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Tese de doutorado em Ciência da Religião pela PUC_SP sobre a Faculdade de Teologia Umbandista
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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO PUC-SP
JOO LUIZ DE ALMEIDA CARNEIRO
Academia no Terreiro ou Terreiro na Academia?
A funo da Faculdade de Teologia Umbandista no dilogo entre adeptos de Religies Afro-Brasileiras
e acadmicos na esfera pblica
DOUTORADO EM CINCIAS DA RELIGIO
SO PAULO
2014
JOO LUIZ DE ALMEIDA CARNEIRO
Academia no Terreiro ou Terreiro na Academia?
A funo da Faculdade de Teologia Umbandista no dilogo entre adeptos de Religies Afro-Brasileiras
DOUTORADO EM CINCIAS DA RELIGIO
Tese apresentada Banca Examinadora da
Pontifcia Universidade Catlica de So
Paulo, como exigncia parcial para obteno
do ttulo de Doutor em Cincias da Religio
sob a orientao do Prof. Dr. Eduardo
Rodrigues da Cruz.
Errata
P. 26, linha 10: Onde est negociaes so s eficazes, leia-se: negociaes no s
eficazes.
P. 43, linha 10: Onde est reorientao discurso pblico, leia-se: reorientao do
discurso pblico.
P. 44, linha 13: Onde est tem uma monoplio, leia-se: tem um monoplio.
P. 57, linha 17: Onde est de alguma cosmovises, leia-se: de algumas
cosmovises.
P. 72, linha 17: Onde est das vrias das matrizes, leia-se: das vrias matrizes.
P. 119, linha 25: Onde est do pecada, leia-se: do pecado.
P. 122, linha 17: Onde est duas casa onde, leia-se: duas casas onde.
P. 148, ltima linha: ao invs de "no altera", acho melhor "no alteram".
P. 160, linha 20: Onde est Coube ao Aristteles, leia-se: Coube a Aristteles.
P. 165, linha 1: Onde est muito rigo, leia-se: muito rigor.
P. 165, linha 8: Onde est utilziada, leia-se utilizada.
P. 173, linha 22: Onde est Um das mais, leia-se: Uma das mais.
P. 174, linha 13: Onde est no campoda, leia-se no campo da. Onde est alerta,
leia-se alertam. Onde est ambguos, leia-se ambguas.
P. 256, linha 6: Onde est de frequentas, leia-se de frequentar.
P. 284 Excluir o ltimo pargrafo.
P. 285 - 1a. linha, a frase correta "No incio do Sec. XX a academia brasileira
testemunhou um conjunto indito de ideias e conceitos a respeito das religies afro-
brasileiras".
Ibid, ltimo pargrafo, ltima frase.: Acrescentar "da FTU" aps "institucionalizadas".
P. 287, 4 pargrafo: cincia e religio" deve vir com minsculas.
P. 289: Excluir o primeiro pargrafo.
P. 290, ltimo pargrafo, acrescentar "em uma faculdade especificamente afro-
brasileira" aps "indita".
Unificar a grafia de:
Itacuruss para Itacuru.
Bibliografia:
Trocar o itlico de posio, da referncia em particular para o ttulo da coletnea (ou
Revista) das seguintes obras: ALBUQUERQUE (2009); BIRMAN (1985); CARNEIRO
(2012A); CARNEIRO e RIVAS (2011); COLE e COLE (2006); DILLON (2012);
FERRETTI (1989); FERRETTI (2010); GIUMBELLI (2008); HECK (2009);
HOFBAUER (2012); MARIANO (2003); OLSON (2012); PINZANI (2009); WERLE
(2009); ZABATIERO (2010).
Banca Examinadora
______________________________________
______________________________________
______________________________________
______________________________________
______________________________________
Dedicatria
Aprendi com meu Babalaw Ifatoshogun a
importncia de louvar nossos genitores. Nossas
origens divinas e avoengas. A unio destas duas
origens representa o que fui, sou e serei dentro
de um destino aberto sob os auspcios de Od
para viver de maneira plena e realizada.
poro espiritual, essencial e determinante
para mim, dedico este trabalho ao meu Bab.
Sem sua mo em meu Ori, nada disso seria
possvel. Ax Bab Mi!
poro ancestral, dedico este trabalho minha
ascendncia, responsveis por hoje ter um Bar,
Julia de Almeida Carneiro e Luiz Matias
Carneiro. A voc, Raphael Carneiro, meu filho,
minha descendncia, tambm dedico.
Agradecimento
Agradeo Yacyr por concretizar a felicidade
nos vrios setores de minha existncia.
Agradeo CAPES pelo financiamento da
minha pesquisa.
RESUMO
O objetivo central deste trabalho compreender a posio social que a Faculdade
de Teologia Umbandista (FTU) ocupa na mediao de discursos especficos que
reverberam na esfera pblica. A hiptese deste trabalho que a FTU, por meio dos meios
educacionais legais e tradicionalmente estabelecidos no seio da esfera pblica, promove
uma nova reflexo teolgica que auxilia os cidados religiosos afro-brasileiros no dilogo
com os cidados seculares, mais especificamente os acadmicos.
A metodologia utilizada para esta pesquisa foi a reviso bibliogrfica, que
contemplou a leitura, anlise e interpretao de livros, peridicos, materiais audiovisuais.
Este mtodo levantou a discusso de quatro temas centrais que do condies de verificar
a hiptese da tese: Esfera Pblica, Religies Afro-brasileiras, Oralidade e Escrita e a FTU
propriamente dita.
Para apresentar essas interaes, ou seja, as pontes entre esses saberes e fazeres,
foi dada nfase a dois eventos muito importantes no calendrio da instituio: os
Congressos de Umbanda do Sculo XXI e dois dos vinte e quatro Ritos de louvao a
Exu.
Palavras-chave: Congressos de Umbanda do Sculo XXI, Esfera Pblica, FTU,
Religies Afro-brasileiras, Ritos de louvao a Exu, Teologia Afro-brasileira.
ABSTRACT
The main purpose of this work is to understand the social position that Faculdade
de Teologia Umbandista, that is, FTU (Umbandist Theology College) occupies in the
milieu of specific discourses reverberating in the social sphere. The hypothesis here
presented is that FTU fosters a new way of theological thinking that promotes dialogue
between Afro-Brazilian religious and laic persons, especially the ones that hold position
in the academic milieu, by means of the legal and traditional tenets socially established.
The methodology used in this research consisted of bibliography review,
contemplating reading, analysis and interpretations of books, periodicals, and audiovisual
materials. On account of such methodology, a discussion of four central issues has been
raised by which it is possible to verify the hypothesis of the thesis: public sphere, Afro-
Brazilian religions, orality and written tradition, and FTU.
Therefore, in order to introduce the resulting interactions, that is, the bridges
between knowledge and practices, emphasis has been given to two different and very
important kind of events: 21st Century Umbanda Congresses and two of 24 rites for
worshipping Eshu.
Keywords: 21st Century Umbanda Congresses, public sphere, FTU, Afro-
Brazilian religions, rites for worshipping Eshu, Afro-Brazilian theology.
SUMRIO
INTRODUO............................................................................................................................9
1. A ESFERA PBLICA E SUAS TENSES...........................................................................15
1.1 A esfera pblica..........................................................................................................17
1.2 .......................................................................................................29
1.3 O uso pblico da razo no dilogo entre cidados e a contribuio dos telogos na traduo do conhecimento religioso e acadmico ..................................................35
1.4 O espao pblico e o agir social no contexto latino-americano e a perspectiva de alguns crticos brasileiros............................................................................................46
2 RELIGIES AFRO-BRASILEIRAS POR UMA PERSPECTIVA DE DUAS CHAVES: ESCOLAS E UMBANDIZAO.............................................................................................61
2.1 Religies Afro-brasileiras: amplitude e profundidade do conceito.............................65
2.1.1 - ..........................................65
2.1.2 Os cultos afro- .......71
2.1.3 A assimilao do senso religioso............................................................74
2.2 Umbanda: entre a cruz e a encruzilhada! Mas tambm entre a marca mestra, o of, o cachimbo, os Encantados............................................................................................79
2.2.1 Leituras sobre a umbanda: trs possibilidades........................................81
2.2.2 Catimb-Jurema ou umbanda nordestina?.............................................92
2.2.3 A umbanda esotrica..............................................................................97
2.3 De sub-classificaes dos cultos afro-brasileiros s escolas.....................................106
2.3.1 Os cultos afro-brasileiros na perspectiva acadmica............................106
2.3.2 O conceito de escolas na teologia afro-brasileira ................................ 110
2.4 Umbandizao..........................................................................................................121
3 TRADIO ORAL E TRADIO ESCRITA: TENSES, CONFLITOS E APROXIMAES...................................................................................................................140
3.1 No ncio era o Verbo! E tambm o gesto, o silncio..................................................142
3.2 Os vrios tipos de escrita e suas consequncias na sociedade...................................149
3.3 Cultura alfabetizada: contribuies da herana grega .............................................154
3.4 Cultura letrada hoje..................................................................................................162
3.5 ......................................................................................................166
3.6 Do oral ao escrito, do escrito ao oral: a memria em jogo.........................................171
3.7 igies Afro-brasileiras na esfera pblica...........175
3.8 Embates entre tradio Oral e Escrita? Um estudo de caso no Candombl...............181
4. A FACULDADE DE TEOLOGIA UMBANDISTA...........................................................189
4.1 Do terreiro faculdade: a funo de Pai Rivas..........................................................190
4.2 Terreiro acadmico ou Academia umbandizada? A estrutura da FTU......................196
4.3 epistemolgico da FTU...............................................................................................................203
4.3.1 A graduao......................................................................................... 203
4.3.2 Cursos de extenso universitria..........................................................229
4.3.3 A ps-graduao lato sensu..................................................................232
5. CINCIA E RELIGIO: OS DOIS BRAOS DA FTU EM DILOGO........................237
5.1 .......................................239
5.2 A Academia discute o terreiro..................................................................................247
5.2.1 I Congresso Brasileiro de Umbanda do Sculo XXI.............................247
5.2.2 II Congresso Brasileiro de Umbanda do Sculo XXI............................252
5.2.3 III Congresso Brasileiro de Umbanda do Sculo XXI..........................255
5.2.4 IV Congresso Brasileiro de Umbanda do Sculo XXI - I Congresso Internacional das Religies Afro-americanas.......................................259
5.2.5 V Congresso Brasileiro de Umbanda do Sculo XXI - II Congresso Internacional das Religies Afro-brasileiras........................................264
5.3 O terreiro ritualizado na Academia...........................................................................267
5.3.1 Rito de Exu: XXII Rito de Exu O Guardio do Ax e do Destino.......268
5.3.2 Rito de Exu: XXIII Rito de Exu e Ossaim - Guardies do Ax e das Plantas Medicinais e Rituais.................................................................275
CONCLUSO...........................................................................................................................285
ADENDO...................................................................................................................................291
BIBLIOGRAFIA......................................................................................................................296
9insider
10
11
sui generis
12
13
Esu
14
15
1
2
a priori
3
16
standards
17
polis
koin
medium
demo kratos) res publica
18
19
4
5
20
21
6
22
priori
23
7
reunies
8
orientao leiga
intelectualizao
internet
24
25
per se
influncia
influncia
26
27
9
10
28
11
29
30
Pluralidade
Publicidade
Privacidade
Legalidade
12
12 Plurality: families, informal groups, and voluntary associations whose plurality and autonomy allow for a variety of forms of life; publicity: institutions of culture and comunication; privacy: a domain of individual self-development and moral choice; and legality: structures of general laws and basic rights needed to demarcate plurality, privacy and publicity from at least the state and, tendentially, the economy. Together these structures secure the insitutional existence of a modern, differentiated civil society
31
32
33
34
35
standards
medium
36
aus Einsicht
13
37
a priori
38
39
14
40
a priori
41
15
42
16
43
44
Further, the theological differentiation and nuances within any given religious tradition mean that we should be careful not to dismiss, a priori, religious voices from traditions more frequently associated with resisting rather than transforming modernity. Some evangelical leaders, for example, have been at the forefront in articulating religiously derived arguments in support of environmental preservation (...)Similarly, while there is much that is rational in religion, there is also much that is not rational; emotion, mystery, and the pull of ritual and tradition are all part of many individuals religious and spiritual experiences as well as of their cultural identities. These experiences and traditions have somehow to be woven into culturally accessible public vocabularies that can enrich post-secular society and its way forward. The communicative burden should fall not only on religious individuals to develop secular frames by which to communicate with the nonreligious. Secular discourses and citizens also need to become reflexively open in order to aid in the translation and interpretive processes between religious and secular claims.
45
46
versus
47
18
48
imaginrios ideolgicos
sinais ideolgicos
19
49
20
medium
online web
21
50
medium
22
internet
quais so as democracias realmente existentes
status quo
51
sui generis
52
53
Cultura e Crtica
ipso
facto
prxis
54
55
56
57
58
locus
59
in totum
23
60
61
1
sou adepto das
62
religies afro-brasileiras
2
3
4
63
5
6
7
8
64
65
O animismo
fetichista dos negros baianos As religies do Rio9
O animismo fetichista dos
negros baianos
Revista Brazil
10
66
11
mals
musulmis
santo12
musulmis
67
Olorun
13 14
15
16
ots
68
17
O animismo fetichista dos negros baianos
69
21
70
22
71
O negro brasileiro
Le Candombl de Bahia
72
23 Les religions africaines au Brsil 24
Kardecismo e Umbanda
As Religies Africanas do Brasil
26
status
73
27
28
continuum 29
74
30
31
Fatumbi
Orixs: Deuses iorubs na frica e no Novo
Mundo.
32
Mitologia dos Orixs Segredos guardados:
75
orixs na alma brasileira
Os nag e a morte
igb iw33
76
Revista espiritual de umbanda
Revista Espiritual de Umbanda
77
34
Folhas da Jurema
35
site
78
79
36
37 38
Umbanda de Todos Ns
80
PRIMEIRO
81
40
"eram no girad da linha branca de
Umbanda nas demandas e na caridade"
82
41
42
83
43
44
84
85
prxis
86
insiders
49
50 51
87
52
88
candomblsorixs alufs
malsmacumba
Umbanda
53
cacarucai
89
54
90
mediadores
91
insider55
56
92
93
58
Vida e Morte do Bandeirante
Abre-te mesa, Abre-te ajuc, Abre-te cortina, Cortina Re! Vem v o mestre De Espirau! De Espirau! De Espirau!
94
59
mbanda
95
insider
insider 60
61
96
62
63
97
64
Umbanda esotrica e inicitica 65
O esoterismo de umbanda
98
66
Umbanda de Todos Ns Umbanda Sua Eterna Doutrina Doutrina Secreta da
Umbanda Lies de Umbanda e Quimbanda na Palavra de um Preto-Velho
Mistrios e Prticas na Lei de Umbanda Segredos da Magia de Umbanda e
Quimbanda Umbanda e o Poder da Mediunidade Umbanda do Brasil
Macumbas e Candombls na Umbanda
Umbanda de Todos Ns 67
68
69
99
70 71
Orixs
Chefes de Falanges Orixs Chefes de
Subfalanges Guias Chefes de Agrupamentos
Protetores
prana chakras
Lei de
Pemba, pontos de pemba ou pontos riscados
100
lcus
Os Sete Planos Opostos da Lei de Umbanda
72
101
73
74
75
Umbanda A Proto-Sntese Csmica
fora de pemba
102
Sacerdote, Mago e Mdico
Umbanda A Proto-Sntese
Csmica magnum opus
Escolas das Religies Afro-brasileiras: Tradio Oral e Diversidade
76
Umbanda a Proto-Sntese Csmica Umbanda o elo
perdido Lies Bsicas de umbanda O Arcano dos Sete Orixs Exu o grande
arcano Fundamentos Hermticos de Umbanda Cura e auto cura umbandista
terapia da alma Sacerdote, Mago e Mdico cura e auto cura umbandista Escolas
das Religies Afro-brasileiras: Tradio Oral e Diversidade
77
103
Pai Matta
Velho Matta
104
a constante da tradio a contnua mudana,
logo a umbanda uma unidade aberta em construo78
105
106
79
107
80
108
109
81
mistura paralelismo convergnciaseparao
110
A
macumba foi a primeira manifestao das religies afro-brasileiras?
83
111
85
112
continuum medinico
113
88
114
cabula
90
91
92
115
93
linha de transmisso de uma Raiz
94
116
95
96
97
lcus
117
98
99
100
gestalt gestaltforma especial
118
101
119
102
120
modus operandi
103
121
2.4 Umbandizao
ponto de partida Roger Bastide (1971) 1. No avanar do processo de reflexo, Yoshiaki
Furuya (1994) surge com a sua importante pesquisa sobre as religies afro-brasileiras
especificamente na cidade de Belm-PA e adjacncias.
Luiz Assuno (2010) vai ao encontro da umbandizao e comea a reformular a
a ao processo evidente de sincretismo
crescente observado e j discutido na ptica de Srgio Ferretti (1995). Finalmente, a
perspectiva teolgica de Rivas Neto (2012) ser utilizada quando compreende na
umbandizao uma possibilidade de dilogo complexo, dinmico e contnuo entre todas
as escolas afro-brasileiras.
Um dos primeiros arquitetos do conceito de umbandizao foi Roger Bastide
(1971; 2006). Seu constructo terico surge ao analisar o candombl.
O candombl acha-se, pois, em presena hoje de uma verdadeira prova de fora, mas no podemos ainda predizer se saber adaptar-se a esta nova situao ou se perecer. Entretanto, o que devemos notar, para terminar, que hoje2 se encontram cada vez mais entre seus membros, advogados, comerciantes, ricos, artesos abonados e que seus sacerdotes ou suas sacerdotisas so capazes de discutir com rara inteligncia com etngrafos de passagem assim como de responder com sutileza s objees que se lhes faz. 3Devemos observar tambm que se esse movimento de integrao prejudicou as seitas tradicionais, no prejudicaria as seitas mais ou menos sincrticas cujo nmero, em vez de diminuir, como veremos, aumenta dia a dia (BASTIDE, 1971, p. 240).
Com essas palavras, Bastide conclui o primeiro volume de canas
1 No que pese Roberto Motta argumentar que Bastide no conseguiu compreender adequadamente a umbanda que crescia diante dos seus olhos (MOTTA, 2001). 2 Lembrando que a 1. edio da obra de 1960. 3 Essa leitura de Bastide pode ser confrontada com os nmeros mais recentes do CENSO (2010). O nmero de adeptos do candombl diminui. Ao mesmo tempo, o nmero de letrados representativo. Hoje, os neopentecostais so os setores que mais abrigam brasileiro com pouca escolaridade.
122
tradies religiosas africanas, o que, alis, trata-se de uma abordagem exageradamente
terica4, e igualmente a capacidade das religies sincrticas em aumentar a penetrao
social.
5, no
deixa de representar uma diminuio do etnocentrismo e uma gradativa abertura para
outras classes, etnias e condies das mais variadas existentes na sociedade brasileira. Ao
abrir para o sincretismo, as religies afro-brasileiras optam por um processo de incluso
ampliada6.
No que pese a questo do sincretismo j ter sido discutida com as importantes
contribuies de Srgio Ferretti (1995), existem alguns ngulos que vo interessar o tema
Um pouco antes de Bastide, em 1948, Edson Carneiro (2008, p. 51) observa nos
candombls baianos uma grande influncia do catolicismo. O sincretismo com os
prprios cultos africanos foi destacado por ele a ponto de ser difcil determinar qual
destacado:
Assim, no Engenho Velho e no Gantois, duas casa onde a tradio queto exerce uma verdadeira tirania, pude ver, cantar e
4 Srgio Ferretti (1995, p. 77) e Furuya (1986, p. 6) vo ao encontro dessa viso sobre a pureza africana ao estudar as religies afro-brasileiras na regio norte e nordeste do pas. Especificamente Furuya, ao
-nag, mesmo os
do candombl e do culto aos caboclos salta aos seus olhos. Mas ao sul, uma importante pesquisadora levanta um questionamento pertinente ao tema: traos teriam provindo. Muitas vezes, os mesmos autores remetem-nos a Frobenius para nele encontrar a explicao ou o significado de certos traos. Essa busca de origens ocorre, na grande maioria das vezes, em detrimento da anlise das explicaes dos prprios seguidores dessa religio no Brasil. Roger Bastide, por exemplo, faz uma anlise exaustiva de uma coluna central encontrada nos terreiros nags na Bahia. Cita Frobenius, fala do vodu haitiano e descreve os mitos iorubanos da frica. Finalmente chega a seguinte
importncia mesmo se os fiis esqueceram o significado, desse simbolismo da (grifo da autora). Assim, se os fiis no Brasil esqueceram o significado dos smbolos, o autor busca na sua origem seu significado. Ser que os fiis se esqueceram do seu significado? Ou tero outro significado a dar? O que significa um signo cujo smbolo j foi esquecido? Talvez este signo a coluna central em relao a outros tenha se transformado em um novo smbolo. Mas fica difcil saber, pois o autor,
. (MAGGIE, 2001, p. 15). 5 Cf. (HOFBAUER,2012). 6 No aspecto natural e social, temos as vrias classes, etnias e interesses. No aspecto sobrenatural, entidades que so caractersticas das trs matrizes formadoras (africana preto-velho; indo-europeia criana; amerndia caboclo; alm dos aspectos regionais: boiadeiro, baiano, cigano, marinheiro, mestres, entre tantos outros).
123
danar para encantados caboclos. verdade que, nos candombls nags isso raramente acontece, mas uma deferncia a que no podem fugir nem mesmo esses candombls7 (CARNEIRO, 2008, p. 52).
Na sequncia da descrio da influncia dos caboclos nos cultos de candombl,
mesmo os mais tradicionais, Edson Carneiro (2008, p. 52) coloca que a fuso com o
sesses de caboclo
o de
instituir-se rito especfico para caboclo, tal fato se deve umbanda (quando assumida sua
gnese coletiva e diluda da histria, portanto, afastada da perspectiva da umbanda branca
Retomando Roger Bastide (1971, p. 359-392), ele vai dedicar um captulo para
discutir tal questo: . Inicialmente, lembra
Nina Rodrigues (1935) que percebe nos negros uma preocupao simplista em fazer
justaposio com os santos catlicos, enquanto os crioulos assimilam o catolicismo com
maior profundidade em sua prxis religiosa. Avanando em sua anlise, vai preferir a
classificao de
(BASTIDE, 1971, p. 361) do que esta apresentada por Nina
Rodrigues.
Ao penetrar na diversidade das religies afro-brasileiras, Roger Bastide vai se
deparar com mltiplas interpretaes de santos, demnios, orixs, voduns, inkices,
caboclos, exus e encantados. O que o leva a escrever:
Contudo, o sincretismo assume formas diferentes segundo a natureza das representaes coletivas que entram contato. E, quando passamos da religio magia ou teraputica, que no seno uma outra forma de magia, passamos de um grupo de representaes coletivas a outro, que no obedece as mesmas leis estruturais. Na realidade, a religio forma um sistema relativamente fechado, tradicional, ligado ao conjunto da vida
7 das Minas.... continuam rejeitando toda interferncia das religies indgenas a fim de se manter fiis aos cultos ancestrais, iorub ou fon. Ouvi muitas vezes dizer, no entanto, que o candombl iorub traz dentro
a presena, j que ele no aparece no culto, pelo menos no como caboclo. Uma das explicaes que me apresentam que aquele que os sacerdotes do candombl chamam de caboclo no seria seno Oxssi, um deus autenticamente africano, o deus da caa, que no tem nenhuma relao com os Espritos dos indgenas, a no ser pelo fato de, como
124
. (...) A lei da magia precisamente a lei de oposio e isso ela sempre foi desde a antiguidade at hoje, desde a terra dos esquims s ilhas do Pacfico. A magia est ligada ao poder do desejo e guarda toda a ilogicidade vibrante, toda a paixo obstinada do desejo que nunca desespera (BASTIDE, 1971, p. 383).
Bastide (1971, p. 386) vai constituir duas formas de compreender o sincretismo.
elementos dos referidos sistemas.
Ou seja, a magia ocupa a funo de percorrer o sistema religioso complexo da
questo afro-brasileira para criar novas interaes e reinterpretaes dos elementos
especficos dentro de uma prpria escola e desta com as demais. Vrias so as aplicaes
da questo mgica nas religies afro-brasileiras, mas, certamente, as entidades Exu e
Caboclo ocupam um lugar de destaque.
Sobre o caboclo, por exemplo, Bastide (1971, p. 386-387) reconhece na magia
dessa entidade a funo de diminuir a oposio entre elementos religiosos africanos e
europeus (catlicos). Nos candombls tradicionais a separao mais evidente, nos
candombls de caboclo diminui e nas macumbas cariocas (com maior influncia da
entidade Caboclo) praticamente some a dicotomia.
Especificamente sobre o candombl de caboclo, Arthur Ramos diz:
H uma modalidade de sincretismo religioso que s agora vem tomando grande incremento, o que prova que a sua apario
candombl linha -se, ao que
pude verificar, da intromisso de entidades da mtica amerndia nas prticas fetichistas dos negros; da a denominao de candombl al existente enorme. No culto de caboclo (lei de caboclo ou linha de caboclo, como chamam os negros), h tambm curioso sincretismo dos orixs fetichistas com as divindades dos mitos amerndios e elementos do folclore branco (RAMOS, 2003, p. 131).
Arthur Ramos (2003, p. 131) ao descrever o candombl de caboclo, o aproxima
da prtica banto ou dos candombls jeje-
125
pesquisa identificou tambm ser o nome.
O caboclo, enquanto mestio na sociedade brasileira, nesse ngulo, tambm alarga
as porias entre os tipos ideais dos cultos praticados no brasil. Dito de outra forma, o
caboclo na perspectiva sociolgica cria pontes entre as vrias escolas das religies afro-
brasileiras. Um importante aspecto da umbandizao.
Em 19738 Roger Bastide (2006, p. 218-219) d mais ateno ao fenmeno
estudado na periferia do seu objeto, a religiosidade africana. Em suas observaes,
constata um forte fluxo migratrio no Brasil que muda o cenrio religioso afro-brasileiro.
Alis, ampliando as relaes sincrticas. Tambm reconhece o crescimento do
Sua nova anlise retoma as categorias do catimb e candombl. No primeiro
momento refora suas caractersticas distintas9. No segundo, j apresenta o candombl de
caboclo10, influncia banto11, com a coexistncia dos dois cultos supracitados.
Isso no nega novas (re) elaboraes. Como exemplo, o catimb adota
instrumentos musicais no utilizados at ento, caso do tambor, e o candombl adota
definitivamente o caboclo e toda a sua magia (BASTIDE, 2006, p. 221).
O terceiro momento considera a macumba carioca. Aqui j ocorre um
entrecruzamento profundo entre ambos (catimb e candombl). Interessante o quando
considera a convergncia dessas duas escolas como contrao do tempo sagrado, o
qual, em vez de se estender ao longo do ano em festas alternadas, africanas, amerndias,
une-as num mesmo momento privilegiado da du (grifo do autor) (BASTIDE, 2006,
p.223)12.
8 Conferncia realizada por Roger Bastide em Barcelona (BASTIDE, 2006, p. 218-235). 9 Bastide (2006, p. 219-220) cita que no candombl o transe provocado pela msica sacra. J no catimb, o transe promovido pelo fumo ou pela jurema. 10 Tambm o mesmo caso do babau de Belm (PA) (BASTIDE, 2006, p. 222). 11 Os banto so mais abertos incorporaes de outros elementos religiosos quando comparados aos Iorub ou os Fon (BASTIDE, 2006, p. 221). 12 Ainda sobre a macumba, Arthur Ramos considerava em sua poca um termo genrico em todo Brasil para designar as vrias prticas rituais afro- a todos os efeitos. A obra do
126
(BASTIDE, 2006, p. 224). Ao falar dessa integrao, evoca a construo da umbanda
branca na dcada de 30 e arremata: macumba so considerados, e se
autoconsideram, religies africanas. Em compensao, o espiritismo de umbanda se
considera uma tenho quase vontade de dizer: a
(BASTIDE, 2006, p. 225).
A influncia kardecista e teosfica entra em jogo nessa integrao sugerida, pois
o sincretismo espontneo agora tenta ser, por parte de seus prprios adeptos,
algo racional, estruturado. Existe nesse momento uma meta quase utpica:
(...) tentar uma sntese13 coerente das diversas religies que se enfrentam no Brasil, as dos brancos catlicos ou espritas, as dos primeiros habitantes do Novo Mundo, os ndios, e finalmente as dos antigos escravos africanos, a fim de reconcili-las, torn-las harmnicas entre si e ento opor essa religio construda no Brasil s religies europias de exportao, assim como ao colonialismo cultural ocidental (BASTIDE, 2006, p. 226).
Aqui fica difcil aceitar o processo como umbandizao, pois ele est muito mais
prximo do espiritismo kardecista (busca de racionalizao exagerada e codificao do
processo sincrtico) do que necessariamente as influncias mgicas e caboclas descritas
anteriormente. Mas esse processo racionalizante fica muito mais no campo ideal do que
prtico.
Ocorre que a religio de umbanda no unificada, incluindo a escola de umbanda
branca. A existncia de um cdigo tambm nico, nos molde bblicos ou kardecistas,
nunca chegou a ser estabelecido com sucesso.
A umbandizao vai promover o casamento de deuses africanos com os espritos
indgenas, na leitura de Roger Bastide (2006, p. 229). Se a figura simblica do casamento
est correta, essa unio certamente ser poligmica nas religies afro-brasileiras.
Afi
santos catlicos, a doutrina kardecista e as prticas orientais14. Claro que cada escola das
13 14 Caso caracterstico da escola de umbanda oriental.
127
religies afro-
entretanto quebrar a gestalt do todo. Por exemplo, existem vrias formas de umbanda.
Muitas delas mudaram ao longo da histria. Nem por isso, deixaram de ser umbanda na
ptica religiosa ou acadmica.
Na parte final de sua conferncia, Roger Bastide se intriga com a seguinte questo:
religies (catimb e candombl) tipicamente diferentes, como dissemos no incio, a se
Pode-se colocar a pergunta em outras
palavras: por que ocorre a umbandizao dessas religies?
Segundo sua ptica, quatro sero as motivaes. O primeiro de ordem ideolgica.
Ocorre uma exagerada valorizao do ndio na passagem do sculo XVIII para o XIX.
Logo, os negros estariam mais dispostos de assimilar as prticas amerndias que, aos olhos
do branco, seriam melhores aceitas pela sociedade (BASTIDE, 2006, p 228-229).
O segundo mantm o vis ideolgico. Apoiadas nas contribuies de Gilberto
Freyre, as convices nacionalistas ganham fora. O mestio passa a ser mais bem visto
e aceito como genuinamente brasileiro. Portanto, suas prticas religiosas so
dos candombls de caboclo se deve vontade dos negros de demonstrar seu patriotismo
-230).
O terceiro motivo seria a concepo brasileira de festa que permeia ambas as
realidades (indgena/africana) e suas zonas de convergncia (caboclo/mestio). O ltimo
ponto tem uma preocupao mais psicolgica e funcionalista da religio. Roger Bastide
(2006, p. 230-235) entende que o culto indgena (consubstanciado no caboclo) oferece
algo que a pureza africana no ofertava: a dinmica de grupo para resolver tenses,
problemas de diversos matizes.
No que pese claramente Roger Bastide ter dado o incio para a reflexo sobre o
processo de umbandizao das religies afro-brasileiras, em nenhum momento essa
palavra aparece textualmente. Ainda assim, sua abordagem clara sobre o fluxo continuo
de prticas entre as religies afro-brasileiras e o papel protagonista da magia e, mais
especificamente, do caboclo. A pureza ainda est em jogo e, de certa maneira, seu
128
argumento vai apresentar preocupaes quanto mistura de prticas europeias e
autctones no fazer religioso africano.
Ainda por dentro da umbanda branca, popularizada no incio do sculo XX como
espiritismo de umbanda, Cndido Procpio Ferreira de Camargo penetrou nas
aproximaes e tenses entre umbanda e kardecismo. Da surge seu conceito de
Camargo observa na capital paulista a proliferao de prticas religiosas que
tomam como base os cultos africanos constantemente ressignificados e a diversidade
esprita em franco crescimento poca: o ponto de vista objetivo podem-se
(CAMARGO, 1961, p. 84). Lembrando que,
simbolicamente, em um polo se localizaria o kardecismo e no outro a umbanda.
Em suas constataes sobre o cenrio paulistano, reconhece o grande fluxo de
dificuldades. O que permite constatar dois grandes movimentos.
As fortes influncias
umbanda em seus primrdios), notadamente no eixo sul-sudeste do pas, faz surgir o
espiritismo de umbanda e, mais do que isso, a escola de umbanda branca. Uma escola 15 permite uma visibilidade muito grande
da sociedade geral com um todo e a acadmica.
A umbandizao do kardecismo.
Alis, a prpria concepo de espiritismo como religio um fato brasileiro. Allan
Kardec codificou o espiritismo pensando muito mais nos aspectos morais e pretensamente
cientficos. Alis, o trip do kardecismo cincia, filosofia e moral.
A umbandizao desse segmento religioso pode ser constatado, alm do
exemplos
so: a consagrao de gua16; a mediunidade de cura (PRANDI, 2012, p. 78-91), moda
15 Cf. (ORTIZ, 1991). 16 Conhecida n
129
dos curandeiros e feiticeiros afro-brasileiros ressignificados (embranquecidos) por
espritos de mdicos e freiras; e desobsesso, ou seja, doutrinar os espritos de forma mais 17 e
18.
A prtica ritual e medinica transpassa as barreiras ideolgicas das cosmovises.
Inclusive, a forma de resolver esses problemas passa pela magia de forma mais explcita,
predominantemente kardecista. A cura possvel por meios sobrenaturais e os cultos
amerndios, novamente podendo ser representados pelos caboclos, ocupam lugar central.
umbandizao. A umbandizao enseja uma aproximao entre as duas prticas rituais.
Por mais que o espiritismo influencie a umbanda, o primeiro tenta se afastar oficialmente
da segunda.
umbandizao e no o contrrio. Por sua vez, a umbanda facilita esse processo de
ntas
forem as prticas religiosas que suas comunidades se interessam.
Alguns anos depois e mais acima do mapa, especificamente em Belm-PA,
Yoshiaki Furuya (1994) estudar as influncias da umbanda na regio fazendo uso
A comear pelo ttulo do seu texto:
Umbandizao dos Cultos Populares na Amaznia: A integrao ao Brasil?
Se afastando (mas nem tanto) do eixo Rio-So Paulo, Furuya vai mesma toada
de Roger Bastide ao analisar os cultos afro-brasileiros em Belm (PA). Reflete a
umbandizao como um processo oriundo do espiritismo de umbanda, que na presente
pesquisa seria mais bem compreendida como escola de umbanda branca. Nas suas
palavras:
A propsito, a "Umbandizao" no um fenmeno regional que pode ser visto apenas na regio amaznica. Portanto, uma vez que a Umbanda se formou nas dcadas de 20 e 30 nas grandes
17 No senso religioso, seriam as energias negativas. 18 No senso religioso, seriam espritos ruins que fazem mal ao indivduo que acorre o terreiro.
130
cidades do Sul como o Rio de Janeiro e So Paulo, e se espalhou rapidamente em cada regio do pas depois da Segunda Guerra Mundial (FURUYA, 1994, p. 18)
Tanto verdade, que a federao19 de umbanda da regio o seu ponto de partida
para pesquisa.
Aqui, faz-se necessrio contemplar a possibilidade de que a prpria formao da Federao contribuiu para o incremento dos grupos de Umbanda. A sistematizao da Federao que leva o nome Umbanda e o aumento da capacidade de influncia desta na sociedade elevou a popularidade da Umbanda como uma religio que ganhou um certo reconhecimento social, e, qualquer que seja a realidade dos fatos, no h dvida de que acelerou a expanso dos grupos e adeptos que se auto-definem como umbandistas. Alm disso, atravs do apoio dos meios de comunicao, e entre outras coisas, o propalado termo "Umbanda" vem se infiltrando, no somente entre os no-seguidores como tambm entre os prprios seguidores, como o termo que abarca vrias religies afins (FURUYA, 1994, p. 14).
A melhor aceitao das religies afro-brasileiras por meio da escola de umbanda
branca j foi discutida na pesquisa e as constataes de Furuya (1994, p. 20) reforam o
assimilao dos pontos cantados das macumbas e tendas de umbanda do sul e sudeste.
O comrcio de artigos religiosos tambm ganha destaque. No campo literrio, a
comunidade do norte do pas aceita a penetrao de obras religiosas publicadas por
sacerdotes da mesma regio citada (FURUYA, 1994, p. 15).
O papel de exu ganha fora na umbandizao dos cultos do norte do pas. Muitos
religiosos da regio entendem que exu20 era o curupira, ritualizado nos antigos terreiros
de mina-nag. O prprio preto-velho, no muito conhecido no norte, mas amplamente
19 As primeiras federaes foram fundadas no eixo Rio-So Paulo e tornaram-se caractersticas de tal escola umbandista. 20 Em outros casos, o culto ao exu Tranca-ruas, caracterstico das macumbas e umbandas cariocas, foi
Objetos rituais umbandistas tais como imagens de espritos coercivos e casa do maligno Exu tm mantido um papel importante de apoio a tais rituais "umbandizados" (FURUYA, 1994, p. 41).
131
cultuado no eixo Rio-So Paulo, visto na regio como um tipo de caboclo21 (FURUYA,
1994, p. 17). O que refora a posio desta entidade para o processo de umbandizao.
No campo do imaginrio, o dilogo simblico entre as comunidades afro-
brasileiras do Par e do eixo Rio-So Paulo ocorreu com muita fora. Essa assimilao
do contato ritual se deu, entre outros motivos:
As circunstncias em que a sociedade indgena da Amaznia sofreu um revs destrutivo e que o ndio idealizado no Sudeste comeou a ser falado, depois, as circunstncias em que o nativo situado "romanticamente" no sistema simblico da Umbanda que formada no sul do pas, e em que a categoria de esprito "caboclo" a representao desse ndio: tais circunstncias so bastante sugestivas quando se interpreta a "Umbandizao" da Amaznia. Em suma, as massas miscigenadas e os nativos da Amaznia so admitidos no sistema simblico da Umbanda como algo que existe apenas como: ndios que morreram bravamente (FURUYA, 1994, p. 25).
Mas a umbanda est presente alguns anos antes da consolidao da escola de
umbanda branca nos anos 20 e 30. Ao pesquisar Penna Pinheiro (1986, p. 157) possvel
ler que o mesmo encontrou um primeiro grupo de umbanda em Porto Velho-RO em 1917.
Esse grupo seria liderado por uma mulher, Chica Macaxeira.
que se apoia nas pesquisas da umbanda branca. Observa as consideraes de Nunes
Pereira (1979, p. 122-123, 142-143) e reconhece o culto de Chica Macaxeira como
tambor-de-mina.
21 s "caboclos", contribuindo para a formao tri-racial da nao brasileira, so os nobres ndios que preferiram uma morte heroica a se tornarem escravos. Porm, para os adeptos dos cultos afro-amaznicos, a categoria de espritos caboclos", alm de serem a metfora do ndio que desapareceu no processo de subjugao e colonizao, so a metfora das prprias massas populares da Amaznia, no apenas os descendentes dos ndios mas algo que foi formado num curso peculiarmente complexo e intrincado. Frente contradio na esfera desses espritos que ocorre com a "Umbandizao", os adeptos tentam vrias releituras; mas da mesma maneira como as classes populares da Amaznia no podem ser "integradas" de maneira dcil nos planos desenvolvimentistas sob a tutela do Estado, tambm os espritos da Amaznia no so "integrados" sem problema nos quadros da Umbanda. O resultado que a "Umbandizao" se torna algo que se desenvolve
etti (1989, p. 3-6), estudando o tambor de mina no Maranho, a entidade caboclo no a mesma que aparece nos mitos indgenas ou mesmo espirito de amerndios. Ele muito mais o mestio divinizado.
132
S que o culto de Chica Macaxeira possui elementos estranhos ao tambor-de-
mina, caso 22. O fato de no ter um culto similar na regio sudeste
ou, ao lado, no Maranho no sinnimo de excluso. Trata-se de um culto afro-brasileiro
peculiar, mas um culto. Atualmente, por exemplo, praticado em diversos pontos do
pa 23, mesclando elementos da umbanda e santo daime.
No campo terico, possvel argumentar que se existiu a macumba carioca, que
-
religies afro-brasileiras,
do pas.
Retomando o argumento de Furuya, o caboclo novamente vai ocupar lugar na
compreenso dos cultos afro-24 como a entrada de maior fora das umbandas do sul no seio das religies afro-
25 26.
A umbandizao estudada por Furuya no considera uma exagerada valorizao
da cultura amerndia face aos demais elementos africanos e indo-europeus. Pelo contrrio,
O santo daime, prtica ritual caracterstica da regio norte do pas, tambm passou
por fortes incorporaes de elementos umbandistas:
Durante os rituais, vrios espritos se empenham no aconselhamento de problemas pessoais dos adeptos, os "exames mdicos" e "receitas" so feitos pelos espritos que possuem os mdiuns e os assistentes tomam nota dessas mensagens. Se no sabemos que os mdiuns esto sob o efeito do alucingeno, a situao que se desenvolve se assemelha "sesso de caridade", ritual umbandista que possui o mesmo tipo de escopo; os artigos
22 23 Sobre tal prtica, cf. (GUSMAN NETO, 2012). 24 diminuram a importncia das entidades locais, como o "Marqus de Pombal", "a famlia do Rei da Turquia", "o Povo de Lgua" (FURUYA, 1994, p. 50). 25 influncias das umbandas da regio sul. 26 versus
133
rituais como esttuas de Pretos Velhos e Caboclos, quadro de Iemanj so exatamente os mesmos da Umbanda. Alm disso, tambm os nomes de espritos possessores, como o Rei Urbatan, levam-nos a pensar em uma continuidade com a Umbanda27 (FURUYA, 1994, p. 43).
Durante todo o trabalho de compreenso da umbandizao na regio norte do pas,
fica caracterizado a preocupao de Furuya (1994, p. 46) em associ-la com questes de
urbanizao e dos avanos tecnolgicos promovidos pelo Estado. A questo poltica
tambm ganha destaque.
em vista que as federaes de umbanda deram certa exposio e legitimao das prticas
religiosas afro-brasileiras perante a sociedade civil como um todo. Esse argumento de
Furuya (1994, p. 46) no pode ser aceito na integridade. Afinal, importante frisar que
essas relaes entre federaes e Estado eram muito mais beneficirias para algumas
lideranas que faziam do jogo poltico uma oportunidade de status e poder do que prticas
pblicas de proveito para o povo de santo como um todo. Algo muito comum em diversos
setores religiosos inclusive.
A questo ideolgica tambm possui sua cota de colaborao para a
umbandizao na regio amaznica.
(...) a "Umbandizao" da Amaznia algo em que o processo de tentar "integrar" ao Brasil a regio amaznica, a qual foi apartada regionalmente devido ao seu isolamento at o presente, se desenvolve por meio do canal de representao ou expresso popular que so as religies populares. E em meio a isso, aparecem os novos espritos padronizados a nvel nacional; sistemas rituais so recompilados de acordo com um "sistema de conhecimento grafado" que fornecido pelos "telogos umbandistas"28 e as federaes umbandistas das regies centrais do pas e circula por todo o pas atravs da "indstria umbandista" (FURUYA, 1994, p. 48).
Ocorre que, se esse movimento de integrao for verdadeiro, no foi algo
Alm disso, s possvel pensar em umbandizao
27 Sobre a relao entre umbanda e santo daime, cf. (NETO, 2012). 28 Furuya usa o termo no sentido de estudiosos internalistas da religio e no o sentido que hoje existe de bacharel de teologia, aps o advento da FTU.
134
porque existem elementos rituais dessa prtica geral umbandista que dialogam com as
crenas locais. Talvez aquela gestalt desenvolvida no conceito de escolas por Rivas Neto
(2012) seja uma chave importante para compreender alguns dos motivos, mesmo o
ideolgico, que fez a umbandizao lograr xito.
O processo se deu de forma inteligente. A umbanda no substitui o culto
autctone.
Precisamente, no que a "Umbanda" como "terceiro horizonte" anulou os dois outros horizontes das religies populares da Amaznia formados anteriormente. O resultado que apareceu uma situao em que as tradies mais antigas foram preservadas sob o nome de Umbanda ou foram reinterpretadas dentro do quadro referencial da Umbanda (FURUYA, 199, p. 48).
umbanda e os incorporam em sua prtica ritual. No segundo, mesmo quando
publicamente expem ser contrrios umbanda, acabam que assimilando vrios
elementos da cosmoviso dela.
Apesar de no trabalhar com essas duas categorias de forma explcita, so elas que
esto em jogo na etnografia da tradio de jurema realizada por Luiz Assuno (2010).
Contudo, no consegue ficar parado neles ao analisar a realidade religiosa umbandista
nos sertes nordestinos. Por exemplo, se a classificao de crianas, caboclos, pretos-
velhos e exus satisfazem as umbandas do sul e sudeste para seus respectivos
pesquisadores, Luiz Assuno (2010, p. 231) vai se deparar com mestres, mestras e
caboclos, sendo esses ltimos totalmente ressignificados.
Na viso do religioso, captada por Luiz Assuno (2010, p. 114 e segs.), a
umbanda e jurema so praticamente a mesma coisa. Quando no, uma se baseia na outra
em um processo de simbiose mgico-religiosa. Essa segregao, umbanda versus jurema,
muito mais uma ancoragem terica para compreenso da umbandizao do que
necessariamente uma realidade social e religiosa29.
29 Mesmo existindo rituais mais afetos umbanda (crist) e outros jurema, o religioso no dicotomiza a
chegar uma pessoa e disser que s quer o santo eu no aceito. Tem que participar dos dois, minha nao,
135
Luiz Assuno encontra em sua pesquisa uma umbanda muito mais prxima das
macumbas cariocas do que o espiritismo de umbanda. Talvez, isso o fez levar a escrever
que:
(...) fomos conhecendo e compreendendo a umbanda como uma religio complexa e dinmica. Esse dinamismo um elemento que no a caracteriza como finalizada, mas, ao contrrio, f-la renovar-se, como processo que a cada gira gera um elemento novo, cria uma entidade, d nova direo aos rituais. Assim como os rituais que observamos, que esto sempre em constante
Essa definio de umbanda est longe do modelo de espiritismo de umbanda
contrrio, o sincretismo, a mistura, a (re) elaborao de elementos mgico-religiosos
representam uma constante30. Alis, essa definio de umbanda se aproxima da unidade
aberta em contnua construo que Rivas Neto (2012) apresenta no campo teolgico.
Alguns elementos perpassam essas vrias abordagens sobre umbandizao ou,
pelo menos, que contribuem para compreend-la. Bastide (2006) fala da sincretismo e
convergncia em uma via de duas mos quando evoca o catimb e o candombl. Camargo
(1961) aponta o mesmo processo entre umbanda (crist) e kardecismo. Furuya (1986)
vis--vis a
umbandizao dos cultos autctones. Kelson Chaves (2012, p. 116), discpulo de Luiz
caboclo nesse processo.
Como indicado, os autores evocados at aqui tambm tomam sempre a umbanda
branca como ponto de discusso para a umbandizao. O que o discurso teolgico poderia
contribuir para a questo?
minha dijina... Eu sou esprita... Ns temos o orix como nosso lado direito e temos a jurema como esse outro lado. Ns temos o lado esquerdo (....) Ns temos o nosso orix e temos a jurema (...) A pessoa na pode viver s com um lado s, que ningum quer perder um brao. Ns temos que usar o direito e o
. Contudo, um testemunho no necessariamente algo generalizvel. 30 Mesmo assim, suas concluses apontam claramente para a umbanda branca. Cf. (ASSUNO, 2010, p. 270-271).
136
Rivas Neto (2012, p. 102) continua a discusso da umbandizao, mas agora
considerando um novo paradigma: a igualdade de condies que envolvem todas as
escolas que formam as religies afro-brasileiras. Ele coloca esta
religiosidade do adepto, o que desconsidera embasamento emprico. Sim, o espiritismo
de umbanda (umbanda branca) muito importante para as religies afro-brasileiras e tem
um papel inegvel para a umbandizao31, mas at que ponto ele seria o nico referencial
para compreender a umbandizao em todas as regies do pas?
Isso caracterizaria uma hegemonia de um setor sobre os demais. No campo
sociolgico e antropolgico no um erro, mas se adentrar no fato social o modelo
clssico de umbanda branca est em desuso pelo senso religioso. Como poderia ter
logrado xito em ser a principal referncia umbandista?
Por exemplo, a proibio da utilizao de atabaques, o interdito do sacrifcio
ritualstico de animais32 ou mesmo de rituais de quimbanda com a presena dos exus33.
Pelo contrrio, so prticas rituais que esto em franca expanso nas religies afro-
brasileiras. Alis, prticas recorrentes de alguns dos prprios adeptos da umbanda branca.
Sendo assim, fazendo uso da abordagem de Rivas Neto (2012), a umbandizao
est nas escolas e, portanto, influenciando todo o conjunto. Tanto nos ngulos endgenos
de sua prpria comunidade, quanto nas vrias religies afro-brasileiras com as quais se
relacionam (nvel intrarreligioso).
Esse processo de acelerar o sincretismo, reelaborando os cultos locais e se
modificando de forma global, faz com que a umbandizao promova certa unidade sem,
com isso, uniformizar ou codificar as religies afro-brasileiras (RIVAS NETO, 2012, p.
59). Ao mesmo tempo, dificulta o crescimento das religies afro-brasileiras no mercado
31 32 Como a escola de umbanda branca tem na figura do Zlio seu fundador, vale a pena ressaltar que Dona Lgia e Dona Zilmia, respectivamente neta e filha de Zlio, afirmaram que existia sim a utilizao de um porco castrado nos trabalhos espirituais. Esse animal era sacrificado. Isto um fato. Ento o interdito de sacrifcio animal poder ser pensado hipoteticamente como uma influncia direta dos kardecistas entrantes na umbanda. 33 Os referidos interditos so uma clara influncia do espiritismo na umbanda.
137
religioso, como aponta o censo de 2010, pois compreender as religies afro-brasileiras
idealmente como gestalt retira de cena a preocupao do religioso com a concorrncia34.
Tambm importante levar em considerao se os adeptos dessas referidas
religies esto preocupados com essa questo mercadolgica. Parecem que esto mais
interessados em suas comunidades do que em ganhar adeptos de outras religies ou
mesmo de outras escolas afro-brasileiras.
A umbandizao, para Rivas Neto, promove o fluxo contnuo de informao entre
as escolas. Isso pode ocorrer tambm dentro de uma prpria escola, afinal cada uma delas
composta por inmeros terreiros.
esco -se uma mtua influncia entre o catimb e o candombl. Alm de surgir uma
nova escola, o candombl de caboclo. Uma vez considerada a gestalt das escolas das
religies afro-brasileiras, o surgimento ou alterao de uma escola altera todo o sistema.
Essa capacidade de mudana da tradio afro-brasileira ocorre com escolas
prximas35, mas tambm com escolas bem diferentes. Um caso interessante que merece
destaque o processo de umbandizao e suas consequncias entre a jurema e a umbanda
esotrica.
A
Muitos terreiros na regio sul e sudeste praticam a jurema e existem terreiros, por
exemplo, na capital federal, que adotam o ritual da umbanda esotrica. Mesmo assim, o
contexto hist
bem especficas. Por onde passaria, ento, a umbandizao entre essas duas escolas?
Um ponto de ancoragem importante est em suas respectivas teologias. A Jurema
admite uma diviso inicial ternria de reinos: Vajuc, Tigre, Canind, Urub, Juremal,
Josaf e o Fundo do Mar (BASTIDE, p. 249). Na umbanda esotrica a diviso setenria
34 A doutrina da maioria de suas escolas no admite o salvacionismo e as consequncias naturais, como o caso da converso. A falta de uma busca coletiva por aumentar o nmero de fiis um dos fatores que justificam o encolhimento dos adeptos das religies afro-brasileiras. Contudo, o crescimento desenfreado de grupos pentecostais e neopentecostais que utilizam em sua teologia a demonizao das prticas afro-brasileiras determinante para tal fenmeno censitrio. Sobre esse ltimo ponto ver Mariano (2003) e Silva (2007). 35 Por exemplo, como j discorrido sobre a escola de sntese e a escola de umbanda esotrica.
138
e Yorim (MATTA E SILVA, 2004, p. 93). Considerando o senso religioso, Rivas Neto36
que fora iniciado na encantaria do Pai Ernesto de Xang (Babalorix Ob Omolokan Ad
Ojub) e Pai Matta e Silva (Mestre Yapacany) afirma sobre a correspondncia que pode
ser feita entre ambas as cosmovises: Oxal Urub; Yemanj Fundo do Mar; Xang
Tigre; Ogum Canind; Oxssi Juremal; Yori Vajuc e Yorim Josaf.
Ainda sobre a relao de reinos, orixs e entidades, vale lembrar que o caboclo
responsvel pela linha de oxal o Caboclo Urubato da Guia, nome que na raiz da
palavra possui a mesma origem de Urub. Matta e Silva trabalhava com o caboclo Jurem
de Oxssi, exatamente o nome do reino da encantaria de igual correspondncia com o
orix da entidade.
No mesmo sentido, o Mestre juremeiro Cleone Guedes do Centro Esprita de
Umbanda Caboclo Aracati, localizado em Natal-RN, um dos principais terreiros de
jurema da regio, comentou que o Caboclo Urubato da Guia era muito presente nos
primrdios do terreiro ainda quando o mesmo era conduzido por seu pai carnal e espiritual
na primeira metade do sculo XX (ASSUNO e GUEDES, 2012).
Tanto a umbanda esotrica quanto a jurema em seus primeiros rituais no
utilizavam os tambores. Seus pontos cantados possuem uma entonao e letra muito
prximas tambm. Na questo da msica sacra, a umbanda esotrica estava mais prxima
da jurema nordestina do que de outras escolas, por exemplo, a umbanda branca,
nascedoura na mesma regio.
A relao de Matta e Silva com a comunidade local tambm lembrava muito a
maneira como os catimbozeiros e juremeiros do nordeste lidavam com o pblico geral
como j exposto. Nesses atendimentos, Matta e Silva fazia largo uso do cachimbo,
lembrando a marca, como instrumento mgico de cura, atrao e repulso de espritos.
Essas aproximaes entre catimb e umbanda esotrica no so aleatrias. Matta
e Silva nasceu na cidade de Garanhuns-PE e, at mesmo por questes regionais, ao buscar
as religies afro-brasileiras em sua terra natal foi influenciado pelo catimb da regio. Ao
mesmo tempo, em visita pessoal ao terreiro de jurema da Cabocla Jupiara da Mestra
36 Comunicao pessoal.
139
Natercia de Arajo em Natal-RN, possvel ver uma clara distino entre a umbanda
esotrica e jurema que, paradoxalmente, apresenta igual afinidade de alguns elementos
mgico-religiosos.
A relao apresentada entre umbanda esotrica e jurema refora as duas
modalidades apresentadas de umbandizao (ativa e passiva) por Furuya (1994, p. 17) e
repensadas por Rivas Neto (2012). Existem mltiplas formas de interao entre as escolas
das religies afro-brasileiras e muitas delas passam pela umbandizao considerada na
perspectiva ampliada do conceito ao final dessa seo.
Com expressivo gradiente de possibilidades, o novo conceito trazido por Rivas
Neto de escolas e a releitura da umbandizao oferecem uma ancoragem melhor de
compreenso do novo fato acadmico que a fundao da Faculdade de Teologia
Umbandista. Mais do que isso, sua interao com o espao pblico no recorte realizado
no primeiro captulo, pois retira uma obri
umbandista. Com esta interdependncia entre todas as escolas, possvel admitir que para
conhecer a umbanda enquanto religio faz-se necessrio igualmente discutir todas as
interfaces com as demais religies afro-brasileiras.
Ainda no campo terico, falta apresentar as relaes da tradio oral e escrita,
sendo a primeira a estrutura bsica das religies afro-brasileiras e a segunda do senso
crtico como percebido hoje. Essa lacuna ser preenchida no prximo captulo.
140
3 TRADIO ORAL E TRADIO ESCRITA: TENSES, CONFLITOS E APROXIMAES
O presente captulo apresenta como argumento central que, mesmo partindo de
uma tradio genuinamente oral, as religies afro-brasileiras no estabelecem rivalidade
apresentadas literatura e oralitura1
particularmente interessante de imerso das religies afro-brasileiras no espao pblico.
Para sustentar este argumento, ser apresentada, em primeira instncia, a tradio
cultural em sociedades primevas2, no letradas. Este primeiro olhar ter uma conotao
mais antropolgica mostrando como as ditas sociedades estabeleceram centralmente sua
forma de concepo e transmisso cultural.
Seguindo o raciocnio, na seo seguinte, ser discutida na histria a construo
a revolucionria tecnologia escrita no instante que concretiza no tempo e espao os
fonemas falados. Sem grandes pretenses, o argumento aqui ser simplesmente mostrar
como a proliferao da linguagem escrita aconteceu no exato instante em que se aproxima
do oral.
Dando continuidade compreenso do argumento central, a cultura alfabetizada
continuar sendo abordada, mas se por um lado foi reconhecida a necessidade de se
(re)aproximar da tradio oral, por outro em nada manteve a concepo e transmisso
cultural das comunidades primevas.
A partir da Grcia, novas e inovadoras formas surgem dando um novo significado
ao sujeito, ao indivduo e em paralelo relaes coletivas so reinterpretadas de formas
significativas.3 De igual maneira, ser apontado como a sociedade ocidental atual lida
1 A palavra "oralitura" foi forjada por Ernst Mirville, segundo Laroche (1991). Para Chamoiseau e Confiant (1991), a oralitura tem como figura central aquele que conta, que transmite o conhecimento no passo do tempo, no lugar de inscrio do imaginrio. A oralitura ocupa um lugar importante na escravido, representa a forma esttica da resistncia. Ela foi tambm o lugar onde se misturaram elementos diversos, da frica, animais vrios, da Europa, personagens como o Diabo, Deus e ainda elementos vindos dos carabas, dos indianos, dos chineses. 2 Lembrar que, se so sociedades de um passado distante, qualquer reconstruo conjectural. 3 Ao afirmar isto, no est sendo negada a importncia de outras culturas que fizeram esta passagem para a tecnologia escrita e, principalmente, alfabetizada. Mas, a cultura grega co-fundadora, ao lado da semtca-
141
com a escrita. Este manuseio to profundo que algumas instituies essenciais s
passam a fazer sentido hoje com a utilizao recorrente da escrita. Concomitantemente, a
oralidade no perdeu a sua fora, mas ressignificou sua funo e aplicao quando
comparada s sociedades tradicionalmente orais, conforme ser explorado na quarta
seo.
Diante do exposto, a conexo da tradio oral com a escrita enseja novas
Jack Goody (2012) pensa oralidade a partir da sua origem fundamentalmente escrita. Da
uma das explicaes do termo e para sua correta compreenso, urge analisar questes que
populares. Sobre esses pontos que a quinta seo foi construda.
Alm disso, a relao da fala com a escrita retomada agora de outra perspectiva:
produo humana principalmente no que diz respeito apresentao, contedo e
distribuio.
O prximo elemento componente da sustentao do argumento central, exposto
na seo seis, a discusso da memria como um fator determinante na compreenso das
diferenas e, paradoxalmente, aproximaes entre o escrito e o oral. A memria e, em
igual importncia, o esquecimento so determinantes na construo de uma bagagem
cultural, e a maior ou menor utilizao da oralidade e da escrita permite mltiplas formas
de percepo da realidade.
Uma vez compreendida a relao das tradies orais e escritas e seus
comportamentos na sociedade ocidental, a stima pretende verificar as aproximaes e
contrastes na esfera pblica pelas religies afro-brasileiras considerando seu conjunto de
valores e formas de transmisso particulares.
ocupado pelos terreiros diante da oralidade e escrita. O estudo de caso feito por Lisa
Castillo (2010) nos candombls da Bahia ser utilizado como referncia neste momento,
pois discute com exatido a insero da escrita em comunidades preconceituadas como
crist, do pensamento ocidental vigente. Inclusive, possibilitadora da esfera pblica tal como atualmente. Cf. Seo 3.3.
142
refratrias a tal mtodo de transmisso cultural, caso das tradies religiosas africanas.
Tal discusso propicia um cabedal terico mais seguro para compreender a constituio
da primeira faculdade de teologia afro-brasileira mediando saber escrito e oral a ser
discutido no prximo captulo.
3.1 No ncio era o Verbo! E tambm o gesto, o silncio...
A tradio cultural em sociedades primitivas o ponto de partida de significativa
importncia para compreender a construo dialtica da oralidade e escrita na histria e
nos dias atuais. Mais do que a palavra dita, o gesto, o silncio e outras formas de
comunicao do corpo ocupam papel privilegiado nesta transmisso como ser discutido
ao longo deste item.
Ian Watt e Jack Goody (2006, p. 13-22) propem realizar esta caminhada histrica
pela descrio geral do mtodo de construo da herana cultural em sociedades no
letradas. Tambm se preocupam em discutir como esta lgica se modifica sensivelmente
com a produo em massa de meios mais fceis de transmisso cultural no exato instante
que a escrita surge e se consolida.
Ao considerar este percurso, o argumento dos autores evoca trs fatores
significativos para uma gerao transmitir seus valores para a seguinte:
1. Questes de sobrevivncia. A sociedade transmite para seus herdeiros o
que, como e onde conseguir meios de subsistncia. Isto vai desde aspectos
da caa, agricultura, como tambm as fontes naturais disponveis.
2. Questes de atuao padronizada. Dito de outra forma refere-se
importncia dos hbitos, usos e costumes. No que pese a transmisso pela
fala ter um papel importante, a imitao e o exemplo que os mais
experimentados representam para os nefitos consideravelmente mais
importante4.
4
13)
143
3. Questes sociais. aquilo que uma sociedade consegue canalizar por meio
de palavras e construir lgica e sentido a um grupo de atitudes e aes que
so empoderados por smbolos verbais dos indivduos da comunidade.
Certamente este terceiro aspecto o mais significativo para a presente pesquisa e,
concomitantemente, de mais valor. Sob certo ngulo de interpretao estas questes
sociais refletem o prprio estilo de vida. Alm de definir o que vestir, como se comportar,
este estilo de vida determina ou, pelo menos, influencia significativamente o pensamento
daquele povo, bem como a noes mais amplas (tempo e espao), logo, os objetivos de
vida em aspectos sociais, naturais e sobrenaturais.
Durkheim (2003) acompanha este raciocnio reconhecendo como essas categorias
de compreenso do mundo so determinantes na construo do capital intelectual de toda
uma sociedade. O que assegura a permanncia5 destas categorias de gerao para gerao
a linguagem, por ser a mais objetiva e fcil forma de expresso social do grupo.
Esta transmisso e construo do estilo de vida por meio da linguagem podem ser
um grupo. Dessa maneira, todas as crenas e valores, todas as formas de conhecimento,
so comunicadas entre indivduos no contato face a face 6 (GOODY e WATT, 2006, p.
14).
O reconhecimento antropolgico reitera o porqu das religies afro-brasileiras
serem de tradio oral. Como exemplo, um dos aspectos mais importantes para a
transmisso de valores espirituais nas religies afro-brasileiras a iniciao. A mesma s
a
espiritual.
A naturalidade e antiguidade da comunicao oral tm um papel considervel no
contedo que efetivamente assimilado e reproduzido em cada gerao. Existe um
relacionamento profundo entre o smbolo e o referente (GOODY e WATT, 2006, p. 14).
5 Ao afirmar permanncia, no significa que as categorias permanecem estanques. Pelo contrrio, na
do tempo dada as influncias contingenciais do imaginrio, da prpria cultura, sem falar de aspectos do ambiente enquanto natura naturandis. 6 Goody e Watt na continuao desta passagem alertam que o exposto diferente do contedo material da tradio cultural, citando os exemplos das pinturas em cavernas ou mesmo as machadinhas de mo. O que est em jogo nesta relao face a face o que fica armazenado nos escaninhos da memria humana.
144
expressar toda a valncia sucessiva de sentidos historicamente construdos, tal como um
registro escrito que as sociedades hodiernas podem exprimir.
A prpria palavra dita sofre inmeras transformaes quando considerado quem,
quando, de que maneira7, onde e para quem falou. Enfim, as circunstncias tornam-se
muito especficas.
Outra forma de constatar o aspecto do relacionamento direto entre smbolo e
referente pode ser constatada em Durkheim e Mauss. Durkheim traou um meio de
ligao entre as ideias de espao (smbolo) e distribuio dos aborgenes australianos
(referente), os Zuni de Pueblo e os Sioux das Grandes Plancies. Este entrosamento
denominado por ele mesmo como morfologia social de uma sociedade particular refora
o exposto (DURKHEIM e MAUSS, 1902, p. 7-11).
As instituies em sociedades primevas no letradas tambm marcam
distanciamentos claros quando comparadas s letradas. O contedo completo da tradio
que emerge na sociedade armazenado na memria humana, inclusive quando
institucionalizada. O que implica na maior influncia dos processos humanos de
preferncias conscientes e inconscientes das informaes e no prprio esquecimento
quando comparado ao que est escrito.
Esta viso acompanha as percepes de Goody e Watt ao reconhecerem a funo
central das lembranas individuais no seio das instituies de sociedades no letradas
Alis, eles vo alm. Entendem que em cada gerao a memria individual s real na
justa medida em que acessada pela herana cultural. Dito de outra forma, a memria vai
adaptar os processos sociais avoengos s novas realidades e anseios comunitrios
(GOODY e WATT, 2006, p. 16). Tudo que no servir para o momento, certamente ser
necessrio e justificado.
A funo social da memria e do esquecimento pode, ento, ser vista como o estgio final da que foi chamada organizao homeosttica da tradio cultural em sociedades no letradas. A lngua desenvolvida em associao intima com a experincia da comunidade e aprendida pelo indivduo no contato face-a-face com os outros membros. O que continua a ser de relevncia social armazenado na memria, enquanto o resto
7 Por exemplo: gestos, pausas e inflexes vocais, entre outros.
145
normalmente esquecido: e a linguagem sobretudo, o vocabulrio o meio efetivo desse processo crucial de digesto e eliminao social que pode ser visto como anlogo organizao homeosttica do corpo humano por meio da qual ele tenta manter sua condio de vida presente8. (GOODY e WATT, 2006, p. 17)
O argumento trazido por Goody e Watt de que a transmisso da tradio cultural
em sociedades orais homeosttica pode ser sustentado se for considerado que a memria
funciona para atender os anseios sociais do e no presente. Da mesma maneira como o
corpo humano procura a homeostasia eliminando e destruindo algumas substncias e
assimilando e (re)utilizando outras, as sociedades de predominncia oral fazem isto com 9
Ainda sob a influncia destes dois autores, possvel compreender que as
mudanas na memria coletiva em sociedades orais se tipificam de trs formas (GOODY
e WATT, 2006, p.19).
Em primeiro lugar so os processos de gerao. Ou seja, aqueles que surgem a
partir do movimento natural da vida das pessoas. O sempre dito: nascer, crescer,
reproduzir e morrer. Este ciclo natural que no linear reflete na maneira como as
sociedades orais e, porque no, as religies da natureza (PESSOA DE BARROS;
VOGEL; MELLO, 1993) encaram passado e presente.
No segundo momento so constatados os processos de organizao. Isso ocorre
quando emergem as ligaes com os rearranjos das unidades constituintes da sociedade.
Neste caso podem ser citados como exemplos: as migraes, imigraes, surgimento de
novos grupos, fuso de antigos ou decadncia de outros. A prpria lgica embutida no
as das religies afro-
muito influenciada por este segundo tipo. Afinal, um terreiro de umbanda, de candombl
8 No que pese esta viso, eles no negam que mesmo em tradies totalmente orais foram construdos mecanismos de sobrevivncia do contedo com padres formalizados de fala, repeties sucessivas de
histrias e mitos, entre outros. (GOODY e WATT, 2006, p.17) 9 Para que no haja dvida, importante pontuar que no existe aqui nenhuma afirmao de inexistncia de mecanismos nas tradies letradas para esquecer ou ressignificar contedos. Apenas est sendo dada nfase ao que, de fato, se processou em sociedades no letradas e, consequentemente, nas tradies religiosas fundamentadas na oralidade.
146
ou de outra escola qualquer fruto desses processos de transformao. Dois terreiros de
emplo, podem apresentar ritos bem diferentes entre si10.
Finalmente os processos de mudana estrutural, onde podem ser citados os casos
prprio sistema social, quando gerada
(GOODY e WATT, 2006, p. 19).
Como exemplo possvel olhar com maior ateno o processo de gerao.
Nele, est envolvida naturalmente a perpetuao da espcie o que causa a extenso
da cadeia genealgica, mesmo considerando as intempries de vrios matizes que podem
crescimento constante o que vai sensibilizar acentuadamente as modificaes na memria
coletiva.
Com os novos nascimentos a linhagem da comunidade se aprofunda e este fato
de outra forma, necessria uma coeso na estrutura hereditria para que a expanso
genealgica no acabe esfacelando os laos culturais criados na tradio. As sociedades
africanas so prdigas em exemplificar o exposto. O conceito de
cunhado por Barnes (1947, p. 48-56) dialoga frontalmente com o exposto quando estuda
o fenmeno social geral do processo de contrao.
Em frica, na regio onde hoje aproximadamente a Nigria, tinha-se o hbito
de cultuar o ancestral avoengo da comunidade. Era muito importante permanecer presente
na memria coletiva o Bab Egun11 quando de sua morte. Se por algum motivo o ancestral
fosse esquecido nos cultos post mortem, dificilmente teria condies de reencarnar.
Uma das formas de manter esta memria viva e rediviva era justamente aumentar
o nmero de membros da famlia. Quanto mais familiares ele possuir, mais chances de
ser lembrado e cultuado. Entretanto, se a famlia agora crescida no lembrava
10 Senhora da Piedade no Rio de Janeiro localizada em Cachoeiras de Macacu, Rio de Janeiro. Em outro terreiro da mesma influncia de escola umbandista no utiliza o charuto como elemento ritual, caso da APEU (Associao de Pesquisas Espirituais Ubatuba) de So Paulo, capital. 11 Tambm chamado de Egungun, o esprito ancestral que prestou muitos servios de relevante importncia para sua comunidade quando vivo, sendo homenageado em Culto aos Egungun. Na etimologia do termo, Bab (pai) Egun (Esprito) o pai de uma coletividade de espritos afins.
147
ritualisticamente de seu pai ancestral, o seu Bab Egun, de nada adiantaria. Sendo assim,
liga
da sua respectiva comunidade.
A importncia dada na genealogia pela pena de Goody e Watt associada com o
exemplo do Bab Egun remete mesma funo que Malinowski (1988, p. 96-153) deu
reocupao de
simplesmente retratar o tempo passado da melhor maneira possvel. Esta
a oralidade consegue se ajustar melhor diante deste dinamismo.
O elemento social na lembrana resulta em genealogias sendo transmudadas no curso de sua transmisso; e um processo similar ocorre com vistas a outros elementos culturais da mesma maneira, para mitos, por exemplo, e para saberes sagrados. Divindades e outros agentes sobrenaturais que servem seu propsito podem ser silenciosamente destilados do panteo contemporneo; e, como as sociedades mudam, mitos so esquecidos tambm, atribudos a outros personagens ou transformados em seus significados. (GOODY e WATT, 2006, p. 17)
Essa homeostase cultural constatada em sociedades orais constri uma identidade
no sujeito to marcante que sua percepo do passado como algo linear e estanque
praticamente nula. Em contra partida, os registros em sociedades letradas pululam e
alertam o tempo todo aos membros da sua comunidade para aceitarem a objetividade e
quase imutabilidade do passado historicamente informado.
Um exemplo pertinente surge de Franz Boas (1904, p. 2): para o esquim, o
mundo sempre foi como ele agora. Em outra sociedade oral temos o exemplo:
Os Tiv no reconhecem quaisquer contradies entre o que eles dizem agora e o que eles diziam h cinquenta anos, desde que nenhuma documentao duradoura exista para eles, para ser colocada junto de seu ponto de vista atual. Mito e histria mesclam-se numa s coisa: os elementos na herana cultural que deixam de ter relevncia contempornea tendem a ser logo esquecidos ou transformados; e, como os indivduos de cada gerao adquirem seu vocabulrio, suas genealogias e seus mitos, eles so inconscientes de que vrias palavras, nomes-
148
prprios e histrias foram descartados, ou que outras tiveram seus significados transformados ou foram substitudas (GOODY e WATT, 2006, p. 22).
Em suma, justo aceitar que o contedo, a forma e a transmisso cultural em
sociedades primitivas, no letradas, foram bem diferentes quando comparada s
sociedades letradas. Estas caractersticas marcam profundamente at os dias atuais as
religies afro-brasileiras, como foi discorrido no captulo anterior sobre os pontos comuns
de todas as escolas das religies afro-brasileiras. As variaes de escola para escola no
altera o ncleo duro da tradio.
149
3.2 Os vrios tipos de escrita e suas consequncias na sociedade
Uma vez compreendida a lgica processada nas sociedades ancestrais orais, nesse
item ser discutida na histria a construo dos vrios tipos de escrita e como isto afetou
ta
como concretizao dos fonemas falados.
A ideia de passado, na forma mais objetiva como compreendemos e aceitamos
hodiernamente, depende de registros permanentes e a escrita ocupa um papel de destaque
para suprir esta necessidade. Logo, o advento da escrita vai ter impactos mais ou menos
significativos na transmisso do arcabouo cultural de uma sociedade inteira.
direta e proporcionalmente ligada com a eficincia que um sistema de cdigos escritos
ter para exercer a funo de meio de comunicao somada capacidade de alfabetizar
os membros da sociedade.
A pictografia certamente um dos sistemas mais antigos, seno o primeiro, que
se prestava a este fim comunicacional. Um ponto de partida pertinente para compreenso
do caminho que a consolidao da escrita percorre pode ser encontrada em Goody e Watt:
No incio da pr-histria, o homem comeou a expressar ele prprio de forma grfica e suas pinturas em caverna, suas gravaes em rocha e seus entalhes de madeira so morfolgica e presumivelmente os precursores da escrita. Por algum processo de simplificao e de estilizao, eles parecem ter conduzido a vrios tipos de pictografias encontradas em sociedades simples (GELB, 1952, p. 24 e ss.). Enquanto as pictografias so quase universais, seu desenvolvimento como sistemas auto-suficientes capazes de estender o discurso ocorreu apenas entre os ndios das plancies (VOEGELIN, 1961, p.84 e 91). Pictografias tm desvantagens bvias como meio de comunicao. Por um lado, um vasto nmero de smbolos necessrio para representar todos os objetos importantes na cultura. Por outro, uma vez que smbolos so concretos, a sentena mais simples necessita de uma srie muito elaborada de signos. (GOODY e WATT, 2006, p.23)
O argumento apresentado leva em considerao o binmio: decodificao e
traduo. Para um sistema de comunicao importante a capacidade do intrprete da
informao decodificar o que fica dificultado pelo nmero excessivo de smbolos na
150
pictografia. Uma vez decodificado, o dado precisa ser traduzido para haver a correta
compreenso. Obviamente, o desenho sugerido pela pictografia possui infinitas
interpretaes o que impossibilita a comunicao ser simples e direta.
Quaisquer destes sistemas pictogrficos que traduzem smbolos diretamente com
objetos tornam-se complexos.
por generalizao ou por associao de ideias, isto , fazer um smbolo valer tanto uma
classe geral de objetos quanto outros referentes conectados diretamente com o desenho
Essas relaes de significado podem estabelecer conexo com outros smbolos de
forma contnua ou no. O que torna esta linguagem simblica profunda, at mesmo
Nas religies afro-brasileiras existem correspondncias com estes sistemas
ancestrais de comunicao. Especificamente o uso de um fundamento religioso chamado
pemba, largamente utilizado pelas vrias escolas umbandistas. A mesma remete a uma
escrita sagrada que faz uso de smbolos praticamente pictricos para representar ordens e 12.
Diante desta realidade religiosa, percebe- -
-brasileiras, lembrando que a interpretao dessa escrita se d
no senso religioso.
Retomando a histria, no final do quarto milnio antes de Cristo, o estgio de
desenvolvimento de formais mais complexas de escrita chega ao ponto de ser um fator
muito importante para o desenvolvimento de culturas orientais. A maioria dos smbolos,
neste momento, retratava objetos do mundo aparente.
As sociedades da poca tambm iniciaram uma representao padronizada dos
objetos simbolizados por uma palavra em especial seguindo a lgica: um objeto igual a
uma palavra. Com o amadurecimento do modelo, entram os logogramas13 ou palavras
12 diferentes de acordo com a escola da qual aquele terreiro oriundo. Apenas como ilustrao, possvel citar explicaes do senso religioso sobre a lei de pemba. Na Umbanda popular faz uso de smbolos simples como espada, flecha, sol, pirulito. J outra escola, a umbanda esotrica faz uso de smbolos que esto frontalmente conectados com as primeiras formas de escrita, alguns traados chegam a ser idnticos aos que so encontrados nas cavernas no Brasil e fora dele cf. (MATTA E SILVA, 2004). 13 Logogramas so smbolos ou grafemas nicos que denotam um conceito concreto ou abstrato da realidade. Um logograma que denota um conceito atravs de um smbolo grfico tambm chamado de
151
que possibilitavam exprimir muitos significados ao mesmo tempo (GOODY e WATT,
2006, p. 24).
Em relao aos hierglifos egpcios, a Ankh o desenho de uma cruz14 que
poderia representar tanto o prprio objeto em si como a vida. Tempos depois, numa clara
tentativa de superar os logogramas, surge o princpio fontico. por meio dele que se
tornou possvel expressar todas as palavras de uma lngua por meio da escrita.
os sumrios puderam usar o smbolo ti, flecha, para significar ti, vida um conceito que
2006, p. 24).
As tenses e aproximaes entre oralidade e a escrita encontram neste momento
uma situao interessante. Como j fora afirmado, sem registro claro e objetivo oferecido
pela tecnologia escrita impensado conhecer o passado da forma como acessamos nos
dias atuais, mesmo sabedores que os arquelogos podem extrair muita coisa a partir da
cultura material, sem escrita (p.ex., a cultura incaica).
O distanciamento das sociedades primitivas, portanto orais, evidente.
Paradoxalmente esta tecnologia escrita robusta s consegue aparecer quando imita a fala
por meio dos fonemas, o que aproxima novamente o oral para o escrito15. Por isso,
qualquer associao com a oralidade presente precisa ser cuidadosamente transportada,
pois existe uma predominncia escrita que evidentemente no havia poca.
O que no pode ser negado tambm a necessidade de gravar nomes pessoais e
palavras de outras culturas serviu para encorajar estas referidas sociedades de escrita
-
todo avano, porm, ainda so constatadas algumas tentativas fracassadas de registro
escrito da cultura justamente no ponto em que a tradio oral era e prdiga: transmitir
eficientemente a aplicao de princpios fonticos s geraes seguintes.
ideograma. Se a representao feita de forma direta, atravs de uma imagem, frequentemente estilizada, um pictograma. 14 A Ankh conhecida tambm como cruz ansata. Conhecido tambm como smbolo da vida eterna. Os egpcios a usavam para indicar a vida aps a morte. 15 Este assunto ser retomado nas pginas seguintes
152
A apario de um sistema de comunicao escrito calcado exclusivamente em
representao de fonemas16 se d apenas nos silabrios17 do oriente prximo entre 1500-
1000 a.C., at finalmente a Grcia, sem conta