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Interfaces entre Filosofia e Sociedade João Gilberto Engelmann * engelmannjg@ya hoo.com Por consenso puro de nossa razão, seguiremos o itinerário, no discurso que põe no horizonte a aporética entre Filosofia e Sociedade, e seus possíveis diálogos, por procedimentos sistemáticos, à medida que nos parece possível, no âmbito próprio especulativo. Trabalhar-se-á, em um momento primeiro cada conceito distintamente, tratando, pois, de concilia-los numa etapa posterior da exposição. Ainda, cada aspecto elencado justificar-se-á por movimentos dialéticos internos na proposição de uma unidade genérica razoável. Tanto Filosofia, quanto Sociedade, serão discutidas como complementos não estanques à formação integrada do homem filosófico/cidadão. Nessa perspectiva, dotamos tal escrita, por um apreço especial ao filósofo de Stuttgart, de elementos propriamente desenvolvidos por Hegel, por mais que nossa angariação epistemológica em relação ao autor nos seja limitada e contingente. Ou seja, os prospectos da dialética hegeliana, onde se vê a cooperação entre as partes da tese e antítese na idéia de consolidar uma síntese que represente e conserve as verdades ditas por ambas as partes, serão visíveis ao olhar criterioso. É por tais movimentações do texto, que se pode perceber a interconectividade dos elementos de composição da Filosofia e da Sociedade e suas possibilidades e capacidade de diálogo. Para eventuais frustrações, deixamos explícito nossa limitação de conteúdo, nossa contingência epistêmica, assim como as amarras que * Rua Parobé 384 Vila Cruzeiro, 99070-230 Passo Fundo RS Fone: (054) 3311-8503 Cel. (051) 9612-8863. Instituto Superior de Filosofia Berthier - Rua Senador Pinheiro 304, Vila Rodrigues, 9907-220 Passo Fundo RS. Fone: (054) 3045-3277. Email: [email protected]

Joao Gilberto Engelmann UPF

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Interfaces entre Filosofia e Sociedade

João Gilberto Engelmann*

engelmannjg@ya hoo.com

Por consenso puro de nossa razão, seguiremos o itinerário, no discurso

que põe no horizonte a aporética entre Filosofia e Sociedade, e seus

possíveis diálogos, por procedimentos sistemáticos, à medida que nos

parece possível, no âmbito próprio especulativo. Trabalhar-se-á, em um

momento primeiro cada conceito distintamente, tratando, pois, de

concilia-los numa etapa posterior da exposição. Ainda, cada aspecto

elencado justificar-se-á por movimentos dialéticos internos na proposição

de uma unidade genérica razoável. Tanto Filosofia, quanto Sociedade,

serão discutidas como complementos não estanques à formação integrada

do homem filosófico/cidadão.

Nessa perspectiva, dotamos tal escrita, por um apreço especial ao filósofo

de Stuttgart, de elementos propriamente desenvolvidos por Hegel, por

mais que nossa angariação epistemológica em relação ao autor nos seja

limitada e contingente. Ou seja, os prospectos da dialética hegeliana,

onde se vê a cooperação entre as partes da tese e antítese na idéia de

consolidar uma síntese que represente e conserve as verdades ditas por

ambas as partes, serão visíveis ao olhar criterioso. É por tais

movimentações do texto, que se pode perceber a interconectividade dos

elementos de composição da Filosofia e da Sociedade e suas

possibilidades e capacidade de diálogo.

Para eventuais frustrações, deixamos explícito nossa limitação de

conteúdo, nossa contingência epistêmica, assim como as amarras que

* Rua Parobé 384 Vila Cruzeiro, 99070-230 Passo Fundo RS

Fone: (054) 3311-8503 Cel. (051) 9612-8863.

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Rodrigues, 9907-220 Passo Fundo RS. Fone: (054) 3045-3277. Email:

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possuímos na relação estabelecida. Toda proposta de unidade entre saber

teórico e práxis efetiva são práticas posteriores que se dão de maneira

imediata ou mediatizadas. O seguir da exposição revela seu caráter, por

conta da necessidade, puramente especulativo de elevação do tema à

dimensão noética. Destarte, não se pode direcionar o processo por vieses

ainda desconhecidos. Para tanto, o trabalho de escrita deste não se

norteou por caminhos desconhecidos de quem está adentrando o universo

mais propriamente dito da inteligibilidade. Podemos, à medida do estudo,

debruçarmo-nos somente frente àquilo o qual somos sabedores, por mais

que este saber, ainda, seja relativo e deficiente.

Ainda, a discussão proposta para tal escrito tomará a Filosofia como

dimensão da subjetividade; a Sociedade como o âmbito objetivo e, assim,

uma síntese entre ambas –interface- na perspectiva dialética indicada.

Para além disso, perceberemos a Filosofia como a oportunidade do

racional e como pressuposto da práxis. Consoante a isso, a Sociedade

passará a ser vista como o terreno da formação cultural, justaposto à

dimensão do trabalho. Ao que se chegará, na interface de ambas, é o

caráter intersubjetivo que tal conseqüência comporta, assim como a sua

característica de possível realidade. Para firmação de tais propósitos,

direcionemo-nos à compilação de tal ementa.

Filosofia: a dimensão da subjetividade

De imediato, no vislumbre de tal expositivo, remetemo-nos a

pensamentos que configuram a atividade filosófica na dimensão do

inteligível, do racional, do puro noético. De tudo isso, a ciência filosófica já

acumula críticas por tal interpretação de seus procedimentos. A ela

predica-se, arbitrariamente, uma acusação de que são, os filósofos em

geral, artífices de uma saber puramente formal onde a conciliação para

com a prática dá-se deficiente ou nula. Mais precisamente o senso comum

(não que queiramos depreciar o já depreciado bom senso) formula críticas

que desenham a atitude filosófica como a âmbito puro subjetivo. Para tais,

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o ato de especulação da Filosofia não possui, frente à onda do utilitarismo

vigente, questão melhor abordada posteriormente, o pragmatismo que o

espírito da sociedade atual atribuiu à vida. Para tanto, é bom reiterar

pequenas distorções quanto ao sentido verdadeiro que a subjetividade nos

exige.

Na Filosofia criam-se determinadas contingências, oportunas ao processo

evolutivo do pensamento, que são suprassumidas num estágio mais

próprio e condizente com a História, realidade onde a filosofia se

desenvolve. Assim, o período Moderno, nesta suprassunção das

contingências gregas e medievais, configura-se como passagem do

Teocentrismo ao Antropocentrismo, da Ontologia à Epistemologia e, o

mais propriamente interessante, da objetividade para a subjetividade.

Justaposta aos processos teocêntricos, a racionalidade moderna

suprassume em sua dialética interna o cosmocentrismo, visão grega de

legitimação do cosmos. Ao passo desta movimentação paradigmática, há

a simultânea passagem do ser ao pensamento. A reflexibilidade inteligível

ganha o terreno propício que não suprime o se, mas o remete ao pensar.

Há, em desdobramentos posteriores da filosofia moderna, uma separação

e depois união do ser e do pensar. Por hora, só admite-se a mudança que

focaliza a discussão no pensamento.1 É, pois, a Modernidade a etapa

filosófica que alcançou a dimensão mais fortemente humana dos

processos do conhecimento. É nela que se problematiza a pergunta pelo

ser humano. Surge aí, uma antropologia como o equilíbrio entre os dizeres

metafísicos, razão universal, e éticos, ou terreno da vontade livre; é, pois,

a partir de tais desdobramentos que este equilíbrio antropológico pensa o

ser humano no processo dialético de natureza{N}, sujeito{S} e forma

{F}.

1 Na filosofia kantiana assimila-se por suas obras, um caráter separatista entre ser e pensar. Para Kant, o ser é enquanto pensamento distinto de seus momentos sensíveis. Fenômeno e Nûmeno distinguem duas faces de um mesmo Homem. Já em Hegel ser e pensar são novamente conjugados e postos um em relação imanente um ao outro.

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Detendo-nos mais explicitamente à dimensão da forma, neste

“dialogismo” interno, vislumbra-se a prédica filosófica como exteriorização

desta forma. O homem passa a integrar-se e perceber-se natureza e

sujeito nesse movimento convergente que desemboca na síntese de seu

pensamento expresso na forma. É a forma a dimensão onde a

inteligibilidade é grafada no recôncavo mais longínquo do ser do Homem.

É nessa esfera que afloram os desdobramentos subjetivos que passam a

ser pensados em vista dos demais indivíduos subjetivos que a

racionalidade comporta. Ou seja, todo esse itinerário de perceber-se

subjetivo, empreendido pela Modernidade, só passa a significar uma

verdadeira atitude de reconhecimento do Homem à medida que não o

torna individualista. O cultivo da racionalidade requer, como condição de

validade, a conservação da subjetividade própria em função das demais

subjetividades próprias. É essa aproximação de consciências livres e

percebidas subjetivas que se torna possível pensar uma corporação

organizada que viva bem, neste paradoxo do sobreviver mal. Requer-se,

portanto, como condição de validação da subjetividade como positiva, ter-

se em mente essa exigência de interconexão entre os nexos do âmbito

social.

Ainda, todo o procedimento epistemológico identifica-se tendo no

horizonte do pensamento o sujeito, o objeto e a relação. Ou seja,

estanques, a Psicologia, a Ontologia e a Lógica não conseguem unificar

com propriedade todo o movimento do Homem em busca do

conhecimento. È necessário que estes estágios estejam conexos em vista

da formação integral do ser humano. E remetendo-nos ao campo

psicológico, no vislumbre do sujeito, perceberemos, auxiliados pela

filosofia contemporânea, a insuficiência de pensarmos um sujeito singular,

distinto, do qual, unicamente, parte todo movimento de relações

estabelecidas como o objeto. Voltamos, pois, à questão da subjetividade e

necessidade de uma intersubjetividade. Parece necessário o surgimento

de um sujeito 2 que, a partir do diálogo estabelecido com o sujeito 1,

possa compreender a leva sistemática latente no processo do

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conhecimento. Reitera-se, aqui, a vital e imprescindível conexão das

subjetividades.

Assim, o caráter subjetivo da Filosofia passa a ser encarado legitimamente

como conseqüência positiva da valorização do ser humano. É a filosofia o

espaço onde se volve o olhar na direção mais importante do Homem: a

felicidade consigo mesmo e com o ser-outro, angariado justamente por

essa relação entre realidade objetiva, a sociedade em geral, e sua

realidade interna, ou a subjetividade.

O saber filosófico como pressuposto da práxis

A crítica acima citada em relação à Filosofia ganha, neste momento, um

corpo mais robusto na discussão filosófica. Tendendo mais propriamente

às questões relacionadas à dimensão teorética da ciência filosófica,

perceberemos seu caráter, percebido pelas ciências externas, além do

senso comum, mais compacto no tocar da especulação. É a Filosofia o

terreno dos pensamentos, das idéias, dos discursos que, ao longo da

tradição filosófica, ganharam distintas conceituações. Desde as prédicas

sofistas até o uso concreto da filosofia de Marx, é que se percebe as

contingências históricas que delineiam as múltiplas interpretações da

situação filosófica. A Filosofia em si seguiu um processo linear cronológico

que não abarcou um engessamento dos pensamentos originários do

contexto pré-filosófico. Resultado disso, foram inúmeras filosofias que

sulcaram na História posições e teses merecidamente consideráveis, tendo

ou não relação à prática.

No entanto, toda ação, começando por uma abordagem propedêutica da

Filosofia, requer os raciocínios dispostos no âmbito filosófico. É por

intermédio de tais raciocínios, que todo e qualquer parecer coerente

precisa dotar-se da lógica filosófica. A objetividade só torna-se razoável à

medida que uma teoria lhe precedeu. Os desdobramentos imaginativos

são condições para a posterior exteriorização da idéia. Ou seja, esta idéia

só encontra sua razão de ser no mundo sensível à medida que existiu

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preliminarmente no pensamento, âmbito filosófico. É, pois, a teoria uma

organização da idéia e é a idéia o próprio pensamento.2

Fazendo, pois, um giro em torno da nossa sociedade constituída,

perceberemos explicitamente o cunho propriamente tecnicista que a ação

do sujeito adquiriu. O pensamento praxiológico perde, em dias de

“louvável” utilitarismo, para outra dimensão da ação, aquela que se

percebe intimamente ligada ao objeto. O contexto sulcado por inúmeros

fatores, entre eles a política econômica neoliberal, direciona o olhar

humano para um aperfeiçoamento do objeto, e este em seu caráter

monetário. A relação passa a ser estabelecida unicamente de sujeito para

objeto, contrária à proposição sujeito/sujeito, como imagina a práxis.

Todo vislumbre que se faz do ser humano (sujeito), tem no horizonte da

observação um fim último que é sua produção enquanto força de trabalho

( objeto).3

Chegamos, pois, a uma pergunta norteadora de todo nosso discurso: o

que tem a ver a Filosofia com a ação propriamente dita? Ora, é a Filosofia

o sentimento da inutilidade, na observação de Eduardo Prado de

Mendonça (MENDONÇA, 1984, cap.VI). Segundo o autor, a Filosofia tem

um fim em si mesmo, ou seja, sua finalidade última é estabelecer em si

mesma a dimensão da utilidade. Deste ponto de vista, a Filosofia é

simplesmente inútil. No entanto, o saber filosófico está muito além de tão

trivial constatação. O ethos filosófico é muito mais que apropriar-se da

2 Cabe-nos, aqui, pequena ressalva: caso a racionalidade que atinge o momento destas palavras gera em si o especulado dissenso de que se fala, e no qual a constituição da natureza do pensamento é perpassada pela idéia fixa no teor filosófico de determinado autor, e o qual, ainda, contraria o almejado consenso que identifica a tarefa da Filosofia de propor-se como característica e libertadora, ainda assim mantenho o propósito inicial de apenas direcionar-me pelo sabido, jamais pela alvura do dever-ser do conhecimento.Ora, a suscetibilidade da razão ao externo, e ainda mais no âmbito filosófico, é evidente pela exposição e imposição dos “quem?” e dos “como?” da tradição filosófica. Quantos às críticas de que tão pobre ensaio direciona-se numa perspectiva demasiada hegelina, afirmo-lhes não o ser, pelo simples fato de não ser um sabedor razoável da Filosofia de Hegel. O que se sabe é, por sua vez, contingente e excessivamente pouco, caso admita-se a contrariedade desta expressão. 3 Nesta altura, o ser tomado como objeto pressupõe as relações de trabalho estabelecidas na economia neoliberal.

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tradição e da história e atribuir-se um fim em si mesmo. É para além

disso, perceber-se racional e estabelecer tal faculdade no cuidado e

exercício da práxis cotidiana. Ter me mente a proposição filosófica é

imbuir-se de um espírito de eterna interrogação sem cair-se num

relativismo supremo ou em estado de descrença. Não é a Filosofia o

divagar sobre o absurdo. Pelo contrário, é perceber o absurdo nas suas

mais diversas e sutis formas em que este se configura nas civilizações

atuais. Para o pensamento filosófico, em uma análise contextual atual, o

absurdo são as demasiadas incongruências entre os sujeitos. É irracional à

Filosofia, e/ou não só à ela, conceber uma sociedade deliberadamente

cáustica no âmbito da desigualdade, onde as formulações econômicas

estabelecem paradigmas comportamentais a serem seguidos. Nosso

contexto está marcado pela aparente impossibilidade de se manter

relações intersubjetivas de sujeitos livres. E isso por dois motivos. Este

porque a dimensão da subjetividade, como outrora salientado, perde

espaço para a onda utilitarista que pensa o Homem pelo caráter objetivo

de sua produção; aquele, ocorre pelo simples fato de não possuirmos, em

meio a falaciosos discursos de direito e liberdade, sujeitos plenamente

livres. E mais, tal liberdade, longe de um puro desejo arbitrário, só pode

ser implementada à medida que a consciência dos singulares se veja

responsável pela mudança de determinadas ideologias. Porém, num

contexto de supressão da reflexibilidade, tal reconhecimento vê-se quase

que impossibilitado de efetivação.

Para tal situação, é que a Filosofia apresenta-se como ajuda imediata.

Longe de uma pensamento reducionista de salvação, a reflexão filosófica,

este voltar-se para si mesmo, propõe-se como formulação teórica de uma

posterior prática. Não podemos dotar-nos da ingenuidade típicas das

massas, e ter a ação como resultado da causalidade. Todo o processo da

práxis deve ser engendrado numa dimensão filosófica do pensar a ação,

para que não se caia numa ofensiva infortuna que desmerecerá o sentido

da luta. É a partir da idealização das causas, procedimentos e

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conseqüências é que se pode estabelecer um fundamento sólido e

promissor para uma transformação social.

Assim, a Filosofia percebe-se muito além de pura crítica à práxis social

humana. Constitui-se, além disso, como precessora e orientadora da

efetivação do momento objetivo da razão e das ações coerentes que, a

partir disso, fazem-se possíveis.

Sociedade: a dimensão da objetividade

Não dizemos, por tal proposição, que é a Sociedade o unívoco terreno

onde, soberanamente, reina a objetividade. Esta objetividade é aqui

entendida como a manifestação ou exteriorização se um ser que, em

estágio primeiro, era subjetividade pura. É sim, a idéia manifestando-se

no âmbito objetivo da Natureza. A racionalidade que nos foi merecida traz

consigo a latente contradição de não vigorar eternamente como idéia

pura. Traz dentro se si o desejo de determinar-se frente ao campo

objetivo. É, pois, a Sociedade, em suas organizações políticas,

econômicas, religiosas, etc., a conseqüência de uma negação da

imediatidade da natureza.4 É tal negação manifesta que faz com que o

Homem crie sua própria natureza, ou seja, delineie sua própria cultura em

função de uma espacialização do tempo. Para tanto, a Sociedade

apresenta-se como o terreno fundamental da formação cultural. A

objetivação dos ideais da racionalidade atribui a essa sociedade o caráter

de campo específico de sua atuação. A Sociedade como é organizada

traduz a manifestação da própria racionalidade como processo necessário

de firmação do Homem enquanto exterior. Porém, o desdobramento da

filosofia criadora da cultura não se configura como negação ou

sobreposição da História, assim como única razão de justificação da

mesma. História e cultura são sujeitas do movimento dialético que em si

4 A explicação que identifica esta negação da Natureza aqui não é entendida por sob os aspectos da destruição sofrida por esta natureza. Tal negação é, pois, apenas o afastamento racional das imposições naturais e criação da cultura histórica humana.

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as conserva. Esta filosofia estabelece a união que as norteiam,

identificadas como constitutivas, à fundamentação do ser humano.

No entanto, sendo a Sociedade a tábula rasa onde o Homem traça sua

cultura, esta deve representar fidedignamente a idealização cultural

humana. Porém: a Sociedade, tal e qual se apresenta, denuncia a pobreza

do empreendimento cultural humano ou não traduz corretamente tais

ideais?

Valendo-nos da literatura, vemos em José André da Costa:

Na História da Humanidade, percebe-se o desejo do ser humano de participar, de decidir, de assumir-se. Revela-se sua insatisfação que aponta para a necessidade de participação, tornando-se construtor de si mesmo, do mundo, da História, da cultura. Sem participação, o Homem seria fruto do ambiente, determinado, sem liberdade e incapaz se ser e de se construir humanamente (COSTA, 2006, p.50)

A partir do que nos diz o autor, aparecem-nos mais questionamentos: se

na História da Humanidade fica evidente a necessidade de participar,

decidir e assumir-se, por parte do Homem, como explicar o descaso, a

passividade ou a normose5 instaurada no seio da sociedade atual?

Não queremos, pois, direcionarmo-nos por posições pessimistas ou

fatalistas, até porque muitos resistimos à depredação do senso crítico

constitutivo do Homem, assim como aquela dimensão do participar,

decidir, assumir-se. No entanto, há todo um contingente que não

participa, decide, e muito menos se percebe responsável pelo processo de

constituição de uma sociedade. As relações para com o todo da sociedade

limitam-se ao âmbito econômico numa fluente troca de informações, no

auxílio da cultura imagética, que suprimem de imediato a prática

dialógica.

Porém, a atitude contemplativa de tal situação não deve contentar-se em

suas constatações. Entramos novamente no universo filosófico do

5 Normose é aqui entendida como sinônimo da expressão, estabelecida por COSTA, “patologia da normalidade”, expressão esta que transpassa o universo social e traduz a atitude passiva de determinados indivíduos da sociedade.

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reconhecer-se sujeito. Deparamo-nos com o apelo da Filosofia na

constituição de um ser humano que mereça o duplo termo aristotélico:

zoon logikón. Manter-se alheio à situação paupérrima do uso degradante

de nossa razão é contentar-se com a “animalidade”, contentar-se com um

unívoco zoon que carrega sobre os ombros a carga da irracionalidade.

Portanto, a Sociedade como dimensão de objetivação de nossa

racionalidade carece de um exercício maior de tal faculdade. Caso

mensurarmos nossa capacidade racional de criação da cultura pela medida

com que estamos tratando as contingências sociais que, mal ou bem,

criamos, perceberemos a insuficiência do uso de tal razão. Não é a

Sociedade uma constituição imaginativa ou irreal que se delineia pela

causalidade; é, pelo contrário, a tradução de nossa práxis, em alguns

casos poiésis6 no tratar das capacidades reflexivas. A Sociedade como

terreno da formação cultural, política, econômica, etc., é o prospecto real

de nossos acertos e erros na auto-constituição enquanto históricos

racionais.

Sociedade como dimensão do trabalho

Em Hegel lê-se:

A mediação que, para a carência particularizada, prepara e obtêm um meio adequado também particularizado é o trabalho. Por meio dos mais diferentes procedimentos, especifica a matéria que a Natureza imediatamente proporciona para os diversos fins. Essa elaboração confere ao meio o seu valor e sua utilidade; no consumo, o que o Homem encontra são, sobretudo, produtos humanos, e o que utiliza são esforços humanos.(HEGEL, 1997,P.176)

6 Existe toda uma leva de relações que podem ser estabelecidas entre práxis e poiésis. Neste caso, ambas não são identificadas como sinônimos. A relação praxiológica vigora na significação do movimento do sujeito para o sujeito; já a poiésis, é a dimensão em que os intrincados no movimento são o sujeito e o objeto.

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Neste trecho de sua Filosofia do Direito, Hegel estabelece um de seus

pareceres sobre o trabalho: o trabalho como negação e transformação do

dado imediato natural na constituição de produtos humanos, afastados da

natureza, e produzidos por força também humana. Ou seja, o conceito de

trabalho só possui inteligibilidade no meio humano, através dos processos

de concepção, transformação e uso. Sucintamente, em Hegel o trabalho

assume o papel principal de garantia da liberdade e justiça no Estado. É o

meio pelo qual o Homem nega a Natureza e percebe-se livre.

No entanto, o próprio trabalho estabelece em sua dialética interna

diferentes concepções. Na diferenciação estabelecida por Hannah Arendt7,

por exemplo, ficam evidentes as distinções que o trabalho adquire ao

longo do processo constitutivo das sociedades. São porém, partes

consoantes do conceito de trabalho e que não devem ser pensadas

separadamente. Possuem em si o caráter da coerência consigo mesmo

sem desprenderem-se da universalidade que compreende o conceito, que

em si é universal. São eles o labor, o trabalho e a ação.

No labor, o Homem enquanto Natureza, ou relação simbiótica com esta,

efetiva sua dimensão bio-fisiológica. O espaço natural, que ainda não é de

transformação, lhe é como que sua casa (oikia) e representa o suprimento

de suas necessidades puramente animais, ou seja, é este processo a

esfera doméstica de garantia ou preservação da vida sensível em seus

estágios fisiológicos.

Partindo imediatamente para a dimensão do trabalho, vista nossa

brevidade, percebemos aqui a racionalidade do afastamento da Natureza.

Há, pois, a suprassunção da fase de vitalidade constituindo-se, agora, um

espaço para a produção que se artificializa no fazer do Homem. A mera

produtividade subsistencial é transpassada por atividades que

estabelecem meios e fins no comportamento do fazer humano e que

resulta na perfeição e permanência da produção afastada da Natureza.

7 Não há aqui, uma disposição mais compacta das concepções de Arendt. Logicamente, o pensamento da filósofa em rtelação ao tema vai muito além de tão esporádicos e pobres tópicos.

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O resultado último que deve comportar esse movimento de suprassunção,

no conceber arendiano, é a práxis, a ação do sujeito homem

suprassumido no desenvolver histórico de suas sociedades. É este o

espaço da relação dos sujeitos, na segurança de uma subjetividade

garantida, sem a mediação das coisas, ou seja, é o terreno fértil das

relações políticas. Agora, a coisificação artificial da Natureza é apenas

pressuposto exterior da intersubjetividade dos processos humanos,

condição para o pensamento encontrar-se no âmbito do espírito absoluto,

numa diálogo mais hegeliano. Instaura-se, aqui, a dinâmica relacional que

possibilita a interação com o outro.

Para o momento efêmero que este ensaio comporta, percebemos,

minusculamente, aspectos de trabalho em duas concepções. Seria

necessário, para um fim mais próprio e verdadeiro, dedicarmos parte

maior da escrita no discurso sobre o trabalho, tendo em vista o caráter

por este assumido nas sociedades pós-modernas da onda capitalista

neoliberal. Porém, contentamo-nos com tal brevidade e reiteramos: é a

Sociedade a esfera onde todas as relações, incluindo as trabalhistas, são

estabelecidas com infinitas intencionalidades no processo de auto-

formação do Homem.

Interfaces entre Filosofia e Sociedade

Discursamos brevemente, no exposto acima, sobre o caráter subjetivo da

Filosofia, num sentido de positivação do termo, e também da dimensão

objetiva da Sociedade. Esclareçamos: não é a Filosofia o campo da pura

subjetividade; tampouco é a Sociedade a objetividade pura onde suprime-

se as subjetividades em função do material. Por mais que na sociedade

ocorram procedimentos de tal forma objetivos, o conceito de Sociedade

compreende-se como terreno das relações entre sujeito/sujeito,

sujeito/objeto. Portanto, não são, Filosofia e Sociedade, momentos

estanques de racionalidades distintas; são antes, momentos dialogáveis

das dimensões do Homem.

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Propomo-nos, agora, a salvar uma possível síntese que aplique a Filosofia

no âmbito da Sociedade e vice e versa. Não raramente, a conciliação

entre a Filosofia e Sociedade é desistida a medida que se compreendem

como dimensões absurdamente distintas da realidade humana. Nisso, a

realidade objetiva da Sociedade não comporta dentro de si a extremada

subjetividade e abstração sugerida pelo pensamento filosófico. Aqui,

resume-se a problemática que dificulta uma interconexão mais

propriamente explícita entre Filosofia e Sociedade. No entanto, a

dimensão teorética e praxiológica da Filosofia, em tempos tecnicistas,

parece ir contra a onda objetiva e poiética das sociedades capitalistas, na

expressiva coisificação neoliberal. Talvez aqui resida a razão primeira

desta falta de conciliação entre a teoria e a prática filosófica com as

situações da Sociedade. As ideologias intrincadas e sutilmente dispostas

na Sociedade travam no ser humano o pensamento reflexivo, condição

para o contingente filosófico. Tal síntese entre ambas vê-se dificultada

pelo discurso da produção fluitiva sulcado nas subjetividades que, a partir

deste processo perdem gradativamente sua condição de subjetivas.

Resume-se nisso, a impossibilidade de síntese entre Sociedade e Filosofia.

Ao homem objeto de produção, a Filosofia é caracterizada como inútil não

por ter um fim em si mesmo, na dita concepção de Eduardo Prado de

Mendonça, mas por ser percebida como desnecessária diante de uma

Sociedade que não dispõe de tempo para refletir.

No entanto, apesar do contexto percebido, ainda assim a Filosofia,

pertinentemente, apresenta-se disposta a tal conciliação. E nela esta

abertura necessária onde os contextos e as realidades são abstraídas no

pensamento, no cultivo de uma racionalidade crítica e interrogadora. O

dever-ser da Filosofia é o eterno questionar-se diante das contingências

que se lhe apresentam. A Filosofia, uma vez conjugada à Sociedade,

tornará esta, sem apresentar-se numa perspectiva reducionista salvadora,

o meio onde as atitudes a ações passam primeiramente pelo crivo da

razão crítica. Possibilita-se aí, uma Sociedade racional crítica capaz de

voltar-se sobre si mesmo e perceber-se insuficiente. Será esta a condição

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ao processo evolutivo na perspectiva da formação integral do ser humano.

Isso porque, a Sociedade que vigora não se apresenta como estágio

perfeito de uma organização que já foi pior. Possui ainda contingências e,

talvez sempre as possuirá. No entanto, não com um contentare-se

ingênuo que atingiremos uma melhor significação para nós mesmos

dentro da Sociedade. É antes, com uma interação entre o ser filosófico e o

ser da Sociedade que no fundo são os mesmo sujeitos de seu próprio

processo de formação.

A intersubjetividade no pensamento unificado da síntese.

Uma vez estabelecida a unidade de uma Sociedade filosófica no tocar das

relações, cria-se, de imediato, o terreno propício da intersubjetividade. É,

pois, a partir da conciliação das esferas interconexas que surge o espaço

de aproximação e diálogo das subjetividades, já libertas do individualismo.

No entanto, é necessário que as subjetividades livres se percebam livres

em vista das demais consciências libertas. Destarte, a subjetividade só é

realmente livre à medida que reconhece e é reconhecida pelas demais.

Não se pensa uma singularidade livre e exclusiva de seu contorno. Ser

indivíduo livre requer, necessariamente, demais singularidades livres para

a possibilidade da plena e real liberdade. Assim, sou livre a medida que

me percebo livre e reconheço no outro a minha e a sua liberdade.

Portanto, citar a intersubjetividade é ter em mente essa relação

permanente de conhecimento e reconhecimento. As sociedades, em si, só

são livres à medida que conferem às outras e aos seus próprios indivíduos

a consciência da liberdade. Em vista disso, toda nação organizada

politicamente não pode prescindir do caráter de reconhecimento de si

própria, das demais e dos indivíduos que a compõe. É essa, a condição

pura e simples de uma Sociedade livre. E é nessa perspectiva que se deve

lançar olhar por sobre nossas sociedades e questionar, no uso filosófico, a

parcela de liberdade verdadeira que se está atribuindo a si mesma e aos

seus constituintes.

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Uma razão de verdadeira síntese entre as esferas subjetivas e objetivas

exige um pensamento para além da imediatidade do recôncavo singular.

Ser subjetivo e objetivo requer flexibilizar a razão na compreensão do

todo da Sociedade, que inclui desde as subjetividades intrincadas no

processo, até a cultura formada pela união de trais subjetividades.

Unificar o pensamento numa síntese, que não é o absoluto imutável, mas

nova condição à dialética, é representar a universalidade do mundo na

particularidade da Sociedade primando, ainda, pelas singularidades que

trazem, dentro de si, a compreensão desse universal. Ou seja,

universalidade, particularidade e singularidade são momentos próprios

que trazem em seu bojo uma dimensão também própria sem perder a

dimensão do todo. É conjugar em si o amplo sem perder de vista sua

perspectiva de autonomia.

Finalizar este processo, não significa esgotar o tema que pensa uma

interface entre Filosofia e Sociedade. A temática requer muito mais que

estas paupérrimas conclusões a que chegamos. Pensar a Filosofia

conectada à Sociedade exige um movimento de superação e suprassunção

dos estágios ainda defectivos na constituição da liberdade em vista de si

próprio e do meio criado.

O todo da Filosofia compreende o todo da Sociedade. Para tanto, bastaria

organizar uma sociedade de tal sorte constituída a também compreender

em seu todo o todo próprio da Filosofia. Essa unificação é que legitima a

teoria filosófica em função da práxis, ação da e na Sociedade.

BIBLIOGRAFIA

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HEGEL, Gerg W. Friedrich; Princípios da filosofia do direito. Trad. Norberto de Paula Lima. São Paulo: Ícone, 1997.

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ARENDT, Hannah; O que é Política? Rio de Janeiro: Bertrant, 2002.