, que, bem usada, é umaesperança. Pela prospectiva estamos habilitados a estender longos telescópios no vetor dofuturo, se se fundar ela nos s ólidos a licerces do passado.

    Cremos que o nosso projeto humano para as sociedades humanas se i nclina para umsistema político onde as impurezas da história e a cupidez do homem tenham menos pesodo que nas sociedades de grandes desníveis, como a maioria delas, nesta altura doséculo. Cremos que, nessa linha, a fé no Deus uno e trino; a educação proporcionada atodos, o uso dos direitos às liberdades da pessoa, a elevação do padrão de vida dos povospela ampliação da sociedade de consumo, podem libertar o homem e, com ele, a terra. Aera tecnológica está pondo ao alcance das sociedades contemporâneas uma cópia debens com a qual não contaram as sociedades dos séculos anteriores e, mesmo, as deuma parte deste. Não negamos que a miséria campeia, ainda, sobre a face da terra e quesua extinção é tarefa sobre-humana, com os recursos de que dispomos. Mas, pela ciênciada prospectiva, ou pela experiência dos fatos, do processo que têm diante dos olhos, dos

    exemplos e dos oferecimentos da tecnologia, as sociedades contemporâneas já sabemcomo organizar seu futuro e alcançar os mesmos benefícios da civilização e da cultura,dos quais outras gozam.

    Não ignoramos que os oprimidos se r evoltam, que os desesperados, milhões de inocentesque povoam a face da terra, clamam por pão, mas não ignoramos, igualmente, que nãoserá avolumando a caudal da revolução universal que vamos resolver os problemassociais, os problemas humanos, os problemas do homem em face de seu destino. Pararevidar ao desao do século, extinguindo a miséria, elevando o homem, as sociedadescontemporâneas podem tombar no extremo oposto, e divinizar o consumo, como vem na

    sátira de Dunrrematt. O homem é o ser que pede mais, que quer mais do que o material. Acivilização está posta à prova, em nossos dias. Vemo-la agônica, debatendo-se emestertores para sobreviver. Circulam em seu corpo toxinas fatais, como o esquecimento deDeus, o desrespeito à nação, o aviltamento da mulher, e outras. Mas sempre latejam emseu seio forças que podem salvá-la.

    (Tratado geral do Brasil, 1971)

    DISCURSO DE POSSE NA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS

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    Dentre os problemas do mundo, que mais nos preocupam e nos aguilhoam a inteligência,o tempo situa-se num dos primeiros lugares. Se nos debruçarmos sobre ele, tentandoaceitar o seu desao, em breve nos reconhecemos incapazes de sondar-lhe o profundomistério. Estamos no tempo, sabemos que, sicamente, ocupamos um lugar no espaço,enquanto ui o tempo; pelos sentidos e p elo pensamento, percebemos o tempo, a cujadisciplina estamos sujeitos, mas não conseguimos dar-lhe uma denição que nos sa tisfaçae lhe seja adequada. A sua concepção tem variado, através dos séculos. O tempo doTimeu se ajustava às observações dos astrônomos. Para o sublime Platão todas asestrelas eram necessárias à criação do tempo. Já o imenso Aristóteles armava que o sertem diversos aspectos sucessivos, enquanto o tempo se conserva uno. Se consultarmos opensamento dos outros lósofos gregos, neles não encontraremos denições que nosbastem, nem mesmo ao estabelecerem, entre o tempo e a alma, as relações que sópuderam ser aceitas com o advento do Cristianismo, e dos lósofos cristãos.

    O problema é complexo. Que é o t empo? Como se dene o t empo? O tempo prepara aeternidade. Mas a eternidade antecede ao tempo e o sucede. Possuímos a experiência dotempo, e não sabemos deni-lo. Santo Agostinho já dizia, com o peso da sua autoridade:"Se me interrogam sobre o tempo, sei o que ele é; se me questionam, já não sei mais."Tem sido, por isso, a passagem do tempo um dos fundamentos do evolucionismo. Semdúvida, assistimos a mudanças e as sofremos. Neste exato momento os ponteiros dorelógio se movem, e, com eles, o mundo. A vida, as idéias, as teorias, as doutrinas seacrescentam de novas contribuições, ou envelhecem, fenecendo, mesmo, de caduquice.Mas, nem por tudo evoluir, deixamos de ter um eixo, em relação ao qual a evolução não éuniversal; supõe uma referência a um ponto xo, não evolutivo, razão por que

    consideramos indefensável a evolução criadora, segundo Bergson, se a tomarmos, com olósofo, como um bloco maciço.

    Operam-se transformações no m undo, porém, cada ser humano carrega dentro de simesmo a sua história, o seu tempo, em vários estágios, que não se podem universalizarnem integrar-se numa totalidade única. Colocado, pois, o ser humano em face dos se res,no tempo, o Ser supremo reponta com uma realidade imperativa, convencendo-nos de quea evolução, as mudanças, as transformações são m uito menos do que tudo quanto vemose sentimos. Se o destino da pessoa fosse temporalizado, se fosse apenas coextensivo aoespaço, estaria em contradição com os seus constitutivos reais, que se ligam a uma ordem

    universal, de que o tempo e o espaço são tipos e a ntitipos. O horizonte da temporalidadenão é, portanto, recuado pela evolução. O tempo existe; ele nos conduz à eternidade, ousomos conduzidos à eternidade, ultrapassando os seus horizontes.

    A ciência e a técnica, com as suas descobertas, as suas invenções, os seus produtos,concorrem para atroar no homem as raízes do passado, erigindo o presente como um múltimo do seu roteiro na Terra, esse domínio do tempo. Reconhecemos, angustiados, adiculdade em que nos metemos, aventurando-nos pela vasta seara do tempo, onde tudoé incorpóreo. Sentimos o t empo, estamos-lhe sujeitos, sofremos, diariamente, a tirania dashoras; vivemos enquadrados em compromissos, sobretudo no Ocidente e no Sistema

    Ocidental, pois só recentemente os povos médio-orientais, os povos do deserto, dascaravanas sem pressa, vêm começando a aceitar as obrigações, que decorrem da

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    inexorável tirania dos horários. Não é, também, o tempo uma intuição do nosso estadointerior, como queria Kant. Os e quívocos, os e rros, as falsas interpretações dos LivrosSantos; o poder do raciocínio e as indagações, desde os gregos até aos nossos dias, jáenvolveram, e muito, os conceitos do tempo e da eternidade na densa neblina daconfusão. O milenarismo tem repontado em várias idades históricas, no curso dopensamento. Combateu-o Santo Agostinho, indigitando-o nos primeiros Padres da Igreja,os quais chegaram a atribuir à eternidade o caráter temporal, e a formar a imagem de umeterno - tempo. Invadem-nos dúvidas, como se vê, embora a esmagadora maioria dapopulação do mundo, vivendo sujeita ao tempo, não se lhes dê conta, nem delas cogite noseu quotidiano.

    Só terá sentido o tempo se admitirmos a e ternidade. Limitando-se, exclusivamente, aotempo, as losoas da imanência não lhe encontrarão explicações. Daí derivarem - e aquinos referimos ao gênero, - para extrapolações, que abicam na insuciência, como se dácom o realismo crítico, o existencialismo marxista, e as várias formas contemporâneas deracionalismo. Heidegger, em nossos dias, foi um dos maiores representantes dessagenealogia losóca, toda ela aplicada ao pensamento sem nalismo. A sua obra O ser eo tempo, que teve grande inuência nos círculos universitários alemães da década de 30,a década do nazismo, foi elaborada para armar o horizonte denitivo da temporalidade.Prova e comprova, contudo, o mundo presente, que, circunscrevendo-se a um horizontesem abertura, a temporalidade conna o ser no embaraço total. Todas as reexões deHeidegger não vencem o círculo da imanência. Não se explica o ser pela temporalização,mas, pela conjunção do tempo com a eternidade. O "mistério dos seres itinerantes que nóssomos", da bela expressão de Maurice Blondel, é o que deve ser considerado, se

    quisermos enfrentar, para vencê-la, a forte corrente das crises, de que o humanismo ateu éa toxina deletéria da nossa civilização e da nossa cultura.

    A eternidade nos escapa; o tempo é, para nós, uma realidade misteriosa, mas temos deresolver o problema ou procurar resolvê-lo, se quisermos reconhecer um signicado navida. A humanidade verte o suor de erros multisseculares, acumulados em sua história. Ofuturo foi e continua sendo marcado de presságios. Como em todas as épocas da História,no entanto, aqueles que são protagonistas ou comparsas de seus dramas, não percebemclaramente os acontecimentos que se vão encadeando nos elos desta imensa crisemundializada. Enfraquecida em seus rizomas sobrenaturais, pela dissolução da pessoa no

    tempo, a sociedade humana atravessa uma fase histórica, na qual os valores espirituaissão suplantados pelos valores materiais, o innito vai sendo vencido pelo indenido, e oamor perde a imagem de reexo do amor de Deus. O resultado dessa subversão devalores cifra-se em que o homem deste século não descobre um sítio onde possa repousartranqüilo, pois o bem espiritual e o bem social estão minados nas suas bases pelotemporalismo milenar. Sem encontrar, por isso mesmo, o apoio da fé, o ser humano volta-se para a superstição, para os mitos nos quais espera achar, não só justiça, como,também, resposta aos seus anseios de paz. A superstição e o mito são, no entanto,apenas um esforço para captar o Absoluto nos limites da natureza. O progresso contínuo,a soberania da razão, o cientismo, o economismo, o socialismo, a arte subjetiva, a

    autonomia tecnológica, as ditaduras totalitárias, o liberalismo político foram e são

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    superstições alienadoras, insinuadas na consciência do ser humano, dominando-o, aoparecer, irresistivelmente.

    (...)

    (João de Scantimburgo na Academia, 1977)