Joao W Geraldi - Escrita, Uso Da Escrita E Avaliacao

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  • 7/24/2019 Joao W Geraldi - Escrita, Uso Da Escrita E Avaliacao

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    ESCRITA, USO DA ESCRITA E

    AVALIAO

    Joo Wanderley Geraldi

    A arte de narrar est

    definhando porque a

    sabedoria - o lado pico da

    verdade - est em extino.

    WALTERBENJAMIN

    Provavelmente o leitor procurar obter aqui alguns critrios que

    lhe permitam melhorar seu desempenho de professor na"correo" e na "avaliao" de redaes de seus alunos. Umadas questes mais freqentes precisamente: "como avaliarredaes?".

    O ttulo deste texto justifica essa expectativa. Revertamo-lade imediato. De fato, minha preocupao ser pr em questoprecisamente a questo: "como avaliar redaes?". Tentareirecuperar alguns dos problemas prvios a essa questo, e que,

    como tais, podem iluminar as causas que no s levam arespostas diferenciadas mas tambm produzem a prpriaquesto.

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    Parceria entre sujeitos

    Como espero poder demonstrar, a pergunta bem colocada: avaliar redaes. Porque a ningumocorre avaliar o editorial de um jornal, umaconversao informal ou o discurso de um poltico.Normalmente, discordamos ou concordamos com umeditorial; acrescentamos argumentos a favor oucontra uma idia defendida num discurso;questionamos a oportunidade de tratar de um assuntoou ainda nos perguntamos pela validade ou pelosefeitos concretos de uma conversao, etc.

    Sei que, neste momento, o leitor est se

    perguntando: e isso no avaliar? Eu responderiaque sim. Mas h uma diferena fundamental: quandons, professores, nos perguntamos "como avaliarredaes?", temos em mente precisamente oexerccio simulado da produo de textos, dediscursos, de conversaes: a redao. Isso porquena escola no se produzem textos em que um sujeitodiz sua palavra, mas simula-se o uso da modalidadeescrita, para que o aluno se exercite no uso daescrita, preparando-se para de fato us-la no futuro. Ea velha histria da preparao para a vida,encarando-se o hoje como no-vida. o exerccio.

    Qualquer proposta metodolgica a articulao de uma con-cepo de mundo e de educao - e por isso uma concepo deato poltico - e uma concepo epistemolgica do objeto de

    reflexo -no nosso caso, a linguagem - com as atividadesdesenvolvidas em sala de aula. O primeiro deslocamento a fazer,

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    de um lado, o da funo-aluno que escreve uma redao parauma funo-professor que a avalia e, de outro lado, o prprio atode produo escolar de textos. Por qu?

    Porque impossvel manter uma coerncia concebendo o

    aluno como aquele que se exercita para o futuro, exigindo aomesmo tempo que use com adequao a modalidade escrita dalinguagem, j que esta, nas palavras de Benveniste, " toprofundamente marcada pela expresso da subjetividade quens nos perguntamos se, construdas de outro modo, poderiaainda funcionar e chamar-se linguagem".

    Ao descaracterizar o aluno como sujeito, impossibilita-se-lheo uso da linguagem. Na redao, no h um sujeito que diz, masum aluno que devolve ao professor a palavra que lhe foi dita pelaescola. Percival Leme Britto, estudando as condies deproduo do texto escolar, conclui que esta " marcada, em suaorigem, por uma situao muito particular, onde so negadas lngua algumas de suas caractersticas bsicas de emprego, asaber, a sua funcionalidade, a subjetividade de seus locutores einterlocutores e o seu papel mediador da relao homem-mundo.

    O carter artificial desta situao dominar todo o processo deproduo da redao, sendo fator determinante de seu resultadofinal".

    Para mantermos uma coerncia entre uma concepo de lin-guagem como interao e uma concepo de educao, esta nosconduz a uma mudana de atitude - enquanto professores - anteo aluno. Dele precisamos nos tornar interlocutores para,respeitando-lhe a palavra, agirmos como reais parceiros:

    concordando, discordando, acrescentando, questionando,perguntando, etc. Note-se que, agora, a avaliao est seaproximando de outro sentido: aquele que apontamos em relaoao uso que efetivamente, fora da escola, se faz da modalidadeescrita.

    O direito palavra

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    Feitas essas breves consideraes, tomo-as como pontos departida para a reflexo sobre dois textos (ou um texto e umaredao?) de crianas1:

    /. A casa bonita.

    A casa do menino.

    A casa e do pai.

    A casa tem uma sala.

    A casa amarela. 2. hra uma vez

    umpionho queroia ocabelo

    dai um emnmopinheto dapasou um

    umenino Upo enei pionho apasou

    um emnino pionheto da omeninopegoupionho da amunhr pegoupionho

    da todomundosaiogritdo todomundo pegou

    pionho di at sofinho begoupionho.

    Ambos os textos so de crianas em seu segundo ano deexperincia escolar. Que dizer de tais textos? Os dados apropsito dos alunos nos mostram, no mnimo, um critrio deavaliao da escrita, tal como ela se d, em termos gerais, naescola. O autor do texto 1 foi aprovado no ano anterior; o autordo texto 2 repetiu a primeira srie e foi, portanto, consideradocomo no-alfabetizado.

    luz das consideraes que vnhamos fazendo, o autor doprimeiro texto entendeu o jogo da escola: seu texto norepresenta o produto de uma reflexo ou uma tentativa de,usando a modalidade escrita, estabelecer uma interlocuo com

    um leitor possvel. Ao contrrio, trata-se do preenchimento de umarcabouo ou um esquema,baseado em fragmentos de reflexes,observaes ou evocaes desarticuladas2. Ele est devolvendo,por escrito, o que a escola lhe disse, na forma como a escola lhe

    10 primeiro texto de um aluno que em 1983 freqentava a segunda srie do primeiro grau; o segundo texto do aluno que estava, em 1984, repetindo a primeira srie. Os textos foram motivos de reflexo dosprofessores envolvidos nos projetos "Estratgias de leitura e produo de textos" (1983) e "Desenvolvimentode prticas de leitura e produo de textos" (1984) no Programa de Integrao do Ensino de Primeiro Grau,

    Unicamp-IEL/MEC-Sesu.2Conforme Cludia Lemos (1977). Nesse artigo a autora considera e analisa as "estratgias de preen-chimento" utilizadas porvestibulandos em suas redaes.

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    disse. Anula-se, pois, o sujeito. Nasce o aluno-funo. Eis aredao.

    O autor do segundo texto, ao contrrio, usa a modalidadeescrita para contar uma histria. Ainda que no outro plo do

    processo de interlocuo a leitura possa ser prejudicada porproblemas ortogrficos e estruturais, h aqui de fato um texto, eno mera redao. Na verdade, o autor ainda no aprendeu o

    jogo da escola: insiste em dizer a sua palavra. Foi reprovado erepete a primeira srie.

    O fato de considerarmos a seqncia 1 como redao e aseqncia 2 como texto, e portanto avaliarmos positivamenteeste e negativamente aquele, no quer dizer que tal texto noapresente problemas. Que fazer com eles? O problema maisbvio o relativo ortografia oficial, e a prtica da produo e daleitura de outros textos ajudar o aluno a ultrapassar suasdificuldades. Apenas para facilitar, fao uma "traduo emortografia oficial" do texto:

    Era uma vez um piolho que roa o cabelo de um menino

    piolhento da passou um menino limpo sem piolho a um

    menino piolhento da o menino pegou piolho da a mulher

    pegou piolho da todo mundo saiu gritando todo mundo

    pegou piolho da at seu filhinho pegou piolho.

    Mais interessante do que os problemas ortogrficos, nestetexto, so as influncias da oralidade na escrita, repeties, usode conectivos como "da", estruturao da narrativa, etc. claroque entre este texto, tal como produzido, e um texto na

    modalidade escrita, variedade padro, h um caminho apercorrer. Isto se aceitarmos a hiptese de que o compromissopoltico da aula de lngua portuguesa oportunizar o domniotambm desta variedade padro, como uma das formas deacesso a bens que, sendo de todos, so de uso de alguns. Parapercorrer este caminho, no entanto, no necessrio anular osujeito. Ao contrrio, abrindo-lhe o espao fechado da escolapara que nele ele possa dizer a sua palavra, o seu mundo, quemais facilmente se poder percorrer o caminho, no pela

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    destruio de sua linguagem, para que surja a linguagemdaescola, mas pelo respeito a esta linguagem, a seu falante e aoseu mundo, conscientes de que tambm aqui, na linguagem, serevelam as diferentes classes sociais.

    devolvendo o direito palavra - e na nossa sociedade istoinclui o direito palavra escrita - que talvez possamos um dia lera histria contida, e no contada, da grande maioria que hojeocupa os bancos das escolas pblicas. E tal atitude, parece-me,d novo significado questo "como avaliar redaes?"apontando, no mnimo, para critrios diferentes daqueles quereprovaram o autor do texto, e aprovaram o "autor" da redao.3

    3 evidente que com isso no estou querendo dizer que acriana que produziu a seqncia 1 deva ser reprovada. Aocontrrio, preciso devolver-lhe o direito de dizer a sua palavra.Talvez, com a devoluo, seus textos percam o asseio a quenossos olhos se habituaram...

    3 evidente que com isso no estou querendo dizer que a criana que produziu a seqncia 1 deva serreprovada. Ao contrrio, preciso devolver-lhe o direito de dizer a sua palavra. Talvez, com a devoluo, seustextos percam o asseio a que nossos olhos se habituaram...