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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA O CENTAURO E A PENA: LUIZ CARLOS BARBOSA LESSA (1929-2002) E A INVENÇÃO DAS TRADIÇÕES GAÚCHAS JOCELITO ZALLA Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Orientador Prof. Dr. Benito Bisso Schmidt Banca examinadora Profa. Dra. Ana Lúcia Liberato Tettamanzy Profa. Dra. Letícia Borges Nedel Profa. Dra. Susana Bleil de Souza

Jocelito Zalla - O Centauro e a Pena - Barbosa Lessa Invençao das Tradiçoes (1929-2002)

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

O CENTAURO E A PENA:

LUIZ CARLOS BARBOSA LESSA (1929-2002) E A INVENÇÃO DAS TRADIÇÕES

GAÚCHAS

JOCELITO ZALLA

Dissertação apresentada como requisito parcial

para a obtenção do título de Mestre pelo

Programa de Pós-Graduação em História da

Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Orientador

Prof. Dr. Benito Bisso Schmidt

Banca examinadora

Profa. Dra. Ana Lúcia Liberato Tettamanzy

Profa. Dra. Letícia Borges Nedel

Profa. Dra. Susana Bleil de Souza

2

“E, para que as coisas vivessem, criou Nhanderuvuçu o Kayuá, o dom da palavra; pois uma

coisa só existe quando há um nome para chamá-la”.

Barbosa Lessa, em Rodeio dos Ventos.

3

Aos meus pais, Batory e Nilva Zalla,

alicerces em todos os momentos.

4

Agradecimentos

Esta é, para mim, a parte mais difícil da dissertação. Não gostaria aqui de parecer

injusto com todos aqueles que, de alguma forma, participaram ou acompanharam, mesmo à

distância, o percurso dessa pesquisa. Mas, na impossibilidade de citar, nesse espaço, uma lista

muito mais extensa do que a exposta, apontarei, também, para algumas “categorias” ou

círculos de convívio e amizade, os quais, com certeza, estarão muito bem representados pelos

nomes mencionados.

Antes disso, quero agradecer às instituições que tornaram possível esta investigação.

Primeiramente, à Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que me abriga desde 2003, e

que se resigna a fazer com que a tríade “pública, gratuita e de qualidade” não se torne apenas

um jargão, mas continue realidade. Agradeço, também, ao Conselho Nacional de

Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), cuja bolsa permitiu a dedicação

necessária para o desenvolvimento deste trabalho. Ambas as instituições também auxiliaram

financeiramente minhas participações em eventos realizados fora do estado, as quais

possibilitaram colocar em debate os avanços parciais de pesquisa e colaboraram para a

configuração do texto final, que ora apresento. Aproveito a deixa para agradecer aos colegas

que, nesses espaços, se dispuseram a discutir meu trabalho e contribuíram para seu

amadurecimento.

Quero agradecer, ainda, aos funcionários dos Programas de Pós-Graduação em

História e em Letras, que sempre me foram atenciosos e solícitos na resolução das questões

burocráticas costumeiras. Da mesma forma, agradeço aos funcionários dos arquivos e das

bibliotecas nas quais pesquisei; em especial à Zuleica, que, muito prestativa, abriu as portas

do Acervo Barbosa Lessa pelas manhãs, para que eu pudesse aproveitar melhor a passagem

por Camaquã, após o decreto que estabeleceu o turno único, pela tarde, de atendimento ao

público em suas repartições municipais.

Em relação ao curso, não poderia deixar de mencionar a profa. Céli Pinto, por me

lembrar que posição política e rigor científico não precisam ser elementos excludentes e, ao

mesmo tempo, que a primeira não pode configurar preconceito com o objeto de estudo; a

profa. Regina Weber, pela possibilidade oferecida de discutir, em sua cadeira, o conceito de

“representação”, mas também pelo exemplo de densidade teórica conciliada com humildade

5

acadêmica, postura que quero ter sempre como referência; por esse mesmo motivo, os

professores Luís Augusto Fischer, cuja leitura do que foi a primeira versão do Capítulo II

desse trabalho ainda se mostrou essencial para seu desenvolvimento final; Ana Lúcia Liberato

Tettamanzy, cujas discussões sobre o “popular”, as relações entre literatura e oralidade e entre

performance e identidade muito auxiliaram a redação dos Capítulos III e IV, além da parceria

acadêmica que se tornou amizade sincera; e Susana Bleil de Souza, cujos debates promovidos,

em sua disciplina, ainda permitiram as reflexões sobre a idéia de “invenção de tradições” e a

perspectiva de análise de textos historiográficos adotada ao longo dessa dissertação. À Ana e

à Susana também devo gratidão pelo aceite em participar de minha banca de qualificação e

pelas considerações expostas naquela ocasião, as quais ajudaram a conduzir os rumos da

investigação. À professora Letícia Nedel, cujos trabalhos foram primordiais para a

compreensão de meu objeto, por também aceitar, muito solícita, ler essa dissertação e compor

sua banca final.

Agradeço ao professor Benito Schmidt pela orientação sempre dedicada e cuidadosa,

que se iniciou no já longínquo ano de 2004. Não tenho como negar que devo muito de minha

formação – no que há nela de positivo, é claro – a ele, incluindo a descoberta do gosto pelos

estudos biográficos. Não posso deixar de agradecer, ainda, à leitura minuciosa e criteriosa que

fez desse trabalho, a qual apontou para muitas de minhas falhas interpretativas e

incongruências narrativas, auxiliando a sanar grande parte dos problemas identificados.

Também agradeço à confiança depositada na pesquisa e por se deixar convencer naqueles

momentos em que minhas propostas pareciam intangíveis. Se ainda existem falhas, entretanto,

tenho que ressaltar que a responsabilidade por elas é somente minha.

Aos colegas do mestrado e das disciplinas cursadas, obrigado pelas trocas muito

enriquecedoras. Agradeço, em especial, às “Adrianas da Literatura”, a Bayer e a Santiago,

minhas instigantes interlocutoras, que se tornaram também grandes amigas. Outra conquista

foi a amizade do Telles, companheiro dedicado de tantos trabalhos e a quem ainda devo as

conversas “cafeinadas” sobre “tradição” e performance, que muito ajudaram a pensar meu

objeto. Falando em trabalho e amigos, não poderia esquecer a primeira equipe editorial da

Revista Aedos, com a qual comunguei um projeto inicialmente impreciso que ora se revela

um bem-sucedido “filho coletivo”; aprendi muito com vocês e, como todos, espero que o

fruto do trabalho tenha muitas gerações de “pais”.

Desde que cheguei a Porto Alegre, conquistei e construí uma nova família, família

múltipla e desconexa, formada, por exemplo, por um e outro Barcellos, Monteiro, Bernardes,

Menegat, Nunes, Ivankio e Arnoud. Amigos e companheiros que torcem, vibram, apóiam,

6

brigam, discutem e cuidam de mim. Obrigado pela acolhida! Agradeço, assim, ao Lucas,

primeiro amigo e amigo de todas as horas; à Valeska, a nossa pequena grande

atriz/professora, pela amizade conturbada (sim!); à Carla, por compartilhar as tantas dúvidas e

incertezas sobre a academia e a vida; à Anelice, meu pequeno frasco cheio de suporte, atenção

e carinho, e minha “personal patrimonialista”; à Dúnia, amiga de sempre, de perto e de longe.

A todos vocês por me ouvirem despejar Barbosa Lessa pelos cotovelos e por terem a

sensibilidade e a gentileza de prestar atenção e fingir, no bom sentido, que me entendem. Em

especial, à Anita, pelas revisões do inglês e pela audiência sempre interessada; à “tia”

Rosalinda, por ter me ouvido (de vez em quando), por acreditar ter compreendido o que eu

dizia e, em conseqüência, por ter dado muitos, e divertidos, “pitacos”; ao Edson, pela

assessoria técnica com a conversão de moedas, no Capítulo V, pela avaliação das “frases de

efeito”, ao longo do texto, e por não ter entendido, por não ter quisto compreender, por não ter

fingido compreender, mas, mesmo assim, ter sempre acreditado e me acompanhado.

Se a academia virou questão de fé em minha vida, não posso esquecer aquela família

originária, de sangue e de coração, composta por alguns Santos, uma Rech, e meus três Zallas

favoritos, que, lá de Vera Cruz, sempre apostou em mim e no meu trabalho. Sendo assim, vou

quebrar o protocolo e agradecer também àqueles a quem dedico essa dissertação, meus pais.

Disse em minha formatura e reafirmo dois anos depois: sem vocês, jamais conseguiria!

7

Resumo

A presente pesquisa visa a construir uma biografia histórico-intelectual do folclorista,

militante tradicionalista e escritor sul-rio-grandense Luiz Carlos Barbosa Lessa (1929-2002).

O objetivo do trabalho é analisar sua trajetória intelectual e sua obra para acessar o processo

de construção/atualização das representações sociais sobre a figura do gaúcho pampiano e a

elaboração de projetos coletivos de identidade regional e de “invenção de tradições” nela

baseados, desenvolvidos, principalmente, na segunda metade do século XX. Apresento,

primeiramente, algumas considerações sobre o “tripé” teórico que baliza a análise: o conceito

de representação, segundo as considerações de Pierre Bourdieu e Roger Chartier, fundamenta

a forma de ler a construção social da realidade; a noção de tradição, a partir da avaliação da

proposta de Eric Hobsbawm, ilumina o papel dos símbolos e dos ritos neste processo; o termo

projeto, seguindo a formulação de Gilberto Velho, liga vida e obra, trajetória e teoria, política

e identidade. As conclusões mostram que as respostas de Barbosa Lessa, nos anos 1950, para

as críticas da geração “realista” de escritores regionalistas à literatura romântica precedente

conciliam ambas as posições no desenho do novo “gaúcho a cavalo”, possibilitando, de um

lado, o “resgate” do mito como base para a reivindicação do amparo social governamental ao

campesino rio-grandense e, de outro, o apelo ao “popular” como foco da ritualização

efetivada nos palcos dos Centros de Tradições Gaúchas (CTGs). Em sua intervenção no

debate identitário local, Barbosa Lessa incorpora outros sujeitos em sua narrativa sobre a

formação social do Rio Grande do Sul e dá voz àqueles grupos calados ou marginalizados,

como o negro, a mulher (inventada como “prenda”, na ética e na estética tradicionalista), o

índio e o imigrante. Se o gaúcho pampiano continua sendo o centro de suas atenções, ele

acaba costurado e reconfigurado por elementos culturais de origem social e mesmo étnica

diversa. Nos final dos anos 1970, inicia-se uma tensão, nas diretrizes da Secretaria de Cultura,

Desporto e Turismo do Estado (SCDT), sob direção de nosso personagem, e, a seguir, em

seus escritos, entre essa perspectiva agregadora, de inspiração folclorista, e outra tradicional e

“lusitanista”, de inspiração historiográfica. Sua resolução, em favor do primeiro pólo, só se dá

com a intervenção de Lessa nos debates internos do tradicionalismo e na defesa do gauchismo

em geral das críticas acadêmicas, nos anos 1980. Busco, nesse sentido, atentar para as

especificidades do discurso memorialista, que possibilitaram enunciações carregadas de

afetividade na conciliação de tradicionalistas com os dissidentes nativistas e na contenda com

8

os intelectuais universitários. Assim, de um Rio Grande luso e brasileiro "agauchado" pelo

meio, chegamos, em seu projeto, a outro Rio Grande plenamente "gaúcho" porque cindido

pela diversidade e pela mudança.

Palavras-chave: Barbosa Lessa, “invenção de tradições”, folclore e tradicionalismo gaúcho,

memória e identidade regional, biografia, história intelectual, representações sociais.

9

Abstract

This work aims to construct an intellectual biography of the folclorist, tradicionalist

movement‟s activist and writer Luiz Carlos Barbosa Lessa (1929-2002). It is our objective to

analyze his trajectory and his written production to access the process of construction of the

social representations about the brazilian gaucho and the collective projects of regional

identity and “invention of traditions” in Rio Grande do Sul (Brazil) during the second half of

the twentieth century. First of all, I introduce some theoretical considerations about: a) the

social construction of reality through the concept of “representation”, according to Pierre

Bourdieu and Roger Chartier; b) the role of symbols and rituals in this process through Eric

Hobsbawm‟s notion of “invention of tradition”; c) the connection between life and literature,

trajectory and theory, politics and identity provide by Gilberto Velho‟s concept of “project”.

The findings show Barbosa Lessa‟s answers to the contests in regionalist literature during the

1940‟s harmonize romantic and realistic positions to fabricate a new pattern of “gaucho on

horseback”. His perspective enables the use of this myth to reclaim State social support to the

“rio-grandense” peasant. To the other side, it allows the popular appeal in the construction of

symbols and rituals for the gaucho traditionalist movement. In his intervention in the regional

identity debate, Barbosa Lessa adds, in his narrative about the social formation of Rio Grande

do Sul, another subjects and groups symbolically marginalized, like African element, women

(invented as “prenda”) and immigrants. Whether the gaucho continues in the center of

attention of Lessa, his new model is set of cultural elements with diverse social, and including

ethnic, origin. In the late 1970‟s, a tension starts, in the guidelines of the Rio Grande do Sul‟s

State Secretary of Culture, under his direction, and, later, in his writings, between this open

perspective, inspired in folklore, and another more traditional, inspired in historiography. The

resolution in favor of the first pole of the tension just happens when Barbosa Lessa

intermediates the internal dispute in traditionalist movement and defends the “gauchismo”, in

general, criticized by a new generation of university intellectuals, in the 1980‟s. So, I intend to

show the specificities of the memorials‟ discourse that enable emotional enunciations in the

reconcilement of traditionalist activists and the dissidence “nativista” and, either, in his

controversy with academic professors. Thus, the image of “Rio Grande do Sul” changes from

a Portuguese and Brazilian State turned gaucho by the characteristics of the environment to

another absolutely gaucho because of his cultural variety and transformation condition.

Key-words: Barbosa Lessa, “invention of tradition”, folklore and gaucho traditionalism,

regional memory and identity, biography, intellectual history, social representations.

10

Sumário

Introdução: O monarca das coxilhas conquista a urbe....................................................... 12

Os pioneiros: Tau Golin e Ruben George Oliven ................................................................. 19

A historiografia e o gauchismo: a nova produção acadêmica ............................................... 32

Capítulo I - A poética da tradição e outras notas teóricas .................................................. 40

1.1 - A realidade da representação: da idéia ao conceito ...................................................... 41

1.2 - A poética da tradição: o processo e o produto entre a cultura oral e a escrita .............. 51

1.3 - Projeto ou ilusão?: biografia, trajetória e autoconstrução ............................................ 59

Capítulo II - A nova face do centauro: tradição, modernidade e a atualização do

regional .................................................................................................................................... 69

2.1 - “E assim quedaram os centauros...”: a modernidade inventa a tradição ...................... 72

2.2 - O passado redivivo: o surgimento do movimento tradicionalista gaúcho .................... 80

2.3 - Os primeiros traços do escritor: Barbosa Lessa reencontra o monarca ........................ 85

2.4 - A mudança continua: “todos somos gaúchos!” ............................................................ 92

Capítulo III - A política do mito: o homem do campo e o “sentido” do projeto

tradicionalista de Barbosa Lessa ......................................................................................... 101

3.1 – Paragens distantes, idéias inquietantes: o tradicionalismo e a fixação do campeiro no

meio rural ............................................................................................................................ 102

3.2 – Uma doutrina para a tradição: “apropriação” e romantismo político na tese de Barbosa

Lessa ................................................................................................................................... 107

3.3 - O erudito contador: os contos gauchescos e a ampliação do mito ............................. 116

3.4 – Mulheres e homens de papel: a invenção literária da “prenda” e o último suspiro do

andarengo ............................................................................................................................ 130

Capítulo IV – Do mito ao rito: folclore, tradição e performance ..................................... 140

4.1 - Da “Grande Revolução” ao folclore regional: o “militar” e o “campesino” na

simbologia tradicionalista ................................................................................................... 144

11

4.2 – Do “fato folclórico” ao “folclore de fato”: teoria e empiria na poética híbrida da

“dança tradicional”.............................................................................................................. 163

4.3 – Dos papéis aos salões: a atualização performativa do caráter regional e a dinâmica

coreográfica de gênero ........................................................................................................ 179

Capítulo V – Pedaço(s) de pátria: a diversificação da “região” e a atualização do gaúcho

mítico como políticas públicas ............................................................................................. 195

5.1 – Os “doze Rio Grandes” do secretário Lessa: o contexto federal na área de cultura e o

projeto da SCDT ................................................................................................................. 197

5.2 – A região conciliada (?): a dilatação oficial da memória regional .............................. 215

5.3 – Do “popular” ao gauchesco: “Fierros” domesticados nas ações do Estado ............... 229

Capítulo VI – Dois lados da mesma moeda?: a construção da “região” através dos

discursos historiográfico e memorialista ............................................................................ 240

6.1 – A conquista do “País da Solidão”: a invenção historiográfica do Rio Grande do Sul

luso e brasileiro ................................................................................................................... 242

6.2 – A estância de ponta-cabeça: o discurso da memória na batalha dos sentidos ........... 257

“Porteira Aberta”: considerações finais ............................................................................. 276

Arquivos e bibliotecas consultadas ..................................................................................... 289

Fontes pesquisadas ............................................................................................................... 290

Bibliografia ............................................................................................................................ 299

Anexos .................................................................................................................................... 310

12

Introdução: O monarca das coxilhas conquista a urbe

Era para mim mais uma tarde de aula com sol e calor. Uma terça-feira em meados de

março de 2008. As atividades do Curso de Mestrado haviam começado há pouco e o ar de

novidade e empolgação mesclava-se com dúvidas e incertezas. A disciplina de “Literatura,

Memória e Oralidade” era então uma empreitada suspeita que estaria em vias de se tornar uma

grata surpresa. Após alguns embates entre jovens críticos da literatura e alguns historiadores

em formação, fui brindado com uma divertida história que ora relato. Trata-se de breve

parábola sobre um choque cultural. A memória é falha, bem sabemos. Alguns equívocos

podem ser cometidos, alguns ornamentos podem ser acrescentados, mas nos centremos em

sua lição. Armava-me com minhas anotações de história-ciência para defender, mais uma vez,

meu discurso com pretensões de verdade dos tão incômodos questionamentos dos analistas da

ficção, quando a trilha do debate chegara a outro ponto de discórdia: “identidade”. O que se

esconde sob tal vocábulo (vedete da teoria social contemporânea)? São vários os debates em

torno do conceito e múltiplas as suas definições; o que, obviamente, se manifestaria na sala de

aula. E como prova de que a abstração anda de mãos dadas com a experiência, não houve

demora para que trouxéssemos à tona aqueles milhares de homens e mulheres que bradam

orgulhosos o seu amor ao Rio Grande do Sul.

Eis que aquela jovem morena de sotaque castelhano e olhar inquisidor puxa-me pelo

braço e pergunta: “Mas por quê vocês se fantasiam de gaúchos?”. Não pude disfarçar um leve

riso e tentei, sem muita reflexão, explicar-lhe que o correto seria dizer “pilchar-se”, ou seja,

trajar uma “pilcha”, vestir a indumentária tradicional do estado. Então ela contou-me que

pouco tempo após sua chegada de Porto Rico, fora levada por amigos porto-alegrenses para

assistir o desfile da Semana Farroupilha, em 20 de setembro de 2007. Contou ainda que ficou

estarrecida com tudo o que via: cavalos no meio da urbe, autoridades políticas em trajes

“campeiros”, milhares de cidadãos em êxtase comungando, dentro e fora da avenida, símbolos

de uma suposta cultura rural. A mesma pergunta fora feita a um de seus amigos “nativos”. A

resposta, sem deslizes: “Eles não estão fantasiados, eles são gaúchos!”. Compreendi,

surpreso, que a minha fala não fora muito diferente daquela ouvida alguns meses atrás.

Compreendi, também, que havia muito mais em comum entre mim, aprendiz de historiador do

gauchismo, com pretensões de analista frio e objetivo, e aquele rapaz que assistia atento às

13

celebrações ou, ainda – e por que não? –, entre mim e aqueles agentes do ritual gauchesco, do

que poderia (e gostaria de) imaginar. Somos todos alvos de um mesmo discurso. Ou melhor,

de discursos sobre um mesmo ícone. Discursos que buscam também nos dizer quem somos,

pelo simples fato de aqui termos nascido. Compartilhamos representações comuns sobre o

gaúcho mítico dos panegíricos e sobre o gaúcho gentílico do dia-a-dia. Lemos nas janelas dos

ônibus da capital que tendo cavalo encilhado e prenda do lado, o gaúcho é feliz1. Lemos no

jornal um ex-governador dizer que a identidade gaúcha é a síntese das nossas diferenças e

aquilo que unifica negros, índios, brancos, mulatos, homens, mulheres, crianças, jovens,

idosos, campo, cidade, capital e trabalho.2 Vemos um senador da República, com reconhecida

trajetória política de luta em prol dos direitos dos trabalhadores e de defesa dos movimentos

sociais, sentir saudades dos farrapos.3 Assistimos na televisão, em meio a confrontos políticos

e denúncias de corrupção, nossa governadora paulista trajar vestido de prenda e transferir as

operações administrativas do Estado para a cidade de Guaíba, simbólico esteio farroupilha.4

Tudo isso, embalados por músicas que cantam o “céu azul”5 de nossa terra e nos dizem que

“Deus é gaúcho de espora e mango”6.

Mas como chegamos até aqui? Há algumas décadas essa história parecia tomar outro

rumo. Em 1952, Raymundo Faoro publicou um ensaio sobre o livro satírico “Antônio

Chimango”, de Amaro Juvenal (pseudônimo do senador Ramiro Barcellos).7 A crítica ao

Chimango mandão que tenta assumir a patronagem da Estância de São Pedro é, para Faoro,

produto de uma ética do heroísmo gaúcho, forjada nas lutas de fronteira e na árdua vida

campeira. Pois Chimango não é um caudilho, líder político “feudal” que comanda seu séquito

de gaúchos. Ele é um letrado, “oposto do campeiro”, “é o intrigante palaciano, fraco e

1 O poema “Caminho do Crioulo”, de Michel Teixeira Pereira, foi um dos escolhidos para estampar as janelas

dos ônibus de Porto Alegre e das linhas do Trensurb (trem cujo trajeto vai da capital à cidade de São Leopoldo)

na 16a. edição do “Concurso Poemas no Ônibus e no Trem”, referente ao ano de 2008. Seguem os versos na

íntegra: “Nasce o guri/ Vem o sonho:/ Dia, noite/ Pampas, cavalos/ Encilhar é preciso/ Minuano sopra/ Perfume

de prenda/ Festa de galpão./ Crioulo criado,/ Cavalo encilhado,/ Prenda do Lado,/ Gaúcho Feliz...”. 2 RIGOTTO, Germano. Identidade Gaúcha. Correio do Povo. Porto Alegre, 17/09/2008, p. 4.

3 O senador Paulo Paim, do Partido dos Trabalhadores, assim descreve o estado: “Ah, como é gigante esse nosso

Rio Grande velho de guerra, Rio Grande do povo, Rio Grande da diversidade, Rio Grande da terra, Rio Grande

dos rios, Rio Grande dos caminhos, Rio Grande dos heróis, Rio Grande dos presidentes, Rio Grande dos

trabalhadores, Rio Grande da história que tem gravada em seus registros o memorável feito da Revolução

Farroupilha”. PAIM, Paulo. Saudade dos farrapos. Zero Hora. Porto Alegre, 20/09/2008, p. 20. 4 A governadora Yeda Crusius fez a transferência do governo no dia 19 de setembro de 2008, despachando em

edifício histórico, na antiga casa do líder farroupilha Gomes Jardim (de onde a tomada de Porto Alegre fora

arquitetada em 1835). 5 Os versos de Elton Saldanha, na música “Eu sou do Sul”, dizem: “Eu sou do Sul,/ é só olhar pra ver que eu sou

do Sul/ A minha terra tem o céu azul,/ é só olhar e ver”. 6 Trecho da música “Querência Amada”, composição de Victor Mateus Teixeira, vulgo “Teixeirinha”.

7 Trata-se de um ataque ao governo de Borges de Medeiros publicado no ano de 1915, no qual este político fora

retratado jocosamente como Antônio Chimango.

14

manhoso”.8 Faoro, entretanto, admite na cultura letrada um importante componente da ordem

no Rio Grande do Sul. Na cúpula da hierarquia política, o letrado tolhe os desmandos do

poder caudilho. Sem ele, a “Estância de São Pedro” estaria sujeita à violência e às alianças

dos potentados regionais: “Graças ao Antônio Chimango foi possível consolidar a obra dos

portugueses: prosseguir na integração do gaúcho, indisciplinado e rebelde, aos padrões da

cultura litorânea e citadina”.9 Mas, assim também, ao nível mais fundamental da vida social e

política sul-rio-grandense, o autor impõe uma dicotomia entre o campo e a cidade, entre o

gaúcho, “afirmativo nas suas qualidades primárias” de campeiro, e o letrado, “representante

da ordem civil”. Encontramos este tipo de representação social10

já na segunda metade do

século XIX. Em um dos cânones da literatura gauchesca platina, Martín Fierro, de José

Hernández, o “gaucho” desertor do Exército foge das autoridades administrativas, “el jefe y el

juez de paz”, para o campo, território livre da presença do Estado, da ordem civil e do

letrado.11

Como foi possível, então, que, em poucas décadas, o campo adentrasse a cidade?

Como o imaginário regional superou a oposição entre o gaúcho e o citadino? Como o letrado

passou a usar bombachas, chapéu de aba larga e esporas para desfilar em praça pública?

Como se tornou necessário, hoje em dia, que olhos distantes denunciem a naturalização de

uma identidade fundada na fusão de ambos os elementos? A pretensão deste trabalho é narrar

um pouco dessa história, contribuindo para iluminar tais questões.

8 FAORO, Raymundo. Antônio Chimango algoz de Blau Nunes. In: TARGA, Luiz R. P. (org.). Breve Inventário

de Temas do Sul. Porto Alegre: UFRGS/FEE, Lajeado: UNIVATES, 1998, p. 44. 9 Ibidem, p. 45.

10 O termo será discutido adiante, em capítulo de cunho teórico.

11 Martín Fierro fora publicado em dois tomos: o primeiro, em 1872, o segundo, sete anos depois. O livro é

considerado obra fundadora na nacionalidade argentina. Sobre a presença da obra no Brasil, Lígia Chiappini

aponta que o desejo e o esforço da comunidade de Santana do Livramento em fixar a passagem de José

Hernández em 1871 pela cidade em sua memória e na do Rio Grande do Sul é um indicador da importância

assumida pela obra em nosso estado, mas também marca a presença do Brasil em Martín Fierro: “...se

considerarmos que todos esses desejos que geram textos, bustos, cartas e centros são manifestações de leituras

do poema por brasileiros e que as leituras de uma obra passam a constituir essa mesma obra”. Assim, a autora

apresenta um breve resumo das instâncias de recepção do livro no Brasil: “Essa apropriação vai desde a

memorização de estrofes inteiras por leitores-ouvintes até a crítica literária e a tradução ao português, passando

pelas retomadas intertextuais dos ficcionistas e poetas rio-grandenes e chegando à construção de uma narrativa

cheia de obstáculos e pequenas vitórias para assegurar o pertencimento do poeta e do livro mesmo, pelo menos

em parte, ao Brasil. CHIAPPINI, Lígia. Martín Fierro é brasileiro? In CHIAPPINI, Ligia, MARTINS, Maria

Helena, PESAVENTO, Sandra Jatahy (orgs.). Pampa e Cultura: de Fierro a Netto. Porto Alegre: Editora da

UFRGS, Instituto Estadual do Livro, 2004, p. 68. Lea Masina trata brevemente da circulação do primeiro tomo

da obra no Rio Grande do Sul e nos países do Prata: “Assim, um livro modesto, o Martín Fierro, de José

Hernández, era recitado de memória, tanto nas salas de estâncias, quanto nos galpões brasileiros e platinos, onde

a peonada se reunia para ouvir a leitura e charlar livremente, após a lida campeira. Segundo cronistas e

historiadores, a edição da primeira parte do Martín Fierro, conhecida vulgarmente como La Ida (a segunda será

La Vuelta alcançou tiragens que ultrapassaram os 40 000 exemplares”. MASINA, Léa. A gauchesca brasileira:

revisão crítica do regionalismo. In.: MARTINS, Maria Helena (org.). Fronteiras Culturais: Brasil-Urugai-

Argentina. Porto Alegre: Ateliê Editorial, 2002, p. 103.

15

Sete anos antes do artigo de Faoro ser publicado, um jovem letrado, oriundo da cidade

de Piratini, no sul do Estado, chegava a Porto Alegre para realizar seus estudos secundários no

Colégio Júlio de Castilhos. Hábil com as palavras, Luiz Carlos Barbosa Lessa (1929-2002)

foi contratado, no ano seguinte, para fazer revisões de notícias da “Time” e reportagens

esporádicas para os periódicos da Livraria do Globo. Dentre textos diversos, vez por outra, o

autor retratava as “coisas” do Rio Grande do Sul, sua história e suas figuras “típicas”, como o

tropeiro. Em 5 de setembro de 1947, segundo a narrativa consolidada sobre as origens do

movimento tradicionalista gaúcho, Barbosa Lessa acompanhava o translado dos restos mortais

do general farroupilha David Canabarro da cidade de Santana do Livramento para a capital,

quando assistiu, extasiado, um grupo de colegas do “Julinho”, vestidos com certas roupas

oriundas do meio rural e utensílios da lida campeira, passar em desfile pelas ruas da capital.

Dois dias depois, tal grupo tomaria uma centelha da pira onde ardia o fogo simbólico da

independência do Brasil. A chama, denominada então de “crioula”, passou a ser cultivada em

um galpão improvisado no pátio do Colégio até o dia 20 de setembro daquele ano – data

lembrada como o início da revolta do Rio Grande do Sul contra o Império em 1835. O jovem

Luiz Carlos somou-se aos demais estudantes e, durante os 12 dias que precederam ao dia 20,

organizou com eles uma série de festejos e atividades culturais (música, poesia, dança e

culinária) de inspiração regional. Chamaram o período de “Ronda Crioula” e resgataram,

ainda, o antigo estandarte farroupilha.12

Permaneceram organizados e, conhecidos mais tarde

como o “Grupo dos Oito Pioneiros”13

ou como “tradicionalistas históricos”, ampliaram, na

escola, seu DTG – Departamento de Tradições Gaúchas –, fundado cerca de dois meses antes

do episódio e que se tornaria o molde para a construção, em 1948, do primeiro Centro de

Tradições Gaúchas, o 35 CTG, onde empreenderam uma série de pesquisas e elaboraram uma

ritualística a ser encenada e experimentada em suas dependências, estabelecendo as diretrizes

do que seria mais tarde o Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG), instituição

congregadora dos diversos CTGs, fundada em 1966, e responsável hoje pela difusão e

regulamentação do tradicionalismo no Rio Grande do Sul e no mundo.14

12

FAGUNDES, Antônio Augusto. Curso de Tradicionalismo Gaúcho. 2ª ed. Porto Alegre: Martins Livreiro

Editor, 1995, p. 41. 13

São, na verdade, dez pioneiros, a contar o ingresso de Lessa e Glaucus Saraiva: João Carlos D‟Ávila Paixão

Côrtes, Antônio João de Sá Siqueira, Cilço Araújo Campos, Ciro Dias da Costa, Cyro Dutra Ferreira, Fernando

Machado Vieira, João Machado Vieira, Orlando Jorge Degrazia, Glaucus Saraiva e Luiz Carlos Barbosa Lessa. 14

Atualmente, existem CTGs em todo o Brasil, com MTGs em Santa Catarina, Paraná, Mato Grosso do Sul,

além de uma Confederação Paulista de Tradições, e de centros em outros países, como EUA e Japão. Sobre a

configuração atual do tradicionalismo organizado, diz Léa Masina: “Hoje, a maior parte dos cidadãos convive

bem com a idéia de que as tradições regionais são cultuadas nos CTGs e que estes não representam apenas um

setor reacionário da cultura sul-rio-grandense, como era o pensamento dominante nos anos de 1970. O

crescimento numérico dos CTGs, que já se espalham por outros estados e, até mesmo, já existem no exterior, é

16

Essa história também será a de Barbosa Lessa. Na presente dissertação,

acompanharemos sua vida e, principalmente, seus escritos para acessar alguns dos rumos e

das estratégias do projeto tradicionalista. Sua mãe, dona Alda Barbosa, era filha da elite

agrária da região sul do Estado; seu pai, Dr. Luiz de Oliveira Lessa, um médico de classe

média graduado no Rio de Janeiro, oriundo de família de agricultores de Canguçu. Eles

decidiram morar em uma pequena chácara nos arredores da cidade de Piratini. Criado

próximo das lidas rurais, Barbosa Lessa fora iniciado nas letras pela própria mãe, que também

o introduziu na teoria musical, piano e datilografia. Cursou o antigo “ginásio” na cidade de

Pelotas, onde escrevia, no jornal do Ginásio Gonzaga, contos de cunho regionalista15

e onde

fundou o conjunto musical “Os Minuanos”. Em 1945, como já sabemos, partira para a capital.

Três anos depois, Barbosa Lessa ingressou na Faculdade de Direito da Universidade Federal

do Rio Grande do Sul, colando grau em 1953. De 1950 a 1952, empreendeu com João Carlos

Paixão Côrtes uma série de pesquisas folclóricas que visavam a reconstituir as danças

populares do interior do estado, sob a tutela da Comissão Gaúcha ou Comissão Estadual de

Folclore (CEF); esforço que se cristalizou no livro didático “Manual de Danças Gaúchas”

(1956) e no LP “Danças Gaúchas”, gravado pela cantora paulista Inezita Barroso. Em 1953,

passou a residir na capital paulista, onde iniciou curso de pós-graduação na Escola Livre de

Sociologia e Política (ELSP), trabalhou como produtor de cinema e televisão e escreveu para

diversos jornais. Foi um dos organizadores (mesmo à distância) do I Congresso

Tradicionalista do Rio Grande do Sul, que se realizou em 1954, na cidade de Santa Maria, no

qual estruturou-se o movimento, onde apresentou a tese de fundo sociológico O Sentido e o

Valor do Tradicionalismo. Em 1956, montou um grupo teatral que percorreu o país,

encenando peças de cunho folclórico e divulgando danças e costumes ditos “gauchescos”.

Empreendeu pesquisas de campo pelo interior de São Paulo e viagens ao Amazonas, no final

sintoma de uma consciência regional que tende mais a definir e a afirmar semelhanças e diferenças, do que

propriamente cultivar valores do passados longínquo, de todo incompatíveis com a situação política do Estado e

do país.” MASINA, Léa. Op. cit., p. 96. 15

Faz-se necessário alguns esclarecimentos sobre o emprego do termo “regionalismo” e seus derivados.

Primeiro, não se trata aqui do movimento político regionalista que historicamente reivindicou autonomia frente o

centro do país caracterizado por Joseph Love (LOVE, Joseph. O regionalismo gaúcho e as origens da Revolução

de 1930. São Paulo: Perspectiva, 1975). Trabalho com o regionalismo em sua acepção estética e literária,

preconizada pelos primórdios da literatura sul-rio-grandense e retomado com vigor no meio intelectual local a

partir da década de 1920, imbuído pela renovação modernista. Gilda Bittencourt aponta a existência de quatro

regionalismos na literatura rio-grandense: “um romântico, que idealizou o herói gaúcho e o passado guerreiro;

um tradicional, de cunho real/naturalista, que fixou as transformações da sociedade campeira e o

desaparecimento do antigo gaúcho; um, que se propôs a transformar a tradição sob o influxo do modernismo

como base no modelo de Simões Lopes Neto, e um regionalismo que podemos chamar de crítico ou social, na

medida que denunciou a desestruturalização da sociedade campeira e a proletarização do gaúcho”. Todos, no

entanto, tomam como centro a figura do gaúcho e a figuração da campanha como espaço ficcional.

BITTENCOURT, Gilda Neves da Silva. O conto sul-rio-grandense: tradição e modernidade. Porto Alegre:

Editora da UFRGS, 1999, p. 21-22.

17

dos anos 1950, em função do ingresso na Comissão Paulista de Folclore (CPF). Na década

seguinte, ingressou no ramo da publicidade. Voltou a Porto Alegre, em 1974, já especialista

em Comunicação Social. Ingressou nos quadros da Academia Rio-Grandense de Letras

(ARL) e do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul (IHGRS). Foi nomeado

secretário estadual da cultura em 1980, durante a administração de Amaral de Souza, ex-

colega da Faculdade de Direito, quando idealizou o centro cultural que se transformaria na

Casa de Cultura Mário Quintana. Aposentou-se, em 1987, como jornalista e passou os

últimos anos de sua vida em uma reserva ecológica do município de Camaquã, com sua

esposa Nilza. Faleceu no ano de 2002. É, segundo a historiadora Letícia Nedel, considerado o

mentor e o maior intelectual do tradicionalismo gaúcho.16

O objetivo aqui é o de construir uma biografia histórico-intelectual de Barbosa Lessa,

na qual buscarei aliar a análise de três registros de realidade, como veremos no primeiro

capítulo: indivíduo, obra e sociedade. O foco, no entanto, recai sobre o segundo aspecto.

Procurarei examinar através de sua produção intelectual o processo de (re)construção da

figura do gaúcho, da identidade regional do Estado e da ritualística tradicionalista associada a

esses elementos. Como um dos protagonistas desse processo e cuja obra marcou tanto o

movimento tradicionalista quanto o meio intelectual regionalista vindouro no Rio Grande do

Sul17

, a análise de seus textos se mostra um instrumento privilegiado para captar a dinâmica

da fabricação da identidade gaúcha, e pode ajudar a compreender a relação entre o “ser

gaúcho” e o “ser brasileiro”, ao evidenciar o diálogo entre região e nação no período. O título

fantasia deste trabalho, “O centauro e a pena”, é uma metáfora que sintetiza sua preocupação

e seus objetivos: compreender a relação entre o trabalho intelectual do referido autor e a

16

NEDEL, Letícia Borges. Um Passado Novo para uma História em Crise: Regionalismo e Folcloristas no Rio

Grande do Sul. Brasília, 2005. Tese (doutorado em História). Instituto de Ciências Humanas, Programa de Pós-

Graduação em História, Universidade de Brasília, 2005, p. 518. Grande parte destes marcos biográficos é

também apontada retrospectivamente pelo meio editorial e intelectual porto-alegrense e pelo próprio autor.

Penso, para o primeiro caso, no caderno especial do Instituto Estadual do Livro: RIO GRANDE do Sul.

Secretaria de Estado da Cultura. Instituto Estadual do Livro. Barbosa Lessa. Coleção Autores Gaúchos. Porto

Alegre: IEL, CORAG, 2000; para o segundo caso, lembro a coletânea epistolar do autor, publicada como uma

espécie de “livro de memórias a partir da correspondência”: BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. Prezado Amigo

Fulano: meio século de correspondência, de 1950 a 2000. Porto Alegre: Alcance, 2005. Discutirei a elaboração

destes marcos pelo autor nas Considerações Finais deste trabalho. Outras informações, como a participação nas

academias tradicionais e o ingresso na ELSP de São Paulo foram obtidas em documentos variados encontrados

no Acervo Barbosa Lessa, abrigado no Forte Zeca Neto, da Secretaria de Cultura do município gaúcho de

Camaquã. 17

O reconhecimento da contribuição de Lessa à literatura regionalista estaria impresso, segundo Léa Masina, na

sua escolha pela Câmara Rio-Grandense do Livro para patrono da 46ª Feira do Livro de Porto Alegre no ano de

2000, mas insinuaria também uma mudança de expectativa do público e uma nova legitimidade da cultura

regional. MASINA, Léa. Op. cit. p. 98-99.

18

construção de um tipo social específico, o gaúcho.18

E mais, verificar como este trabalho

possibilitou a união de uma cultura letrada e urbana com outra rural, popular e de base oral.

Podemos considerar Barbosa Lessa também como uma síntese dessa relação: ele era “o

gaúcho”, vindo do interior, apegado aos valores campeiros, mas também “o literato”,

intelectual reconhecido, advogado e jornalista, um exemplo de profissional liberal urbano.

* * *

O estudo aqui proposto se justifica, em primeiro lugar, em função do grande alcance

atingido pelo tradicionalismo enquanto fenômeno social e cultural do século XX e pelas

instituições nele baseadas, como os CTGs (que extrapolam as fronteiras brasileiras) e o

próprio MTG. Estudar a obra e a trajetória intelectual de um de seus fundadores e principais

expoentes intelectuais e políticos pode ajudar a compreender como essa história emerge no

cenário brasileiro e mundial, e o vigor com que avança sobre o século XXI. Não tenho a

pretensão (nem a ingenuidade) de explicar o tradicionalismo, bem como o gauchismo19

,

contemporâneos através de sua origem, como se a configuração atual do movimento estivesse

completamente determinada no seu nascer. Ao contrário, a análise da vida e da produção

intelectual de Barbosa Lessa nos auxilia a acompanhar a dinâmica de elaboração,

transformação e cristalização de valores sobre os quais o tradicionalismo assentou-se (ou

buscou-se assentar) e, assim, ajuda a compreender a identificação com o fenômeno e a

aceitação e o crescimento do movimento. Segundo, de acordo com levantamento bibliográfico

realizado, não há pesquisas específicas na área de História acerca do personagem, bem como

existem poucos estudos históricos sobre o tradicionalismo. Outras disciplinas, como a

Antropologia Cultural e a Crítica Literária, têm explorado o gauchismo com bastante

propriedade, mas dentro de seus parâmetros e diretrizes epistemológicas. Acredito que os

historiadores podem cumprir um importante papel na interpretação do

gauchismo/tradicionalismo, pois possuem um olhar peculiar, treinado para a análise do

movimento e atento às condições históricas de cada período. Não pretendo dizer com isso que

18

O “centauro” é uma figura adotada pelo próprio gauchismo; meio homem, meio cavalo, simboliza a simbiose

do peão e do animal na Pampa Gaúcha, expressando um arquétipo utilizado pela literatura especializada desde o

século XIX: o “gaúcho a cavalo”. 19

As considerações acerca destes termos serão feitas adiante. Por hora, saliento que compreendo

“tradicionalismo” como um fenômeno cultural, forma específica de gauchismo, ritualizada e atualizada na

vivência do CTG, e também como um movimento sócio-cultural que preconiza e fomenta essa espécie de

gauchismo. Ao longo dessa exposição, utilizarei os termos “tradicionalismo” e “movimento tradicionalista” com

letras minúsculas para diferenciar tal fenômeno da instituição Movimento Tradicionalista Gaúcho, fundada,

como vimos, em 1966.

19

a preocupação com a diacronia seja exclusividade da História; mas sim, que, dentro dos

parâmetros pelos quais as disciplinas científicas se constituíram, estes são problemas que têm

especialmente balizado e provocado tal campo de conhecimento.20

Essa “bagagem

disciplinar” pode se mostrar, então, bastante rica para a análise do fenômeno.21

Os pioneiros: Tau Golin e Ruben George Oliven

Enquanto a Crítica Literária possui uma rica tradição analítica sobre a figura do

gaúcho (e seus derivados) que remete mesmo aos primórdios do gauchismo22

, somente nas

últimas décadas as Ciências Sociais têm se voltado ao assunto. O marxismo é a base teórica

das primeiras análises sociológicas sobre o gauchismo em geral e sobre o tradicionalismo em

particular. Em 1983, o então jornalista e historiador diletante23

Tau Golin publicou dois livros

que causaram polêmica no cenário intelectual do estado. O primeiro, intitulado Bento

Gonçalves: herói ladrão, trata-se de um texto curto no qual o autor aponta para a idealização

da figura do general farroupilha e procura responder, com base na documentação encontrada,

uma questão, segundo Golin, há muito levantada pela historiografia, mas nunca verificada: em

que medida o Bento Gonçalves histórico teria recorrido às práticas então comuns de

contrabando e roubo de gado? Já sabemos a resposta pelo título do livro. No entanto, além

20

Sempre é válido lembrar a clássica definição de História como “a ciência dos homens no tempo”, do fundador

dos Annales Marc Bloch: “O historiador não apenas pensa „humano‟. A atmosfera em que seu pensamento

respira naturalmente é a categoria da duração. Decerto, dificilmente imagina-se que uma ciência, qualquer que

seja, possa abstrair do tempo. Entretanto, para muitas dentre elas, que, por convenção, o desintegram em

fragmentos artificialmente homogêneos, ele representa apenas uma medida. Realidade concreta e vivida,

submetida à irreversibilidade de seu impulso, o tempo da história, ao contrário, é o próprio plasma em que se

engastam os fenômenos e como o lugar de sua inteligibilidade”. BLOCH, Marc. Apologia da História: ou o

ofício do historiador. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editores, 2001, p. 55. Em recente livro que aborda as relações

entre História e demais Ciências Sociais, William H. SewelL Jr. aponta a análise do tempo como a principal

contribuição da primeira disciplina para às demais: “Mas historiadores, não importa quais seu temas específicos,

também conhecem algo mais: como pensar sobre as temporalidades da vida social” [tradução minha]. SEWELL

JR., William H. Logics of History: Social Theory and Social Tranformation. Chicago: University of Chigago

Press, 2005, p. 7. 21

Hobsbawm caracteriza a análise da “invenção de tradições” como um empreendimento interdisciplinar.

HOBSBAWM, Eric. Introdução: a invenção das tradições. In.: HOBSBAWM, Eric, RANGER, Terence (orgs.).

A invenção das tradições. 3ª Ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002, p. 09-23. Assim, não nego a importância do

diálogo com as demais disciplinas; pelo contrário, busco, como ficará explícito no capítulo teórico e nos

capítulos analíticos seguintes, instrumentos de análise tanto na História Social, quanto na Antropologia Social,

na chamada “nova” História Cultural e na Crítica Literária. 22

Parte desta tradição será abordada no segundo capítulo desta dissertação. 23

Somente em 1991 o autor ingressaria no curso de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Em

1994, concluiu a graduação; em 1996 e em 2001, titulou-se, respectivamente, como mestre e doutor em História

pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

20

disso, o autor procura situar o personagem como representante de sua classe, a oligarquia

pecuária, que, defendendo seus interesses e procurando expandir suas riquezas, não teria

pudores em apelar à ilicitude. Sua proposta cumpre com o papel de desmistificar o herói

construído com hinos de louvores pelas classes dominantes e pelos intelectuais a seu serviço:

“Em todos os ramos, da biografia à arte, etc, tendeu-se a excluir qualquer coisa que

„maculasse‟ o passado dos „construtores do Rio Grande‟. É evidente que Bento Gonçalves,

por ter sido eleito o maior símbolo do Estado, foi purificado ao máximo”.24

A noção de “ideologia” é, pois, fundamental no trabalho de Golin. Grosso modo, o

termo é compreendido, na tradição marxista, como uma visão de mundo particular, construída

pela classe dominante, que, apesar de estar ligada a seus interesses específicos, é por ela

veiculada como expressão das aspirações de toda uma sociedade e época, para impor e

legitimar a sua dominação política e econômica. É desta forma que o autor apresenta o

tradicionalismo em seu segundo livro, denominado, justamente, A ideologia do gauchismo.

Buscando compreender o fenômeno ideológico em suas relações dialéticas com a totalidade

social, Golin identifica no final do século XIX uma correspondência entre as idéias e

expressões culturais que compõem o “universo tradicionalista” e a base econômica agrária do

latifúndio. Assim, a sociedade Partenon Literário, de Porto Alegre, lançaria os fundamentos

do gauchismo como justificativa e legitimação das concepções de mundo da elite rural: “A

sua mistificação serviu satisfatoriamente à oligarquia, quando particularizaram o discurso,

absorvendo a linguagem popular”. Com isso, tornou-se possível “efetivar o transplante

ideológico à totalidade da população”.25

A partir da década de trinta do século XX, iniciou-se

o processo de transição para o modo de produção capitalista no Rio Grande do Sul, com base

no capital industrial urbano e agropecuário, mas as antigas classes de origem campesina não

se libertaram da “alienação da velha ideologia”: “Percebendo as vantagens do mito, as novas

elites urbanas dele se apropriam e o promovem através de seus aparelhos ideológicos, o

folclore, a literatura, a historiografia, a poesia”.26

Uma segunda fase do tradicionalismo

emergiria justamente na década de quarenta, com a aceleração do processo de modernização.

24

GOLIN, Tau. Bento Gonçalves: herói ladrão. Santa Maria: LGR Artes Gráficas, 1983, p. 17-18. 25

Idem. A ideologia do gauchismo. Porto Alegre: Tchê!, 1983, p. 23. 26

Ibidem, p. 14. Vale notar a influência althusseriana no trabalho de Golin pelo emprego do termo “aparelho

ideológico”. Para Althusser, os Aparelhos Ideológicos do Estado (AIE) são compostos por um certo número de

realidades que se apresentam sob a forma de instituições: AIE religiosos, AIE escolar (sistemas de escolas

públicas e privadas), AIE familiar, AIE jurídico, AIE político, AIE sindical, AIE de informação (imprensa, rádio,

televisão etc). Estes não se confundem com o “Aparelho Repressivo do Estado” (ARE), único frente à

pluralidade de AIEs: enquanto o ARE é público, a maioria dos aparelhos do segundo tipo remetem ao domínio

do privado. Mas a principal diferença é que o ARE “funciona através da violência” enquanto os AIEs

“funcionam através da ideologia”. ALTHUSSER, Louis. Aparelhos Ideológicos de Estado. 4a edição. Rio de

Janeiro: Graal, 1985, p. 68-69.

21

É a geração de Barbosa Lessa, Paixão Côrtes e o grupo pioneiro do colégio Júlio de Castilhos.

Apesar de reconhecer no movimento um significativo debate interno, que criou inclusive

desavenças pessoais, Golin diz que o tradicionalismo solidificou-se em uma ontologia que

estabelece claramente sua natureza. Nesse sentido, as discussões não colocam em risco sua

condição estrutural. Pelo contrário, a intensa atividade do grupo relaciona-se com sua missão

de aperfeiçoar o gauchismo, de inseri-lo no cotidiano e fazê-lo vivo na sociedade. Mas frente

à nova realidade capitalista que altera as relações sociais, o grupo viu-se, segundo o autor, na

encruzilhada histórica de interpretá-la, devendo escolher entre misticismo e populismo,

conservadorismo ou convívio com a tecnologia, recuo ou avanço. Decidiu-se por todas as

opções: “O tradicionalismo se popularizou com um conteúdo místico, permanecendo

conservador e radicalmente reacionário; convive salutarmente com a tecnologia e seu avanço,

como parte da classe dominante, significa o recuo das conquistas da população e duma arte

crítica”.27

Em 1987, veio à luz novo livro crítico de Golin sobre a agora chamada “cultura

gauchesca”. Mas, em Por baixo do poncho, a troca do termo ideologia pelo vocábulo

“cultura” não se efetivou em diferença analítica substancial. Na verdade, trata-se de uma

coletânea de textos publicados em jornais e revistas e destinados ao debate, em um intervalo

de tempo que ocupa quase uma década. Portanto, notamos um certo amadurecimento do autor

e uma complexificação das discussões propostas. Encontram-se, assim, lado a lado, escritos

de densidade diversa e com nuances teóricas. No capítulo de abertura, publicado em 1987 no

jornal Diário do Sul, verificamos a seguinte formulação: “As esferas da cultura e do concreto

se interpenetram e, nem sempre, a primeira é um falseamento da verdade”.28

O homem

“materialmente miserável” do campo e da cidade expressaria também o pauperismo de sua

cultura através de traduções particulares de formulações cultas ou artísticas sobre si.

Entretanto, existiriam ainda “bases reais” e “bases culturais” em oposição “para que se

consiga manter dominados milhares de indivíduos, dentro de um conceito mais amplo de

alienação”.29

Não se trataria apenas de uma “manipulação maquiavélica”, salienta ainda o

autor; mas também disso, poderíamos dizer. E assim, o novo texto convive bem com posturas

mais antigas como aquelas presentes em capítulo originalmente publicado no ano de 1984, na

Revista Perspectiva, de Erechim. Nele, Golin cobra dos descendentes de poloneses, alemães e

italianos o compromisso cultural com seus antepassados. Tudo teria sido trocado pelo gaúcho

27

GOLIN, Tau. Op. cit., p. 54-55. 28

Idem. Por baixo do poncho: contribuição à crítica da cultura gauchesca. Porto Alegre: Tchê!, 1987, p. 16. 29

Ibidem.

22

ideal, “criado pelos aparelhos ideológicos de Estado das classes dominantes, principalmente

pela oligarquia em aliança com os novos ricos de origem imigrante”30

, lamenta o autor.

Dois anos mais tarde, um novo livro, A tradicionalidade na cultura e na história do

Rio Grande do Sul, confirma as posições de Golin. O “tradinativismo”, termo cunhado para

unir na análise a dissidência nativista ao tradicionalismo, jamais formaria, de acordo com o

autor, teóricos importantes, apenas centenas de ideólogos: “Esse é um fenômeno comum a

uma série de movimentos sociais, onde a inexistência de uma práxis teórica é ocupada por

uma hierarquia de dogmas; onde, obviamente, não se criam filósofos, porém se multiplicam

os cavaleiros da ideologia”.31

Apesar de salutares contribuições para o estudo do gauchismo em perspectiva sócio-

histórica, levantando e publicizando, inclusive, importante documentação, a análise de Tau

Golin acaba configurando-se em uma verdadeira “caça às bruxas”. Sua interpretação da teoria

marxista lhe conduz a um exercício constante de desmistificação. Minha crítica não advém

somente de divergências teóricas, mas dos usos limitados da teoria e, principalmente, de sua

imposição à realidade social analisada. Em sua ânsia por denunciar os empregos

conservadores do gauchismo, o autor comete o grande pecado de Clio: o anacronismo.

Primeiro, denomina já como “tradicionalismo” as primeiras manifestações organizadas do

gauchismo do final do século XIX. Ora, o termo fora cunhado pelo grupo de 1947-48 – que o

autor identifica como a “segunda fase do movimento tradicionalista” – para definir um novo

projeto político e identitário. Ainda que tal projeto se baseie em mitos e símbolos cunhados

pelos antecessores (e necessariamente ressignificados), o grupo constrói uma associação de

novo tipo, o CTG, e elabora uma nova dinâmica ritual para, como bem aponta Golin, vivificar

o mito celebrado. Portanto, utilizar o termo para qualificar movimentos anteriores nos leva a

interpretá-los em função desta nova configuração. Chegamos assim ao segundo engano.

Sabemos que o MTG teve fortes vínculos com entidades representativas dos latifundiários e

tanto sua estrutura quanto sua visão de mundo serviu aos seus interesses nos confrontos com

movimentos de trabalhadores rurais sem terra nas últimas duas décadas. Mas nada disso

estava dado nos anos quarenta e cinqüenta. As discussões e debates dentro do Movimento não

buscavam o mero aperfeiçoamento do tradicionalismo, mas configuravam disputas entre

diferentes visões de mundo sobre sua ontologia. O próprio Barbosa Lessa, como veremos no

segundo capítulo, nesse momento, situava-se num espectro mais preocupado com as massas

excluídas do processo de modernização do campo do que num âmbito que poderíamos

30

Ibidem, p. 42. 31

Idem. A tradicionalidade na cultura e na história do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Tchê, 1989, p. 48.

23

considerar como “elitista”, defendendo, então, o camponês dos males que Golin identifica

com a transição ao capitalismo industrial e reivindicando a intervenção estatal no amparo aos

grupos pauperizados. O movimento tradicionalista, em sua ótica, deveria auxiliar o Estado

nessa função32

. O terceiro equívoco é, justamente, o de homogeneizar o discurso

tradicionalista e tratar o movimento como um bloco monolítico, o que se traduz na junção, em

seu neologismo “tradinativismo”, dos termos “tradicionalismo” e “nativismo” que, como

também veremos, representavam, a partir da década de setenta, posturas estéticas e políticas

conflitantes. Por último, o afã desmistificador impossibilita que seu olhar se dirija, como

prometido, para as formas de expressão das camadas populares e sua (re)elaboração e

tradução da cultura letrada.33

Na década de oitenta, outra tradição analítica, ou melhor, disciplinar, começou a

preocupar-se com o fenômeno. A Antropologia Social e sua ênfase em questões como

identidade e alteridade, bem como sua compreensão da cultura enquanto sistema simbólico,

foi responsável pela renovação dos estudos sobre o gauchismo no Rio Grande do Sul.

Pioneiros neste sentido são os trabalhos de Ruben George Oliven. Todavia, como veremos

abaixo, sua visão teórica parece, em muitos momentos, levar a interpretações semelhantes

àquelas encontradas nos livros de Tau Golin. Cabe ressaltar que o conceito de ideologia era

então “moeda corrente” nas análises culturais no Brasil. No Rio Grande do Sul, entre os anos

1970 e 1980, os esforços da geração de intelectuais acadêmicos concentravam-se na denúncia

da função ideológica dos mitos da “produção sem trabalho”, da “democracia rural” e da

“miscigenação que não houve” erigidos e difundidos pela produção historiográfica anterior.34

32

Ver, nesse sentido, a tese O sentido e o valor do tradicionalismo, de 1954. 33

Tais posições são mantidas mesmo em seu recente livro Identidades: Questões sobre as representações

socioculturais no gauchismo, de 2004. Pese o vocabulário empregado já no título, a perspectiva teórica procura

apontar já de início para a falsificação da noção de “sociedade tradicional”, compreendida como referente

àquelas organizações sociais de “Antigo Regime”, ou seja, pré-capitalistas. Em sua avaliação, nunca houve,

historicamente, no espaço em que hoje se configura o Rio Grande do Sul, uma sociedade deste tipo, já que o

escravismo aqui instalado já representava o sistema capitalista. O passado narrado pelos textos regionalistas,

então, não seria senão a mera adulteração do tempo, a “invenção totalizante de um civismo retrógrado [grifo do

autor] no interior da sociedade moderna de classes”. Idem. Identidades: Questões sobre as representações

socioculturais no gauchismo. Passo Fundo: Clio, Méritos, 2004, p. 8. 34

NEDEL, Letícia Borges. Op. cit., p. 4. Para Léa Masina, “…ao reagir contra a „tradição‟, a crítica brasileira

dos anos 1970 e 1980 relacionava o gosto pelo registro histórico e pelo passado à noção de continuísmo e aos

constrangimentos poíticos impostos ao país pela ditadura militar. Desse modo, insistia no caráter „insidioso‟ do

regionalismo gaúcho que marcava, no próprio texto, a imobilidade do homem e sua fixação num mundo de

valores ultrapassados”. MASINA, Léa. Op. cit., p. 100. Marco, nesse sentido, foi a coletânea de textos

organizada por Sergius Gonzaga e José Hildebrando Dacanal, intitulada RS: Cultura & Ideologia, com artigos da

historiadora acadêmica Sandra Pesavento, do advogado e historiador diletante Décio Freitas, do advogado

criminalista e político profissional Tarso Genro, entre outros; todos afinados na denúncia dos vínculos estreitos

entre a “cultura gaúcha” e as classes dominantes. Ver DACANAL, José Hildebrando, GONZAGA, Sérgius

(orgs.). RS: Cultura e Ideologia. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1980, 168 p. Para não perder o foco de leitura,

centrado na obra de Oliven, não analisarei o livro nesse espaço (a não ser aquelas passagens dos textos de

24

Mas não podemos esquecer, também, que data de 1980 o artigo do sociólogo Pierre Bourdieu

sobre o papel das representações coletivas na construção da idéia de região.35

Como veremos

no capítulo seguinte, o texto se configura em um apelo ao rompimento com a dicotomia entre

realidade e representação. Não é nenhum absurdo supor que Ruben Oliven conhecesse tal

apelo, pois, em alguns momentos, parece fazer coro ao mesmo.36

Assim, a obra deste autor

revela-se um tanto ambígua. Tal dubiedade permitiu que Letícia Borges Nedel qualificasse

seus trabalhos como o marco do rompimento na academia com o tom denunciatório e,

portanto, “com o modelo de apreensão realista” do regionalismo gaúcho.37

A crítica que segue

tem, então, a função de matizar essa afirmação, pois, como procurarei mostrar, os mesmos

mitos são objetos recorrentes da atenção de Oliven, que seguiu, em boa medida, a abordagem

de sua geração. Acredito que os conceitos possuem uma história e que são pensados de acordo

com determinadas tradições analíticas e vinculados a outras categorias, premissas e modelos

teóricos. Isso não significa defender o purismo teórico. Mas, essa história deve ser respeitada:

a combinação de termos que já possuem certa carga de discussão atrás de si – como o

conceito de representação, no momento – e mesmo usufruem de certo consenso acadêmico a

ponto de se tornarem lugar-comum – como o conceito de ideologia – deve levar em conta

seus fundamentos epistemológicos, evitando formulações incoerentes. Antes de

prosseguirmos, é necessário advertir que a crítica realizada não deve ser entendida como uma

cobrança indevida e mesmo anacrônica, mas objetiva, principalmente, marcar a diferença

entre a postura teórica encontrada nos trabalhos de Ruben Oliven e a que adoto na análise da

construção do tradicionalismo e das “tradições” gaúchas.

Em seu texto mais relevante, o livro A parte e o todo: a diversidade cultural no Brasil-

nação, publicado em 1992 e revisto e ampliado em 2006, o autor explica a reelaboração do

gauchismo, enquanto identidade regional, e sua grande difusão, como um contraponto ao

processo de globalização e homogeneização cultural crescente. No entanto, conforme mostra

o autor, a identidade gaúcha é construída não somente através da afirmação das peculiaridades

do Rio Grande do Sul, mas também pelo seu pertencimento ao Brasil. Ao analisar o modelo

Dacanal e Gonzaga transcritas pelo antropólogo). Vale ressaltar, todavía, que esta obra será retomada em outros

momentos desse trabalho, como nos Capítulos II e VI. 35

BOURDIEU, Pierre. L‟Identité et la Répresentation: Élements pour une réflexion critique sul l‟idée de région.

Actes de la Recherche em Sciences Sociales, n. 35, 1980. A tradução para o português foi publicada em

coletânea de artigos intitulada “O Poder Simbólico” em 1989. Idem. A identidade e a representação: elementos

para uma reflexão crítica sobre a idéia de região. In: ________ . O poder simbólico. Lisboa: DIFEL, Rio de

Janeiro: Bertand Brasil, 1989. 36

Outro motivo que me faz especular sobre a leitura de Bourdieu por Oliven já nos anos oitenta é a citação do

texto original, em francês, na bibliografia da primeira edição do livro “A Parte e o Todo”, publicado três anos

após a tradução do artigo de Bourdieu para o português. 37

NEDEL, Letícia Borges. Op. cit., p. 5.

25

construído sobre o “ser gaúcho”, Oliven aponta para seu vínculo com o passado da região

pastoril da “campanha”, localizada no sudoeste do Estado, com a figura “real” ou “idealizada”

do gaúcho.38

Sua obra é com certeza um ponto de partida obrigatório para se pensar o tema

proposto aqui; compreender os primeiros anos do tradicionalismo como um fenômeno de

resistência cultural pode ser proveitoso para entender as motivações de intelectuais e ativistas

engajados na construção da identidade gaúcha. Podemos citar ainda, como méritos e avanços

do estudo de Oliven, sua preocupação com a construção intelectual e urbana do

tradicionalismo gaúcho em relação às disputas e conflitos em torno da definição do que seria a

identidade regional, diferentemente de Golin; e, ainda, sua análise sobre os usos dos

caracteres desta identidade por grupos marginalizados (imigrantes e mulheres) como

estratégias de ascensão simbólica.

No entanto, quanto ao emprego do conceito de representação, encontro grande

divergência com o que proponho neste trabalho. Em 1982, Ruben Oliven havia publicado

artigo na revista Ciência e Cultura em que buscava delinear o que seria a cultura brasileira na

década nascente. Nele, o autor alega que, em nosso país, existiriam duas tendências de longo

prazo ainda em disputa: a primeira tenderia a valorizar a produção cultural da elite; a segunda

procuraria recuperar as manifestações da cultura popular. Nesse jogo, o autor indica como a

questão da “autenticidade” se torna uma peça chave. Todavia, ao contrário do que poderíamos

esperar, em alguns momentos, Oliven parece entrar na disputa, jogando com uma das peças

do tabuleiro: o termo/conceito “ideologia”. O antropólogo nos diz que “A solução

pretensamente alternativa ao desafio de construir uma civilização nos trópicos, embora seja

aparentemente menos rígida, é tão ideológica quanto a primeira e representa a outra face da

mesma moeda”39

, ou seja, tratam-se de duas propostas que não condizem com a realidade a

que se refeririam. Ainda que não fique explícita nesse texto uma clara filiação teórica, o uso

do termo “ideológico” parece remeter à tradição marxista como descrita mais acima. O

conceito aparece novamente dois anos depois, agora em artigo no qual Oliven propõe a

análise da construção social da identidade gaúcha.40

Trata-se de um texto bastante perspicaz

em que o autor lança novos olhares sobre o tema e aponta para novos caminhos

interpretativos. Ainda assim, o tom inicial dos apontamentos indica pouco contato com o

38

OLIVEN, Ruben George. A parte e o todo: A Diversidade cultural no Brasil-Nação. 2a. Edição. Petrópolis, Rio

de Janeiro: Vozes, 2006, p 14. 39

Idem. A cultura brasileira e a identidade nacional na década de oitenta. Ciência e Cultura, v. 8, n. 34, 1982, p.

1033. 40

Idem. A construção social da identidade gaúcha. Revista do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da

Universidade Federal do Rio Grande do Sul, XI/XII, 1983/1984. 423-432. Parte do texto foi reelaborada e

utilizada em capítulo homônimo no livro A Parte e o Todo.

26

objeto empírico, o que, por sua vez, faz Oliven cometer equívocos. O primeiro é tomar a

invenção institucional do movimento tradicionalista gaúcho (fenômeno bastante recente) e seu

projeto político-cultural como sinônimo do processo de construção da identidade regional do

Estado. Outro ponto problemático é o apelo a afirmações com tom conclusivo sem fazer

referência direta às fontes ou mencionar explicitamente o trabalho empírico que o conduziu a

tais enunciados. Em outros momentos, o autor baliza seus apontamentos a partir da

bibliografia existente e, dessa forma, parece ratificar certas interpretações. É o que acontece

com o trabalho do nosso conhecido Tau Golin. Sem parecer questioná-lo, Oliven o cita para

nos dizer que “... o Tradicionalismo é visto com uma ideologia destinada a manter a massa

rural e as camadas populares que migraram para as cidades em estado de submissão”.41

Tal abordagem se mantém no livro A parte e o todo e permanece após sua publicação.

Exemplo disto é a monografia lançada em 1990 nos Cadernos de Antropologia da UFRGS e

que recebera, em 1989, menção honrosa no Concurso Sílvio Romero, promovido então pela

FUNARTE. Nela, Oliven cita o texto do crítico literário Sergius Gonzaga, jocosamente

intitulado As mentiras sobre o gaúcho, para nos dizer que “em meados do século XIX a figura

marginal do gaúcho estava praticamente extinta e, conseqüentemente, apta a ressurgir como

instrumento de sustentação e imposição ideológica dos mesmos grupos que a tinham

destruído”.42

Na página seguinte, o termo representação aparece em outra citação de Gonzaga.

Sobre os intelectuais de classe média que serviriam aos interesses dos grupos dominantes, nos

diz tal autor: “Articulava-se uma troca: ascensão, prestígio ou simples reconhecimento

cambiados por subideólogos, aptos a oferecer fórmulas (amenas à oligarquia) de

representação da realidade, e por artistas, capazes de pôr em prosa e verso as qualidades

varonis dessa mesma oligarquia”.43

Tal concepção de representação como algo externo ao

âmbito do real e, portanto, do domínio do falso, do ilusório, é mantida em texto publicado um

ano depois na Revista Brasileira de Ciências Sociais, em que encontramos as mesmas

citações44

e, também, no capítulo IV das duas edições do livro A parte e o todo.45

Em 1988, Oliven publica texto na coleção Cadernos de Estudos do PPG em

Antropologia Social da UFRGS, com o seguinte título: O Rio Grande do Sul e o Brasil: uma

relação controvertida. Este seria a base para o capítulo III do livro A Parte e o Todo. Nele, o

41

Ibidem, p. 424. 42

Idem. O maior movimento de cultura popular do mundo ocidental: o tradicionalismo gaúcho. Cadernos de

Antropologia, n. 1. Porto Alegre: UFRGS, 1990, p. 6. 43

GONZAGA, Sergius apud OLIVEN, Ruben George, idem, p. 7. 44

OLIVEN, Ruben George. Em Busca do Tempo Perdido: o movimento tradicionalista gaúcho. Revista

Brasileira de Ciências Sociais, v. 15, n. 6, p. 40. 45

Idem. A parte e o todo: A Diversidade cultural no Brasil-Nação. Petrópolis: Vozes, 1992, p. 70-71 e Idem. A

parte e o todo: A Diversidade cultural no Brasil-Nação. 2a. Edição. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 99.

27

antropólogo defende a tese de que a construção social da identidade gaúcha se baseia em um

duplo suporte: a ênfase nas peculiaridades do estado e a afirmação de seu pertencimento ao

Brasil. Nele, também, o autor incorpora a noção de representação na análise do gauchismo.

Em relação ao primeiro aspecto, Oliven afirma: “As peculiaridades do Rio Grande do Sul

contribuem para a construção de uma série de representações em torno dele que acabam

adquirindo uma força quase mítica que as projeta até nossos dias e as fazem informar a ação e

criar práticas no presente”.46

Ainda que opondo “as peculiaridades” reais, concretas,

poderíamos dizer, ao plano das representações, o autor mostra sintonia com as discussões

então correntes na teoria social ao enfatizar que o simbólico informa as práticas sociais.

Considerar as representações como matrizes cognitivas que instrumentalizam os sujeitos não é

algo novo, mas tal perspectiva difere da análise de ideologia como se vinha praticando no

momento. Ainda assim, a transformação é limitada, pois as análises continuam

comprometidas com seus estudos anteriores, como veremos a seguir. No mesmo texto, o

antropólogo apresenta uma fórmula que evidencia elementos tanto dos estudos de ideologia,

quanto de análises de representações. Vejamos:

“As representações sobre o gaúcho que já integram o senso comum, se fazem

notar desde os relatos de viajantes estrangeiros como Saint-Hilaire e Arsène

Isabelle. Elas estão presentes numa vasta tradição literária que tem como

matriz o livro O Gaúcho publicado em 1870 no apogeu do romantismo por

José de Alencar, autor que nunca tendo posto os pés no Rio Grande do Sul vai

idealizar e mitificar este tipo social chamando-o de „centauro dos pampas‟”.47

Se, de um lado, temos representações sobre o gaúcho que remetem à sua gênese como

tipo social e, portanto, opõem o social ao mítico ou cultural, de outro, elas são configuradas

também pela criatividade literária, construindo discursivamente aquele que deveria ser o

habitante do estado. A contradição parece dirimir-se no final da assertiva, quando o peso da

interpretação recai sobre o primeiro aspecto: o literário é impreterivelmente do domínio do

mítico; sua fala sobre o social o constrói porque o deturpa, idealiza. A combinação entre

ideologia e representação faz com que o potencial analítico do último termo seja dissolvido

em suas leituras precedentes do gauchismo enquanto um fenômeno ideológico. Dessa forma,

a análise das “representações sobre o gaúcho” fica comprometida com a dicotomia

falso/verdadeiro, ao invés de abordar como o verdadeiro é construído enquanto tal.

São quatro, basicamente, os mitos contra os quais Oliven empeenderá sua crítica: o

mito da democracia sulina (racial e social), o mito do gaúcho brasileiro ordeiro contra o

46

Idem. O Rio Grande do Sul e o Brasil: uma relação controvertida. Porto Alegre: UFRGS/PPG Antropologia

Social, 1988, p. 5. A formulação é mantida no livro de 1992 (p. 49) e na reedição de 2006 (p. 65). 47

Ibidem, p. 8.

28

gaucho malo platino, o mito do caráter não separatista da Revolução Farroupilha e, por

último, o mito da marginalização do Estado do Rio Grande do Sul na dinâmica histórica

brasileira. Apesar de indicar que as representações são parâmetros para a ação, em poucos

momentos Oliven se ocupa com este aspecto e analisa, quase que exclusivamente, o discurso

em seu momento de produção. Mais comum é a contra-argumentação. Importante salientar

que o autor não ataca diretamente o mito da democracia social das estâncias gaúchas (as

supostas relações horizontais entre peões e patrões) em nenhuma das três versões analisadas

do texto. Quanto à democracia racial, já na citada monografia de 1988, Oliven mostra que as

representações sobre a boa vida do escravo no Rio Grande do Sul datam dos primeiros relatos

de viajantes. Mas, para relativizar tais discursos, aponta como o mais notório deles, Saint-

Hilaire, ressalta que nas regiões de charqueada o trato dado ao negro era bastante cruel.

Conclui, então, que o mito se fundamenta na confusão entre as condições de vida do escravo

nas estâncias com as do escravo nas charqueadas: “Isto propiciou uma visão „idealizada‟ das

condições de vida do negro gaúcho”.48

Oliven segue apresentando dados para demonstrar que,

demograficamente, a participação do negro na vida econômica do estado fora já considerável

no século XIX. Em seguida, fala da atuação de guerreiros negros durante a sedição

farroupilha, mas, mais uma vez, questiona o discurso comum que defende o ideário

abolicionista dos revoltosos, apresentando a soma de escravos que o líder farrapo Bento

Gonçalves deixara como herança, ao morrer em 1947.49

Na reedição do livro, de 2006, o autor

acrescenta um novo argumento: o massacre dos porongos, episódio no qual um corpo de

lanceiros negros foi dizimado por forças imperiais após ter sido desarmado pelo segundo

homem da Revolução, o general Davi Canabarro: “Tanto imperiais quanto farroupilhas

temiam o que poderiam fazer os ex-escravos, uma vez assinada a paz e terminada a

Revolução”.50

Sobre o segundo mito, o autor nos diz que, na idealização do gaúcho rio-grandense, os

elementos considerados malévolos deveriam ser creditados ao “outro” e, como brasileiro, o

seu outro privilegiado seria o gaucho platino. Ao delegar os elementos negativos para o

último, sobram exaltações ao caráter sóbrio e ordeiro do primeiro. Na citada monografia de

1988, o antropólogo considera interessante ler afirmações deste tipo na década de vinte.

Interessante porque irônico, já que “A Revolução Farroupilha (1835-1845) estava

completando quase cem anos e as guerras do Prata já haviam cessado há muito. O que tinha

48

Ibidem, p. 11. 49

Idem. A parte e o todo: A Diversidade cultural no Brasil-Nação. Petrópolis: Vozes, 1992, p. 52-53. 50

Idem. A parte e o todo: A Diversidade cultural no Brasil-Nação. 2a edição. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 70.

29

acontecido recentemente no Rio Grande do Sul eram conflitos internos de índole

extremamente sangrenta e cruel”.51

Nesse sentido, Oliven lembra a agressividade com que os

gaúchos rio-grandenses se empenharam na Revolução Federalista de 1893-95, quando o ritual

da degola do inimigo se tornara prática banal, e, ainda, o conflito que envolveu os

remanescentes desta contenda em 1923, em torno da reeleição do então presidente do Estado,

Borges de Medeiros.

O terceiro mito é mais emblemático, pois evidencia a complexificação da análise do

autor. Ao falar da defesa feita pela historiografia gaúcha acerca do caráter não-separatista da

sedição farroupilha, Oliven bebe menos nos argumentos contrários e mais nas funções

políticas do discurso. Lembra que, desde o século XIX, inclusive em supostas declarações de

líderes revoltosos, a afirmação da brasilidade gaúcha é uma constante. No entanto, é na

década de vinte também, que os debates intelectuais sobre o tema exigem uma maior atenção

de nosso autor. Diz-nos:

“Mais do que uma omissão escandalosa em relação ao que estava ocorrendo

no Rio Grande do Sul, o que se nota nos escritos destes intelectuais, quando

eles insistem no não-separatismo da Revolução Farroupilha e nas diferenças

essenciais entre o gaúcho brasileiro e o gaúcho platino, é uma tentativa de

afirmar a brasilidade do Rio Grande do Sul e seus habitantes. Embora

atualmente isto possa parecer supérfluo, convém lembrar que boa parte deles

estava escrevendo antes ou logo depois de 1930 quando ainda não havia se

consolidado a integração econômica e política do país”.52

No entanto, se é notória a preocupação com a historicidade de tais discursos, a crítica

de Oliven continua pautada pelo binômio falso/verdadeiro, como mostra o tom de denúncia da

“escandalosa omissão” da historiografia. Quanto a isso, também, a conclusão peremptória a

respeito de tal mito não nos deixa dúvidas: “É preciso, portanto, não só afirmar a brasilidade

do gaúcho, mas enfatizar seus traços positivos, mesmo que para isto seja necessário maquilar

a realidade [grifo meu], passando por cima dos elementos que poderiam eventualmente ser

considerados 'bárbaros'”.53

O quarto e último mito não ganha tratamento diferente. Antes mesmo de apresentá-lo,

Oliven reporta um histórico de lutas e intervenções militares do Estado no centro político do

país, como a Coluna Prestes, iniciada em 1924 no Rio Grande do Sul e liderada pelo gaúcho

Luiz Carlos Prestes; a Revolução de 1930, que colocou no poder outro gaúcho, Getulio

Vargas e, ainda, o movimento da Legalidade, comandado pelo gaúcho Leonel Brizola que, em

51

Idem. O Rio Grande do Sul e o Brasil: uma relação controvertida. Porto Alegre: UFRGS/PPG Antropologia

Social, 1988, p. 12. 52

Ibidem, p. 16. 53

Ibidem.

30

1961, resistiu às tentativas de evitar a posse de outro gaúcho, João Goulart, após a renúncia do

presidente Jânio Quadros. A articulação narrativa está pronta para mostrar como a constante

“queixa dos gaúchos” contra sua marginalidade política e econômica não condiz com a

realidade. Na quarta desmistificação, a preocupação com a historicidade do discurso também

aparece e, assim, Oliven foca a análise nas declarações de políticos eminentes durante as

comemorações do sesquicentenário da Revolução Farroupilha, a fim de evidenciar que, “à

diferença do que tinha ocorrido cinqüenta anos antes, o que se frisou foram as diferenças do

estado em relação ao Brasil e não em relação à Argentina ou ao Uruguai. Isto tem de ser

compreendido em função de vários fatores”. O primeiro seria o “fato do Brasil estar

fortemente integrado do ponto de vista econômico, político, de transportes, de redes de

comunicação de massa, etc”.54

O segundo fator diria respeito à crise fiscal do Estado que, em

1985, parecia atingir seu ápice, comprometendo os investimentos públicos em diversos

setores e fazendo com que o governo estadual recorresse ao auxílio financeiro da Federação.

O discurso sobre o empobrecimento econômico e social do estado é, então, desmistificado:

“No nível econômico, a queixa centra-se em torno da perda da vitalidade

econômica do Rio Grande do Sul. O que aconteceu, na verdade, é bem

diferente. Apesar de ter ocorrido desde a década de trinta uma crescente

centralização de recursos e poderes por parte do governo federal e a

concentração da indústria em São Paulo, o Rio Grande do Sul não tem se

saído tão mal. Além da influência política que sempre exerceu,

economicamente ele continua a ser um estado rico e produtivo”.55

A desmistificação do gaúcho continuou sendo a tônica de vários escritos de Oliven.

Em 1992, o termo representação aparece em duas novas versões do texto de 1983/1984: o já

citado capítulo VI de A Parte e o todo, também intitulado A construção social da identidade

gaúcha, e a quarta edição dos Cadernos de Antropologia do PPGAS-UFRGS, denominada A

polêmica identidade gaúcha. Mais uma vez, o autor aborda alguns discursos que construiriam

a identidade do estado a partir de um “modelo baseado num passado que teria existido na

região pastoril da Campanha no sudoeste do Rio Grande do Sul e na figura real ou idealizada

do gaúcho”.56

O hiato entre representação e realidade fica ainda mais explícito na

consideração seguinte:

“Atualmente, a construção dessa representação recoloca a questão em um novo patamar já que estamos numa época em que tanto o Rio Grande do

Sul se urbanizou e modernizou, como o Brasil apresenta uma maior

54

Ibidem, p. 22. 55

Ibidem, p. 23. 56

Idem. A parte e o todo: A Diversidade cultural no Brasil-Nação. Petrópolis: Vozes, 1992, p. 100 e Idem. A

polêmica identidade gaúcha. Cadernos de Antropologia n. 4. Porto Alegre: UFRGS, 1992, p. 6.

31

integração política, econômica, de transportes, de meios de comunicação

etc., articulando suas regiões de uma forma efetiva”.57

Se existe uma nova percepção do termo/conceito representação na obra de Oliven,

essa não se traduz no rompimento com a sua suposta oposição à realidade, como aqui se

propõe. Em 1992, no capítulo inicial de seu livro, momento em que busca delinear o marco

teórico de sua pesquisa, o autor recorre à categoria ideologia através de Antonio Gramsci para

mostrar como “Há casos, inclusive, em que uma mesma sociedade é representada como se

fosse dividida em duas grandes regiões antagônicas”.58

Justamente por isso, torna-se bastante

emblemática a crítica que Oliven tece, nesse momento, ao conceito “tradicional” de ideologia,

juntamente com o questionamento da noção de “sobrevivência cultural”. Esta se referiria aos

elementos culturais sobreviventes em novas condições sociais sem nelas cumprirem qualquer

função. Quando muitos antropólogos analisam ideologias, nos diz Oliven, “é muito freqüente

apontar, além do aspecto de falseamento da realidade, o seu anacronismo”. Essa é, como

vimos, uma constante no próprio trabalho do autor. Segue a crítica:

“É como se uma ideologia, além de conseguir inverter a realidade, ainda o

fizesse com idéias superadas pelo tempo. Mas, na medida em que uma

ideologia se mede pelo seu poder de produzir discursos que repercutam no

imaginário social, isso significa que se uma determinada ideologia é eficaz

ao trabalhar com noções aparentemente obsoletas, na verdade a anacronia

está apenas na mente do pesquisador e não dos agentes sociais”.59

Estas reflexões teóricas apontam na direção do rompimento com a dicotomia

representação/realidade. Mas, seguindo a antiga lógica, Oliven prossegue suas análises da

mesma forma como vinha fazendo até então. Após um grande apanhado de autores clássicos e

contemporâneos que discutem as principais questões abordadas no livro (nacionalismo,

regionalismo, tradição, identidade etc.), ele nos deixa claro que sua opção continua sendo pela

teoria social clássica e pelas novas vertentes que nela se fundamentam. O trabalho do

historiador marxista Eric Hobsbawm e sua noção de “invenção das tradições” cai, assim,

como uma luva ao estudo de Oliven. Como nosso autor, Hobsbawm se preocupa com a

questão da autenticidade quando formula uma oposição entre “tradição inventada” e “tradição

não-inventada”.60

Porém, as novas reflexões e leituras teóricas tencionam ainda, em outros

momentos, sua postura epistemológica, como denota a seguinte passagem: “A questão,

entretanto, não gira em torno de saber se alguma crença corresponde a algum tipo de realidade

57

Ibidem. 58

OLIVEN, Ruben George. Op. cit., p. 15. 59

Ibidem, p. 21. 60

Discutirei no capítulo I a proposta de Hobsbawm.

32

fática, mas em analisar por que, mesmo sabendo que ela é contrariada pelos fatos, existem

grupos que acreditam nela”.61

Como sabemos, essa não é a abordagem dos capítulos seguintes

do livro, escritos e rescritos ao longo da década de oitenta em diferentes versões de artigos e

monografias, e comprometidos, em grande escala, com a mesma análise de ideologia que

agora o autor critica.

A historiografia e o gauchismo: a nova produção acadêmica

Novos trabalhos em Antropologia Social sobre o gauchismo e temas correlatos

surgiram, a partir dos anos 1980. Podem-se citar, entre eles, as pesquisas de Maria Eunice

Maciel. Sua dissertação de mestrado abordou o fenômeno dos bailões, que se expandia nas

periferias urbanas do período, mesclando a execução de músicas de duplas “caipiras”

paulistas, artistas “populares” divulgados nos programas de auditório da televisão e a

produção musical tradicionalista e nativista.62

Mas foi sua pesquisa de doutorado, em que a

autora analisa o engajamento das várias gerações de intelectuais rio-grandenses na construção

do “gaúcho brasileiro” e da identidade cultural da região, que possibilitou o direcionamento

de seu olhar para o tradicionalismo. Com base nela, alguns artigos foram publicados no

Brasil, os quais denotam uma perspectiva interpretativa mais aberta, em relação aos textos

Oliven, à análise da construção cultural do gauchismo enquanto modelo de identidade

coletiva.63

Estes textos serão retomados ao longo desse trabalho, na tarefa de compreender o

processo de atualização da figura do gaúcho e as estratégias simbólicas de afirmação da

“gauchidade” adotadas pelos construtores do movimento tradicionalismo. Outro trabalho em

Antropologia com o qual dialogarei é a pesquisa de Ondina Fachel Leal sobre a cultura

masculina “gauchesca” da fronteira entre Brasil e Uruguai.64

Suas análises sobre a misoginia

61

OLIVEN, Ruben George. Op cit., p. 23. 62

Ver MACIEL, Maria Eunice. Bailões, é Disto que o Povo Gosta: Análise de uma Prática Cultural de Classes

Populares no Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 1984. Dissertação (mestrado em Antropologia Social). Instituto

de Filosofia e Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação em Antropologia, Política e Sociologia.

Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1984, 188 p. 63

Ver: Idem, Tradição e Tradicionalismo no Rio Grande do Sul. Humanas, v. 22, n. 1/2, 2000, p. 127-144; Idem,

A atualização do passado. In: FÉLIX, Loiva Otero, RECKZIEGEL, Ana Luiza Setti (orgs.). RS: 200 anos:

definindo espaços na história nacional. Passo Fundo: Editora da UPF, 2002, p. 191-215. 64

Ver LEAL, Ondina Fachel. Honra, morte e masculinidade na cultura gaúcha. In.: TEIXEIRA, Sérgio Alves,

ORO, Ari Pedro (orgs.). Brasil & França: ensaios de Antropologia Social. Porto Alegre: Editora da UFRGS,

1992, p. 141-150.

33

creditada aos peões de estância permitirá compreender, no Capítulo III, algumas das apostas

teóricas de nosso personagem na reconstrução do gaúcho pampiano efetivada pelos CTGs.

A historiografia profissional, da mesma forma, iniciou seu trajeto pelo tema nos anos

1980. A perspectiva adotada também é muito próxima daquela da produção diletante marxista

e dos primeiros textos em Antropologia. A dissertação de mestrado de Marlene Medaglia é,

nesse sentido, um exemplo.65

Ao abordar a analisar a produção historiográfica tradicional

como “estrutura ideológica da classe dominante”, a autora apontava para a construção do

gaúcho riograndense como resultado das necessidades políticas das elites locais, no período

de 1920 a 1935, de afirmar a brasilidade do estado. Se o discurso historiográfico operou sobre

a figura do gaúcho pampiano, o tom denunciatório do trabalho de Medaglia não permite que

compreendamos o movimento inverso, pelo qual o mito informou os projetos políticos dessa

elite, muito menos que avaliemos suas divergências e disputas internas.

Os artigos de Sandra Pesavento, no período, confirmam a abordagem corrente. O texto

publicado no livro RS: Cultura & Ideologia define a historiografia oficial, inaugurada, de

acordo com a autora, durante a República Velha, como produção ideológica marcada por um

“caráter de falsidade”.66

A idealização da figura do gaúcho foi vista por ela unicamente como

fator de legitimação da ordem agrária tradicional em franca decadência no Rio Grande do Sul

de então. Tais posições são mantidas em outros artigos publicados ao longo da década de

1980.67

Em 1992, todavia, a autora revia, em novo ensaio, sua postura teórica e suas

interpretações sobre o tema. Informada pelos textos de Pierre Bourdieu, entre outros autores,

Pesavento afirmava que os estereótipos sobre o Rio Grande do Sul, sobre os gaúchos e sobre a

região sulina se traduziam em “imagens mentais e objetais, em personagens-símbolos, em

ritos, crenças, valores, práticas sociais e manifestações artísticas”.68

Nesse sentido, apontava

que as “representações do mundo social” também deveriam ser entendidas como constituintes

do real e que a eficácia do “imaginário” não poderia ser medida pelo confronto entre tais

representações e a “realidade”, mas “na capacidade de mobilização que os discursos possam

trazer, produzindo práticas sociais efetivas”.69

Os poucos textos publicados pela historiadora

65

MEDAGLIA, Marlene. Introdução ao estudo da historiografia sul-rio-grandense: inovações e recorrências do

discurso oficial (1920-1935). Dissertação (mestrado em Sociologia). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,

Programa de Pós-Graduação em Antropologia, Ciência Política e Sociologia, Universidade Federal do Rio

Grande do Sul, 1983, 407 p. 66

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Historiografia e ideologia. In: DACANAL, José Hildebrando, GONZAGA,

Sérgius (orgs.). Op. cit., p. 61. 67

Ver, por exemplo: Idem. Uma ideologia em farrapos. Letras de Hoje. Porto Alegre, v. 18, n. 3, 1985, p. 75-83;

Idem. Gaúcho: mito e história. Letras de Hoje. Porto Alegre, v. 24, n. 3, 1989, p. 55-63. 68

Idem. A invenção da Sociedade Gaúcha. Ensaios FEE. Porto Alegre, v. 14, n. 2, 1993, p. 383. 69

Ibidem, p. 385.

34

sobre o assunto a partir daí, todos de caráter ensaístico, reafirmam essas novas posições.70

Tal

reorientação teórica permite a Pesavento levantar hipóteses e revelar outras possibilidades de

análise de mitos como o da epopéia farroupilha, que serão, ao longo dessa exposição,

retomadas no diálogo com nosso objeto.

Contudo, trabalhos de pesquisa de “fôlego” em História sobre tais temas, depois de

Medaglia, só apareceram mesmo nos anos 1990. Também no campo da Historiografia, Ieda

Gutfreind apontou para as principais questões e debates da produção erudita da primeira

metade do século XX, entre as quais, as diferentes posições sobre o gaúcho social.71

Duas

matrizes interpretativas foram identificadas pela autora: a primeira, dita “lusitana”, afirmava a

especificidade do gaúcho rio-grandense, ordeiro e “civilizado”, em oposição ao gaucho malo

do Prata, e negava o caráter separatista da Revolução Farroupilha e a incorporação dos Sete

Povos das Missões Orientais à História do estado; a segunda, chamada “platina”, ainda que

afirmasse a orientação lusa da formação social rio-grandense, reconhecia as trocas

econômicas e culturais com os países da região e previa a inclusão das Missões na memória

oficial. Se esta autora também buscou as relações entre historiografia e ideologia dominante, o

fez atenta ao contexto social de produção dos discursos, revelando as divergências e disputas

das elites intelectuais locais. Seu trabalho servirá de suporte para pensar as posições de

Barbosa Lessa sobre as contendas da geração precedente de historiadores e folcloristas

eruditos.

Quatro anos depois de Gutfreind, foi a vez de Daysi Lange Albeche publicar seu livro

sobre a construção de imagens do gaúcho na historiografia, mas incorporando, como fonte,

também a Literatura e o discurso oficial. O trabalho da autora examina a gênese de figuras

literárias como o “centauro da pampa” e o “monarca das coxilhas”, nas décadas de 1860 e

1870, e sua fusão, ainda no século XIX, na figura do “gaúcho a cavalo”. A história de

atualização deste mito contribuirá para, no Capítulo II, pensar as representações sociais que

precederam o projeto tradicionalista. Contudo, ao procurar se diferenciar da produção anterior

em História, focada no conceito de ideologia72

, Albeche acaba se baseando teoricamente em

autores como o psiquiatra Carl Gustav Jung, o que a leva a identificar um núcleo simbólico

70

Ver, ainda: Idem. Região e Nação: as releituras do Brasil em tempo de democracia. Humanas. Porto Alegre, v.

18, n. 1 e 2, p. 109-119; Idem. Fibra de Gaúcho, tchê! Nossa História. Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, 2003, p. 42-47. 71

Ver GUTFREIND, Ieda. A historiografia Rio-Grandense. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1992, 217 p. 72

“A pesquisa realizada utiliza novos caminhos para interpretar o passado histórico, pois a significação mítica da

imagem do gaúcho não pode ser encarada com o sentido de desmascaramento ou decalque da realidade histórica.

A leitura simbólica não esgota a questão, mas possibilita valorizar a finalidade da representação subjetiva que é

tão „real‟ quanto as estruturas materiais da sociedade”. ALBECHE, Daysi Lange. Imagens do Gaúcho: história e

mitificação. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996, p. 14.

35

mítico praticamente imutável na literatura regional. Nesse sentido, sua posição teórica difere

radicalmente da postura historicista aqui perseguida.

Parece-me, então, que a produção baseada na pesquisa histórica só rompe com o

paradigma “realista” de apreensão do gauchismo a partir dos trabalhos de Letícia Nedel. Sua

dissertação, que aborda as relações entre o regionalismo e a memória oficial local, através da

análise da trajetória institucional do Museu Júlio de Castilhos, nos anos 1950, aponta para

uma nova percepção sobre a construção intelectual de objetos como a “região” e a “nação”,

além de novas interpretações sobre o processo de “invenção de tradições” no Rio Grande do

Sul, atentas às disputas simbólicas entre as gerações de pesquisadores eruditos.73

De certa

forma, o problema geral de sua investigação é compartilhado por este trabalho, pois utilizarei

aqui a trajetória intelectual de Barbosa Lessa para acessar os debates intelectuais regionalistas

e a conformação da memória oficial a partir, principalmente, da segunda metade do século

XX. Nesse sentido, o diálogo com seus trabalhos se revela essencial para o desenvolvimento

dos objetivos expostos acima. No entanto, é a sua tese de doutoramento que permite pensar o

movimento tradicionalista em específico, e, portanto, é com ela que tecerei intensa

conversação ao longo da dissertação. Tendo como objeto de análise a “articulação entre o

desenvolvimento de saberes locais e o pertencimento territorial”, a autora se debruça sobre a

história da produção e da circulação dos intelectuais no estado, entre 1948 e 1965, ocupando-

se do movimento folclorista.74

Nedel identifica uma divisão no seio desses intelectuais e um

campo de disputa entre dois grupos divergentes, denominados por ela de folcloristas

tradicionalistas e folcloristas polígrafos.75

Os primeiros pertenciam ou foram incorporados ao

mencionado grupo dos oito estudantes do Colégio Júlio de Castilhos que fundaram o

movimento tradicionalista, dedicando-se à fabricação sistemática de rituais e tradições,

criadas para serem encenadas nos CTGs.76

Os segundos, também identificados pela autora

como folcloristas eruditos, participavam ativamente dos círculos intelectuais do Estado desde

a década de vinte e, em sua maioria, eram filiados à Comissão Estadual de Folclore (CEF).77

73

NEDEL, Letícia Borges. Paisagens da Província: o regionalismo sul-rio-grandense e o Museu Julio de

Castilhos nos anos cinqüenta. Dissertação (Mestrado em História Social). Instituto de Filosofia e Ciência Sociais,

Programa de Pós-Graduação em História Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1999, 335 p. 74

Idem. Op. cit., p. 6. 75

“As divergências dizem respeito ao significado de categorias centrais à investigação folclórica (como, por

exemplo, o juízo de autenticidade implicado na definição de „fato folclórico‟), aos projetos de retratação

regional que defenderam e, sobretudo, aos recursos sociais e intelectuais de que dispunham para fazê-lo”.

Ibidem, p. 07. 76

Ibidem, p. 08. 77

Organização para-governamental fundada em Porto Alegre no ano de 1948, capitaneada pelo diretor do Museu

Júlio de Castilhos e criador dos cursos de História e Geografia da PUCRS e da então Universidade do Rio

Grande do Sul, Dante de Laytano.

36

A proposta principal de Nedel - a de examinar “uma face específica das conexões entre

brasileiros e gaúchos, entre tradicionalistas e historiadores, entre História, Literatura e

Ciências Sociais, destacando as instituições, as tematizações e os atores privilegiados no

sistema nacional e local de trocas intelectuais”78

– será perseguida, de forma secundária, nessa

dissertação, já que buscarei investigar as relações do tradicionalismo organizado com os

demais grupos intelectuais e esferas da sociedade a partir da trajetória de um dos expoentes

desse movimento. Isso se dará, entretanto, extrapolando o marco cronológico estabelecido

pela autora e dando especial atenção às motivações, possibilidades e características do

engajamento individual de Lessa no processo de construção identitária do gaúcho. Muitos de

seus apontamentos sobre questões mais gerais, como a existência de relativa oposição entre

dois registros de memória oficial no estado e a periodização elaborada para as primeiras fases

do movimento tradicionalista, permitirão, ainda, lançar luz sobre as questões aqui analisadas.

Podemos também citar a tese de Alexandre Lazzari, defendida em 2004, como

exemplo de pesquisa histórica sobre a ação de intelectuais e a construção da identidade

regional do Rio Grande do Sul. O autor busca compreender como foi possível a identidade

nacional brasileira ser imaginada como gaúcha através da prática associativa e da produção

intelectual (poesias, romances, biografias, narrativas históricas e estudos de folclore) de

grupos literários e tradicionalistas no final do século XIX e começo do XX. Lazzari interpreta

essa produção no contexto da tradição romântica do oitocentos e da ação desses grupos e

indivíduos que “tomaram para si a missão de associar um sentido de nacionalidade a

„tradições‟ (inventadas ou não) culturais e política locais”.79

O objetivo do autor é apresentar

uma história das disputas travadas pelos significados de literatura nacional, raça, tradição e

nação no extremo sul do Brasil no período citado.80

Nesse sentido, seu estudo me inspira a

pensar a construção da identidade gaúcha em períodos posteriores igualmente como uma

disputa em torno de valores e significados deliberadamente erigidos pela ação intelectual

enquanto bases dessa identidade.

Mais um recente trabalho em historiografia ainda deve ser mencionado. Mara

Rodrigues empreendeu, em sua tese de doutorado, uma análise historiográfica da obra de um

dos primeiros historiadores do estado, Moysés Vellinho.81

Intelectual autodidata, advindo da

crítica literária, Vellinho influenciou a geração de historiadores que precedeu a

78

Ibidem, p. 19. 79

LAZZARI, Alexandre. Entre a grande e a pequena pátria: identidade gaúcha e nacionalidade (1860-1910).

Tese (doutorado em História). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em

História, Universidade Estadual de Campinas, 2004, p. 19. 80

Ibidem, p. 20. 81

Ou um dos “folcloristas eruditos”, na classificação de Nedel.

37

implementação da pesquisa universitária na área de história no Rio Grande do Sul. O objetivo

principal da autora é “investigar como os historiadores delimitavam os seus objetos de estudo,

como acionavam provas documentárias, estratégias explicativas e narrativas”.82

Sua

abordagem para tanto é focada “no texto, na construção de sentido na narrativa, no tratamento

do evento, da estrutura e da temporalidade, articulando-se esses aspectos com o lugar social

de produção do conhecimento histórico”.83

O trabalho aqui proposto difere-se do de

Rodrigues, pois não pretende fazer um exame dos aspectos narrativos e metodológicos dos

textos de Barbosa Lessa, nem de sua concepção de história. A produção historiográfica do

autor me interessa como mais uma de suas estratégias de construção da imagem do gaúcho e

do espaço regional sobre os quais se assenta a elaboração do tradicionalismo.

A dissertação de Carla Renata de Souza Gomes, publicada como livro em 2009, possui

grande proximidade teórica com este trabalho. A autora busca compreender a interpenetração

dos termos “sul-riograndense” e “gaúcho” em meados do século XIX e como a

ressemantização do segundo tornou-o sinônimo de gentílico e ícone identitário. Nesse

processo, o trabalho da literatura tem importante papel. Gomes analisa os primeiros romances

do chamado regionalismo gaúcho, relatos de viagens, crônicas e outros textos diversos. Dessa

forma, empreende um “esforço interpretativo que pretende refletir sobre a formação de uma

identidade regional (o gaúcho-rio-grandense) a partir da linguagem usada nas representações

discursivas (...) que estabelecem parâmetros e atribuem significados ao conjunto das práticas

sociais cotidianas”.84

A preocupação com o processo de significação é compartilhada por este

trabalho, apesar da diferença de recorte cronológico. A análise da vasta e diversificada

produção intelectual de Barbosa Lessa justifica-se pela possibilidade de acessar a elaboração

de símbolos, mitos e ritos que configuraram importantes marcos da identidade regional nos

últimos cinqüenta anos.

Sobre Barbosa Lessa, em específico, encontrei o trabalho de Joana Bosak de

Figueiredo, de 2006. Trata-se, na verdade, de um estudo de Literatura Comparada, mas

apresentando interfaces com a História, tendo a autora realizado parte de sua formação

acadêmica nessa área.85

Em sua tese, ela analisa o romance Os Guaxos, publicado por

Barbosa Lessa em 1959, e o compara com a obra Don Segundo Sombra, do argentino Ricardo

82

RODRIGUES, Mara. Da Crítica à História: Moysés Vellinho e a trama entre a província e a nação. Tese

(doutorado em História). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em História,

Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2006, p. 10. 83

Ibidem, p. 13. 84

GOMES, Carla Renata de Souza. De rio-grandense a gaúcho: o triunfo do avesso – um processo de

representação regional na literatura do século XIX (1847-1877). Porto Alegre: Editoras Associadas, 2009, p. 22. 85

Joana Bosak de Figueiredo é graduada (1996) e mestre (2000) em História pela Universidade Federal do Rio

Grande do Sul.

38

Güiraldes, de 1926. O objetivo de Figueiredo difere essencialmente do aqui proposto: não há

em seu trabalho a preocupação de acompanhar o processo de construção da identidade gaúcha

através das obras dos autores estudados, mas sim, segundo ela, a de “articular o gaúcho como

conceito atual na fragmentação cultural”. Sua proposta decorre da asserção de que a trajetória

do tipo social gaúcho, hoje incluída em uma “visão vencedora da história”, é coroada em

nossos dias pela ressignificação constante, através da “manutenção dessa mesma literatura

revitalizada combinada a idéias múltiplas de um folclore e tradição inventados, porém

altamente profícuos”.86

Ainda assim, sua análise permite compreender o contexto de produção

do livro Os Guaxos e outros escritos de Lessa e, nesse sentido, buscarei estabelecer

interlocução com sua tese.

Tendo em vista o levantamento bibliográfico acima apresentado, identificamos

divergências interpretativas com os trabalhos pioneiros sobre o tradicionalismo e várias

lacunas. Este trabalho deve ser entendido, assim, duplamente como um outro olhar sobre o

objeto e uma pequena contribuição para sanar tais vazios.

* * *

Além dos objetivos gerais já expostos, em cada parte da dissertação buscarei

responder a problemas específicos. A disposição dos capítulos segue, portanto, uma ordem

temática. A “liga” que dá unidade ao trabalho é o projeto intelectual de Barbosa Lessa. A

estrutura da narrativa acompanha as preocupações teóricas do autor, seus empreendimentos

intelectuais, sua atuação no movimento tradicionalista e suas pautas políticas. Cada capítulo

pretende, assim, dar conta de um momento, além de um tema, que pode, inclusive, sobrepor-

se cronologicamente a outro momento. O primeiro capítulo, intitulado A poética da tradição e

outras notas teóricas, contudo, foge desta lógica, pois trata-se de uma reflexão teórica sobre

as categorias que subsidiaram a pesquisa empreendida: os conceitos de representação,

tradição e projeto. A sua articulação permite delinear uma poética da tradição, entendendo o

termo em sua acepção etimológica (tecer, cerzir, costurar), como antídoto ao sentido de

contrafação geralmente ligado à noção de “invenção das tradições” e à fraca dicotomia entre

86

FIGUEIREDO, Joana Bosak de. A tradução da tradição: gaúchos, guaxos e sombras: o regionalismo

revisitado de Luiz Carlos Barbosa Lessa e de Ricardo Güiraldes. Tese (doutorado em Letras). Instituto de Letras,

Programa de Pós-Graduação em Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2006, p. 19.

39

“tradição inventada” e “tradição não inventada”. No segundo capítulo, A nova face do

centauro: tradição, modernidade e a atualização do regional, pretendo mostrar que a

construção do tradicionalismo e o retorno do “regional” estiveram ligados ao aprofundamento

dos processos de urbanização e de intensificação das trocas culturais e econômicas do pós-

guerra. Nele analisarei, ainda, como Barbosa Lessa (re)lê o arquétipo do gaúcho a cavalo

constituído pela literatura precedente e suas posições nos debates entre a geração “realista” da

literatura regionalista dos anos 1930 e 1940 e a produção romântica precedente. No terceiro

capítulo, A política do mito: o homem do campo e o “sentido” do projeto tradicionalista de

Barbosa Lessa, mostrarei como a articulação entre as duas vertentes literárias, ufanista e

“disfórica”, possibilitou a elaboração de um projeto político, baseado no gaúcho pampiano, de

reivindicação de suporte estatal ao campesino rio-grandense, com exigências de amparo social

mescladas às de valorização cultural, o que, por sua vez, requereu a incorporação no mito de

setores social e literariamente marginalizados. No quarto capítulo, Do mito ao rito: folclore,

tradição e performance, procuro compreender como o mito foi materializado na ritualística do

tradicionalismo. Aqui abordarei as pesquisas folclóricas realizadas por nosso personagem e

por Paixão Côrtes, a construção das danças tradicionais, sua função performativa e a criação

do CTG como palco físico e simbólico da tradição, além da invenção da “prenda”, a nova

mulher tradicionalista. No Capítulo V, Pedaço(s) de pátria: a diversificação da “região” e a

atualização do gaúcho mítico como políticas públicas, analisarei a atuação de Barbosa Lessa

à frente da Secretaria de Cultura, Desporto e Turismo (SCDT) do Estado do Rio Grande do

Sul, entre 1979 e 1983. Aqui buscarei cotejar sua produção escrita com as novas diretrizes de

política cultural traçadas no contexto brasileiro de abertura política, procurando compreender

a elaboração de seu projeto para a área no estado. No último capítulo, Dois lados da mesma

moeda?: a construção da “região” através dos discursos historiográfico e memorialista,

examinarei as representações de “Rio Grande do Sul” que emergem de seu livro de síntese

sobre a formação sócio-histórica do estado: Rio Grande do Sul: prazer em conhecê-lo. Em um

segundo momento, analisarei os discursos memorialistas do autor e sua função de intervenção

no debate identitário local, na década de 1980, marcado pelo surgimento da dissidência

estética e, em menor medida, política, do nativismo musical e pelos conflitos do gauchismo

como um todo com a produção universitária. Para concluir a dissertação, levantarei, ainda, nas

“Considerações finais”, alguns apontamentos sobre o binômio consagração/estigma na

trajetória intelectual de Barbosa Lessa.

40

Capítulo I - A poética da tradição e outras notas teóricas

Desde o final do século XIX, intelectuais de diferentes estaturas e interesses têm

produzido uma intensa literatura, tanto nos países platinos quanto no estado brasileiro do Rio

Grande do Sul, calcada na figura do gaucho ou, como dizemos por aqui, do “gaúcho”. É bem

verdade que sob tal palavra escondem-se coisas muito diversas e, às vezes conflitantes.87

Mas

é também verdade que se, de um lado, sua história nos mostra um jogo de distanciamentos, de

outro, são também relevantes as aproximações. Grosso modo, tais escritos visam dar conta de

um tipo social rural “real” ou “imaginário”, “presente” ou “histórico”, que vive como

cavaleiro em um espaço físico e simbólico determinado, a Pampa, e, não raro, situado em um

tempo mítico onde a tradição garante a vida de fartura. Por isso mesmo, ao lado dos

panegíricos encontramos muitos cantos de lamentação. Não é menos verdadeiro que toda essa

literatura tem configurado mitos e signos que fundamentam identidades coletivas. No Rio

Grande do Sul, onde gaúcho tornou-se sinônimo de gentílico, ela é um dos discursos que

informa quem é, ou deveria ser, o habitante do Estado. E mais, não raro, tem sido a fonte para

discursos e projetos políticos, sociais e culturais e/ou a forma de dar vazão a visões de mundo

e de intervir no debate público local. Nesse processo, Barbosa Lessa ocupa espaço central,

pois, além de abranger diversos gêneros narrativos e disciplinares, justifica politicamente o

movimento tradicionalista que ajudara a construir e, principalmente, fornece suas diretrizes

teóricas e configura parâmetros a serem seguidos pelos atores nele envolvidos.

O objetivo deste capítulo é, então, esclarecer sobre as categorias fundamentais para a

análise da trajetória intelectual de Barbosa Lessa. A temática aqui abordada exige o caminhar

por muitas trilhas (que nem sempre se cruzam). Ao percorrer estas páginas, o leitor encontrará

referências a campos de estudos em História e disciplinas afins, como a História das Idéias, os

estudos biográficos, sobre nacionalismos e regionalismos, debates em Antropologia e Crítica

Literária e noções como mito, rito, símbolo, identidade coletiva, cultura popular, cultura

letrada, cultura de massas, intertextualidade, performance etc. Mas há algo que unifica a

diversidade. Trata-se de uma base teórica comum que, a meu ver, permite enfrentar tantos

87

Para tanto, podemos lembrar a proposta “realista” de gauchesca posta em prática por Cyro Martins nas

décadas de 40 e 50, principalmente. O autor ficou conhecido por sua “trilogia do gaúcho a pé” – Sem Rumo

(1937), Porteira Fechada (1944) e Estrada Nova (1954). Tratarei das diferenças entre o projeto de Cyro Martins

e o de Barbosa Lessa no capítulo seguinte.

41

desafios: o conceito de representação fundamenta a forma de ler a construção social da

realidade; a noção de tradição ilumina o papel dos símbolos e dos ritos neste processo; o

termo projeto liga vida e obra, trajetória e teoria, política e identidade. O presente capítulo

divide-se, então, em três momentos que visam discutir este “tripé teórico”. Para cada termo,

uma estratégia. Primeiramente, discutirei, a partir de alguns autores clássicos da teoria social,

como o termo representação passa de uma idéia vaga a um conceito bem definido, rompendo,

paralelamente, com sua oposição em relação à noção de “realidade”.88

Em seguida, abordarei

duas perspectivas teóricas de compreensão da tradição: aquela dos estudos sobre oralidade,

fundamentados nos trabalhos de Erik Havelock e Walter Ong, principalmente, e a proposta de

Eric Hobsbawm sobre a invenção das tradições. Por último, traçarei uma breve trajetória da

escrita biográfica em História visando questionar a noção de “ilusão biográfica”, cunhada por

Pierre Bourdieu, com a introdução da idéia de “projeto”, formulado por Gilberto Velho.

1.1 - A realidade da representação: da idéia ao conceito

Parece que a teoria social chega ao século XX contraditoriamente engajada no projeto

cientificista do século precedente e ainda pouco preocupada com a definição de muitos de

seus termos correntes. Representação aparece como termo de uso indiscriminado em textos de

sociólogos, antropólogos e historiadores, entre outros pesquisadores. Émile Durkheim e

Marcel Mauss buscaram definir a perspectiva sociológica para a compreensão dos fenômenos

mentais utilizando o termo de forma vaga. Em 1903, tais autores publicaram texto intitulado

Contribuição para o estudo das representações coletivas, em que abordaram a construção

social dos sistemas de classificação em uma evolução que ia do pensamento religioso e

folclórico ao científico.89

Tratava-se de um ataque aos pontos de vista informados pela

psicologia contemporânea que interpretavam a “função classificadora” como produto da

atividade individual. Estudar sua gênese ajudaria a compreender a “atual” noção de

classificação (baseada na idéia de uma circunscrição de contornos fixos e definidos), já que os

88

Não se trata, aqui, de construir uma genealogia do conceito de representação ou mesmo de apresentar uma

ampla revisão bibliográfica sobre o assunto, mas de servir-se de textos clássicos como fonte para pensar as

mutações do termo ao longo do século XX, o que explica a ausência, na primeira seção, de teóricos sociais

também importantes para um empreendimento daquela ordem. 89

DURKHEIM, Emile, MAUSS, Marcel. Algumas Formas Primitivas de Classificação: Contribuição para o

estudo das representações coletivas. In: MAUSS, Marcel. Ensaios de Sociologia. São Paulo: Perspectiva, 1981,

p. 399-455.

42

autores encontravam similitudes entre o pensamento dito “primitivo” e o contemporâneo.

Nesse sentido, Durkheim e Mauss abordavam sociedades indígenas do continente americano e

da Austrália para mostrar como o fenômeno do totemismo forjava representações coletivas a

partir da interação com o meio: “É que, se o totemismo é, de um lado, o agrupamento dos

homens em clãs de acordo com os objetos naturais (espécies totêmicas associadas), é também,

inversamente, um agrupamento dos objetos naturais segundo os agrupamentos sociais”.90

Mas

a aparente dialética da fórmula esvai-se à medida que os autores conferem ao social o primado

da relação e o papel de determinação das configurações mentais: as divisões sociais

operariam, assim, sobre a massa primitiva de representações. Para os autores, as primeiras

categorias lógicas teriam sido categorias sociais: “as primeiras classes de coisas foram classes

de homens nas quais tais classes foram integradas”.91

Assim, o homem teria começado a

“representar as coisas” referindo-se à sua sociedade e não a si mesmo. Apesar de ressaltar o

papel do meio social na configuração dos sistemas de classificação mental, Durkheim e

Mauss contrapunham tais sistemas a uma realidade social pré-existente e pressupunham uma

via de mão única que ia da sociedade “real” à representação. Este parece ter sido o mote da

teoria social sobre as representações coletivas durante a primeira metade do século XX.

Max Weber complexifica nosso debate ao colocar lado a lado representações,

vivências e “fins subjetivos dos indivíduos”. A preocupação do autor com a elaboração do

simbólico está expressa, entre outros, no capítulo de Economia e Sociedade em que buscou

delinear uma sociologia da religião.92

Como Durkheim e Mauss, Weber pensou em termos

evolutivos, desenhando uma linha onde o pensamento mágico (característico de um

racionalismo prático originário) e o pensamento religioso monoteísta (cujo sentido é

procurado cada vez mais em fins “extramundanos” e “extra-econômicos) ocupam os dois

extremos. A gênese do comportamento religioso estaria, então, calcada no cotidiano, já que a

magia buscaria operar no mundo real e imediato e não no além vida. Da mesma maneira que

Durkheim e Mauss, Weber não sistematizou o que entendia pelo termo representação, mas

operou com o vocábulo para explicar a construção do mundo mágico. O autor resumiu o

processo em uma operação, como dizia, aparentemente simples: na “representação de certos

seres que se ocultam „por trás‟ da atuação dos objetos naturais, artefatos, animais ou homens

carismaticamente qualificados e que de alguma maneira determinam esta atuação – a crença

90

Ibidem, p. 409. 91

Ibidem, p. 451. 92

WEBER, Max. O Nascimento das Religiões. In: ________. Economia e Sociedade. Brasília: Editora da UnB,

1994, p. 279-294.

43

nos espíritos”.93

A passagem nos mostra que, para Weber, os homens não representam coisas,

mas representam a partir de coisas. A representação ganha, pois, no pensamento weberiano,

vida própria, ainda que mantenha relação com o objeto a que se refere. Assim, conforme o

autor, o mundo simbólico seria construído de forma paralela ao mundo social, mas em estreita

ligação com ele e, para regular suas relações, o homem constituiria o domínio da ação

religiosa.94

Se o mundo social é caracterizado por condições econômicas, não é menos

verdade que Weber reconhece e aponta circunstâncias de ordem cultural e política em sua

formação. Se o deus do céu podia ser concebido entre os povos criadores de gado como

senhor da procriação, entre “culturas de cavaleiros” tendia-se a fazer também ascender e

residir no céu as divindades originariamente terrestres.95

Já a política produziria uma

constância: o fenômeno de formação de uma associação política estaria condicionado à

subordinação a um deus especial dessa associação, como na polis grega, nas cidades romanas

ou mesmo na confederação israelita. Assim, as figuras dos deuses e suas relações no mundo

mágico variariam de acordo com condições sociais e relações políticas entre os humanos. Há

uma nítida diferença no pensamento de Weber em relação ao de Durkheim e Mauss no que

concerne à análise do simbólico. Enquanto para estes os sistemas de classificação seriam

reflexos das condições sociais, para aquele o mágico é fundado no social, mas adquire uma

dinâmica independente. Ainda assim, a oposição entre o social e o simbólico se mantém. Por

último, cabe salientar que Weber apresentou a construção do religioso como um jogo entre

especialistas (sacerdotes), os quais deliberadamente operariam no campo das representações a

partir de seus interesses ideais e materiais, e os interesses religiosos dos leigos em um objeto

religioso palpável, próximo, relacionado com sua vida concreta.96

Esse elemento de

intervenção deliberada no mundo das representações seria recuperado mais tarde, como

veremos, pela teoria social.

Defensor do diálogo entre a história e as demais ciências sociais, e leitor de Durkheim,

entre outros, um dos fundadores dos Annales, Marc Bloch, recorreu constantemente ao termo

representação em uma de suas obras mais importantes, o livro Os reis taumaturgos, publicado

em 1924. O autor buscou contar a história de uma crença, a de que o toque régio teria o poder

de curar escrófulas, inflamações nos gânglios comuns entre a população européia do medievo

e da era moderna. Nesse empreendimento, Bloch nos dizia que o milagre régio apresentava-se

como expressão de certo conceito de poder político supremo e buscava relacioná-lo com

93

Ibidem, p. 280. 94

Ibidem, p. 281. 95

Ibidem, p. 286. 96

Ibidem, p. 282.

44

representações coletivas já existentes nas sociedades onde ele ocorreu (França e Inglaterra), as

quais remetiam a práticas e ritos bastante antigos. Por representações coletivas, ou mentais,

Bloch entendia todo o “conjunto de idéias e de crenças de que o milagre régio foi uma das

manifestações mais características”.97

É bem verdade que, como autor de seu tempo, Bloch

não escapava aos mesmos preceitos evolucionistas que fundamentavam as idéias de

Durkheim, Mauss e Weber. Ele nos diz, assim, que o milagre das escrófulas teria parentesco

com um sistema psicológico que poderia ser chamado de “primitivo”, já que traria as marcas

de “um pensamento ainda pouco evoluído e todo mergulhado no irracional”.98

Mas isso

indicaria apenas o gênero das representações coletivas que buscava estudar e não sua

historicidade. Esta consistiria na forma pela qual elas se manifestariam em sociedades e

épocas diversas e, assim, atenderiam a formações mentais também específicas. O milagre

régio só fora possível na França e na Inglaterra porque nestes países a própria figura do rei já

havia se tornado há muito tempo sagrada. O historiador mergulha, então, no conjunto de

representações formadas em épocas ainda mais remotas para explicar as origens do toque das

escrófulas, passando pela concepção sagrada do rei entre os povos germânicos, pela cerimônia

da unção na coroação real durante o medievo e pelos modelos e padrões fornecidos pela

Bíblia. A grande lição de Bloch é a de que velhas idéias não se esvaecem de repente: “É

verossímil que continuassem a viver, mais ou menos secretamente, na consciência popular”.99

George Dumézil com certeza concordaria com Marc Bloch. Em 1939, o autor publicou

seu livro sobre mitologia escandinava, defendendo a tese de que as sociedades de origem

indo-européias antigas seguiriam uma divisão tripartite calcada nas funções de soberania,

força e fecundidade. Vinte anos depois, Dumézil reeditou o livro incorporando algumas

conferências realizadas entre 1956 e 1957. Abordarei a primeira delas, ministrada em Oxford

em maio de 1956 sob o título de Deuses Ases e Deuses Vanes.100

Sua hipótese indica que dois

sistemas mítico-religiosos arcaicos teriam confluído no pensamento escandinavo em uma

mitologia especializada, na qual os antigos deuses do panteão “ase” cumpririam as funções de

magia (Odin) e de guerra (Thor), enquanto os deuses “vanes” se ligariam a um terceiro nível

relacionado com as riquezas materiais, a fecundidade, o prazer e a terra (Freyr, Freyar e

Njördhr). Tais apontamentos influenciaram estudos posteriores como os do medievalista

97

BLOCH, Marc. Os Reis Taumaturgos. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. 433 p. 98

Ibidem, p. 69. 99

Ibidem, p. 73. 100

DUMÉZIL, George. Dieux Ases et Dieux Vanes. In: DUMÉZIL, George. Les dieux des germains: essai sur la

formation de la religion scandinave. Paris: Presses Universitaires de France, 1959, p. 3-39.

45

Georges Duby.101

Mas o que nos interessa aqui são as insistentes lições de Dumézil contra o

que denominou “interpretação literal” do mito. No que pese sua abordagem puramente teórica

e hipotética102

, o autor mostrou que considerar o mito como mero resquício (deturpado) de um

evento histórico passado é uma solução simples, que negligencia as funções sociais da

narrativa mítica na ordem contemporânea. Foi nesse sentido que ele atacou as análises

históricas do mito e defendeu a interpretação estruturalista, já que as primeiras consistiriam

em procurar os eventos históricos “reais” que o teriam gerado. Segundo Dumézil, a dualidade

entre Ases e Vanes não poderia ser entendida como reflexo de eventos concretos, nem como

efeito de sua evolução. Antes, trataria-se da complementaridade de dois termos em uma

estrutura religiosa e ideológica unitária, que teriam sido trazidos já dessa forma por aqueles

povos indo-europeus que viriam a se tornar os germanos.103

O vocábulo representação é

utilizado poucas vezes e remete, geralmente, aos símbolos e idéias que fundamentam a

mitologia em determinada cultura, ou, ainda, àquilo que denomina “comunidade de língua”.

Dumézil nos diz que “a comunidade de língua implica um mínimo suficientemente estendido

de comunidade nas representações e na maneira em que elas se organizam, enfim, na

„ideologia‟, onde a religião foi por muito tempo a principal expressão”.104

Em obra clássica da sociologia do conhecimento, Peter Berger e Thomas Luckmann

abordaram o processo de institucionalização de práticas sociais, hábitos e modelos de

conduta.105

Apesar de preterirem a idéia de representação em prol do termo “tipificação”, o

que nos interessa é como sua preocupação com a construção social da realidade evidencia

uma mudança epistemológica que seria seguida por boa parte da teoria social posterior.106

Segundo os referidos autores, a repetição da prática instituiria o hábito, o qual, por sua vez,

através da exteriorização de significados objetivos, estabeleceria padrões e modelos de

conduta que operariam via tipificações. É importante notar que, seguindo apontamentos

sociológicos de autores canônicos como Marx e Durkheim, Berger e Luckmann predicaram

101

Ver, entre outro, DUBY, George. As três ordens: ou o imaginário medieval. Lisboa: Estampa, 1982. 102

Tal perspectiva, segundo Patrícia Boulhosa, acabou por enfatizar modelos e estruturas gerais que tenderam a

descontextualizar o material analisado por Dumézil. BOULHOSA, Patrícia. A mitologia escandinava de Georges

Dumézil: uma reflexão sobre método e improbabilidade. Brathair, n. 6, v. 2, p. 3-31. Acessado em 01/10/2008,

disponível em: www.brathair.com. 103

DUMÉZIL, George. Op. cit., p. 17. 104

Ibidem, p. 22. Importante notar que o termo ideologia, neste caso, não está associado à perspectiva marxista

clássica do falseamento da realidade em prol dos interesses da classe dominante, significando apenas “visão de

mundo”. 105

BERGER, Peter, LUCKMANN, Thomas. A Construção Social da Realidade: Tratado de Sociologia do

Conhecimento. Petrópolis: Vozes, 1973, 247 p. 106

Justo Serna e Anaclet Pons consideram Berger e Luckmann, entre outros teóricos, precursores do “giro

cultural” (ou lingüístico) ocorrido nos anos setenta na teoria social. SERNA, Justo, PONS, Anaclet. La Historia

Cultural: autores, obras y lugares. Madrid: Akal, 2005, p. 13-14.

46

uma anterioridade primária às práticas sociais em relação a tais tipificações. Mas, cabe

ressaltar também que, para os autores, esta precedência ocorreria apenas no momento inicial,

já que a construção da realidade objetiva é vista por eles como um processo dialético entre o

conhecimento estabelecido sobre a sociedade e, podemos dizer, a sociedade estabelecida pelo

conhecimento. Por conhecimento entendiam tudo aquilo que se constitui na troca social e que

é transmitido de geração à geração como normatividade, ou seja, saberes sobre o mundo

institucional, então experimentado como realidade histórica e objetiva. O conhecimento

teórico é considerado, pelos autores, apenas uma pequena parte daquilo que uma sociedade

concebe como conhecimento. Em um nível pré-teórico, toda instituição teria um corpo de

conhecimentos transmitido como receita e é ele quem definiria e constituiria “papéis” que

deveriam ser desempenhados e indicaria quem controlaria e prediria os modelos de

conduta.107

É nesse sentido que encontramos uma das poucas passagens do livro em que

aparece o termo representação. Segundo Berger e Luckmann, a ordem institucional é

representada por excelência pelos papéis sociais – mas também por símbolos e objetos físicos

naturais e artificiais. Assim, representação e experiência são processos indissociáveis: “Todas

as representações, porém, tornam-se „mortas‟ (isto é, destituídas de realidade subjetiva) a não

ser que sejam continuamente „vivificadas‟na conduta humana real”.108

Desde o final da década de 1960, verifica-se uma renovação nos estudos históricos e

na teoria social como um todo. Os chamados “retornos” do indivíduo, da narrativa, do político

e a ênfase na ação e na cultura foram alguns dos efeitos da descrença nos grandes sistemas de

explicação global e da crítica ao economicismo. A Antropologia Cultural pós-Lévi-Strauss

floresceu como fonte de questionamentos e produtora de novas teorias e métodos para a

análise da sociedade. A disciplina histórica buscou “antropologizar-se” e a escola francesa dos

Annales, encabeçada então por jovens historiadores como Jacques Le Goff e George Duby,

entre outros, voltou-se ao domínio do cultural, das mentalidades e, posteriormente, do

imaginário, retomando lições de seus fundadores Marc Bloch e Lucien Febvre.109

Le Goff,

nesse sentido, buscou definir, em 1985 ainda, o conceito de “imaginário” e, para tanto, sentiu

107

Ibidem, p. 93. 108

Ibidem, p. 105. 109

Na década de 1970, a chamada terceira geração dos Annales ocupava-se com o estudo das “mentalidades”.

Diversas foram as tentativas de definição do termo. Jacques Le Goff chegou a afirmar que o conceito de

mentalidade era ao mesmo tempo “novo” e “desgastado”, dados os questionamentos sobre sua operacionalidade

e coerência conceitual. LE GOFF, Jacques. As mentalidades. In: LE GOFF, Jacques, NORA, Pierre (orgs.).

História: novos objetos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1986, p. 68. Sua perspectiva interclassista também

gerou diversos debates e críticas, como a de Carlo Ginzburg em “O queijo e os vermes” (GINZBURG, Carlo. O

queijo e os vermes. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 28-29.). Na década seguinte, os mesmos

historiadores voltam-se aos estudos sobre o imaginário. O conceito seria criticado e questionado pela chamada

quarta geração dos Annales, representada pelo historiador Roger Chartier, em favor da idéia de “representação”.

47

necessidade de superar a acepção comum do vocábulo representação: “Este vocábulo, de uma

grande generalidade, engloba todas e quaisquer traduções mentais de uma realidade exterior

percebida. A representação está ligada ao processo de abstração. A representação de uma

catedral é a idéia de uma catedral”.110

O sentido vago do termo não permitiria, segundo o

autor, a mesma riqueza de análise que o conceito de “imaginário” possibilita, pois este último,

ainda que pertença ao campo da representação, “ocupa nele a parte da tradução não

reprodutora, não simplesmente transposta em imagem do espírito mas criadora, poética no

sentido etimológico da palavra”.111

A concepção corrente de representação inviabilizaria, na

perspectiva de Le Goff, a nova proposta de abordar a função criadora da cultura, a construção

cultural da realidade social, poderíamos dizer.

Foi só recentemente, então, que houve um maior debate, ao menos no âmbito

historiográfico e no das ciências sociais, sobre o termo representação, bem como uma

tentativa mais sistemática de precisar o seu significado. A palavra deixou de ser um termo

vago do senso comum acadêmico para se tornar um conceito ou categoria analítica

fundamental da análise sócio-cultural. Abordaremos aqui dois autores que se tornaram

“pilares teóricos” para os estudos sobre representações: o sociólogo Pierre Bourdieu e o

historiador Roger Chartier; o segundo é um dos expoentes e responsáveis pelo sucesso da

chamada “Nova História Cultural” e o primeiro é, não raro, apontado como uma das fontes e

matrizes teóricas desta nova tendência historiográfica.112

No final dos anos 1970, Bourdieu

publicou artigo sobre a construção da idéia de região nas/pelas ciências sociais. Para dar conta

deste objetivo, acabou por discutir o conceito de representação, explicitando sua proposta

teórica. Preocupado em mostrar como as ciências sociais participam do jogo de classificação e

definição de seus próprios objetos de pesquisa, o autor evidencia, logo no início do texto, uma

mudança epistemológica que procura desfazer a dicotomia representação/realidade. Contra os

opositores de seu projeto de tomar como objetos de estudo os próprios instrumentos de

construção do objeto, ele nos diz que:

“...a certeza em nome da qual eles privilegiam o conhecimento da „realidade‟

em relação ao conhecimento dos instrumentos de conhecimento é,

110

LE GOFF, Jacques. O imaginário medieval. Lisboa: Estampa, 1994, p. 11. 111

Ibidem, p. 12. 112

Pierre Bourdieu é listado por Peter Burke como um dos quatro principais teóricos (juntamente com Mikhail

Bakhtin, Norber Elias e Michel Foucault) que fundamentam os trabalhos da chamada Nova História Cultural.

BURKE, Peter. O que é História Cultural? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. Cabe ressaltar que esse campo

dos estudos históricos não pode ser compreendido como uma escola historiográfica homogênea; ao contrário,

encontramos diversas divergências e debates teóricos entre autores identificados com a tendência “cultural” dos

estudos históricos. Se optei pela nomenclatura, ainda que utilizando as restritivas aspas, deve-se ao

reconhecimento de críticos especializados, como Peter Burke, de que há pontos comuns suficientes, entre os

textos de teóricos identificados com “corrente”, para identificar nela relativa unidade.

48

indubitavelmente, tão pouco fundamentada como no caso de uma „realidade‟

que, sendo em primeiro lugar, representação [grifo do autor], depende tão

profundamente do conhecimento e do reconhecimento”.113

Assim, a leitura da sociologia do conhecimento feita por Bourdieu aponta para o

necessário reconhecimento, por parte das ciências sociais, de que essas operam pela via dos

“atos de classificação”, tanto quanto aqueles agentes e discursos por elas estudados. Não

aconteceria de outra maneira com a construção da noção de “região”. Segundo Bourdieu, a

confusão que os debates em torno do termo suscita teria relação com a negligência do papel

performativo que o discurso científico exerce e, poderíamos dizer, de sua função política. O

autor nos mostra que “as classificações práticas estão sempre subordinadas a funções práticas

e orientadas para a produção de efeitos sociais”.114

É a partir daí que ele explicita como as

representações coletivas atuam nos processos de classificação social. De acordo com

Bourdieu, o pesquisador que se volta ao estudo da identidade regional ou étnica não deve

partir em busca de “critérios objetivos” que a definiriam (como língua, dialeto ou sotaque),

tendo em vista que estes são objeto de “representações mentais” e de “representações

objetais”. O autor define as primeiras como “actos de percepção e de apreciação, de

conhecimento e de reconhecimento em que os agentes investem os seus interesses e os seus

pressupostos”; e as segundas como presentes “em coisas (emblemas, bandeiras, insígnias,

etc.) ou em actos, estratégias interessadas de manipulação simbólica que têm em vista

determinar a representação mental que os outros podem ter destas propriedades e dos seus

portadores”. É assim que as características “objetivas” arroladas por etnólogos e sociólogos

“funcionam como sinais, emblemas ou estigmas, logo que são percebidas e apreciadas como o

são na prática”.115

Um antídoto para evitar a ingenuidade acadêmica quanto ao papel das

ciências na construção social de seus objetos seria justamente atentar para a função das

representações sociais, dirimindo a oposição realidade/representação (que Bourdieu põe em

xeque desde o início de seu texto, como vimos):

“Só se pode compreender esta forma particular de luta das classificações que é

a luta pela definição da identidade „regional‟ou „étnica‟ com a condição de se

passar para além da oposição que a ciência deve primeiro operar, para romper

com as pré-noções da sociologia espontânea, entre a representação e a

realidade, e com a condição de se incluir no real a representação do real ou, mais exactamente, a luta das representações, no sentido de imagens mentais e

também de manifestações sociais destinadas a manipular as imagens mentais (e

113

BOURDIEU, Pierre. Op. cit., p. 107-108. 114

Ibidem, p.112. 115

Ibidem.

49

até mesmo no sentido de delegações encarregadas de organizar as

representações mentais)”.116

Assim como para Durkheim, Mauss, Berger e Luckmann, as representações mentais

são, para Bourdieu, classificações construídas socialmente que instrumentalizam a ação

cotidiana. Como para Weber e Dumézil, elas ganham realidade e dinâmica próprias. Como

para Bloch, condicionam outras representações, mas também ritos e instituições. Mas

Bourdieu difere desses autores ao mostrar as representações como uma realidade tão concreta

quando os outros aspectos do social. Lembrando Weber ainda, ele indica como os agentes

sociais podem intervir deliberadamente no campo das representações (através dos ritos ou da

construção de símbolos) para, com isso, intervir nos rumos de sua sociedade. O sociólogo nos

apresenta, assim, a construção do simbólico como uma disputa pelo poder.

Roger Chartier comunga com tal perspectiva:

“A história da construção das identidades sociais encontra-se assim

transformada em uma história das relações simbólicas de força. Essa história

define a construção do mundo social como o êxito (ou o fracasso) do trabalho

que os grupos efetuam sobre si mesmos – e sobre os outros – para transformar

as propriedades objetivas que são comuns a seus membros em uma pertença

percebida, mostrada, reconhecida (ou negada)”.117

De forma semelhante a Bourdieu, Chartier ataca abertamente as antigas posturas que

opõem representação e realidade. Contra o que denomina “tirania do social”, que por muito

tempo teria feito com que a história e as demais ciências humanas submetessem a análise do

cultural a clivagens sociais tidas como pré-existentes, Chartier recupera a antiga lição de

Durkheim e Mauss: “Tentar superá-la exige, primeiramente, considerar os esquemas

geradores dos sistemas de classificação e de percepção como verdadeiras „instituições

sociais‟, incorporando sob a forma de representações coletivas as divisões da organização

social”; mas julga necessário ainda, como Mauss, “considerar, corolariamente, essas

representações coletivas como matrizes de práticas que constroem o próprio mundo social”.118

Apesar de recuperar o sentido comum de representação: correlação entre uma imagem

presente e um objeto ausente, o autor define o conceito, outrossim, como um aparato mental

que dá sentido ao mundo, predicando o estudo da maneira pela qual o discurso é produzido

socialmente, mas também como o social é construído discursivamente.

116

Ibidem, p. 113. 117

CHARTIER, Roger. Introdução geral. In: ________ . À beira da falésia: a história entre certezas e

inquietudes. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002, p 11. 118

Idem. O mundo como representação. In: Ibidem, p. 72.

50

Para Chartier, a importância da noção de representação reside em seu potencial

analítico, já que ela permitiria o exame de três realidades: primeiro, das representações

coletivas que incorporam nos indivíduos as divisões do mundo social e organizam os

esquemas de percepção a partir dos quais eles classificam, julgam e agem; segundo, das

formas de exibição e de estilização da identidade que pretendem ver reconhecidas e; terceiro,

da delegação a representantes da coerência e da estabilidade da identidade assim afirmada.119

Com este terceiro aspecto, o autor parece desenvolver a formulação de Bourdieu: as

representações são “mentais”, ligadas a esquemas de percepção e de significação; são

“objetais”, pois correspondem a produtos deliberados de estilização identitária; mas são

igualmente atos políticos de delegação do simbólico àqueles agentes individuais ou coletivos

que elaboram e arbitram o lícito e o ilícito nos dois primeiros níveis. Assim, Chartier designa

como “dominação simbólica” “o processo pelo qual os dominados aceitam ou rejeitam as

identidades impostas que visam a assegurar e perpetuar seu assujeitamento”.120

O historiador

mostra ainda o caminho através do qual, sob tal perspectiva, uma dupla via se abre: a primeira

“pensa a construção das identidades sociais como resultando sempre de uma relação de força

entre as representações impostas por aqueles que têm poder de classificar e de nomear e a

definição, submetida ou resistente, que cada comunidade produz de si mesma”; a segunda

“considera o recorte social objetivado como a tradução do crédito concedido à representação

que cada grupo faz de si mesmo, portanto, à sua capacidade de fazer com que se reconheça a

sua existência a partir de uma exibição de unidade”.121

São os apontamentos de Bourdieu e Chartier, principalmente, e sua precisão teórica do

vocábulo-conceito representação que tenho em mente ao analisar o processo de construção

cultural da identidade gaúcha pelos tradicionalistas, principalmente. A gauchesca, entendida,

como toda a literatura que se ocupa da figura do gaúcho – não somente a literária, a folclórica,

a política e a jornalística, mas também a acadêmica e científica, historiográfica, antropológica,

sociológica etc. – pode, assim, ser abordada como um complexo sistema simbólico que

informa diferentes projetos políticos (individuais e coletivos) e constrói também o social.

Barbosa Lessa atua no campo das “representações mentais”, elaboradas e ressignificadas

desde a segunda metade do século XIX, através da construção de novos símbolos e ritos

(“representações objectais”). Sua produção intelectual e sua atuação “prática” devem ser

entendidas, então, como intervenções no jogo de definição e classificação da identidade

119

Idem. Op. cit., p. 11. 120

Ibidem. 121

Idem. Op. cit., p. 73.

51

regional, na arena das “lutas de classificação” identitária, e o próprio autor como um

representante autorizado da coerência e da estabilidade desta identidade.

1.2 - A poética da tradição: o processo e o produto entre a cultura oral e a escrita

O conceito/noção de tradição também é utilizado comumente com pouco apuro

teórico, como mostra Ruth Finnegan. Discutindo os usos e definições da categoria, a

antropóloga aponta para dois sentidos vagos comuns, o de tradição como “costume” e o de

tradição como algo “antigo”. Um terceiro sentido, normalmente utilizado nas ciências sociais,

é aquele de “código não escrito de corpos de ensinamentos”, em geral encontrado em antigas

religiões, ou seja, como um “tipo ideal” fonte de autoridade, como na tipologia de Max Weber

(onde a tradição é tomada como o oposto da autoridade racional e da autoridade

carismática).122

A autora empreende, então, uma pesquisa em dicionários contemporâneos de

língua inglesa e identifica três constâncias nas definições do vocábulo: a) o termo comporta

diferentes significados, com aplicações mais amplas e mais restritas, incluindo, assim, tanto o

processo quanto seu produto; b) o termo é aparentemente usado em um sentido emotivo; c)

apesar das diferenças, possui temas recorrentes (transmissão oral, antiguidade, crenças e

práticas valorizadas ou desvalorizadas”).123

Parece-me que, em ciências sociais, tradição é

ainda algo associado ao processo e produto da transmissão oral de códigos e crenças antigas;

mas também da transmissão escrita da cultura, ou melhor, da mescla entre elementos da

cultura letrada e da cultura popular de base oral. A historiadora Janaína Amado, por exemplo,

analisou as narrativas de um ex-membro do Partido Comunista, partícipe de uma revolta de

posseiros de terra no interior de Goiás em meados do século XX, como uma reformulação

criativa de antigas tradições orais e escritas. Fernandes, seu depoente, baseara-se no clássico

de Cervantes, Don Quixote de la Mancha, para narrar as aventuras de José Porfírio, líder da

Revolta do Formoso. Mas também fora informado pela memória coletiva da região, com

“forte tradição de origem ibérica”, da qual o livro de Cervantes fazia parte: “O conjunto de

memórias de Fernandes, aí incluídas as lembranças do Formoso, foi profundamente

influenciado, já se viu, pela sociedade e época em que ele viveu; são memórias sociais,

122

FINNEGAN, Ruth. Tradition, But What Tradition and For Whom? Oral Tradition, n. 6., v. 1, 1991, p. 105. 123

Ibidem.

52

embebidas de tradição [grifo meu] e de história, semelhantes a memórias outras, de pessoas

que viveram em épocas e áreas próximas”.124

A tradição pode se manifestar, assim, também no âmbito da cultura escrita, definindo

uma “cultura de elite tradicional”. Por este viés, o termo é comumente utilizado em oposição à

chamada “modernidade cultural”. Ricardo Luiz de Souza, por exemplo, analisou a evolução

do pensamento de Joaquim Nabuco em termos de tradição e modernidade.125

Representante

da elite pernambucana, ele defendia e proclamava suas virtudes fidalgas e esmerava-se em

descrever uma elite cujos valores referiam-se a uma época na qual os padrões dominantes

eram incompatíveis com os padrões capitalistas: “Nesse momento [após a abolição da

escravidão e proclamação da República], Nabuco torna-se um cioso defensor da necessidade

de preservarem-se as tradições, demolindo-se apenas o que seja prejudicial e mantendo-se

mesmo o que seja inútil”.126

O “tradicionalismo” de Nabuco é definido, assim, em termos de

conservadorismo cultural aliado à modernização econômica, ou seja, à modernização da

dominação da elite fidalga pernambucana.

Em nenhum dos dois casos citados aparece, entretanto, uma definição explícita do

termo tradição (até porque este não era o objetivo dos autores). Fora o crítico literário

marxista Raymond Williams quem empreendera primeiramente certo esforço didático para a

conceituação do termo. Em Palavras-Chave, o autor publicara notas redigidas no pós-guerra

como a investigação sobre um conjunto de palavras utilizadas em língua inglesa no âmbito

das discussões sobre sociedade e cultura. Seguindo a etimologia da palavra “tradition”,

derivada do francês antigo e do latim traditionem, da palavra tradere (entregar ou transmitir),

o termo encerra, segundo o autor, os seguintes significados: (i) entrega, (ii) transmissão de

conhecimento, (iii) legado de uma doutrina, e, ainda, (iiii) rendição ou traição.127

Mas são os

sentidos ii e iii que ganharam maior desenvolvimento, de acordo com Williams: “Tradição

[grifo do autor] sobrevive em inglês como descrição de um processo geral de transmissão,

124

AMADO, Janaína. Tradição, veracidade e imaginação em história oral. História, São Paulo, n. 14, 1995, p.

132. 125

Nessa perspectiva, apresentei texto intitulado “Tradição e modernidade na pena de um centauro: Luiz Carlos

Barbosa Lessa e a invenção do tradicionalismo gaúcho”, no qual busquei dar conta da tensão entre campo e

cidade, que se desdobraria na dicotomia tradição/modernidade, nos primeiros escritos de Barbosa Lessa sobre

tradição e tradicionalismo gaúchos. ZALLA, Jocelito. Tradição e modernidade na pena de um centauro: Luiz

Carlos Barbosa Lessa e a invenção do tradicionalismo gaúcho (1945-1954). In.: V Colóquio Tradição e

Modernidade no Mundo Ibero-Americano. Atas do V Colóquio Internacional. Rio de Janeiro, 2008. Publicação

em CD-ROM. Este será, também, um dos temas do próximo capítulo. 126

SOUZA, Ricardo Luiz. Tradição, identidade nacional e modernidade em Joaquim Nabuco. Anos 90, Porto

Alegre, v. 11, n. 19/20, jan./dez. 2004, p. 329-330. 127

WILLIAMS, Raymond. Tradição. In: ________. Palavras-chave: um vocabulário de cultura e sociedade. São

Paulo: Boitempo, 2007, p. 399.

53

mas há um sentido implícito muito forte e amiúde predominante de respeito e obediência”.128

Dessa forma, ele aponta que a tradição é um processo ativo, no qual muitas vezes são

necessárias duas gerações apenas para que algo se torne tradicional. Ainda assim, a palavra

tende a se deslocar em direção a “antigo e cerimônia, obediência e respeito”.129

Existe, ainda,

um sentido pejorativo para o termo “tradicional”, aquele que se opõe à modernização: “De

fato, tradicionalismo parece especializar-se como uma descrição de hábitos e crenças

inapropriados para praticamente qualquer inovação”.130

Esse misto de processo ativo com

antiguidade e, em certa medida, a referência ao aspecto “atrasado” da tradição aparecem em

outro clássico da Crítica Literária. Em fala de 1953, Jorge Luís Borges buscava questionar a

tradição argentina calcada na antiguidade dos traços e cores locais. Foram os nacionalistas

que elencaram textos como Martín Fierro, de José Hernández, como cânones da tradição,

fazendo deles um contínuo com as poesias orais dos cantadores gaúchos, nos diz Borges.

Coube a tais escritores, continua o autor, deliberadamente, introduzirem os elementos da

gauchesca popular e transmitirem-nos como tradição imemorial, quando, em realidade,

aqueles cantadores espontâneos da poesia popular evitavam esses elementos, buscando refletir

sobre temais gerais, como o amor e a guerra. A cor local da “tradição” apenas posteriormente

acabaria por alcançar estes poetas: “É provável que agora a poesia gauchesca [erudita] tenha

influído nos cantadores gaúchos e que estes também utilizem profusamente os crioulismos,

mas no princípio isso não ocorreu...”.131

Então, nesse caso, a tradição, entendida como

processo, é vista por Borges enquanto um intento deliberado de atuação erudita e nacionalista

sobre práticas populares.

De certa forma, Borges antecipa as discussões contemporâneas sobre o fenômeno da

“invenção das tradições”. Mas foi o historiador marxista britânico Eric Hobsbawm que,

juntamente com Terence Ranger, fundou uma vertente de estudos sobre o tema. Devemos ao

autor uma melhor definição do conceito de tradição, que lhe dotou de potencial analítico,

diferenciando-o, inclusive, de termos similares; por isso, deter-me-ei com mais vagar sobre o

seu texto. Hobsbawm entende por “tradição inventada” um conjunto de práticas, normalmente

reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou

simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o

128

Ibidem, p. 400. 129

Ibidem. 130

Ibidem, p. 401. 131

BORGES, Jorge Luís. O escritor gaúcho e a tradição. In.: ______. Obras completas. Vários tradutores. Rio de

Janeiro: Globo, 1998, p. 290.

54

que implica continuidade em relação ao passado.132

Ou seja, tradição é considerada como um

processo que institui significados culturais, os quais definem valores e regras a serem

seguidos por determinado grupo social.

O historiador preocupa-se igualmente em diferenciar “tradição” e “costume”: o

objetivo e a característica das tradições, “inclusive das inventadas”, é a invariabilidade, pois o

“passado real ou forjado” a que elas se referem impõe práticas fixas (normalmente

formalizadas), tais como a repetição”; já o costume, nas sociedades tradicionais, possui as

funções de “motor” e “volante”, pois não impede as inovações e pode se transformar - “sua

função é dar a qualquer mudança desejada (ou resistência à inovação) a sanção do precedente,

continuidade histórica e direitos naturais conforme o expresso na história”.133

O costume não

pode se dar ao luxo de ser invariável, nos diz Hobsbawm, já que a vida não é assim nem

mesmo em sociedades tradicionais.134

A tradição não pode ser também confundida com

“convenção” ou “rotina”, já que essas não possuem nenhuma função simbólica ou ritual

importante.135

Daí a consideração da invenção das tradições como “um processo de

formalização e ritualização, caracterizado por referir-se ao passado, mesmo que apenas pela

imposição da repetição”.136

Contudo, logo aparece no texto de Hobsbawm uma tensão que o autor, segundo me

parece, não resolve satisfatoriamente: aquela existente entre tradições genuínas e tradições

inventadas ou, de forma mais amena, entre tradições não inventadas e tradições

deliberadamente inventadas. Ele nos diz que o processo de ritualização é mais fácil de

identificar quando a tradição é “deliberadamente inventada e estruturada por um único

iniciador”, como no caso do escotismo de Baden Powell, do que quando “as tradições tenham

sido em parte inventadas, em parte desenvolvidas em grupos fechados (...) ou de maneira

informal durante um certo período”137

, como no caso das tradições parlamentares e jurídicas.

O que parece diferenciar as tradições inventadas das genuínas, na perspectiva do historiador, é

o período de tempo ao longo do qual elas são concebidas e/ou elaboradas. As primeiras

surgiriam em movimentos rápidos e em momentos breves: “Em suma, inventam-se novas

tradições quando ocorrem transformações suficientemente amplas e rápidas tanto do lado da

demanda como da oferta”.138

Buscando dotar-se de legitimidade, as novas tradições operariam

132

HOBSBAWM, Eric. Op. cit., p. 09. 133

Ibidem, p. 10. 134

Ibidem. 135

Ibidem, p. 11. 136

Ibidem, p. 12. 137

Ibidem. 138

Ibidem, p. 12-13.

55

com elementos antigos: “Sempre se pode encontrar, no passado de qualquer sociedade, um

amplo repertório destes elementos; e sempre há uma linguagem elaborada, composta de

práticas e comunicações simbólicas”.139

Mas não nos deixemos enganar, alerta Hobsbawm, a

utilização de tais elementos nas novas tradições inventadas cumpririam sempre fins originais.

A ruptura com a continuidade estaria presente mesmo em movimentos que se proclamam

“tradicionalistas”: “Tais movimentos, comuns entre os intelectuais desde a época romântica,

nunca poderão desenvolver, nem preservar um passado vivo (...); estão destinados a se

transformarem em „tradições inventadas‟”.140

E o autor faz um novo alerta: “... a força e a

adaptabilidade das tradições genuínas não deve ser confundida com a „invenção das

tradições‟. Não é necessário recuperar nem inventar tradições quando os velhos usos ainda se

conservam”.141

Os apontamentos de Hobsbawm são extremamente úteis para os estudiosos da

tradição. Ainda que opere com a fraca dicotomia entre tradição inventada e tradição genuína,

diferenciadas unicamente pela duração de seus períodos de maturação e pelos novos

propósitos da primeira, é importante ter em mente sua definição processual de tradição e sua

atenção às funções simbólicas e rituais desta. Mas há que se tomar cuidado com os possíveis

equívocos que o termo “tradição genuína” pode nos levar a cometer. Uma crítica indireta à

postura teórica de Hobsbawm é feita por Durval Muniz de Albuquerque Júnior. O seu alvo

principal, no entanto, é a história social e a suposta falta de atenção desta ao papel da escrita

histórica na construção da realidade descrita e analisada. O autor considera que, para esse

campo historiográfico, o momento de invenção de qualquer objeto histórico estaria sempre

localizado no passado. Ao historiador caberia apenas “dar conta dos agentes desta invenção,

definindo que práticas, relações sociais, atividades sociais produziriam um dado evento”,

seguindo, para tanto, as pistas e vestígios – documentos – deixados pelo momento da

invenção.142

Muitas vezes caberia ao historiador social adotar, assim, a proposta de

Hobsbawm, entendida por Albuquerque Júnior como o discernimento entre o que é uma

invenção “como ação genética e instituinte dos grupos sociais na História” e o que é uma

invenção “puramente ideológica”, ou melhor, “uma falsificação propositada, mitificação sem

base na realidade, que visa a justificar uma dada dominação social ou política”.143

Este pode

ser, efetivamente, um dos usos dos apontamentos teóricos de Hobsbawm, mas, como vimos, o

139

Ibidem, p. 14. 140

Ibidem, p. 16. 141

Ibidem. 142

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. Introdução: Da terceira margem eu so(u)rrio: sobre história e

invenção. In: op. cit., p. 24. 143

Ibidem.

56

autor também demonstra preocupação com a elaboração simbólica e ritual das tradições,

tratando-na como instituidora de realidade social. A ênfase sobre o caráter deliberado e

ideológico do processo de invenção das tradições nos trabalhos de Hobsbawm justifica-se

pelo período e objeto estudados pelo autor, como veremos abaixo. Acredito, no entanto, que

tal característica não invalida o potencial analítico de seu aparato conceitual para períodos e

objetos distintos, assim como não conflita, necessariamente, com posturas e abordagens

teóricas atentas aos processos de produção de sentido.

Denise Fagundes Jardim e Roberta Peters apontam que, desde a publicação da

coletânea de Hobsbawm e Ranger, em 1983, o debate sobre as tradições está permeado pela

dúvida e pela suspeita: “De um lado, elas não seriam tão antigas quanto se encenam; de outro,

não seriam tão verossímeis quanto desejam aparentar”.144

Tal asserção refletiria um uso

bastante corrente do termo em ciências humanas, ainda que não configure necessariamente a

proposta de Hobsbawm, ou, como melhor definem as autoras, “transborde seus próprios

objetivos”. Quando a análise da tradição reivindica a verossimilhança, facilmente caímos,

historiadores e demais cientistas sociais, em uma cruzada para desmascarar as engrenagens da

invenção. Como muito bem lembram as autoras, a proposta de Hobsbawm inspeciona a

construção de um período específico: a Era das Nações, buscando averiguar como os

Estados-nações produziram imagens e ideários que o eternizavam, seja em sua existência

política, seja pelos costumes e hábitos próprios de seus “povos”. Todavia, no jogo entre

“antigo” e “novo”, o termo “invenção” faz com que o debate recaia sobre a existência ou não

de uma “verdadeira” tradição. Segundo Jardim e Peters, a proposta do autor visaria questionar

aspectos que são tidos e vistos por seus protagonistas como imutáveis: “Analiticamente, o

autor nos evidencia que a continuidade histórica é sempre um esforço coletivo”.145

As autoras

lembram ainda que, no final de sua introdução, Hobsbawm conclama historiadores e

antropólogos a “refletir sobre os processos sociais que nos permitem transformar nações e

Estados-nações em realidades dotadas de permanência, acima do tempo e do espaço”.146

O

objetivo primeiro do autor seria, então, justamente o de analisar o processo de construção

social, cultural e política das novas unidades de referência nacionais, que configurou-nas

como realidades vivas no cotidiano de milhões de pessoas:

“A proposta remete à investigação da invenção de sentimentos relacionados à

fabricação da coesão social e de todos os artifícios que os grupos humanos se

144

JARDIM, Denise Fagundes, PETERS, Roberta. Os casamentos árabes: a recriação das tradições entre

imigrantes palestinos no Sul do Brasil. Anos 90. Porto Alegre, v. 12, n. 21/21, jan./dez. 2005, p. 173. 145

Ibidem, p. 177. 146

Ibidem.

57

utilizam para produzir noções, mais ou menos duradouras, de uma coletividade

dotada de uma origem comum e destinos tangíveis”.147

Uma forma interessante de evitar os reducionismos e ímpetos desmistificadores que a

noção de tradição inventada tem o potencial de gerar pode ser a retomada de um dos

primeiros sentidos aqui discutidos do termo tradição, ou seja, aquele recorrente nos estudos

sobre tradições orais. Entendida como um processo de transmissão de conhecimento, a

tradição é sempre criativa e criadora, instituidora de sentido e coesão social. Julie Cruikshank

aponta como as abordagens atuais em ciências sociais tendem mais a avaliar a tradição oral

por si mesma do que como ilustração de algum outro processo. Isso significa analisar como a

narrativa produz significado social e informa a ação dos agentes envolvidos (o que, de certa

forma, nos conduz novamente à discussão sobre a construção cultural da realidade, esboçada

no item anterior). Já que os relatos orais sobre o passado englobam explicitamente a

experiência subjetiva, os “fatos pinçados aqui e ali nas histórias de vida dão ensejo a

percepções de como um modo de entender o passado é construído, processado e integrado à

vida de uma pessoa”.148

Nesse sentido, o trabalho de Walter Ong aproxima tradição oral e

memória. Em uma cultura dita primária, ou basicamente oral, a tradição ocupa o lugar da

escrita como ordenadora do mundo, poderíamos dizer. Para resolver o problema da retenção e

da recuperação do pensamento articulado, é preciso exercê-lo em termos mnemônicos: “O

pensamento deve surgir em padrões fortemente rítmicos, equilibrados, em repetições ou

antíteses, em aliterações e assonâncias, em expressões epitéticas ou outras expressões

formulares...”.149

Mas, como mostra Eric Havelock, a cultura letrada não substituíra

completamente a tradição oral. Antes, certas marcas de oralidade sobreviveriam em gêneros

discursivos, como a retórica e a poesia. Por que não pensarmos, então, em uma dinâmica de

oralidade atuando nas sociedades letradas contemporâneas? Esta relação é possível quando

associamos o conteúdo do oralismo a uma “tradição”, entendida como um repositório para os

mitos e lendas, mas também, como o próprio processo de “evolução cultural”. Este termo,

resgatado da teoria biológica de Ernst Mayr por Havelock, permite compreender o “papel

desempenhado pela acumulação de informação e o armazenamento para reutilização na

147

Ibidem. 148

CRUIKSHANK, Julie. Tradição oral e história oral: revendo algumas questões. In.: AMADO, Janaína,

FERREIRA, Marieta de Moraes (orgs.). Usos & abusos da história oral. 7a edição. Rio de Janeiro: Fundação

Getúlio Vargas, 2005, p. 156. 149

ONG, Walter. Oralidade e cultura escrita: a tecnologização da palavra. Campinas: Papirus, 1998, p. 45

58

linguagem humana”.150

Trata-se, essencialmente, da necessidade de preservar a identidade

cultural: “Uma vez que os costumes populares são cuidados e guardados, constituem aquilo

que chamaríamos a „tradição‟ que a sociedade nutre e é nutrida”.151

O autor mostra, então,

como a primeira poesia grega (Homero e Hesíodo) possui, naquele contexto, uma função de

memória social: ela deve celebrar as coisas “que serão e que já foram”, uma fórmula ampliada

quando posta nas bocas das musas – “as coisas que são, que serão e que já foram” – o que,

segundo Havelock, “sugere uma tradição presente que se estende até o passado e que se supõe

que se estende para o futuro: o idioma em que os três períodos são descritos estabelece-lhes a

identidade, não a diferença”.152

Obviamente, os apontamentos de Hobsbawm estão mais próximos de nossa sociedade

e descrevem muito bem o papel das tradições para o Estado-nação. A leitura das observações

sobre a tradição oral, principalmente no tocante aos trabalhos de Ong e Havelock, não visa

substituir teoricamente e metodologicamente aqueles apontamentos. Nem poderiam. Ong

aborda a tradição como recurso mnemônico em sociedades estritamente orais, ditas primárias

e, portanto, não existentes. Havelock examina uma sociedade específica, a grega antiga,

considerada de tipo secundário (onde oralidade e escrita convivem em diferentes proporções),

tendo em vista, principalmente, a função da poesia oral ou de base oral. Mas seus trabalhos

contribuem para o questionamento do suposto caráter ideológico, falso e, portanto, irreal, da

tradição, na medida em que ajudam a pensá-la como transmissão cultural e, assim, como

processo vivo na experiência cotidiana. Passado, presente e futuro são ligados, pois, pelo fio

da tradição para instaurar a identidade social.

Ruth Finnegan recupera, da mesma forma, o trabalho de Milman Parry para encarar a

tradição e as formas tradicionais não como coisas distintas ou como antiguíssimos produtos

do passado, mas como elementos pesquisáveis da vida prática.153

Em última instância, trata-se

de recuperar a poesia da tradição. O Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de José

Pedro Machado, define “poesia”, do grego poíésis, como “acto de fazer, de fabricar”,

“criação” e, ainda “a criação, isto é, o mundo criado”. A “poética” é aquilo que “tem a virtude

de fazer, de criar, de produzir; próprio para fabricar, para confeccionar”.154

A análise das

tradições deveria, então, recuperar a poética da realidade social. Não existiriam, assim, duas

150

HAVELOCK, Eric A. A musa aprende a escrever: reflexões sobre a oralidade e a literacia da antiguidade ao

presente. Lisboa: Gradiva,1996, p. 73. 151

Ibidem, p. 74-75. 152

Ibidem, p. 75. 153

FINNEGAN, Ruth. Op. cit., p. 121. 154

MACHADO, José Pedro. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. 2a edição. Volume II. Lisboa:

Editorial Conflência, Livros Horizonte, 1967, p. 1841.

59

tradições opostas, a inventada e a genuína, mas duas maneiras (processos), ao menos, de

confeccionar a tradição (produto): aquela da transmissão cultural de geração à geração – que

sofre sempre, é claro, atualizações e ressignificações – e aquela da intervenção refletida sobre

este decurso. Em ambas, o objetivo é sempre o mesmo: a criação do mundo.

Hobsbawm é ainda a leitura-chave para compreendermos o processo de formalização e

ritualização das tradições gaúchas, distinguindo-as, também, de costume ou convenção. Há

que se perceber, assim, o projeto tradicionalista como sendo diferente da primeira forma de

produzir a tradição (transmissão cultural de geração à geração), apontando, justamente, para o

dispêndio e investimento criativo e consciente dos atores nele envolvidos, como Luiz Carlos

Barbosa Lessa. Este é o foco da minha proposta, ou seja, compreender o processo de

fabricação das tradições gaúchas por meio da análise do projeto intelectual de Barbosa Lessa.

Mas a discussão aqui realizada pretente destituir da noção de “invenção de tradições” aquele

sentido de contrafração que facilmente nos levaria a exercícios de desmistificação, como os

analisados na introdução desse trabalho, ao invés de iluminar os precssos de construção social

da realidade.

1.3 - Projeto ou ilusão?: biografia, trajetória e autoconstrução

A História, à medida que buscava conquistar um estatuto científico, pretendeu tornar-

se um discurso neutro, livre das pretensões artísticas e dos recursos estilísticos pessoais

próprios à Literatura, sobretudo a partir da segunda metade do século XIX. No século XX, a

biografia, como gênero histórico, seguiria os passos de sua disciplina matriz: racionalizou-se,

procurou tornar-se um discurso objetivo e um recurso analítico. Para tanto, distanciou-se da

ficção, da imaginação, do “irreal”. Quando o reinado da política entrou em declínio nos

domínios da História, a própria escrita biográfica foi debatida, rebatida e renegada. Mas

acabou recuperada por seu algoz, conhecido como estrutura. Ganhou nova feição. Tornou-se

uma lupa para a sociedade. Em um último golpe ao engenho humano, converteu-se em ilusão.

Não quero aqui questionar as contribuições do discurso científico para a análise biográfica,

mesmo porque hoje sabemos possível conciliar subjetividade autoral e objetividade analítica

em escrita de História. O que quero propor, entretanto, nesta rápida discussão, é a

recuperação, nos estudos biográficos (não em sua forma, mas nos seus conteúdos, portanto),

daquela arte prospectiva do fazer-se, da consciência criativa e do relativo controle que certos

60

indivíduos possuem sobre sua própria vida, ou seja, do projeto como objeto. Antes disso,

acompanhemos um pouco mais de perto esta história.

Peter Burke nos mostra como a ascensão de um conceito de individualidade, no caso,

o de autoria, está ligada ao (res)surgimento da biografia no período renascentista.155

O

interesse pela vida de governantes, heróis, reis e santos, e a narrativa de seus sucessos são

encontradas desde a Antigüidade. No entanto, foi a partir do Renascimento que aquilo que

poderíamos conciliar mais facilmente com a nossa significação contemporânea para o termo

biografia passou a ser produzido. As biografias renascentistas comportam alguns elementos

que marcaram a produção futura do gênero. O resgate de Plutarco com sua divisão entre

história, ocupada com os feitos de estadistas e com a vida pública, e biografia, destinada a

relatar os pormenores da vida privada e a personalidade dos homens, influenciou a produção

posterior, ora servindo de premissa legitimadora a uma visão positiva da biografia, ora dando

o aval às críticas a este tipo de narrativa, considerado menor. Tal distinção permeou a divisão

do gênero, culminando, no século XIX, com a separação entre disciplina histórica,

compreendida como ciência, comprometida com a verdade, e literatura, voltada ao devaneio,

à arte, ao irreal. Philippe Levillain aponta que o que separou a biografia histórica da biografia

literária foi a ficção: “Não é com base no biografado que se dividem as biografias literárias e

as biografias históricas, nem com base na escrita, o que equivale a dizer no estilo, e sim com

base na parte de ficção que entra nas primeiras e deve ser proibida nas segundas por razões de

métodos”.156

Mas a historiografia científica não abandonou completamente a biografia ao

campo da literatura. No século XIX, o gênero esteve presente também na escrita da história,

ligado essencialmente aos trabalhos voltados à narrativa dos acontecimentos políticos.

Estudos da vida de grandes personalidades e heróis do panteão patriótico das diversas nações

eram comuns e, apesar da metodologia científica empregada pela historiografia metódica e de

inspiração positivista157

, a concepção de uma história magistra vitae se fazia muito presente,

155

Neste período, as biografias dos literatos eram comumente publicadas como prefácios de suas obras,

expressando uma nova concepção: a de que a compreensão da personalidade dos autores ajudaria a compreender

seus textos. BURKE, Peter. A invenção da biografia e o individualismo renascentista. Estudos Históricos, Rio de

Janeiro, vol. 10, n. 19, 1997, p. 83-97. 156

LEVILLAIN, Philippe. Os protagonistas: da biografia. In.: RÉMOND, René (org.) Por uma história política.

2ª ed. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2002, p. 155. 157

Cabe diferenciar essa historiografia de inspiração positivista de uma historiografia positivista propriamente

dita: para Augusto Comte e seus discípulos, a dimensão individual deveria ser esquecida em favor do

estabelecimento de leis universais e da análise de fenômenos sociais. Segundo Sabina Loriga, “para os

historiadores positivistas, as qualidades pessoais, inclusive a dos grandes homens, não bastavam para explicar o

curso dos acontecimentos, e era preciso levar em consideração as instituições e o meio (a raça, a nação, a

geração, etc.)”. LORIGA, Sabina. A biografia como problema. In.: REVEL, Jacques (org.). Jogos de escalas: a

experiência da microanálise. Rio de Janeiro: FGV Editora, 1998 p. 231.

61

sobretudo nos meios escolares: figuras exemplares, assim como nas antigas hagiografias,

eram tomadas como modelos de conduta moral e agora, política e cívica.158

A reação do grupo de historiadores que ficou conhecido como Escola dos Annales a

essa historiografia considerada tradicional e ultrapassada, e a busca de um diálogo com as

demais ciências sociais que possibilitasse a apreensão da dinâmica profunda dos processos

históricos relegaram os estudos políticos e, com eles, as biografias, a um segundo plano.159

Algumas exceções foram empreendidas pelos próprios expoentes da nova escola160

, mas as

biografias feitas por eles, em especial por Lucien Febvre, ganharam nova significação:

tratava-se de utilizar o indivíduo como meio para compreender a sociedade na qual este estava

inserido.161

Assim, a biografia praticada pelo grupo englobava elementos caros a seu projeto

historiográfico: a história-problema como motivação, a atenção aos processos sociais mais

amplos e à história total, alicerçada nas trocas com as demais disciplinas cujo objeto é o

humano (a geografia, a sociologia e a economia, principalmente). Com a ascensão da segunda

geração dos Annales, sob o comando de Fernand Braudel, a preocupação com os fenômenos

estruturais de longa duração162

, compartilhada com as demais ciências sociais, e a

predominância de teorias estruturalistas como o marxismo e a antropologia de Claude Lèvy-

Strauss motivaram a marginalização dos estudos biográficos do âmbito da historiografia

científica.163

Foi somente com a crise dos sistemas estruturalistas, dos modelos de explicação

global e do próprio paradigma científico moderno, a partir dos anos 60 e 70, que a biografia

encontrou novo espaço.164

A inspiração para a renovação do gênero na historiografia veio,

entre outras fontes, dos trabalhos já referidos de Lucien Fevbre, que buscavam inserir as

158

Sobre o estatuto da biografia no século XIX na França, Levillain mostra que o conjunto de características

acumuladas em séculos de estudos de vida a qualificaram enquanto um “gênero” compósito: “A maioria das

biografias escritas durante o Segundo Império pertencia ao domínio do elogio, que, como enfatizou Theodore

Zeldin, não exclui a análise, mas deve ao mesmo tempo ao estilo acadêmico dos autores, ao espírito de

notabilidade, ao princípio burguês da separação absoluta entre a vida pública e a vida privada (...), à ideologia

imperial, à glória nacional e ao princípio de autoridade”. LEVILLAIN, Philippe. Op. cit., p. 149. 159

RÉMOND, René. Uma história presente. In.: ______(org.) Por uma história política. 2ª ed. Rio de Janeiro:

FGV Editora, 2002, p. 17. 160

Como exemplos, podemos citar os estudos sobre Lutero e Rabelais realizados por Lucien Febvre: “Martin

Lutero: um destino”, de 1928 e “O problema da descrença no século XVI: a religião de Rabelais”, de 1943. 161

SCHMIDT, Benito. O gênero biográfico no campo do conhecimento histórico: trajetória, tendências e

impasses atuais e uma proposta de investigação. Anos 90. Porto Alegre, n. 6, dezembro de 1996, p. 169. 162

Philippe Levillain discorda que Braudel tenha neglicenciado a biografia como possibilidade de escrita da

história. Ao contrário, para o autor: “Fernand Braudel levou ao máximo a revisão crítica da biografia em função

desses novos dados de métodos escrevendo La Mediterranée el le monde mediterranéen à l’époque de Philippe

II, história de uma civilização milenar e de uma monarquia, diálogo da cronologia com um espaço no qual a

geografia refletia uma área cultural com uma memória estratificada”. LEVILLAIN, Philippe. Op. cit., p. 158-

159. 163

TORRES, Jean-Claude Félix. Du champ des Annales à la biographie: réflexions sur le retour d‟um genre.

S.T.H. n. 3-4 la Biographie, 1985, pp. 141-148. 164

SCHIMDT, Benito. Op. cit., p. 171.

62

histórias de vida enfocadas nos processos sócio-culturais de longa duração, utilizando-as

como meios de acesso a esses mesmos processos, e das discussões realizadas pelo grupo que

estabeleceu o método conhecido como “micro-história”, em especial aquelas sobre a escala de

análise e sobre os espaços de liberdade individuais diante dos sistemas normativos. Este tipo

de biografia se consagrou nos dias de hoje e o trabalho aqui proposto comunga da assertiva de

que podemos lançar hipóteses, formular generalizações e apreender aspectos da dinâmica

social a partir da trajetória de um indivíduo. Mas não somente isso, como veremos adiante.

Há um risco, no entanto, que mesmo os historiadores sociais podem correr ao apostar

em tal empreitada: o da teleologia, que nos faz perceber a vida como dotada de linearidade,

coerência e estabilidade, como uma história. Daí a importante crítica de Pierre Bourdieu, com

a formulação da noção de “ilusão biográfica”. Para o sociólogo, a biografia e a autobiografia

se estabeleceram a partir de uma filosofia da história e de uma “teoria do relato” que

consideram a vida como um todo, um conjunto coerente e orientado, que pode ser apreendido

como expressão unitária de uma “intenção” subjetiva e objetiva, ou seja, de um “projeto", e

organizada de forma cronológica que também é uma ordem lógica. O relato de vida se baseia

no que o autor denomina “postulado do sentido da existência narrada”, preocupando-se em

“dar sentido, de tornar razoável, de extrair uma lógica ao mesmo tempo retrospectiva e

prospectiva, uma consistência e uma constância”.165

O autor mostra ainda a função que o

nome próprio possui de estabelecer uma unidade da personalidade, instituindo uma identidade

social constante e durável.166

Como antídoto ao relato de vida tradicional, que nega a

multiplicidade do sujeito e a pluralidade das identidades sociais comportadas pelo nome

próprio, Bourdieu formula a noção de “trajetória”: “uma série de posições sucessivamente

ocupada por um mesmo agente (ou um mesmo grupo) num espaço que é ele mesmo um devir,

estando sujeito a incessantes transformações”.167

Tal compreensão parece-me bastante útil.

Entretanto, não comungo com sua oposição radical à noção de “projeto”. Este, ao contrário,

pode evitar problemas causados pela segunda resposta dada pelo autor à ilusão biográfica:

aquela que propõe a homologação das condutas individuais e o reforço dos laços normativos,

ou seja, da força do habitus. Esta “sociologização” da biografia acaba, assim, por dirimir a

165

BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In.: FERREIRA, Marieta de Moraes, AMADO, Janaína (orgs.). Op.

cit., p. 183-184. 166

“O nome próprio é o atestado visível da identidade do seu portador através dos tempos e dos espaços sociais,

o fundamento da unidade de suas sucessivas manifestações e da possibilidade socialmente reconhecida de

totalizar essas manifestações em registros oficiais, curriculum vitae, cursos honorum, ficha judicial, necrologia

ou biografia, que constituem a vida na totalidade finita, pelo veredicto dado sobre um balanço provisório ou

definitivo”. Ibidem, p. 187. 167

Ibidem, p. 189.

63

incoerência e submergir a subjetividade no jogo das estruturas sociais. A vida explicada pela

sociedade pode, então, nela desaparecer.

Parece-me, portanto, bastante profícua a postura de Sabina Loriga, que advoga a

necessidade de “utilizar o eu para romper o excesso de coerência do discurso histórico, ou

seja, para se interrogar não apenas sobre o que foi, sobre o que aconteceu, mas também sobre

as possibilidades perdidas”.168

De acordo com a autora, a melhor resposta ao problema da

ilusão biográfica foi dada por escritores como Gide, Musil ou Valéry, que criticavam a

biografia na intenção de aprofundar as variações do eu, mostrando o virtual e o hipotético, e

questionando a pluralidade e as incertezas do passado.169

Nesta mesma linha, outro perigo que a biografia histórica pode correr é o de

negligenciar o indivíduo em favor dos sistemas normativos de uma sociedade e época,

apresentando um percurso individual apenas como exemplo ou ilustração de processos

históricos mais amplos. Acredito que o objetivo do fazer biográfico seja o de evidenciar o

“outro lado” dos constrangimentos sociais, ou seja, as possibilidades de ação criativa e as

margens de liberdade das quais o indivíduo dispõe no interior de uma cultura e meio social,

apreendendo com acuro o único, o singular. Assim, a biografia comporta alguns dos

principais debates historiográficos contemporâneos, como aqueles referentes à relação entre

normas e práticas, entre indivíduo e grupo ou sociedade, entre determinismo e liberdade, e

entre racionalidade absoluta e racionalidade limitada170

, mostrando-se um espaço privilegiado

para a experimentação histórica. Como aponta Giovanni Levi, a liberdade de escolha nunca é

absoluta, é cultural e socialmente determinada, mas é ainda “uma liberdade consciente, que os

interstícios inerentes aos sistemas gerais de normas deixam aos atores”.171

Uma proposta

semelhante, sintetizada no conceito de “campo de possibilidades”, foi formulada pelo

antropólogo Gilberto Velho. No livro intitulado Individualismo e Cultura, o autor depara-se

com o velho debate da teoria social sobre a tensão entre sujeito e estrutura. Apesar de tomar

como fonte para seus apontamentos a dinâmica das sociedades modernas complexas – onde a

divisão social do trabalho e a distribuição de riquezas delineiam categorias sociais

distinguíveis com continuidade histórica172

– o autor afirma que podemos encontrar em

qualquer sociedade uma contradição permanente entre “as particularizações de experiências

168

LORIGA, Sabina. Op. cit., p. 246-247 169

LORIGA, Sabina, SCHMIDT, Benito. Entrevista com Sabina Loriga: a história biográfica. Métis, Caxias do

Sul, v. 2, n. 3, p. 19. 170

LEVI, Giovanni. Usos da biografia. In.: FERREIRA, Marieta de Moraes, AMADO, Janaína (orgs.). Op. cit.,

p. 179. 171

Ibidem. 172

VELHO, Gilberto. Individualismo e Cultura. 4a edição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 16.

64

restritas a certos segmentos, categorias, grupos e até indivíduos e a universalização de outras

experiências que se expressam culturalmente através de conjuntos de símbolos

homogeneizadores – paradigmas, temas etc”.173

Mesmo em culturas mais “totalizadas”, onde

as categorias coletivas impõem-se à noção de indivíduo, há sempre a possibilidade de

individualização, já que aquele participa de maneiras diferenciadas em códigos mais restritos

ou mais universalizantes. Na verdade, a individualização radical pode ser fruto da necessidade

de movimento e manipulação individual de “instituições, dimensões e „mundos‟ diferentes e

possivelmente contraditórios”.174

Todavia, tal processo de individualização jamais ocorre fora

de normas e padrões, “por mais que a liberdade individual possa ser valorizada”.175

Os

sistemas normativos são entendidos, assim, com um horizonte de ação condicionada. Em

Projeto e Metamorfose, Velho explicita, através da análise de uma possessão em plena

Avenida Nossa Senhora de Copacabana, na cidade do Rio de Janeiro, durante o dia, sua

compreensão do termo campo de possibilidades: “Ali, naquele espaço, naquele período de

tempo, cruzaram-se várias trajetórias e trilhas sociológicas e culturais”. Este cruzamento

permite tanto identificar um fenômeno cultural aglutinador de um universo heterogêneo (a

crença em espíritos e em possessão), quanto “uma gama de opções, expressão de um espectro

de possibilidades, da metrópole brasileira contemporânea”.176

É essa margem de manobra da qual dispõe todo sujeito dentro de sua cultura que dota

a ação individual de potencial transformador, de possibilidade de questionamento das

estruturas. Isso permite a formulação de outra noção muito cara às reflexões de Velho (e à

análise que aqui se propõe): a de projeto. Mesmo a intensa participação em rituais

“desindividualizantes”, com foco em uma identidade coletiva, não pode eliminar o nível da

escolha, “de um indivíduo/sujeito, lidando com um repertório finito, mas com extenso elenco

de combinações”177

. Dessa forma, o autor aponta que “o projeto no nível individual lida com

a performance, as explorações, o desempenho e as opções, ancoradas nas avaliações e

definições da realidade”.178

Baseado nos trabalhos de Alfred Schutz, Velho adota a seguinte

definição para o conceito: “conduta organizada para atingir finalidades específicas”.179

Todavia, não existem “projetos individuais puros”, sem referências a projetos coletivos: “Os

projetos são elaborados e construídos em função de experiências sócio-culturais, de um

173

Ibidem, p. 18. 174

Ibidem, p. 25. 175

Ibidem. 176

VELHO, Gilberto. Projeto e Metamorfose: antropologia das sociedades complexas. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar, 1994, p. 19-20. 177

Ibidem, p. 27-28. 178

Ibidem, p. 28. 179

Ibidem, p. 40.

65

código, de vivências e interações interpretativas”180

; eles nunca são fenômenos puramente

subjetivos, pois constituem-se no interior de um campo de possibilidades “circunscrito

histórica e culturalmente, tanto em termos da própria noção de indivíduo como dos temas,

prioridades e paradigmas culturais existentes”.181

A adoção desta noção na análise não

significa o retorno ao equívoco apontado por Bourdieu de traçar uma vida como um

continuum, sem alterações, percalços, obstáculos, ramificações e re-direcionamentos. Os

projetos mudam e podem se transformar: “O „mundo‟ dos projetos é essencialmente

dinâmico, na medida em que os atores têm uma biografia, isto é, vivem no tempo e na

sociedade, ou seja, sujeitos à ação de outros atores e às mudanças sócio-históricas”.182

A

própria racionalidade do projeto é relativa, já que se alimenta de experiências sociais

específicas e, assim, possui uma eficácia circunscrita a determinado quadro sócio-histórico:

“A construção da identidade e a elaboração de projetos individuais são feitas dentro de um

contexto em que diferentes „mundos‟ ou esferas da vida social se interpenetram, se misturam

e muitas vezes entram em conflito”.183

Dessa forma, a existência de um projeto social que

englobe ou incorpore diferentes projetos individuais depende da percepção e vivência de

interesses comuns.

Mas como então identificar um projeto? Gilberto Velho é enfático: “Por mais precário

que possa ser o método, é a verbalização, através de um discurso, que pode fornecer as

indicações mais precisas sobre projetos individuais”.184

Eis que aqui voltamos ao começo

desta discussão. O processo criativo se manifesta no discurso e, através dele, podemos acessar

projetos políticos e intelectuais. Verena Alberti seguiu os apontamentos de Velho para

identificar um “projeto literário” na obra de Fernando Pessoa e de seus heterônimos (e são

mais de 25 mil textos escritos por cerca de 72 heterônimos!!). O epíteto “literário” se deve ao

fato de que a literatura se tornou para o autor a única forma de ação. O caso de Pessoa

exemplifica, para a autora, uma postura “pós-moderna”, marcada pelo esfacelamento do eu e

pela falência da identidade unívoca. Mas existe uma chave de leitura para os textos do literato

português que funciona como uma explicação ordenadora: Pessoa é dramaturgo, faz de sua

vida e da vida de seus “eus” aquilo que um Shakeaspeare faria com seus personagens. Como

salienta Alberti, desde que surgiu, o pós-modernismo conviveu lado a lado com o

modernismo: “a ausência do sujeito e a fragmentação do eu convive com a fixação de sentido

180

VELHO, Gilberto. Individualismo e Cultura. Op. cit., p. 26. 181

Ibidem, p. 26. 182

Ibidem, p. 27. 183

Ibidem, p. 33. 184

Ibidem, p. 27.

66

e da unidade do eu”.185

E mais: ainda que não admita unidade e totalizações, o pós-moderno

pode fazer coincidir seu sentido com a própria ausência da unidade. Pessoa teria, assim,

procurado dar sentido ou coerência a si mesmo ao conferir uma “explicação central de si” de

forma “consciente”, “verbalizada” e “comunicada aos amigos”: “A diferença está em que sua

explicação central é o oposto de qualquer busca de unidade; a „unidade do eu‟ de Pessoa é

justamente a ausência de unidade, a despersonalização dramática”.186

A autora ainda aponta

que, se essa explicação central encerra um projeto, “no sentido de ação consciente prospectiva

passível de ser comunicada”, este prescinde necessariamente de um sujeito, ou seja, não é um

projeto individual.187

Como dito, para Pessoa, projeto só é ação na literatura: “A literatura é,

portanto, mais que a realidade. Enquanto a vida, a realidade, são passageiras; a literatura

fica”188

; nela, “O ajudante de guarda-livros sem biografia, fatos e ações, torna-se, nessas

passagens, um escritor no mais radical sentido: Imperador, Deus, estagnador de vida,

realizador do irrealizável, despersonalizador...”189

O caso de Fernando Pessoa é extremo. O autor levou às últimas conseqüências a

multiplicidade do eu. Ainda assim, tal multiplicidade acabou se tornando um fator de

unificação. Barbosa Lessa passou ao largo do que se considera “pós-moderno”. Mas que isso

não nos leve a tomar sua obra como um todo linear e coerente. O alerta de Bourdieu sobre as

armadilhas da “ilusão biográfica” nos ajuda a evitar que caiamos na tentação de uma

explicação fácil sobre a “origem” (e o sentido) da militância tradicionalista de Lessa, por

exemplo, como um produto de sua infância no meio rural; ou que busquemos elementos, ao

longo de sua trajetória, para comprovar sua “predestinação” à atividade intelectual e, nesta, à

literatura regionalista. Ao contrário, devemos estar atentos às oscilações e incertezas, às

mudanças de rumo, às descontinuidades: durante a década de 60 e até o fim dos anos 70, por

exemplo, Lessa investiu sem o mesmo sucesso em trabalhos sobre comunicação social e na

ficção policial. Sua produção intelectual “consagrada” é configurada mesmo pela diversidade.

Formado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, trabalhou como

jornalista, publicitário, roteirista de cinema, teatro e televisão. Devorador de livros, deu

também luz a uma vasta produção literária e artística (contos, romances, música, poesia e

estudos e criações folclóricas) à qual sucederam escritos sobre a história do Rio Grande do

Sul através de seus heróis, de sua bebida típica - o chimarrão -, ou do próprio movimento

185

ALBERTI, Verena. Um drama em gente: trajetórias e projetos de Pessoa e seus heterônimos. In.: SCHMIDT,

Benito (org.). O biográfico: perspectivas interdisciplinares. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2000, p. 203. 186

Ibidem, p. 213. 187

Ibidem, p. 214. 188

Ibidem, p. 231. 189

Ibidem, p. 235.

67

tradicionalista gaúcho que ajudara a construir nos idos de 1947. Mas pode-se dizer que toda

essa produção se insere em um projeto intelectual pessoal que também se confunde com um

projeto cultural coletivo; projeto, este, não dado de antemão, mas construído nas e pelas

próprias ações dos tradicionalistas em campos de possibilidades social e historicamente

delimitados. Em alguns períodos, é difícil mesmo diferenciar sua trajetória intelectual do

projeto tradicionalista que ele mesmo ajudou a construir. Como movimento cultural e político

que buscou “retomar os valores” de uma cultura popular supostamente existente no passado

não tão distante do Rio Grande do Sul, o tradicionalismo precisou construir símbolos, mitos e

ritos que fundamentassem uma determinada identidade gaúcha. Quando foi necessário

retomar o mito literário do gaúcho do século XIX, Barbosa Lessa escrevera crônicas,

reportagens, contos, lendas e romances. Quando fora preciso tornar o mito vivo na

experiência social contemporânea, Barbosa Lessa inventou o CTG. Quando os novos adeptos

do movimento sentiram-se órfãos de tradições, ele criou poesias, cantos e danças. Quando

fora necessário legitimar tudo isso, nosso autor historiou e narrou um rico passado de glórias e

infortúnios, avanços e obstáculos, que configurou um presente complexo, árduo, injusto para

a maioria, mas pleno de esperanças.

* * *

Michel Foucault mostrara como, em nossa cultura ocidental, a figura do poeta ocupa

uma posição muito próxima daquela do louco. Ambos vivem às margens de um saber que

separa os seres, os signos e as similitudes. O louco questiona esse poder pela função do

homossemantismo: “reúne todos os signos e os preenche com uma semelhança que não cessa

de proliferar”. O poeta também o faz, mas pela função inversa, ao sustentar o papel alegórico:

“sob a linguagem dos signos e sob o jogo de suas distinções bem determinadas, põe-se à

escuta de „outra linguagem‟, aquela, sem palavras nem discursos, da semelhança”. A

semelhança e os signos que a dizem se reencontram na alegoria do poeta, enquanto o louco

carrega todos os signos com uma semelhança que acaba por apagá-los. Desta forma, “na orla

exterior da nossa cultura e na proximidade maior de suas divisões essenciais, estão ambos no

„limite‟ – postura marginal e silhueta profundamente arcaica – onde suas palavras encontram

incessantemente seu poder de estranheza e o recurso de sua contestação”.190

Nossa cultura

190

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 68.

68

científica e histórica comunga, assim, com a separação radical entre as palavras e as coisas.

Comumente colocamos em lados opostos sociedade e cultura, prática e discurso, significante

e significado, representação e realidade. É necessário, então, freqüentar as margens, ouvir o

louco e o poeta e por eles se deixar tocar. Tal apelo marca as páginas deste capítulo e está

presente, ainda que em vozes menos altissonantes, em toda a dissertação. Os conceitos de

representação, tradição e projeto, como definidos em suas três seções, se cruzam e se

conectam para romper com as dicotomias e compreender como construímos a realidade. O

poeta é “autor”, “criador”, “fabricante” e “operário”. E sabe que com os signos também

constrói as coisas. Barbosa Lessa fora um poeta que nos deixou versos e cantos bonitos e

românticos, mas fora também poeta no sentido amplo, intervindo ativa e conscientemente,

ainda que por trilhas e caminhos diversos, na construção da identidade regional do Rio

Grande do Sul.

69

Capítulo II - A nova face do centauro: tradição, modernidade e a atualização do

regional

Em “Memória sobre la Pampa y los gauchos”, publicada em 1970, o escritor argentino

Adolfo Bioy Casares narra sua busca e expectativa de encontro com esta figura social que

habitaria os campos ondulados existentes muito além dos asfaltos e concretos da cosmopolita

Buenos Aires. O gaucho e a Pampa, ambos, tipo social e espaço, habitaram, outrossim, desde

tenra idade, sua imaginação. O encontro não viera. Nem mesmo um simples chiripá

verossímil (e talvez usado) colidiu com seu olhar angustiado. A literatura lhe reservaria outra

decepção: aqueles primeiros poetas gauchescos do século XIX, salvo raras exceções,

esqueceram das palavras “pampa” e “gaucho”. Como a gauchesca de outrora, as gentes do

campo de então também esqueciam sua “origem” nobilitada nas tintas de pincéis e canetas de

“grandes homens” da nação: “la amarga verdad es que pampa no figura entre el vocabulario

de la gente criolla”.191

Não resta senão constatar a morte do gaúcho:

“De una recapitualción de lo anotado hasta aquí, surge el gaucho como

personage cuya valoración moral es contradictoria, pues ha provocado, a su

respecto, discrepancias de juicio que van desde el baldón hasta el ditirambo;

cuya realidad es misteriosa, pues testigos de diversas gereraciones coinciden

en afirmar que sólo existió en el pasado, con preferencia setenta años antes

de cada una de tales afirmaciones; cuyo estado presente, de símbolo

preservado en el altar de la patria, se parece no poco a una posteridad

sublime, quién lo niega, pero muerta, como todas las posteridades. El lector

advertirá, desde luego, que la imagen presentada no corresponde, ni puede

corresponder, a un personage real. Yo eché mano a recuerdos y lecturas para

reanimarla con todas suas anomalías y premeditadamente he señalado las

perplejidades que me propuso. Me digo que si otros han de recorrer el mismo

camino, más vale que se sepan a qué atenerse”.192

Mas como todo santo só sobe ao altar depois de deixar a vida terrena, parece que a

morte é o elemento que possibilita a eleição do gaucho como símbolo da pátria argentina. No

Rio Grande do Sul, o movimento parece ter sido semelhante. Só depois dos primeiros

sintomas de sua extinção como figura social, o gaúcho pôde ser desenhado como símbolo da

identidade regional, ganhando cores, luzes e sombras mais fortes do que aquelas da vida de

191

BIOY CASARES, Adolfo. Memoria sobre la Pampa y los gauchos. Buenos Aires: Emecé, 1986, p. 17-18. 192

Ibidem, p. 34-37.

70

andarilho.193

É interessante notar como a identificação da morte ou decadência do gaúcho

rural e sua relação com a produção de uma vasta literatura gauchesca no Estado e nos países

platinos une trabalhos e pesquisas com variado leque de preocupações e abordagens, em

períodos também distintos, englobando diferentes gerações de intelectuais rio-grandenses em

Crítica Literária, Sociologia, Antropologia e História. Guilhermino Cesar194

, Flávio Loureiro

Chaves195

, Maria Eunice Moreira196

, Regina Zilberman197

, Luís Augusto Fischer198

, Tau

Golin, Sérgius Gonzaga, José Hildebrando Dacanal, Ruben Oliven199

, César Augusto

Barcellos Guazzeli200

, Letícia Borges Nedel201

e Joana Bosak de Figueiredo202

, por exemplo,

193

Uma das obras fundadoras da gauchesca argentina, Facundo, de Domingos Faustino Sarmiento, publicada em

1845, no entanto, detectou na figura do gaucho o atraso e a barbárie ainda vigentes no interior do país. 194

Guilhermino César nos diz que: “A nostalgia do campo, entre os gaúchos, é fator de permanente sugestão

lírica. Assume, contudo, um caráter bem diverso do que ocorre em outros pontos do país. Não é tanto a nostalgia

da paisagem física, mas dos seres humanos, bravos e fortes, que humanizaram este pago e são recordados com

ternura embevecida. A peonada da estância, revivescência do monarca das coxilhas, está hoje em decadência;

não dá grande gosto vê-la mal vestida e doente, com os olhos enamorados do primeiro automóvel que passe para

a cidade. Mas nos velhos tempos da vida crioula, quando os trabalhos do campo, as guerras e as revoluções

acendiam no sangue, pedindo audácia e valentia, o „gaúcho‟ foi uma realidade”. CESAR, Guilhermino. História

da Literatura do Rio Grande do Sul (1737-1902). Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, CORAG, 2006, p.

67. 195

Sobre a situação da produção literária regionalista no Rio Grande do Sul até o começo do século XX, Flávio

Loureiro Chaves aponta que diversos autores continuaram seguindo o modelo de idealização de um gaúcho rural

que já nada mais tinha de idílico, baseado no livro “O gaúcho”, publicado pelo escritor romântico José de

Alencar em 1870: “...o modelo de ficção permaneceu o mesmo (às vezes até entrando em contradição com o

documentário que lhe servia de fundo), atravessou o tempo inalterado em sua linhas básicas e terminou por

estratificar-se numa fórmula em descompasso com a realidade”. CHAVES, Flávio Loureiro. Simões Lopes Neto.

Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, Editora da UFRGS, 2001, p. 61-62. 196

Maria Eunice Moreira identifica o apogeu da literatura regionalista no Rio Grande do Sul com o período de

decadência da economia pastoril e a introdução do capitalismo no campo: “Concomitantemente com o processo

de descensão econômica do Estado, floresce o regionalismo literário, numa tentativa de salvar não apenas o tipo

que a realidade social extinguia, mas também um tempo passado”. MOREIRA, Maria Eunice. Regionalismo e

Literatura no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: EST/ICP, 1982, p. 117. 197

Regina Zilberman aponta que o regionalismo no Rio Grande do Sul esteve marcado desde sua configuração,

na segunda metade do século XIX, pela referência à “primitiva sociedade rural rio-grandense”. Já na década de

1920, os textos precisaram se adequar a uma realidade que já não comportava o gaúcho heróico de outrora. A

obra “No Galpão”, de Darcy Azambuja, antecipa, para a autora, o percurso pelo qual passaria a prosa

regionalista: “...cabia-lhe explorar estes veios relativos à condição marginal e alienada do trabalhador do campo

e as transformações por que passou a economia gaúcha, a fim de poder sobreviver enquanto assunto literário, ou

manter-se nesta valorização do passado cada vez mais mumificado ao desaparecimento das circunstâncias que

marcaram seu nascimento”. ZILBERMAN, Regina. A literatura no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado

Aberto, 1980, p. 65. 198

Ao falar também da constituição dos temas que marcariam a literatura gaúcha já no século XIX, Luís Augusto

Fischer salienta que: “A literatura não escolheu o homem urbano, o descendente de açoriano que plantou trigo ou

foi trabalhar no comércio, nem tematizou o colono trabalhador braçal, nem o soldado regular das incontáveis

guerras. Escolheu o gaúcho aquele, cuja ação real estava se reduzindo drasticamente”. FISCHER, Luís Augusto.

Literatura Gaúcha. Porto Alegre: Leitura XXI, 2004, p. 40. 199

Já apresentamos os trabalhos de Golin e Oliven na introdução desta dissertação e, por este último, a

perspectiva adotada nos trabalhos de Sérgius Gonzaga – bastante próxima, vale dizer, da de José Hildebrando

Dacanal. Ver os capítulos destes autores em: DACANAL, José Hildebrando, GONZAGA, Sérgius (orgs.). RS:

Cultura e Ideologia. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1980. 200

O historiador César Augusto Barcellos Guazzeli publicou, em 2002, texto onde examina o processo de

construção do mito do gaúcho na literatura a partir de temas nela recorrentes. O primeiro deles seria justamente a

disposição dos personagens em um passado idealizado, “onde os gaúchos teriam vivido harmoniosamente nos

71

ocuparam-se, de alguma forma, da questão. Dessa maneira, identifica-se, na bibliografia

citada, a idéia de um descompasso histórico entre a literatura gauchesca e os objetos dos quais

ela pretende dar conta.

Uma literatura de tal ordem só se tornara possível graças à ressignificação pela qual a

própria palavra “gaúcho” passara. Identificado no século XVIII como o andarengo errante,

sem paradeiro nem trabalho fixo, era tido como um pária social, excluído da ordem pela

própria condição de “vagamundo”. Segundo César Guazzeli, além dos delitos associados à

figura, seu aliciamento em hostes irregulares dos caudilhos nas guerras de independência e

nas disputas que se seguiram ao processo de formação dos Estados nacionais na região platina

mantiveram-no como legenda negra por boa parte do século XIX. Mas, como mostrado por

Augusto Meyer, a palavra gaúcho transformou-se ao longo do tempo, ganhando um conotação

positiva com a organização da estância e com a identificação do termo ao peão ou ao

guerreiro.203

Nesse mesmo sentido, Guazzeli aponta a consolidação da propriedade pecuária,

com a corolária subjugação dos gaúchos como mão-de-obra nas estâncias de criação, como

responsável pela mudança de sentido da palavra: “Referia a partir de então aos peões

campeiros, que mantinham hábitos, vestimentas, linguajares e costumes alimentares herdados

dos seus antepassados, e que ainda eram, especialmente, homens „de a cavalo‟”.204

Mas a

nova produção literária também deve ser considerada causa dessa mudança. Tal processo foi

recentemente denominado por Carla Renata de Souza Gomes como “o triunfo do avesso”. O

Gaúcho, de José de Alencar, fora promotor e exemplo da transformação, pois, como aponta a

autora, ao distinguir “gaúcho” de “peão”, sendo o primeiro entendido como “tipo social” ou

“casta” e o segundo como profissão, o literato questionou o status dado a toda a categoria pela

função que alguns de seus membros exercem: se, como casta, “o gaúcho é o habitante livre,

altivo e independente da campanha”, por que classificá-lo, quando em grupo, como récua ou

pagos”. GUAZZELI, César Augusto Barcellos. Matrero, guerreiro e peão campeiro: aspectos da construção

literária do gaúcho. In: MARTINS, Maria Helena. Op. cit., p. 108. 201

Para Letícia Borges Nedel, “uma vez socialmente extinta pela desaparição do gado alçado, pela concentração

da terra nas mãos de sesmeiros e pelas novas formas de coação trazidas com a exploração econômica do

território dentro da empresa colonial portuguesa, essa espécie de camponês pôde ser erigida em ícone de

pertencimento coletivo, prestando-se a apropriações mais nobilitadas do que pôde experimentar quando viva”.

NEDEL, Letícia Borges. Op. cit., p. 58-59. 202

Joana Bosak de Figueiredo, por sua vez, atualiza o debate ao afirmar que: “O que está em questão, hoje, é se o

gaúcho sobrevive apenas como gentílico, ou seja, designação de toda uma comunidade nascida em território sul-

rio-grandense e no Prata, ou também como tipo social independentemente de gênero, etnia, religião, grau de

instrução, profissão ou, ainda, pertencente a um meio urbano ou rural”. FIGUEIREDO, Joana Bosack de. Op.

cit., p. 16. 203

MEYER, Augusto. Gaúcho: história de uma palavra. Porto Alegre, Instituto Estadual do Livro, 1957. 204

GUAZZELI, César Augusto Barcellos. Op. cit., p. 108.

72

bando?205

Poderíamos dizer, então, que a produção textual, em verso e prosa, sobre o gaúcho

“errante” ou “livre” da Pampa anterior aos cercamentos se torna possível pela transmutação

da figura em trabalhador rural de novo tipo, da mesma forma como a identificação positiva

deste com o gaúcho de outrora é viabilizada pela ressemantização do termo operada pela

literatura.

O objetivo deste capítulo é compreender a atualização e releitura do mito do “centauro

dos pampas”206

realizada pelo autor em suas primeiras obras. Para prosseguirmos, dois pontos

devem ser levantados. Tratam-se, na verdade, de dois desdobramentos da questão da morte ou

da decadência do gaúcho social que aparecem na bibliografia especializada: a) a filiação

erudita da literatura gauchesca (sendo esta, não raro, fruto mesmo de intelectuais que sequer

tiveram contato com o mundo rural ao qual dedicaram seus textos); e b) sua relação com o

processo de modernização da economia regional. Ambos são tema da próxima seção. Nela

apresentarei, também, a proposta metodológica que fundamentará a análise dos textos de

Barbosa Lessa.

2.1 - “E assim quedaram os centauros...”: a modernidade inventa a tradição

Foram homens e mulheres de letras, educados em padrões cosmopolitas e valendo-se

de modelos narrativos europeus os responsáveis pela elaboração do gaúcho como símbolo da

identidade coletiva do Rio Grande do Sul. Suas obras perpassaram vertentes literárias as mais

diversas, de um romantismo ingênuo207

a outro politicamente orientado, ainda que

qualitativamente pobre em relação aos textos da geração seguinte (com o gaúcho símbolo da

nação de Alencar ou esteio da região nos autores do Partenon Literário208

), ou, ainda, do

205

GOMES, Carla Renata de Souza. Op. cit., p. 280. 206

A idealização do gaúcho social da região da Campanha no Estado (fronteira com Uruguai e Argentina) tem

sua origem no romantismo literário do século XIX, como já apontado. As imagens de um campeiro forte,

corajoso e guerreiro, vivendo livre e soberano no lombo de seu cavalo e percorrendo os desertos verdes das

coxilhas da Pampa, formação geográfica que se estende do Rio Grande do Sul ao Prata, aparecem pela primeira

vez na literatura em O gaúcho (1870), de José de Alencar. O modelo é seguido e desenvolvido pela

intelectualidade local na mesma década. Mas, como aponta Daysi Lange Albeche, carregada pelo estigma do

“gaucho” malo platino, identificado ao bandoleiro, a palavra “gaúcho” só foi associada ao modelo do bom

campeiro (que ganharia outras figuras, como o “monarca” ou o “sentinela das coxilhas”) em 1877, com o

romance Os Farrapos, de Oliveira Belo. Ver ALBECHE, Daysi Lange. Op. cit, p. 21. 207

Como nas primeiras obras ditas regionalistas, citando-se o próprio marco da prosa literária no Rio Grande do

Sul, “A Divina Pastora”, publicada em 1847, no Rio de Janeiro, por José Antonio do Vale Caldre e Fião. 208

A Sociedade Partenon Literária foi fundada em Porto Alegre no ano de 1868 e desenvolveu atividades

políticas e literárias, como a publicação de uma revista que circulou durante dez anos (1869-1879), até 1885.

Entre alguns de seus membros podemos citar o autor de “A Divina Pastora”; o poeta, romancista e dramaturgo

73

naturalismo de Alcides Maya ao “pré-modernismo” de Simões Lopes Neto, chegando ao

realismo da “geração de 30” e à denúncia da pobreza do homem do campo e, assim, da

própria literatura precedente, “desconectada” da realidade social, como a efetivada por Cyro

Martins. Todavia – e acrescentando-se ainda a tradição literária platina sobre o gaucho – a

gauchesca que se estabelece a partir do século XIX é construída sobre um núcleo temático

comum, alimentado, como aponta Léa Masina, por um fluxo intelectual entre Argentina,

Uruguai e Rio Grande do Sul.209

Longe de se configurar como um signo permanente e, assim,

“atemporal”, a constituição de tal núcleo é constantemente refeita e rearticulada a cada

movimento político, geográfico, cultural ou literário.210

No caso da literatura, o que fica é um

substrato anterior, “uma noção mais vaga e difusa do conceito que lhe dá uma forma

primeira”, e que permite, assim, Joana Bosak de Figueiredo identificar nos “muitos gaúchos

hoje existentes” uma equação entre “mito” e “conceito”: “... é um trabalho combinado de

fontes, fatos e invenções que agora tornará o gaúcho muito mais um conceito, uma idéia que

deixará de estar presa a um momento ou a um espaço mais definidos originalmente”.211

Podemos aproximar esta interpretação da de Letícia Borges Nedel, que nos mostra como o

gaúcho foi construído discursivamente pelos nacionalismos do XIX como um sujeito folk:

“... ele é habitante do mundo rural, tem descendência étnica definida e é

dotado de um caráter próprio, que o faz merecedor da respeitabilidade

condescendente de seus superiores, por „notável‟ e valoroso. Bom ginete,

conhecedor das lides, herdeiro dos costumes, do linguajar, dos instrumentos

de trabalho e das habilidades exigidas pela vida a cavalo, essa imagem

suficientemente plástica para tornar-se recorrente foi sendo desde o último

quarto do século XIX estilizada pelos escritores, políticos, historiadores e

jornalistas da província na figura do „centauro‟”.212

A autora aborda, também, a contribuição da historiografia para a produção textual do

gaúcho mítico: comprometida com uma perspectiva de “história-monumento”, as primeiras

pesquisas na disciplina no Estado fizeram recair sobre os heróis farroupilhas e os tropeiros de

origem lusitana o título de “fundadores do Rio Grande”. Quanto aos primeiros, uma matriz de

Apolinário Porto Alegre; o também poeta Francisco Lobo da Costa; a professora e conferencista Luciana de

Abreu e Aquiles Porto Alegre, irmão de Apolinário. Sobre a Sociedade ver recente dissertação de Cássia Macedo

da Silveira: SILVEIRA, Cássia. Dois pra lá, dois pra cá: o Partenon Literário e as trocas entre literatura e

política na Porto Alegre do século XIX. Dissertação (mestrado em História). Instituto de Filosofia e Ciências

Humanas, Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre,

2008. 209

MASINA, Léa. Op. cit., parim passim. 210

FIGUEIREDO, Joana Bosak de. Op. cit., p. 18. 211

Ibidem. 212

NEDEL, Letícia Borges. Op. cit., p. 60.

74

interpretação denominada lusitanista213

tornara-se a perspectiva do discurso hegemônico,

ressaltando, com base na sua posição fronteiriça e na sua história de defesa e guarnição do

mundo luso-brasileiro no sul da América, concomitantemente, o distanciamento do Rio

Grande do Sul em relação aos países do Prata e seu pertencimento ao Brasil. A Revolução

Farroupilha passou a ser entendida, pelos intelectuais do nascer do século XX, não mais

como a manifestação do desejo de separação, mas, pelo contrário, como afirmação da peculiar

inserção sul-rio-grandense no país.214

A elite que comandou a sedição passou, igualmente, a

ser identificada pela historiografia com o vocábulo gaúcho, à medida que este se torna

denominativo do gentílico do Estado. Por ocasião do centenário do episódio, em 1935, a

questão que se colocava para a intelectualidade era a de distinguir o gaúcho sul-rio-grandense,

erigido em construtor heróico, do gaucho malo platino, identificado com a “plebe rude e

desordeira”, bandoleiros que serviram de apoio aos caudilhos nas guerras de independência e

que dotaram, por sua vez, as novas Repúblicas de seu aspecto “anárquico” e “fragmentado”.

A solução, como mostra Letícia Borges Nedel, seria, justamente, aproximar o gaúcho da

classe social que sustentara o episódio farroupilha; assim, o sentido nobre da palavra,

exclusivo aos habitantes do estado brasileiro, seria “... uma decorrência da extração social

„superior‟ das elites locais – ou seja, do papel desempenhado não pela plebe na sustentação do

Império, mas pelos representantes legalmente constituídos por um Estado nacional forte e

organizado...”.215

A hipótese da autora sobre o sentido de tal estratégia, predominante na

historiografia de então216

, é a de que ela serviria para desviar desta disciplina “as

complicações implícitas ao predomínio do „sermo rusticus‟ comum ao regionalismo da prosa

literária”.217

Mesmo na literatura, os críticos de então identificaram duas vertentes, uma

platina e outra sul-riograndense, que abordavam de diferentes formas a figura do gaúcho,

sendo a segunda mais conservadora em termos estéticos e de linguagem – o exemplo clássico

da primeira seria a obra de Alcydes Maia, que mesclava vocabulário e estrutura narrativa

erudita com temática popular. Nedel reconhece, então, outra distinção entre historiografia e

literatura gauchesca no Rio Grande do Sul218

: na primeira, vigorava uma concepção elitista do

213

Ver GUTFREIND, Ieda. Op. cit. 214

Como aponta Ruben Oliven: “A ênfase nas peculiaridades do estado e a simultânea afirmação do

pertencimento dele ao Brasil se constituem num dos principais suportes da construção social da identidade

gaúcha que é constantemente atualizada, reposta e evocada”. OLIVEN, Ruben. A parte e o todo: a diversidade

cultural no Brasil-nação. 2ª edição Op. cit., p. 62. 215

NEDEL, Letícia Borges. Op. cit., p. 68. 216

A autora cita o trabalho de Félix Contreira Rodrigues (1884-1960), pecuarista, jornalista, poeta, historiador e

crítico literário filiado à Academia Rio-Grandense de Letras. 217

Ibidem. 218

Ibidem.

75

termo (uso brasileiro), enquanto que na segunda encontramos uma identificação com o

folclórico, o popular (uso argentino e uruguaio).

É importante termos em mente as inclinações, divergências e opções interpretativas

que assumiram os autores “clássicos” da literatura e da historiografia para que possamos

restabelecer o diálogo e as posições avocadas por Barbosa Lessa em sua produção textual.

Para tanto, busco acompanhar a proposta metodológica do historiador Quentin Skinner para a

chamada História das Idéias. Em sua leitura dos clássicos da filosofia política, este autor

procurou inserir os textos analisados no interior do debate intelectual do momento de sua

produção. Buscando reencontrar a historicidade das narrativas e tratados filosóficos, Skinner

abordou-os como “artefatos de intervenção política dos autores” em um contexto sócio-

intelectual determinado.219

Em uma perspectiva teórico metodológica por ele denominada

“enfoque collingwoodiano”220

, torna-se de vital importância a noção de “intertextualidade”.

Na perspectiva de Skinner, quando se lida com esta abordagem, deve-se ter em mente

a diferença essencial entre as intenções dos autores e a interpretação dos textos: “Trata-se da

distinção entre o que o autor pretendeu dizer, de um lado, e, de outro, o que o autor pretendeu

com o ato de proferir uma elocução, ou seja, uma afirmação ou um texto com o significado

que teve”. Dessa forma, “há uma dimensão de significado e há outra dimensão separada que

diz respeito ao que o autor pode ter querido fazer com o significado”.221

Daí a preocupação do

historiador com os “atos lingüísticos” e, conseqüentemente, seu interesse pelos contextos

lingüísticos e pela intertextualidade: “Todo meu trabalho é intertextual, isto é, trata de saber

como e até que ponto o entendimento de um texto pressupõe o entendimento de sua relação

com outros textos”.222

Tal indicação metodológica nos permite, seguindo os termos de

Bourdieu, examinados no capítulo anterior, analisar como Barbosa Lessa interveio no

domínio das “representações mentais”, mas também no plano das “representações objetais”,

ressignificando determinado mito e construindo, a partir desse processo, novos símbolos,

emblemas, insígnias e tradições. Permite, ainda, acessar o projeto literário pessoal do autor e

relacioná-lo com o projeto coletivo mais amplo no qual ele se engaja, o do movimento

tradicionalista. Com esta preocupação, abordarei, ao longo do presente capítulo, os primeiros

textos publicados por Barbosa Lessa em periódicos da capital, no ano de 1947, e os escritos

219

Ver SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Companhia das Letras,

1996. 220

Levando em conta a influência que os trabalhos do filósofo e historiador britânico R. G. Collingwood (1889-

1943) teriam exercido sobre a prática de Skinner como historiador. 221

SKINNER, Quentin, PALHARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia. Entrevista. In.: PALHARES-BURKE,

Maria Lúcia Garcia. As muitas faces da história. São Paulo: UNESP, 2000, p. 320. 222

Ibidem, p. 330.

76

que se seguiram, como História do Chimarrão, publicado em 1953. Mas antes, retornemos ao

segundo desdobramento da “morte ou decadência do gaúcho” para a crítica especializada, a

relação entre a literatura regionalista e a modernização capitalista do Rio Grande do Sul.

Um artigo publicado em 1986 pela crítica literária Maria Luiza Armando é exemplo de

como se tratava, comumente, naquele período, a produção literária regionalista no Estado.

Privilegiando explicações de ordem econômica, a autora buscava uma interpretação histórico-

social “global” para o regionalismo a partir dos textos de João Simões Lopes Neto. Neste

intuito, criticou os trabalhos tradicionais que se ocupavam unicamente com as manifestações

eruditas da cultura ou, como fez questão de salientar, com as “representações culturais”.223

Armando tentava evitar tal caminho e sugeria que se considerassem os outros estratos

culturais, o “do povo”, o folclórico ou o “popularesco”. Mas o que interessa aqui é a relação

que ela estabelece entre a literatura regionalista e o processo de transição de uma ordem

agrária tradicional para uma nova ordem industrial, comercial e urbana, cujo símbolo maior

seria o crescimento vertiginoso da capital “litorânea” Porto Alegre e do complexo imigrante

circundante (Caxias do Sul e São Leopoldo, principalmente) que a sustentava.

Segundo Armando, nos anos que vão de 1890 a 1910, a sociedade sul-rio-grandense se

dividia em dois eixos antagônicos que representavam a velha e a nova ordem, sendo a região

sul, historicamente agrária e pastoril, organizada em torno das elites políticas e culturais de

cidades como Pelotas e Rio Grande. De outro lado, as manifestações políticas e culturais da

nova sociedade urbano-industrial imigrante característica da porção norte do Estado tardariam

a ocorrer, permitindo a coexistência das duas parcelas em oposição. Nas palavras da crítica

literária: “No âmbito político, principalmente, a região tradicional pôde, em função desse fato,

manter sua hegemonia (até, crê-se, 1930, pelo menos); e ela representava, do ponto de vista

étnico-cultural, o luso-brasileiro e, do ponto de vista social, os grandes proprietários”.224

Simões Lopes Neto poderia ser enquadrado nessa elite tradicional da zona sul do Rio Grande

do Sul, então em franca decadência econômica, e, também, em vias de perder sua hegemonia

e privilégios políticos sobre a máquina administrativa do Estado. Sua literatura é

compreendida, assim, como uma reação à transição do poder das oligarquias tradicionais

agrárias para as mãos da burguesia capitalista urbana do litoral e região dos vales. Daí a

recorrência, nos contos gauchescos, da referência ao fim de uma era rural e lusitana. Era que

fora, em última instância, aquela do gaúcho a cavalo.

223

ARMANDO, Maria Luiza de Carvalho. O regionalismo como fenômeno global. Revista Travessia, UFSC,

Florianópolis, 1986, n. 12, p. 90. 224

Ibidem.

77

Atualmente não podemos aceitar explicações tão mecânicas. Muito menos reduzir a

expressão artística de um escritor da estatura de Lopes Neto a um mero reflexo da conjuntura

econômica. Mesmo que vigorasse aqui uma crítica informada unicamente pela inserção da

obra em seu contexto social, não se deveria esquecer que os nacionalismos e seus coetâneos

regionalismos, como já mostrado por autores como Eric Hobsbawm e Benedict Anderson, são

filhos da “era do capital”.225

Os objetivos políticos de Simões Lopes Neto, conforme apontado

por Flávio Loureiro Chaves, devem ser entendidos nesse espectro amplo, pois sua obra

cumpre a função de fixar o tipo folk característico do regionalismo no Rio Grande do Sul.226

O

próprio Barbosa Lessa já apontou para a existência de um forte sentimento de patriotismo em

Simões.227

No entanto, a leitura de Armando nos faz pensar sobre a detecção comum, na

literatura regionalista, dos problemas causados por fenômenos a ela contemporâneos de

ordem econômica, mas também política e cultural, futuramente identificados com o signo de

“modernidade” – sendo a morte do gaúcho o maior deles.228

Alguns dos autores informados

por essa perspectiva, como Alcides Maya, fizeram mesmo da decadência do mundo rural o

tema principal de suas narrativas.229

Outros, como Darcy Azambuja e o próprio João Simões

Lopes Neto, se depararam continuamente com a situação de penúria e atraso da Pampa frente

ao progresso e à tecnologia, “com aquela invasão de máquinas” que doía profundamente no

peito do campeiro: “À beira do arroio, dia e noite chiavam os locomóveis, captando água para

os arrozais. E a água límpida, sugada pelos tubos negros e premida violentamente para as

225

Tais questões serão objeto de discussão no capítulo VI desta dissertação. 226

“Na sua prosa de ficção, há, obviamente, uma intenção regionalista, explícita e nomeada desde a primeira

página dos Contos Gauchescos, quer na eleição da personagem, que é um „tipo rio-grandense‟, quer na seleção

de suas qualidades matrizes – força, sobriedade, virilidade, coragem, imaginação, quer no esforço declarado para

inventariar os elementos localistas (o pitoresco dialeto gauchesco), quer ainda pela inserção intencional do

mundo imaginário num mundo histórico precisamente circunstanciado. O mundo narrado possui fronteiras

previamente delimitadas, as fronteiras que circunscrevem a região, seus tipos, hábitos, costumes, tradições e

folclore, sua história enfim”. CHAVES, Flávio Loureiro. Op. cit., p. 68. 227

Para comprovar essa idéia, Lessa cita trecho de um pequeno panfleto publicado em 1905 por Simões Lopes

Neto, com as seguintes reflexões: “Nos grandes países, o nacionalismo e o patriotismo são hoje paixões

raciocinadas, laboradas por constante educação. Mas a escola brasileira não teve, e não tem ainda, influência

decisiva na formação do sentimento nacional. O livro de leitura, que é acaso a mola real do ensino, tem páginas

cheias de historietas ridiculamente traduzidas, e só páginas brancas para nossa Geografia, nossa História, nossas

tradições e costumes”. Apud BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. Mestre Simões Lopes Neto. In: BARBOSA

LESSA, Luiz Carlos. Crônicas do Passado Presente. Porto Alegre: Nova Prova, 2002, p. 125-126. Texto

originalmente publicado no Jornal Extra-classe, do SINPRO-RS – Sindicato dos Professores do Rio Grande do

Sul – na edição de julho de 1998. 228

Ver texto já citado de César Guazzeli. 229

Em Tapera, por exemplo, publicado em 1911, Maya lamenta, através de uma personagem: “Onde, no

presente, os atrativos de dantes? – cismava. – Onde a beleza dos grandes trabalhos campeiros, o arrojo das

domações intrépidas, com o bagual a „estourar‟ sobre o dorso das coxilhas, a lida sã das mangueações de

touragem alçada, o estrépido dos rodeios numerosos, a encantadora folgança das marcações, o tumulto das

carreiras, os rasgos das guerrilhas, o luxo dos arreios carregados de prataria, a impavidez da gauchada de chiripá,

a glória dos grandes caudilhos, aureolados ao prestígio das façanhas?”. MAYA, Alcides. Tapera. Porto Alegre:

Movimento, Santa Maria: Editora da UFSM, 2003, p. 106.

78

calhas, espirrava pelas fissuras, querendo libertar-se, e parecia chorar” 230

, escreve Azambuja.

E lamenta Simões: “É verdade que há muita cousa boa, isso é verdade... mas ainda não há

nada, como antigamente, tomar mate e correr eguada... Xô-mico!... Vancê veja... eu até

choro!... Ah! Tempo!...”.231

O tema não ronda, como se poderia esperar, somente a obra dos autores “clássicos”,

mas aparece também nos escritos das primeiras gerações de críticos (ainda não acadêmicos)

do Rio Grande do Sul, que travavam intensos debates nas páginas dos jornais locais. Sobre a

literatura de Alcides Maya, Rubens de Barcellos e Moysés Vellinho (sob o pseudônimo de

Paulo Arinos) divergiram publicamente, em 1925, durante dias seguidos, em textos

publicados no Correio do Povo. Vellinho atacava Maya justamente pela temática saudosista e

por identificar em sua produção literária um canto de decadência e de morte. Segundo ele, tal

postura impossibilitaria compreender o espírito cívico do gaúcho que permaneceria vivo

mesmo nos citadinos. Barcellos, ao contrário, defendia Maya, apontando que o advento da

modernidade e as novas relações sociais transformaram também os costumes e, assim, morria

o gaúcho como tipo representativo neles baseado. De acordo com ele, o que Maya teria feito

seria retratar tal fenômeno.232

O ponto da discórdia reside no descompasso entre mito e

realidade, que, como vimos, é hoje interpretado como aspecto intrínseco ao gênero gauchesco.

Durante a década de 1930, as narrativas de temática gauchesca tradicional caíram em

certo descrédito e o debate só voltou à tona novamente nos anos 1940, ganhando força ao seu

final, com a reedição da obra de João Simões Lopes Neto (em 1949), a guinada de Erico

Veríssimo ao regionalismo, com a publicação da primeira parte do romance “O Tempo e o

Vento” (também em 1949), e o surgimento do movimento tradicionalista (em 1947-48).

Um último e certeiro ataque a este tipo de literatura viria em 1937, com a publicação

de Sem rumo, o primeiro livro da futura “trilogia do gaúcho a pé”, de Cyro Martins. Antes de

partirmos para a análise dos primeiros textos de Barbosa Lessa, é necessário compreender no

que consistia o projeto de Martins, já que nosso personagem, como veremos, manterá intenso

diálogo com sua obra. Em 1944, ele escrevia, com um misto de desconforto e aposta, um

breve balanço da produção literária regionalista no Rio Grande do Sul. Creditava a uma série

de autores de pouca qualidade, que se seguiram à geração representada por Simões Lopes

Neto e Alcides Maya, o descrédito do regionalismo naquele momento. Tal produção seria

230

AZAMBUJA, Darcy. No galpão. 7a edição. Rio de Janeiro, Porto Alegre, São Paulo: Editora Globo, 1955.

231 LOPES NETO, João Simões. Contos gauchescos. Porto Alegre: Globo, 1976, p. 49. Cabe ressaltar que

encontramos as mesmas referências já em textos do século XIX, como no clássico de Hernández, conforme

veremos na seção 2.3. 232

O textos de Vellinho e Barcellos foram compilados no livro: CHAVES, Flávio Loureiro (org). O Ensaio

Literário no Rio Grande do Sul. São Paulo: Ao Livro Técnico, 1978.

79

caracterizada, segundo Martins, por um ufanismo abastecido de arquétipos desgastados e

descolados da nova realidade social, como o peão e a vida na estância. Aliado a esse

descrédito produzido por autores de baixa qualidade, para ele, o movimento modernista, que

se irradiava de São Paulo a diferentes estados e estabelecia novos padrões de literatura no

país, acabava por incentivar o fim da produção regionalista no Rio Grande do Sul. Mas de um

tipo de produção regionalista em específico. Afinal, esse mesmo modernismo que rejeitava o

passado e predicava as benesses do já antecipado futuro acabaria por se voltar ao campo, ao

sertanejo, e por reabilitar a cultura popular e local. O desafio seria adotar como método,

apoiado em Gylberto Freire, a substituição da “romântica perspectiva do conjunto da história,

do lendário, dos costumes e da paisagem, pelo enfoque realista, no sentido do aproveitamento

crítico, com finalidade criadora, das próprias vivências e da dramática social”.233

Tal era o

desafio que o autor punha em prática em seus romances.234

Assim, Cyro Martins acabou por

fazer uma distinção entre regionalismo, entendido como a forma tradicional e desgastada de

literatura aqui praticada a partir de velhos modelos e tipos sociais glorificados, e o que

chamou de localismo, como uma nova proposta estética fundada na consciência social.

Para Cyro Martins, em sua época ocorria uma transição entre esses dois modelos de

literatura que, além de contraditórios, eram excludentes. O autor buscava, assim, na

formulação do conceito de localismo, realizar um chamamento à elaboração de literatura

baseada nos temas locais, mas a partir de uma realidade “disfórica”, que não versasse sobre

arquétipos positivos descolados da dura vida da plebe gaúcha, mas justamente sobre as

agruras e o pauperismo que esta sofria. Tal concepção literária vai ecoar na produção

tradicionalista nascente, mas de forma original, já que essa última procurou conciliar

elementos do legado eufórico, como o saudosismo de um passado idílico, com a crítica da

realidade social contemporânea, conforme veremos na obra de Barbosa Lessa.

233

MARTINS, Cyro. Visão crítica do regionalismo. In.: ________. Sem rumo. 4ª edição. Porto Alegre:

Movimento, 1979, p. 19. 234

Em sua “trilogia do gaúcho a pé”, Cyro Martins tratou do gaúcho “despossuído, sem cavalo e, como se pode

imaginar por essa ausência, sem prestígio”. FISCHER, Luís Augusto. Literatura Gaúcha. Porto Alegre: Leitura

XXI, 2004, p. 87.

80

2.2 - O passado redivivo: o surgimento do movimento tradicionalista gaúcho

Adolfo Bioy Casares não decretara a morte do gaúcho, apenas identificara o fim de um

tipo específico, aquele cantado pela literatura gauchesca desde fins do século XIX: “Ahora

intuyo que en los años en que yo no encontraba sino criollos y paisanos, abundaban sin duda

los gauchos, tan gauchos como siempre, sólo que desprovistos del chiripá, relegado en calidad

de antigualla, y cubiertos de una miscelánea, algo que tolera la denominación de restos de

ropa”.235

Sua resposta aos questionamentos sobre a existência ou não do gaúcho real se

aproxima daquela dada por Moysés Vellinho em 1925: o gaúcho não morreu, transformou-se;

mais uma dentre as tantas mutações que passara desde que vagava pelas verdes coxilhas no

século XVIII. Mas há uma diferença essencial entre os dois escritores. Para Casares, o que

define um gaúcho são seus hábitos, as lides campeiras, o trato com o cavalo. Dessa forma, até

mesmo um estrangeiro poderia se “agauchar”, adotando os costumes da Pampa. Já para

Vellinho, o gaúcho sobrevive inclusive na metrópole, em cada cidadão que reivindica a

nobreza dos “antepassados”. Mas assim, há que se nascer no Rio Grande ou ter no sangue a

linhagem gaudéria para ter reconhecido o gentílico honroso. Barbosa Lessa, situado

cronologicamente entre Casares e Vellinho, oferece uma resposta também intermediária: é o

hábito que faz o monge, ou seja, sãos os costumes, os trajes e o linguajar característico que

identificam um gaúcho. Todavia, estes podem ser cultivados até na cidade grande.

Em 1947, o escritor Manoelito de Ornellas relatou sua recente experiência com um

grupo de jovens trajados à gaúcha em plena Porto Alegre:

“Levaram-me a assistir, há dois dias, a uma festa tradicional de que

participava a juventude estudiosa do Ginásio Júlio de Castilhos. A festa era

tipicamente gauchesca. Ao lado da sala iluminada, um galpão aberto à luz da

campanha riograndense, recortado e atirado para dentro da moldura civilizada

da metrópole”.236

Dessa forma ele caracterizava a comemoração que presenciara no dia 20 de setembro

nas dependências do Colégio Júlio de Castilhos: uma festa “tipicamente gauchesca”. Esta

constituiu, provavelmente, o encerramento de uma série de atividades realizadas pelo nosso já

conhecido grupo de estudantes oriundos do interior do Estado. A oposição do galpão à

metrópole “civilizada”, como aparece no texto de Ornellas, pode ser reveladora de uma visão

corrente no meio literário porto-alegrense do período, possivelmente partilhada por outros

235

CASARES, Adolfo Bioy. Op. cit., p. 42. 236

ORNELLAS, Manoelito de. Correio do Povo. Porto Alegre, 23/09/47.

81

grupos sociais e pelo senso comum urbano. Mas o autor dá à iniciativa uma conotação

positiva e a saúda como necessária. Continuando sua crônica, ele nos conta:

“Mas o que se inferiu do entusiasmo puro dessa festa, do alvoroço dos

gaúchos que exibiam seus trajes típicos, não foi simplesmente o propósito

exterior [dos] hábitos e costumes – que são nossos, são belos e nos devem

orgulhar. Houve um outro sentido, que se adivinhou, claramente, à primeira

vista. E este, de profunda razão moral. Os moços riograndenses que se

vestiram de gaúchos, que improvisaram aquela ramada de galhos verdes,

estaquearam aquele pelego de ovelha, „rasgaram‟ as cordeonas e cantaram à

luz ingênua das estrelas, procuram – muito mais que o avigoramento das

tradições exteriores – a revalidação de certas qualidades e virtudes morais que

estruturam verticalmente o caráter gaúcho. É este o caráter que eu empresto à

tentativa desses moços que trazem, até no sotaque, a palavra que eu sempre

ouvi nos galpões e numa vontade férrea de manter o Rio Grande acima e à

parte da decomposição moral em que o mundo naufraga e ameaça contaminar

o Brasil”.237

O escritor parte de uma postura notadamente conservadora, no sentido de resistência às

mudanças, e também de uma avaliação moral, para interpretar o significado do acontecimento

que presenciara. Mais do que a exibição dos “hábitos e costumes” dos quais deveríamos nos

orgulhar, o evento revelava a tentativa de reabilitação do caráter do gaúcho como resposta à

decomposição moral que começava a contaminar a sociedade brasileira. Nesse sentido, as

perguntas que cabe responder primeiramente são: o que significava “decomposição moral”

para ele e, provavelmente, para muitos de seus contemporâneos? E principalmente: o que

tinham em mente escritores como Ornellas e jovens estudantes como Paixão Côrtes e Luiz

Carlos Lessa quando propunham revalidar o “caráter gaúcho” diante de tal decadência? Um

olhar detalhado permite evidenciar as tensões presentes nessa elaboração e ajuda a evitar cair

na tentação de mostrar o movimento (ou os movimentos) regionalista(s) da década de

quarenta como um todo homogêneo e coerente. Como vimos, existiram várias possibilidades

interpretativas sobre a existência ou não do gaúcho que, por sua vez, poderiam fundamentar

diferentes projetos literários e, também, políticos.

A tensão entre modernidade e tradição, desdobrada em oposições como cidade versus

campo ou economia industrial versus economia agrária, esteve intrinsecamente ligada, na

literatura regionalista ou gauchesca – e nos debates que ela gerou –, com o descompasso entre

mito e realidade. Por mais que a elaboração da tradição tenha sido obra de letrados urbanos e

suscitada por questões e objetivos próprios da “modernidade” capitalista e nacionalista, ela

não deixara de ser apresentada como reação ao progresso e ao cosmopolitismo característicos

237

Ibidem.

82

dessa mesma modernidade. Não podemos esquecer que choques entre antigos e novos valores

são tão comuns quanto aqueles entre realidades culturais diferentes. A narrativa de origem

consolidada pelo movimento tradicionalista gaúcho é estruturada em função da dicotomia

modernidade/tradição. Ela partilha, assim, da mesma legitimidade com a qual a literatura

nacionalista e regionalista precedente pôde contar. Entretanto, sofre das mesmas debilidades:

se o “tradicional” já não existe de fato, por que exaltá-lo, celebrá-lo e experimentá-lo? Essa

contradição, inicialmente tomada como fraqueza, tornar-se-á o sustentáculo do

tradicionalismo organizado e permeará toda a produção intelectual de Barbosa Lessa: para

resolvê-la é preciso reviver o gaúcho nos textos e na vida.

Os hábitos e costumes do gaúcho, identificados por Ornellas como algo quase natural

e que deveria ser valorizado, passavam, assim, por um novo processo de construção, já que,

como “constatado” pelo grupo de estudantes, haviam caído no esquecimento frente ao

cosmopolitismo metropolitano. Mas por quê “retornar” a eles? Vejamos o depoimento dado

por Barbosa Lessa a Luís Augusto Fischer cinqüenta e cinco anos após sua chegada à capital:

“A tal influência das outras culturas, influência de outras nações, é algo

normal; ao longo da humanidade ocorre isso, mas naquele após-Guerra foi

muito marcante a chegada, de uma hora para outra, da cultura norte-americana.

Nós éramos chamados de Geração Coca-Cola, e sentimos com muita evidência

que ou a gente se entregava, ou a gente tentava salvar o pelego. Em Porto

Alegre, que é a capital e não está no interior mas no litoral, nós éramos

malvistos, éramos uns grossos do interior. Me corrigiam a toda a hora, meus

colegas do Colégio Estadual Júlio de Castilhos: „O que tá gostando mais aqui,

ô...?‟ „Sabe, o que eu estou gostando mais é ver as gurias passeando na Rua da

Praia...‟ „Não é passeando seu, é fazendo footing.‟ Então me corrigiam porque

era fazendo footing. No primeiro ano, na primeira semana de aula do Julinho

[apelido carinhoso do Colégio Estadual Júlio de Castilho], o professor de

Educação Física nos deu aula no Parque Farroupilha, porque não havia ainda o

lugar definitivo. Em seguida, avisou que a próxima aula seria no Estádio dos

Eucaliptos, o estádio do Inter. E eu perguntei ao professor: „Onde é que fica o

Estádio dos Eucaliptos?‟. Os colegas me olharam como se eu fosse um

extraterreno. Como é que alguém chega a Porto Alegre e não sabe onde é o

Estádio do Inter? Então, era uma série de coisas, não era só a favor do (norte)-

americano; não se justificava, de acordo com os parâmetros da capital, que

alguém cometesse algum pequeno deslize, de qualquer tipo”.238

Ao abordar a dimensão estratégica da construção da identidade cultural, Denys Cuche

aponta que os atores sociais não são totalmente livres para definir sua identidade: “As

estratégias devem necessariamente levar em conta a situação social, a relação de força entre

os grupos, as manobras dos outros, etc” (e o contexto histórico, poderíamos acrescentar).

238

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. Depoimento. In.: RIO GRANDE do Sul. Secretaria de Estado da Cultura.

Instituto Estadual do Livro. Op. cit., p. 18.

83

Mesmo que a identidade se preste à instrumentalização por sua plasticidade, ela é sempre

“resultante da identificação imposta pelos outros e da que o grupo ou o indivíduo afirma por

si mesmo”.239

Estes apontamentos me fazem pensar em duas possibilidades de interpretação

da narrativa de Barbosa Lessa: a primeira e mais óbvia é a de que ela faz parte das estratégias

de consolidação de uma memória do/sobre o grupo pioneiro do tradicionalismo240

; a segunda

aponta para o papel dos constrangimentos sociais no estabelecimento da identidade coletiva,

como o próprio processo de modernização capitalista. A articulação das duas possibilidades,

como proponho aqui, indica um delicado jogo entre aqueles elementos que o grupo sentiu

como condicionantes (e estímulos) externos e como a eles reagiu e/ou como os

utilizou/reverteu a favor da identidade afirmada. Nesse sentido, também, as narrativas de

origem do tradicionalismo podem ser entendidas tanto como uma articulação de sentido a

posteriori, quanto como reveladoras das estratégias contemporâneas à criação do grupo para

distinguir-se e, com isso, traçar, também as ações futuras.

Podemos inferir, então, a partir do depoimento, que dois fenômenos de ordem

diferente, e estreitamente ligados, sensibilizaram e motivaram, inicialmente, o grupo a

“resgatar” uma cultura assim duplamente perdida: primeiro, de natureza mais geral e social, as

transformações pelas quais o mundo passava com o término da Segunda Guerra Mundial –

transformações que tanto inquietavam espíritos conservadores como o de Manoelito de

Ornellas –, e, segundo, de ordem mais íntima e individual, a sensação de estranhamento de

Lessa frente à realidade da capital rio-grandense, que se desdobrava na dificuldade de

adaptação e em um sentido reforçado de pertença à outra realidade, à do interior do estado,

construída, assim, como radicalmente oposta. De um lado, a chegada da “modernidade” e a

paulatina adoção do american way of life, de outro, a oposição campo/cidade com uma

valoração positiva (e distanciamento) da segunda em detrimento do primeiro.

Na esteira das discussões realizadas no começo do capítulo, podemos ler, assim, o

tradicionalismo gaúcho como um “desenrolar” da produção gauchesca, fruto da atualização

das questões que suscitaram sua elaboração desde a segunda metade do século XIX. Ángel

Rama aponta que a reativação do problema regionalista na América Latina tem sido uma

reação à penetração da modernidade em zonas afastadas, imobilizadas ou em decadência após

surtos de desenvolvimento econômico. O autor identifica duas características do fenômeno no

239

CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. 2a ed. Bauru: EDUSC, 2002, p. 196-197.

240 Afinal, como ressalta Michael Pollak, a memória é um elemento constituinte da identidade, seja coletiva, seja

individual, “... na medida em que ela é também um fator extremamente importante do sentimento de

continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si”. POLLAK, Michael.

Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10 1992, p. 204.

84

campo intelectual: primeiro, a reação defensiva gerada nas regiões internas em relação às

capitais ou às cidades dinâmicas do país, o que só poderia ser explicado pela agressão a seus

valores tradicionais vinda desses centros, como foi percebido pelos habitantes da região;

segundo – e concomitante e derivado do primeiro –, tal reação não seria possível sem a

existência de um grupo intelectual com consideráveis níveis de preparação, capaz de aceitar o

desafio e opor-se a essa “agressão”, começando um debate no mesmo plano.241

A Porto

Alegre da década de 1940 paradoxalmente fornecia ambos os elementos: uma intensa

modernização e adoção de valores cosmopolitas242

, junto com a dinamização econômica e a

constituição de uma classe média educada e, no seio dessa, a formação de quadros literários

preparados para dar respostas defensivas a tal processo.243

A identificação desses quadros com

os valores “tradicionais” devia-se tanto à tradição literária regionalista, ainda que, como

vimos, em franca transformação no período, quanto à incorporação de indivíduos advindos do

meio agrário e de cidades do interior do Estado, ainda fortemente marcados por modos de

vida ligados à economia rural.

A invenção do tradicionalismo é, portanto, um fenômeno relativamente recente –

segunda metade da década de 1940 – mas está inserida no processo mais antigo e mais amplo

de construção da identidade gaúcha. Maria Eunice Maciel, valendo-se da perspectiva corrente

na Antropologia Social contemporânea, salienta que a construção da identidade gaúcha é um

processo que opera com representações sociais, articulando semelhanças e diferenças,

estabelecendo fronteiras e denominadores comuns, balizando limites e ordenando relações

entre grupos sociais244

. A autora aponta então para o aspecto relacional desse processo: a

identidade é construída estabelecendo distinções e delimitando singularidades, tanto incluindo

quanto excluindo, ou seja, se constrói e se define em “relação ao outro”. Nesse sentido, a

figura do gaúcho sintetiza uma série de representações que os habitantes têm sobre a região e

idéias que querem que os outros tenham sobre ela245

, expressando valores, desejos, anseios e

241

RAMA, Ángel. Religiões, culturas e literaturas. In.: AGUIAR, Flávio, VASCONCELOS, Sandra. Literatura

e Cultura na América Latina. São Paulo: EDUSP, 2001, p. 291. 242

Sobre a modernização da capital gaúcha na década de 1920, ver MONTEIRO, Charles. Porto Alegre:

urbanização e modernidade: construção social do espaço urbano. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995. 243

Sobre o meio intelectual porto-alegrense no período, ver TORRESINI, Elisabeth Rochadel. Editora Globo:

uma aventura editorial nos anos 30 e 40. São Paulo: EDUSP/COMARTE, Porto Alegre: Editora da UFRGS,

1999. 244

MACIEL, Maria Eunice. A atualização do passado. In.: FÉLIX, Loiva Otero, RECKZIEGEL, Ana Luiza

Setti. RS: 200 anos: definindo espaços na história nacional. Passo Fundo: Editora da UPF, 2002, p. 191. 245

Michael Pollak define identidade como a “imagem que uma pessoa adquire ao longo da vida referente a ela

própria, a imagem que ela constrói e apresenta aos outros e a si própria, para acreditar na sua própria

representação, mas também para ser percebida da maneira como quer ser percebida pelos outros”. Op. cit.

85

perspectivas do grupo que a concerne.246

Maciel define, assim, o “gauchismo” como o

agrupamento das várias manifestações e práticas culturais cujas balizas estão nas

representações acerca do gaúcho e seu modo de vida, ou no possível “ethos da sociedade

gaúcha”, não se limitando ao tradicionalismo, “embora este, com a força que possui, seja o

seu principal veículo”.247

O engajamento de Barbosa Lessa na construção do tradicionalismo passa, assim, pela

(re)elaboração de representações sobre a figura do gaúcho que deveriam ser tomadas,

também, como representações sobre o habitante do Rio Grande. É o que veremos a seguir.

2.3 - Os primeiros traços do escritor: Barbosa Lessa reencontra o monarca

Quando chegou a Porto Alegre no ano de 1945, Barbosa Lessa já havia tido alguma

experiência com o jornalismo: fundara e coordenara em 1942 um jornal no Ginásio Gonzaga

de Pelotas, do grupo La Salle, chamado “O Gonzagueano”, que se tornaria órgão oficial de

seu grêmio estudantil, com o nome de “Ecos Gonzagueanos”. Ali publicava contos tendo

como personagens heróis da história rio-grandense.248

Na capital, nosso autor procurou

Justino Martins, diretor da Revista do Globo249

, e se ofereceu para trabalhar como redator.

Não podendo assumir cargo em tempo integral devido a seus estudos, formou uma dupla

freelancer com o jovem fotógrafo e colega do “Julinho” Flávio Damm para publicar material

esporádico nas páginas da referida revista. Suas primeiras matérias tratavam de temas

variados, como o casamento de um chinês com uma rio-grandense da fronteira do estado e a

246

MACIEL, Maria Eunice. Op. cit., p. 193. 247

Ibidem, p. 198. 248

Segundo as memórias do autor, fora nesse momento que começara suas leituras sobre “coisas do Rio

Grande”, incentivado pelo irmão Paulo. BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. Mas pode? In: ______. Crônicas do

Passado Presente. Porto Alegre: Nova Prata, 2002, p. 139-143. Crônica publicada originalmente na edição de

outubro de 1998 do Jornal Extra-classe. 249

Na década de 1940, a Editora Globo levava a cabo um ambicioso e arrojado projeto editorial, tornando-se

nacionalmente reconhecida e prestigiada. Além de editar autores de renome do Rio Grande do Sul e do restante

do país, possuía uma equipe de tradutores que lhe permitia publicar textos consagrados no exterior. Era, também,

reduto da intelectualidade sul-rio-grandense, constituindo-se, ainda, em importante esteio do pensamento de

esquerda no período. Sobre a trajetória da Editora e da Livraria do Globo, ver o livro já citado de Elisabeth

Rochadel Torresini. Sobre as traduções feitas pela Globo, ver AMORIN, Sônia Maria de. Em busca de um tempo

perdido: edição de literatura traduzida pela Editora Globo (1930-1950). São Paulo: Edusp, Porto Alegre: Editora

da UFRGS, 1999.

86

“arte de colar” dos alunos do Colégio Júlio de Castilhos.250

Em 1946, surgia a revista

“Província de São Pedro”, voltada às coisas do Rio Grande do Sul e editada, também, pela

Globo. Nela, Luiz Carlos Lessa, então com 18 anos, publicou um conto histórico sobre o

episódio da Guerra dos Farrapos conhecido como “A Retirada de São José do Norte”.251

O

texto alia literatura e história em uma narrativa sobre heroísmo, abnegação e telurismo. Nele,

o autor relata a retirada das tropas revoltosas da cidade de São José do Norte, no ano de 1840,

exaltando a coragem do povo e a retidão de caráter da elite militar sul-rio-grandense,

sintetizada na figura do General Bento Gonçalves252

.

Em maio de 1947, Barbosa Lessa agrega à equação história/literatura o jornalismo

informativo. Na reportagem intitulada “Tropeiros”, a história do Rio Grande do Sul e do

gaúcho aparece em sua forma mítica. Publicado antes do autor conhecer Paixão Côrtes e o

Grupo dos Oito Pioneiros do Julinho, o texto nos permite vislumbrar qual era a figura de

“gaúcho” que o jovem jornalista tinha em mente quando se uniu ao referido grupo, a sua

contribuição para a construção da representação do gaúcho que iria pautar a organização e

instituição do movimento tradicionalista, e, ainda, a maneira como tal representação estava

calcada na já mencionada tensão entre modernidade e tradição. Em “Tropeiros”, o autor, que

assinava então como Luiz Carlos Lessa, nos apresenta a vida daquela que considera a última

figura tradicional do Rio Grande do Sul, suas lides no campo e o itinerário das viagens que

esses homens realizavam conduzindo o gado das estâncias até os frigoríficos de Pelotas e Rio

Grande. Mas antes disso, Lessa expõe uma história da transformação que sofrera o povo

gaúcho no último século, uma história de degenerescência, na qual um passado idealizado

aparece como modelo cultural e social.

Vejamos como ele inicia a reportagem:

“Um dia, o Rio Grande do Sul foi terra legendária, cenário de histórias

aventureiras e de notáveis exemplos de heroísmo. Era a terra da fartura –

fartura na natureza e nos homens: tudo aqui nascia com uma ânsia infinita de

viver. O próprio José Alencar, impressionado, veio buscar nas coxilhas do sul

a vida de um de seus romances. Gente hospitaleira e brava encontrou aos

viajantes estrangeiros: Darwin, Saint-Hilaire, Isabèlle e outros teceram

250

LESSA, Luiz Carlos. Chang-Ling e Hermínia. Revista do Globo. Porto Alegre, 28/08/1946 e LESSA, Luiz

Carlos. Nosso destino é colar. Revista do Globo. Porto Alegre, 26/10/1946. O autor só passa a assinar o

sobrenome “Barbosa” em 1953, quando assume coluna no Diário de Notícias. 251

Segundo Barbosa Lessa, fora Dante de Laytano – historiador e, na classificação de Letícia Nedel, um dos

principais “folcloristas eruditos” das décadas de 1940 e 1950 –, então seu professor no Colégio Júlio de

Castilhos, quem indicara seu texto a Moysés Vellinho, diretor da revista. BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. A

lição dos professores. In: Ibidem, p. 161-166. Note-se, entretanto, a prévia inserção do autor na Revista do

Globo, há cerca de um ano, onde traduzia textos da revista norte-americana Times e publicara duas reportagens

que antecederam sua colaboração com a Revista Província de São Pedro. 252

LESSA, Luiz Carlos. A retirada de São José do Norte (episódio da Revolução Farroupilha). Província de São

Pedro, n. 7, Rio de Janeiro, Porto Alegre, São Paulo, 1946, p. 133-135.

87

honrosos elogios ao povo da Província de São Pedro. Giuseppe Garibaldi, que

como ninguém conheceu os gaúchos do século XIX, bradou um dia nas serras

nevadas da Itália, num excesso de entusiasmo, para que todo mundo ouvisse:

„Com um esquadrão de cavalaria rio-grandense eu me animaria a conquistar o

mundo!‟”.253

O autor fala, pois, de um Rio Grande do Sul mítico, terra da fartura, onde todos viviam

bem, com as suas necessidades atendidas pela prodigiosa natureza, mas também pela vivaz

ação do homem nativo. Era esse homem um verdadeiro herói, ator das mais incríveis

aventuras e proezas. Para ressaltar ou legitimar tal visão, Lessa recorre a “autoridades” como

o escritor José de Alencar (que escrevera O Gaúcho sem haver pisado nas terras do Rio

Grande do Sul), o cientista Darwin, os atentos viajantes Saint-Hilaire e Isabèlle e, elevando-se

ao panteão dos heróis da humanidade, Giuseppe Garibaldi. Homens extraordinários que

reconheciam o extraordinário também no povo que aqui encontraram. Lessa prossegue

esmiuçando ainda mais esse caráter do gaúcho:

“De fato, o Rio Grande era uma terra extraordinária! Os costumes gauchescos

tinham algo de romanesco. Os trabalhos campeiros – domas, rodeios,

cavalhadas – eram cheios de encanto e poesia. O pampa, sem obstáculos e sem

limites, convidava o gaúcho a um viajar sem fim. E nasceram os andarengos,

os carreteiros, os tropeiros – herdeiros natos do sangue nômade dos índios

minuanos e charrua”.254

O tema de uma “idade de ouro” da Pampa gaúcha, como mostrado por César Guazzeli,

é recorrente na literatura gauchesca. O Martín Fierro, de Hernández, texto que narra as

desventuras de um gaucho desertor, fanfarrão e errante e, por isso, representante de uma

“casta” em extinção que vivia na pampa em liberdade, pode ser lido como uma das matrizes

dessa imagem.255

Nele, encontramos os seguintes versos:

¡Ah tiempos!... ¡Si era un orgulho

ver jinetiar un paisano!

Cuando era un gaucho banquiano,

aunque el potro se boliase,

no había uno que no parase

con el cabrestro en la mano.

253

LESSA, Luiz Carlos. Tropeiros. Revista do Globo. Porto Alegre, 10 de maio de 1947, p. 28. 254

Ibidem, pp. 28-29. 255

Já referimos como a leitura de Hernández era disseminada no Rio Grande do Sul, a ponto, inclusive, de ser

reivindicada como “brasileira” pela comunidade de Santana do Livramento. Lea Masina aponta que poucos

críticos brasileiros ousaram reconhecer o influxo platino no sistema literário nacional. MASINA, Lea. Op. cit., p.

103. Como vimos, pelo trabalho de Letícia Nedel, tal negativa se deveu à necessidade de inserção (peculiar) da

cultura sul-rio-grandense no contexto brasileiro, questão muito bem explorada também por Ruben Oliven. Para

nós, no momento, basta reconhecer que Barbosa Lessa lera boa parte da produção platina e/ou conhecera-na

também por vias indiretas, pois comungava, como mostrou Joana Bosak de Figueiredo, de uma cultura literária

“fronteiriça”. FIGUEIREDO, Joana Bosak de. Parim passim.

88

Y mientras domaban unos,

otros al campo salian,

y la hacienda recogían,

las manadas repuntaban,

y ansí sin sentir pasaban

entretenidos el dia.256

Ainda que o tema não ocupe papel central na obra de Simões Lopes Neto, também

encontramos nos seus textos referências a um passado mítico de liberdade e fartura, como a

que segue, na abertura de “O Negrinho do Pastoreio”, de 1912: “Naquele tempo os campos

ainda eram abertos, não havia entre eles nem divisas nem cercas; somente nas volteadas se

apanhava a gadaria xucra e os veados e avestruzes corriam sem empecilhos”.257

Ou, ainda, em

“Correr Eguada”, de 1910: “Tudo era aberto; as estâncias pegavam umas nas outras sem cerca

nem tapumes; as divisas de cada uma estavam escritas nos papéis das sesmarias; e lá um que

outro estancieiro é que metia marcos de pedra nas linhas...”.258

Essa era também a terra sem

fronteiras, sem divisões internas, de Barbosa Lessa, habitada por um povo igualmente sem

limites para viver, descendente direto de grupos nômades, e por isso “nobres”, os índios

minuanos e charruas. Mas tal história teve um fim, chamado “progresso”. Barbosa Lessa

retrata, então, a decadência do gaúcho:

“Porém, o tempo mudou. O progresso veio chegando calmamente, e estendeu

milhares de aramados pelos campos, cortando e recortando este pampa

enorme, possessão natural do gaúcho indômito, conquistador de distâncias.

Com os potreiros pequenos, o gado selvagem foi amansado, os rodeios foram

sendo substituídos pelos mangueirões, a marcação de gado saiu do campo

aberto para os bretes, as boleadeiras – arma típica do gaúcho – caíram em

desuso, e o laço quase foi esquecido. Os aramados, bretes, mangueirões,

abateram a glória do gaúcho. E para quê serviria a sua habilidade e destreza

nas lides campeiras, se agora qualquer gurizote podia tocar um gado pelos

corredores?”259

No conto “Velhos Tempos”, do livro No Galpão, publicado em 1925 por Darcy

Azambuja, encontramos a descrição de um processo semelhante:

“O velho pôde, então, naquela derradeira vista de conjunto, ver quanto

estava mudado o seu campo natal. Não parecia o mesmo. E ele, que nascera

ali, e vivera e envelhecera entre aquelas dobras verdes da terra, já quase não

conhecia mais o pago. Retalhara-o em pedaços um emaranhamento

constritor de aramados inumeráveis. Aproveitando-o melhor, tinham-no

deformado e morto, matando-lhe a alma imensa, que era vertigem de

256

HERNÁNDES, José. Martín Fierro. Madrid, Buenos Aires: Bibliteca EDAF, 1967, p. 32. 257

LOPES NETO, João Simões. Lendas do Sul. Porto Alegre: Globo, 1974, p. 95. 258

Idem. Op. cit., p. 49. 259

Ibidem, p. 29.

89

extensão desmascarada. Naqueles retalhos curtos não corriam mais manadas

de éguas xucras e as pontas de gado bravio. Reses de raças longínquas

pastavam calmas e nédias, sem o alvoroço selvagem da gadaria crioula.

Tinham desaparecido os baguais que antes retouçavam ali, ligeiros e

esquivos, devorando as quadras. Presos em estacas, estadeando as linhas

soberbas, os pastores puros enfastiavam-se, nostálgicos de outros climas e

céus distantes.

Já não corria o gado, não se laçava mais campo fora. O brete monotonizara

as agitadas marcações, e os animais de raça não exigiam o trabalho rude mas

alegre dos crioulos. De raro, em raro, um rodeio, sem correrias, sem

imprevistos”.260

Os cercamentos das terras e as mudanças na lida campeira por eles ocasionadas

cercearam, para Barbosa Lessa (e para vários outros literatos que o precederam), o próprio

espírito gaúcho. Mas esse gaúcho, que era bravo e guerreiro, não assistiria à mudança sem

resistir:

“No começo, o gaúcho não se pôde conformar com a situação. Então, não

havia mais gado alçado, não se parava mais rodeio com trinta campeiros, não

se boleava mais potro campo-fora?... Acostumado a pelear com a natureza e

com os homens, o gaúcho iniciou a luta contra o tempo e o progresso. Lutou, e

foi vencido...”261

E assim, o gaúcho mudou de configuração: “A nova geração gaúcha já nasceu se

amoldando aos novos costumes. Trocou os chiripás pela bombacha, jogou as boleadeiras para

um canto, e aprendeu a consertar aramador e armar bretes e banheiros. O andarengo virou

carpinteiro ou pedreiro”.262

A gauchesca de outrora perdeu a vez para o gaúcho a pé de Cyro

Marins:

“Pela conversas, parecia que todos tinham invernadas cheinhas de bois.

Estavam se logrando, os trouxas. Os criadores, os compradores e revendedores

de gado, os donos dos saladeiros e seus empregados mais copetudos, a

gringada dos frigoríficos, então, esses todos, sim, tinham razão de falar. E os

donos da venda. E os capatazes da tropa. Mas já o peão da tropa, o peão da

estância, o agregado, o plantador de chacra, o caixeiro de venda e o peão de

carreteiro como ele já fora... Os patrões diziam que pra eles também

interessava [os rendimentos da safra]. Mas o certo era que, vinha ano, passava

ano, e eles, essa gentinha toda, ele [o personagem Chiru], cada vez mais pelas

caronas”.263

As figuras de ontem também começaram a ser extintas no texto de Barbosa Lessa: “O

progresso acelerou seu passo. Acordou as coxilhas com o apito da locomotiva, e matou o

260

AZAMBUJA, Darcy. Op. cit., p. 81-82. 261

Ibidem. 262

Ibidem. 263

MARTINS, Cyro. Sem rumo. 6a edição. Porto Alegre: Movimento, 1997, p.100.

90

carreteiro. Mais um tipo tradicional perdia o Rio Grande com o passo lerdo de seus bois.”264

E

os males que assolam o Rio Grande do Sul tiveram início então:

“E o gaúcho se viu sem emprego. Comprou um pedacinho de terra e virou

plantador. Vendeu um saco de batatas por 20 cruzeiros para enriquecer o

intermediário e a filharada sentiu frio sem roupa para vestir. Armou um

botequim e as mercadorias subiram a tal preço que ele nem pôde sortir a

venda, quebrando o negócio de saída. Restou unicamente um balcão para

vender cachaça. A canha tornou-se o consolo de vida da gauchada. Domingo

ou não domingo, os campeiros enchiam o bolicho, silenciosos, enraizando os

copitos de branquinha. O gaúcho tornou-se quieto, sorumbático, nem

parecendo trazer no sangue o espírito alegre e zombeteiro dos velhos gaúchos.

Tudo para ele era tristeza!... Emprego não havia. Era arranjar uma changa de

vez em quando pra não morrer de fome ou ... virar ladrão de ovelha. Como

muda a feição dos pampas, patrícios! Assim se quedou aquela legião de

centauros! Gaúchos que se amesquinham nos ranchos da campanha, gaúchos

que trocaram o chiripá por uma bombacha remendada e as botas lustrosas por

alpercatas gastas. Pobres centauros!”.265

Junto com a apologia ao trabalho livre, no sentido de “nômade” e “sem delimitações

físicas”, na pampa gaúcha, e a conseqüente valoração negativa do trabalho sedentário, há, no

texto de Lessa, assim como no de Cyro Martins, um tom de denúncia social: o progresso tirou

o homem do campo e/ou mudou seu caráter. Nosso autor lamenta a exploração sofrida pelo

gaúcho, forçado a procurar emprego em outras paragens ou assentar chão e virar plantador.

Em ambos os casos, exploração; do mercador ou do intermediário. Os dois escritores apontam

o fator econômico como marco explicativo da miséria do povo gaúcho. Para Martins, o

próprio “giro” na atitude em relação à produção literária, do ufanismo ao “disforismo”, seria

um reflexo da modificação do estilo de vida do gaúcho, resultado da erosão das velhas

propriedades rurais. As estâncias passavam por um processo de modernização que ia da

adoção de novas tecnologias à subdivisão das terras, e que trazia consigo a desarticulação das

antigas relações sociais de produção, o conseqüente êxodo rural e a pauperização da

população:

“Privado das condições de vida que lhe modelaram o caráter, o gaúcho, não

dispondo mais da fartura, do cavalo e da distância, decaiu como tipo

representativo de um padrão de existência. Mas a culpa desse declínio não

cabe somente à índole afeita ao espírito de aventura e de certo modo hostil à

monotonia do trabalho duro e paciente, reclamado pelas novas circunstâncias

do meio. Na verdade, as massas campeiras foram sendo pouco a pouco

dispensadas – por que não dizer excluídas? – por desnecessárias, numa

decorrência lógica do rumo que tomavam as lidas campeiras. Com efeito, o

264

Ibidem. 265

Ibidem. O canto do paraíso perdido também será motivo de uma de suas maiores composições musicais,

“Negrinho do Pastoreio”, de 1957, baseada na lenda homônima.

91

gaúcho pobre não foi chamado a participar do ciclo que se iniciava, de intensa

comercialização da pecuária. Portanto, não devemos buscar as razões da

penúria de hoje com exclusividade de vistas para a índole desprecavida do

homem dos pampas”.266

O progresso cumpre, para Cyro Martins e Barbosa Lessa, o mesmo papel

desarticulador das relações sociais e de propulsor da exclusão e/ou marginalidade do homem

do campo. Entretanto, apesar da primazia dada ao fator econômico e da denúncia da

exploração, Martins não está isento do preconceito contra as massas populares: as razões da

penúria não estariam exclusivamente na índole desprecavida do gaúcho, mas, assim, estariam

também nela, ainda que secundariamente. Este último autor acaba, então, por delinear traços

de uma ética negativa do trabalho do homem da pampa, diferentemente de Lessa que conclui,

como vimos, que a decadência moral do gaúcho é fruto, unicamente, do processo de

modernização da economia rio-grandense.267

. Esse, tanto no campo como na cidade, chega

com a pobreza, sua filha mais ingrata. O gaúcho cede ao vício da bebida e perde com ele a

antiga alegria de viver. Em caso extremo, sem emprego e o que comer, vai ao fundo do poço e

vira ladrão. Morreu o centauro.

Mas há ainda nesse gaúcho o sangue de outrora. E no último deles, o tropeiro, esse

sangue corre com força:

“O tropeiro é o último tipo impressionante de gaúcho. Vive conduzindo tropas

de gado, satisfeito, embora um terrível espectro ande a rondar-lhe os passos: o

trem-de-ferro. Aquela máquina que matou o carreteiro, ameaça hoje aos

condutores de tropas. Na (ilegível) da Serra ou da Fronteira, a estação, a

estação ferroviária fica ali atrás da coxilha, e não é preciso ser tropeiro

profissional para levar uma ponta de gado pelos corredores até a estação. Mas,

no sul do estado, lá onde léguas e léguas de terra não conhecem as patas do

cavalo-de-aço, ainda é o tropeiro que, com seu pingo escarceador e a sanfona

na garupa, leva a gadaria de cruzada pelas várzeas e coxilhas, rumo aos

frigoríficos de Pelotas e Rio Grande.”268

É nesse aspecto que Barbosa Lessa relê criativamente a tradição gauchesca

denominada por Martins de “eufórica”, em contraposição aos textos desse mesmo autor. De

tal síntese, surge uma solução intermediária: o gaúcho a cavalo sobrevive nas margens do

progresso, com toda a “pompa de outrora”. Onde a força devastadora da “modernidade” não

266

MARTINS, Cyro. Op. cit., p. 22-23. 267

Essa imagem, como vimos, é recorrente na literatura gauchesca, mas, cabe lembrar que, em Martín Fierro,

não é o progresso econômico o culpado pela transformação da Pampa, mas a “civilização”, representada pelos

homens de letras do Estado e das leis. 268

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. Op. cit., p. 30.

92

chegara, destruindo tipos sociais, hábitos e costumes, vivia livre o último dos gaúchos, junto

ao seu cavalo e com sua galhardia. E é boa a vida do tropeiro:

“Depois de um gaúcho pegar fama de bom tropeiro – experiente e honesto –

está com a vida garantida. Dezenas deles são contratados pelos frigoríficos

para comparecerem e trazerem as tropas. E lá se vão, de pago em pago, num

viajar quase contínuo. O tropeiro é o tipo que mais se aproxima do andarengo

do século passado. Hoje vive ele correndo pelas planuras, e quando chega ao

fim de uma jornada já está pensando na próxima tropa, já sente de novo a

atração dos caminhos. Muitas vezes dorme no campo aberto. Tem no lombo

do cavalo a sua casa e a sua querência. Tropeiro e cavalo, irmanados, vivem

juntos a vida de conquistadores de distância.”269

Haveria, assim, no sul do Estado, um reduto para o filho do andarengo do século

XVIII, cantado em verso e prosa pela gauchesca platina e sul-rio-grandense, e que, como ele,

vivia a distância em liberdade, no lombo de seu cavalo. Lessa constrói uma imagem do

gaúcho como homem do campo, mas não qualquer campo, mas a pampa gaúcha antes e/ou

fora dos limites dos cercamentos, e não qualquer homem, mas aquele que vivia do trabalho

nômade. E o vivia com gosto. Fruto desse meio e de seu trabalho, partilhando a abundância, o

gaúcho possuía características extraordinárias: bravura, heroísmo, mas também hospitalidade,

alegria, galhardia. Tal era a figura do gaúcho que Barbosa Lessa tinha em mente quando se

engajou no nascente movimento tradicionalista. E estava dada a estratégia narrativa que

marcaria seus futuros escritos: desmentir a morte do centauro, mostrando-o vivo na

experiência social contemporânea. Dessa forma, o autor parece legitimar um projeto literário

que começava, naquele momento, a esboçar, via jornalismo. Esta estratégia, como apontado

anteriormente, se tornará basilar para o projeto tradicionalista, igualmente sem contornos nem

rumos definidos no período em questão, ao qual Barbosa Lessa acaba por somar-se.

2.4 - A mudança continua: “todos somos gaúchos!”

Junto à carreira jornalística, então, nosso autor passou a construir o tradicionalismo.

Em 1947, quando tomou conhecimento da ronda promovida por seus colegas do “Julinho”,

tratou de aproximar-se do grupo e acabou por integrar o Departamento de Tradições Gaúchas

do Colégio Júlio de Castilhos, que se tornaria o molde para a fundação, em 24 de fevereiro do

269

Ibidem.

93

ano seguinte, do “35” Centro de Tradições Gaúchas. Sobre seu engajamento nesta empreitada,

conta Lessa:

“Então peguei um caderno-de-aula, redigi uma conclamação expondo nossos

objetivos e saí coletando assinaturas de apoio. Quando eu via na rua um rapaz

com jeito de ser do interior, metia as caras; foi assim que conheci, por

exemplo, o Wilmar Winck de Souza270

, de Palmeira das Missões. A

mensagem era curta e grossa: Aqui trazemos um convite aos gaúchos que,

embora residindo nesta capital e tendo hábitos citadinos, guardam ainda nas

veias o sangue forte da terra rio-grandense. É sobre a fundação de um clube

tradicionalista. Terá como finalidade reunir no mesmo rodeio os guapos das

muitas querências do Rio Grande, mas agora residindo em Porto Alegre. Viva

o Rio Grande do Sul.”271

O grupo passou a se reunir aos sábados, na residência do Dr. Carlos Alfredo Simch,

pai de um dos rapazes, José Laerte, localizada na rua Duque de Caxias, onde foi elaborado o

estatuto do 35 CTG. Foram 24 sócios fundadores que, em 1950, já somavam 35 sócios

permanentes e cerca de 100 sócios colaboradores.272

A experiência de Lessa como jornalista

também foi colocada a serviço do movimento, tanto externamente, divulgando o gauchismo

em seus diferentes aspectos, quanto internamente, na redação de reportagens e textos para os

tradicionalistas. No ano de 1950, foi publicado o primeiro jornal do 35 CTG, tendo à sua

frente Lessa como diretor, Paixão Côrtes como assistente, Enio Souza como redator-chefe e

Victor Cravo Teixeira como gerente. O texto de apresentação do periódico traçava os

objetivos da entidade: “A finalidade do „35‟, sob o aspecto cultural, é o estudo do folclore e

da história do Rio Grande do Sul, e a divulgação através da palavra falada ou escrita, da

música, da dança, das artes plásticas, ou da prática campeira”.273

O 35 se pretendia, então,

uma entidade cultural que promoveria todas as manifestações artísticas consideradas gaúchas,

seja do passado, seja a nova produção tradicionalista. O texto segue explicando o porquê do

nome da entidade: “O nome „35‟ se origina da Revolução Farroupilha, são as virtudes

legendárias dos gaúchos da geração de 1835 que hão de nortear os nossos passos”.274

Era,

então, o resgate de um passado heróico que, mais uma vez, balizava e legitimava os rumos do

grupo. O texto termina indicando o caráter de movimento que transcendia a entidade e, com

ele, o intuito de construir algo maior que ela: “O „35‟ não é apenas uma agremiação cultural;

270

Wilmar Winck de Souza se tornou militante do movimento. Em 2008 foi homenageado como “patrono” da

Semana Farroupilha. 271

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. Depoimento. RIO GRANDE do Sul. Secretaria de Estado da Cultura.

Instituto Estadual do Livro. Op. cit., p. 46. 272

O 35. Boletim Mensal do “35” Centro de Tradições Gaúchas. Ano I – Setembro de 1950. 273

Ibidem. 274

Ibidem.

94

mais do que isto, é um „movimento cultural‟, cujas conseqüências não podemos aquilatar

hoje: é o futuro que no-los dirá”.275

O curso de Direito, iniciado em 1948 na Universidade Federal do Rio Grande do Sul,

não desviou a atenção de Barbosa Lessa nem de sua militância no movimento tradicionalista

nascente nem de suas atividades jornalísticas e literárias. Naquele mesmo ano, outro conto de

fundo histórico narrava, nas páginas do Correio do Povo, os feitos das milícias farrapas contra

as tropas do general legalista Andrade Neves. Ainda que a vitória dos revoltosos no referido

combate fosse creditada às estratégias do coronel Manduca Carvalho, o foco do autor se

desloca do comando militar para os gaúchos guerreiros, aquelas gentes simples que

sustentariam os ideais farroupilhas de adagas nas mãos: “E abafando o tropel dos pingos

crioulos alteou-se uma canção gauchesca, uma canção que, entoada por aqueles homens

rudes, simples e livres era um cântico de glória...”.276

E as canções gauchescas se tornariam

também, como veremos, um front nas batalhas de Barbosa Lessa.

Apesar de sua convocação para prestar serviço militar ao Exército, o empenho literário

do jovem escritor também não parecia arrefecer.277

Mas foi em 1950, após cumprir o

exercício militar obrigatório278

, que Lessa pôde dedicar maior tempo ao tradicionalismo e às

letras. No mesmo ano em que fora eleito “patrão” do 35 CTG, maior cargo da diretoria da

entidade, nosso personagem começara a organizar uma seleção de poemas de temática

gauchesca, escritos por autores diversos, que viria a ser publicada pelas tipografias Goldman

em 1951.279

Mas foram os textos de seu punho que divulgaram o projeto tradicionalista e a

“cultura gauchesca” na imprensa local. Sua crítica cinematográfica à adaptação do romance

“Caminhos do Sul” de Ivan Pedro de Martins, por exemplo, dita, mesmo que pela via

negativa, as normas do “tradicional”. A qualidade do elenco, que contava com Tônia Carrero

e a gaúcha Maria Della Costa, e a boa produção deixavam um saldo positivo na avaliação do

crítico Luiz Carlos Lessa. Mas os “erros” cometidos, segundo o escritor devido à ausência de

um auxiliar de direção responsável pelos “costumes regionais”, causariam incômodo nos

“gaúchos em geral”. Todavia, “passos em falso”, como um “cabaré afarwestado, em que as

mulheres dançam „can-can‟, e de onde o „mocinho‟ – empurrando a clássica portinhola

275

Ibidem. 276

LESSA, Luiz Carlos. Nas pontas do Itusaingo. Correio do Povo. Porto Alegre, 15/02/1948, p. 7. 277

Em 1949, Barbosa Lessa escrevera quatro reportagens para a Revista da Semana, do Rio de Janeiro. 278

Segundo as memórias redigidas por Barbosa Lessa em terceira pessoa como apresentação da correspondência

publicada em seu último projeto editorial, o livro “Prezado Amigo Fulano”, ele optara pela alternativa de serviço

militar que demandava maior tempo, dois anos de duração, ao longo das férias acadêmicas, mas com “menor

sufoco”. BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. Prezado Amigo Fulano: meio século de correspondência – 1950-

2000. Porto Alegre: Alcance, 2005, p. 27. 279

Ver LESSA, Luiz Carlos (org.). As mais belas poesias gauchescas. Porto Alegre: Goldman, 1951.

95

californiana – sai em empolgante fuga sob uma chuvarada de balas, à moda Hopalong

Cassidy280

”, podiam ser relevados com cenas como a de uma “elogiável doma de potros”.281

Mas nem só de cavalos vivem os gaúchos. Na Revista do Globo, a viola campeira fora

celebrada como símbolo da tradição. Tanto o mito quanto a história eram evocados por

Barbosa Lessa para narrar o vínculo entre a guitarra e o gaudério. Na lenda de Miguel Aiala,

“primeiro gaúcho brasileiro”, filho de forasteiro espanhol e índia minuana, a melodia cantada

na hora de seu sacrifício (castigo pelos serviços prestados aos bandeirantes) salva-lhe a vida e

dá o nome aos futuros habitantes da região. Com uma viola feita de fibras da parasita

“sombaré”, Aiala inicia seu “triste cântico de adeus”: “Aos primeiros acordes os indígenas o

interromperam com festiva algazarra. „Gaú-che! exclamaram – „Gaú-che!‟ (homem que canta

triste)”.282

Tal ligação é comprovada pelo passado histórico e pelo presente rural: “Em

verdade, o uso da guitarra, tradicional instrumento ibérico, data dos primeiros anos do Rio

Grande do Sul. Difundida desde os tempos das Missões, ainda hoje a guitarra domina nos

bailes campeiros...”.283

A guitarra transmuta-se em viola e, finalmente, no violão português,

acompanhante da gaita introduzida pelos imigrantes europeus: “Nos bailes campesinos, onde

a ressonância de um instrumento de corda é quase nula, é sempre preciso apelar para um

„gaiteiro dos buenos‟. Mas no silêncio do galpão, nas noites enluaradas da querência, no

pouso dos tropeiros, no fogão dos carreteiros, é o violão o complemento musical inseparável

do gaúcho”.284

A citada figura do tropeiro fora, aliás, novamente foco da atenção de nosso autor

naquele ano. Se ele era, em 1947, para Barbosa Lessa, um dos esteios da tradição, sucedâneo

do gaúcho de outrora, em 1950 continuava sendo a prova viva da cultura gaúcha. Três anos

após a iniciativa tradicionalista e com a fundação de outros centros de tradições pelo Estado,

entretanto, o apelo ao gaúcho mítico já não se fazia tão necessário. Para quem tivesse alguma

dúvida sobre a realidade gaúcha contemporânea, a legenda da fotografia285

, que captava sete

tropeiros conduzindo gado, atestava: “Para desconsolo dos que acreditam que o gaúcho

morreu, aí estão os tropeiros, em cada canto do Rio Grande, com seus ponchos a pontilhar de

negro o verde do pampa”.286

A experiência gaudéria se reproduziria, assim, não somente às

margens do progresso, nos espaços mais remotos, mas, ao contrário, se generalizaria “em cada

280

Personagem popular de filmes norte-americanos do estilo “farwest” produzidos nas décadas de trinta e

quarenta. 281

LESSA, Luiz Carlos. “Caminhos do Sul”. Correio do Povo. Porto Alegre, 11/04/1950, p. 8. 282

LESSA, Luiz Carlos. Viola Campeira. Revista do Globo. Porto Alegre, 11/11/1950, p. 52. 283

Ibidem. 284

Ibidem, p. 52-53. 285

Ver o Anexo I. 286

LESSA, Luiz Carlos. Tropeiros. Revista do Globo. Porto Alegre, 9/12/1950, p. 52-53.

96

canto do Rio Grande”. No novo texto, Lessa relata a trajetória deste tipo social ao longo da

história sul-rio-grandense, durante a qual a “arte de tropear” se aperfeiçoaria para, no

presente, “atender as exigências dos frigoríficos modernos”.287

Junto aos traços do tropeiro do

sul, a partir dos quatro elementos a ele indispensáveis, nosso autor (re)desenha alguns marcos

da tradição:

“o cavalo de lei (para resistir com brio às canseiras dum bate-bate de dias e

dias), o relho de açoiteira longa (porque rês que empaca ou refuga a troteada é

entrave para a marcha-de-tropa), a mala do poncho (este é a coberta do

gaúcho) e o „gospe-fogo‟ no cinto (o 32 é a garantia de quem anda por esse

mundo com a guaiaca recheada de „plata‟)”.288

O esforço para mostrar vivo o “gaúcho a cavalo” já pode, aparentemente, ser menor

nos novos textos de Barbosa Lessa. Entretanto, esta avaliação acaba se revelando precipitada

se atentarmos para a sua intensa atividade naquele momento. Parece-me, na verdade, que a

“presentificação” do mito diversifica-se. Provar sua existência ocupará, por algum tempo,

como dito e como veremos, espaço no horizonte intelectual de Barbosa Lessa, mas o próprio

mito torna-se complexo à medida que sua atualização agrega novos sinais, combina outros

elementos e observa diferentes princípios. A tarefa passa a ser, então, a de “inventariar” a

tradição. E traçar o repertório de símbolos, práticas, costumes e adereços gauchescos

significa, ao mesmo tempo, definir e conduzir o novo ethos tradicionalista. O certo e o errado,

o falso e o autêntico, dão forma às regras normativas e prescritivas que delimitam a ação dos

novos gaúchos, do campo e da cidade. Mas ainda é preciso aproximá-los. E é justamente um

dos “símbolos do gauchismo” presente no cotidiano de muitos dos habitantes do Estado que

une os “homens de bombacha” das tropeadas àqueles dos CTGs, mas também aos gaúchos

gentílicos, homens e mulheres, em suas roupas de Brim Coringa289

: o chimarrão.

Em abril de 1950, nosso autor publicou no Correio do Povo suas notas para a história

da bebida. No rápido texto, Lessa saudava o uso da erva-mate pelos fundadores do Rio

Grande: “Índios e lagunistas, espanhóis e açorianos – todos buscavam na „caá-i‟ a maneira

mais proveitosa de encher de paz e de doçura os dias agitados daquele Rio Grande que nascia

dos entrechoques guerreiros”.290

O chimarrão acompanha, na narrativa, o desenvolvimento (e

os revezes) da região. No decênio farroupilha, seu prestígio lhe confere um lugar no brasão

287

Ibidem, p. 52. 288

Ibidem, p. 52-53. 289

Segundo o histórico da empresa São Paulo Alpargatas S.A, o tecido fora lançado no Brasil após o fim a II

Guerra Mundial. Com ele fabricou-se a primeira calça jeans do país. Ver Linha do tempo disponível em:

http://www.alpargatas.com.br/empresa/historia.htm. Acesso em 10 de setembro de 2009. 290

LESSA, Luiz Carlos. Notas para a história do chimarrão. Correio do Povo. Porto Alegre, 20/04/1950, p. 7.

97

republicano. Finda a guerra, a exploração da erva-mate alcançara o “máximo esplendor”.

Esplendor conservado até o presente: “Hoje, no Rio Grande do Sul, nada menos de 50.000

pessoas vivem da indústria e do comércio do mate, fazendo com que não falte ao lar de cerca

de 1.000.000 de rio-grandenses a sua bebida quotidiana”.291

O consumo generalizado é

ressaltado: “36 municípios gaúchos dedicam-se à exploração de ervais, apresentando uma

produção anual de cerca de 18 milhões de quilos. E toda esta riqueza se exgota (sic) no

próprio Estado, pois dos 21 milhões de quilos que o Brasil consome atualmente, nada menos

de 18 milhões se dirigem ao consumo dos gaúchos”.292

Se historicamente o uso do mate fora

lenitivo ao cansaço das longas marchas no Pampa, disfarçava o gosto das águas salobras e

auxiliava a digestão do churrasco mal-assado e sem sal, o sorver do chimarrão tornara-se

também ritual de comunhão e integração dos povos que aqui chegaram:

“Se, num primeiro contato com a nova querência, esses homens, vindos às

vezes de terras longínquas, se sentem oprimidos de angústia e tristeza –

tristeza na recordação da pátria distante, angústia na incerteza da acolhida que

vão ter – por certo esses sentimentos deprimentes se enfumam (sic) ante a

hospitalidade crioula. Pois é nesse momento que o tradicional hábito de

fidalguia dos rio-grandenses – integrando a alma regional na totalidade

nacional – retrata toda a receptividade da alma brasileira no gesto amigo do

velho campesino a oferecer ao recém-vindo a cuia do chimarrão que, uma vez

sorvido – no trago tímido do iniciado – transfunde no corpo as suas

propriedades revigorantes, e presenteia a alma com uma mensagem fraternal,

que consubstancia a certeza da descoberta de uma nova pátria e a antecipação

de uma carta nova de cidadania...”.293

A disseminação generalizada da prática “gaúcha” do chimarrão na sociedade sul-rio-

grandense legitima, dessa forma, o projeto tradicionalista, mas também lhe fornece o primeiro

rito.294

Se, como dito, o hábito faz o monge, o Rio Grande é todo gaudério. A apropriação

deste ritual, por sua vez, permite a integração de novos indivíduos nas fileiras do movimento.

A roda de chimarrão, enfim, passa a propagar outros elementos do imaginário tradicionalista.

O “inventário” de Barbosa Lessa seleciona, elabora e articula tais elementos. Este é o período

de construção da ritualística encenada nos palcos dos centros de tradições, como veremos no

291

Ibidem, p. 12. 292

Ibidem. 293

Ibidem. 294

O uso de repertórios culturais pré-nacionalistas fora apontado por Ernest Gellner como característica dos

processos de construção das nações no século XIX. A apropriação de elementos existentes em configurações

sociais antecedentes não pode, entretanto, mascarar a novidade representada pela idéia de nação. Ver

GELLNER, Ernest. Nações e nacionalismos: trajectos. Lisboa: Gradiva, 1993. Os regionalismos, que se valem

de estratégias semelhantes aos nacionalismos, também podem se apresentar como o despertar de elementos

imemoriais e identidades quase naturais, através de “matérias-primas” do mundo preexistente. No quarto

capítulo, acompanharemos as operações efetuadas pelo tradicionalismo gaúcho para a formalização de seus

rituais.

98

capítulo IV. A pesquisa folclórica e a criação artística, dessa forma, andavam de mãos dadas

no(s) projeto(s) de nosso personagem. Ainda que suas memórias autobiográficas relatem o

afastamento, por motivos pessoais, do “35” CTG, após sua gestão como patrão295

, o foco de

suas atividades intelectuais era, no momento, a construção do tradicionalismo. Entre 1950 e

1952, Lessa se dedicou à recolha de danças e cantos folclóricos no interior do Estado,

juntamente com Paixão Côrtes. Fruto do empreendimento é o “Manual de Danças Gaúchas”,

publicado em 1956, mesmo ano do lançamento do LP “Danças Gaúchas”, na voz de Inezita

Barroso. A empresa se refletiu, também, na produção de seus primeiros textos “de fôlego”.

Em paralelo ao folclore, Barbosa Lessa desenvolveu suas “Notas” na obra História do

Chimarrão, publicada pela Editora Sulina no ano de 1953. Neste livro, apesar do título, a

narrativa histórica ocupa menos da metade das páginas. Quatro décadas depois, nas orelhas de

sua terceira edição, lê-se o seguinte: “Eis aqui um livro que realmente vale por três. Seus

autores são o respeitado historiador Barbosa Lessa, o arguto repórter Barbosa Lessa e o

premiado ficcionista Barbosa Lessa”.296

Na obra, o repórter narra as delícias de um mate bem

cevado e nos ensina o preparo da erva, o ficcionista nos brinda com contos e “causos” sobre

tal hábito gaúcho e o historiador considera que a história da erva-mate só começou no

momento de seu contato com os primeiros conquistadores brancos. A fundação de Assunção

do Paraguai seria marcada, conforme a narrativa de Lessa, pelas controvérsias em torno da

bebida. Produto utilizado pelos pajés, fora inicialmente renegado pelas autoridades religiosas

e laicas. Mas a disseminação do hábito entre as novas conglomerações do Peru e do Prata

tornaram a exploração da folha importante sustentáculo econômico do povoado. E com isso,

os preconceitos foram vencidos: após a morte do governador da Província do Paraguai Árias

de Saavedra,

“...um tenente-general e o administrador do bispado romperam tais

preconceitos e se entregaram desbragadamente ao uso da erva-mate. Até

então a bebida guarani conquistara apenas as classes populares, recebendo

certa repulsa da elite colonial; mas, a partir daquele exemplo, nada mais

houve capaz de conter a definitiva expansão da „caá-i‟”297

No Brasil, segundo Barbosa Lessa, a erva-mate chegou com a União Ibérica de 1580.

A livre circulação de produtos permitiu sua disseminação pelas regiões que futuramente

comporiam os estados do Paraná, Santa Cataria e parte do Mato Grosso. Com a expulsão da

295

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. Prezado Amigo Fulano: meio século de correspondência – 1950-2000. Op.

cit., p. 35. 296

Idem. História do Chimarrão. 3a edição. Sulina: Porto Alegre, 1986.

297 Ibidem, p. 19.

99

Companhia de Jesus e o fim do cultivo da erva nas regiões missioneiras, o Brasil se tornou o

único competidor do Paraguai na sua produção. Grande parte dela era enviada às províncias

argentinas e ao Uruguai. Como já anunciado pelo autor em suas “Notas” no Correio do Povo,

o montante cultivado no Rio Grande do Sul, que chegaria a 18 milhões de quilos em 1949, era

consumido pela própria população do Estado. Daí o vínculo entre o chimarrão e o gaúcho

brasileiro:

“O grande papel já então desempenhado pelo mate em nossa sociedade pode

ser avaliado por sua presença dentre os símbolos nacionais farroupilhas.

Numa festa noticiada pelo O Povo, órgão oficial da República, os homens

traziam como distintivo „ramos de erva-mate atados com as cores nacionais‟.

O primeiro projeto de bandeira da República, apresentado pelo Pe. Chagas,

não se limitava às três faixas de cor verde/amarelo/vermelho mas continha

também „um campo branco, tendo pintado um boi, um gaúcho na ação de

laçar e, ao lado, a árvore do mate‟”.298

Na segunda metade do texto, o autor trata das características do chimarrão e do modo

de prepará-lo. No momento em que os CTGs buscavam reviver nas cidades os costumes de

uma figura rural que para muitos estaria extinta ou em vias de extinção, Lessa escreveu o

seguinte: “Só o chimarrão permanece como tradição fundamental do gaúcho, elevando-se ao

patamar de um símbolo imorredouro e inconfundível”. Um jangadeiro sem sua jangada perde

sua caracterização, nos diz o autor, assim como o gaúcho sem o seu cavalo tende a perder sua

identidade. Todavia, continua, mesmo “sem o cavalo e sem o galpão, o gaúcho readquire

instantaneamente sua tipicidade no momento em que leva aos lábios a bomba do

chimarrão”.299

As preocupações de Barbosa Lessa no que dizem respeito à configuração de

um projeto intelectual baseado na figura do gaúcho, que se estenderiam ao projeto

tradicionalista, ainda englobam, assim, as tentativas de provar a existência “atual” do

campeiro, embora metamorfoseado. Passados cinco anos da fundação do 35 CTG e do

movimento tradicionalista, que contava, cada vez mais, com jovens que passavam longe de

um cavalo em seus “galpões”, a resposta já se aproximava mais da posição de Moysés

Vellinho: o gaúcho de outrora habitava a alma do sul-rio-grandense. A cavalo ou a pé, no

campo ou na cidade, o simples sorver de um mate amargo reanimava seu semblante.

* * *

298

Ibidem, p. 39. 299

Ibidem, p. 65.

100

A “poética” acabaria, dessa forma, por configurar uma “gramática” da tradição e a

observação de determinadas práticas e princípios no cotidiano estenderia a qualquer pessoa os

signos (e as prerrogativas) da identidade afirmada. Os escritos de Barbosa Lessa deveriam

converter “representações objetais” em “representações mentais”. Dessa forma, os artefatos

culturais se transformariam, lentamente, em esquemas de percepção. A estética se

transmutaria em ética, em um conjunto de regras e valores que guiariam a ação social. A

definição dessa ética tradicionalista passaria, então, a ocupar o centro das atenções de nosso

escritor. Em junho de 1953, Luiz Carlos (agora) Barbosa Lessa assume, em colaboração com

Sady Scalante, militante tradicionalista, uma coluna no Diário de Notícias por cerca de dois

meses. O texto inaugural de “Tradição” informa seus objetivos: “auxiliar aos Centros de

Tradições Gaúchas na nobre tarefa que eles vêm desenvolvendo, com tamanho

entusiasmo”.300

A natureza de tal tarefa não é descrita (diretamente), mas questionada na

primeira seção da coluna, intitulada “O sentido e o valor do tradicionalismo”:

“Qual a finalidade precípua do tradicionalismo?... Proporcionar danças

folclóricas? Patrocinar churrascos? Lutar por uma volta ao passado? É um

movimento separatista? É palhaçada? É um movimento cultural? Tem

reflexos na arte, na literatura, na política? Luta pela melhoria das condições

sociais do homem do campo? Qual seu conteúdo filosófico? Pode se falar

numa Doutrina do Tradicionalismo?”.301

As respostas deveriam ser construídas coletivamente. Barbosa Lessa e Sady Scalante

solicitavam, então, a colaboração dos dirigentes dos Centros de Tradições Gaúchas, que

deveriam lhes enviar seus pontos de vista sobre a finalidade do movimento. A maioria das

questões parece ter, entretanto, um tom retórico. Afinal, algumas de suas “soluções” já

haviam sido apontadas três anos antes no texto de apresentação do primeiro informativo do

“35” CTG, como vimos acima. Se o tradicionalismo deveria promover o estudo e a

divulgação de todas as atividades artísticas, intelectuais e “campeiras” fundamentadas na

figura do gaúcho a cavalo, enquanto “movimento cultural” não poderia ser encarado como um

projeto de mero retorno ao passado, ainda que seus passos em direção ao futuro se baseassem

nos valores da “heróica” história do Rio Grande do Sul. Se a estética configura também uma

ética, como dito, a ética deveria comportar uma política. A citada “doutrina tradicionalista”

estaria em elaboração no momento e, portanto, nosso autor também deveria disputar sua

definição. Este é o objeto do próximo capítulo.

300

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos, SCALANTE, Sady. Tradição. Diário de Notícias. Porto Alegre,

16/06/1953, p. 3. 301

Ibidem.

101

Capítulo III - A política do mito: o homem do campo e o “sentido” do projeto

tradicionalista de Barbosa Lessa

Em 1953, o recém Bacharel em Direito Barbosa Lessa partiu rumo a São Paulo para

desenvolver a carreira de jornalista e trabalhar como consultor regionalista da Companhia

Cinematográfica Vera Cruz302

e, em seguida, redator e produtor de programas na TV Record

e, mais tarde, na TV Excelsior. Em meio a isso, não perdeu sua ligação com o movimento

tradicionalista. Em 1954, participou do I Congresso Tradicionalista Gaúcho, ocorrido na

cidade de Santa Maria. O evento congregou adeptos do movimento que se espalhavam pelo

Estado e os diversos CTGs já fundados tendo como modelo o “35”. Nele, nosso personagem

defendeu um texto de fundamentação sociológica que caracterizava o movimento, batizado

com o título da referida seção da coluna Tradição, “O Sentido e o Valor do Tradicionalismo”,

o que denota seu empenho para responder as interrogações nela colocadas e formular uma

doutrina tradicionalista coerente e sistemática. Tal texto ainda hoje é considerado a matriz

teórica do tradicionalismo, juntamente com as teses “A função aculturadora dos centros de

tradições gaúchas”, de Carlos Galvão Krebs, aprovada no II Congresso Tradicionalista,

realizado na cidade de Rio Grande em julho de 1955; “Carta de Princípios do Movimento

Tradicionalista do Rio Grande do Sul”, de Glaucus Saraiva, aprovada no VIII Congresso

Tradicionalista, ocorrido no município de Taquara, em julho de 1961 e “A função social do

MTG”, redigida por Antonio Augusto Fagundes sob a orientação de Onésimo Carneiro

Duarte, aprovada em julho de 1984 na Convenção Tradicionalista de Lagoa Vermelha.303

302

O convite se dera por ocasião da adaptação de Ana Terra, da obra de Erico Verissimo, pela Companhia.

Segundo as memórias de Barbosa Lessa, a indicação de seu nome fora feita pelo próprio Verissimo. BARBOSA

LESSA, Luiz Carlos. Prezado amigo fulano. Op. cit., p. 64-65. A colaboração com Sady Scalante na coluna

Tradição por dois meses acontecera entre idas e vindas de São Paulo a Porto Alegre. Em julho daquele ano, a

coluna noticia a passagem de uma equipe da Vera Cruz pelo Estado para conhecer os costumes gaúchos e

encontrar locações para as filmagens. Na edição de 17 de julho de 1953, Barbosa Lessa e Sady Scalante saúdam

com entusiasmo o empreendimento e conclamam todos os gaúchos a auxiliar a Companhia: “Nada sabemos da

linha que tomará esse filme: se será um filme épico ou simplesmente um relato de nossos tradicionais costumes.

De qualquer forma, porém, cremos que é dever para todos aqueles que se interessam pelo Rio Grande, colaborar

com a „Vera Cruz‟ na realização dessa película que, pela primeira vez, espalhará por todo o Brasil, pela América

e Europa, nossos costumes, nossa história, nosso folclore, nossas danças e músicas. Todos aqueles que se

interessam pela salvaguarda da fisionomia tradicional do gaúcho devem estar unidos para que „Ana Terra‟ se

constitua num retrato da alma do Rio Grande”. BARBOSA LESSA, Luiz Carlos, SCALANTE, Sady. Tradição.

Diário de Notícias. Porto Alegre, 17/07/1953, p. 5. 303

FAGUNDES, Antonio Augusto. Op. cit., p. 43.

102

Antes de comentar este texto, apresentarei alguns aspectos do debate que permeava o

movimento no período, através, principalmente, da correspondência de Barbosa Lessa,

cotejando-o com as disputas políticas travadas no Rio Grande do Sul no período que se seguiu

ao fim do Estado Novo. Isso nos ajudará a compreender a referida tese como um ato político

de intervenção de nosso escritor não somente nos rumos do tradicionalismo, mas também nas

diretrizes que deveriam guiar a sociedade gaúcha de então.

3.1 – Paragens distantes, idéias inquietantes: o tradicionalismo e a fixação do campeiro

no meio rural

No seu “exílio” em São Paulo, Barbosa Lessa trocara constantemente missivas com

familiares, mas também com militantes do tradicionalismo. Em carta redigida à sua prima

Eliza, no dia 3 novembro de 1952, encontramos uma primeira referência à proposta de

reforma do movimento dirigida por nosso autor aos membros do 35 CTG. Esta visaria à

reformulação dos estatutos e do regimento interno da entidade, buscando ampliar sua relação

com os demais centros e, assim, tomar a frente na construção de uma federação

tradicionalista.304

Em missiva remetida a Barbosa Lessa, em 9 de março de 1953, por seu

colega de movimento Fernando Brockstedt, presidente da União Gaúcha305

, da cidade de

Pelotas, fica claro que tal reforma também previa a discussão do caráter político do

tradicionalismo:

“Qualquer que seja a época e o local, porém, será a hora de sacudirmos nosso

Movimento com uma reforma radical, de base, fazendo com que nossas

atuais atividades sejam um meio para alcançarmos um fim em si. Acredito

que, nesta última assembléia do „35‟, no dia 5, teu projeto de reestruturação

tenha visado a esta ampliação de finalidades, fazendo com que estas se

manifestem favoráveis a uma tentativa de assistência socioeconômica ao

nosso homem do campo e permitam que a gente se imiscua em assuntos de

relevância atual para o nosso Estado”.306

Alguns dias depois, em 20 de março, outra carta foi enviada a Barbosa Lessa por seu

primo e militante tradicionalista Oswaldo, na qual a mesma questão aparece associada às

“coisas fúteis”:

304

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. Prezado Amigo Fulano. Op. cit., p. 49. 305

A União Gaúcha foi a primeira sociedade regionalista do Estado, fundada em 1899. Com o surgimento do

tradicionalismo, a entidade, que encerrara suas atividades depois de alguns anos, fora refundada em 1950,

seguindo os mesmos padrões dos novos CTGs e incorporando ao seu nome o do escritor Simões Lopes Neto. 306

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. Op. cit., p. 51.

103

“A verdade é que temos que adaptar as entidades do Rio Grande aos

solavancos da nossa época. Não podemos fazer do „35‟, nem da União

Gaúcha, nem de qualquer outro Centro, entidades de exclusivo trabalho

cultural e produtivo. Devemos pôr, ao lado das coisas sérias, as coisas fúteis,

as diversões ao estilo brasileiro, que atraem e trazem a mocidade e a

sociedade em geral”.307

Em 2 de maio, Barbosa Lessa respondeu a Fernando Brockstedt, em tom de

confidência, demonstrando hesitação sobre sua participação no movimento e sobre os rumos

que este tomava:

“O objetivo desta carta é retribuir, em dose mínima, a explanação de tuas

idéias. Mas Fernando, sinceramente, a esta altura dos acontecimentos, não sei

o que eu atualmente penso a respeito do Tradicionalismo. Ao

desencadearmos o Movimento eu tinha uma paixão a me orientar, mas, de

1950 para cá, minha cabeça tem sentido nós incríveis e chego muitas vezes a

imaginar que tudo é um sonho, idealismo demasiado, utopia”.308

Sua insatisfação parecia vir do caráter preponderantemente “idílico” do

tradicionalismo:

“Nesses anos que venho me debatendo por nossas tradições, somente

encontrei um punhadinho de pessoas que pensam de modo semelhante a

mim. Essas pessoas são: em primeiro lugar, tu, e depois Hugo Ramírez309

e J.

P. Coelho de Souza310

; um dos maiores entusiastas é o Sr. Manoelito de

Ornellas311

, que viu todo o alcance cultural do „35‟ mas nada viu em seu

alcance socioeconômico. Ora, quando três pessoas pensam de um jeito (aliás,

devo incluir também meu primo Oswaldo, aí da União Gaúcha), mas

centenas de outras pensam de modo contrário, a gente termina por se

convencer de que está pensando erradamente...”.312

Mas a constatação não significava desistência. Ao contrário, era encarada como

contingência e desafio:

“Toca em frente as reuniões preparatórias da Federação, que há de dar certo.

Devido ao destaque alcançado pela „Ronda‟ de setembro promovida pelo „35‟

307

Ibidem, p. 52. 308

Ibidem, p. 54. 309

Militante do Movimento que participava, então, da organização do I Congresso Tradicionalista, onde ocupara

a função de 3o Vice-presidente.

310 Trata-se do então deputado pelo Partido Libertador, Secretário Estadual da Educação no governo do

interventor Cordeiro de Farias, membro do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, e que fora

convidado por Barbosa Lessa, em 1950, quando este ocupava o cargo de “Patrão” (equivalente a “Presidente”)

do 35 CTG, para assumir a função honrosa de “Posteiro” da entidade na Capital Federal. No mesmo ano, obteve

verba federal para auxiliar o 35 CTG a sanar suas dificuldades financeiras, como fica explícito em carta de

agradecimento enviada a ele por Barbosa Lessa (sem data). Ibidem, p. 36. 311

Já vimos como este escritor saúda o nascimento do tradicionalismo. Segundo Letícia Borges Nedel, Ornellas

foi um dos poucos “folcloristas polígrafos” que atuou dentro do Movimento. Ver NEDEL, Letícia Borges, op.

cit. 312

Ibidem.

104

em Porto Alegre, talvez fosse o caso de vocês transferirem para a capital a

reunião prevista para aí, realizando-a simultaneamente à „Ronda‟. Para 90%

dos tradicionalistas, o que interessa é baile e churrasco. Não podemos

esquecer disto. Temos de conceder algo nesse sentido para que eles também

concedam algo em nosso favor”.313

Pode-se tecer ao menos duas hipóteses respaldadas pelas missivas. Primeiro, mesmo

estando no centro do país, o autor continuava não só a atuar no movimento, mas a ocupar

posição de vanguarda no delineamento de seus rumos, ao oferecer sugestões e dar diretrizes

para a organização do Congresso. Ele se constituía, portanto, em uma “autoridade” política e

intelectual do tradicionalismo, elaborando e arbitrando o legítimo e o ilegítimo (ou o que

assim deveria ser considerado), e, ao mesmo tempo, em um representante da coerência e da

estabilidade da identidade do grupo, e também da identidade gaúcha por ele construída. A

segunda hipótese diz respeito à sua maneira de encarar, no momento, as manifestações

culturais do tradicionalismo: um agradável atrativo para aliciar novos combatentes de uma

causa maior. Daí, também, o pendor pedagógico que viria a pautar os seus textos, como fica

claro na tese de 1954. A análise do texto nos permitirá perceber ainda que o projeto

tradicionalista, da maneira como fora idealizado por Barbosa Lessa, teve, em seus anos

iniciais, um propósito político “não elitista”, à medida que seleciona como seu foco de

atenção aquele gaúcho “popular”, “de uso platino” e literário, que se opunha ao gaúcho “de

uso brasileiro” e historiográfico.

Tal posição é assumida nos textos de Barbosa Lessa (e de seus companheiros)

endereçados aos militantes tradicionalistas no período. Na primeira edição da coluna

Tradição, na seção que originaria a tese defendida no I Congresso Tradicionalista, Barbosa

Lessa e Sady Scalante transcreveram artigo de Fernando Brockstedt em que o “popular” e a

“tradição” são motivos de reflexão: “O próprio conceito de povo exige uma série de hábitos e

costumes mais ou menos estáveis. É preciso que haja uma continuidade nos mesmos para

permitir a sobrevivência do povo, que se extinguiria, que seria absorvido por outros, que se

tornaria outro, não existindo aqueles fatores atávicos”.314

O tradicionalismo deveria, assim,

cumprir uma função de amparo cultural ao “povo gaúcho”. “Cultivar” as tradições significaria

manter a coesão deste popular a que o projeto tradicionalista se dirigiria. Tal perspectiva se

desdobraria no apoio a atividades de outras naturezas que também auxiliassem a vida do

campeiro. Na mesma edição de Tradição, por exemplo, Barbosa Lessa e Sady Scalante

313

Ibidem, p. 54-55. 314

BROCKSTEDT, Fernando. O sentido e o valor do tradicionalismo. In.: BARBOSA LESSA, Luiz Carlos,

SCALANTE, Sady. Tradição. Diário de Notícias. Porto Alegre, 14/06/1956, p. 3.

105

parabenizavam o movimento organizado pelas “classes produtoras” de Erechim solicitando ao

Exército Nacional a instalação de uma guarnição no município:

“O motivo de tal campanha – cuja simples enunciação já dispensa qualquer

comentário, por evidente racionalidade – é buscar a fixação do homem do

campo, impedindo que os jovens agricultores, em idade de servir, abandonem

o campo para – o que é usual – não mais retornarem ao meio em que exercem

tão importante atividade, iludidos que ficam pelas luzes da cidade”.315

A crítica da pauperização do homem do campo, e das condições adversas por ele

enfrentadas na cidade, estivera presente nos primeiros escritos jornalísticos de Barbosa Lessa,

como vimos. Mas o processo social que originara o “gaúcho a pé” ultrapassava os debates

literários e envolvia disputas entre projetos políticos para o Estado no período. Conforme

apontado por Sandra Jatahy Pesavento, os problemas sociais ligados ao desenvolvimento do

capitalismo no campo e na cidade recrudesceram nos anos quarenta e cinqüenta devido ao

cercamento total das terras, à concentração da propriedade nas mãos de poucos latifundiários

e à crise da economia agropecuária enfrentada pelo Rio Grande do Sul durante os anos da

ditadura Vargas. A baixa remuneração do trabalho rural, aliada à dispensa de mão de obra

pela introdução de tecnologia nos métodos de criação, acentuou o processo de êxodo rural que

já se manifestara na década de trinta.316

Este quadro condicionava a definição dos programas

dos partidos políticos que surgiram ou se rearticularam com o fim do Estado Novo. O Partido

Social Democrático (PSD)317

e o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) passaram a polarizar

as discussões acerca do desenvolvimento econômico do Rio Grande, alternando governos

com posturas opostas318

: marcado pelo ruralismo, o primeiro apostava numa industrialização

que beneficiasse os produtos oriundos da agropecuária como solução à crise; o segundo sentia

como imprescindível a necessidade de assegurar a proeminência da “sociedade urbano-

industrial” sobre a “sociedade agrária tradicional”.319

Próximo ao PSD encontrava-se o Partido Libertador (PL), que contava em seus

quadros com o entusiasta do movimento J. P. Coelho Neto, citado em missiva de Barbosa

Lessa e com o qual nosso autor trocava correspondência. Segundo Pesavento, o PL

315

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos, SCALANTE, Sady. Ibidem. 316

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História do Rio Grande do Sul. 9a edição. Porto Alegre: Mercado Aberto,

2002, p. 116. 317

Segundo Pesavento, o PSD se formara agregando elementos dos antigos Partido Republicano Rio-Grandense

(PRR) e Partido Republicano Liberal (PRL), representando os interesses básicos dos políticos tradicionais.

Ibidem, p. 120. 318

Da abertura política até o golpe civil-militar de 1964 os dois partidos se revezaram no poder sob o comando

de Walter Jobin (1947-1951) e Ildo Meneguetti (1955-1959 e 1963-1964) pelo PSD e de Ernesto Dornelles

(1951-1955) e Leonel Brizola (1959-1963) pelo PTB. 319

Ibidem, p. 126.

106

representava o setor rural mais apegado à estrutura agrária e defendia a agropecuária como

resposta para atingir o progresso econômico. Ainda que o tradicionalismo organizado não

comportasse a adesão à política partidária, as relações entre os líderes do movimento com a

classe política local320

, bem como a inserção de grande parte de seus adeptos nas camadas

sociais oriundas dessa economia agro-pastoril321

, refletia-se na conformação do ideário

político dos tradicionalistas.

A segunda grande questão que se colocava aos partidos no momento322

, a do êxodo

rural, também unia PL e PSD em uma proposta de solução do problema: tratar-se-ia de conter

as massas no campo. Para Sandra Pesavento, “a permanência do trabalhador no campo era,

segundo a perspectiva do PSD, tanto um fator de progresso para o setor primário e, por

extensão, para o secundário, quanto era um fator de estabilidade social”.323

A campanha

saudada por Barbosa Lessa e Sady Scalante vinha, assim, ao encontro desta posição. Para

estes autores, então, a melhor maneira de fixar os gaúchos no meio rural seria seu

acompanhamento por políticas públicas. Os CTGs poderiam, desta forma, não somente

fomentar a coesão cultural de tal população, mas também auxiliar o Estado em sua assistência

social. Duas semanas depois da publicação da notícia sobre a iniciativa dos cidadãos de

Erechim frente ao Exército Nacional, os colunistas divulgavam com entusiasmo as medidas

desenvolvidas por um Centro de Tradições Gaúchas:

“O „35‟ de Palmeira das Missões, (sic) iniciou sua obra de assistência social,

entregando uniformes e utensílios escolares para 40 estudantes primários,

filhos de campeiros pobres. O patrão Fernando Gonçalves anuncia o próximo

funcionamento de um Curso de Alfabetização para adultos, homens do

campo. O „35‟ de Palmeira vem, assim, ponteando os centros tradicionalistas

na obra de efetiva assistência social”.324

320

Como lembrado por Letícia Nedel, o pai de Barbosa Lessa fora amigo e correligionário de Coelho de Souza.

NEDEL, Letícia Borges. Op. cit., p. 148. 321

A origem rural de parte dos primeiros militantes tradicionalistas já fora apontada nos trabalhos clássicos de

Tau Golin e de Ruben Oliven. A influência do ideário político dos grupos rurais e mesmo da “cultura campeira”,

na falta de melhor denominação, no pensamento dos teóricos do tradicionalismo não pode ser negligenciada. De

outro lado, como busco efetivar aqui, tais aspectos devem ser encarados apenas como algumas das possíveis

fontes para a articulação do novo imaginário tradicionalista. O contrário poderia nos levar à simples e mecânica

conclusão de que a “tradição” cultivada pelo movimento seria o mero transplante de hábitos e costumes do meio

rural (esquecendo o importante papel da escrita erudita no caso, por exemplo, da formulação do projeto

tradicionalista de Barbosa Lessa, como temos visto) ou atrelar ideologicamente todos os projetos ou alternativas

presentes na constituição do movimento de forma demasiado estreita aos interesses dos grandes proprietários de

terra, como fizera a crítica marxista da década de oitenta. 322

O terceiro ponto crucial seria o papel dos investimentos estrangeiros nos setores de transportes e

comunicação. 323

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Op. cit., p. 126-127. 324

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos, SCALANTE, Sady. Tradição. Diário de Notícias. Porto Alegre,

28/06/1953, p. 3.

107

Para que o exemplo não se tornasse caso isolado e para que o movimento superasse o

plano do idílico, Barbosa Lessa propunha aos tradicionalistas, em sua tese, uma postura

política ativa em prol do homem do campo. No entanto, como veremos a seguir, nosso autor

acabaria por denunciar os males da ordem capitalista defendida pelos partidos políticos com

os quais parte dos militantes do movimento tinha maior proximidade, através da mesma

perspectiva romântica com a qual redesenhava o gaúcho folclórico.

3.2 – Uma doutrina para a tradição: “apropriação” e romantismo político na tese de

Barbosa Lessa

Em “O Sentido e o Valor do Tradicionalismo”, nosso autor descreve uma realidade de

desintegração social no Rio Grande do Sul devida ao enfraquecimento das culturas regionais e

ao corolário desaparecimento gradativo dos “grupos locais” como comunidades transmissoras

de cultura.325

O autor inicia o texto expondo sua concepção sobre as relações entre

“indivíduo”, “sociedade”, “cultura” e “tradição”. A sociedade é apontada como a principal

força na luta pela existência. Para que isso ocorra, no entanto, é necessário que os indivíduos

possuam “modos de agir e pensar coletivamente”, obtidos a partir da “herança social”, ou

seja, da cultura. A tradição é, então, entendida como um conjunto de técnicas cuja função

seria a transmissão, de geração a geração, da cultura local. Em seguida, o autor apresenta sua

avaliação sobre o período em que escrevia: “A cultura e a sociedade ocidental estão sofrendo

um assustador processo de desintegração. Incluídas nesse panorama geral, a cultura e a

sociedade de quaisquer dos povos ocidentais necessariamente apresentam, com maior ou

menor intensidade, idêntica dissolução”.326

A tese se baseia na leitura que Barbosa Lessa fez dos textos dos norte-americanos

Ralph Linton, antropólogo, e Donald Pierson, sociólogo formado pela Universidade de

Chicago, quando fora aluno deste último na Escola de Sociologia e Política de São Paulo, em

1953. Segundo Oliven, tanto Linton quanto Pierson “estavam preocupados com os efeitos do

crescimento da população, com as conseqüências da urbanização e as modificações que

325

O texto analisado fora editado diversas vezes, desde sua defesa no I Congresso Tradicionalista. No entanto,

seu conteúdo não passou por alterações que não de adaptação aos novos padrões gramaticais. Nesse sentido,

utilizarei, para fins de citação, a última edição da tese, publicada em 2006 como encarte do livro ilustrado

póstumo “Gaúcho: o campeiro do Brasil”. 326

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. O Sentido e o Valor do Tradicionalismo. In: ________ . Gaúcho: o

campeiro do Brasil. Florianópolis: Letras Brasileiras, 2006, p. 74.

108

ocorrem na família e no grupo local, problemática recorrente nas ciências sociais naquela

época”.327

Para Gilberto Velho, as principais questões que alimentaram o estudo das relações

entre indivíduo e sociedade, não somente na Escola de Chicago, mas em toda a sociologia

norte-americana, foram profundamente marcadas pelos “desdobramentos intelectuais do

evolucionismo natural e social”. Nesse sentido, a obra de Darwin teria forte repercussão nas

preocupações destes sociólogos com o estabelecimento de uma sociedade democrática e

balizaria mesmo as chamadas questões básicas ou desafios da Escola, a saber: “como é

possível haver uma sociedade? Como se constitui uma sociedade?”.328

Juarez Rubens

Brandão Lopes aponta outra fonte de inspiração para os escritos e as aulas dos pesquisadores

de Chicago: o pensamento do sociólogo alemão Ferdinand Tönnies e sua “idéia do

desmanchar da comunidade, e a formação, o aparecimento, de uma sociedade”.329

A articulação dessas problemáticas e influências efetuada pelos dois autores citados

por Barbosa Lessa em sua tese faz eco às questões que buscava responder desde 1953, pelo

menos. Em entrevista concedida a Ruben Oliven, em outubro de 1983, nosso autor relatara

que, após o abandono do curso da Escola de Sociologia e Política, em fins de 1953, trouxera

para a fazenda da família, no município de Piratini, exemplares dos livros “Teoria e Pesquisa

em Sociologia”, de Donald Pierson, e “O homem: uma introdução à antropologia”, de Ralph

Linton, cuja leitura julgara uma “revelação”:

“Como eu estava muito imbuído dos assuntos tradicionalistas, eu fui vendo

até que ponto se encaixava naquilo que nós estávamos fazendo, foi quando

aprendi conceito de sociedade, conceito de cultura, conceito de tradição,

conceito de visão cultural, e por aí afora, todos aqueles conceitos básicos que

eu percebi que dava para formar uma coisa boa”.330

Oliven considera o depoimento de Barbosa Lessa “um exemplo expressivo de como o

saber produzido por acadêmicos se torna senso comum”. Conseqüentemente, avalia que “o

Movimento Tradicionalista Gaúcho [“leitor” de Lessa] é, sem sabê-lo, um dos maiores

difusores das idéias das ciências sociais norte-americanas da década de quarenta”.331

A

filiação do texto de Barbosa Lessa aos escritos dos teóricos citados é clara e inegável, mas a

interpretação de Oliven deve ser matizada nos seguintes aspectos: primeiro, só podemos

327

OLIVEN, Ruben George. A parte e o todo: A Diversidade cultural no Brasil-Nação. 2a edição. Op. cit, p. 115.

328 VELHO, Gilberto. Reflexões sobre a Escola de Chicago. In: VALLADARES, Licia Prado. A Escola de

Chicago: impacto de uma tradição no Brasil e na França. Belo Horizonte: Editora UFMG, Rio de Janeiro:

IUPERJ, 2005, p. 60-61. 329

LOPES, Juarez Rubens Brandão. A Escola de Chicago ontem e hoje: um depoimento pessoal. In:

VALLADARES, Licia Prado. A Escola de Chicago: impacto de uma tradição no Brasil e na França. Belo

Horizonte: Editora UFMG, Rio de Janeiro: IUPERJ, 2005, p. 38. 330

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos apud OLIVEN, Ruben George. Op. cit, p. 116. 331

OLIVEN, Ruben George. Ibidem.

109

considerá-lo como apropriação do “conhecimento acadêmico” pelo “senso comum” se

esquecermos que Lessa possuía formação acadêmica, tendo concluído o bacharelado em

Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e, como vimos, iniciado estudos de

pós-graduação em Sociologia durante a estadia em São Paulo, onde tomara contato com as

obras citadas; segundo, o papel das teorias de Pierson e Linton no projeto tradicionalista de

Barbosa Lessa só pode ser corretamente avaliado se examinarmos sua adequação aos

fundamentos do regionalismo literário gaúcho, ou melhor, ao tipo específico de gauchismo

defendido pelo autor e à sua atuação tradicionalista. Nesse sentido, a análise de “apropriação”

aqui empreendida pretende ir ao encontro da proposta de Chartier, que visa uma “história

social dos usos e das interpretações, relacionados às suas determinações fundamentais e

inscritos nas práticas específicas que os produzem”.332

Barbosa Lessa afirma, em sua tese, que existiriam dois fatores predominantes para a

desintegração social: primeiro, o enfraquecimento do núcleo das culturas locais; segundo, o

desaparecimento dos “grupos locais” como unidades transmissoras de cultura. Linton formula

este conceito, o de grupo social, apontando igualmente para o papel desempenhado pela

“família”:

“... existem duas unidades sociais que parecem ser tão velhas quanto a

humanidade e que provavelmente já se encontravam no nível subumano.

Uma delas é a unidade familiar básica, composta por indivíduos acasalados e

seus filhos não adultos. (...) A outra velha unidade é o grupo local, agregado

de famílias e indivíduos masculinos e avulsos, que habitualmente viviam

juntos. Esta unidade serviu de ponto de partida para o desenvolvimento de

todos os atuais tipos de unidade tanto política quanto territorial, como as

„tribos‟ e as „nações‟”.333

Os fatores que desarticulariam tais unidades sociais são explicados por Barbosa Lessa.

Segundo ele, toda cultura possuiria um núcleo sólido constituído pelo “patrimônio

tradicional”, ou seja, “hábitos, princípios morais, valores, associações e reações emocionais

partilhadas por TODOS [grifo do autor] os membros de determinada sociedade”.334

Cercando

este núcleo, existiria uma “zona fluida e instável” de “alternativas”, conceituadas como

“traços partilhados apenas por ALGUNS [grifo do autor] indivíduos, representando diferentes

reações às mesmas situações, ou diferentes técnicas para alcançar os mesmos fins”.335

Esta

zona seria responsável pelo crescimento da cultura e sua acomodação aos “avanços da

332

CHARTIER, Roger. Op. cit, p. 68. 333

LINTON, Ralph. O grupo local. In: ________ . O homem: Uma Introdução à Antropologia. 5a edição. São

Paulo: Livraria Martins Editora, 1965, p. 234. 334

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. Op. cit., p. 75. 335

Ibidem.

110

civilização”. Mas num momento de choque cultural, duas situações poderiam surgir na

sociedade penetrada pelos novos hábitos e costumes: “Se o patrimônio tradicional dessa

cultura é coerente e forte, a sociedade somente tem a lucrar com o referido contato, pois sabe

analisar, escolher e integrar em seu seio aqueles traços culturais novos que, dentre muitos,

realmente sejam benéficos à coletividade”.336

Caso tal patrimônio não seja suficientemente

forte, “idéias e hábitos incoerentes sufocam o núcleo cultural, desnorteando os indivíduos e

fazendo-os titubear entre as crenças e valores mais antagônicos”.337

Em edição anotada por Barbosa Lessa do livro de Pierson, que se encontra em seu

acervo pessoal na Secretaria de Cultura do Município de Camaquã (muito provavelmente o

exemplar trazido de São Paulo), o seguinte trecho é destacado: “A introdução de novos

elementos culturais leva, conseqüentemente, a certa desorganização cultural. Se o contato

continua por longo tempo e os elementos da cultura invasora têm prestígio suficiente, os

costumes do povo invadido podem desintegrar-se completamente”.338

Outro trecho em

destaque trata dos eventuais problemas de ordem social e moral ocasionados pelo contato

cultural em tais condições:

“Sob este ponto de vista, torna-se inteligível o aumento do crime,

delinqüência juvenil, e outros problemas sociais nos centros urbanos. Estes

são índices de falência do controle social, falência esta que acompanha

sempre a transição de uma sociedade baseada nos „contatos primários‟ para

uma baseada nos „contatos secundários‟. São índices de fluxo na ordem

social, de uma base movediça na organização da sociedade. São indicações

de que nos centros urbanos ainda não desenvolvemos novo controle social

igual àquele que há tantos séculos se tem mostrado tão eficiente nos „grupos

primários‟. Este ponto de vista também torna mais inteligível o aumento da

desorganização da família nas cidades grandes, da insânia, desamparo,

divórcio e abandono. Estes „males‟ da ordem social são sintomas da

desorganização que cada sociedade sofre quando muda do „contato primário‟,

característico de uma „cultura folk‟, para o contato impessoal e „secundário‟

de um moderno centro urbano. Por outras palavras, é um dos preços do assim

chamado „progresso‟”.339

Na avaliação de Barbosa Lessa, então, na conjuntura de “progresso” do pós-guerra,

com seu “surto de maquinismo” e a “facilidade de intercâmbio cultural”, observa-se uma

diminuição gradativa dos núcleos das culturas regionais, a ponto desses serem sufocados pela

zona de alternativas. Retomando Linton, nosso autor considera a “família” e o “grupo local”

como as unidades sociais mais importantes para a transmissão cultural. Com a desarticulação

336

Ibidem, p. 75-76. 337

Ibidem, p. 76. 338

PIERSON, Donald. Teoria e Pesquisa em Sociologia. 3a edição. São Paulo: Melhoramentos, 1953, p. 154.

339 Ibidem, p. 158.

111

dos núcleos culturais, também se daria o desaparecimento dos grupos locais tradicionais. No

Rio Grande do Sul, seriam exemplos de grupo local o “vizindário”, ou “pago”, das populações

rurais, as pequenas vilas do interior e mesmo alguns bairros “com vida própria” das cidades

gaúchas do passado recente. Embora não conte com organização formal, o grupo local se

constituiria “numa potente barragem para as transgressões morais (furto, sedução, adultério,

etc)”, encerrando, inclusive, grande força punitiva “através de medidas como a perda de

prestígio, o ridículo, o ostracismo”.340

A segunda parte da tese (a partir do item III) é dedicada à caracterização do

tradicionalismo organizado como resposta, no Estado, ao processo social teorizado pela

sociologia:

“O movimento tradicionalista rio-grandense - que vem se desenvolvendo

desde 1947, com características especialíssimas - visa precisamente combater

os dois reconhecidos fatores de desintegração social. O fundamento científico

deste movimento encontra-se na seguinte afirmação sociológica: „Qualquer

sociedade poderá evitar a dissolução enquanto for capaz de manter a

integridade de seu núcleo cultural. Desajustamentos, nesse núcleo, produzem

conflitos entre indivíduos que compõem a sociedade, pois esses vêm a

preferir valores diferentes, resultando, então, a perda da unidade psicológica

essencial ao funcionamento eficiente de qualquer sociedade‟”.341

Na leitura de Barbosa Lessa, o “grupo local” se torna uma das células, como vimos,

que fundamenta a organização social mais ampla. Assim, sua preservação é fundamental para

a manutenção da ordem, evitando-se os “males” identificados por Pierson. Da mesma forma,

torna-se necessário fortalecer o núcleo cultural, responsável pela coesão identitária de cada

sociedade. Daí os objetivos do movimento:

“Através da atividade artística, literária, recreativa ou esportiva, que o

caracteriza - sempre realçando os motivos tradicionais do Rio Grande do Sul -

o Tradicionalismo procura, mais que tudo, reforçar o núcleo da cultura rio-

grandense, tendo em vista o indivíduo que tateia sem rumo e sem apoio

dentro do caos de nossa época. E, através dos Centros de Tradições, o

Tradicionalismo procura entregar ao indivíduo uma agremiação com as

mesmas características do „grupo local‟ que ele perdeu ou teme perder: o

„pago‟. Mais que o seu „pago‟, o pago das gerações que o precederam”.342

Assim, os CTGs cumpririam o papel desses grupos locais na articulação da comunidade

e na transmissão da cultura:

340

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. Op. cit, p. 77. 341

Ibidem, p. 79. 342

Ibidem.

112

“Cada Centro de Tradições Gaúchas, em si, é um novo „Grupo Local‟. E à

medida que surgem novos Centros, em todos os municípios do Rio Grande

do Sul, vai o Tradicionalismo confundindo-se com o Regionalismo, pois

opera para que todos os indivíduos que compõem a Região sintam os

mesmos interesses, os mesmos afetos, e desta forma reintegrem a unidade

psicológica da sociedade regional. E com isso o Tradicionalismo pode se

transformar na maior força política do Rio Grande do Sul. Para evitar

confusão de „política‟ com „política partidária‟, expressemo-nos assim: O

Tradicionalismo pode constituir-se na maior força a auxiliar o Estado na

resolução dos problemas cruciais da coletividade”.343

Michael Löwy e Robert Sayre caraterizam o romantismo pelo seu aspecto político, ou

seja, como uma “crítica da sociedade burguesa que se inspira em uma referência ao passado

pré-capitalista”.344

O próprio nascimento do movimento romântico deveria ser compreendido,

assim, como resposta ao advento do sistema capitalista. No entanto, à medida que se opõe ao

seu desenvolvimento, o romantismo, como “visão de mundo”, estaria presente na história do

pensamento ocidental contemporâneo através das mais variadas expressões, unificadas pela

“convicção de que falta ao real presente certos valores humanos essenciais que foram

alienados”. Dessa forma: “Deseja-se ardorosamente reencontrar o lar, retornar à pátria, e é

justamente a nostalgia [grifo dos autores] do que foi perdido que está no centro da visão

romântica anticapitalista”.345

Vimos que o projeto intelectual de Barbosa Lessa se coloca entre

o romantismo literário gaúcho e a proposta localista de Cyro Martins, conciliando elementos

do passado mítico do Rio Grande do Sul com a crítica social posta em prática na literatura dos

anos trinta e quarenta. Mas se literariamente os escritos de Lessa ocupam um “entre-lugar”,

partindo da caracterização de Löwy e Sayre evidencia-se que politicamente o compromisso

romântico é novamente afirmado no projeto de nosso personagem, daí sua caracterização mais

ampla do tradicionalismo como “força política” em auxílio ao Estado.

Outrossim, a crítica romântica permite a aproximação entre o tradicionalismo e as

teorias da Escola de Chicago que, durante os anos quarenta, causaram estranhamento no

jovem pesquisador Juarez Rubens Brandão Lopes por seu “vago saudosismo de uma vida

rural, quase bucólica, concebida como mais natural do que a vida da cidade”.346

Mas a leitura

343

Ibidem. 344

LÖWY, Michel, SAYRE, Robert. Romantismo e política. São Paulo: Paz e Terra, 1993, p. 13. 345

Ibidem, p. 22. 346

LOPES, Juarez Rubens Brandão. Op. cit., p. 39. Conforme Edgar Mendoza, a preocupação com o

comunitário presente nos trabalhos de Pierson fora um dos três pontos das teorias da Escola de Chicago,

juntamente com o interesse pelas relações raciais e os estudos de cidade, que influenciaram a constituição dos

estudos sociológicos no Brasil. MENDOZA, Edgar S. G. Donald Pierson e a escola sociológica de Chicago no

Brasil: os estudos urbanos na cidade de São Paulo (1935-1950). Sociologias. Porto Alegre, ano 7, n. 14, jun/dez

2005, parim passim.

113

criativa de Barbosa Lessa dos textos de Linton e Pierson dota a lógica inicialmente

conservadora do pensamento destes últimos de certo potencial transformador. Caracterizando

o tradicionalismo como um movimento cultural e político fundamentado no presente, como

“experiência”, Lessa empresta-lhe um caráter de intervenção social voltada ao futuro e, assim,

rebate as críticas que o estigmatizariam como um “mero retorno ao passado”:

“O Tradicionalismo consiste numa EXPERIÊNCIA [grifo do autor] do povo

rio-grandense, no sentido de auxiliar as forças que pugnam pelo melhor

funcionamento da engrenagem da sociedade. Como toda experiência social,

não proporciona efeitos imediatamente perceptíveis. O transcurso do tempo é

que virá dizer do acerto ou não desta campanha cultural. De qualquer forma,

as gerações do futuro é que poderão indicar, com intensidade, os efeitos desta

nossa - por enquanto - pálida experiência. E ao dizermos isso, estamos

acentuando o erro daqueles que acreditam ser o Tradicionalismo uma

tentativa estéril de „retorno ao passado‟. A realidade é justamente o oposto: o

Tradicionalismo constrói para o futuro”.347

Löwy e Sayre abordam essa relação entre passado e futuro no romantismo político:

“A visão romântica toma um momento do passado real em que não havia

características negativas do capitalismo, ou estas eram atenuadas, quando

características humanas sufocadas pelo capitalismo ainda existiam, e o

transforma em utopia [grifo dos autores], molda-o como encarnação das

aspirações e das esperanças românticas. Com isso se explica o paradoxo

aparente de que o passadismo [grifo dos autores] romântico pode ser – e,

genericamente, de certa maneira, ele o é – também um olhar para o futuro;

pois a imagem de um futuro sonhado para além do capitalismo se inscreve

numa visão nostálgica de uma era pré-capitalista”.348

A “utopia” tradicionalista, empregando a terminologia de Löwy e Sayre, não comporta

a superação do sistema capitalista, cabe salientar. Trata-se, antes, de uma proposta reformista

que visa, como afirmamos, auxiliar as políticas públicas voltadas ao saneamento da

“desordem social” que teria levado o gaúcho à situação de extrema pobreza.

Löwy e Sayre apontam para a existência de um “romantismo político resignado”, que

visaria reformar a sociedade burguesa graças ao apelo a instituições de caráter pré-capitalista.

Mas de que forma pode-se pensar em reforma social no projeto tradicionalista de Barbosa

Lessa? A resposta se encontra na recuperação do gaúcho popular romantizado pela gauchesca

tradicional. Na terceira parte da tese (a partir do item IV), nosso autor passa a definir o sentido

de sua concepção de “tradicionalismo”:

“Tradicionalismo é o movimento popular [grifo meu] que visa auxiliar o

Estado na consecução do bem coletivo, através de ações que o povo pratica

347

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. Op. cit., p. 80. 348

LÖWY, Michel, SAYRE, Robert. Op. cit., p. 23.

114

(mesmo que não se aperceba de tal finalidade) com o fim de reforçar o núcleo

de sua cultura: graças ao que a sociedade adquire maior tranqüilidade na vida

comum”.349

O tradicionalismo que Barbosa Lessa defendia estaria imbuído, portanto, de um

caráter “popular”, no sentido de preocupação com as camadas desfavorecidas, e,

corolariamente, se afastaria da “alta cultura” cosmopolita e “moderna”:

“O Tradicionalismo deve ser um movimento nitidamente POPULAR [grifo

do autor], não simplesmente intelectual. É verdade que o Tradicionalismo

continuará compreendido, em sua finalidade última, apenas por uma minoria

intelectual. Mas, para vencer, é fundamental que seja sentido e desenvolvido

no próprio seio das camadas populares, isto é, nas canchas de carreiras, nos

auditórios das radioemissoras, nos festivais e bailes populares, nas „Festas do

Divino‟ e de „Navegantes‟, etc”.350

Para nosso autor, o tradicionalismo organizado deveria, portanto, ser entendido como

um movimento de resistência cultural do “povo” gaúcho à desagregação da sociedade rio-

grandense motivada pelas turbulências que assolavam o mundo. Sua preocupação com o

empobrecimento do meio rural se manifestara também em 1947, como mostrado

anteriormente. Sete anos depois da publicação de “Tropeiros”, o autor propõe que o

tradicionalismo auxilie, então, o Estado, no amparo ao homem do campo:

“A idéia nuclear das Tradições Gaúchas é a figura do campeiro das nossas

estâncias. Por isso, é sumamente necessário que o Tradicionalismo ampare

social e moralmente o homem do campo, para que um dia não se chegue à

situação paradoxal de manter-se uma Tradição de fantasia, em que se

tecessem hinos de louvor ao „Monarca das Coxilhas‟, ao „Centauro dos

Pampas‟, e esse gaúcho fosse um desajustado social, um pária lutando

febrilmente pela própria subsistência. A nossa cultura somente poderá se

impor sobre as outras culturas, no entrechoque inevitável, se for

suficientemente prestigiosa. Daí a razão por que precisamos mostrar às novas

gerações - bem como àqueles que, vindos de terras distantes, acorrerem à

nossa querência - que as tradições gaúchas são REALMENTE [grifo do

autor] belas, e que o gaúcho merece realmente a nossa admiração”.351

Assim, Lessa acaba por predicar uma matriz política para todo o Brasil: a valorização

do homem do campo. Ele explica o êxodo rural como resultado da busca por status social,

tendo em vista que, na dicotomia campo-cidade, a última é geralmente tida como superior

tanto pelos citadinos quanto pelos camponeses:

349

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. Op. cit., p. 80. 350

Ibidem, p. 80-81. 351

Ibidem, p. 82.

115

“Prestigiando as tradições gaúchas, e prestando assistência moral e social ao

homem do campo, o Tradicionalismo estará convencendo o campesino da

dignidade e importância do seu „status‟. Estará, em suma, pondo em prática

aquilo que o sanitarista Belisário Penna352

um dia salientou, mais ou menos

nestes termos: „O Brasil é o país onde mais se fala em valorização.

Valorização do café brasileiro, do dinheiro brasileiro, do algodão brasileiro,

do boi brasileiro. Somente não se pensa na mais urgente e importante

valorização: a do Homem brasileiro, a qual, por si só, estaria conduzindo a

todas as outras‟”.353

Nessa perspectiva, o tradicionalismo é concebido como uma resposta aos mesmos

fenômenos que fizeram Cyro Martins atacar a literatura gauchesca precedente. Como vimos, a

articulação de ambas as tradições literárias configura a matriz do projeto intelectual de

Barbosa Lessa. Então, frente ao choque cultural do pós-guerra, às transformações sociais e

econômicas ocorridas naquele momento, ao advento da modernidade, é, na nova tese, uma

cultura ainda “pura”, sobrevivente do passado, não atingida pelo contato com outros hábitos,

costumes e formas de viver e pensar, que dá a saída para a população empobrecida, do campo

e da cidade. Cultura peculiar, mas ainda assim brasileira, e por essa razão dotada de elementos

capazes de oferecer respostas ao mesmo processo em outros cantos do país. Tratava-se, mais

uma vez, de reviver o gaúcho a cavalo.

A segunda grande questão do tradicionalismo (primeira a ser abordada, no entanto, na

estrutura da tese), de acordo com Barbosa Lessa, tem justamente relação com as estratégias

que o movimento deveria adotar para obter sucesso na reanimação do “gaudério”: a atenção

às novas gerações. Barbosa Lessa avoca, assim, que:

“Deve o Tradicionalismo operar com intensidade no setor infantil ou

educacional, para que o movimento tradicionalista não desapareça com a

nossa geração. Porque nós – os Tradicionalistas da primeira arrancada –

entramos para os Centros de Tradições Gaúchas movidos pela necessidade

psicológica de encontrar o „grupo local‟ que havíamos perdido ou que

temíamos perder. Mas as gerações novas não chegaram a conhecer o grupo

local como unidade social autêntica, e somente seguirão nossos passos por

força de impulsos que a educação lhes mostrar”.354

352

O médico mineiro Belizário Penna atuou na área de saneamento e profilaxia rural em cargos públicos nos

governos do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul, além do governo federal. Apoiador da “Revolução de 30”,

assumiu interinamente, em 1931, o Ministério da Educação e Saúde Pública. Organizou no Estado, por

solicitação do então presidente Getúlio Vargas, em 1927, o serviço local de higiene e proferiu diversas

conferências indicando providências relativas à saúde pública. Para mais detalhes de sua biografia, ver

THIELEN, Eduardo Vilela. Belisário Penna: notas fotobiográficas. Hist. cienc. saude-Manguinhos. 2002, vol.9,

n.2, p. 387-404. 353

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. Op. cit., p. 82. 354

Ibidem, p. 81.

116

Anos mais tarde, escrevendo em terceira pessoa nas apresentações das cartas que

compõem seu livro de memória epistolar, Barbosa Lessa faz uma avaliação negativa quanto

ao papel político desempenhado pelo movimento tradicionalista no combate à pobreza rural:

“Quanto às duas grandes questões do Tradicionalismo, expostas pela tese de L. C. Barbosa

Lessa, nenhuma novidade ocorreu no item da assistência ao homem do campo”.355

No

entanto, quanto à segunda questão, os rumos do movimento atestariam o acolhimento das

medidas pedagógicas por ele propostas, o que, em última instância, seria o motivo de sua

longevidade:

“Mas, no tocante à atenção para as novas gerações, houve uma verdadeira

reviravolta na dinâmica dos CTGs. Instituídas as Invernadas Mirins, meninos

e meninas assumiram destaque nas promoções de cada Centro – inclusive no

ensaio e interpretação das danças campeiras –, dessa forma assegurando-se a

continuidade e progressivo acréscimo de participantes do vitorioso

Movimento Tradicionalista Gaúcho”.356

A questão orientaria ainda a própria produção “folclórica” de nosso personagem. Além

do Manual de Danças Gaúchas, outro livro sobre o tema, escrito também em conjunto com

Paixão Côrtes, seria publicado em 1975. O primeiro visava auxiliar professores do nível

primário no ensino das danças gauchescas e o segundo procurava complementar o Manual ao

explicar os elementos não coreográficos trabalhados neste. A partir dos anos 1970, Barbosa

Lessa escreveria ainda uma série de textos para histórias em quadrinhos ou “paradidáticos”,

como a história ilustrada de Giuseppe Garibaldi.357

O tom “didático” permeará, também,

escritos de outra ordem, como seus trabalhos em História. Esta produção será abordada nos

capítulos V e VI.

3.3 - O erudito contador: os contos gauchescos e a ampliação do mito

Ainda em 1953, Barbosa Lessa teve sua primeira canção, Aroeira, gravada por Luiz

Gonzaga. Em meio à produção de programas televisivos como Feira de Sorocaba, onde

exibia músicas e danças folclóricas, nosso autor se dedicava às composições musicais.

Negrinho do Pastoreio se tornaria sua letra mais conhecida. Em Prezado Amigo Fulano,

355

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. Prezado Amigo Fulano. Op. cit., p. 102. 356

Ibidem. 357

Idem. Garibaldi Farroupilha: história ilustrada do herói de dois mundos. Porto Alegre: Alcance: 2000. Os

desenhos são do cartunista argentino Rodolfo Zalla.

117

nosso autor transcreve um trecho de crônica de Oswald de Andrade Filho, publicada no jornal

Correio Paulistano de 1o de janeiro de 1956, que criticava a execução exaustiva de melodias

natalinas estrangeiras: “Onde está aquela marchinha que foi gravada há mais ou menos vinte

anos e que fala sobre o Natal? Onde está o Peixe Vivo, que em Minas alegra todas as grandes

comemorações? Onde está o Negrinho do Pastoreio, de Barbosa Lessa?”.358

Ainda que a

transcrição cumpra com uma função narrativa específica dentro das memórias epistolares de

nosso autor, enfatizando o reconhecimento pelo trabalho duro e o sucesso obtido na

empreitada em São Paulo, o texto é indicativo da receptividade da música entre intelectuais

comprometidos, de alguma forma, com os signos do que então se considerava “nacional”,

“local” ou “popular”. A letra de Negrinho do Pastoreio lamenta a morte do gaúcho de outrora

e a perda da “querência” amada, fazendo eco aos anseios neoromânticos dos regionalismos

brasileiros e do movimento folclórico organizado.359

Nela, o antigo peão acende uma vela ao

pequeno escravo que, segundo a lenda narrada por Simões Lopes Neto, ressuscitara da morte

cruel provocada pelos castigos de um patrão severo e injusto: “Negrinho do Pastoreio,/Traze a

mim o meu rincão./Eu te acendo esta velinha,/Nela está meu coração”. A idade de ouro

gaúcha é evocada: “Quero ver lindo meu pago/Coloreado de pitanga./Quero ver a

gauchinha/A brincar n‟água da sanga”. E também “atualizada”, já que a liberdade gozada pelo

gaúcho mítico nos vastos campos, distantes do “progresso”, seria também revivida no gaúcho

contemporâneo: “Quero trotear pelas coxilhas,/Respirando a liberdade,/Que eu perdi naquele

dia./Que me embretei na cidade”.

Mesmo marcada pela nostalgia do mundo (e do tempo) perdido, a canção carrega,

assim, anseios de renovação. Tais características também estão presentes em seu primeiro

livro de contos, O boi das aspas de ouro, publicado em 1958 pela Editora Globo. Cada

pequeno texto da obra é precedido por uma introdução que remete o leitor ao contexto

temporal e social onde a narrativa teria vigorado originalmente. O primeiro conto, intitulado

“Gadinho de osso”, é também uma introdução geral ao livro, na qual Barbosa Lessa

apresenta-se como um legítimo narrador gaúcho, ou seja, um daqueles peões de estância que

ocupam seu tempo livre contanto causos à beira do fogo de chão. O texto mostra o cotidiano

de uma estância de outrora. Barbosa Lessa criança vivia no idílico, brincando com rezes de

osso, a lida dos homens grandes:

358

ANDRADE FILHO, Oswald de. In.: BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. Prezado Amigo Fulano. Op. cit., p.

115. 359

A relação entre o tradicionalismo e o movimento folclórico brasileiro no período será abordada no próximo

capítulo.

118

“Recordo que um dia peleei feio com um domador novo nas casas, porque

me roubara o touro-pampa mais buenacho do rodeio-grande, pra ir jogar osso

no galpão. Pari patrulha, seu! Mas o domador – crioulo do bom tempo, o

Cesário! – sabia como ninguém lidar com a criançada; e naquela mesma tarde

me trouxe um presente tão lindaço que eu não tive volta senão fazer as pazes.

É que a barrosa velha tinha esticado as canelas, atolada num sumidouro da

Invernadinha das Tambeiras; o Cesário, que foi courear, se lembrou da minha

estância... e assim eu ganhei oito cavalos! Potros como os que o Cesário

domava: buenos pra toda lida”.360

E segue: “Naquela estância eu passei as horas mais felizes de meus tempos de piá...”.

Os anos de guri passaram, mas deixaram o campo vivo na memória: “Agora – anos passados e

quando me vejo embretado numa cidade longe da querência – a minha velha estância – a

única estância que tive, mas que acompanha minha alma – ela acordou com os gritos

campeiros de outrora. Festa de marcação!”. A antiga estância ressurge, assim, nos contos de

nosso autor. E que venha um mate! Pois o gaúcho vai contar seus causos. Eis aqui o primeiro

aspecto a ser analisado nesta seção: a relação entre a “contação” e a narrativa escrita e a

corolária presença de um “narrador-contador”. Num segundo momento, analisarei os motivos

e temas narrados pela literatura gauchesca de Barbosa Lessa. Ambos os elementos permitem

identificar aqueles valores estéticos e morais que também estariam presentes na definição da

doutrina tradicionalista e que, na perspectiva do autor, manteriam a coesão cultural do “povo

gaúcho”.

Como e por quê, então, no texto de Barbosa Lessa, o narrador nos é apresentado

enquanto um contador de “causos”? Ou seja, de que forma o próprio autor se constrói

discursivamente como um autêntico narrador gaúcho? Segundo Gilda Neves Bittencourt, o

conto sul-rio-grandense tem, em sua origem, uma íntima ligação com o regionalismo. Até a

década de 1930, período caracterizado pela autora como de transição ao conto gaúcho

contemporâneo, não se pensava o gênero fora dos marcos da gauchesca. O próprio termo

“gauchesca” fora cunhado para designar a “onda regionalista” da década de 1920, que teve o

conto como epicentro, calcado nos aspectos que o uniam à literatura precedente: “a

idealização do passado heróico, o telurismo e a visão mítica do gaúcho”.361

A narrativa curta

fora, segundo a autora, a preferida do regionalismo gaúcho devido à sua proximidade com os

“casos” de galpão, presentes na cultura popular sul-rio-grandense. A ligação é comprovada

pelos usos das estratégias narrativas do conto oral nas composições dos literatos, com “o

aproveitamento do material folclórico e mítico em grande parte dos contos e o emprego de

360

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. O boi das aspas de ouro. Porto Alegre: Globo, 1958, p. 11. 361

BITTENCOURT, Gilda Neves da Silva. Op. cit., p. 29.

119

procedimentos usuais na tradição oral – como a existência de um narrador que relata a própria

experiência, ou o processo de remeter a história a um espaço atemporal ou mítico”.362

O novo

livro de nosso autor segue a receita do conto regionalista, como mostrado por Bittencourt:

“Em 1958, Barbosa Lessa escreve O boi das aspas de ouro, um conjunto de

contos gauchescos visivelmente influenciados por Simões Lopes Neto, pelo

aproveitamento dos elementos míticos e do folclore, pela ênfase na

rememoração de um passado distante, em que o mundo era melhor, e pelo

traço da visão humorística do gaúcho contador de lorotas (à moda de

Romualdo). A própria linguagem assemelha-se à de Simões Lopes, pelo uso

constante da metáfora e pelo hábito de estabelecer comparações com o meio

circundante como forma de ilustrar determinadas situações ou estados de

espírito vividos pelas personagens”.363

A influência de Simões também é marcante na figura do narrador que, como o Blau

Nunes, assume as características de um “contador de casos”, relatando os enredos como parte

de sua experiência. Segundo Luís Augusto Fisher, antes de Simões, os escritores regionalistas

buscaram retratar o “campeiro”, mas não conseguiram fazê-lo falar na linguagem da

literatura.364

A criação de Blau Nunes teria conseguido, finalmente, dar voz ao gaúcho. Como

ressalta Fischer, ele é um dos personagens que compõem a narração: este conta seus causos a

um segundo personagem, nunca nomeado, mas referido sempre como “patrãozinho”. Trata-se

de seu interlocutor:

“Blau, o narrador, é um velho e experimentado peão, que está, por algum

motivo não enunciado, acompanhando outro sujeito num périplo, ao longo do

qual fala, rememora, moraliza; este, o interlocutor, que jamais tem voz no

andamento das histórias (a não ser, se quisermos uma hipótese plausível,

naquelas primeiras páginas, quando uma voz faz a apresentação de Blau), é

mais jovem que Blau e não conhece a vida campeira, mas parece ter algum

interesse tanto na experiência de Blau (porque presta atenção a seus causos),

quanto naquela vida gaúcha interiorana (porque anota as coisas que ele vai

dizendo)”.365

362

Ibidem, p. 35. 363

Ibidem, p. 31-32. O uso deliberado do linguajar “gauchesco” na literatura de Barbosa Lessa é fruto da coleta

de vocabulário campeiro, metáforas, provérbios e versos populares empreendida por ele desde o início dos anos

cinqüenta, pelo menos, tanto em suas andanças pelo meio rural do Rio Grande do Sul quanto em suas leituras e

estudos sobre o gaúcho (inclusive platino). Encontrei no Acervo Barbosa Lessa páginas soltas manuscritas ou

datilografadas, designadas como “sabedoria campeira”, contendo os resultados de tais pesquisas. Além dos usos

literários desse inventário, nosso autor publicava elementos dele nas seções intituladas “Folclore” e

“Gauchismo”, na coluna Tradição, do Diário de Notícias. Também era comum a publicação, em suas obras, de

um apêndice com a definição do vocabulário empregado, como acontece nas edições de O boi das aspas de

ouro. Exemplos dos usos dos termos na redação de seus contos podem ser conferidos nas citações analisadas

neste capítulo. 364

FISCHER, Luís Augusto. Uma edição nova e inovadora. In.: LOPES NETO, Simões. Contos Gauchescos.

Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2000, p. 14. 365

Idem, p. 15.

120

No entanto, a auto-apresentação de Barbosa Lessa, em Gadinho do Osso, como um

narrador com experiência de estância e como um filho da cultura popular rural, dá

legitimidade aos seus relatos e, dessa forma, dispensa a criação de um personagem que

assuma a responsabilidade por eles. No caso de nosso escritor, a interlocução se dá

diretamente com o público leitor, aproximando-o do texto, direcionando a ele suas opiniões e,

inclusive, lhe dando conselhos. Barbosa Lessa procura dialogar com o leitor como o contador

interage com seu interlocutor. Deste depende o sucesso da história. Se na contação de um

“causo” gaúcho, como demonstrado por Luciana Hartmann, o contexto de interação entre o

performer e o público condiciona a construção da narrativa366

, na escrita de Lessa seu papel

não é menos importante. Ela é construída, assim, tendo em vista um público que não está

materialmente presente, mas cuja sombra o acompanha em todos os momentos da narração:

na apresentação da história: “Amigo: eu lhe conto agora um causo que meus avós já

contavam...”367

; na resolução das tensões: “Nem lhe conto, companheiro! O melhor é encurtar

a história e dizer só o seguinte: no fim daquela semana o moço tinha quebrado o corincho dos

três ventas-furadas! E o patrão, de contente no mais, lhe regalou o tostado-estrêla, que era

uma pintura como jamais houve igual!...”368

; ou, ainda, no desabafo: “Amigo: a gente sempre

é aquilo que os outros querem que a gente seja. Ninguém nasce ruim neste mundo, mas hai

quem se torne mau porque, desde cedo, foi encontrando a maldade que os outros botaram em

sua senda.”369

Lessa questiona o leitor e o aproxima da história através de imagens familiares

ou comuns: “Amigo: você nunca viu os urubus quando rodeiam um animal moribundo?”370

,

ou: “Amigo: com certeza você já muitas vezes – caçando, ou quem sabe se campeando

alguma rês extraviada – deve ter passado por algum serro de pedra desses que só tem

serventia pra agasalhar bicho ruim”.371

O narrador pode, ainda, através dessa relação de

proximidade com o público/leitor, sentir-se à vontade para aconselhar e/ou dar lições de vida:

“Amigo: hai quem pense que o poder do homem está só nos braços que ele

tem, e que mais forte é o qüera que sem esforço derruba o touro nas lides do

rodeio, vence o bagual no entrechoque da doma, ou o inimigo na fúria da

peleia. Não: mais forte é aquele que melhor sabe usar da inteligência que o

Senhor lhe concedeu para distinguir dos brutos. Com as luzes de Deus, pode

366

HARTMANN, Luciana. Performance e experiência nas narrativas orais da fronteira entre Argentina, Brasil e

Uruguai. Horizontes Antropológicos. Porto Alegre, ano 11. n. 24, p. 125-153, jul./dez. 2005. 367

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. O boi das aspas de ouro. Op. cit., p. 15. 368

Ibidem, p. 24. 369

Ibidem, p. 19. 370

Ibidem, p. 28. 371

Ibidem, p. 29.

121

o homem andarenguear confiante: nem a noite mais escura há de lhe dar

extravio.”372

Há, assim, uma diferença significativa no texto de Barbosa Lessa. Ainda que Simões

dê voz ao campeiro, ele jamais se torna um deles. A voz do escritor não se confunde com a de

Blau e a narrativa é construída no confronto entre ambas. Mas, como dito, Lessa introduz

cada conto com uma pequena descrição “objetiva”. Vejamos o caso d‟“O boi das aspas de

ouro”:

“Tal como ocorre com „Salamanca do Jarau‟ e outros „causos‟ tradicionais do

Rio Grande do Sul, podemos perceber, nesta história popular, a vibrante força

de imaginação do gaúcho, graças à qual ele enriquece o fio principal de seus

relatos com mil peripécias suplementares. O resultado é uma epopéia seriada,

quase sem fim, e por isso mesmo apta a cumprir o principal objetivo dos

„causos‟, qual seja o de entreter o auditório campeiro, pelo mais largo tempo

possível, nas longas noites de inverno ou nas rondas da tropeada”.373

É apenas neste momento que identificamos um distanciamento do autor em relação às

experiências narradas. A história é contada como é, porque assim o é pelos campeiros. Em

última instância, Barbosa Lessa parece, nesse momento, responsabilizar os contadores

populares tanto pelo “evento narrado”, ou seja, o enredo, quanto pelo “evento narrativo”, a

maneira de contar.374

Tal distanciamento, de um lado, permite a legitimação da narrativa pela

autoridade irrefutável dos contadores e, de outro, denota a consciência do autor sobre as

táticas de narração por eles utilizadas. Mas ao narrar suas estórias, Lessa incorpora as

estratégias do conto oral e assume, como mostrado acima, a responsabilidade definitiva pela

trama. Se, como afirma Gilda Bittencourt, na introdução de seu trabalho, as preferências do

autor por um certo modo de contar e por uma determinada perspectiva narrativa não é nem

aleatória nem fruto apenas de uma decisão pessoal, “mas também tem a ver com os

condicionamentos histórico-culturais presentes no momento da criação”,375

podemos inferir

que a publicação de um livro de contos seguindo os padrões narrativos da gauchesca, mas

com um autor que incorpora e se transforma em seu narrador-personagem, nos diz muito

sobre o momento de sua escritura. Como tenho argumentado, o projeto intelectual de Barbosa

372

Idem, p. 17. Para uma análise pormenorizada das estratégias narrativas presentes no conto de Barbosa Lessa e

sua aproximação com as performances de contadores da região de fronteira entre Brasil, Argentina e Uruguai,

pesquisados por Luciana Hartmann, ver ZALLA, Jocelito. O erudito contador: performance e oralidade no conto

gauchesco de Barbosa Lessa. In.: D‟AJELLO, Luiz Fernando Telles, TETTAMANZY, Ana Lúcia Liberato,

ZALLA, Jocelito (orgs.). Sobre as poéticas do dizer: reflexões e pesquisas em oralidade (no prelo). 373

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. Op. Cit., p. 13. 374

“Evento narrado” e “evento narrativo” são termos de Richard Baumann empregados por Luciana Hartmann

para distinguir os relatos das formas de expô-los nas performances de contadores gaúchos. Ver HARTMANN,

Luciana. Op. cit. 375

BITTENCOURT, Gilda Neves da Silva. Op. cit., p. 11.

122

Lessa dialoga com a tradição literária regionalista e com os projetos contemporâneos de

literatura e de identidade regional. Seus textos se dirigem ao debate público local, afirmando

suas posições e disputando os signos do gauchismo. O boi das aspas de ouro é, então, um

novo artefato de intervenção na cena literária, mas também nos rumos do movimento

tradicionalista nascente. Ele define o “tradicional” e o “folclórico” e reafirma a existência

social do gaúcho a cavalo, ainda que lamente a degeneração de suas condições de vida.

Seguindo a linha de Cyro Martins376

, Ivan Pedro de Martins denunciara o pauperismo

do homem do campo no Rio Grande do Sul em seus livros Fronteira Agreste (1944) e

Caminhos do Sul (1946). Em 1955, o escritor publicou um livro de contos intitulado Do

Campo e da Cidade. A seleção de histórias curtas escritas ao longo de 18 anos pretende dar

conta da pobreza rural e da urbana, de conflitos entre campo e cidade e entre peão e patrão,

pobre e rico. Para Antônio Hohlfeldt: “A contribuição de Ivan Pedro de Martins consiste na

abordagem explícita da vida dos homens marginalizados dessa sociedade, a partir dos

próprios espaços físicos e geográficos que ocupam, evidenciando que também a localização

dos povos não é nem gratuita nem destituída de sentido”.377

No conto intitulado “Tapera”, a

degeneração do ambiente se confunde com a pobreza dos personagens principais: “O capim, o

mato, as embaúbas esguias, o sapé amarelado, as tiriricas deselegantes, tudo parece morto por

excesso de seiva”.378

Nascida e criada no local, Maria Quitéria era “amarelada como a mãe

que fizera trinta e dois anos há um mês e parecia carregar cinqüenta no lombo”.379

A lida de tropeiro é o objeto do primeiro texto. A vida descrita é dura, destituída de

qualquer encanto, em nada lembrando a figura celebrada por Barbosa Lessa. O personagem

que cede o nome ao conto, Mané, de doze anos, é quem questiona a exploração, na crítica da

resignação do companheiro de tropeada: “Inhô na cidade é outro homem. Patrão tá longe, ele

conta vantaje. Home devia sê home em toda parte. Si Inhô quisesse derrubava o patrão de um

soco só... e fica quieto quando o veio passa pito”.380

A desigualdade é latente na comparação

de sua vida com a dos filhos do patrão: “Mas os guri têm uns livro lindo, cada figura de cor

mais bonita! Eles contam o que tem no livro. Num sei lê... si soubesse...(...) Gostei dos livro...

376

Juntamente com Pedro Wayne e Aureliano de Figueiredo Pinto, segundo Regina Zilberman, tais autores

ilustram a perspectiva da produção literária regionalista sul-rio-grandense que marcara as décadas de trinta e

quarenta: “Recuperam, pois, os aspectos característicos do regionalismo, porém despem-no de seu ufanismo

gauchesco, sepultando a índole festiva em troca da expressão da desigualdade social”. ZILBERMAN, Regina.

Op. cit., p. 68. 377

HOHLFELDT, Antônio. Trilogia da Campanha: Ivan Pedro de Martins e o Rio Grande invisível. Porto

Alegre: EDIPUCRS, 1998 , p. 19. 378

MARTINS, Ivan Pedro de. Do campo e da cidade. Porto Alegre: Movimento, 2000, p. 27. 379

Ibidem, p. 28. 380

Ibidem, p. 17.

123

seria bom aprendê... mas pra quê? Quem é que ia liga pra mim?”.381

A resposta: “Ligava, uai!

Tonce se eu fosse doutô num ia ligá pra mim? Mas doutô é só rico... eu num posso sê doutô...

mas também, quando fô home, tomo quarqué um”.382

Entretanto, o menino Mané não chega a

se tornar homem. O final trágico ainda opõe campo e cidade: cuidando da tropa, ele é morto

pelo choque com um automóvel. Esta oposição é forte na imagem final, quando o carro

ultrapassa o cavaleiro, deixando para trás um mundo em agonia: “O carro saiu numa trovoada

e o rolo de pó vermelho foi cobrindo a tropa soturna que seguia viagem. Inhô xingava: - Vida

desgramada! Tamo caminhando que nem no meio de sangue!”.383

A faina na estância também passa ao largo das “festas de marcação” de Barbosa Lessa.

Em “Sina”, o Maneco se torna peão por necessidade e, talvez, por falta de alternativas: “A

infância igual a de todos os filhos de pobres. Botando vacas, trazendo a cavalhada do piquete,

enchendo mate para o patrão velho, mandalete das moças da casa, até os dezesseis anos o

encontraram estreando numa esquila”.384

A iniciação na doma confirma que vida a cavalo

nada tinha de idílico: “O laço se aquerenciou com o pulso forte que treinara com sovéus e os

outros trabalhos de campo foram sendo aprendidos rapidamente, que quem é pobre não tem

tempo para longas aprendizagens”.385

O boi das aspas de ouro continuava, assim, respondendo aos questionamentos da

geração regionalista “realista”. A denúncia da pobreza e da morte do gaúcho também marcara

as novas páginas de Barbosa Lessa. O último conto, intitulado “Papai Noel conta um causo”,

narra a triste história de um peão que, sem trabalho no campo, se incorpora às filas de

desempregados na cidade. Na noite de natal, o velho senhor aceita se vestir de Papai Noel em

troca de um prato de comida e de alguns trocados. Na apresentação do texto, nosso autor

relata resumidamente o processo através do qual o Rio Grande da pecuária se moderniza e se

transforma, cedendo espaço à agricultura e gerando o êxodo rural. Com a introdução dos

arados pelos colonos alemães e italianos e os cercamentos das terrras, “Fazendas de criação,

que antes necessitavam de dezenas de empregados, agora podiam prover às suas necessidades

com meia dúzia de peães (sic)”.386

E é um Barbosa Lessa citadino quem narra o encontro com

o personagem principal que, por sua vez, conta sua história de vida. Ao receber a prometida

refeição, após entreter as crianças da casa, o velho é indagado pelo narrador: “E o senhor? O

381

Ibidem, p. 18. 382

Ibidem. 383

Ibidem, p. 19. 384

Ibidem, p. 44. 385

Ibidem, p. 45. 386

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. Op. cit., p. 167.

124

senhor, em sua infância, também recebeu a visita de Papai Noel?”.387

A resposta “revela” uma

cultura diferente e perdida, um natal campeiro celebrado com autênticas tradições nativas:

“No meu tempo de piá, o Natal era um dia como qualquer outro: Papai

Noel... brinquedos... – isso foi coisa que não conheci. Mas quando me parei

mocito, o Natal virou farrancho lindo pra mim. Trovador Bueno que eu era,

dei para cantar „terno de reis‟, e em pouco tempo me tornara o melhor „guia‟

daqueles pagos. A gente começava a „tirar reis‟ por volta do Natal, e lá se ia

até o dia 6 de janeiro, de casa em casa, anunciando o nascimento de Nosso

Senhor. Festas lindas, aquelas!... E tempo bueno, aquele, que hoje não volta,

doutor!”388

.

A mudança nos costumes é explicada pela migração. O primeiro contato do velho peão

com o Papai Noel aparece em um relato de “choque cultural”:

“A primeira vez que eu ouvi falar nesse tal, foi o Joãozito quem me trouxe a

nova. Ele andava sempre metido com os filhos dum colono „alamão‟ que

tinha vindo se arranchar ali no costado do Passo. E lá um belo dia me vem ele

com a notícia de que estava pra chegar na casa do seu Fritz o „Papai Noel‟,

um tal velhinho de barbas brancas que, todos os anos, na véspera do Natal, ia

de rancho em rancho distribuindo presentes pra criançada. Eu me alembro,

como se fosse hoje, da capina que passei no guri: „Deixa de estar dizendo

bobagem, Zito! Ora, onde é que se viu cair presente do céu? Presente se

ganha é defendendo as crias novas no gado, ou curando bicheira no rodeio.

Essa história de Papai Noel é empulhação das grandes, que os estranjas estão

querendo meter na tua cabeça. Eu sempre disse que isso de tu andares muito

metido com essa gente ia terminar em porcaria grossa!”.389

Mas Papai Noel viera. E, nos anos seguintes, mais levas de imigrantes traziam consigo

suas tradições. A estância onde o peão trabalhava fora dividida em lotes para a plantação e só

restou-lhe tentar a vida na cidade. Nascera assim, mais um gaúcho a pé:

“Eu havera de encontrar um serviço qualquer; e as minhas duas filhas, já

moças, iriam se ajeitar também, com a graça de Deus. Vendi então os meus

trastes, os aperos, e até mesmo o tostado velho, último recuerdo da vida

campeira. Foi com dor na alma que eu vi o meu pingo amigo se afastar nas

mãos de outro dono. E no dia seguinte enveredei pra cidade, com as

meninas...”.390

Disfarçando uma lágrima, o velho peão termina seu relato de vida com uma prece ao

Papai Noel:

“Tu, que todos os anos vens visitar as cidades, por que te esqueceste dos

campos?... Será que a luz do progresso fez os teus olhos cegar? Fez os teus

387

Ibidem, p. 170. 388

Ibidem, p. 171. 389

Ibidem, p. 173-174. 390

Ibidem, p. 176.

125

olhos não ver que ali atrás das coxilhas hai muita gente que espera um

presente de Natal?... Hai muito piá sonhando com um petiço pra montar...

Hai muita chinoca linda que não tem água-de-cheiro pra esperar o namorado.

Hai muito gaúcho velho que não tem no seu ranchito o pão que traz a alegria,

a luz que dá a inteligência. Papai Noel... Por que é que te esqueceste dos

campos do meu Rio Grande?... Escuta, Papai Noel... De outra vez que tu

voltares, traz – é o que eu te peço, meu Santo! – traz consigo mil cavalos pra

espalhar nos rancherios. Pois já existe, neste pago, gaúchos sem nazarenas...

sem esporas... sem querência...”.391

Dessa forma, Barbosa Lessa novamente aliava seu canto de luto à crítica social,

utilizando o mito como fonte para a denúncia e modelo para a redenção. Como o

tradicionalismo, sua literatura também deveria ultrapassar a fantasia, ainda que dela se

valendo, e propor alternativas sociais. Nessa empreitada, nosso escritor atualiza o mito e

incorpora novos sujeitos aos signos do gauchismo. Ao contrário do que o conto acima

descrito poderia indicar, a agricultura e a organização social de pequena propriedade das

regiões de imigração poderiam ser encaradas como respostas bem sucedidas à miséria no

campo, postura que ia ao encontro do ideário político dos partidos tradicionais naquele

momento, como vimos acima. A mesma apresentação em que Lessa descreve o processo que

levara ao êxodo rural é encerrada com a dúbia constatação de que o novo Rio Grande dele

surgido é chamado por muitos de “celeiro do Brasil”. Em outro conto do livro, intitulado

“Cabos Negros”, nosso autor relata a dura vida de escravo nas fazendas de plantação. Junto à

crítica da escravidão, encontramos uma tênue recuperação da lavoura como espaço de

produção da cultura gauchesca. Na apresentação deste texto, nosso escritor questiona o que

considera o grande tabu da literatura regionalista do Estado: “não se concebe história que fuja

às lides pastoris”: “Conto que, deixando o cenário das estâncias de criação de gado, penetre

nas fazendas de agricultura, poderá ser „brasileiro‟ mas jamais „rio-grandense‟”.392

A

argumentação do autor recorre à história da região, já que sua primeira grande força

econômica teria sido as plantações de trigo dos imigrantes açorianos. Mesmo depois que a

peste da “ferrugem” dizimara tais lavouras, “gerações inteiras de „rio-grandenses pêlo duro‟

continuaram estoicamente dedicados ao cultivo da terra”.393

Outrossim, o texto incorpora a contribuição negra à formação do sul-rio-grandense.

Nesse caso, a crítica se volta à historiografia, que teria transformado em “idéia feita”, “sem

que pesquisas mais acuradas tivessem dado veredicto final”, a posição de que a escravidão

391

Ibidem, p. 178. 392

Ibidem, p. 45. 393

Ibidem.

126

havia sido inexpressiva no sul do país. Os “causos” de escravidão, mantidos pela tradição

popular, não possuiriam, assim, legitimidade para ocupar as páginas da literatura. Barbosa

Lessa recorre, então, ao trabalho do historiador Jorge Salis Goulart394

para mostrar que as

zonas de intensa agricultura e os centros de fabricação de charque, como Pelotas e Porto

Alegre, pela natureza dessas indústrias, exigiam numerosa escravaria, “a qual vergava ao peso

dos mais árduos trabalhos”.395

O conto narra a valentia do escravo que domara o selvagem

potro “Cabos Negros”, utilizado para castigar negros fugidios ou revoltosos: “O negro fujão,

reconduzido à estância, era arrojado aos pés de Don Pepe para optar entre a dor e o medo. – O

que escolhes, crioulo? A estaca ou Cabos Negros?”.396

Todos preferiam o açoite na estaca a

enfrentar o perigoso cavalo. Para salvar a vida de Pai Núncio, que fora pego pelo feitor da

fazenda ao tentar trazer João Batista de volta da sua fuga e evitar o confronto com o potro,

esse último decide matar Cabos Negros. Da luta nasce uma surpreendente amizade e o

escravo ganha a liberdade no lombo do cavalo, longe das terras do Sinhô, “num só corpo, ao

feitio dos centauros”.397

Assim, a atualização do mito do gaúcho a cavalo, que serviria de modelo para políticas

de fixação e amparo do homem do campo, passa pela ampliação dos grupos sociais nele

encarnados. Esta avaliação aparece na crítica de Gilda Bittencourt ao livro de Barbosa Lessa,

mas a autora não alcança a inovação representada por suas apostas literárias e pelas idéias

políticas nelas contidas:

“Embora na obra de Lessa haja uma constatação das mudanças da sociedade

campeira (como a chegada do colono, do trem e da lavoura) e o conseqüente

empobrecimento do gaúcho, e até mesmo o autor aborde uma questão quase

ignorada pela gauchesca tradicional – a escravidão nas fazendas –, os textos,

em seu conjunto, reproduzem o mesmo modelo de antes, cultuando idênticos

valores e expressando a mesma concepção de uma sociedade „fechada‟, com

valores próprios, e refratária a tudo o que vier de fora”.398

Atualizado, ampliado e ressignificado, como vimos, o modelo, entretanto, já não é o

mesmo da literatura precedente. Joana Bosak de Figueiredo chega a conclusões

diametralmente opostas às de Gilda Bittencourt. Para ela, ao tomar como foco de seus escritos

394

A obra citada é o livro “A Formação do Rio Grande do Sul”, publicado em 1927. Cabe lembrar que este autor

é conhecido como um dos construtores do mito da democracia racial no Rio Grande do Sul. O uso que Lessa faz

de seu texto é, entretanto, meramente probatório, indicando a presença negra, negada por grande parte da

historiografia tradicional. Como veremos nas próximas linhas, Barbosa Lessa centra sua narrativa justamente no

conflito entre escravos e escravistas. 395

Ibidem, p. 46. 396

Ibidem, p. 48. 397

Ibidem, p. 67. 398

BITTENCOURT, Gilda Neves da Silva. Op. cit., p. 32.

127

o gaúcho empobrecido, Barbosa Lessa teria se “afastado drasticamente” dos mitos do

“centauro dos pampas” e do “monarca das coxilhas”.399

Ambas as posições, no entanto,

devem ser matizadas. Como Figueiredo mesmo apontara, a literatura de Barbosa Lessa se

configura em um meio termo na tradição regionalista, ou seja, se coloca, como argumentado

anteriormente, entre (e podemos dizer também contra) o ufanismo e o “disforismo”,

conciliando o elogio do mito à crítica da realidade. O modelo predicado por Lessa é diferente

porque, conforme vimos, o autor reconstrói o mito a partir de novos elementos e responde a

outro contexto, mas ainda se apropria criativamente dos signos do gauchismo romântico.

Nesse processo, o projeto literário de Barbosa Lessa se abre para vozes até então esquecidas

ou marginalizadas: “...em sua visada ao Rio Grande do Sul, estão presentes o índio, o negro e

a mulher como fundadores dessa pequena pátria, tanto quanto o elemento açoriano, o jesuíta,

o espanhol, o tropeiro e todo o tipo de figura masculina privilegiada por uma leitura mais

tradicional do que seja a formação social sul-rio-grandense”.400

Acrescentaria à lista, ainda, o

agricultor e, em menor medida, o imigrante.

O tratamento à questão indígena também chama a atenção. O único conto da coletânea

analisada que não é narrado pelo Barbosa Lessa personagem-contador, intitulado “A Mboi-

Guaçu de São Miguel”, aparece na voz de uma mulher missioneira descendente dos povos

autóctones. A lenda teria sido contada ao autor, e transcrita da mesma forma, pela mestiça

guarani Sebastiana Gonçalves de Oliveira, aos 97 anos de idade.401

Sabemos que a

incorporação da história das Missões ao patrimônio cultural do Rio Grande do Sul fora

polêmica e gerara debates acalorados. Boa parte dos intelectuais do Estado, ligados, em sua

maioria, ao Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul (IHGRS), era, nas décadas

de vinte a sessenta pelo menos, refratária à idéia de que a história das reduções indígenas sob

o controle jesuíta e comando do império espanhol pudesse ser agregada ao Rio Grande luso e

brasileiro. Tal posição se conforma com o que Letícia Nedel classificou como um dos

“registros” em tensão sobre a posição-limite do Estado no concerto nacional, no qual o foco

de atenção dava-se sobre a geopolítica, na história das “marchas e contramarchas de Portugal

e Espanha sobre o Rio Grande de São Pedro”.402

O segundo tipo de registro, segundo Nedel,

privilegiava a identificação de um sujeito folk, “associado ao mundo rural, à condição de

rebaixamento social e à intimidade com o meio físico”, e concebia a aproximação com a

399

FIGUEIREDO, Joana Bosak de. Op. cit., p. 38. 400

Ibidem. 401

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. Op. cit., p. 38. 402

NEDEL, Letícia Borges. Regionalismo, historiografia e memória: Sepé Tiaraju em dois tempos. Anos 90.

Porto Alegre, v. 11, n. 19/20, jan./dez. 2004, p. 358.

128

gauchesca platina.403

Em 1955, o chamado “caso Sepé” opôs intelectuais ligados às duas

vertentes. O IHGRS fora acionado pelo então governador do Estado, Ildo Meneghetti, para

verificar a validade da proposta do Major João Carlos Nobre da Veiga de erigir um

monumento em honra aos duzentos anos da morte do índio guarani Sepé Tiaraju, que liderara

a resistência missioneira às tropas lusas e castelhanas na Guerra Guaranítica. A comissão do

Instituto, liderada por Moysés Vellinho, dera parecer negativo, o que causou reação de

intelectuais que comungavam a segunda perspectiva, como Mansueto Bernardi e o grupo de

historiadores folcloristas ligados a Dante de Daytano e à Comissão Estadual de Folclore.

Como mostrado por Letícia Nedel, o episódio originara debates e protestos que ganharam as

páginas dos jornais durante muito tempo e ecoaram na produção artística tradicionalista e

nativista.404

Em fevereiro de 1956, com a proximidade do bicentenário da morte de Sepé, Barbosa

Lessa escrevera um texto se posicionando na contenda. Surpreendentemente, nosso autor

acabava por criticar ambos os grupos de intelectuais envolvidos no caso: “Há duas correntes

intelectuais, no Rio Grande do Sul, que bipartem os estudos históricos: a dos lusitanófilos e a

dos hispanófilos. Nessas circunstâncias, somente pode merecer reconhecimento público, na

província, o herói que previamente tenha estudado História Universal e optado claramente por

uma das duas filiações”.405

Além disso, se Tiarajú tivesse sido um “nobre cavaleiro das côrtes

ibéricas”, nos diz o escritor, Portugal e Espanha lutariam pela primazia em comemorar

festivamente a data que passava, e ele “seria então herói espanhol, sob a alegação de ter

combatido Portugal, ou herói português, sob a alegação de ter combatido Espanha”. Em sua

ótica, a recuperação de Sepé seria justa e correta, mas devido à sua força como mito, já que

seus feitos teriam sido conduzidos por ideais universais: “Naquele momento, na alma de

Tiarajú fervilhavam sentimentos que sobrepairam às correntes históricas, às escolas literárias

e mesmo às convenções de nacionalidades: incentivavam-no os sentimentos mais provundos

de amor à família, à gleba e à liberdade”. A crítica às divergências nacionalistas dos cultores

oficiais da memória do Rio Grande não apela a circunlóquios: “Valha Sepé Tiarajú – na época

porque passa o nosso mundo – como um símbolo de resistência às patriotadas [grifo meu].

Com esse valor, certamente, o herói não merecerá o acatamento daqueles que tomam o pulso

403

Ibidem. 404

No artigo citado, a autora também analisa uma payada (gênero situado entre a música e a poesia), gravada em

1981, de Noel Guarany, “compositor e intérprete que, além de reivindicar a herança missioneira para os

habitantes do estado, retrata o herói civilizador gaúcho como tipo humano originário (autóctone) de um território

mais antigo que o Brasil, não só contíguo ao Prata, mas integrado a ele”. Ibidem, p. 349. 405

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. Segundo centenário de Tiarajú. Manuscrito. Fevereiro de 1956. Pasta 20.1

do Acervo Barbosa Lessa.

129

da História com medidas da Política Internacional”. Canonizado pelo povo, entretanto, Sepé

Tiarajú teria a reverência de todos os humildes: “Por isso mesmo, a data de 7 de fevereiro será

comemorada com maior grandeza ainda, pois ao invés de agitar-se no fanfarroneio das

avenidas, recolher-se-á ao convívio silencioso e amigo de todos os tiarajús que cada homem

traz consigo no âmago de sua alma”. Apesar da condenação indicriminada dos motivos de

ambos os grupos que se degladiavam no caso, os alvos principais do texto eram, obviamente,

os intelectuais que negaram, em parecer, a reverência ao herói indígena. Como vimos acima,

as procupações de Barbosa Lessa extrapolavam o âmbito da região, à medida que esta se

configurava em um dos acessos à brasilidade. Sua tese previa a extensão das políticas

culturais e sociais baseadas no modelo do gaúcho mítico a todo o país. Em muitos momentos,

como no texto de apresentação do Boletim do “35”, nosso autor não teve pudor em manifestar

seu patriotismo. O patriotismo, no entanto, não deveria ser confundido com as “patriotadas”

que cegavam os homens de cultura frente a valores tão nobres como aqueles que Sepé

simbolizaria.

Tal postura “universalista” não pode, todavia, esconder suas simpatias pela inclusão da

memória missioneira ao patrimônio do Estado. Recolhido/escrito e publicado no calor deste

embate, o conto de Barbosa Lessa indicava pública e claramente tal posição: incluir como

parte do repertório de contos “regionais” uma lenda missioneira de matriz indígena

significava incorporar à memória oficial aquele pedaço de Rio Grande cuja historicidade fora

negada pelos intelectuais do IHGRS. Sendo, ainda, narrada por uma descendente de guaranis

e portugueses (uma complacente e significativa concessão dentro da lógica da obra), a história

une simbolicamente os dois povos na formação do brasileiro sul-rio-grandense. A relação

entre Barbosa Lessa e o grupo de historiadores-folcloristas que apoiava Mansueto Bernardi –

que será explorada no próximo capítulo – também se dava pela sua opção por uma memória

tanto tributária da literatura gauchesca quanto coletora da tradição oral, que, como mostrado

por Letícia Nedel, “sugeria uma relativa variação de temas em relação ao repertório clássico

da historiografia, sobretudo porque o local ali se fazia representar por um novo sujeito

histórico, pelo „guardião‟ de um passado vivenciado na prática: o „povo‟, único elemento

capaz de revelar o „substrato psíquico‟ da província”.406

A preocupação com a definição de “povo” e “popular” e com políticas de espectro

variado para o suporte do objeto designado pelos termos estivera, como vimos, presente na

formulação do projeto intelectual de Lessa e na sua perspectiva do projeto tradicionalista,

406

NEDEL, Letícia Borges. Op. cit., p. 368.

130

manifestando-se em 1956 na constatação de que as “gentes humildes” não abandonariam o

santo Sepé no bicentenário de seu sacrifício. O foco da poética da tradição deveria ser, pois,

este sujeito histórico identificado ao gaúcho campeiro e “simples” e, portanto, mais uma vez

oposto ao gaúcho elitista, militarizado e nobilitado pela historiografia. Este, entretanto,

também comparece aos escritos de nosso autor, como veremos ao longo dos próximos

capítulos, talvez devido ao seu anseio pela incorporação dos mais variados segmentos da

sociedade sul-rio-grandense na atualização do mito.

3.4 – Mulheres e homens de papel: a invenção literária da “prenda” e o último suspiro

do andarengo

O que há de mais inovador na literatura regionalista de Barbosa Lessa, como apontado

por Joana Bosak de Figueiredo, possivelmente é a atenção dada ao papel da mulher na

formação do caráter regional. “Mboi-guaçu” é uma história de resistência feminina. A voz da

velha mestiça apresenta a lenda da “cobra grande” que cercara as ruínas de São Miguel, finda

a Guerra Guaranítica. Com seus homens mortos nas batalhas, restara às mulheres abrigarem-

se, com as crianças, no interior da sala grande da igreja. O mato tomara conta das lavouras e

aproximara-se das portas da redução. Com ele chegou a mboi-guaçu, conhecida outrora

apenas dos relatos daqueles homens que se aventuravam pelo sertão. A cobra grande

espantara os tigres e os morcegos que rondavam o lugar, mas, impossibilitada de chegar ao

centro da praça, devido à barreira aos matagais constituída pelo chão pisado por muita gente,

abrigara-se na sala dos sinos, de onde exigia, com o badalar destes, a refeição que saciasse sua

fome. O barulho ensurdecedor enlouquecera a primeira mulher, que sacrificara seu filho para

cessar o martírio. Quando a fome de mboi-guaçú voltava, outra mulher seguia seu exemplo,

até que, de tanto se alimentar de carne tenra, a cobra explodira e deixara as últimas

sobreviventes seguirem sua sina em paz. Barbosa Lessa não se furtara de interpretar a lenda.

Na apresentação da estória, nosso autor relaciona o sacrifício dos filhos à cobra àquele feito às

tropas de guerra: “Se, dentre os leitores, encontrar-se alguém propenso a traçar simbolismos,

talvez possa perceber, na história da Mboi-Guaçu, certa correlação com a compreensível

131

angústia que as pobres viúvas guaranis – vítimas da guerra, e desamparadas em sua desdita –

por certo sentiam ao entregar seus filhos às forças de recrutamento militar”.407

Ao relatar uma história das mulheres na voz de uma delas, nosso escritor inova

duplamente. Uma gauchesca assim construída talvez responda aos avanços e conquistas

femininas do pós-guerra, quando as mulheres passaram a assumir, com maior peso, funções e

posições até então predominantemente masculinas. No Brasil, este processo é intensificado

pela ascensão da classe média, como mostrado por Carla Bassanezi.408

Os anos quarenta e

cinqüenta assistem, assim, ao crescimento da participação feminina no mercado de trabalho, e

também à ocupação dos espaços públicos por esse segmento da população. Nesse contexto, o

tradicionalismo organizado buscou, desde muito cedo, incorporar mulheres às suas fileiras de

militantes. Alguns dos desdobramentos da ritualística construída por seus líderes, como as

danças tradicionais, teriam sido fruto, segundo crônica memorialística de Barbosa Lessa, de

uma espécie de “aflição” de gênero409

: “Naquela época estávamos mui interessados em

descobrir uma fórmula que permitisse atrair „prendas‟ para o tradicionalismo”.410

Como ainda

veremos no próximo capítulo, a invenção da “prenda”, que incluiu uma vestimenta

característica sem precedentes históricos, exigiu sua definição como conceito. Assim, a

literatura de Barbosa Lessa fala de mulheres porque também fala para mulheres e, dessa

forma, predica-lhes determinados valores e posturas adequadas.

Seu primeiro romance, Os Guaxos411

, publicado em 1958, texto desenvolvido a partir

da peça de teatro Não te assusta Zacaria!, continuava atento ao papel feminino no imaginário

gauchesco. Chama a atenção o fato de que a primeira edição condensada – a 3a - do livro,

407

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. Op. cit., p. 38. 408

BASSANEZZI, Carla. Mulheres dos anos dourados. In: DEL PRIORI, Maria (org.). História das Mulheres

no

Brasil. São Paulo: Contexto, 1997. 409

O emprego do termo “gênero” neste trabalho comunga a perspectiva que considera as relações entre os sexos

como social e culturalmente construídas. Dessa forma, categorias como “mulher” e “homem” são significadas

contextualmente (e de forma relacional). A literatura é uma das modalidades discursivas que pode dotá-las de

sentido. Segundo Joan Scott, o gênero deve ser entendido como “um elemento constitutivo de relações sociais

baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos”, mas também enquanto “uma forma primária de dar

significado às relações de poder”. SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação &

Realidade. Porto Alegre, v. 20, n. 2, p. 86. Sendo assim, entendo que as representações sociais que operam na

construção da identidade regional são também estabelecidas a partir de um conjunto de referências de gênero que

“estruturam a percepção e a organização concreta de toda a vida social”. Ibidem, p. 88. 410

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. Crônicas do Passado Presente. Op. cit., p. 2002, p. 178. 411

A palavra “guaxo” designa o terneiro criado sem o leite materno, ou seja, denomina metaforicamente o

“desgarrado”, indivíduo sem raízes e sem paradeiro fixo. No vocabulário publicado em 1960 como apêndice da

seleção de contos e lendas do Rio Grande do Sul organizada por Barbosa Lessa para a coleção “Antologia

Ilustrada do Folclore Brasileiro”, da editora Literart, o autor nos dá uma definição “folclórica” minuciosa do

termo: “Animal que foi ou está sendo criado sem o leito materno. Por extensão, diz-se também da criança que

não tem mãe ou dela foi separada na idade da amamentação; o ovo que o avestruz põe fora do ninho e que os

outros pássaros põem em ninho alheio; o pé de milho ou feijão, que nascem à toa, sem os cuidados da capina”.

Idem (org.). Estórias e lendas do Rio Grande do Sul. São Paulo: Literart, 1960, p. 293.

132

publicada em 1984, recebeu o expressivo subtítulo de “o romance do gaúcho a cavalo e da

mulher de estância”.412

Mesmo que Barbosa Lessa construa seus personagens seguindo um

modelo androheterocentrado, em que o binômio masculino/feminino estruturador da lógica

narrativa continua reservando ao primeiro pólo os privilégios da diferença, encontramos

também uma certa flexibilização dos padrões de feminilidade tradicional.413

As personagens

femininas mais relevantes, Celita, Sia Bela, Zefinha e Ruana, encarnam diferentes papéis que,

grosso modo, ocupam lugares distintos numa escala valorativa entre dois modelos de ser

mulher: a “mulher guaxa”, com sina de china, e a “mulher prendada”, esposa e mãe. O

segundo é o ideal, a regra, o desejado; o primeiro é mais do que marginal, é o do ostracismo

social. Ainda assim, todas são mulheres, todas são “teiniaguás”414

. Umas mais, outras menos,

como salienta o narrador. E por isso mesmo, maior o mérito daquelas que conseguem

suprimir sua natureza de feiticeira de homens. Ruana cedeu ao destino de mulher bonita. Mas,

ao invés da condenação, obteve a fatalidade. Era para ser assim. Sia Bela, sua mãe adotiva,

ex-amásia do patrão da Estância Azul, onde a trama se desenvolve, lutou para renegar a

mesma sorte. Teve que provar que não era china, mas uma respeitosa senhora do lar, a custa

de novos amores. Deixou de ser mulher para ser somente esposa de um marido inexistente. Já

412

A quinta e última edição, publicada pela Editora Alcance em 2002 através de convênio com a COPESUL,

carrega apenas o epíteto de “romance do gaúcho a cavalo”. 413

Tais assertivas foram desenvolvidas no seguinte artigo: ZALLA, Jocelito. Homens e mulheres de papel ou

Como se faz um “bom” gaúcho: desconstruindo a desigualdade de gênero na gauchesca de Barbosa Lessa - Os

Guaxos (1959). Caderno Espaço Feminino. Uberlândia, v. 20, n. 2, ago/dez 2008, p. 209-235. 414

A estória da “Teiniaguá”, fixada primeiramente por Simões Lopes Neto, trata dos perigos da sedução

feminina. Nela, uma princesa moura, transformada por uma divindade indígena em uma pequena lagartixa ou

numa salamandra (também designada pela corruptela “salamanca”, fazendo referência à cidade espanhola

ocupada pelos árabes de onde ela teria fugido, disfarçada de cristã) que carrega uma pedra preciosa no lugar da

cabeça, encanta um sacristão guarani na época das Missões Jesuíticas. Cego pela cobiça (aquele que fosse dono

da teiniaguá se tornaria o homem mais rico do mundo) e pela luxúria, ele cai em desgraça e é punido com a

morte pelos “santos padres”. Após ser salvo por sua amada teiniaguá, ambos ficam presos em uma caverna no

morro do Jarau, na região de fronteira entre Brasil e Uruguai, à espera de alguém que os salve, em troca de

presentes ou dons mágicos – ou, em outras versões, da localização das sete furnas que esconderiam grandes

tesouros. Luiz Marobin analisou a lenda através do arquétipo feminino que a fundamentaria. Para o autor, os

relatos de Simões Lopes Neto e de Erico Veríssimo condizem com a tradição cultural indígena do Rio Grande,

Argentina, Uruguai e Paraguai, “na caracterização da imagem mítica de uma mulher que teve pacto com o

diabo”. Sua missão no mundo seria “seduzir e fazer mal aos homens”. MAROBIN, Luiz. Imagens arquetípicas

de Teiniaguá. In.: MARONBIN, Luiz. Imagens Arquetípicas em O Continente, de Erico Veríssimo. São

Leopoldo: Editora UNISINOS, 1997, p. 120. As variações da lenda descrevem diversas provas que o gaúcho

deveria passar para encontrar a princesa moura e tomar seu prêmio. Uma das mais comuns, narrada também em

“causos” de galpão, segundo Ondina Fachel Leal, conta a história do homem que mesmo tendo enfrentado todos

os testes, rejeitara a recompensa. Esta autora interpretou o mito como metáfora para a constituição da

masculinidade na cultura gaúcha. Todos os elementos oferecidos pela teiniaguá seriam componentes da

identidade masculina (dons e habilidades prescritos pelo grupo para se obter prestígio e reconhecimento como

verdadeiro gaúcho). Mas o homem pode perdê-los se sucumbir aos charmes ilusórios da mulher teiniaguá.

Segundo a antropóloga, então: “A narrativa da teiniaguá é um mito fundante da sociedade pastoril gaúcha, trata-

se do relato da autonomia do ser masculino, da auto-gestação do homem gaúcho”. LEAL, Ondina Fachel. O

Mito da Salamanca do Jarau: A Constituição do Sujeito Masculino na Cultura Gaúcha. Cadernos de

Antropologia. Porto Alegre, n. 7, 1992, p. 14.

133

Zefinha e Celita, filhas dos posteiros da estância, contaram com o amparo de famílias

tradicionais estruturadas que lhe garantiram vida decente.

A valorização do patriarcado415

é evidenciada logo no começo da narrativa: nos

tempos antigos da Estância Azul, o Coronel solicitara ao posteiro Lauro Freire que sua filha,

Elvirinha, servisse de criada na casa grande; esse, de prontidão responde: “Desculpe, patrão,

mas, enquanto houver um Freire-macho para sustentar a casa, Freire-mulher não trabalha de

peona”.416

Nascidas e criadas com pais provedores e mães zelosas, Zefinha e Celita têm nestas

um exemplo bonito. No entanto, há uma diferenciação entre elas. Enquanto Zefinha é frágil,

tímida e envergonhada de si e de seu corpo, Celita não é um “bibelô de enfeito”, ela é forte,

preparada para as tarefas mais duras da casa e possui um corpo apropriado para parir gaúchos

robustos:

“Celita não era propriamente uma moça bonita. Mesmo porque a vida

trabalhosa no Posto não lhe deixava muito tempo para enfeitar-se, atarefada

que estava sempre com a cozinha, o arroio, o galinheiro, o chiqueiro e a

horta; mas, se por um lado aquele modo de viver lhe diminuíra os enfeites

físicos, por outra parte lhe dera um corpo rijo e uma saúde extrema. Era,

positivamente, uma camponesa saudável e forte – da estirpe daquelas

gaúchas que nos tempos brabos de guerra ficavam dirigindo sozinhas um

Posto ou uma estância enquanto os parentes machos peleavam. Não era

mulher de enfeite: era cabocla para parir filhos de bronze”.417

Ambas são mulheres; e mulheres esperam: “Esperam a volta dos rodeios ou a volta

dos combates”. A mulher gaúcha é o “elemento passivo – como a terra – a quem não cabe

uma palavra de queixume ou gesto de revolta”. É a sina de todas: “Se assim é, foi porque o

destino quis”.418

No entanto, as constatações acabam por se revelar em criticas à condição de

subordinação, deixando brechas para outra interpretação: “Mas esta religião fatalista jamais

impôs que os humanos se sentissem indefesos e, de antemão, derrotados. Cada um deve tirar e

descobrir dentro de si a força que possui”.419

As mulheres, assim, ao mesmo tempo em que

são iguais, são também todas diferentes. Na diferença, elas podem encontrar sua força – no

415

O termo é utilizado aqui em sua acepção corrente de sistema onde o patriarca, homem chefe da família,

exerce a autoridade máxima. Não se trata aqui, portanto, de retomar a teoria do patriarcado nos estudos de

gênero, as quais, segundo Scott, acabaram por tomar a diferença física entre os sexos como foco das análises,

entendendo-a como dado imutável e universal: “ela pressupõe um significado permanente ou inerente para o

corpo humano – fora de uma construção social ou cultural – e, em conseqüência, a a-historicidade do próprio

gênero”. SCOTT, Joan. Op. cit., p. 78. 416

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. Os Guaxos. São Paulo: Livraria Francisco Alves, 1959, p. 55. 417

Ibidem, p. 151. 418

Ibidem, p. 118. 419

“Lina Peixoto alimentou em seu ventre o filho que lhe trouxe a redenção. Sia Bela alimentou em seu rancho a

filha com que voltou à casa-grande. Ruana alimenta em seu corpo feitiços que os homens temem. E se Zefinha

não possui tais feitiços pode porém apelar às artes de Tia Velha. Ibidem.

134

domínio das lidas domésticas, no domínio do amor ou no domínio da vida –, mas é na

igualdade que brota a força específica de cada uma delas. Tia Velha, por exemplo, é temida

por todos, pois faz mandingas, benzeduras, cura doenças, protege as plantas e, se quiser, cria

paixões: “E os homens todos, na estância, sabem que Tia Velha, a velha escrava, um traste,

tem mais força que eles próprios. Tem força porque é mulher. Mexe os cordões do Destino.

Só as mulheres tem tal força”.420

É essa força que se manifesta mais em Celita do que em

Zefinha.

Portanto, é inegável que existe, na narrativa, uma valorização dessa mulher forte e,

conseqüentemente, de todas as mulheres. Ainda que parta de padrões tradicionais de

feminilidade, Barbosa Lessa os reconfigura, para dar à mulher gaúcha um espaço no mito tão

grande quanto o que as novas prendas deveriam ocupar nos CTGs. O elemento da passividade

é identificado na mulher em sua relação com o macho ativo. Isso não significa que ela não

desempenhe papéis importantes na ordem social. Para tanto, são necessárias a força física e

também a força mística que toda mulher “emana naturalmente”. Barbosa Lessa confere,

assim, não só às mulheres prendadas, mas também às bravas, como as farroupilhas de outrora,

uma postura socialmente forte.

Tais mulheres seriam dignas de companheiros à altura. E o “homem ideal” acaba

associado ao peão de estância celebrado pelo tradicionalismo. Tal configuração exigia, assim,

seu distanciamento daquele outro modelo narrado pela literatura regionalista e vivo nos versos

do folclore, recuperado, como vimos, também em alguns textos de nosso autor: o gaúcho

errante, livre e sem paradeiro fixo, senhor das coxilhas sem cercas, agora, designado de

“guaxo”. A narrativa de Barbosa Lessa centra-se na difícil, e às vezes divertida, luta de

Zacaria para deixar de ser um andarengo e tornar-se um peão, ou seja, largar uma vida sem

futuro e conquistar estabilidade e reconhecimento. O personagem principal é apresentado

inicialmente como um “homem sem rancho nem família”, que “tinha no cavalo com que

cortava o pampa uma espécie de irmão”.421

Um gaúcho errante que é incapaz de sentar praça e

constituir família:

“Zacaria, desde que agarrara fama de bom domador, já perdera a conta dos

cavalos de estampa e boa raça que tivera entre seus joelhos fortes e sob o

controle de seus punhos de aço; mas isto só na hora do perigo, na fúria da doma, na ameaça das quedas fatais; pois, uma vez domado o „pingo‟, ele

dava um abano em despedida ao fazendeiro rindo de contente em cima do

cavalo fogoso e luzidio... e lá se ia rumo a outra estância montado num

420

Ibidem. 421

Ibidem, p. 28.

135

matunguinho perna-torta, lerdo, velho, tropicão, maceta, que uma alma-boa

um dia lhe presenteara por não saber o que fazer com aquilo”.422

Mas a vida de andarengo que Zacaria leva é também uma vida de incertezas: sem

chão, sem teto e sem rumo. Após criar fama como domador, cansa-se da vida errante e pede

abrigo no lugar onde fora criado como “piá” agregado, a Estância Azul do velho Meirelles.

Nela, postula ascender ao posto de capataz da nova invernada que o patrão planeja abrir nas

terras “do fundo”. Numa noite de trova à beira do fogo de chão no galpão da estância, Zacaria

deixa entrever seus planos aos demais peões. Na roda de chimarrão, o elogio do gaúcho

errante aparece facilmente como motivo de cantos e trovas. Nosso protagonista, então, denota

sua insatisfação: “...Um homem sem raiz na terra não vale nada”.423

Diante do silêncio,

Gateado, peão que acabaria por deixar a lida na estância para “ganhar mundo”, responde a

Zacaria: “Um homem, quando vale, vale por si, não precisa de terra”. Aquele esclarece:

“Quando eu falo em „terra‟, moço, não digo chão, pasto, capim”. E continua: “...digo rancho,

esposa e filho”.

Oposto do andarengo é o peão Vírsio, modelo de retidão, força e habilidade. Apareceu

na estância do velho Meirelles na companhia do irmão, Nérsio, pedindo abrigo. Acabou por

revelar maestria nas lidas do campo e sentou paragem: “um „homem pra tudo‟, capaz de

responder por uma capatazia de tropa ou sota-capazia de estância”.424

Vírsio é bravo, é

corajoso, é forte, com o “porte sobranceiro dos verdadeiros gaúchos „de lei‟”; contudo, é

delicado, bonachão prestativo e sorridente. Delicadeza não significa, para o autor, a perda da

masculinidade. Ao contrário, quando associada a um macho de inegável estirpe, é considerada

um atributo positivo, ligado à alegria de bem viver, ao sorriso fácil como fácil é a conquista

das amizades. Vírsio é, ainda, dedicado, trabalhador e honrado. Fez valer a confiança

depositada pelo patrão e se tornou o responsável pelas tropeadas. Não é dado a vícios e, sendo

jovem, torna-se alvo da atenção das moças das redondezas. Peão ideal, seria também marido e

pai ideal, capaz de prover a família em todas suas necessidades e de honrar a esposa, como

fora Lauro Freire e os outros posteiros da Estância Azul.

Dessa forma, a grande saga de Zacaria é aquela de tornar-se Vírsio: escapar da sina de

“desgarrado” e alcançar o modelo do peão capaz e digno de ser pai e marido provedor. Num

primeiro instante, poderíamos concluir que não há grandes inovações na narrativa de Barbosa

Lessa no tocante às representações tradicionais do gênero masculino. No entanto, se

422

Ibidem, p. 29. 423

Ibidem, p. 88. 424

Ibidem, p. 30.

136

compararmos o modelo de peão propagado pelo autor com os valores correntes na cultura

gauchesca, fixados também na literatura folclórica, um rico debate, que se desdobra em uma

nova disputa, descortina-se ao pesquisador. Quando Ondina Fachel Leal empreendeu sua

pesquisa de campo, nos anos oitenta, com gaúchos da região de fronteira entre Brasil e

Uruguai, que originaria sua tese de doutorado, deparou-se com diversas narrativas de suicídio.

A estatística comprovava a maior incidência deste tipo de morte no Rio Grande do Sul do que

no restante do país e, dentro do Estado, naquela região da campanha essencialmente rural. Em

artigo publicado em 1992, a autora explica o fenômeno através da cultura gaúcha de

“liberdade”, mas também de misoginia. Nela, o ato extremo pode não ser recomendado, mas é

considerado como “de direito”, ou seja, lícito desde que não afete outras pessoas. Tanto as

narrativas orais recolhidas pela antropóloga quanto os dados estatísticos evidenciavam o

suicídio como possibilidade para homens solteiros, com mais de quarenta anos, quer dizer, a

partir do momento em que o corpo não responde tão facilmente às necessidades das lidas de

peão: “O gaúcho – o cavaleiro – não tem alternativas fora deste universo de cavalos e

rebanhos. Mas mesmo que quem está de fora deste mundo perceba o suicídio como resultante

da falta de alternativas sociais para o gaúcho, ele entende esta morte como ato de dignidade,

arrogância e liberdade”.425

A principal modalidade de suicídio, o enforcamento, possui força simbólica, já que o

laço é o instrumento de trabalho que denota controle. Até em seu último ato, então, o suicida

mantém a ilusão de que ninguém possui o domínio sobre ele. Desta forma, a cultura gaúcha

predica ao homem a fuga de outros laços metafóricos que possam lhe destituir esse controle

de si:

“Por toda a sua vida o gaúcho evita laços, para ele casamento ou filhos

significa estar amarrado, enrolado. Mulher é um laço que sufoca. Ter ou

cultivar a terra significa criar laços ou vínculos. Quer porque não lhe é

permitido ter estes laços, ou porque ele não quer ter amarras (e cria todo um

universo simbólico justificando sua impossibilidade de ter vínculos e posses),

o fato é que o gaúcho não possui estes laços: ela não possui nada que o

prenda, mantendo-o vinculado ao solo”.426

Se estas são características presentes no imaginário gauchesco, como afirma Ondina

Fachel Leal, a valorização do peão que constitui família e “rancho” é uma maneira de Barbosa

425

LEAL, Ondina Fachel. Honra, morte e masculinidade na cultura gaúcha. In.: TEIXEIRA, Sérgio Alves, ORO,

Ari Pedro (orgs.). Brasil & França: ensaios de Antropologia Social. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1992, p.

145. 426

Ibidem.

137

Lessa intervir nesse universo.427

Dessa forma, nosso autor reconstrói os padrões de

masculinidade e sociabilidade dominantes, redefinindo a conduta do militante da “tradição”

de acordo com os valores presentes em sua literatura. A moral gauchesca é reconfigurada na

doutrina tradicionalista para abrigar um padrão de “gaúcho” muito mais urbano do que rural.

Assim, a relação com o feminino se transforma radicalmente. O “centauro das coxilhas” não

pode mais ver degradação em estar acompanhado de uma mulher (ou mesmo dela depender

de alguma maneira).428

De outro lado, o novo modelo de peão tradicionalista acaba por questionar a

organização social da estância. As ausências da mulher, da família e de um paradeiro fixo são

produtos das condições sociais e da forma como a produção pastoril está estruturada, como

apontou Ondina Fachel Leal.429

Se a ressemantização do mito incorpora os valores e padrões

do mundo urbano, possibilitando a fundação nas cidades dos Centros de Tradições,

politicamente ela indica uma alternativa ao homem do campo: a pequena propriedade. Manter

um pedaço de chão fora da estância, que possibilite a sobrevivência de uma família – unidade

social mais importante para a manutenção da coesão cultural, como vimos acima – através da

criação, mas também da lavoura, pode ser a solução para a crise enfrentada pelo Estado. A

literatura de Barbosa Lessa, assim, continua empenhada naqueles preceitos políticos que o

autor formulara para o tradicionalismo, ou seja, a fixação e o acompanhamento social do

campeiro. Se ela ressignifica a moral gauchesca é porque, de alguma forma, deve inscrever no

imaginário local a possibilidade de mudança. Para que a triste realidade do gaúcho a pé se

427

Já em 1948, quando começava suas pesquisas sobre vocabulário e “filosofia campeira”, nosso autor recolheu

adágios populares que desvalorizavam a mulher e/ou recomendavam cuidado no trato com elas, além de

compará-las com objetos ou animais, como por exemplo: “As mulheres são como as cobras, quanto mais finas e

menores, mais veneno têm”; ou “Cavalo mui escarceador e mulher mui linda, quase sempre fazem pagar mui

caro ao dono o orgulho de tê-los”. LESSA, Luiz Carlos. Filosofia Gauchesca. Manuscrito. Abirl de 1948. Pasta

17.7-1 do Acervo Barbosa Lessa. Provérbios deste tipo, que comprovariam a misoginia presente na cultura

gauchesca, também foram transcritos em trabalho de Paixão Côrtes apresentado à Comissão Nacional de

Folclore, em 1958: “Mulher, cachaça e bolacha, em qualquer canto se acha”; “Falso que nem idade de mulher”;

“Desorganizado que nem estância de viúva”; ou, ainda: “Mulher é bicho falador que nem catorrita de

madrugada”. PAIXÃO CÔRTES, João Carlos. Vestimenta Crioula. IBECC/CNFL/DOC 415, de 2/12/1958.

Pasta 17.2-1 do Acervo Barbosa Lessa. 428

No relato de Cyro Dutra Ferreira, um dos fundadores do “35”CTG, a inclusão das mulheres no

tradicionalismo demorou a acontecer devido ao conservadorismo da cultura agrária dos jovens envolvidos no

movimento, mas numa ótica diferente: “Ocorre que, no seu nascedouro, os principais companheiros de

vanguarda eram, antes de mais nada, jovens do campo, e, como tal, traziam a formação do nosso gaúcho, do

homem da campanha, que não admitia que sua família, (esposa e filhas mulheres) freqüentassem, a qualquer

pretexto, os galpões das estâncias. Ora, as nossas reuniões, exceto as primeiras, em fins de 1947, ocorridas na

residência da D. Fátima [mãe de Paixão Côrtes], foram realizadas invariavelmente à roda de um fogo de chão,

bem ao estilo galponeiro dos nossos pagos”. FERREIRA, Cyro Dutra. 35 CTG: O Pioneiro do Movimento

Tradicionalista Gaúcho – MTG. Porto Alegre: 35 CTG, 1991, p. 88. 429

Ibidem, p. 147.

138

transformasse, o andarengo celebrado pelo mito, assim como o peão avesso aos laços

familiares e à idéia de “fincar pé” no campo, não poderiam sobreviver.

* * *

Assim como auxilia a definir o novo conceito de “prenda”, a literatura de Barbosa

Lessa elabora determinados modelos de conduta a serem seguidos pelos novos peões

tradicionalistas. Com exemplos de postura e parábolas morais, nosso autor continua a

redesenhar o mito de acordo com as necessidades sentidas no momento em que vive e cria, e

as condições presentes no movimento tradicionalista em específico, mas também no contexto

social mais amplo do Rio Grande do Sul. Se a tese de 1954 define um ideário político para o

projeto tradicionalista e alguns marcos do “popular” em que ele deveria se referendar, os

textos literários também enunciam valores políticos, morais e estéticos que deveriam guiar o

bom militante, mas também todo aquele gaúcho gentílico que reconhecesse no amor à sua

terra a fonte para uma vida plena. Dessa forma, nosso autor se empenha em disputas pela

reconfiguração do “centauro da Pampa”, que envolvem diversas frentes. Ele incorpora outros

sujeitos em sua narrativa sobre a formação social do Rio Grande do Sul e dá voz àqueles

grupos calados ou marginalizados. O negro, a mulher, o índio missioneiro, o imigrante

lavrador, o luso e o hispânico, todos devem compor e instituir a memória oficial do Estado.

Em última instância, Barbosa Lessa se empenha na reconstrução do sujeito folk da região,

ampliando a noção de “povo” que o fundamenta.

A dimensão folclórica não perdera, aliás, a prioridade em seu projeto intelectual. O

afastamento progressivo do movimento tradicionalista, devido à distância e ao tempo

dedicado aos trabalhos na cena artística de São Paulo, não prejudicou seus estudos sobre o

folclore do Brasil e dos países platinos, nem seu empenho criativo na elaboração de bens

culturais neles baseados.430

Mas foi a dedicação à edificação do tradicionalismo que

430

Antecedeu a composição e produção da peça Não te assusta, Zacaria!, de 1956, uma primeira experiência

teatral encenada pelo recém-fundado Grupo Folclórico Brasileiro no Teatro de Arena de São Paulo, em 1955,

intitulada Danças gaúchas. Conforme as memórias epistolares do autor, o roteiro destinava-se principalmente a

“costurar” as danças apresentadas. Com o mesmo grupo, Barbosa Lessa ainda apresentaria espetáculos baseados

nos estudos de folclore, como Rainha de Moçambique, de 1958, fruto de pesquisas de campo sobre os “bailados

de Moçambique” no interior de São Paulo. Tais experiências repercutiram também nas produções para a TV,

como o já citado programa “Feira de Sorocaba”, na Record e, mais tarde, programas musicais na Excelsior. Ver

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. Prezado Amigo Fulano. Op. cit. Já em 1962, o Barbosa Lessa publicitário se

apresentava como folclorista a uma empresa de propaganda para conquistar a conta com a Vinhos Dreher,

139

impulsionou tais estudos e lhe rendeu relações com o movimento folclórico brasileiro no

período. A construção das tradições gaúchas cultivadas nos novos CTGs é tanto fruto das

(re)leituras de trabalhos precedentes de eruditos como Augusto Meyer, Simões Lopes Neto e

Apolinário Porto Alegre, quanto das atividades desenvolvidas no seio da Comissão Estadual

de Folclore, comandada por Dante de Laytano, como veremos no próximo capítulo.

através de uma pesquisa realizada, durante dois anos, sobre a “culinária brasileira”, do “Amazonas até o Rio

Grande do Sul”. A proposta da “Barbosa Lessa Produções Artísticas LTDA.” se encontra na pasta 17.5-1 do

Acervo Barbosa Lessa.

140

Capítulo IV – Do mito ao rito: folclore, tradição e performance

Como vimos na introdução deste trabalho, os textos de Tau Golin apontam para a

existência de duas fases do tradicionalismo, estendendo às sociedades gauchescas das

primeiras décadas do século XX a mesma dinâmica do movimento iniciado pelos rapazes do

“35”, e identificando, nesta história, a continuidade da relação orgânica entre a “ideologia

gaúcha” construída pela elite intelectual e o Estado republicano sob a égide das oligarquias

rurais tradicionais.431

Tal continuidade entre as atividades “tradicionalistas” das duas fases

estaria expressa nos objetivos e características apresentadas nas atas de fundação e outros

documentos escritos deixados pelos clubes que sucederam ao Grêmio Gaúcho, criado em

maio de 1898, na cidade de Porto Alegre, pelo major republicano e “positivista declarado”

João Cezimbra Jacques. Esta entidade, por exemplo, se definia pelo cultivo das “tradições

gaúchas, inspiradas na personalidade inconfundível do ínclito General Bento Gonçalves da

Silva”.432

A iniciativa seria copiada pela União Gaúcha, da cidade de Pelotas, e pelo Centro

Gaúcho, de Bagé, no ano seguinte. Em 1901, surgiria o Grêmio Gaúcho de Santa Maria e, em

1902, as entidades de Santa Cruz do Sul e Encruzilhada do Sul. Em 1938, nasceria a

Sociedade Gaúcha Lomba-Grandense, na região de colonização alemã hoje pertencente ao

município de Novo Hamburgo. A última entidade que precederia à construção do “35” seria o

Clube Farroupilha, de Ijuí, em 1943. A criação de tais sociedades serviu de lastro para

interpretação semelhante presente nos trabalhos de Ruben Oliven e de Maria Eunice Maciel.

Assim como Golin, Oliven inicia sua análise do “movimento tradicionalista gaúcho” através

do que seriam suas primeiras manifestações intelectuais e de seus precedentes institucionais.

A linhagem inicia com o Partenon Literário e passa pela Sociedad La Criolla, fundada no

Uruguai pelo médico Elías Regules, em 1894.433

Já Maciel, em artigo representativo de suas

431

“Na data do nascimento oficial do Tradicionalismo [referência à fundação do Grêmio Gaúcho], Borges de

Medeiros começou o seu primeiro mandato de presidente do Rio Grande do Sul. Esse ano de 1898 marcou a

subida ao poder do dirigente republicano que melhor revelou o pensamento político de Júlio de Castilhos”.

Segue ao trecho citação de Tarso Genro: “O Estado de Direito gaúcho da Constituição de 1891 (redigida por

Castilhos – T.G.) era formalmente autoritário e centralizador, com uma hegemonia de classe absoluta num

Estado em que o poder econômico estava diretamente nas mãos dos grandes proprietários rurais”. GOLIN, Tau.

A ideologia do gauchismo. Op. cit., p. 29. 432

Apud GOLIN, Tau. Ibidem, p. 30. 433

Ver, em específico, o capítulo IV do livro A parte e o todo, intitulado “Em busca do tempo perdido: o

Movimento Tradicionalista Gaúcho”. OLIVEN, Ruben George. Op. Cit, p. 97-134.

141

pesquisas sobre o “tradicionalismo rio-grandense” considera Cezimbra Jacques o fundador do

movimento no Estado.434

Dessa forma, tais pesquisadores acabam por corroborar, involuntariamente, a

construção da memória oficial do grupo pioneiro, que estabelece uma linha de continuidade

direta com as formas precedentes de gauchismo organizado e com os movimentos intelectuais

que se ocuparam da figura mítica do gaúcho. O tradicionalista Hélio Moro Mariante435

, em

1976, por exemplo, na primeira edição dos Cadernos Gaúchos do Instituto Gaúcho de

Tradição e Folclore (IGTF), então Fundação sob seu comando, vinculada ao governo do

Estado, traça a “História do Movimento Tradicionalista Sul-Rio-Grandense” em três

momentos. No primeiro, intitulado “Origens Mediatas”, apresenta a “influência” do Partenon

Literário e a “contribuição uruguaia” representada pela Sociedad Criolla. O autor enfatiza o

papel de “conscientização” desempenhado pelos escritores românticos do Partenon:

“Seu trabalho, que consideramos precursor e fautor das origens mediatas do

tradicionalismo, veio alimentar, sem dúvida, o espírito nativista do gaúcho

que por várias razões abandonaria o campo e se instalaria nos maiores

centros, desenvolvendo atividades outras diferenciadas das que exercia na

campanha e vivendo, em seu novo ambiente, usos e costumes diversos

daqueles que orientaram suas existências até então”.436

No segundo momento, o autor apresenta os clubes “pioneiros”, com exceção das

experiências de Santa Cruz e Encruzilhada que, segundo Golin, só deixaram vestígios de sua

existência em algumas poucas reportagens jornalísticas sobre as atividades das entidades

irmãs.437

Enfim, o tradicionalismo adquiriria características de “movimento”, como “direção”,

“sentido”, “velocidade” e “aceleração”, numa alusão à definição mecânica do termo, após a

fundação do “35”.438

Dessa forma, Mariante, ao mesmo tempo, marca a diferença em relação

aos “precursores”, reivindicando para a experiência da qual participara os louros da expansão

tradicionalista, e estabelece uma filiação nobre e antiga para o movimento com as iniciativas

de reconhecidos nomes da cultura regional. Ao desenhar uma linhagem que remete à segunda

434

MACIEL, Maria Eunice. Tradição e Tradicionalismo no Rio Grande do Sul. Op. cit., p. 132. 435

Foi um dos fundadores do “35” CTG. Integrante do corpo de oficiais da Brigada Militar, se tornaria

historiador desta corporação. Tornou-se diretor do Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore (IGTF) em 1975,

órgão paraestatal fundado em 1954, extinto em 1967 e rearticulado como uma fundação em 1974. 436

MARIANTE, Hélio Moro. História do Tradicionalismo Sul-Rio-Grandense. Cadernos Gaúchos n. 1. Porto

Alegre: IGTF, 1976, p. 6. 437

Paixão Côrtes ainda lista como entidades tradicionalista pioneiras a União Gaúcha Laurenciana, fundada em

1900 no município de São Lourenço, a União Campestre e o Club Gaúcho Arealense, criados em 1902 na cidade

de Pelotas e os Grêmios Gaúchos de Livramento e de Dom Pedrito, fundados em 1904. PAIXÃO CÔRTES,

João Carlos. Origem da Semana Farroupilha: Primórdios do Movimento Tradicionalista. Porto Alegre:

EVANGRAF, 1994, p. 24-25. 438

Ibidem, p. 10.

142

metade do século XIX, pelo menos, ele ainda acaba por legitimar tanto o novo projeto

tradicionalista, quanto as ditas “tradições” por ele “cultivadas”, dotando-as de perenidade e

densidade histórica.439

Como tenho argumentado, assim como o projeto intelectual de Barbosa Lessa, o

tradicionalismo opera com representações sociais de longa duração, se apropriando de,

reconstruindo e atualizando artefatos culturais que remetem mesmo à produção dos primeiros

escribas da antiga província, além dos textos da gauchesca platina. No entanto, as atividades

do grupo de 1947 deram início a um novo projeto coletivo, com dinâmica própria, estrutura

original e a formalização de práticas ritualísticas e simbólicas características do novo

momento. Mesmo as sociedades regionalistas que não haviam encerrado suas atividades em

1948 passaram então a adotar a fisionomia tradicionalista, como aconteceu com a Sociedade

Lomba-Grandense, que incorporaria a sigla “CTG” em 1959. A União Gaúcha se mostra um

caso ainda mais emblemático, pois fora re-fundada aos moldes do “35” em 1950, após

décadas de inatividade. Vale lembrar, ainda uma vez, a advertência de Eric Hobsbawm sobre

a aparente continuidade de movimentos autoproclamados “tradicionalistas”, já que a

articulação de elementos antigos cumpre sempre com finalidades originais nos processos de

construção de tradições. A palavra “tradicionalismo”, aliás, que viria a definir o novo

movimento, como apontado por Letícia Nedel, não representava um marcador da identidade

do grupo no momento de sua configuração.440

Ao contrário, a adoção do termo é fruto do

439

Na apresentação de Antônio Augusto Fagundes, militante que se integraria ao “35” em meados dos anos

cinqüenta e se tornaria um dos principais “porta-vozes” do tradicionalismo na mídia local, ao livro de Cyro

Dutra Ferreira, os mesmos marcos são apontados como precedentes do tradicionalismo. Entretanto, o autor, que

cursara mestrado em Antropologia na UFRGS, possui uma perspectiva diferente. Parecendo aliar a crítica à

memória oficial do grupo ao elogio do empreendimento, Fagundes reivindica a originalidade do primeiro CTG:

“Fique bem claro porém que o Tradicionalismo, tal como o conhecemos atualmente, não deve nada a essas

iniciativas pioneiras. Os jovens que o tornaram possível ignoravam as tentativas havidas antes”. FAGUNDES,

Antonio Augusto. A verdadeira história do tradicionalismo. In: FERREIRA, Cyro Dutra. Op. cit., p. 14. Paixão

Côrtes recua a linha de filiação do tradicionalismo até a primeira tentativa de fundação de um Instituto Histórico

e Geográfico no Rio Grande do Sul, em 1854. No entanto, reivindica certa preeminência à iniciativa do grupo

juliano, ainda que a considere uma “nova fase” do tradicionalismo: “Realmente nada sobrou de palpável da

cultura gauchesca como contribuição desses núcleos agremiativos que tomaram dimensões dirigidas às formais

atividades sociais, bem distintamente do que viria acontecer mais tarde (49 anos depois da fundação do Grêmio

Gaúcho), com o surgimento do atual Movimento Tradicionalista, criando uma fase diferente, com novas

perspectivas que resultaram em amplas projeções – a partir de 1947/48”. PAIXÃO CÔRTES, João Carlos. Op.

cit., p. 25. Barbosa Lessa representa, nesse sentido, uma voz dissonante, pois, ao traçar e analisar a história dos

movimentos telúricos no Rio Grande do Sul, evita o uso do epíteto “tradicionalismo” para denominar as

experiências anteriores, apelando ao termo “nativismo”, semanticamente mais amplo. Ver BARBOSA LESSA,

Luiz Carlos. Nativismo: um fenômeno social gaúcho. Porto Alegre: L&PM, 1985. O livro em questão será objeto

de estudo no capítulo VI. 440

Ao analisar a reportagem especial de Barbosa Lessa, de 1948, sobre o “35” para a Revista do Globo, Nedel

reconhece que o termo “tradicionalista” se referia simplesmente àquele indivíduo “aferrado aos valores e usos do

passado”: “De fato, o tradicionalismo como tal não tinha sido inventado e a palavra sequer consta na fala dos

entrevistados por Lessa”. NEDEL, Letícia Borges. Op. Cit., p. 322. Um ano depois da Ronda Gaúcha, o

jornalista Luiz Carlos Lessa, no entanto, já começava a se referir ao projeto do grupo como “movimento

143

desenvolvimento do projeto inicial dos jovens estudantes “julianos”. A mudança de

perspectiva analítica que aponta para a ruptura representada pela construção do movimento

tradicionalista gaúcho está, assim, presente nos trabalhos desta historiadora, que caracteriza a

dinâmica dos Centros de Tradição Gaúcha da seguinte maneira:

“A intenção é proporcionar aos sócios a experimentação (ou a 'vivência', no

dizer dos atores) dos usos e costumes do passado, prevenindo sua extinção.

Através de uma prática extremamente normatizada e de uma ativa

sociabilidade exercitada entre os consócios, os CTGs erigem-se em palco

privilegiado de materialização de um patrimônio que é permanentemente

referido ao pretérito, visando conferir uma vida 'encarnada' ao hábitos

'periclitantes' da campanha. Bem por se caracterizarem em espaços de

investidura identitária, eles exigem de seus freqüentadores uma identificação

pessoal com o estilo de vida que se deseja representar. A adesão vai desde a

sujeição a um código vestimentar regional em vez de social (já que os

freqüentadores são obrigados a comparecerem 'pilchados' nos eventos

festivos, isto é, portando trajes típicos) até a depuração da linguagem, toda

vinculada ao léxico gauchesco.”441

Nedel procurou historiar, e historicizar, o processo que levaria os CTGs a assumirem

as características acima apontadas. Por isso, nas páginas que seguem, estabelecerei um

diálogo mais intenso com o trabalho da referida pesquisadora. Nele buscarei, especialmente,

descrições e análises do contexto mais amplo de conformação do movimento tradicionalista,

que incluía disputas e trocas com o movimento folclórico brasileiro e a articulação com a

geração precedente de folcloristas eruditos, capitaneados por Dante de Laytano, em torno da

Comissão Estadual de Folclore (CEF). O foco desta pesquisa, entretanto, continua sendo o

projeto intelectual de Barbosa Lessa e sua relação com o projeto coletivo tradicionalista. As

perguntas que cabem responder nesse espaço são: a) de que maneiras nosso escritor interveio

na configuração do movimento?; b) quais as aproximações e quais os distanciamentos,

naquele momento, entre seu projeto individual de “invenção de tradições” e o projeto coletivo

tradicionalista?

tradicionalista”, fato que, aliado à constatação de Nedel da ausência desta designação no campo semântico dos

depoentes à reportagem da Revista do Globo, nos faz pensar que o escritor tenha sido, no mínimo, um dos

primeiros teóricos tradicionalistas a empregá-la, senão o responsável pela alcunha que viria a denominar,

inclusive, a federação de CTGs fundada em 1966. Ver LESSA, Luiz Carlos. Trinta e cinco. Revista do Globo.

Porto Alegre, 20/11/1948, p. 37-39, 72-77. 441

Ibidem, p. 149-150.

144

4.1 - Da “Grande Revolução” ao folclore regional: o “militar” e o “campesino” na

simbologia tradicionalista

Leticia Nedel propõe uma periodização da formação do movimento tradicionalista,

tendo como base as fontes disponíveis para o final da década de quarenta a meados da década

de sessenta. A primeira fase, que compreenderia os anos 1948-1952, revelaria uma militância

rarefeita, concentrada nas atividades do “35” CTG e de mais algumas entidades.442

As ações

das lideranças se voltariam, no momento, para a organização do movimento e para a

elaboração de suas diretrizes, além do empenho dedicado à propaganda, o que cumpriria com

“o objetivo regimental de fomentar a proliferação desses núcleos pelo estado”.443

O segundo

“período-chave”, que abarcaria os anos 1952-1956, seria marcado pela expansão do

tradicionalismo, com a criação de novos centros pelo interior do Rio Grande do Sul e a

penetração de seus líderes na mídia local, através de programas de rádio e de colunas nos

principais jornais da capital.444

Em relação à doutrina tradicionalista, é o momento de

realização de seus congressos, “nos quais a unificação ideológica dos CTGs será perseguida

sob uma diretriz eminentemente 'popular' e antiacadêmica”445

, conforme vimos no capítulo

anterior, através da tese de Barbosa Lessa, defendida em 1954. O terceiro e último período,

referente aos anos 1956-1965, diria respeito à consolidação do movimento e à formação

intelectual de seus ideólogos, o que levaria a embates entre os novos especialistas e a geração

de eruditos da CEF, além de disputas internas entre uma versão “autêntica” e outra

“comercial” ou “festiva” do tradicionalismo.446

442

A autora lista mais duas entidades na capital – o Grêmio Gaúcho e o Clube Farrapos –, além dos centros

vinculados a escolas, e quatro CTGs fundados no interior: CTG Fogão Gaúcho, de Taquara, CTG Minuano, de

Iraí, CTG “35”, de Palmeira das Missões, e a União Gaúcha Simões Lopes Neto, de Pelotas. 443

NEDEL, Letícia Borges. Op. cit., p. 321. 444

Segundo o relato de Cyro Dutra Ferreira, um dos militantes pioneiros do “grupo dos 8” e fundador do “35”

CTG, a inserção tradicionalista nos veículos de comunicação fora estratégica. Além dos espaços paulatinamente

ocupados pelos líderes e principais teóricos do movimento na imprensa porto-alegrense, desde muito cedo os

“peões” do “35” passaram a enviar textos para os periódicos do interior, divulgando duplamente a “tradição

gaúcha” e a empresa tradicionalista: “Nos primeiros meses de vida da Entidade, bolou ele [jovem citadino, não

identificado pelo autor, que incorporou-se ao grupo mesmo sem possuir elo com o mundo campeiro] a idéia de

mandar a todos os jornais editados no interior do Estado (os da capital obviamente já vinham noticiando

fartamente nossas atividades) poesias, causos, crônicas, etc. escritos por nós. Sob o nome do autor, constava

„Patrão do CTG – „35‟‟, „Capataz do 35 – CTG‟ ou simplesmente „Peão do 35 – CTG‟.”. FERREIRA, Cyro

Dutra. Op. cit., p. 51. 445

NEDEL, Letícia Borges. Op. cit., p. 321-322. O termo “antiacadêmico” deve ser entendido aqui pela

perspectiva de movimento de massas então assumida pelos líderes do tradicionalismo, comungada por Barbosa

Lessa, mas também em função da oposição de parte deles ao grupo de eruditos ligados ao IHGRS e à CEF, no

que, como veremos a seguir, nosso autor se diferencia. 446

Ibidem, p. 322.

145

Assumindo a pertinência dessa periodização, e para alcançar os objetivos deste

trabalho, cabe, por ora, ter em mente os desenvolvimentos das duas primeiras “fases”, quando

Barbosa Lessa se encontrava em Porto Alegre e atuava diretamente na construção do

movimento. Este começa a ser desenhado, como dito, em 1947, com a arregimentação de

alguns estudantes do Colégio Júlio de Castilhos nas festividades da Ronda Crioula. Segundo

as narrativas dos fundadores, João Carlos Paixão Côrtes teria aproveitado o translado dos

restos mortais do general farroupilha David Canabarro para organizar um cortejo de

cavaleiros, “tipicamente” trajados com o vestuário campeiro, representado por bombachas,

botas de cano alto e esporas, além do lenço atado ao pescoço (que historicamente fora usado

como sinal diacrítico das preferências ou vínculos políticos das hostes em disputa pelo poder

local447

), ponchos e palas. Simbolicamente, a primeira atividade do grupo, o qual começara a

se articular cerca de um mês antes como um “Departamento de Tradições Gaúchas” do

Grêmio Estudantil do “Julinho”, que viria a se constituir em seu primeiro rito específico

regular, incorporado oficialmente em 1964 ao calendário de efemérides do Estado como

“Semana Farroupilha”448

, sintetiza as duas figuras privilegiadas nos discursos regionalistas,

literários e historiográficos, precedentes: o militar-estancieiro, conquistador do território,

defensor das fronteiras e, devido ao episódio farroupilha, esteio da liberdade e da república, e

o campesino, arraia miúda das tropas dos generais, mas, e principalmente, povoador dos

descampados, peão e lavrador, construtor do Rio Grande, fundamento da economia e origem

da cultura regional.

Ambos os “tipos” encarnam, assim, representações ora complementares ora

antagônicas presentes na elaboração da memória regional. Mas, se no discurso das gerações

de eruditos da primeira metade do século XX existiu uma alternância entre os dois sujeitos

“representativos” do caráter regional, os primeiros ritos e símbolos do tradicionalismo surgem

da conciliação de ambos. Tudo se passa como se a aclamada “democracia sulina” da

historiografia tradicional se materializasse naquela cena onde jovens “peões” são elevados à

categoria de guardiões oficiais da memória farroupilha. As duas marcas mais visíveis e

ostensivamente publicizadas no cortejo dos despojos de David Canabarro são a indumentária

447

Durante a “Revolução Federalista”, de 1893, por exemplo, os correligionários do Partido Republicano (pica-

paus) eram identificados pelo lenço branco enquanto que seus opositores federalistas (maragatos) pelo lenço de

cor vermelha. 448

A lei n. 4.850, assinada em 11 de dezembro de 1964 pelo deputado Francisco Solano Borges, então Presidente

da Assembléia Legistativa do Estado do Rio Grande do Sul, oficializa a “Semana Farroupilha”, “a ser

comemorada de 14 a 20 de setembro de cada ano, em homenagem e memória aos heróis farroupilhas”, segundo

definição do Art. 1.

146

campeira e a bandeira estadual, antigo pavilhão da “República de Piratini”.449

A formalização

das tradições gauchescas se inicia nesse momento. Os trajes utilizados passam por um

processo de seleção, em que os elementos “inventariados” configuram uma estética que

ultrapassa a definição do código vestimentar. Mostrar aos contemporâneos “tudo o que o

gaúcho usava”450

é a opção que melhor denota o compromisso ético e político do grupo de

provar a existência do gaudério e “salvá-lo” do esquecimento.451

Para Letícia Nedel, a

“pilcha” desempenha papel central na fusão entre o tradicional e o tradicionalista:

“Como cartão de visitas de uma gauchidade colada ao corpo, além de

facilmente transportável, os trajes desempenham sua função comunicativa

incluindo, ao lado dos itens relativos à vestimenta (bombacha, bota, etc),

instrumentos já em desuso, como as boleadeiras, ou apenas úteis no trabalho

com o gado (como o tirador, espécie de avental de couro; o laço), ou a cavalo

(como as esporas)”.452

O “excesso simbólico”, conforme denominado por Maciel, operaria, ainda, como

espécie de demarcador externo e interno da identidade assumida pelo grupo: “onde todos são

gaúchos, usa-se algo que afirme ainda mais sua gauchidade, ou seja, distinga os „mais

gaúchos‟ dos outros”.453

Antigos utensílios das lidas no campo são, assim, incorporados ao

traje típico mesmo na execução de performances artísticas ou rituais que em nada remetem ao

trato com o gado ou o cavalo. Da mesma maneira, armas brancas, como facas e adagas, ou

antigos revólveres, como a “garrucha”, passam a integrar, nas mesmas condições, a

simbologia regional corporificada na indumentária.454

Segundo Eric Hobsbawm, as tradições

449

Expressão comumente utilizada pela historiografia para designar o regime republicano instaurado pelo

movimento farroupilha, a partir de 1836, tendo como primeira capital a cidade de Piratini. 450

Segundo o relato de Cyro Dutra Ferreira: “Já vaqueano de tropeadas, levei um poncho emalado, para ajeita-lo

na garupa; mas, na hora de montarmos, o Degrazia, alegando que estava sem pala, agradou-se de enfiar meu

poncho, apesar do dia bonito e quente. Ao argumentar-lhe que gaúcho não usava poncho em dia de sol,

respondeu-me que era nosso dever mostrar ao povo, naquele dia, tudo o que o gaúcho usava. E aí se foi, suando

como um cavalo gauchão...”. FERREIRA, Cyro Dutra. Op. cit., p. 27. 451

Fato representativo da utilização da indumentária como estratégia de afirmação da “realidade gaúcha” foi a

organização, durante as atividades da Ronda Gaúcha de 1947, de um concurso, noticiado pelo Correio do Povo:

“Ainda no baile de 20 de setembro serão oferecidos finos prêmios aos tipos mais sugestivos que se apresentarem

em trajes característicos do nosso pampa”. Transcrito em PAIXÃO CÔRTES, João Carlos. Op. cit., p. 50. 452

NEDEL, Letícia Borges. Op. cit., p. 323. O termo pilcha indicaria originalmente objeto de valor. É Barbosa

Lessa quem relata a invenção da nomenclatura: “Quando algum elemento faltasse para a nossa ação, nós

teríamos de suprir a lacuna de um jeito ou outro. Assim, por exemplo, qual o adjetivo que daríamos a nós

mesmos quando estivéssemos vestidos à gaúcha? Alguém sugeriu „aperado‟. Mas „apero‟ é arreiamento, é roupa

de cavalo, o termo não ficava bem. Então, na ata de 8 de maio de 1948 o secretário Antônio Cândido se lembrou

que pilcha é dinheiro ou objeto de uso pessoal que possa ter valor pecuniário. „Vamos oferecer ao patrão de

honra Paixão um churrasco, ao qual a indiada deverá vir toda pilchada‟. E esse invento [grifo meu] colou!”.

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. Nativismo. Op. cit., p. 64. 453

MACIEL, Maria Eunice. Op. cit., p. 141. 454

Onze anos depois, Paixão Côrtes incorporaria todos estes elementos na caracterização do “gaúcho atual” em

seu trabalho sobre a “vestimenta crioula” apresentado à Comissão Nacional de Folclore. O inventário do autor

lista os seguintes elementos: 1) chapéu – de feltro e abas largas, de “cor séria”; 2) barbicacho – tira de couro

147

se opõem diametralmente às “convenções” ou “rotinas pragmáticas”, já que “os objetos e

práticas só são liberados para uma plena utilização simbólica e ritual quando se libertam do

uso prático”.455

A “estirpe militar”, dessa forma, também se manifesta no trajar tradicionalista,

além de sua celebração cívica representada pela cavalgada em honra à memória de um dos

principais líderes da sedição farrapa.

Este pólo do imaginário tradicional manipulado pelo grupo de jovens comparece,

ainda, no “resgate” do estandarte farroupilha, como dito. A cerimônia de queima das

bandeiras estaduais realizada pelo regime do Estado Novo, em dezembro de 1937, colocara

tais símbolos na ilegalidade. Dez anos depois, no entanto, já não era mais crime portar o

pavilhão do Estado. Ainda assim, as narrativas dos fundadores do movimento observam a

dificuldade de encontrar a bandeira do Rio Grande nos espaços públicos da capital456

, fato que

teria repercutido na reação da platéia que acompanhava o desfile do grupo457

. Como ocorreu

com aqueles instrumentos campeiros considerados emblemas da “gauchidade”, se trataria,

então, de dar novamente visibilidade ao estandarte. Além disso, os jovens estudantes se

apropriavam, dessa maneira, de um símbolo elaborado no seio do movimento político do qual

se consideravam herdeiros culturais, a “Revolução Farroupilha”.458

utilizada para prender o chapéu; 3) lenço - sendo os vermelhos ou brancos mais comuns, com seus “nós

característicos” das adesões partidárias; 4) pala – pano retangular com uma fresta por onde o gaúcho passa a

cabeça, feito de tecidos leves (lã, seda ou algodão) para uso no verão; 5) faca – usada à cintura, com largura de

cerca de 4 cm e comprimento de 30 cm; 6) chaira – afiador da faca; 7) camisa – branca ou com listras finas de

“cor discreta” (já que o autor recomendava não confundi-las com os “enxadrezados de cores escandalosas usados

por muitos artistas de nosso cinema e rádio, que são cópias das camisas de „cow-boys‟ do Alabama”); 8)

boleadeiras – três bolas de pedra, ferro ou marfim atadas por tiras de couro torcido, utilizadas para derrubar

animais à distância ou para defesa pessoal do gaúcho; 9) tirador – avental de couro cru usado para proteção nas

lidas do campo; 10) bombachas – “calções bastante folgados”; 11) botas – de cano alto, em padronagens

distantas (cano “de gaita”, cano “de fole” etc); 12) esporas – peça metálica adaptada à bota para “fustigar” o

cavalo; 13) chapéu de aba curta; 14) pala listrado usado à “meia espalda”, sobre o ombro ou atado à cintura; 15)

faixa de pano amarrada na cintura, por baixo da guaiaca, para “proteger os rins”; 16) guaiaca – cinto de couro

com compartimentos para guardar dinheiro, armas e documentos; 17) chiripá – utilizado no lugar da bombacha,

constiste em pano retangular que se passa por entre as pernas, sobre uma ceroula de algodão, e é amarrado à

cintura e preso pela guaiaca; 18) bota de garrão – feita com o couro da pata do potro, costurada na ponta do pé

ou não, deixando de fora os dedos do gaúcho; 19) nazarenas – esporas com rosetas “exremamente pontiagudas”.

PAIXÃO CÔRTES, João Carlos. Vestimenta Crioula. IBECC/CNFL/DOC 415, de 2/12/1958. Pasta 17.2-1 do

Acervo Barbosa Lessa. 455

HOBSBAWM, Eric. Op. cit., p. 12-13. 456

Paixão Côrtes relata, em narrativa também reproduzida pelos demais tradicionalistas fundadores, ter se

deparado na época com uma velha e surrada bandeira rio-grandense sendo utilizada como cortina de bar: “Diante

dos meus veementes protestos, o dono do bar surpreso, desculpou-se dizendo que não sabia o significado

daquele pano encardido: era o pavilhão tricolor do Rio Grande”. PAIXÃO CÔRTES, João Carlos. Op. cit., p. 40.

Esta imagem é, evidentemente, utilizada para reforçar a situação de esquecimento ou de descaso com as antigas

alegorias regionais, além de justificar a necessidade da iniciativa do grupo. 457

Também segundo Paixão Côrtes, a exibição do estandarte gerou comoção popular: “...vi as emoções do

público, aplaudindo entusiasticamente e descobrindo respeitosamente a cabeça, dando efusivos „Viva o Rio

Grande‟, „Viva o Rio Grande‟ e lenços levados aos olhos para enxugar as lágrimas...”. Ibidem, p. 68. 458

Sobre a apropriação dos símbolos arquitetados pela elite revoltosa, e da própria “Epopéia” como narrativa

fundacional da regionalidade gaúcha, Sandra Jatahy Pesavento declarara que: “A deflagração de uma revolta

148

Após a cavalgada gaúcha nas comemorações da Semana da Pátria, que tivera o

incentivo e apoio logístico da Liga da Defesa Nacional459

, o grupo resolveu desenvolver

novas atividades em alusão ao dia 20 de setembro. Dois dias depois do desfile, em 7 de

setembro, novamente “pilchados” e montados, os jovens colheram uma centelha da “Pira da

Pátria”, antes do momento de sua extinção, e a levaram até um “candeeiro” guardado sob uma

pequena cabana improvisada, no pátio do Julinho, que representava o “galpão” das estâncias

gaúchas, dormitório dos peões, abrigo dos viajantes e palco das narrações de causos

tradicionais.460

Iniciara-se, assim, a chamada “Ronda Gaúcha”. Sua proposta era a de reviver a

dinâmica do galpão sob a proteção da luz do lampião. Simbolicamente, a criação da “chama

crioula” une nação e região, o “todo” e a “parte”. O gauchismo revisitado dos jovens

estudantes passaria, portanto, pela afirmação da brasilidade, como vimos nos capítulo II e III.

Consta, nas memórias dos militantes, que o contato entre nosso personagem e o grupo

se dera nesse momento. É difícil averiguar até que ponto o jovem Luiz Carlos Lessa, como

ainda assinava, interferiu na elaboração da agenda comemorativa. Mas, além dos churrascos e

“chimarrões festivos”, com a declamação de poesias e a contação de causos, e do “baile

gaúcho”, realizado nos salões do Teresópolis Tênis Clube, os jovens incorporaram aos ritos

gauchescos um debate literário. Não é absurdo, assim, pensar que a escolha do escritor

Manoelito de Ornellas para ministrar palestra sobre a literatura regionalista ao grupo tenha

sido sugestão de nosso personagem. Como vimos, o então repórter Lessa iniciava um projeto

armada contra o Império durante um decênio, a proclamação da República Rio-Grandense, a elaboração de uma

constituição específica e a criação de símbolos característicos, como bandeira e hino, cuja letra aludia a uma

„ímpia e injusta guerra‟, são ações – mais do que históricas – atemporais, eternas, imutáveis, porque integrantes

de uma identidade regional altamente agregadora”. PESAVENTO, Sandra Jatahy. Op. cit., p. 43. Alguns

parágrafos depois, a historiadora matiza a afirmação, apontando para o processo histórico ao longo do qual se

elaboraria a visão mítica do episódio farrapo: “As proezas dos rio-grandenses na Revolução Farroupilha

percorreram o caminho da oralidade à escrita para delimitar, ao longo dos anos, um passado, uma memória, uma

história. Com as transposições de uma „maneira de ser‟ – do acontecimento para a região, da região para os seus

habitantes, ou do Rio Grande para os rio-grandenses, homogeneizado grupos sociais, raças e etnias –, todos

passam a ser herdeiros das „gloriosas tradições de 35‟, integrados em uma representação do passado que se

converte em patrimônio comum, dotado de forte coesão social e veiculado já na segunda metade do século XIX”.

Ibidem, p. 44. 459

A LDN foi fundada em 1916, no Rio de Janeiro, por intelectuais, políticos e militares liderados por Olavo

Bilac, como sociedade cívico-patriótica para a defesa e promoção de ideais nacionalistas. A partir de 1938, o

diretório do Rio Grande do Sul passou a organizar a Corrida do Fogo Simbólico da Pátria, objetivando

homenagear anualmente a memória de personagens históricos considerados “grandes vultos da nação”. Partindo

a cada ano de pontos diferentes, a Corrida terminava no Parque Farroupilha, de Porto Alegre, onde se encontrava

a “pira-monumento” que guardaria o “fogo simbólico” até sua extinção, no dia 7 de setembro. 460

Sobre tal espaço, Maria Eunice Maciel aponta: “O galpão, essa edificação rústica que existe nas fazendas rio-

grandenses, local onde a peonada (os trabalhadores da estância e, devido a isso, um grupo masculino) se reúne

após o trabalho, era e é visto como um lugar de sossego, calma e aconchego, e o lugar privilegiado de

sociabilidade da população masculina das estâncias”. MACIEL, Maria Eunice. Op. cit., p. 138.

149

intelectual que debatia a figura do gaúcho com as diferentes vertentes do regionalismo.461

A

hipótese verificada neste capítulo é a de que tal projeto, inicialmente literário, acaba por

imprimir ao tradicionalismo, nas suas duas primeiras fases, um caráter mais “popular”, quer

dizer, exige dele maior atenção ao sujeito folk, em detrimento do gaúcho militarizado e

elitizado da historiografia tradicional, sem abdicar, no entanto, à celebração dos “ideais

farroupilhas”.

Um dos primeiros embates entre a perspectiva folclórica e a militar se deu na definição

da estrutura da entidade que deveria abrigar o grupo de 1947 e os novos adeptos da

“tradição”. Aos festejos da Ronda Gaúcha, que, em função da denominação da chama, passou

também a ser conhecida como “Ronda Crioula”, seguiram-se reuniões para a articulação da

nova sociedade. O empenho de Barbosa Lessa em sua criação é narrado por muitos dos

militantes. O próprio autor conta que partira a coletar assinaturas de jovens que

demonstrassem alguma afeição ao mundo campeiro para a fundação de um clube gaúcho na

capital.462

Em 24 de abril do ano seguinte, nasceria o “35”. Dois grupos com concepções

divergentes do movimento se formaram no período que antecedeu a sua criação. De um lado,

os estudantes “julianos”, capitaneados por Paixão Côrtes e Barbosa Lessa, que defendiam

uma associação aberta a todos aqueles que aderissem aos usos gaúchos, independentemente

de vínculo com a cultura pampiana; de outro, uma perspectiva informada por modelos de

organização militar e provenientes do escotismo, defendida por Glaucus Saraiva e Hélio Moro

Mariante, que pretendia a construção de uma entidade fechada, ao estilo maçom, de acesso

restrito a poucos sócios permanentes e vitalícios, todos oriundos do meio rural.463

O nome da

461

Segundo Paixão Côrtes, Barbosa Lessa teria feito, na ocasião, uma digressão sobre a obra de Manoelito de

Ornellas, já que o mesmo não se incluíra entre os intelectuais regionalistas abordados na palestra ministrada.

PAIXÃO CÔRTES, João Carlos. Op. cit., p. 52. 462

Em suas memórias epistolares, encontramos a seguinte passagem: “Encerrada essa primeira Ronda Crioula,

Lessa começou a sonhar mais alto. Muniu-se de um vulgar caderno de aula e, extrapolando os limites do

Colégio, saiu coletando assinaturas de quem quisesse participar da fundação – prevista para março do ano

seguinte – de um Clube da Tradição Gaúcha”. BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. Crônicas do Passado Presente.

Op. cit., p. 24. Encontrei, no Acervo Barbosa Lessa, uma página manuscrita apresentando os nomes e endereços

dos fundadores do Clube, que, segundo o parágrafo de apresentação, agüentariam “os primeiros repuchos”. São

eles: João Carlos Paixão Côrtes, José Simch, Flávio Ramos, Orlando Jorge Degrazzia, Luiz Carlos Lessa,

Antônio João Sá de Siqueira, M. Fabrício, Cyro Dias da Costa, Anônio Cândido da Silva Neto, Wilmar Vinck de

Souza, José Reginaldo Krieger, Ivo Sanguinetti, Cláudio Sá de Siqueira, Benito Joni, Fernando Machado Vieira,

João Vieira, Cilço Araújo Campos, Zeno Cardoso, Célio Goulart, Flores da Cunha Cardoso e Hélio Robes Pinto

Silva. Uma lista expandida, agora datilografada, com 63 nomes se encontra anexa à possível página do famoso

“caderninho” de Lessa. Entre os nomes acrescentados constam os de Glaucus Saraiva, Ariosto Pereira e, ainda, o

irmão de nosso personagem, Paulo B. Lessa. Pasta 20.1 do Acervo Barbosa Lessa. 463

O histórico do “35” CTG apresentado na primeira edição do informativo da entidade, em 1950, assim relata o

encontro dos dois grupos: “Quando buscava adesões para a fundação do referido clube, Luiz Carlos Lessa teve

conhecimento de que Hélio José Moro encabeçava idêntico movimento, ou seja, pretendia fundar um centro

regionalista composto de 35 membros”. HISTÓRICO do “35”. In: O 35. Boletim Mensal do “35” Centro de

Tradições Gaúchas. Op. cit., p. 19.

150

sociedade viria desse projeto, que previa o número limitado de 35 participantes, em alusão ao

ano de eclosão da sedição farroupilha. Nessa perspectiva, deveria se forjar, então, um “centro

de estudos regionais”, em que “os motivos rituais atrelavam-se fortemente à reprodução do

modelo militarista do gaúcho-sentinela-da-nacionalidade até então privilegiado pela

historiografia”.464

O projeto de Barbosa Lessa e Paixão Côrtes acabaria conquistando a simpatia dos

demais fundadores e se tornaria a principal matriz para a configuração da entidade. Isso não

ocorreria, entretanto, sem alterações e concessões à “proposta militar”. Temendo que a

perspectiva inclusiva adotada esvaziasse os objetivos culturais do clube465

, os jovens criaram

um mecanismo de seleção dos novos integrantes, denominado “condição de ajuste”. Tratava-

se de um teste avaliado pelos pares, de ordem prática ou teórica, sobre os princípios

históricos, éticos e morais do gauchismo, que permitiria a ascensão do neófito da categoria de

“peão diarista” à de “peão mensal” (sócio efetivo).466

Para Letícia Nedel, a solução se revelou

uma “saída conciliatória necessária para a sobrevivência de uma agremiação com um quadro

social reduzido, porém às voltas com inúmeras divisões internas”.467

Alguns dos jovens

preparavam “autênticos” churrascos, encilhavam cavalos e propunham, inclusive,

“gineteadas” em fazendas próximas da capital ou áreas com estrutura viável para as provas

campeiras. Outros, no entanto, declamavam poesias retiradas da gauchesca rio-grandense,

tocavam instrumentos “regionais” ou dissertavam sobre a literatura e a história local.468

Tal

possibilidade permitiu, então, o ingresso no tradicionalismo de jovens citadinos sem qualquer

intimidade com a dinâmica da estância. Muitos dos textos defendidos como condição de

ajuste seriam publicados na imprensa do Estado, dilatando os esforços de propaganda dos

líderes do movimento.

A “estância”, todavia, se transforma em modelo simbólico para a estruturação do “35”

CTG. Conforme relata Cyro Dutra Ferreira, havia inicialmente a proposta de construir uma

464

NEDEL, Letícia Borges. Op. cit., p. 329. 465

Ibidem, p. 330. 466

Em 1950, a “condição de ajuste” se tornaria objeto de definição do Regimento Interno do “35” CTG..

Segundo o Artigo 6º do Capítulo III (DOS PEÕES E PRENDAS), “A Condição de Ajuste consiste na

apresentação de um trabalho referente a qualquer ramo do regionalismo gaúcho, e tem por finalidade mostrar as

aptidões do candidato para as lidas da Estância”. REGIMENTO Interno. In: O 35. Boletim Mensal do “35”

Centro de Tradições Gaúchas. Op. cit., p. 7. 467

NEDEL, Letícia Borges. Op. cit., p. 331. 468

Exemplos de provas de condição de ajusta são citados no relato de Cyro Dutra Ferreira: “Este escrevia uma

prosa, aquele assava uma carne, outro sacava um tento à mão livre, outro escrevia ou recitava uma poesia, e

houve alguém, até, o nosso incansável companheiro de muitos anos, Flávio Xavier Krebs, que escolheu uma

gineteada! Montou um tordilho negro, aporreado, de propriedade da Brigada Militar, no campo de instruções do

Regimento Bento Gonçalves, ali no Partenon. E saiu-se muito bem; sem dúvida foi a mais autêntica de todas as

Condições de Ajuste!”. FERREIRA, Cyro Dutra. Op. cit., p. 48.

151

sede dupla, que representasse a organização dual das fazendas gaúchas: a “casa grande”,

recinto para a pesquisa e instrumentalização teórica dos tradicionalistas; e o “galpão”, lugar

de sociabilidade e palco para a encenação das manifestações artísticas e culturais.469

A

dificuldade em construir um espaço definitivo470

impediu a concretização do plano. As

reuniões aconteciam inicialmente na residência de Paixão Côrtes e, com a adesão de novos

integrantes, passaram, em 1948, para o porão da residência de José Laerte Simch, um dos

jovens estudantes fundadores da entidade. Cyro Dutra Ferreira, então funcionário da FARSUL

(Federação das Associações Rurais do Rio Grande do Sul), da qual seu pai, Normélio Gomes

Celso Ferreira, era Diretor-Geral, obteve a cessão do salão da entidade para as atividades do

grupo.471

A estrutura organizativa, no entanto, seguiria uma hierarquia inspirada naquela da

estância. A divisão entre a casa grande e o galpão pautaria simbolicamente a reserva de um

ambiente para a erudição regionalista junto àquele das celebrações cívicas. Mas o espaço de

saber paulatinamente adquiriria nova concepção, pois incorporaria à função de biblioteca

aquela de “museu folclórico”, conservando ao lado de obras da elite intelectual sul-rio-

grandense objetos considerados como de autêntica manifestação popular.472

O principal

propósito da gestão do patrão Barbosa Lessa, em 1950, seria o de constituir o “Museu Crioulo

do Rio Grande do Sul”, “retrato fiel de nossos costumes, relicário de nossas tradições”.473

469

Este tipo de divisão é, obviamente, informada pelas interpretações culturalistas baseadas na obra de Gilberto

Freyre, Casa Grande & Senzala, então correntes nos movimentos intelectuais regionalistas dos Estados

culturalmente periféricos. A perspectiva pode ter sido assimilada pelo tradicionalismo via regionalismo literário,

que, como vimos no segundo capítulo, recorria ao pensamento Freyriano para dinamizar a produção local,

através de um viés realista. Nedel verifica um “caráter difusamente herdado” da influência do autor na CNFL,

extensiva, conseqüentemente, aos eruditos da CEF, o que pode ter se configurado como outra via de acesso

indireto ao modelo de Freyre: “Provavelmente, ela se constituía numa herança anterior ao próprio engajamento

dos autores do movimento. Significa dizer que o impacto de Freyre no pensamento dos folcloristas diz respeito a

uma adesão transmitida não necessariamente sob citação literal do autor, mas instalada no campo discursivo em

que vinha se configurando a memória histórica nacional desde os anos vinte – década que marca a socialização

política e intelectual da maioria dos participantes”. NEDEL, Letícia. Op. cit., p. 207. 470

Alguns dos militantes teriam proposto a solicitação de terreno no Parque Farroupilha, mais conhecido como

Parque da Redenção, próximo da antiga localização do Colégio Júlio de Castilhos, para a edificação de uma sede

para o “35”. A idéia parece ter sido deixada de lado, frente à necessidade de legitimação política de um projeto

ainda nascente, devendo-se igualmente considerar as dificuldades financeiras enfrentadas pelo grupo. 471

O “35” CTG permanece sediado na FARSUL até 1957. 472

É interessante notar que ainda hoje é muito comum encontrarmos em galpões de CTGs um gabinete de

estudos que, além de espaço administrativo e arquivo da entidade, serve como biblioteca tradicionalista e, em

alguns casos, exibe utensílios campeiros como peças de museu. 473

O QUE é o “35”? In: O 35. Boletim Mensal do “35” Centro de Tradições Gaúchas. Op. cit., p. 1. Na

proposta de 1950, o Museu Crioulo englobaria a biblioteca, além de um arquivo, uma discoteca, uma pinacoteca,

uma “Seção Especial das Condições de Ajuste” e o “museu propriamente dito”. Este seria composto pelas

seguintes seções: I – objetos históricos; II – objetos campeiros; III – objetos de arte popular (couro, chifre,

tecelagem, rendas, cerâmica etc); IV – indústria do Rio Grande do Sul; V – fIora e fauna do Rio Grande do Sul;

VI – mineralogia do Rio Grande do Sul; VII – objetos de museu em geral; e VIII – documentos raros. A

biblioteca versaria sobre: I – poesia rio-grandense; II – prosa rio-grandense; III – poesia crioula rio-grandense;

IV – prosa crioula rio-grandense; V – assuntos históricos, geográficos e folclóricos do Rio Grande do Sul; VI –

assuntos históricos, geográficos e folclóricos do Brasil e Portugal; VII – assuntos históricos, geográficos e

folclóricos da América Latina e Espanha; VIII – assuntos históricos, geográficos e folclóricos em geral; IX –

152

Quanto aos cargos assumidos pelos peões e aos setores de atuação do “35”, a estrutura

jurídica registrada pelos estatutos possuiria correspondência simbólica com as funções

desempenhadas pelos homens do campo na produção agropecuária ou, na impossibilidade de

correlação, receberia uma terminologia inspirada no linguajar gauchesco. As metáforas

deveriam ser adotadas nas atividades “extra-judiciais”, para “manter o colorido

regionalista”.474

O capítulo I do regimento interno, elaborado, em julho de 1949, por Barbosa

Lessa e Carlos Mario de M. Nunes, revisado, em janeiro e julho de 1950, por Cyro Dutra

Ferreira, Jorge Bohrer, Normélio Ferreira, Vitor Teixeira e Barbosa Lessa, e aprovado, em

agosto de 1950, em Assembléia Geral, define a seguinte nomenclatura: o próprio Centro seria

chamado de “Estância do 35”; os departamentos de “Invernadas”; o presidente de “patrão”, o

vice-presidente de “capataz”, o 1º secretário de “sota-capataz”, seguido pelo “agregado 2º

secretário”, pelos “agregado 1º tesoureiro” e “agregado 2º tesoureiro”475

; os chefes de

departamentos de “posteiros”; os membros do Conselho Deliberativo de “vaqueanos”; os

sócios de “peões”, se homens, e de “prendas”, se mulheres; as reuniões de diretoria de

“charlas”, as reuniões comuns dos sócios de “chimarrões”, as reuniões abertas ao público em

geral de “chimarrões festivos”, as reuniões de trabalho de “lida” e as reuniões de prática

campeira de “rodeio”; as excursões da entidade de “tropeadas”. O regimento ainda reservava

espaço para especificar as funções do “peão caseiro”, responsável, informalmente, pelo

preparo do mate e pela recolha de contribuições financeiras através da “guampa de apojo”.476

Dessa forma, como apontado por Letícia Nedel, a terminologia campeira da organização da

entidade integraria também o vasto “aparato comunicativo” elaborado para tornar verossímil,

na cidade, a “fazenda fictícia do CTG”.477

Além da busca pela verossimilhança, a simbologia

denota a estratégia, acima referida, de fazer visíveis todos os signos possíveis do gauchismo.

Assim como aqueles ponchos, esporas e armas brancas ressignificadas fora de seu uso prático,

a “Estância do 35”, encenada em plena urbe, deveria publicizar a sobrevida do “centauro”.

literatura em geral; e X – jornais e revistas. Idem, p. 10-11. A segunda edição de “O 35”, de outubro de 1950,

noticia os avanços na implementação do museu: “O „35‟ agradece a contribuição valiosa e encorajadora que

recebeu das seguintes firmas comerciais, quando da solicitação de auxílio para o início do „Museu Crioulo do

Rio Grande do Sul‟. LIVRARIA DO GLOBO – Material para o Arquivo Folclórico; LIVRARIA ANDRADAS

– Material para a Biblioteca; CASA MASSON – Ampliações para o Arquivo Fotográfico”. O 35. Boletim

Mensal do “35” Centro de Tradições Gaúchas. Ano I – Outubro de 1950, p. 9. 474

REGIMENTO Interno. Ibidem, p. 6. 475

O tesoureiro era também chamado de “agregado das pilchas”, como aparece no relato de Cyro Dutra Ferreira.

FERREIRA, Cyro Dutra. Op. cit., p. 46. 476

“O Peão Caseiro será o zelador do Patrimônio do Centro, e terá a seu cargo a organização de um „Livro do

Patrimônio‟, em que serão registrados todos os bens e propriedades do „35‟, e de um „Livro de Piquete‟, em que

serão registradas todas as saídas e entradas de tais bens, por ocasião de empréstimo, aluguéis, etc” Art. 54,

Capítulo VIII do Regimento Interno do “35” CTG. IN: O 35. Boletim Mensal do “35” Centro de Tradições

Gaúchas. Ano I – Setembro de 1950, p.12. 477

NEDEL, Letícia Borges. Op. cit., p. 323.

153

Em novembro de 1948, o jornalista Luiz Carlos Lessa usava um tom aparentemente

objetivo, ainda que nada frio, para relatar, nas páginas da Revista do Globo, a experiência do

“movimento juvenil” que revivia na cidade a vida do campo. Curiosamente, o autor não se

incluía entre os militantes da tradição e entrevistava “de fora” seus companheiros, que

explicitavam os objetivos do “35” e divulgavam algumas de suas atividades. A estratégia

narrativa do autor faz salientar os rápidos “avanços” alcançados no pouco tempo de atuação

do grupo. Havia dois anos, segundo Lessa, que o redator da revista, Justino Martins, fora

procurado por um casal de fotógrafos do Reader’s Digest em busca de cenas da vida do

gaúcho brasileiro. Martins teria informado à dupla que um “gaúcho autêntico” era objeto raro

na capital e seus arredores e que, para fotografar o campeiro, eles precisariam viajar até a

fronteira sul do Estado. Nosso personagem, que teria assistido a tudo, conta que no mesmo

ano ocorrera episódio semelhante, mas, desta vez, o desenhista Nelson Boeira Faedrich

recomendara à fotógrafa da Hispanic Society of America, Ruth Anderson, uma visita ao

“clube gauchesco” sediado na FARSUL. Durante uma semana, a norte-americana recebera

lições de gauchismo numa espécie de rápido “curso regionalista”: “Vasculhara os arquivos em

formação do „35‟, ouvira as canções populares do sul executadas pelos instrumentos típicos,

admirara a graciosidade de um grupo de gauchinhas bailando danças regionais, e conhecera as

vestimentas gauchescas desde o período da colonização do Rio Grande até a época atual”.478

A fotógrafa ainda presenciara uma “amostra de todos os serviços campeiros”, dada pelo

patrão Antônio Cândido da Silva Netto e pelo peão João Carlos Paixão Côrtes, na fazenda

Remanso, no município de Viamão. Por fim, ela experimentara um “suculento churrasco”,

“regado a caninha de Santo Antônio”.479

Além de divulgar as “novas tradições” gauchescas, a reportagem de nosso personagem

justifica, assim, o projeto coletivo que vinha sendo desenhado pela necessidade sentida de

resgatar a identidade regional “perdida”.480

A “triste situação” expusera, inclusive, os jovens

“gaúchos” à incompreensão das platéias nem sempre silenciosas que acompanhavam as

atividades do antigo “galpão” da rua Duque de Caxias: “Os vizinhos se interrogavam o que

478

LESSA, Luiz Carlos. Trinta e cinco. Op. cit, p. 38. 479

Ibidem. 480

“A maquiagem aplicada ao episódio deixa no leitor a impressão de tratar-se o 35 de um complexo cultural

bem aparelhado, uma espécie de parque temático erguido como a sucursal urbana de uma propriedade rural de

criação pecuária. Mal se percebe, no início da seqüência narrativa, que as canções populares apresentadas a Ms.

Anderson pelos „professores de gauchismo‟ eram, na verdade, criações de um elenco diminuto de estudantes e

escoteiros recém „convertidos‟ em gaúchos – ou, por outra, que tinham iniciado sua adesão aos valores e aos

costumes rurais da campanha exatamente ao mudarem para a capital. Essa trupe tão disponível de trovadores,

dançarinos, poetas e contadores de „causos‟, à exceção de uns poucos integrantes, tinha uma familiaridade não

mais do que indireta com a vida no campo”. NEDEL, Letícia Borges. Op. cit., p. 318.

154

estava acontecendo, e todos queriam saber a finalidade daquela „palhaçada‟”.481

Uma velha

senhora que morava num sobrado próximo teria exclamado escandalizada ao espiar uma

atividade do grupo: “Até parece que estão brincando de comadre, Deus do céu! Uns barbados

dessa idade fazendo papel de criança...”.482

Solicitado pelo repórter Lessa, o “peão” João

Emilio Dutra explicava, então, a função do movimento:

“A tradição desempenha na história de um povo papel de suma importância.

Ela é o substrato no qual estão fincados os alicerces de toda a sua cultura. O

caráter de um povo, aquele especial modo de ser que o preserva, sobrepondo-

o às crises, que o mantém em pé, sempre apto para a continuidade histórica –

é a tradição. E se olharmos a fundo a História, veremos que os povos

desapareceram porque neles pereceu a força que os impulsionava e sustinha,

unindo todos os esforços, sintonizando todos os sentimentos, num modo de

ser comum – a tradição. É ela que mantém e une as aspirações, endereçando-

as para um mesmo fim, e por conseguinte dando-lhes consistência e

possibilidade de realização. Foi pensando em tudo isso, e com o coração

voltado para o Brasil, que nós do „35‟ vestimos nossas bombachas e calçamos

nossas botas russilhonas, vindo matear em torno de um fogão crioulo...”.483

Interessante notar como a fala do estudante antecipa muitos dos pontos trabalhados na

tese de Barbosa Lessa (como a natureza coesiva da tradição, sua importância num contexto de

crise cultural, a afirmação da brasilidade e o potencial modelar do gauchismo no cenário

nacional, por exemplo), defendida seis anos depois no I Congresso Tradicionalista, como

vimos no último capítulo. A voz do Lessa repórter e intelectual regionalista, que não se

assume membro do grupo, se confunde com o clamor dos jovens estudantes. Num texto que

lembra em muito as posições expressas um ano antes, na reportagem intitulada “Tropeiros”,

nosso personagem justifica a iniciativa de Paixão Côrtes por ocasião do translado dos restos

mortais de David Canabarro:

“Paixão recordou aquela época legendária, contrapondo-a com o aspecto do

Rio Grande atual. Onde estavam aquelas virtudes louvadas por Dreys,

Isabèlle, Saint-Hilaire, Darwin? Onde a velha alma intrépida das coxilhas, o

cantado espírito de altivez e imponência dos gaúchos? Será que de fato o

gaúcho se acabara? A verdade é que ele fora atirado definitivamente ao

olvido e a própria literatura já o restringira à vida dos „marginais‟, dos

campeiros que buscam cidades, esquecendo que lá nas coxilhas verdejantes

do sul o gaúcho continuava o mesmo, impressionante no pitoresco de sua

vida. Era preciso, pois, fazer alguma coisa que dissesse que o gaúcho não morrera, que o gaúcho não podia morrer!”.

484

481

LESSA, Luiz Carlos. Op. cit., p. 72. 482

Ibidem. 483

Ibidem, p. 74. 484

Ibidem, p. 38.

155

O discurso do intelectual se confundia, então, com o dos militantes pelo mesmo

motivo que permitira sua aproximação com o movimento: os propósitos iniciais daquele

projeto coletivo eram os mesmos do projeto literário que nosso escritor começava a delinear.

Dispondo de uma posição vantajosa na imprensa local, como repórter de um dos veículos

mais respeitados e de maior circulação da capital, o jovem Lessa fazia, portanto, coro aos

esforços de propaganda empreendidos pelo grupo na primeira fase do tradicionalismo,

conforme caracterizada mais acima. A primeira diretoria do “35”, eleita em caráter provisório

em abril de 1948, para organizar a eleição do quadro definitivo, contava com o “peão” Luiz

Carlos Lessa no seu “Serviço de Divulgação”.485

Assim, como vimos nos últimos capítulos, os

textos de nosso personagem tinham, ao mesmo tempo, o papel de difundir e o de definir os

signos do gauchismo, além de intervir nos rumos do movimento.

A reportagem de Barbosa Lessa remete a outra questão a ser desenvolvida nesta seção.

Entre as atividades da Estância do “35”, Mrs. Anderson teria se deparado com o bailar de

belas gauchinhas. Todavia, a entidade se configurava, inicialmente, como um clube

essencialmente masculino, aos moldes do que se imaginava o antigo galpão gaúcho. Os

relatos memorialísticos dos fundadores do movimento são contundentes em afirmar que a

presença feminina só viria a se tornar massiva e regular nas atividades do Centro a partir de

1949, após a volta dos “peões” que compuseram a delegação sul-rio-grandense ao “Dia de La

Tradición”, em Montevidéu. Ao conhecer as “danzas gauchas”, eles teriam encontrado a

fórmula para incorporar a mulher no tradicionalismo: “voltamos com a certeza de que ali

estava a solução da charada: reviver, também, as velhas danças do Rio Grande”.486

Entretanto,

a existência de uma “Invernada Artística” e o registro de mulheres no grupo, ainda em 1948,

contradizem a versão oficial. Minha hipótese é a de que as “danças regionais” assistidas pela

fotógrafa eram, na verdade, aquelas danças de par executadas nos bailes do interior, como as

havaneiras, as polkas e as mazurcas, que seriam, anos mais tarde, apontadas por Barbosa

485

Sua composição era a seguinte: “Patrão” de Honra – J. C. Paixão Côrtes; “Patrão” – Glaucus Saraiva;

“Capataz” – Luiz Carlos Lessa; “Sota-Capataz” – Antônio C. da Silva Neto; “1º Posteiro” – Francisco G. de

Oliveira; “2º Posteiro” – Carlos Godinho Corrêa; Bibliotecário – Dirceu Tito Lopes; Serviço de Divulgação –

Luiz Carlos Lessa. Ver BARBOSA LESSA, Luiz Carlos, PAIXÃO CÔRTES, João Carlos. Danças e Andanças

da Tradição Gaúcha. Porto Alegre: Garatuja, 1975, p. 89. A primeira diretoria definitiva seria eleita e

empossada em 26 de junho de 1948, momento em que também fora criado o “Conselho de Vaqueanos”,

composto por Waldomiro Souza, Dirceu Tito Lopes e Luiz Carlos Corrêa da Silva. O novo “Patrão” foi Antônio

C. da Silva Neto, nosso personagem continuou no posto de “Capataz”, José Laerte Simch assumiu o de “Sota-

Capataz”, o “2º Secretário” foi Cyro Dutra Ferreira, o “1º Tesoureiro” foi J. C. Paixão Côrtes e o “2º Tesoureiro”

Wilmar Winck de Souza. FERREIRA, Cyro Dutra. Op. cit., p. 78. Somente em 1949, na eleição da segunda

diretoria, teriam surgido os “posteiros” das “Invernadas”: Invernada dos Livros – Carlos Corrêa; Invernada de

Divulgação – Fernando Gonçalves; Invernada Cultural – Antônio Carlos Machado; Invernada Campeira –

Antônio C. da Silva Neto; Invernada Artística – Luiz Carlos Lessa. 486

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. Prezado Amigo Fulano. Op. cit., p. 179. BARBOSA LESSA, Luiz Carlos,

PAIXÃO CÔRTES, João Carlos. Op. cit., p. 90.

156

Lessa e Paixão Côrtes como responsáveis pela “morte” dos “ritmos folclóricos”.487

Como

sabemos, os jovens estudantes promoviam bailes gauchescos desde a primeira Ronda Crioula.

Para haver baile, evidentemente, era necessária a companhia feminina. Outras atividades,

como a apresentação preparada para Mrs. Anderson, também contaram com a participação de

jovens moças tradicionalistas.488

Não há, entretanto, na reportagem, referência ao termo “prenda”, utilizado pelo

Regimento Interno do “35”, em 1950, para designar a mulher associada à entidade. Os

atributos femininos só se tornaram objetos de estetização à medida que as danças se revelaram

uma rica possibilidade para a construção da tradição gaúcha. A incorporação da mulher, além

de sua prévia aceitação efetiva no Centro, e a atenção dada às coreografias tradicionalistas só

são exeqüíveis graças à proeminência da perspectiva folk sobre a militar no desenvolvimento

do projeto tradicionalista. Como um dos próceres daquele ponto de vista, nosso personagem

se constituiria, juntamente com Paixão Côrtes, no maior expert em “danças tradicionais” do

Rio Grande, reconhecido, inclusive, pela geração de eruditos que passaria a atacar, nos anos

cinqüenta, os “excessos carnavalescos” do movimento.489

Antes de abordar a invenção da

prenda, é necessário, então, refletir sobre a referida experiência da delegação do “35” com o

“criollismo” uruguaio.490

487

No Manual de Danças Gaúchas, publicado em 1956, Paixão Côrtes e Barbosa Lessa fazem a seguinte

consideração sobre o “estado da arte” no bailado regional: “Se hoje percorremos o Rio Grande do Sul,

evidentemente as danças sobre as quais se ouvirá maior número de informações serão aquelas que por último se

difundiram no ambiente rural e que as gerações atuais executam ou executaram. É o caso das danças enlaçadas

(que Paris divulgou para o mundo na segunda metade do século passado), tais como o „chotes‟, a „polca‟, a

„mazurca‟ ou „rancheira‟, o „chote de duas damas‟ e a „havaneira‟, bem como a „polca de relação‟, a „meia-

canha‟ ou „polca de versos‟ (um dos brinquedos do „cotillon‟)”. BARBOSA LESSA, Luiz Carlos, PAIXÃO

CÔRTES, João Carlos. Manual de Danças Gaúchas. 8a edição. São Paulo: Irmãos Vitale, 1997, p. 5.

488 Antes da criação de uma “Invernada de Prendas”, em junho de 1949, duas jovens mulheres teriam colaborado

com a entidade, segundo relato de Cyro Ferreira: as irmãs Marília e Ludemilla Zarrans, posando para as fotos

tomadas por Paixão Côrtes a fim de divulgar o movimento e participando da recepção que o “35” organizou para

a Miss Distrito Federal, Marina Cunha, e para a cantora Cléa Barros, em abril do mesmo ano. FERREIRA, Cyro

Dutra. Op. cit., p. 89-90. 489

Representativo da notoriedade alcançada no tema foi o convite a Barbosa Lessa para integrar uma coletânea

de assuntos do Rio Grande organizada pela Editora Globo e publicada em 1964, que uniria “os nomes mais

ilustres” dos quadros intelectuais do Estado. Também comparecem na obra ensaios de literatos, folcloristas e

historiadores consagrados, vinculados à CEF e ao IHGRS, como Darcy Azambuja, Ênio de Freitas Castro,

Guilhermino Cesar, J. P. Coelho de Souza, Manoelito de Ornellas e Moysés Vellinho, entre outros. Ver: RIO

GRANDE do Sul: Terra e Povo. Porto Alegre: Editora Globo, 1964, 296 p. 490

A fundação, em 1894, da Sociedad La Criolla inaurgura um novo marco no discurso nacionalista uruguaio.

No entanto, a iniciativa condizia com o contexto generalizado, nas artes locais, de “recuperação” dos signos

gauchos. Ainda que a temática estivesse presente nas primeiras manifestações literárias locais do século XIX, é a

partir do lançamento de Los tres gauchos orientales, de Antonio Lussich, em 1872, que se inicia, segundo Ángel

Rama, o período por ele designado como “lamento literário dos vencidos”, semelhante ao paralelo argentino

contemporâneo de Martín Fierro. Rama divide o momento em três etapas: “En la primera etapa, la que sigue a

Pavón y a La Revolución de las Lanzas es la a protesta tensa usando de una poesía de denuncia; en la segunda

etapa se hace literatura folletinesca y comienza la idealización romántinca del gaucho que se ha „desgraciado‟;

en la tercera se transforma en humilde teatro circense que va por los pueblos y descansa en los subúrbios desde

que Podestá adapta (1893) la novela de Eduardo Gutiérrez Juan Moreira. En esa cuna oscura nace el teatro

157

Segundo Letícia Nedel, o capital social acumulado pelos líderes tradicionalistas

durante a construção do movimento, como “recompensa ao labor de divulgação”,491

além das

relações pessoais de muitos deles com a elite política e intelectual local e do cerco feito às

autoridades do Estado solicitando auxílios e subvenções, poderíamos acrescentar, rendeu ao

Centro, então, o convite para integrar a comitiva oficial sul-riograndense nas comemorações

uruguaias da grande “pátria gaúcha”. Barbosa Lessa, Paixão Côrtes, Cyro Dutra Ferreira, José

Laerte Vieira Simch e o patrão Antônio Cândido da Silva Neto compuseram o grupo

juntamente com membros do Clube Farrapos, ligado à Brigada Militar.492

Além dos desfiles

cívicos de “gaúchos” argentinos, brasileiros e uruguaios, vestidos a caráter e montados a

cavalo, nossos personagens participaram das atividades “folclóricas” promovidas pela

Sociedad Criolla Elías Regules, que incorporara o nome de seu fundador, e de entidades

congêneres daquele país, como a Sociedad Potros y Palmas, de Montevidéu, e a Sociedad

Artiguista, de Las Piedras. Enquanto argentinos e uruguaios executavam coreografias de

danças populares supostamente representativas do passado gaucho, os brasileiros se

limitavam às interpretações musicais do gaiteiro Lessa, às declamações de Paixão Côrtes,

nacional”. RAMA, Ángel. 180 años de literatura. In: HISTORIA ILUSTRADA de la Civilización Uruguaya.

Tomo I. Montevideo: Enciclopedia Uruguaya, 1968, p. XXX. As análises sobre o período, extensivas aos autores

argentinos contemporâneos, são desenvolvidas pelo autor no quarto capítulo de Los gauchipoliticos rioplatenses.

Ver RAMA, Ángel. Fundación de la poesia social: de Hernandez a Antonio Lussich. In: RAMA, ÁNGEL. Los

gauchipolíticos rioplatenses. Buenos Aires: Centro Editor de America Latina, 1982, p. 99-128. Rafael Mandressi

credita a produção gauchesca do período, tanto na literatura quanto no teatro, a uma reação das elites intelectuais

à migração massiva de contingentes europeus para a região platina: “La benevolencia inicial frente a los

inmigrantes se transformó pronto entonces en hostilidad y frecuentemente en xenofobia por parte de muchos

intelectuales, que se lanzaron al rescate de los valores nacionales pretendidamente amenazados por esta „turba

dolorosa‟, como la calificó el escritor argentino Enrique Larreta”. MANDRESSI, Rafael. La nación en escena:

Notas sobre el nacionalismo teatral en la historiografia uruguaya del teatro. Latin American Theatre Rewiew, vol.

29, n. 2, spring 1996, p. 158. A criação da Sociedad La Criolla responderia, assim, às mesmas inquietações: “La

defensa de lo autóctono, lo vernáculo, lo nacional, se hizo entonces una necesidad impostergable para vastos

sectores de la sociedad rioplatense. Se recurrió para ello al rescate de valores supuestamente autênticos, y el

cultivo de la gauchesca constituyó a tales efectos el vehículo idóneo: surgen movimientos literarios y artísticos

fuertemente ideologizados que cultivan y/o respaldan las expresiones estéticas „nativas‟. En 1894 se funda la

Sociedad Criolla, capitaneada por Elías Regules, y al año seguiente aparece la revista El Fogón animada por los

mismos propósitos”. Ibidem, p. 159. Hugo Achúgar formula interpretação semelhante para o surto intelectual

gauchesco que assolara o Uruguai no final do século XIX e começo do XX, mas enfatiza as transformações

sócio-econômicas vividas no campo como o principal motivo da nova produção artística. Numa perspectiva

muito próxima daquela de Ángel Rama sobre a relação entre movimentos literários nacionalistas e regionalistas e

os assomos de desenvolvimento econômico capitalista nas regiões periféricas da América Latina, como vimos no

segundo capítulo, este autor aposta na necessidade de compreender a nova gauchesca uruguaia não como

conseqüência mecânica, mas como resposta ao contexto de modernização da pecuária tradicional, com a

liberação de mão-de-obra e a conseqüente migração interna para as cidades: “El intento mitificador de los líricos

criollistas, aunque enmarcado en el fenômeno más amplio del criollismo, es, de modo, la reacción que ante la

presencia de la „modernidad‟ darán aquellos sectores que temem la perdida de la identidad nacional”.

ACHÚGAR, Hugo. Modernización y Mitificación: El lirismo criollista en el Uruguay entre 1890 y 1910.

Ideologies and Literature, v. 3, n. 14, p. 134. 491

NEDEL, Letícia Borges. Op. cit., p. 334. 492

Segundo o relato de Cyro Ferreira, os integrantes da comitiva pelo Clube Farrapos eram os Tenentes da

Brigada Vasco Mello Leiria, Nero Silva e Atila Escobar, além do Aspirante Vitor Mello Ferreira. FERREIRA,

Cyro Dutra. Op. cit., p. 70.

158

Cyro Ferreira e José Simch, e às “trovas” de Vitor Ferreira. A perspectiva “criollista” se

revelava muito próxima do projeto que vinha sendo arquitetado pelos estudantes julianos,

tanto pelos objetivos, ou seja, aqueles de “resgatar” as tradições nativas e celebrar o gaúcho

mítico do passado pampiano, quanto pelas aflições semelhantes frente à crise dos setores

agropecuários tradicionais, aos problemas sociais por ela causados e às “ameaças”

representadas pela “modernidade” capitalista. O investimento criativo deliberado na

(re)construção romantizada da figura social do gaúcho é, então, compartilhado pelos

movimentos.493

Hugo Achúgar afirma que aquilo que, atualmente, poderia parecer, para quem

acompanha as festas criollas, “casi como parte de la esencia nacional”, a sobrevivência de um

“tradicionalismo hueco e distorsionador”, fora desde o início “presentido como la instauración

de un mito, como la teatralización de lo gauchesco antes que su expresión directa”.494

Dessa

forma, é bastante compreensível que, após o contato, o tradicionalismo rio-grandense tenha

adotado estratégias comuns àquelas do “criollismo”, também caracterizado,

significativamente, por muitos de seus agentes (e críticos) pelo epíteto “tradicionalista”.495

493

Hugo Achúgar aponta para esse aspecto no caso uruguaio: “El criollismo de estos líricos, insistimos, radica en

ser más exaltación de um mito, mitificación de la misma exaltación, que expresión de un tipo social; radica en

ser vehículo de una corriente ideológica de marcado nacionalismo en pugna con la parafernalia que acompaña la

modernización del país. Por ser entonces fruto de esta lucha y, en esse sentido, estar vinculado a una dimensión

de la inquietud del momento es posible, quizás, entender la recepción que dicha produción lírica formó parte de

un proceso mucho más amplio. El fenômeno sócio-cultural del criollismo es decir, las representaciones del circo

de Podestá-Scotti, los dramas criollos, el auge del folletín de Eduardo Gutiérrez – Juan Moreira –, más la

„consagración‟ o „carnavalización del criollismo de la Sociedad Criolla que incluía los desfiles de ciudadanos y

pro-hombres uruguayos en dizfraz de gaucho, son el marco o ambiente en que la producción lírica que nos ocupa

se desarrolló y se recibió”. ACHÚGAR, Hugo. Op. cit., p. 141. 494

Ibidem, p. 143. 495

É interessante, e de certo modo surpreendente, notar que, décadas após esse contato inicial, o influxo

identitário se faria em sentido inverso. A julgar pelo trabalho do antropólogo uruguaio Alvaro De Giorgi sobre a

criação da “Fiesta de la Patria Gaucha (FPG)”, em 1987, o tradicionalismo rio-grandense se aproximaria das

manifestações criollas precedentes da região centro-norte do país, influenciando não somente a dinâmica de

atuação da FPG, mas o conteúdo por ela elaborado. A proximidade com o Rio Grande do Sul seria utilizada,

inclusive, pelas autoridades da região, como fonte de sinais diacríticos que lhe atribuíssem especificidade no

cenário nacional. Em material, de 1970, transcrito por De Giorgi, encontramos o seguinte trecho: “Las

condiciones topográficas del Uruguay descartan la possibilidad de que puedan constituirse congregaciones

humanas con peculiaridades proprias lo suficientemente marcadas para considerarlas diferentes y típicas. Dentro

de la uniformidad general se dan no obstante, matices o tonalidades que resultan bastante elocuentes. Tales

diferenciaciones surgen como conseqüências de influencias y presiones étnicas y lingüísticas, o de las

circunstancias que condicionan la vida social del hombre o del grupo. Las influencias lusitana y brasileña, han

marcado en la frontera norte la diferencia entre los habitantes de nuestro país. En Tacuarembó y más

concretamente en los médios campesinos esta influencia se hizo notar en el lenguage, en el atuendo y en aspectos

del folclore. Prueba de ello es que en la vestimenta permanece vigente aún el uso de los sombreros de fieltro o de

paja de amplias alas flexibles, las bombachas „brasileras‟, de corte peculiar, el apego por los adornos metálicos,

etcétera. Incluso en ciertos hábitos y en ciertas maneras de manifestarse del habitante de la campaña

tacuaremboense pueden rastrearse los vestigios de la influencia lusitana. Como señala Leandro Gonzalez Mieres,

la tradicional efígie de hombre reservado, solitário, hasta poco melancólico, impasible y huraño con que

habitualmente se nos presenta al „gaucho‟ tradicional, necesita sensibles correcciones si de verdad queremos

retratar al paisano del norte, al paisano tacuaremboense. De las observaciones y las búsquedas de los estudiosos

se desprende que nuestro criollo se aproxima más al „Gaúcho‟ riograndense que al „gaucho‟ sureño”. Los

159

Ainda em 1949, Barbosa Lessa escreveu reportagem para a Revista da Semana, do Rio

de Janeiro, descrevendo e exaltando as iniciativas das sociedades gauchescas dos três países

que partilhariam a herança pampiana. Os vínculos entre o movimento brasileiro e as

experiências argentina e uruguaia eram realçados pelo comum “amor ao torrão natal”: “Se

dele [o gaúcho] se afasta, a saudade do rancho, do cavalo e da planura será sempre uma

espora a rasgar-lhe o coração”.496

Nos três países, segundo nosso autor, fora a saudade do

“pago” responsável pela formação de grêmios gauchescos em suas principais cidades: “Este

movimento saudosista foi transformado numa campanha tradicionalista, com a organização de

centros de estudos folclóricos e históricos que procuravam buscar nos exemplos das gerações

passadas o rumo a ser trilhado pelas gerações futuras”.497

Nosso personagem estende, então,

aos movimentos platinos a avaliação reforçada, diversas vezes, em seus textos jornalísticos,

sobre a periclitante tradição gaúcha frente aos avanços do progresso: “É fato incontestável que

o progresso vai, a passos largos, modificando os hábitos e costumes dos „monarcas das

coxilhas‟, e já se vê próximo o dia em que o pampa, olvidando a sua vida pitoresca de

antanho, seja todo tomado pela benfazeja onda da civilização”.498

O mesmo ufanismo romântico típico daquela gauchesca que dota o campo e o gaúcho,

desde fins do século XIX, dos signos do “bom selvagem” frente à “barbárie da civilização”, se

torna matriz para a imagem do campesino mítico e esteio da pátria, independente de qual

pátria sirva:

“Que restará, então, daquela heróica raça das planícies do Prata e do sul do

Brasil, raça que, cruzando fronteiras, lançou longe os seus poemas de civismo

escritos à pata de cavalo? Que restaria do matracar das cavalarias avançando

na luta pela liberdade do povo americano? Quem contaria, passados anos, a

história sublime dos homens que selavam compromissos com um fio de

barba? Quem pelos tempos afora tentaria conservar de geração em geração,

as virtudes herdadas daqueles homens rudes que, em sua rudeza, nada mais

haviam aprendido do que amor à trindade escrita no seio das coxilhas: Pátria,

Liberdade, Honra?”499

Se a morte do gaúcho representa o fim de tão belos ideais, nada mais justificado do

que as ações de salvaguarda empreendidas pelos grêmios de três bandeiras:

Departamentos. El Homo Tacuaremboensis (Nuestra Tierra, 1970) apud GIORGI, Alvaro de. El magma interior:

política, cultura y territorio en la Fiesta de la Patria Gaucha. Montevideo: Trilce, 2002, p. 43-44. 496

LESSA, Luiz Carlos. Encontram-se os „reis do Pampa‟. Revista da Semana. Rio de Janeiro, 30/04/1949, s/ p.

Pasta 20.3-1 do Acervo Barbosa Lessa. 497

Ibidem. 498

Ibidem. 499

Ibidem.

160

“Foram estas perguntas, também, que levaram os gaúchos a fundar os clubes

tradicionalistas citados, revivendo as danças primitivas, enfurnando-se nos

arquivos em busca de histórias do passado, misturando tintas na apresentação

de quadros campineiros, moldando o bronze em vultos „crioulos‟ e atirando à

batuta dos maestros a sinfonia dos cânticos pátrios”.500

Esquecendo, momentaneamente, a afirmação da brasilidade do gaúcho rio-grandense,

nosso autor legitima, em sua narrativa, o projeto tradicionalista pela causa nobre que extrapola

as fronteiras políticas dos Estados nacionais. De certa forma, Lessa antecipa, assim, a

memória oficial do grupo, ao vincular o tradicionalismo às experiências platinas de longa

duração.501

De outro lado, a narrativa denota a compreensão do autor de que as sociedades

gauchescas das três nações partilhavam algo mais do que uma herança cultural comum, ou

melhor, do que o mesmo objeto de estetização; os gauchismos além fronteiras responderiam a

processos sociais semelhantes, se configurando como experiências urbanas e intelectualizadas

e possuíam, dessa forma, finalidades também muito próximas, como vimos acima. A

teatralização da “tradição” pampiana do Rio Grande iniciada há dois anos com a formalização

e criação dos ritos tradicionalistas ganharia, pois, novo impulso com a guinada folk de

inspiração “criollista” que levaria à invenção das “danças tradicionais”, objeto das próximas

seções. O relevo adquirido, assim, pelo projeto de Barbosa Lessa e de Paixão Côrtes, baseado

na atualização do mito romântico de sugestão “popular”, conferiria ao gaúcho elitizado,

naquele momento, um papel secundário como fonte de representações e práticas

tradicionalistas. Cabe assinalar, ainda, que as trocas entre os dois movimentos não se

limitariam a esse contato inicial. Em 1953, por exemplo, Barbosa Lessa e Sady Scalante

noticiavam, na coluna Tradição, a viagem de uma delegação do “35” para participar dos

festejos comemorativos da independência uruguaia, em Montevidéu, a convite da Sociedad

Criolla El Pericon.502

500

Ibidem. 501

Isso não ocorre sem a reivindicação da proeminência, no Estado, da dinâmica fundada com o “35”: “Na

Argentina e no Uruguai os clubes nativistas datam já do século passado. No Rio Grande, embora iniciados por

volta de 1910, o movimento regionalista foi cessando pouco a pouco, até inflamar-se, novamente em nossos dias,

com a fundação, em Porto Alegre, do „35‟ – Centro de Tradições Gaúchas, agremiação composta em sua maioria

pelo elemento estudantil”. Ibidem. Note-se, no entanto, o cuidado do autor em evitar o termo “tradicionalismo”

tanto para caracterizar as experiências gauchescas platinas quanto para identificar as sociedades “nativistas” ou

“regionalistas” precedentes. Tal percepção condicionará, de certa forma, a reavaliação da “linhagem gauchesca”

do Centro em seus escritos propriamente memorialísticos sobre o movimento, produzidos nos anos setenta e

oitenta, como veremos nos próximos capítulos. 502

A mesma edição da coluna relatava a presença de uruguaios em churrasco promovido pela “União Gaúcha”,

em Pelotas. Ver BARBOSA LESSA, Luiz Carlos, SCALANTE, Sady. Tradição. Diário de Notícias. Porto

Alegre, 19/07/1953, p. 5.

161

Outro desenvolvimento, como dito, da perspectiva folk é, então, a inclusão da mulher

no movimento. Como mostrado por Cláudia Pereira Dutra, a nova categoria “prenda” é

construída em relação ao mito atualizado do gaúcho pampiano:

“Ela é o par romântico para o „herói dos pampas‟, a pureza e a delicadeza são

elementos tidos como naturais, vistos como inerentes à „mulher gaúcha‟. O

gaúcho, descrito como homem „forte e valente‟ encontrava na prenda a sua

companheira idealizada: uma mulher bonita, recatada, doce e graciosa”.503

A presença feminina exigiria dos teóricos do movimento, portanto, um esforço de

conceituação do novo termo. As representações que fundamentariam o modelo de mulher

gaúcha a ser seguido não poderiam ser retiradas, todavia, da história social do gaudério, nem

da literatura regionalista, já que sua companheira nas narrativas precedentes, a “china”, ainda

traria consigo o sentido de mulher “de vida fácil”.504

Este termo, embora utilizado nos versos

e na prosa gauchesca de muitos autores tradicionalistas, não serviria, evidentemente, a um

projeto que, devido ao apelo ao modelo do galpão, espaço físico originalmente interditado à

“mulher de família”, levantaria as suspeitas da conservadora sociedade rio-grandense. Para

conquistar a adesão das moças e a aprovação familiar, o grupo recorreria à invenção de nova

expressão, como vinha se tornando praxe no movimento. “Prenda”, assim como “pilcha”,

denotava, no vocabulário rural, objeto de valor. Somava-se a isso a existência, no parco

repertório folclórico sobre o “gaúcho”, da música Prenda minha, registrada por Carlos Von

Koseritz, no final do século XIX, e reproduzida por Mário de Andrade em seu Ensaio sobre a

Música Brasileira, na qual um campeiro se referia à amada como seu bem valioso.505

Além

disso, como vimos no último capítulo, não podemos esquecer que os jovens estudantes se

referendavam e se reportavam em/a uma cultura, em muitos aspectos, misógina. Nesse

sentido, Maria Eunice Maciel aponta para a correlação da categoria “prenda” com o

imperativo do verbo “prender”:

“A imagem mais conhecida do gaúcho é aquela que o representa como um

homem livre, galante e conquistador, percorrendo o pampa montado em seu

503

DUTRA, Cláudia Pereira. A prenda no imaginário tradicionalista. Dissertação (Mestrado em História).

Programa de Pós-Graduação em História, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2002, p. 56. 504

“A participação feminina no „galpão simbólico‟ exigia uma denominação para elas: como iriam chamar-se as

mulheres tradicionalistas? A busca de elementos do passado não apontava uma solução, porque as mulheres dos

gaúchos na época de ocupação e demarcação territorial eram as „chinas‟ (mulheres brancas, negras ou índias),

que a representação mítica, expressa através dos textos gauchescos, homogenizou como „índias roubadas e

levadas à garupa de seus cavalos‟”. Ibidem, p. 49. 505

Eis os versos, hoje de domínio público, da canção: “Vou-me embora, vou-me embora, /Prenda Minha, /Tenho

muito que fazer. /Tenho de parar rodeio, /Prenda minha, /No campo do bem-querer. /Noite escura, noite escura,

/Prenda minha, /Toda noite me atentou. /Quando foi de madrugada, /Prenda minha, /Foi-se embora e me deixou.

/Troncos secos deram frutos, /Prenda minha, /Coração reverdeceu. /Riu-se a próprio natureza, /Prenda minha,

/No dia em que o amor nasceu”.

162

cavalo. Se esse gaúcho não constituía laços familiares (impedido por muitas

razões, entre as quais, o trabalho nas estâncias), chamar a mulher de Prenda

parece significativo no reforço desta imagem: o homem livre e a mulher que

o prende”.506

Em junho de 1948, foi criada, no “35”, a Invernada de Prendas, de existência, no

entanto, efêmera.507

Assim como os emblemas do gaúcho pampiano eram elaborados e

afirmados através da vestimenta, tornou-se, também, necessário inventar um traje

“característico” da mulher tradicionalista. Carentes de elementos “tradicionais” no tocante ao

quesito, a criação se daria em função das vestes de chita e indumentárias semelhantes de

“tipos” femininos de outros cantos do país ou da “gaucha” platina. Vale a pena conferir a

narrativa de Barbosa Lessa sobre a invenção do “vestido de prenda”:

“E como é que é o vestido das moças? Como modelo, aproximado, só havia

os vestidos caipiras, das festas juninas de São Paulo, ou as „folhinhas‟ anuais

distribuídas pela Cia. Alpargatas na Argentina. Paixão encasquetou que

deviam ser vestidos compridos até os tornozelos; eu argumentei que se nós,

rapazes, estávamos trajando nossas costumeiras bombachas, não carecia que

as moças se voltassem tão longe nos antigamentes; isso não chegou a ser

posto em votação, mas o bigodudo Paixão nos venceu pelo cansaço...”.508

A preocupação com a extensão do vestido, além a seleção deste tipo de traje como

“típico”, revela certas facetas da percepção de mulher que nortearia a construção da prenda

enquanto modelo: à jovem tradicionalista caberia o recato e a discrição. Conforme Cláudia

Pereira Dutra, os esforços de definição da prenda arquetípica conferiram a ela “um conjunto

de valores tidos como parte da „essência feminina‟: delicadeza, beleza, simpatia e recato.

Prenda passa a ser a expressão da „mulher honesta‟, passa a representar a „mulher gaúcha‟,

oficializada como autêntica pelo Tradicionalismo”.509

O vestido cumpre, assim, sua função

comunicativa, valorizando o movimento nas danças e expressando “a idéia da mulher

romântica, „naturalmente‟ delicada, dócil e dependente do homem forte e independente”.510

Assim como o conceito “prenda”, sua vestimenta seria objeto de constante investimento

506

MACIEL, Maria Eunice. Op. cit., p. 140. 507

Ao que tudo indica, a participação da mulher nos demais departamentos da entidade levaria à extinção da

“invernada” específica. Participaram dessa experiência inicial, segundo relato de Cyro Ferreira, principalmente

irmãs e primas dos fundadores da entidade, como demonstram os sobrenomes de boa parte das mulheres listadas

pelo autor: Maria Zulema Paixão Côrtes, Derce Paixão Côrtes, Sueli Dutra Soares, Sarita Dutra Soares, Iris Piva,

Norma Dutra Ferreira, Nora Dutra Ferreira, Damásia Medeiros Steinmetz e Linda do Brasil Degrazzia, e a

“posteira” Lory Meireles Kerpen. FERREIRA, Cyro Dutra. Op. cit., p. 89. Pouco antes, constituiu-se o grupo de

danças da Invernada Artística, que contou ainda com Cyra Eilert dos Santos, Lia Eilert dos Santos e as irmãs

Zarrans. Ibidem, p. 91. 508

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. Nativismo: um fenômeno social gaúcho. Op. cit., p. 66. 509

DUTRA, Cláudia Pereira. Op. cit., p. 50. 510

Ibidem, p. 67.

163

teórico, tanto pelos intelectuais e líderes do movimento, quanto pelas próprias mulheres que

passariam a integrar o projeto, ainda que sem posição de destaque na hierarquia dos primeiros

Centros.511

Como vimos, Barbosa Lessa efetuava, através da literatura, ativo empenho na

conformação dos modelos de ser mulher no movimento e na sociedade rio-grandense,

homologando, inclusive, certa flexibilização dos padrões tradicionais e valorizando

determinados atributos considerados específicos da condição feminina. As danças se

revelariam outro meio de intervenção do autor, ainda que de maneira menos consciente, na

dinâmica de gênero encenada e experimentada nos palcos dos CTGs e em outros momentos

de sociabilidade tradicionalista. Nesse sentido, a maneira como a dança atualiza, em

performance, o mito do gaúcho a cavalo e os predicados da “prenda” será matéria da terceira

e última seção deste capítulo. Antes disso, refletiremos sobre o papel do movimento folclórico

brasileiro na composição das bricolagens coreográficas de Barbosa Lessa e Paixão Côrtes.

4.2 – Do “fato folclórico” ao “folclore de fato”: teoria e empiria na poética híbrida da

“dança tradicional”

Uma das instâncias criadas pelos Estatutos da entidade era o “Rincão dos 35”, que se

constituía em um grupo fixo de “notáveis”, muito semelhante ao modelo de associação

pensado por Glaucus Saraiva em 1948. O “rincão” lembrava ainda a estrutura comum das

sociedades eruditas como os IHGs e as Academias de Letras, onde as cadeiras possuíam

patronos perpétuos, que, no CTG, seriam “gaúchos ilustres, escolhidos em Assembléia

Geral”512

, independentemente, assim, de vínculo com o movimento. Essa nova proposta do

grupo era inspirada, então, nos moldes consolidados de fazer pesquisa em história e folclore e

511

Dessa forma, “O MTG como órgão coordenador das atividades tradicionalistas no Rio Grande do Sul

disciplinou o uso „adequado‟ das pilchas: estabeleceu o comprimento do vestido, as estampas, a textura e as

cores dos tecidos, o estilo das mangas, os enfeites como babadinhos, rendas e fitas, o tipo e as cores das meias e

sapatos, o estilo do penteado, da saia de armação e da „bombachinha‟; além disso limitou o uso do decote, de

acessórios e de maquiagens, estabeleceu o que é permitido e proibido na confecção do vestido de prenda dentro

de um padrão. Os manuais a respeito da indumentária feminina repetem as expressões: „sem exageros‟,

„discretos‟, „atendendo a idade e a ocasião do seu uso‟, „cuidado para não descaracterizar‟, „sem contrastar com o

recato da mulher gaúcha‟”. Ibidem, p. 69. 512

Art. 38, Capítulo III, dos Estatutos do “35” CTG. Transcrito em O 35. Informativo Mensal do “35” Centro de

Tradições Gaúchas. Ano I – Setembro de 1950, p. 5.

164

de falar literariamente do gaúcho.513

Dessa forma, o Centro buscaria legitimidade intelectual

para um projeto que abrigaria um museu e deveria produzir e divulgar todas as formas de

manifestação cultural baseadas na “tradição” regionalista. Tal estratégia passaria, inclusive,

pelo cerco e tentativa de cooptação de eruditos consagrados no cenário local. Muitos deles

freqüentariam os “galpões” do “35”, ministrando palestras e participando das atividades

promovidas pelo grupo. A experiência que vinha sendo desenvolvida parece ter angariado sua

simpatia, ao menos inicialmente. O segundo boletim informativo do centro, de 1950, foi

custeado, por exemplo, por Moysés Vellinho e J. P. Coelho de Souza, entre outros. Poucos,

entretanto, se integrariam ao quadro social da entidade.514

Coelho de Souza, então deputado

federal, aceitaria convite para ser “posteiro” do “35” no Rio de Janeiro. Manoelito de Ornellas

e Walter Spalding se tornariam membros efetivos da sociedade e participariam, inclusive, dos

primeiros congressos tradicionalistas, apresentando teses e coordenando suas principais mesas

de discussão.515

No geral, todavia, à medida que o movimento ganhava amplitude e seus

membros passavam a disputar espaços com os eruditos polígrafos das gerações anteriores na

mídia e, inclusive, no aparato estatal, com a criação, em 1954, do Instituto de Tradição e

Folclore, o distanciamento, além de alguns embates públicos, se tornaria a regra entre os dois

grupos, como mostrado por Letícia Nedel.

Houve, no entanto, um ponto de interseção entre o tradicionalismo nascente e a

erudição precedente: o folclorismo. No mesmo ano em que o grupo pioneiro organizava o

Departamento de Tradições Gaúcha do “Julinho”, surgia, na esfera nacional, por

recomendação da UNESCO (United Nations Educational, Scientific and Cultural

Organization), um órgão governamental, no âmbito do Instituto Brasileiro de Educação,

Ciência e Cultura (IBECC), que viria a coordenar as atividades do movimento folclórico

brasileiro: a Comissão Nacional de Folclore (CNFL), dirigida por Renato Almeida.516

513

Chama a atenção o fato de que um grupo de poetas e payadores, capitaneados por Apparício Silva Rillo e

Jayme Caetano Braun, fundaria, no final dos anos cinqüenta, a Estância da Poesia Crioula, considerada uma

espécie de “academia de letras” de escritores gauchescos. 514

“No segundo semestre de 1949 começou o trabalho no sentido de atrair para o „35‟ os intelectuais de renome,

desejosos que estávamos de uma orientação cultural bastante séria. Foram realizadas três conferências:

„Antecedentes da Formação Rio-Grandense‟, por Moysés Vellinho, „Conflitos de Cultura‟, por J. P. Coelho de

Souza, e „Aquarelas do Pampa‟, por Manoelito de Ornellas. Mas, dos três convidados, apenas Manoelito de

Ornellas continuou, daí por diante, como companheiro entusiasta e sócio do primeiro CTG”. BARBOSA

LESSA, Luiz Carlos, PAIXÃO CÔRTES, João Carlos. Danças e Andanças da Tradição Gaúcha. Op. cit., p. 90-

91. 515

Segundo Barbosa Lessa, os organizadores do I Congresso Tradicionalista Gaúcho, Emílio Rodrigues, do CTG

Ponche Verde, de Santa Maria, Fernando Brockstedt, da União Gaúcha, e Sady Scalante, escolheriam Manoelito

de Ornellas como presidente do evento para dotar-lhe de maior “credibilidade”. BARBOSA LESSA, Luiz

Carlos. Nativismo. Op. cit., p. 80. 516

Luis Rodolfo Vilhena nos oferece uma pequena biografia profissional de Renato Almeida: devido ao seu

ingresso como escriturário no Ministério das Relações Exteriores, em 1927, o folclorista e musicólogo, que

165

Seguindo uma estrutura capilar, a CNFL arregimentaria os intelectuais locais em torno de

Comissões Estaduais517

, que, uma vez formadas, gozariam de grande autonomia de ação,

“subordinando-se à CNFL apenas nas questões de caráter doutrinário”.518

No Rio Grande do

Sul, como dito, Dante de Laytano seria o responsável pela CEF. Enquanto que no centro do

país as pesquisas acadêmicas nas ciências sociais se constituíam em oposição ao movimento

folclórico519

, acusado de “colecionismo”, no Estado, onde a incipiente universidade voltava-se

para a formação de professores e a pesquisa era domínio da erudição diletante, o folclore se

revelava uma possibilidade de renovação “científica” dos estudos regionais. De outro lado, a

participação em um organismo de semblante integrador, cuja estrutura fora “organizada

segundo o mesmo princípio pelo qual definiam a unidade cultural brasileira dentro da

multiplicidade de caracteres regionais”, se configurara em um “canal raro de comunicação

com intelectuais melhor situados” e a “possibilidade de denunciar a insularidade a que eram

condenadas suas pesquisas”:520

“Assim, o credenciamento de gaúchos como delegados de um movimento de

cunho nacional servia para conectá-los (e suas pesquisas) aos intelectuais de

renome do Nordeste, de Minas e do eixo Rio-São Paulo, enquanto a

ampliação desse trânsito – que oportunizava contatos, publicações, prefácios,

filiações a associações de outros estados e tudo o mais necessário ao acúmulo

de credibilidade e autoridade frente aos pares conterrâneos – convidava

outros interessados em „sair da clandestinidade‟ a ingressarem na Comissão

local”.521

possuía relações com o segmento carioca do movimento modernista e amizade com Mário de Andrade, Câmara

Cascudo e Luiz Heitor Correa de Azevedo, esteve presente na diretoria do IBECC desde sua criação para atender

as exigências, junto ao Ministério, da convenção internacional que criou a UNESCO. Ver VILHENA, Luís

Rodolfo. Projeto e missão: o movimento folclórico brasileiro (1947-1964). Rio de Janeiro: FUNARTE, FGV,

1997, p. 94-95. Carente de estrutura burocrática própria, a CNFL se valia da posição de Renato Almeida no

Ministério: “Sem negligenciar suas responsabilidades com o Itamaraty, como demonstra sua ascensão funcional,

trabalhava incansavelmente para a CNFL, utilizando para tarefas de expediente os funcionários administrativos a

ele ligados no Ministério. Todos os outros membros tinham como responsabilidades fixas apenas o

comparecimento às reuniões bimestrais da Comissão”. Ibidem, p. 96. Ao longo dos anos, um grupo de

intelectuais do campo consolidou-se em torno de Renato Almeida. Entre eles, Manuel Diégues Júnior, Joaquim

Ribeiro, Édison Carneiro, Mariza Lira e Cecília Meireles. 517

“A formação de uma comissão estadual partia sempre de um convite da CNFL para um intellectual do estado

que seria seu secretário-geral. Com a aceitação do convidado, cabia à diretoria do IBECC designá-lo

oficialmente. Apesar da necessidade dessa homologação, a escolha dos secretários-gerais cabia sempre a Renato

de Almeida. As indicações para o cargo, quando não dispunha de nomes que conhecesse ou de indicações de

companheiros da CNFL, eram geralmente solicitadas a instituições locais, como os Institutos Históricos e as

Academias de Letras, ou ao Presidente da Comissão do IBECC no estado”. Ibidem, p. 97. 518

Ibidem, p. 98. 519

“Baseados em instituições diretamente ligadas ao Estado, praticados por autores polígrafos sem treinamento

acadêmico especial, voltados para um aproveitamento político imediato de suas pesquisas, esses estudos, no

período coberto por minha pesquisa, parecem ser uma hipérbole do modelo de ciência social que o processo de

institucionalização nesse campo estaria marginalizando”. VILHENA, Luís Rodolfo. Op. cit., p. 55. 520

NEDEL, Letícia Borges. Op. cit., p. 191. 521

Ibidem, p. 192.

166

Num Estado onde a inteligentsia se revezava em cargos e funções de diversas

instituições, integrar, mesmo que apenas nominalmente, este tipo de organização conferia,

portanto, prestígio e autoridade intelectual.522

Ainda assim, como mostrado por Letícia Nedel,

o grau desigual de participação nas atividades da CEF representava o seu reconhecimento

como “um projeto profissional do comissário”, o que, por sua vez, “viabilizava sua

especialização como folclorista através das funções e cargos conquistados como

historiador”.523

A nominata oficial da CEF apresentava entre seus consócios aqueles

“intelectuais polivalentes” que haviam transitado entre a literatura, a crítica e o jornalismo no

Rio Grande do Sul, a partir dos anos vinte, como os historiadores Walter Spalding e Othelo

Rosa, os musicólogos Elpídio Ferreira Paes e Ênio de Freitas Castro, o arquiteto e escultor

Fernando Corona, o crítico de artes Aldo Obino, os escritores, críticos de literatura e

historiadores Moysés Vellinho, Guilhermino César, Cel. Luiz Carlos de Moraes, Manoelito de

Ornellas, Athos Damasceno Ferreira, Darcy Azambuja e o romancista Erico Verissimo.524

Poucos deles, no entanto, participaram ativamente de suas atividades; entre os mais

destacados, Walter Spalding e Ênio de Freitas Castro, que se mostrariam grandes entusiastas

do tradicionalismo gaúcho.

O encontro entre os dois grupos se dera em 1950, por ocasião da III Semana Nacional

do Folclore, realizada em Porto Alegre. Contatados por Laytano, os jovens tradicionalistas

prepararam um espetáculo gauchesco, chamado “Festa de Galpão”.525

Para tanto, foi

necessário incorporar ao repertório outras danças além daquela “media-caña” que haviam

aprendido com os “gauchos” platinos e encenado, em Porto Alegre, no Instituto Cultural

522

Todavia, alguns casos, como o de Erico Verissimo, com atuação quase nula na Comissão gaúcha, indicavam,

ao contrário, que o prestígio do intelectual poderia ser utilizado para dar respeitabilidade à organização. Ibidem,

p. 196. 523

“Mas em um tempo em que as regras de autoridade intelectual não obedeciam ainda a um sistema objetivo e

normatizado de avaliação – o que só seria imposto mais tarde pela universidade – os cargos honoríficos

representavam, em conjunto com as funções oficiais desempenhadas em órgãos culturais e educacionais, o

patrimônio curricular que permitia a Dante de Laytano multiplicá-los por outras „honrarias‟”. Ibidem, p. 197. 524

Ibidem. p. 146-147. 525

A programação do espetáculo foi divulgada no dia seguinte no jornal Correio do Povo: “1º - Apresentação do

„35‟, por Luiz Carlos Lessa. 2º - Apresentação de dois tipos característicos do Rio Grande do Sul: o Gaúcho

antigo (J. C. Paixão Côrtes) e o Gaúcho moderno (A. C. da Silva Neto), por Luiz Carlos Lessa. 3º - „Mateando‟,

poesia de Glauco Saraiva, pelo autor. 4º - Rápida palestra sobre o violão, por Wilson Capsi. 5º „Fechando um

baio‟, poesia de Amandio Bica, pelo autor. 6º - „Na graxinha da orelha‟, limba-banco de José Casagrande, pelo

autor. 7º - „Oh! Minha Gaita‟, poesia de Valdomiro Souza, por J. C. Paixão Côrtes, 8º - „O Cachorro Tupi‟,

„causo‟, por A. C. da Silva Neto. 9º - „Chote Laranjeira‟, música folclórica, por um grupo de peães (sic). 10º -

„Caranguerijo‟ (sic), dança folclórica, por um grupo de peães e prendas. 11º - „Juntinho do Monte‟, música

regional, por Damásia Steinmetz e Lydia Motto. 12º - „Lunar de Sepé‟, música regional de Luiz Carlos Lessa

com letra folclórica por L. C. Lessa e Wilson Capsi. 13º - „Pezinho‟, dança folclórica, por grupo de peães e

prendas. 14º - „Décima do Boi Preto‟, música folclórica por um grupo de peões. 15º - „Carreteiro‟, música

regional de L. C. Lessa, por um grupo de peães e prendas. 16º - „Meia Canha‟ – dança folclórica por um grupo

de peães e prendas. 17º - „Encerramento‟ – trova de Vitor Melo Ferreira”. III SEMANA Nacional do Folclore.

Correio do Povo. Porto Alegre, 27/08/1950, p. 16.

167

Brasileiro Norte-Americano, no ano anterior.526

Barbosa Lessa e Paixão Côrtes empreendiam,

desde 1948, uma verdadeira imersão na bibliografia erudita sobre a formação social rio-

grandense através dos clássicos regionais da historiografia, da literatura e do ensaio, e também

em fontes de época como almanaques de variedades e relatos de viajantes. No ano seguinte,

seu foco de leitura seria a busca meticulosa de elementos para reconstituir versos, músicas e

coreografias do passado gaúcho:

“Em História líamos principalmente a farta bibliografia contemporânea do

Centenário Farroupilha, em que pontificavam Othelo Rosa, Dante de Laytano

e Walter Spalding. Catávamos informações nos velhos e preciosos

„Almanaks‟ e „Anuários‟ de Alfredo Ferreira Rodrigues (Rio Grande) e

Graciano Azambuja (Porto Alegre). Interessamo-nos por comparações

gauchescas e outras expressões da lingüística regional, e assim conhecemos

os glossários de Pereira Coruja, Romaguera Corrêa, Luiz Carlos de Moraes.

E nesse mesmo caminho estavam as quadrinhas populares e „letras‟ de

antigas danças, coligidas e sistematizadas por Von Koseritz, Cezimbra

Jacques, Apolinário Porto Alegre, Simões Lopes Neto e Augusto Meyer”.527

Dessa forma iniciaria o processo de bricolagem que daria origem às “danças

tradicionais”. No entanto, sozinha, a estratégia adotada não se revelaria frutífera devido à

inexistência de referências completas, na bibliografia, de letra, música, passos e figuras de

uma mesma dança.528

Antes mesmo da orientação teórica, a CEF proporcionaria, então, as

condições técnicas necessárias para a “recolha”, em campo, de “danças populares”. Por

solicitação de Dante de Laytano, Ênio Freitas e Castro emprestou o primeiro gravador de som

utilizado por Barbosa Lessa e Paixão Côrtes na documentação de suas viagens ao interior do

Estado. Produto de uma das primeiras incursões foi a reprodução do Pezinho, apresentado, no

526

A essa primeira apresentação de uma dança tradicionalista seguiriam novos eventos nos meses seguintes,

como esforço de divulgação da nova Invernada Artística, composta então por gaiteiros, violonistas, cantores,

declamadores e dançarinos: em junho, o grupo faria um “mini-show” no CTG Fogão Gaúcho, de Taquara, e, em

setembro, no Colégio Madre Bárbara, em Lajeado. No ano seguinte, a agenda incluiria a participação na Festa da

Uva, em Caxias do Sul, em março; uma apresentação de canções gaúchas nas festas juninas do Grêmio Náutico

União e do Petrópolis Tênis Clube e, em julho, um espetáculo de trovas para uma caravana de estudantes

nortistas, na Casa do Estudante. O repertório de danças era então composto, segundo Barbosa Lessa e Paixão

Côrtes, majoritariamente por rancheiras, chotes e polquinhas, como aquelas que animavam os salões dos clubes

do interior. Ver BARBOSA LESSA, Luiz Carlos, PAIXÃO CÔRTES, João Carlos. Danças e Andanças da

Tradição Gaúcha. Op. cit., p. 92. 527

Ibidem, p. 101-102. 528

“Num velho „Anuário do Rio Grande do Sul‟, do ano de 1903, encontramos a música da tirana e do tatu,

recolhidas por Alcides Cruz, mas sem nenhuma orientação coreográfica e com apenas algumas linhas de

descrição quase abstrata: „a dança do tatu consiste num sapateado‟ ou „os acordes da tirana assinalados com uma

pequena cruz significam as pancadas que todo o tocador gaúcho costuma dar no tampo superior da viola, com as

pontas dos dedos‟. Caindo no outro extremo, o „Ensaio sobre os costumes do Rio Grande do Sul‟, de Cezimbra

Jacques, dissertava sobre as coreografias – confusamente, aliás – mas absolutamente nada esclarecia sobre as

respectivas músicas”. Ibidem, p. 104.

168

palco do Instituto de Belas Artes da Universidade do Rio Grande do Sul, junto ao Caranguejo

e à Meia-Canha, para os folcloristas reunidos em Porto Alegre:

“O Pezinho era novidade absoluta. Nem sequer seu nome surgia nas

anteriores pesquisas de Apolinário, Cezimbra, Simões, etc. Dele havíamos

tomado conhecimento, como uma espécie de brinquedo de roda, através de

duas meninas na estância de nosso amigo Nei Azevedo, em Palmares do Sul.

Se, naquela ocasião da III Semana, o 35 já dispusesse de um departamento

infantil ou „invernada mirim‟, muito provavelmente não teríamos sido nós,

rapazes e moças, e sim crianças, os intérpretes da primeira audição. Não

havia outra alternativa, e lá fomos nós – marmanjos – para o palco. O

público, porém, aceitou. Mais que isso: aplaudiu, muitíssimo”529

Assim, uma “brincadeira de roda” infantil foi descontextualizada, estilizada e passou a

ser reproduzida, nos palcos tradicionalistas, como parte do repertório folclórico regional.

Mesmo as coreografias recolhidas de manifestações espontâneas seriam, dessa forma,

utilizadas com novas funções estéticas, dando prosseguimento a uma poética da dança

hibridamente informada por fontes escritas (documentos de época e criações literárias), fontes

orais (depoimentos), vestígios de práticas sociais observadas pelos autores, além de uma boa

dose de imaginação artística. Ainda em 1950, Barbosa Lessa e Paixão Côrtes ingressaram

formalmente nos quadros da CEF, a convite de seu secretário-geral. A formação especializada

propiciada pela inserção na Comissão permitiria a intensificação dos estudos de ambos sobre

os gauchismos precedentes. Além disso, as trocas intelectuais proporcionadas por tal espaço

institucional possibilitariam a instrumentalização dos autores nos assuntos de Folclore. A

pesquisa de campo se tornou, então, a alternativa para suprir as lacunas bibliográficas e criar o

último rito da fase de formação do movimento: “a dança tradicional”. Entre 1950 e 1952,

Barbosa Lessa e Paixão Côrtes coletaram, em “bolichos” e fazendas, depoimentos de antigos

músicos e dançarinos, além de populares de idade avançada, abrangendo 62 municípios do

Rio Grande do Sul. Viagens periódicas para o interior de Santa Catarina e de São Paulo, e

para os países platinos, Paraguai e Bolívia incrementariam ainda mais as composições

coreográficas. Nessas excursões, nossos autores recolhiam material bibliográfico que versasse

teoricamente sobre folclore e que descrevesse danças populares locais. No Acervo Barbosa

Lessa se encontra, por exemplo, uma edição de 1949 do livro El arte folklorico de Bolivia, de

M. Rigoberto Paredes, anotado pelo personagem. Uma passagem por ele assinalada como

“Pau-de-Fita” refere-se à descrição de um rito de povos callahuayas, das aldeias de Charasani,

Curva e Chullina, no qual uma roda de homens e mulheres se formava em torno de um mastro

529

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. Nativismo. Op. cit., p. 71-72.

169

em que eram atadas fitas de cores diversas: “...cada persona agarra un extremo de la cinta, y

quando todos los danzantes tienen la suya, comienza el baile, consistente en dar vueltas y

revueltas al rededor del palo, formando una especie de contradanza”.530

Indicações de

coreografias semelhantes foram recolhidas em outros pontos, como no interior do Estado de

Santa Catarina, e registradas na bibliografia especializada de vários países531

, inspriando a

criação da dança tradicionalista Pau-de-Fita, executada ao som da rancheira Meu Cabelo,

composição de Paixão Côrtes.532

O uso do termo “poética” neste trabalho foi pensado para destituir outro vocábulo

recorrentemente empregado em estudos semelhantes - “invenção” - de sua carga semântica

pejorativa, ligada à falsificação, o que metodologicamente poderia levar a exercícios de

“desmistificação”, os quais, acredito, evadem o problema ao impedir a possibilidade de

compreensão do processo de construção social da realidade. Mas, no caso da dança tradicional

gaúcha, poética pode ser utilizado, também, em seu sentido mais estreito, de elaboração

criativa de uma obra artística. Essa foi a maneira como Barbosa Lessa e Paixão Côrtes

encararam seu empreendimento. Se a constatação da falta de músicas regionais e de poesias

gauchescas disponíveis para a utilização ritualística nos CTGs levou nosso personagem a

compor novos versos, como aqueles de Negrinho do Pastoreio, entraves parecidos em outras

frentes da “tradição” poderiam ser resolvidos de forma semelhante. Além disso, a arte da

dança é realmente muito próxima, segundo a antropóloga Adrienne L. Kaeppler, da poesia, já

que a formalização do movimento naquela é avivada, tornada mais forte, da mesma maneira

como esta aviva, intensifica, a formalização da linguagem.533

Em virtude dessas aproximações, a confusão entre o “tradicionalista” e o “folclórico”

seria objeto de preocupação de nossos autores. Em muitos momentos, Barbosa Lessa reiterou

que as danças ensinadas pelo manual de 1956 se tratavam de “projeções” de inspiração

folclórica e não da repetição de manifestações populares espontâneas, como em seu livro

Nativismo, de 1985: “Há quem, freqüentemente, por desconhecimento da terminologia

530

PAREDES, M. Rigoberto. Coreografia indígena originaria. In: ______ . El arte folklorico de Bolivia. La Paz:

Talleres Graficos Gamarra, 1949, p. 11. 531

A recorrência de motivos semelhantes em diversas sociedades fez com que os autores classificassem, no

Manual de Danças Gaúchas, o Pau-deFita como “dança universal”: “Somente em nosso arquivo, por exemplo,

temos a reprodução de fotografias, desenhos ou pinturas que fixam a „dança das fitas‟ nos seguintes países: Peru,

Venezuela, Argentina, Espanha, França e Inglaterra”. No Rio Grande do Sul, os autores teriam encontrado

registros de execuções análogas em “festas de Reis”, no litoral norte e no planalto nordeste. BARBOSA LESSA,

Luiz Carlos, PAIXÃO CÔRTES, João Carlos. Manual de Danças Gaúchas. Op. cit., p. 97. 532

O seguinte trecho resume a coreografia tradicionalista: “Os dançarinos tomam das fitas (os homens, uma cor;

as mulheres, outra) e realizam determinadas evoluções em torno do mastro, de maneira que as fitas sejam

trançadas”. Ibidem, p. 98. 533

KAEPPLER, Adrienne L. Dance. In: BAUMAN, R. Folklore, Curltural Performances, and Popular

Enterteinments. New York: Oxford, 1992, p. 197.

170

científica correta, as apresente como „danças folclóricas‟. Mas são, na verdade – e sem

desdouro para ninguém – „danças tradicionalistas‟, classificando-se como uma projeção

estética da tradição popular”.534

Uma poética assim definida só se tornou possível graças ao

desenvolvimento de três eixos de ação e de compreensão do movimento, que serão explorados

a seguir: a) a concepção de “fato folclórico nascente”, emprestada dos debates da CNFL, b) a

percepção do tradicionalismo enquanto projeto político, sem comprometimento “científico”

com a tradição, c) a formação de uma perspectiva cívico-pedagógica no tradicionalismo.

O trabalho artístico efetuado por Barbosa Lessa e Paixão Côrtes não poderia ser,

entretanto, fruto do acaso. A busca de elementos folclóricos para balizar suas coreografias

deveria cumprir com exigências sociais de credibilidade, fundadas em critérios de

autenticidade. No texto do Manual, por exemplo, a exclusão de determinadas “danças

folclóricas” registradas pela pesquisa é justificada pela ausência de dados “confiáveis”, o que

se alia à sua falta de “representatividade”: “por acharmos que as informações a elas referentes

não eram dignas de absoluto crédito, no que respeita à autenticidade, ou por não terem

representado papel de verdadeira relevância nos bailes da gente gaúcha”.535

Na elaboração das

danças tradicionais, a recolha dos elementos culturais passava, pois, pelo método folclórico de

então: “Só nos restava sair pesquisando, em atrasados rincões do Rio Grande, informações

que tivessem ficado na memória de velhos músicos ou campeiros em geral”.536

A dinâmica da

coleta também é relatada por Lessa: “Para ganhar tempo, cada um saía num rumo diferente.

Mas, ao nos toparmos com uma boa informação, repetíamos em dupla a entrevista, inclusive

534

Ibidem, p. 73. Na mesma página, o autor traça um paralelo entre as danças tradicionalistas e as “danzas

gauchas” uruguaias, valendo-se, para tal, do livro Concepto de Folklore, de 1955, do professor Paulo de

Carvalho Neto, da Universidad de la República (Montevidéu): “Esas proyeciones, inclusive, disponen de

organismos sociales – las Sociedades Criollas – que son centros de aprendizage de música y canto y de

solidariedad bajo la bandera de la evocación del gaucho. Tales centros están integrados por damas y caballeros

distinguidos que, en la vida profesional, pertenecen a las clases média y burguesa. Pero ninguna Sociedad Criolla

del mundo, en sus danzas, trata de Folklore! El Folklore, en que ellas se inspiran y quieren reproducir, al passar a

sus manos pierde la función específica, pués la motivación que lo determina es ahora otra. En consecuência,

pierde también su forma, pués a una mudanza de motivación y función corresponde casi siempre una mudanza

de forma. Además, la manera de transmitirse ahi también es outra: es uma manera institucionalizada, no

espontánea. Los portadores, a su vez, siendo personas de elevado status social, carecen, naturalmente, de muchos

caracteres que los identificarían como expresión del vulgo (folk)”. CARVALHO NETO, Paulo de. Apud

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. Ibidem, p 73-74. Chama a atenção, nesse sentido, o fato de que entre as

manifestações folclóricas consideradas “folguedos” do Rio Grande do Sul, listadas por Rossini Tavares de Lima,

secretário-geral da Comissão Paulista, apenas o Pau-de-Fita, como vimos, originaria uma dança tradicionalista

de mesmo nome. São elas: “Cavalhada (Vacaria), Congada com Quicumbi e Moçambique (Osório), Boisinho,

Arco-de-flores (ou Jardineira) e Pau-de-Fita (Torres e municípios vizinhos), Quicumbi (Taquari)”. LIMA,

Rossini Tavares de. Achegas para uma distribuição geográfica dos folguedos populares do Brasil.

IBECC/CNFL/DOC. 353, de 01/10/1956. Pasta 2.3.2 (2) do Acervo Barbosa Lessa. 535

Ibidem, p. 7. 536

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. Crônicas do Passado Presente. Op. cit., p. 179.

171

trazendo um gravador de som (se havia tomada elétrica no local)...”. As questões eram

“objetivas”: “A senhora se lembra de O Anu?”, “O senhor alguma vez tocou A Tirana?”.537

A fragilidade teórico-metodológica de tal empreendimento parece ter sido

compartilhada, como foi dito, pelos estudos folclóricos do momento538

, muitas vezes

criticados pelas pesquisas universitárias por seu “empirismo ingênuo”. Esta preocupação com

o empírico, no entanto, não impedia a existência de constantes disputas conceituais em torno

da noção de “fato folclórico”, nem as tentativas de institucionalização do campo como

disciplina científica, conforme mostrou Luís Rodolfo Vilhena. O I Congresso Brasileiro de

Folclore, realizado em 1951, no Rio de Janeiro, girou em torno de acirrados debates para

definir o objeto e a disciplina. As duas propostas principais convergiam na necessidade

sentida de uma abordagem ampla e includente. Porém, havia divergências importantes entre

elas. A primeira, apresentada por Manuel Diégues Júnior, defendia que o fato folclórico não

precisaria ser “tradicional”, desde que fossem “respeitadas as características de fato coletivo,

anônimo e essencialmente popular”, além de incluir entre os objetos de estudo a “cultura

material”.539

Quando à disciplina, este autor buscava sua inserção no interior das “ciências

antropológicas e culturais”, opondo-se aos paradigmas naturalistas de perspectiva racial como

parâmetro de interpretação.540

A segunda, de Oswald Cabral, propunha classificar como

folclóricas aquelas “maneiras de pensar, sentir e agir de um povo, preservadas pela tradição

oral e pela imitação e menos influenciadas pelos círculos e instituições que se dedicam à

renovação e conservação do patrimônio científico e artístico humano”.541

A Carta do Folclore

Brasileiro, aprovada no evento, sintetizaria as duas propostas: enquanto o item 1 demarcava o

Folclore “como integrante das ciências antropológicas e culturais”, o quarto item

recomendava o emprego dos “métodos históricos e culturalistas”542

no seu exame e análise. Já

os item 2 e 3 versavam sobre a natureza do “fato folclórico”: o segundo ratificando a posição

de Cabral e o terceiro afirmando os marcos definidores apontados por Diégues Júnior.

537

Ibidem, p. 179-180. 538

Essa prática de coleta folclórica, com foco “objetivo” para manter a máxima fidelidade à fonte, foi descrita

pelo jornal A Cuia, referindo-se à palestra proferida por Walter Spalding na PUCRS, em 1955: “Métodos:

escrita, gravações e filmes. Fidelidade absoluta na coleta. O coletor deve ser fiel como chapa fotográfica, como

gravador, como filme”. O palestrante ainda recomendava o uso de fichas para classificar o material, as quais

deveriam ser organizadas da seguinte maneira: “Tipo de fichário: Informador (nome, idade, sexo, cultura); -

Zona ou região da coleta: ...; Características culturais da região; - Data, nome, idade e instrução do coletor. O

anteverso em branco para outras informações ou continuação da descrição do tema coletado. – O assunto

coletado deve figurar, sempre, em primeiro lugar, no alto da ficha, ocupando, pelo menos, a metade dela”.

PALESTRA SOBRE Folclore e Tradição. A Cuia. Porto Alegre, 8/09/1955, p. 5. Pasta 2.3.2 (2) do Acervo

Barbosa Lessa. 539

DIÉGUES JÚNIOR, Manuel Apud VILHENA, Luís Rodolfo. Op. cit., p. 139. 540

Ibidem. 541

CABRAL, Oswald Apud Ibidem, p. 140. 542

Carta do Folclore Brasileiro, transcrita parcialmente em: Ibidem.

172

Ainda que a Carta tenha estabelecido certo senso comum sobre tais questões entre os

folcloristas brasileiros, suas definições foram objeto de questionamento. Roger Bastide, que

dialogou com o movimento, sugerindo a análise sociológica do fenômeno “folclore”, resume

o debate da época, em texto publicado pelo Serviço de Imprensa da CNFL, no ano de 1954, às

vésperas do I Congresso Internacional de Folclore: “...um grupo acha que o folclorista deve

se interessar por tudo que é popular; outro, que somente o que é tradicional tem importância.

Como sociólogo, prefiro esta última; para mim, o folclore é a permanência na época de hoje

da civilização neolítica”.543

Bastide assumia, assim, de forma contundente, a posição corrente

entre os folcloristas estrangeiros presentes no primeiro evento internacional da CNFL,

informados, segundo Vilhena, pelas concepções românticas do folclore, calcadas em seu

aspecto “primitivo”, e pelo evolucionismo inglês do século XIX, que se apropriava do

conceito de Tylor para defini-lo como uma “sobrevivência”.544

Inserido nesse debate, Diégues

Júnior propôs pela primeira vez, em 1951, a noção de “fato folclórico nascente”: “Esse

conceito supõe que o surgimento de certos fenômenos folclóricos possa ser testemunhado

pelo pesquisador...”.545

Se, no congresso de 1954, tal percepção acabou sendo posta em

cheque546

, aos brasileiros ela seria ainda bastante útil. A comunicação apresentada neste

evento pelo Padre Antonio Maria Mourinho, publicada no ano seguinte pela CNFL, por

exemplo, indicava algumas definições de teóricos estrangeiros que endossavam sua

compreensão de “fato folclórico”. Através da obra do mexicano Jesus C. Romero, o autor

reafirmava os lastros expostos na Carta de 1951: para merecer a caracterização de folclórica,

a manifestação cultural deveria ser: a) “vernácula”, de caráter etnográfico – “típico, peculiar”

de determinado povo; b) “espontânea”, sem depender de “escola” cultural, pois, caso

contrário, se tornaria “erudita”; c) “anônima”, para que “resulte expressão da coletividade”.547

Barbosa Lessa e Paixão Côrtes, então, de um lado, eram informados pelas posições

desenvolvidas no âmbito da CNFL, que reivindicavam o estatuto científico do Folclore, com

metodologia baseada na busca de critérios de autenticidade, ligando-o às disciplinas

antropológicas e, de outro, em específico, assumiam a posição brasileira sobre o “fato

folclórico nascente”, ao registrar eventos contemporâneos, como o Pezinho, enquanto

representativos da cultura popular local. Se o marco da “espontaneidade” impediria

543

“TRADIÇÃO” EM lugar de “folclore”. Serviço de Imprensa. F.F./JVM – Imp/ 14/06/1954. Pasta 2.3.2 (2) do

Acervo Barbosa Lessa. 544

VILHENA, Luís Rodolfo. Op. cit., p. 141. 545

Ibidem. 546

A questão da “tradicionalidade” do folclore foi posta em votação e, devido à resistência dos delegados

europeus e norte-americanos, a posição brasileira foi vencida. 547

MOURINHO, Antonio Maria. Essência do Folclore: algumas opiniões sobre o fato folclórico.

IBECC/CNFL/DOC. 327, 12/12/1955. Pasta 2.3.2 (2) do Acervo Barbosa Lessa.

173

correlacionar, de forma direta, o “tradicionalista” ao “folclórico” e as “danças tradicionais”

aos folguedos populares, a noção de “fato folclórico nascente” permitiria pensar que, um dia,

elas poderiam adquirir uma feição propriamente folclórica: “quando a massa popular

interpretá-las com a mesma espontaneidade e atualidade com que fala ou trabalha, sem a auto-

consciência de estar cultuando artisticamente vestígios do Passado”.548

A poética da dança é, dessa forma, em mais um aspecto, “híbrida”, pois, ao mesmo

tempo em que recorre ao conceito acima exposto para legitimar tanto a coleta dos

componentes que serviriam para montar as coreografias tradicionalistas quanto seu potencial

folclórico vindouro, ela ainda apela, constantemente, ao discurso da “tradicionalidade”. Nesse

sentido, a história oferece sua principal baliza. Em 1952, Barbosa Lessa e Paixão Côrtes

receberam a menção honrosa do VII Concurso Mário de Andrade, da Discoteca Municipal de

São Paulo, com a monografia Danças Gaúchas, indicada pela CEF. A distinção implicava a

publicação do trabalho, o que, no entanto, nunca se efetivou. Por conta disso, em 1975, nossos

autores adaptaram seu texto para uma linguagem “de divulgação” e o incluíram no livro

Danças e Andanças da Tradição Gaúcha. Através dele, além do Manual, podemos conhecer

suas “teses históricas” sobre a dança gaúcha. A argumentação gira em torno de uma

concepção unidirecional de cultura, segundo a qual a elite ditaria as “modas”, apropriadas

pelo popular, valendo-se de seu “prestígio tecnológico” e, corolariamente, de sua “hegemonia

social, financeira, política e cultural”.549

Em cada período histórico, alguns países ou núcleos

urbanos se destacariam como produtores e centros de irradiação de tendências. Esta asserção

fundamenta a divisão das “danças gaúchas” a partir de sua “geração coreográfica” originária.

Após uma digressão sobre a “dança entre os primitivos” e o papel do teatro grego na

elaboração de danças dramáticas masculinas, nossos autores apontam para a influência desses

centros na configuração das danças brasileiras e, por extensão, do “fandango” no Rio Grande

do Sul, assim caracterizado:

“Da conjunção do fandango vicentista, dança masculina estridentemente

sapateada, com as cantigas trazidas por açorianos e luso-brasileiros

povoadores do Sul, surgiu o primitivo „fandango‟ gaúcho, que é um conjunto

de cantigas interpretadas à viola e intercaladas por uma parte coreográfica em

que os homens sapateiam e as mulheres movimentam-se graciosamente

(sarandeio)”.550

548

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos, PAIXÃO CÔRTES, João Carlos. Danças e Andanças da Tradição Gaúcha.

Op. cit., p. 12. 549

Ibidem, p. 09. 550

Ibidem, p. 36.

174

As danças gaúchas que vinham sendo encenadas nos palcos tradicionalistas, deste

modo, são apresentadas como “sobrevivências” – seguindo a perspectiva teórica “acadêmica”

e “estrangeira” de folclore, nos debates da CNFL – das apropriações populares de quatro

“gerações coreográficas”: a primeira originada na Espanha, onde homens e mulheres

alternavam “meneios de corpo e sapateados”, sem se enlaçarem; a segunda proveniente da

Academia de Dança da França do século XVII, marcada pelos refinados e comedidos

“minuetos”; a terceira inspirada nas coreografias dos camponeses da Inglaterra, pós

Revolução Francesa, com suas contradanças “vivas e descontraídas”; e a quarta inspirada nas

valsas vienenses do século XIX, e marcada, assim, pelos “pares girando enlaçados”. Como

apontado por Hobsbawm, a invenção de tradições estabelece uma continuidade “bastante

artificial” com o passado histórico.551

No caso da dança gaúcha, a “tradicionalidade” poderia

ser evocada, portanto, pela história da produção coreográfica ocidental.552

Folclore e história dotam, pois, as projeções coreográficas de nossos autores de

credibilidade. Quanto ao primeiro, todavia, naquele momento, ambas as perspectivas de “fato

folclórico” determinavam, paradoxalmente, certo distanciamento do movimento folclórico

brasileiro com o tradicionalismo gaúcho, pois, na primeira direção, as exigências disciplinares

de “autenticidade” e “fidelidade” poderiam engessar a nova produção de ritos tradicionalistas

e, no sentido inverso, a perspectiva cívico-festiva destes levantaria suspeita sobre a

“cientificidade” daquele. Como Barbosa Lessa e Paixão Côrtes puderam conciliar, então,

folclorismo e tradicionalismo no Rio Grande do Sul? Chegamos, assim, ao segundo eixo

acima citado. Comprometidos primeiramente com o tradicionalismo, eles dariam uma

resposta pragmática: a compreensão das atividades iniciadas pelo “35” CTG como um projeto

político permitiria os usos do Folclore-ciência pela tradição-movimento. A seguinte passagem

da tese de Barbosa Lessa defendida em 1954 foi transcrita no capítulo anterior, mas vale a

pena relembrá-la: “Os tradicionalistas não precisam tratar cientificamente o folclore; estarão

agindo eficientemente se se servirem dos estudos do folclore, como base de ação, e assim

551

HOBSBAWM, Eric. Op. cit., p. 10. 552

Na segunda parte do livro Danças e Andanças da Tradição Gaúcha, designada pelos autores como

“memória”, Barbosa Lessa e Paixão Côrtes estabelecem a filiação das 22 danças do Manual da seguinte forma:

provenientes da 1ª Geração Coreográfica (GC): Tirana do Lenço e Tatu com Volta no Meio; influenciadas pela 2ª

GC: Caranguejo e Quero-Mana; originárias da 3ª GC, em formação de rodas: Rilo, Cana-Verde, Pericón; 3ª GC,

em fileiras opostas: Chimarrita, Maçanico e Pezinho; hibridismo entre a 1ª e a 3ª GC: Anu e Balaio; oriundas da

4ª GC: Chote, Rancheira, Racheira de Carreirinha, Terol, Polquinha e o “especial” Chote de Duas Damas;

hibridismo entre a 1ª e a 4ª GC: Chimarrita-Balão e Tatu. O Pezinho, o Maçanico e a Chimarrita também são

classificados como “outras danças de salão”, a Polca de Relação ou Meia-Canha Serrana como “brincadeira de

cotillon”, a Chula como “dança masculina” e o Pau-de-Fita como “dança ensaiada para exibição a um público”.

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos, PAIXÃO CÔRTES, João Carlos. Danças e Andanças da Tradição Gaúcha.

Op. cit., p. 128, 129.

175

reafirmarem as vivências folclóricas no próprio seio do povo”. Note-se, mais uma vez, que tal

projeto permitiria e objetivaria, assim, criar “fatos folclóricos”. Além disso, a auto-

proclamação como “movimento” é indicativa de sua vocação enquanto organismo interventor

na memória oficial e na vida social do Estado. Manoelito de Ornellas, “folclorista-

tradicionalista” proveniente da geração denominada por Nedel de “eruditos polígrafos”,

assumiria, em seu discurso na abertura do I Congresso Tradicionalista, a mesma postura:

“Aquilo que nos pareceu, de começo, a manifestação corajosa de alguns

jovens devotos do Rio Grande, no Centro „35‟ de Tradições Gaúchas, tomou

corpo, cresceu no sentido vertical e horizontal. E sem que nós mesmos

prevíssemos, adquiriu as dimensões e a força poderosa de um legítimo

„movimento‟. E a um movimento [grifo do autor] desta natureza, com esta

finalidade e estas proporções é necessário que se lhe dê unidade para que a

ação conjunta e harmônica prepare, mais cedo, o clima da conquista

integral”.553

A fala de Ornellas indica, então, uma percepção comum aos militantes do movimento,

qual seja a de que evitar a política partidária não significava abrir mão da ação como sua

principal finalidade: “Mas há, sem dúvida, um equívoco quando nos julgam apolíticos. Não

somos apolíticos. E como poderíamos deixar de tomar uma atitude definida nos campos

ideológicos, se praticamos uma „política de espírito‟?”.554

Em sua opinião, tal ação deveria ser

marcada pela “defesa da terra” e da “Pátria” “contra todas as infiltrações descaracterizantes e

desagregadoras, venham elas de onde vierem...”.555

A “tradição”, obviamente, seria o remédio

contra os possíveis males daquele período de choques culturais. Daí o papel do gaúcho no

seio da nação: “O Rio Grande deve permanecer fiel às suas tradições e, parcela heróica que

sempre foi, há de continuar a ser vanguarda do Brasil na luta contra infiltrações francas ou

solertes que lhe possam desfigurar o caráter ou ferir-lhe a soberania”.556

A um movimento que

se propunha como vanguarda da vanguarda nacional na defesa da “tradicionalidade”, caberia,

nesta batalha, o emprego de todas as armas necessárias. Isso incluiria, portanto, a “projeção

folclórica” que, por sua natureza criativa, se afastava do folclore “autêntico” e “espontâneo”,

sem dele abdicar totalmente. Quando Barbosa Lessa defendeu a falta de compromisso

científico com o folclórico, buscou, então, legitimar a grande margem de manobra no

processo de criação das danças gaúchas (e dos demais ritos, poderíamos dizer) da qual ele e

Paixão Côrtes puderam gozar pela condição do tradicionalismo enquanto movimento político:

553

ONELLAS, Manoelito de. O Rio Grande Tradicionalista e Brasileiro. Porto Alegre: “35” CTG, 1954, p. 9-

10. 554

Ibidem, p. 14-15. 555

Ibidem, p. 15. 556

Ibidem, p. 15.

176

“Na verdade, o Folclore nunca foi para nós um FIM [grifo dos autores]; foi simplesmente um

MEIO [grifo dos autores] para alcançarmos o fim de revigoramento das tradições brasileiras,

em defesa das quais vimos lutando desde a fundação do „35‟ – Centro de Tradições Gaúchas,

de Porto Alegre, em 1948”.557

A principal estratégia de divulgação das novas coreografias foi, como sabemos, a

elaboração de um manual que deveria servir tanto à rápida aprendizagem dos bailarinos nos

CTGs quanto como auxílio de professores em seu trabalho didático com crianças em idade

escolar, o que nos leva, enfim, ao terceiro eixo de ação e compreensão acima citado: o

desenvolvimento, no tradicionalismo, de uma perspectiva cívico-pedagógica.

A preocupação com as “futuras gerações” é o segundo ponto destacado por Barbosa

Lessa em sua tese de 1954, como vimos no último capítulo. As relações entre o Folclore e a

educação também eram objeto de debate no movimento folclórico brasileiro. Segundo Luís

Rodolfo Vilhena, as matizes individuais expressas em suas reuniões e congressos não

impediram a definição de uma agenda consensual, representada por três “problemas

fundamentais”, nas palavras de Renato Almeida: “a pesquisa, para o levantamento do

material, permitindo o seu estudo; a proteção do folclore, evitando sua regressão; e o

aproveitamento do folclore na educação”.558

O terceiro item seria de vital importância para o

movimento, pois somente ele poderia garantir a eficácia definitiva de seu projeto. O Folclore

deveria então ser objeto de todos os níveis educacionais. Na universidade, ele deveria permitir

a formação de pesquisadores especializados que revogassem o “autodidatismo infecundo”

então vigente.559

No ensino básico, o aproveitamento do material folclórico como instrumento

pedagógico poderia garantir sua sobrevivência no seio das futuras gerações: “A escola poderia

dessa forma substituir os meios tradicionais de transmissão informal da tradição folclórica,

alterados particularmente pela acelerada urbanização social”.560

Como apontado anteriormente, o trabalho de Letícia Nedel evidencia o distanciamento

entre a pesquisa histórica e cultural “acadêmica”, representada no Rio Grande do Sul pelos

557

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos, PAIXÃO CÔRTES, João Carlos. Manual de Danças Gaúchas. Op. cit., p.

8. 558

ALMEIDA, Renato Apud VILHENA, Luís Rodolfo. Op. cit., p. 174. 559

Ibidem. 560

Ibidem, p. 192. Às vésperas do Congresso Internacional de Folclore, que discutiria, entre outros temas, o

aproveitamento do Folclore na educação de base, Renato Almeida assim definia sua posição: “Não será possível

uma educação de base sem considerar os fatos da cultura folk, não só como elemento psicológico, para

compreensão dos grupos sobre os quais deve atuar, fator pedagógico portanto, como ainda porque essa cultura

apresenta uma soma considerável de crenças, de conhecimentos e de técnicas que, não só não podem ser

desconhecidas pelos professores, mas dever ser aproveitadas, seja diretamente, seja como incomparável processo

didático”. ALMEIDA, Renato. Folclore e educação de base. IBECC/CNFL/DOC. 294, 30/04/1954. Pasta 2.3.2

(2) do Acervo Barbosa Lessa.

177

eruditos polígrafos, e o movimento tradicionalista, ao longo da década de 1950.

Concomitantemente a esse processo, no entanto, o tradicionalismo assumia a chancela

didática e a atenção ao ensino básico como meios de reprodução e disseminação dos novos

ritos “gaúchos”. O domínio dos tradicionalistas sobre o ITF, criado, conforme antes

mencionado, em 1954, sob a tutela da Divisão de Cultura da Secretaria Estadual de Educação,

representaria uma vitória, nesse sentido, sobre a hegemonia da CEF nos assuntos de folclore.

Se o Instituto jamais conseguiu implantar o folclore tradicionalista como disciplina ou

atividade curricular regular no ensino formal, ele contou com a legitimidade e o aparato

instrumental propiciados pelo Estado para a execução de cursos de formação e, inclusive, para

a implantação de uma Escola Superior de Folclore, de atividade, no entanto, efêmera.561

Os

debates em torno da questão compareceram, ainda, no ano seguinte, no II Congresso

Tradicionalista, promovido na cidade de Rio Grande pelo CTG Mate Amargo. A tese n. 3,

apresentada por Tereza de Almeida, é indicativa da elaboração consensual de uma agenda

cívico-pedagógica para o tradicionalismo muito semelhante ao terceiro ponto daquela do

movimento folclórico brasileiro.562

A principal preocupação da autora é a garantia de

reprodução da ritualística tradicionalista e dos valores morais, éticos e cívicos a ela

vinculados: “A geração de hoje passará. E o eco das músicas e das lendas morrerá se outras

bocas não o repetirem em tempo”.563

Como defendido por Lessa no ano anterior, Tereza de

Almeida aposta, como solução ao problema, no investimento nas novas gerações, na “infância

de hoje, que não nasceu no campo, não viveu nas estâncias, não comeu pitangas nos matos,

não tomou banho nas sangas, nem viu perdizes correndo entre as macegas”.564

A autora

propunha, então, um programa didático “regionalista” a ser executado nos anos iniciais do

ensino formal, numa cooperação entre escolas e CTGs. Entre as práticas utilizadas

“pedagogicamente”, como motivação “rica e mágica”, quanto ao interesse despertado nas

561

“Ao entrar para a máquina do Estado, os folcloristas do tradicionalismo asseguraram um lugar experimental

de formação técnica, cujo caráter oficial também contribuía para manter a freqüência do Instituto nas aparições

públicas e o trânsito intenso de seu corpo técnico nos jornais. Neles (principalmente em A Hora e no Diário de

Notícias), Antônio Augusto Fagundes, Léo Guerreiro, Isolde Brams e o Diretor Carlos Galvão Krebs divulgaram

resultados de pesquisa, noticiaram congressos e anunciaram cursos organizados pelo ITF. Na continuidade

dessas iniciativas, dez anos mais tarde (em 1965), fundaram a Escola Superior de Folclore (ESF), curso de

graduação dirigido à formação de professores e submetido ao então recém-criado (em 1964) e efêmero „Instituto

de Lingüística e Aculturação‟ da Divisão de Cultura da SEC”. NEDEL, Letícia Borges. Op. cit., p. 155. 562

ALMEIDA, Tereza de. O tradicionalismo e as novas gerações. ANAIS DO II Congresso Tradicionalista – 19

de novembro de 1955. Rio Grande: CTG Mate Amargo, Porto Alegre: Oficina Gráfica da Livraria do Globo,

1956, p. 132-136. 563

Ibidem, p. 132. 564

Ibidem.

178

crianças, e “poderosa”, quanto ao efeito obtido em seu desenvolvimento, se encontrava a

dança tradicional.565

Nosso biografado dera o pontapé inicial à discussão, informado, provavelmente, pelos

debates contemporâneos no movimento folclórico brasileiro. Dois anos antes da defesa de O

Sentido e Valor do Tradicionalismo, ele ministrou conferência intitulada “O Tradicionalismo

e o Ensino”, na Escola Normal do Instituto São José, de Canoas, que formava os irmãos

Lassalistas, “religiosos que se dedicam com afinco à obra da educação”. Conforme noticiou o

Diário de Notícias:

“...a palestra de Luiz Carlos Lessa reveste-se de um especial significado, pois

tende a explicar, aos futuros mestres do Colégio das Dores, de Porto Alegre,

do Colégio Gonzaga, de Pelotas [onde Lessa estudou] e de outros

importantes estabelecimentos de ensino secundário, quais os fundamentos e

as diretrizes que orientam a campanha tradicionalista que ora se espalha, com

tamanho entusiasmo, pelo Rio Grande do Sul”.566

Ele e Paixão Côrtes participaram, assim, da formulação e do desenvolvimento da

perspectiva cívico-pedagógica tradicionalista e, em decorrência, condicionaram seu projeto de

invenção de tradições às suas exigências didáticas.567

A partir daí, as coreografias lecionadas

no Manual de Danças Gaúchas atualizariam as representações do gaúcho mítico e social do

passado rio-grandense de uma maneira diferenciada, propiciada por sua execução

performativa.568

Esse é o objeto da próxima seção.

565

Ibidem, p. 133- 134. 566

PALESTRA SOBRE Tradições Gaúchas. Diário de Notícias. Porto Alegre, 08/11/1952, s./p. Pasta 2.10.2.1

do Acervo Barbosa Lessa. 567

“Tivemos de criar uma metodologia específica, a fim de estabelecer comunicação com os leitores-aprendizes.

A meticulosa transcrição das melodias para a pauta musical foi feita, pacientemente, ao piano, por d. Alda

Barbosa Lessa [mãe de nosso personagem]. Uma das mais dedicadas „prendas‟ do „35‟, Myriam Fernandes

Costa, ajudou-nos muito ao desempenhar os diagramas ilustrativos de passos e figuras. E a excelente desenhista

Isolde Brans – também pertencente ao „35‟ – enriqueceu nosso texto com magníficas ilustrações das cenas

coreográficas mais significativas, captando com rara sensibilidade o que havia de mais expressivo em cada

dança. Foi um verdadeiro trabalho criativo, em equipe, dando materialização a um tema até então praticamente

abstrato”. BARBOSA LESSA, Luiz Carlos, PAIXÃO CÔRTES, João Carlos. Danças e Andanças da Tradição

Gaúcha. Op. cit., p. 121-122. 568

O termo “performance” não pode ser confundido com o vocábulo “ritual”. Aquele designa uma execução

específica deste, entendido como espécie de “ordem litúrgica”, ou seja, enquanto uma estrutura com certo

número de características definidas, ainda que não invariáveis. Ver RAPPAPORT, Roy A. Ritual. In:

BAUMAN, R. Folklore, Curltural Performances, and Popular Enterteinments. New York: Oxford, 1992, p.

249-260. Ao longo deste capítulo, busquei compreender a formação dos principais rituais tradicionalistas. A

Ronda Crioula, os “chimarrões festivos” e a dinâmica social desempenhada nos Centros de Tradições Gaúchas,

bem como os códigos de trajar e portar-se de homens e mulheres, foram objetos de preocupação na medida em

que suas primeiras encenações elaboravam uma estrutura formal relativamente coesa a ponto de se tornarem

matrizes para manifestações culturais regularmente reproduzidas. Na próxima seção, no entanto, analisarei o

potencial comunicativo das performances de algumas danças tradicionais, sem esquecer a “gramática” da dança

elaborada por Barbosa Lessa e Paixão Côrtes.

179

4.3 – Dos papéis aos salões: a atualização performativa do caráter regional e a dinâmica

coreográfica de gênero569

O movimento folclórico, como dito, propiciou uma maneira de renovar os estudos

regionais empreendidos pelos eruditos polígrafos no Rio Grande do Sul.570

Conforme

mostrado por Letícia Nedel, a entrada da CEF na cena intelectual local reeditou os debates

entre os dois registros de memória precedentes, baseados na perspectiva folk do gaúcho

popular e no enfoque centrado no movimento das elites latifundiárias pela expansão do

território brasileiro na região. Além disso, Nedel aponta que a possibilidade de ampliar os

signos desta memória oficial fora disponibilizada para ambos os grupos e por eles utilizadas

de maneiras e medidas diversas, devido à formação de um sentimento generalizado de

necessidade de dilatar os referenciais que fundamentavam a identidade regional.571

Essa

configuração colocaria, mais uma vez, folcloristas eruditos contra o movimento

tradicionalista, cujo projeto privilegiava a figura do gaúcho pampiano, de extensão social e

geográfica bastante reduzida. O projeto individual de Barbosa Lessa, como vimos, é

nitidamente mais próximo, então, desta perspectiva folclorista “acolhedora” do que dos

desenvolvimentos posteriores do tradicionalismo gaúcho. O percurso que fizemos sobre seus

escritos literários, no último capítulo, nos permite afirmar que Lessa comungava, no

momento, a expectativa erudita de pluralidade cultural, chegando mesmo, em alguns

instantes, a ultrapassá-la, narrando a memória de grupos sociais excluídos da produção de

expressiva parcela dessa mesma erudição “acadêmica” avessa ao movimento tradicionalista.

569

A primeira versão dessa seção foi apresentada no II Simpósio Internacional sobre Gênero, Arte e Memória

(SIGAM), promovido pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel), em dezembro de 2009. Ver ZALLA,

Jocelito. Dos papéis aos salões: folclore, gênero e performance nas danças tradicionais gaúchas. In: II Seminário

Internacional sobre Gênero, Arte e Memória. Anais do II SIGAM. Pelotas: Editora da UFPel, 2009, p.361-360.

Publicação em CD-ROM. 570

“Inserido no processo de recomposição do cenário historiográfico, o Folclore aparece então como uma

empresa situada na conjunção de esferas de atuação distintas (literária, musical, histórica), mas de influência

recíproca, visando oferecer a sustentação empírica necessária para a adoção de perspectivas de maior alcance,

através das quais se pudesse dar uma projeção satisfatória para a produção cultural do estado, em suas diferentes

modalidades de expressão”. NEDEL, Letícia Borges. Op. cit., p. 289. 571

“É por conta da busca coletiva por cumprir uma exigência de renovação das diferentes expressões da região,

que o interesse sobre aspectos folclóricos, isto é, „populares‟ e „próprios‟ dessa formação, consegue reunir sob a

legenda da CEF até mesmo adversários antigos de Dante de Laytano, dos mais íntimos (caso de Guilhermino

César) aos mais conhecidos, como os colegas de IHGRS, que Gutfreind qualificou de historiadores lusitanistas –

Othelo Rosa e Moysés Vellinho. Apesar de a participação efetiva desses integrantes nas atividades da CEF não

ultrapassar uma colaboração „realista‟ (segundo o eufemismo preferido pelo Secretário), e praticamente restrita à

recepção de convidados para os eventos sediados em Porto Alegre, é certo que para o conjunto de escritores o

Folclore integrava uma programática de divulgação legitimada nacionalmente, voltada à investigação sistemática

das variáveis de cada uma das regiões brasileiras em suas respectivas composições „sociológicas‟”. Ibidem, p.

305-306.

180

O texto em que nosso autor se colocava acima das disputas entre “lusitanófilos” e

“hispanófilos”, abordado no capítulo anterior, é significativo de sua posição. Seguindo ao

extremo a recomendação agregadora do registro folk, nosso personagem pôde, inclusive, dele

abrir mão no “caso Sepé”: a renovação do regional seria uma questão de “valores” muito mais

do que de idiossincrasias.

O objetivo dessa seção é ler sua produção coreográfica a partir do mesmo foco

utilizado na literatura: de que forma o projeto de Barbosa Lessa – e de Paixão Côrtes, neste

caso – buscou atualizar o mito do “centauro da Pampa”? Como vimos na primeira parte deste

capítulo, a invenção da prenda demandou esforços de definição e estetização de um modelo

de mulher tradicionalista, cujo parâmetro seria, evidentemente, o gaúcho ressignificado das

novas “tradições”. A poética da dança apresenta, assim, um novo elemento de intervenção no

imaginário tradicionalista e regional, pois opera com representações sociais de origens

distintas que fundamentam sua execução, produzem significados e os transmitem em

performance: “Uma única dança, dançada por um único par, mas em alto nível, comunica

[grifo dos autores] mais e melhor do que dezenas de danças mal dançadas por dezenas de

pares”.572

Como apontado pela antropóloga Judith Lynne Hanna, a dança faz parte de um

sistema de comunicação cultural humana, podendo transmitir intencionalmente uma

mensagem ao público que, por sua vez, lhe infere um significado compartilhado e a ele

responde: “O conhecimento partilhado sobre a forma, a experiência em seu emprego, e a

informação suficientemente nítida para ser percebida através das distrações ou obstáculos, são

as condições para a eficiência”.573

Dessa forma, dançarino e espectador mantêm um código

em comum, no qual o primeiro atua como “codificador”, levando idéias e sentimentos ao

segundo, ou seja, ao seu “decodificador”.574

O aspecto comunicativo da dança também é enfatizado por Adrienne L. Kaeppler. Esta

autora afirma que a forma cultural produzida na performance, ainda que passageira, possui um

conteúdo estruturado que transmite significado, é uma manifestação visual de relações sociais

e pode ser objeto de um elaborado sistema estético.575

Este é com certeza o caso das danças

tradicionais. Além de comportar um complexo processo de criação artística, envolvendo

elementos de ordem diversa, como vimos, a poética tradicionalista de Barbosa Lessa e Paixão

Côrtes comunica determinados signos do gauchismo renovado e alimenta modelos de se

572

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos, PAIXÃO CÔRTES, João Carlos. Danças e Andanças da Tradição Gaúcha.

Op. cit., p. 129-130. 573

HANNA, Judith Lynne. Sexo, aprendizado e imagens da dança. In: ______ . Dança, sexo e gênero: signos de

identidade, dominação, desafio e desejo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 29. 574

Ibidem, p. 29-30. 575

KAEPPLER, Adrienne. L. Op. cit., p. 197

181

portar e de se relacionar de “prendas” e “peões”. Portanto, além da atualização da figura folk

privilegiada na memória regional, torna-se necessário pensar a dança como um sistema de

instituição de diferenças de gênero, onde homens e mulheres desempenham papéis bem

definidos e exibem padrões de comportamento socialmente recomendados.

Ao utilizar o corpo como meio de expressão, a dança é para Judith Hanna: “... uma

linguagem não verbal – uma forma de comunicação que requer a mesma e subjacente

faculdade cortical para a conceituação, a criatividade e a memória que a linguagem verbal”.

Da mesma forma que essa última, a dança possui “...vocabulário (passos e gestos na dança),

gramática (normas para juntar o vocabulário) e semântica (significado)”.576

Antes de analisar

os sentidos produzidos pela performance das danças tradicionais, cabe, então, ater-se às

estruturas significantes, às regras de conduta, ou seja, ao vocabulário e à gramática

generificada encontrada no Manual de Barbosa Lessa e Paixão Côrtes.

Sua composição, como vimos, é culturalmente híbrida. Nesse sentido, a dança partilha

a mesma perspectiva acolhedora e, de certa forma, “universalista” da literatura de Lessa:

“Estas danças são gaúchas não porque tivessem se originado inteiramente no ambiente

campeiro, mas porque o gaúcho – recebendo-as de onde quer que fosse – lhes deu música,

detalhes, colorido e alma nativa”.577

Quanto à distribuição espacial da população rio-

grandense representada pelos testemunhos recolhidos, sabemos que a proposta includente de

nossos autores levou-lhes a pesquisar, conforme antes apontado, 62 municípios do Estado, em

todas as microrregiões geográficas. Os principais informantes, por sua vez, se encontravam

assim posicionados: região metropolitana – Porto Alegre; região sul/sudeste – Canguçu,

Pelotas, Piratini; zona das missões – Palmeira das Missões, Santo Ângelo, São Borja, São

Luiz Gonzaga; litoral norte – Osório, Torres; centro – Rio Pardo, Santa Maria, Taquari;

planalto norte e nordeste (Campos de Cima da Serra) - Bom Jesus, Carazinho, Cruz Alta,

Lagoa Vermelha, Vacaria; fronteira sudoeste (“Pampa”): Santana do Livramento, Santiago,

São Sepé.578

Etnicamente, no entanto, a “tradição” privilegiada seria a luso-brasileira, ainda

que ativamente alimentada pelas trocas com os países platinos. Nossos autores relatam

também a recolha, em sua pesquisa de campo, de manifestações negras como o batuque,

“coreografias religiosas em cerimônia afro-porto-alegrense correspondente ao candomblé ou

macumba”, candombe e bambaquerê, e ainda “antigas danças de entretenimento das

576

HANNA, Judith Lynne. Op. cit., p. 42. 577

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos, PAIXÃO CÔRTES, João Carlos. Manual de Danças Gaúchas. Op. cit., p.

17. 578

A lista com os nomes dos informantes se encontra em BARBOSA LESSA, Luiz Carlos, PAIXÃO CÔRTES,

João Carlos. Danças e Andanças da Tradição Gaúcha. Op. cit., p. 114-115.

182

senzalas”.579

Mas se o Barbosa Lessa literato daria atenção à contribuição negra para a cultura

gaúcha e o Barbosa Lessa músico comporia uma canção inspirada nesse encontro, chamada

Bambaquererê, em 1978, naquele momento, o coreógrafo optara, junto ao seu companheiro,

por suprimi-la, ao menos diretamente, do Manual, por ser encontrada apenas em regiões de

“intensa lavoura” ou na capital Porto Alegre. O mesmo tratamento fora dado aos bailados dos

imigrantes alemães e italianos: “Diversas danças foram excluídas deste manual por se

tratarem de danças de fundo dramático ou por serem mais precisamente ligadas aos núcleos

afro-riograndenses ou às colônias de imigração”.580

Todavia, algumas brechas para a

ampliação étnica do gaúcho tradicionalista foram criadas através da inclusão dos chotes

(schottish) trazidos pelos alemães, presença justificada por sua proeminência na “terceira

geração coreográfica” francesa e inglesa, a qual teria repercussão nos salões do Brasil, e do

balaio, dança “nordestina” inspirada nos lundus afro-brasileiros. Se o gaúcho pampiano

continua sendo o centro do projeto coletivo capitaneado por Paixão Côrtes e Barbosa Lessa,

seguindo esses folcloristas-tradicionalistas, ele seria atualizado e alimentado, com pesos e

medidas arbitrariamente diversas, por elementos culturais de outras regiões luso-brasileiras e

mesmo de outros grupos étnicos.581

O livro possui quatro partes bem demarcadas: na primeira, os autores apresentam

ensinamentos básicos, passos fundamentais para a execução das danças gauchescas; na

segunda, são abordadas as danças sem sapateado; na terceira, as danças com sapateado; por

último, os autores oferecem um suplemento musical com as letras, as notações musicais de 18

danças e alguns desenhos indicativos das coreografias, como nas figuras abaixo.582

É no

primeiro momento, então, que encontramos tanto as instruções para os dançarinos, quanto o

anúncio dos valores que fundamentariam a nova experiência tradicionalista:

“As danças que apresentamos neste Manual estão impregnadas do verdadeiro

sabor crioulo do Rio Grande do Sul, são legítimas expressões da alma

gauchesca. Em todas elas está presente o espírito de fidalguia e de respeito à

579

Ibidem, p. 115. 580

Os autores citam os casos de jardineira, boizinho, quicumbis, candombe, herr-schmidt, kraitz-polk e hacke-

schottisch. BARBOSA LESSA, Luiz Carlos, PAIXÃO CÔRTES, João Carlos. Manual de Danças Gaúchas. Op.

cit., p. 7. 581

Artisticamente, como vimos na última seção, o repertório coreográfico que serviu de inspiração para as

“danças gauchescas” é muito maior, já que passos e figuras também foram retirados de coreografias executadas

em diversos países latino-americanos; quer dizer, as danças, de origens culturais diversas, indicadas pelas

pesquisas bibliográficas ou de campo, foram enriquecidas com elementos coreográficos de espectro mais amplo. 582

O suplemento musical foi inicialmente publicado em separata pela Editora Irmãos Vitale, de São Paulo,

especializada em partituras musicais, devido aos altos custos que este tipo de material traria à primeira edição do

Manual, lançada, em princípios de 1956, pela Imprensa Oficial do Estado. A partir de sua segunda edição, o

texto foi integralmente impresso, num único volume, pela Irmãos Vitale. Os autores incluíram, ainda, em 1967,

um pequeno prefácio sinalizando os registros das músicas das danças contidas no livro em LPs de cantores e

conjuntos diversos. Seu texto permaneceu fiel, entretanto, àquele de 1956, em suas sucessivas edições.

183

mulher, que sempre caracterizou o campesino rio-grandense. Todas elas dão

margem a que o gaúcho extravase sua impressionante teatralidade”.583

Figura I – Notação musical e coreográfica do Pezinho584

O trecho indica a postura assumida pelos autores quanto às duas questões discutidas

nessa seção. A “alma gauchesca”, extensiva aos habitantes de todo o território rio-grandense,

é renovada pelo “espírito de fidalguia”, contradizendo as representações do “gaucho malo”,

“bandoleiro”, e o clima de misoginia descrito em relatos de viajantes e ainda encontrado na

cultura pampiana. De outro lado, tal cultura era caracterizada através de outros modelos de

gênero tradicionais, relacionados à sua atribuída disposição aristocrática, ou seja, pela

separação entre o sexo forte, provedor, e o sexo frágil. A divisão de gênero também é

corporificada na indumentária, como vimos acima. Este é o primeiro requisito para entrar num

salão. Para bem desempenhar uma dança gauchesca, é necessário cobrir-se e adornar-se com

os signos da diferença. A mulher porta “vestido de chita floreada, lenço de seda ao pescoço”.

583

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos, PAIXÃO CÔRTES, João Carlos. Manual de Danças Gaúchas. Op. cit., p.

17. 584

Reprodução das páginas 160 e 161 da 8ª edição do Manual de Danças Gaúchas, referentes ao seu

Suplemento Musical e Ilustrativo.

184

Ao homem cabe maior riqueza na vestimenta e em seus detalhes: “botas de cano mole,

esporas, bombacha, guaiaca (cinto campeiro), camisa de uma só cor, lenço de seda ao

pescoço, chapéu de aba não quebrada dos lados, barbicacho (tira de couro que prende o

chapéu) – afora acessórios como a faixa, na cintura, o poncho-pala, o colete, etc”.585

O

segundo requisito é conhecer e respeitar as normas de contato entre homem e mulher. A

iniciativa parte sempre do pólo masculino: o gaúcho convida a prenda para dançar seguindo o

ritual do “giro-saudação”:

“Ele leva consigo um pequeno lenço (tamanho „de bolso‟), preso entre a

camisa e o cinto. Chegando à frente da moça com quem deseja dançar, ele

inclina levemente a cabeça, um ligeiro curvar, ao mesmo tempo que lhe

alcança a mão direita, com a qual segura o citado lenço. A moça, aceitando o

convite, alcança sua mão esquerda ao rapaz. Dessa forma, os dois se tomam

pelas mãos, mas separados pelo lenço [grifo dos autores], que impede que a

mão do rapaz „suje‟ a mão de sua companheira”.586

O lenço, assim, evita o contato físico direto entre homem e mulher. De um lado, ele

impede a mancha concreta da mão da prenda, o que em termos simbólicos afirma uma

concepção idealizada da feminilidade corpórea como limpa, asseada, pura. De outro, o gesto

traduz o desejo de manter também imaculada a moral feminina. Entretanto, o lenço

representa, ainda, o início do rito de conquista. O peão conduz, então, a prenda até o salão,

onde esta executa um giro em torno de seu corpo, tomada pela mão direita do companheiro, e

ambos se cumprimentam após soltarem as mãos: o homem através de uma inclinação da

cabeça; a mulher por meio de uma pequena flexão de joelhos.

Figura II – “Giro de Saudação”587

585

Ibidem, p. 20. 586

Ibidem. 587

Figura reproduzida da página 20 do Manual de Danças Gaúchas.

185

Mas a regra mais contundente diz respeito a um privilégio de gênero. O ato de

sapatear, ou seja, demonstrar força e habilidade através de “floreios” com batidas de pés no

chão, é reservado ao peão; diferentemente, inclusive, das danças hispânicas que teriam dado

origem, segundo a filiação estabelecida por Barbosa Lessa e Paixão Côrtes, às coreografias

gauchescas com sapateado. Paradoxalmente, a história justificaria tal assimetria: “Nas danças

do antigo fandango, somente o homem „sapateia‟, pois a mulher se limita a „sarandear‟”.

Em seguida, os autores explicam o movimento feminino: “Para executar o „sarandeio‟ ou

„meneiro‟, a mulher ergue levemente a barra-da-saia, efetuando passos graciosos, rápidos e

curtos. Enquanto sarandeia, a mulher dá ao busto uma postura desempenada, de donaire e

altivez [grifos dos autores]”.588

Ainda que o “sarandeio” seja apontado como representativo da “postura altiva” da

mulher gaúcha, é o sapateado que deveria obter o reconhecimento social (e o fascínio do

gênero oposto):

“Sapateando, roseteando as esporas, ajoelhando-se, realizando rápidos giros

ou meia-voltas, atirando um lenço ao chão para tomá-lo com as mãos

enquanto sapateia, dançando em cima de um banco, pulando cadeiras, etc –

assim o gaúcho, nos bailes campeiros, extravasa a sua impressionante

teatralidade – virtude ou defeito que ele traz no sangue, através das

gerações”.589

Os autores acrescentam: “Foi assim que surgiram, no pampa – fazendo valer seu

prestígio não só entre as „chinocas‟ como entre seus companheiros – os mais hábeis

sapateadores crioulos...”.590

O movimento masculino deteria, pois, a exclusividade do status

coletivo apoiado em valores como força e habilidade. Aquele homem que exercesse sua

virilidade pela dança poderia também afirmar-se socialmente através das formas dominantes

de masculinidade.

A partir de então, Barbosa Lessa e Paixão Côrtes descrevem o sarandeio: “... é um

elemento coreográfico que tem por finalidade explorar a graça feminina”. Mais uma vez, os

símbolos da feminilidade tradicional são realçados. No interior dos limites por eles

demarcados, no entanto, a mulher disporia de certa margem de liberdade que lhe permitiria

expressar os “encantos” individuais: “Assim sendo, os „passos‟ do sarandeio não se limitam

por esquemas ou explicações pormenorizadas: o limite do sarandeio é a própria graça da

588

Ibidem, p. 22. 589

Ibidem, p. 39-40. 590

Ibidem, p. 40.

186

gauchinha, e se desenvolve livremente de acordo com as possibilidades individuais”.591

Mas

ainda estamos no campo das normas e, dessa forma, o movimento feminino deveria apresentar

regularidades. Por exemplo: “o ato da mulher tomar da saia, com ambas as mãos, erguendo-a

levemente ou sacudindo-a ao ritmo musical (como se atraísse ou desafiasse o companheiro); e

os passos bastante curtos e ligeiros, executados na meia-planta do pé, permitindo

movimentação rápida e cheia de donaire”.592

“Atrair” ou “desafiar” o(a) companheiro(a) são os objetivos principais das danças

tradicionais para o homem e para a mulher. Utilizando o “vocabulário” (passos de polca,

passos de marcha, sarandeios e sapateios em ritmos binários e ternários, por exemplo), e

seguindo a “gramática” social da dança, peões e prendas estariam aptos a desempenhar as 22

coreografias “resgatadas” por nossos autores.593

Cada uma delas encerra uma performance

diferente. Segundo Richard Bauman594

, este termo sugere um modo de comunicação

esteticamente marcado, emoldurado de uma maneira especial e exposto a uma audiência. Para

o autor, a análise da performance ilumina as dimensões sociais, culturais e estéticas do

processo comunicativo.595

Cinco características seriam recorrentes nas performances: 1) tais

eventos tendem a ser agendados, configurados e preparados antecipadamente; 2) eles são

temporalmente limitados; 3) são espacialmente limitados; 4) são culturalmente programados,

dentro de um enredo estruturado; 5) são ocasiões publicamente coordenadas, abertas à

observação por uma audiência e para a participação coletiva.596

Os cinco aspectos são

encontrado nas performances das danças tradicionais, desde suas primeiras execuções: cada

apresentação é ensaiada previamente e divulgada aos demais tradicionalistas e público em

geral; têm início e fim bem definidos; ocorrem geralmente nos salões dos CTGs, mas, com o

tempo, passam, também, a ocupar as pistas e palcos de novos festivais, “rodeios” e eventos

cívicos montados para sua apresentação; seguem uma estrutura relativamente fixa e normas

de conduta definidas, como acima analisado; por fim, objetivam, como dito, a exposição a um

público especializado de tradicionalistas, mas também a platéias mais amplas, divulgando

591

Ibidem, p. 41. 592

Ibidem. 593

21 se considerarmos o Chote e o Chote de Duas Damas como variações de uma mesma dança. 594

As teorias da performance de autores como Victor Turner, Erving Goffman e Richard Schechner não serão

abordadas aqui devido à sua perspectiva mais ampla de “drama social”, na qual o conceito é utilizado para

iluminar práticas cotidianas. Paralelamente a seus trabalhos, Richard Bauman desenvolveu a ótica da

“performance como evento”, que se preocupa com a construção de gêneros específicos de performance, suas

características e sua relação com o contexto social. Daí a escolha desse autor para pensar nosso objeto. Ver

LANGDON, Esther Jean. Performance e Preocupações Pós-Modernas na Antropologia. In: TEIXEIRA, João

Gabriel L. C. Performáticos, performance e sociedade. Brasília: Editora da UnB, 1996, p. 23-28. 595

BAUMAN, Richard. Performance. In: ______. Folklore, Cultural Performances, and Popular

Enterteinments. New York: Oxford, 1992, p. 41. 596

Ibidem, p. 46.

187

tanto o movimento quanto as “tradições gaúchas”. Foi nesse sentido que, em 1955, Barbosa

Lessa criou o Grupo Folclórico Brasileiro para encenar a peça Danças Gaúchas, primeira

versão da futura Não te Assusta Zacaria!, que percorreria os estados de São Paulo, Rio de

Janeiro e Rio Grande do Sul, com Paixão Côrtes desempenhando, nesse último e, o papel

principal.597

De acordo com Bauman, ainda, a performance pode se revelar um meio cultural de

objetivação e de autocontrole, configurando-se, para determinada cultura, um “sistema de

sistemas de significação”.598

Dessa forma, o modo de exibição da performance constitui o

performer como objeto para si mesmo e para os outros. Portanto, enquanto sistema

generificado, o desempenho das danças tradicionais disciplina a conduta dos seguidores do

tradicionalismo gaúcho, de acordo com as formas de ser homem e de ser mulher acima

escrutinadas, consituindo-os como “peões” e como “prendas”. Passemos, então, a algumas

performances descritas no manual de Barbosa Lessa e Paixão Côrtes.599

A dança da Chimarrita, considerada pelos autores como uma das mais difundidas no

Estado, configura-se em um rito de sedução. Os casais a iniciam separadamente, em duas

fileiras opostas. Após as primeiras figuras, ambas as filas se distanciam, simbolizando a

ruptura. Mas segue-se a ela o retorno dos pares e seu encontro: “A dança termina ao 16.o

compasso, quando os pares, embora de mãos dadas, procuram aproximar-se ainda mais, e para

tal realizam o último passo-de-polca para a frente, de modo que os rostos e os corpos quase se

toquem, em romântica atração”.600

Já no Pezinho, observada em campo como dança infantil, a

inocência é o valor predicado, numa coreografia que alterna movimentos pendulares dos pés

de peões e prendas em sentido oposto e giros de braços enlaçados: “Em relação à sua

estouvada irmã mexicana [dança da Raspa] e a seus robustos e desatinados irmãos europeus,

porém, o „Pézinho‟ sobressai pela ingenuidade com que fala e com que age. Sua ingenuidade

597

No mesmo ano, uma reportagem da Folha da Tarde relatava a repercussão da fundação do GFB em São

Paulo e descrevia o argumento que amarrava as execuções das danças tradicionais em sua primeira peça: “S.

Paulo – A crítica especializada vem aplaudindo com destaque a estréia, nesta capital, do Grupo Folclórico

Brasileiro, dirigido pelo rio-grandense Barbosa Lessa. A peça de estréia intitula-se „Danças Gaúchas‟, e tem por

motivo central um casamento à gaúcha. (...) „O Grupo Folclórico Brasileiro já tem seu lugar conquistado no meio

teatral do país‟ – escreveu, no „Tempo‟, o conceituado crítico Celso Faria, traduzindo o otimismo com que a

imprensa especializada de São Paulo vê nascer um grupo que canta, dança e interpreta o folclore gaúcho”.

SAPATEADOS GAÚCHOS marcam a fundação do Grupo Folclórico Brasileiro. Folha da Tarde. Porto Alegre,

18/07/1955, s./p. Pasta 2.10.2.1 do Acervo Barbosa Lessa. 598

BAUMAN, Richard. Op. cit., p. 47. 599

Quanto aos critérios de seleção das danças analisadas: numericamente procurei manter a proporcionalidade

entre as “danças sem sapateado” (cinco das onze danças, considerando variações da mesma coreografia os pares

Meia-Canha/Pericom, Chote/Chote de Duas Damas, Rancheira/Rancheira de Carreirinha e Terol/Pau-de-Fita ) e

as “danças com sapateado” (três das seis coreografias) apresentada no Manual; qualitativamente, para melhor

explorar as diferentes possibilidades performativas, escolhi danças de “gerações coreográficas” distintas e,

portanto, com menor coincidência de características. 600

Ibidem, p. 51.

188

e sua ternura é que o fizeram a dança predileta dos tradicionalistas rio-grandenses”.601

Tais

valores são reforçados pela exigência do canto no momento de sua execução: “É necessário

frizar que o „Pezinho‟ é a única dança popular rio-grandense em que todos os dançarinos

obrigatoriamente cantam, não se limitando, portanto, à simples execução da coreografia”.602

Já o Caranguejo é exemplo de austeridade, “caso raro”, segundo os autores, no ciclo de pares

dependentes do folclore gaúcho, segundo os autores: “O caráter maneiroso da dança é

acentuado por cumprimentos entre os dançarinos, e „balancês‟ (evolução originária da

quadrilha), que permitem à gauchinha demonstrar toda a sua graça”.603

Figura III – Aproximação da ilustração da dança do Pezinho

O caso da Meia-Canha também é interessante. Nela, mais importante do que a

coreografia é o desafio de versos entre peões e prendas. Segundo os autores, essa dança rio-

grandense e sua variante platina possuem matriz andaluza. O nome é devido ao sorvo de goles

de bebida alcoólica durante seu desempenho – daí a imoralidade a ela atribuída pelos

cronistas de época:

“Evidentemente, a „Media-Caña‟ somente adquiriu a dose de imoralidade que

os cronistas lhe imputam, ao descer às últimas camadas sociais – na última

escala da migração desde os salões da Andalucía. Houve, certamente, um

período intermédio – já crioulo mas ainda fidalgo – que serviu de base para a

601

Ibidem, p. 53. 602

Ibidem. 603

Ibidem, p. 55.

189

recuperação, pelos tradicionalistas platinos, da graciosa dança que eles

conhecem, divulgam e aplaudem como „Media-Caña‟”.604

No Rio Grande do Sul, ela teria adquirido feição própria e se transformado numa

simples roda de homens e mulheres a dançar “sem maior significação coreográfica”. Os casais

bailam em sentido horário até que um dos peões interrompe a música ao grito de “Pára la

guitarra, pra eu dizer minha relación!”. Em seguida, ele oferece uma quadrinha à sua

companheira. A música volta a ser tocada para que a prenda prepare sua resposta enquanto

dança com o rapaz. Quando o par se desenlaça, a música é novamente interrompida para que a

moça recite seus versos. Se a prenda não sabe responder, pede que outra pessoa, geralmente

um homem, a “desempenhe”: “assim se tornam conhecidos e aplaudidos muitos poetas

repentistas, com grande habilidade para „desempenharem‟, na „meia-canha‟”.605

Nos versos

encontramos novos jogos de conquista, mas também o “espírito sarcástico” e o humor

ingênuo dos versos de “pé quebrado”, que não são versos “nem pela métrica, nem pela rima,

nem por nada”.606

No primeiro caso, nos deparamos com um exemplo no qual o simbolismo

do lenço reaparece. Diz a moça: “Tenho meu lencinho branco/Que custou meio

tostão./Quando não acho meu lenço/As lágrimas caem pelo chão”. A resposta do gaúcho:

“Não botes lencinho branco/Para o lado donde eu ando;/Bate o vento, abana o lenço/Penso

que estás me chamando”. O humor pode manifestar também um conflito. Diz o rapaz: “Tu de

lá e eu de cá,/Uma parede pelo meio,/Tu de lá dás um suspiro,/E eu daqui, suspiro-e-meio”.

Os versos da prenda: “Tu de lá e eu de cá,/Uma parede pelo meio:/Tu de lá dás um suspiro,/E

eu daqui – te prendo o relho!”.607

Este é um dos poucos momentos em que mulher pode, nas

danças tradicionais, desempenhar o papel de protagonista, desafiando o homem e exercendo o

poder de decisão nos ritos de sedução. Em última instância, no entanto, peão e prenda voltam

a se enlaçar e seguem como par durante a performance.

O protagonismo masculino é evidenciado pela possibilidade oferecida ao “peão” de

bailar com duas “prendas”, no Chote de Duas Damas. Ladeado por duas mulheres, o homem

conduz a execução em quatro passos-de-polca, durante oito compassos da música,

alternadamente para frente e para trás, seguindo um sentido comum aos três dançarinos. Na

seqüência, uma figura também é realizada em oito compassos, na qual as mulheres

“sarandeiam”, giram e trocam de lugar, sempre ao comando do homem. O destaque ao bailar

604

Ibidem, p. 72. 605

Ibidem, p. 74. 606

Ibidem, p. 75. Por exemplo: “Lá se vai o sol entrando/Redondo como um tamanco,/Mas se de fato me

amasses/ Não tinhas me emprestado aquela/égua manca...”. Ibidem, p. 76. 607

Ibidem.

190

masculino é ainda mais acentuado, evidentemente, nas “danças sapateadas”. O Anú e a Tirana

do Lenço são executados em filas opostas de peões e prendas que intercalam aproximações e

distanciamentos através de sapateios e sarandeios. O lenço é, na Tirana, o elemento de

atração, tanto do homem quanto da mulher, da mesma forma como no Tatu, em que esta faz

evoluções circulares em torno daquele, que sapateia no centro, girando sem sair do lugar, até

que ambos se tomam pelos lenços e o peão conduz a prenda para um giro e um contra-giro. A

Quero-Mana é semelhante ao Anú. Nela, o movimento das duas fileiras se faz num mesmo

sentido, se deslocando na direção frontal do primeiro par da fila. As mulheres são mais uma

vez conduzidas pelos homens, que as guiam pelas mãos. Quando acontece o desenlace, no

entanto, ambos executam fortes marcações de pé, na forma de passos-de-polca sapateados. As

batidas não se configuram, todavia, como sapateios, e a perseguição executada pelos “bate-

pés” é dada pelo peão em direção à prenda: “Como este bate-pé destina-se unicamente a

propiciar um avanço-e-recuo coordenado das duas fileiras, as mulheres devem realizar passos

idênticos aos dos homens, mas sem o ruído característico do bate-pé”.608

O sapateio se

mantém, assim, como privilégio de gênero. Na perseguição, a prenda inicialmente se afasta,

mas acaba cedendo às investidas do peão e permite novamente ser conduzida pela mão na

repetição da primeira figura. A Chula é, por fim, o supra-sumo da prerrogativa masculina,

pois se desenrola como dança exclusiva de homens, que se desafiam mutuamente alternando

sapateios sobre uma lança de madeira: “Será desclassificado o dançarino que perder o ritmo,

que se afastar da música, que errar o passo, que deslocar com os pés a haste de madeira, ou,

ainda, que não puder repetir com exatidão o passo executado antes por seu adversário”.609

A

habilidade com os pés é, então, semelhante àquela exigida nas lides campeiras: o centauro

renovado é aquele que demonstra maestria nas fainas mais árduas, no trabalho ou na

recreação.610

608

Ibidem, p. 65. 609

Ibidem, p. 122. A complexificação dos sapateios exigiu a atualização do desafio nos concursos

tradicionalistas, já que se tornou impossível reproduzi-los a partir de uma simples visualização. Atualmente, sai

vencedor justamente o peão que apresentar os passos mais difíceis, sem tocar na lança ou perder o ritmo, por

exemplo. 610

Cabe ressaltar que não existe nenhuma coreografia tradicionalista exclusiva para mulheres. Há registros, em

alguns festivais recentes, como ENART (Encontro de Arte e Tradição Gaúcha), realizado anualmente pelo MTG,

de apresentações de coreografias de “entrada” e de “retirada” dos grupos de dança executadas somente por

mulheres. Tratam-se, entretanto, de peças artísticas criadas por tais “invernadas”; portanto, não são consideradas

“danças gaúchas”.

191

Figura IV – Movimento de atração de pares com lenços executado na Tirana611

Figura V – Ilustração da Chula612

611

Figura reproduzida da página 135 do Manual, referente ao Suplemento Musical e Ilustrativo. 612

Ibidem, p. 153.

192

No capítulo anterior, apontei para a configuração de papéis de masculinidade e

feminilidade na literatura regionalista de Barbosa Lessa. Seu romance Os Guaxos, escrito, em

sucessivas elaborações dos textos das peças do Grupo Folclórico Brasileiro, no momento de

construção das tradições gaúchas pelo nascente movimento tradicionalista, recria não somente

um modelo de identidade regional, mas também um modelo de identidade de gênero; resgata

a figura mítica do gaúcho da literatura regionalista precedente e acaba por afirmar padrões

tradicionais de ser homem, mas em contraposição à cultura misógina da campanha. Nas

danças, o processo é semelhante. A “fidalguia” atribuída ao monarca das coxilhas recobre

suas ações de galanteio e trato com o elemento feminino, impondo a presença da mulher na

dinâmica tradicionalista. Tudo se passa como se a incorporação cultural de outros setores da

sociedade rio-grandense levasse o novo gaúcho pampiano a mais uma especificidade em

relação ao todo nacional, diferente do esperado então pelo senso comum, segundo nosso

personagem: “Dentro do panorama geral das danças populares brasileiras, as danças gaúchas

apresentam essa exceção curiosíssima: são dançadas por homem e mulher, aos pares [grifo

meu]!”.613

O gaúcho ideal das danças é aquele que foi o modelo dominante na produção

regionalista: bravo, forte, corajoso, como o guerreiro que “lutou por liberdade” e “defendeu

as fronteiras nacionais”; habilidoso, ágil, competente, como o campeiro de antanho; mas

também quase “fidalgo”, como os casais açorianos, por exemplo, que aqui aportaram: “No

Rio Grande do Sul, porém, não é privilégio das elites o gosto pelos bailes, a sociabilidade, o

prazer de um ameno convívio nos salões de festas”.614

Quanto à mulher gaúcha, como vimos,

a literatura de Barbosa Lessa também se inspira em padrões tradicionais para formular um

modelo ideal. Porém, valoriza atributos reservados outrora apenas aos homens, como a força

e a coragem. Mas, se a elaboração das danças tradicionais abre espaço para a mulher no

movimento, sua performance não conduz necessariamente a tal flexibilização dos predicados

femininos. Como vimos, a valoração positiva da feminilidade está baseada em atributos como

graça, altivez, elegância, pureza e fragilidade.

O binômio masculino/feminino que sustenta a gramática e a semântica dos gêneros no

Manual de Danças Tradicionais, extensivo às performances por ele ensinadas, é, portanto

613

“O leitor menos familiarizado com o folclore coreográfico brasileiro há de certamente ficar meio espantado

com essa afirmativa e, mais ainda, com esse ponto de exclamação. Perguntará: mas por aí afora, além das

fronteiras do Rio Grande, nosso povo não dança mesmo assim? No carnaval carioca – que todos conhecem –

não. No frevo pernambucano, também não. Também não em nossas danças dramáticas, em nossos rituais ou

festas de macumba, em nossos folguedos ginásticos, em nossas danças caboclas desde o côco até o cateretê do

sertão. Eis, efetivamente, um ovo de Colombo em matéria de estudos folclóricos brasileiros: no Rio Grande do

Sul, por incrível que pareça, há danças de homem e mulher formando par!”. BARBOSA LESSA, Luiz Carlos.

Danças Regionais Gaúchas. In: RIO GRANDE do Sul: terra e povo. Porto Alegre: Globo, 1964, p. 181. 614

Ibidem, p. 188.

193

aquele em que ao primeiro pólo é reservado os privilégios da diferença. É o peão que convida

a prenda para a dança, que a conquista. A exceção confirma a regra: o humor, em algumas

coreografias, manifesta a diferença não mais em harmonia. A prenda pode desafiar o peão,

mas, após o conflito, geralmente temos a conciliação.

* * *

Ao longo deste capítulo busquei analisar as maneiras como nosso autor participou da

conformação do movimento tradicionalista gaúcho e da produção de seus principais ritos e

símbolos, como a “Ronda Crioula”, a “pilcha” masculina, o estandarte farroupilha, o CTG e

sua dinâmica festiva, a “prenda” e, por fim, as “danças tradicionais”. Procurei mostrar que seu

projeto intelectual individual informou, em muitos momentos, o projeto coletivo de invenção

de tradições, direcionando-o, nas duas primeiras fases da periodização proposta por Letícia

Nedel, ao encontro com o registro folk da memória regional. Nosso autor comunga a

perspectiva generalizada da erudição local de atualização e ampliação dessa memória. Se o

gaúcho pampiano continua sendo o centro de ambos os projetos, coletivo e pessoal, ele acaba

costurado e reconfigurado por elementos culturais de origem social e mesmo étnica diversa,

ainda que, neste caso, por maneiras sub-reptícias, como vimos na produção coreográfica. Esta,

por sua vez, constrói um modelo de identidade que se constitui também enquanto modelo de

gênero.

O folclore é, portanto, nesse momento, o foco da poética da tradição de Barbosa Lessa.

Seu pendor artístico não entra em conflito, todavia, com as diretrizes do movimento folclórico

brasileiro, já que é referendado pela atuação política do tradicionalismo organizado. Delas, ao

contrário, nosso personagem se vale quando necessário, legitimando sua produção pela

pesquisa de campo, e a margem criativa da qual pode dispor pela noção de “fato folclórico

nascente”. Esse duplo movimento de afastamento e de aproximação com o objeto folclore lhe

colocaria questionamentos sobre sua própria identidade profissional. Em 1955, o teatrólogo

Barbosa Lessa, que em breve publicaria seu livro sobre noções teóricas fundamentais de

teatro615

, não abria mão do qualificativo “folclorista”. A solução é dada em depoimento sobre

a atuação do GFB, em que fazia uma distinção entre este termo e “folclorólogo”:

“...folclorista é a pessoa que procura, pesquisa e viaja. É o operário do folclore. E folclorólogo

615

Ver BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. Primeiras Noções de Teatro. São Paulo: Francisco Alves, 1958, 257 p.

194

é o estudioso de gabinete, o cientista de folclore. É a pessoa que estuda o material recolhido

pelo folclorista, nas viagens de pesquisa. Essa pesquisas é que dão muito trabalho e

gastos”.616

Dessa forma, residindo em São Paulo, nosso personagem viria a participar da

Comissão Paulista, fazendo trabalho de campo e recolhendo material para novas peças

teatrais. A partir de 1958, ele realizou novas viagens pelo interior do país, chegando até o

Amazonas. Tentou organizar o material coletado em uma espécie de “arquivo sonoro de

danças brasileiras”, tendo, entretanto, recebido negativa para seu pedido de financiamento

dirigido à Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro (CDFB), órgão que havia substituído,

naquele ano, a CNFL617

. O artista continuou aproveitando, todavia, os elementos folclóricos

coletados em sua produção musical, teatral, televisiva e mesmo cinematográfica, redigindo

argumentos para diversas empresas do ramo. Tal produção não será alvo de estudo e reflexão

neste trabalho, já que nosso recorte condiciona o olhar para a participação de Lessa na

conformação da memória regional e da identidade gaúcha, e nos debates intelectuais

regionalistas travados no Rio Grande do Sul.

Ao longo de cerca de vinte anos na capital paulista, nosso folclorista viria a atuar em

diversas frentes, acabando por se tornar publicitário e professor de comunicação social. É

nessa condição que ele retorna ao estado, em 1978, assumindo posto de chefia na Mercur

Publicidade. Logo, entretanto, Lessa voltaria aos “assuntos do Sul”. Este será o foco do

próximo capítulo, onde buscarei dar conta de sua ação à frente da Secretaria de Cultura e

Desporto do Estado do Rio Grande do Sul, de sua volta aos escritos ensaísticos e literários de

inspiração histórica e de sua conseqüente incursão na historiografia, além da configuração

realizada por ele de textos memorialísticos propriamente ditos, nos quais passa a pensar os

anos de formação do movimento tradicionalista gaúcho e sua posição em seu seio.

616

UM BRADO de alerta do Grupo Folclórico Brasileiro. Última Hora. São Paulo, 08/05/1957, s/p. Pasta

2.10.2.1 do Acervo Barbosa Lessa. 617

O retorno da CDFB foi dado em janeiro de 1960: “Em resposta à exposição de 6/11/59, em que Vossa

Senhoria solicita um auxílio financeiro, pela cessão, ao Ministério da Educação e Cultura, de um „Arquivo

Sonoro de Danças Brasileiras‟, cumpre-me informar-lhe que o Conselho Técnico de Folclore examinou

atentamente o assunto em reunião de 4/12/59 e concluiu pela impossibilidade do atendimento do pedido, em

vista de o Plano de organização dos arquivos da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, estar subordinado

ao da coleta de material de suas próprias pesquisas”. Ofício n. 53 da CDFB. Ministério da Educação e Cultura.

Em 07/01/1960. Pasta 20.2-1 do Acervo Barbosa Lessa.

195

Capítulo V – Pedaço(s) de pátria: a diversificação da “região” e a atualização do gaúcho

mítico como políticas públicas

A referência ao passado e aos temas históricos é, como vimos, uma constante nos

escritos de nosso personagem, o que levou Luís Augusto Fischer a avaliar sua obra da

seguinte forma:

“Lessa é um caso mais interessante ainda [entre escritores tradicionalistas],

do ponto de vista histórico: advogado de formação, viveu por duas décadas

em São Paulo, exatamente quando a metrópole brasileira estourava

industrialmente, trabalhando em publicidade, o coração estético da vida

moderna – e mesmo assim parece que nunca se afastou de uma visão

primitivizante, quer dizer, interessada em recuperar, retrabalhar, revalorizar

as coisas primitivas, ou de aspecto originário”.618

Conforme salientamos nos capítulos anteriores, o passado interessava a Barbosa Lessa

enquanto fonte de ação. Seu valor se dava pelo que poderia conter de exemplar, ou seja, era o

ponto em que o mítico encontrava o presente para lhe apresentar modelos de futuro. Mas a

prática historiográfica propriamente dita, cuja primeira experiência, História do Chimarrão,

foi abordada no Capítulo II, só seria recuperada em 1967, com a publicação da Nova História

do Brasil. Estabelecido em São Paulo, agora como publicitário, as relações com o

tradicionalismo se tornavam rarefeitas. Conseqüentemente, o Rio Grande do Sul aparece neste

texto apenas superficialmente, esmaecido na história do país. O que chama mais a atenção é

que mesmo a “Revolução Farroupilha”, erigida como símbolo da identidade regional do

Estado e celebrada pelo autor durante a militância tradicionalista, aparece no livro somente

em rápidas citações e sempre relacionada com as demais revoltas do período regencial. Vale

salientar que tal forma de representar e interpretar o episódio farrapo é bastante antiga. Como

aponta Ieda Gutfreind, Aurélio Porto, nos anos vinte, esforçava-se em descrever uma

Revolução Farroupilha nacional, patriótica e “enquadrada no panorama da formação cívica

brasileira”.619

Desta forma, combatia-se as suspeitas de separatismo rio-grandense. Alcides

Bezerra, então diretor do Arquivo Nacional, balizava esta tese, diluindo a revolta nos

acontecimentos da história brasileira. Os nacionalismos dos anos vinte e trinta visavam, então,

618

FISCHER, Luís Augusto. Op. cit., p. 107. 619

GUTFREIND, Ieda. Op. cit., p. 42.

196

a “resgatar” e reabilitar o movimento farroupilha, dando-lhe novo destaque. O texto de

Barbosa Lessa, no entanto, não possuía esta pretensão. Pode-se explicar tal “ausência” (ou

melhor, tal “esmaecimento”) incorporando-se a interpretação de Ruben Oliven sobre o

abrandamento do discurso regionalista gaúcho no período militar recente: em um país cada

vez mais integrado econômica e politicamente não haveria tanto espaço para

particularismos.620

Além disso, é preciso lembrar que o nacionalismo, sintetizado na idéia de

“Brasil grande”, era um dos pilares da ideologia governamental.621

O que o livro evidencia de

fato, para nossos objetivos, é que o Rio Grande do Sul, bem como suas “figuras típicas” e

temas privilegiados, não estava, no momento, no centro das atenções de Barbosa Lessa.

Além disso, ao contrário do apontado por Fischer, a experiência social urbana e a

incursão profissional no campo da publicidade levaram nosso autor a redigir ensaios literários

de ordem diversa daqueles do gauchismo de inspiração “primitivizante”, como seu romance

policial significativamente intitulado O crime é um caso de marketing, publicado em São

Paulo, pela Editora Globo, em 1975.622

No tocante à produção estritamente regionalista de

Lessa, no entanto, Fischer destaca aspectos importantes, que vêm sendo perseguidos e

analisados neste trabalho, quais sejam, o trato com as “origens” e o constante aproveitamento

de material histórico na elaboração de uma memória e de um modelo de identidade regional.

Tal produção volta a florescer a partir da segunda metade dos anos setenta,

concomitantemente à sua reinserção no cenário intelectual e político sul-rio-grandense, o que

justifica nosso “salto” de cerca de vinte anos nesta biografia histórico-intelectual.

Em 1974, nosso escritor retornou a Porto Alegre, junto com a esposa Nilza e os filhos

Guilherme e Valéria, na condição de diretor de criação da Mercur Publicidade e, em seguida,

foi nomeado assessor de imprensa da CORSAN – Companhia Rio-Grandense de Saneamento.

Com a indicação de José Augusto Amaral de Souza, em 1978, antigo colega da Faculdade de

Direito, ao governo do Estado, Barbosa Lessa foi convidado, no ano seguinte, para trabalhar

na recém-criada Secretaria de Cultura, Desporto e Turismo (SCDT), como diretor de seu

Departamento de Cultura (DEC), tornando-se, em 1980, o segundo titular da pasta. O retorno

ao Rio Grande também reaproximou Barbosa Lessa do tradicionalismo e dos antigos

companheiros de militância. Apesar, ou em função, da atuação na SCDT, o momento é

620

Não seria à toa, para Oliven, que os movimentos culturais nascidos no período vêm de áreas ainda periféricas,

como o tropicalismo nordestino. OLIVEN, Ruben George Oliven. A parte e o todo: A Diversidade cultural no

Brasil-Nação. 2a edição. Op. cit., p. 55-58.

621 Segundo este autor, o contexto do chamado “milagre econômico” teria permitido o desenvolvimento da

retórica sobre a “grandeza viável e tangível” do Brasil. FICO, Carlos. Reinventando o otimismo: Ditadura,

propaganda e imaginário social no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1997, p. 77. 622

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. O crime é um caso de marketing. São Paulo, Porto Alegre: Globo, 1975,

226 p.

197

marcado por uma nova e intensa escrita literária, ensaística, folclórica, historiográfica e

memorialista sobre temas regionais. O objetivo dos próximos capítulos é pensar as relações

entre sua atuação política e seus novos textos, entre o final dos anos 1970 e durante a década

seguinte, analisando as maneiras pelas quais nosso autor propõe a (re)construção da “região”

e, por corolário, da “nação”. Por ora, acompanharemos sua passagem pelo governo do Estado

e sua atuação no desenvolvimento de políticas públicas623

voltadas à diversificação das

representações de “Rio Grande do Sul” e à atualização do mito do gaúcho a cavalo.624

5.1 – Os “doze Rio Grandes” do secretário Lessa: o contexto federal na área de cultura e

o projeto da SCDT

Com o governo do General Ernesto Geisel (1974-1979), dava-se início ao lento

processo de abertura política e redemocratização do país. Seu sucessor na presidência,

General João Figueiredo, instituiria, em 1979, o retorno ao multipartidarismo como estratégia

de divisão da oposição, frente aos ganhos e avanços desta na agenda eleitoral do regime.625

Enquanto o Movimento Democrático Brasileiro incorporava em sua sigla o “P” de partido,

tornando-se PMDB, e outras forças políticas de esquerda se articulavam em torno de novas

legendas como o PT (Partido dos Trabalhadores) e o PDT (Partido Democrático Trabalhista)

623

Para uma melhor definição deste termo no contexto brasileiro, seguem as considerações de Cláudia Engler

Cury: “Preferimos adotar uma noção de política pública, entendida a partir da relação entre Estado, que detém a

responsabilidade pela sua implementação, e parcerias com o setor privado e sociedade, o que vem a diferenciar-

se da noção mais restrita de política estatal. Não podemos, entretanto, deixar de assinalar que, no Brasil, a „coisa

pública‟ sempre confundiu-se, historicamente, com a sua esfera estatal, tidas, na maioria das vezes, como

sinônimo. Consideradas de forma genérica, podemos dizer que políticas públicas podem ser entendidas a partir

de formulações elaboradas pelo Estado e articuladas por uma série de decisões governamentais cujos objetivos

seriam o de transformá-las em programas ou práticas institucionais com recursos próprios ou destinados para

este fim”. CURY, Cláudia Engler. Políticas Culturais no Brasil: subsídios para construções de brasilidade. Tese

(doutorado) em Educação. Faculdade de Educação. Universidade Estadual de Campinas. Campinas, SP, 2002, p.

4-5. 624

Um dos problemas a serem resolvidos nesse capítulo é, dessa maneira, o da atualizaçãodo projeto intelectual

iniciado por Barbosa Lessa, como vimos, no final dos anos 1940. Assim, avalio que o novo momento representa

um desdobramento das questões por ele iniciadas, na literatura e no folclore, cerca de vinte anos antes. Na

perspectiva biográfica aqui adotada, considera-se que as experiências de vida precedentes condicionam novos

projetos e ações. Nas próximas seções, buscarei, então, examinar o “transplante” de idéias e fórmulas

desenvolvidas em outro contexto intelectual, aquele de redefinição da memória pública regional dos anos 1950,

para o novo projeto cultural da SCDT. Isso explica a validade heurística de oposições fundadas naquele debate

para analisar as ações e promoções arquitetadas pelo secretário Barbosa Lessa. Vale ressaltar que as discussões

de nosso personagem com o campo historiográfico e crítico, agora universitários, e a relação de seus novos

textos com as disputas identitárias no estado a partir dos anos 1970 será o foco do próximo capítulo. 625

Ver ARTURI, Carlos S. Transição política e consolidação da democracia: notas a partir da experiência

brasileira. In: ALMEIDA, Maria Hermínia Tavares de; FRY, Peter; REIS, Elisa (orgs.). Política e Cultura:

visões de passado e perspectivas contemporâneas. São Paulo: Hucitec, ANPOCS, 1996, p. 142-167.

198

de Leonel Brizola, a Aliança Renovadora Nacional (ARENA), base política de sustentação do

regime militar, assumia a sigla PDS (Partido Democrático Social). No Rio Grande do Sul, o

vice-governador de Sinval Guazzelli (1975-1979), José Augusto Amaral de Souza, como dito,

foi indicado pela ditadura e nomeado pela Assembléia Legislativa, em 1979, à cabeça do

executivo estadual. Rearticulando a estrutura do governo “pedessista”, Amaral de Souza

desvinculou o setor de cultura da Secretaria de Educação e criou a SCDT626

, nomeando para o

cargo de secretário o procurador de justiça e presidente da Companhia União de Seguros

Gerais, do BANRISUL, no governo Guazzelli, Lauro Pereira Guimarães.627

Barbosa Lessa, então funcionário da CORSAN, foi solicitado para assessorar

Guimarães no Departamento de Cultura da nova secretaria. No ano anterior, nosso

personagem havia publicado sua primeira obra de literatura regionalista após o retorno ao

estado, intitulada Rodeio dos Ventos, pela Coleção RBS, da Editora Globo. Proposto como

uma “síntese fantástica da história do Rio Grande”, o livro se configura num texto compósito,

como apontado por Luís Augusto Fischer, “com matéria histórica misturada com alguma

fabulação, tudo elaborado com vistas a contar uma versão semi-religiosa da fundação do Rio

Grande do Sul, de um ângulo sempre elogioso da vida comunitária e tradicional do campo”.628

Dessa forma, Rodeio dos Ventos pode ser lido também como uma síntese das idéias, apostas

literárias e frentes de ação de Barbosa Lessa até então. A perspectiva folclórica ilumina sua

tessitura não somente pela atenção dada aos elementos “populares” e pelo emprego da noção

de “cultura” enquanto “modo de vida”, o que levou Joana Bosak de Figueiredo a classificá-lo

como uma “história cultural avant-la-lettre”629

, mas também pela atenção às especificidades

intra-regionais e aos seus “elementos étnicos característicos”.

O texto de abertura, Gênesis, é narrado segundo a tradição guarani, em que

Nhanderuvuçu cria as coisas e a “atração das coisas”, “o Anhang dos anhangs”, e o oposto de

si mesmo, Nhanderu-Mmbaecuaá, a “repulsão das coisas”. Da correlação dessas potências

surge a mãe Terra Nhandecy e, de seu ventre, as “quatro-forças-em-uma que dão equilíbrio à

626

Ver Circular n. 1, de 1979, do Departamento de Cultura da SCDT do Governo do Estado do Rio Grande do

Sul. Pasta 2.11.2.1 do Acervo Barbosa Lessa. 627

Ver o texto autobiográfico encaminhado por Lauro Pereira Guimarães ao Projeto Memória do Ministério

Público. GUIMARÃES, Lauro Pereira. Autobiografia. Porto Alegre: Projeto Memória – MPF, 2006. Disponível

em: http://www.mp.rs.gov.br/areas/memorial/anexos_noticias/lauro_pereira_guimaraes.pdf. Acessado em

10/12/2009. 628

FISCHER, Luís Augusto. Op. cit., p. 107. 629

“Rodeio dos Ventos, em 1978, quando de sua publicação, coloca o autor dentro de uma linha que ele sequer

imaginava: o de uma histórica cultural à brasileira avant la lettre; ele escreve sobre usos, costumes e uma certa

„vida privada‟, nos aspectos de uma história marginal à grande narrativa, dotada de uma vivacidade incomum,

apesar de não deter um conhecimento acadêmico e tampouco teórico sobre essa linhagem da ciência de Clio”.

FIGUEIREDO, Joana Bosak de. Op. cit., p. 143.

199

vida”: Yara, mãe das águas; Tupá, o guardião dos ventos; Caapora, defensor das matas

autóctones e dos animais; e Ceucy, “mãe das plantas plantadas e protetora da casa que nasce

junto aos roçados”.630

Esta cosmogonia é convocada a explicar a “ordem das coisas” nos

demais textos de inspiração indígena ou na fala de personagens guaranis em confronto com o

colonizador branco. Além do conto A mboi-guaçu de São Miguel, reproduzido tal qual havia

sido publicado no livro O boi das aspas de ouro, de 1958, Anaí também narra a batalha pela

sobrevivência da mulher indígena missioneira depois da expulsão dos jesuítas da região. Do

mesmo livro é retirado o texto Cabos negros que, como vimos, relata a dura vida do escravo

na lavoura rio-grandense. A cultura negra urbana também aparece na prática da umbanda na

Porto Alegre dos anos 1970: “O Gregório é pai-de-santo – uma surpresa, pois lá em nosso

município nem se ouvia falar em batuque”.631

Em O peão e o cavalo, o gaúcho Zacaria volta à

vida de andarengo após o falecimento de sua “prenda” Celita e do patrão Juca Meireles, na

Estância Azul, “agora já meio velho, meio acanhado de reumatismo, mas sempre de serventia

nas lidas campeiras”.632

Os imigrantes alemães e italianos são representados por personagens

como a família Manzano de Nova Trento, em Ilusão documentada, ou a Frida Hermann,

“meio-namorada ou não-sei-quê” do Edson Arantes633

, filho dos Lemos de Porto Alegre, de

extensa linhagem açoriana, no texto A longa jornada.

Mas a “região” também é castelhana, lagunista, paulista, de tropeiros, carreteiros,

guerreiros farroupilhas, chimangos ou maragatos, fruto do campo e da cidade. O Rio Grande

que emerge desta narrativa é, assim, um mosaico cultural forjado pela história de avanços e

recuos territoriais dos colonizadores luso e hispânico, de miscigenação com o elemento

autóctone, com o negro escravo e com imigrantes alemães e italianos, o que produz, dessa

forma, tradições muito peculiares, ainda que periclitantes. A imagem do “progresso” algoz da

“tradição”, aliás, reaparece em alguns momentos, como no ressentimento do índio Nheçu

frente ao florescimento das reduções jesuíticas634

ou no estranhamento do “cusco” Mosquito

aos hábitos das gentes (e dos cães) na cidade grande.635

630

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. Rodeio dos Ventos. Porto Alegre: Globo, RBS, 1978, p. 1. 631

Ibidem, p. 169. 632

Ibidem, p. 149. 633

Ibidem, p. 189. A brincadeira com o nome do maior ídolo do futebol brasileiro no momento, Edson Arantes

do Nascimento, vulgo Pelé, é significativa da composição cultural híbrida da família gaúcha – e brasileira –

“retratada” por Lessa. 634

“Respondeu Nheçu que não tivera ainda a oportunidade de ver Concepción e as demais cidades da outra

margem. Mas sabia que, sob a capa do progresso, destruíam-se as tradições de sua gente. Forçavam-se os

homens a realizar trabalhos das mulheres, tais como buscar água na fonte, plantar sementes, e havia mesmo

meninos a serviço dos padres para limparem sua casa e fazerem sua comida. Violavam-se normas de cozinha:

compete ao homem o assar a carne da caça, compete à mulher o cozinhar em água. Reimplantava-se o odioso

200

Rodeio dos Ventos nos oferece, dessa forma, uma espécie de resenha do ideário ou

sistema de interpretação da realidade rio-grandense que viria a pautar o desenvolvimento das

primeiras políticas públicas da nova SCDT. Já em 1979, nosso personagem começava a

mapear as manifestações culturais e artísticas “características” de cada micro-região do

estado, com o intuito de divulgar turisticamente seus atrativos e fomentar as trocas entre os

diversos pontos do Rio Grande.636

O plano, intitulado Sistema de Intercâmbio Cultural (SIC),

previa ainda a instituição de pólos de “cultura gaúcha” no eixo Rio-São Paulo e em Brasília.

O mote “folclórico”637

e telúrico do projeto da SCDT é manifesto nas declarações do

secretário Lauro Guimarães, que, em uma de suas primeiras entrevistas à mídia gaúcha,

regime dos irmãos de sangue, que terminavam levantando famílias contra famílias e destruindo a grande e una

família guarani”. Ibidem, p. 13. 635

“Mosquito agora sabia que cusco de campanha nasceu para campanha, e que o parador dos homens [cidade]

tinha muita maldade escondida debaixo de tanto enfeite”. Ibidem, p. 163. O conto A cidade também foi

reproduzido da coletânea O boi das aspas de ouro, redigido, portanto, no momento em que Barbosa Lessa

predicava a valorização da vida rural e a fixação do peão no campo como políticas de amparo social, conforme

vimos no terceiro capítulo. 636

Um documento apresentado ao Conselho Estadual de Cultural em 1979 apresentava os critérios do

mapeamento cultural realizado pelo DEC/SCDT: “Como ponto de partida foi utilizada a divisão oficial do

Estado em Micro-Regiões Homogêneas, do IBGE. Depois se fizeram os ajustes, tomando como parâmetros: a)

cronologia do povoamento luso-brasileiro (História), b) características físicas da micro-região (Geografia Física),

c) características psico-sociais (sic) dos grupos povoadores (Geografia Humana), d) resultantes sócio-

econômicas (Geografia e História Econômicas)”. MAPEAMENTO CULTURAL do Rio Grande do Sul.

Departamento de Cultura. Secretaria de Cultura, Desporto e Turismo do Estado do Rio Grande do Sul. Porto

Alegre, 1979, s./p. Pasta 2.11.2.2 (2). Compuseram a equipe de trabalho o funcionário Delmar Mancuso, do novo

Setor de Pólos e Roteiros do DEC; Barbosa Lessa, então diretor do DEC; Paixão Côrtes, diretor técnico do

Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore; Edison Otto, diretor administrativo do IGTF; Maria Tereza da Luz, do

Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul; Carlos Freire, coordenador das instituições do DEC; Antonio Hohfeldt,

do Setor de Programação do DEC, entre outros. Ver SECRETARIA DE Cultura dividiu o Estado em 12 micro

regiões. Folha da Tarde. Porto Alegre, 07/06/1979, p. 21. Pasta 2.11.2.2(2) do Acervo Barbosa Lessa. Em 1981,

nosso personagem caracterizava e avaliava a iniciativa da seguinte maneira: “Como passo primeiro para o novo

tipo de operacionalidade, a Secretaria de Cultura, Desporto e Turismo do Rio Grande do Sul enfrentou o desafio

de, pioneiramente, elaborar um levantamento dos recursos culturais do Estado, a exemplo do que já é corriqueiro

na área de características geo-físicas, climáticas, topográficas, rodoviárias, econômicas, etc. A tarefa não tem

sido simples. Duas circunstâncias tornaram mais difícil tal empreitada. Em primeiro lugar, o mosaico de

correntes imigratórias que, em sucessivas etapas, acorreram às variegadas regiões sul-riograndeses – dos areais

litorâneos até densas matas virgens das escarpas da serra até a planície do pampa – e nessas regiões encontraram

condições propícias ora ao pastoreio, ora à agricultura extensiva, ora ao minifúndio agrário, ora ao comércio

exportador, ora à indústria. Em segundo lugar, a falta de um modelo anterior, onde basear-se”. BARBOSA

LESSA, Luiz Carlos. Sistema de Intercâmbio Cultural. Porto Alegre: Departamento de Cultura. Secretaria de

Cultura, Desporto e Turismo. Governo do Estado do Rio Grande do Sul, 1979, s./p. Pasta 2.11.2.2 do Acervo

Barbosa Lessa. 637

A perspectiva culturalmente agregadora de inspiração folk do plano é evidenciada pelo papel das consultas

feitas a outros estudiosos de temas populares do Brasil durante sua elaboração. O folclorista Veríssimo Melo, do

Rio Grande do Norte, por exemplo, assim respondeu a nosso personagem: “Barbosa Lessa, Mestre dos Mestres!

Recebi o seu trabalho excelente SISTEMA DE INTERCÂMBIO CULTURAL [grifo do autor]. Li-o de uma

assentada, como se diz. É negócio de louco! Não há dúvida que é perfeitamente viável, - mas que trabalheira

você foi arranjar! Você precisará de um pequeno exército para dar conta do recado, satisfatoriamente. A idéia –

como idéia, é ótima. Muito feliz. Mas, será viável sem um grupo grande de apoio, auxiliares de pesquisas que

estejam sintonizados com o seu pensamento e a sua ação? Eu não acredito. Acredito em você, mas não acredito

no seu plano, de uma forma 100%. Entenda. A não ser que disponha de um pessoal muito dedicado, para escavar

esse Estado de ponta a ponta, trazendo as informações que você deseja”. Correspondência de Veríssimo de Melo

para Barbosa Lessa. Natal, 14/11/1979. Pasta 2.11.2.1 do Acervo Barbosa Lessa

201

advogava a “preservação dos nossos valores culturais” e o revigoramento das “manifestações

culturais genuínas do povo gaúcho e brasileiro como folclore, música, literatura, poesia e

todas as formas de expressão artística ligadas à terra, incluindo aquelas que brotam

espontâneas do povo, sem refinamentos, ou seja, a autêntica arte popular”.638

A justificativa

para o empreendimento se dava nos mesmos moldes daquela que legitimava o movimento

tradicionalista gaúcho nos textos de seus porta-vozes: a “invasão cultural que massacrara a

cultura nativa”. Os signos do progresso e da modernização capitalista, além da intensificação

das trocas culturais e econômicas numa sociedade cada vez mais “global”, serviam,

novamente, como propulsores e justificativas de ações de salvaguarda do elemento

“autóctone” e “popular” no Rio Grande do Sul, em outros termos, da “tradição”; desta vez, no

centro do aparelho estatal.

O “fantasma do desaparecimento de costumes”, que fundamentou e legitimou projetos

de construção nacional e regional desde o século XIX639

, motivava, ainda, a aliança das

percepções folcloristas e tradicionalistas de Barbosa Lessa à perspectiva monumentalista de

“nação” que vinha orientando as políticas federais no setor cultural desde a criação do Serviço

do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), pelo governo Vargas, em 1937. José

Reginaldo Santos Gonçalves identificou a recorrência de uma “retórica da perda” nos

discursos patrimonialistas brasileiros:

“Essa narrativa pressupõe uma situação primordial feita de pureza,

integridade e continuidade, situação esta seguida historicamente por

impureza, desintegração e descontinuidade. A história, de certo modo, é vista

como um processo destrutivo. A fim de que seja possível fazer frente a esse

processo estabelecem-se estratégias de apropriação e preservação do

patrimônio. Nesse sentido, a nação, ou seu patrimônio cultural, é construída

por oposição a seu próprio processo de destruição”.640

Barbosa Lessa articulou essas tradições discursivas em um complexo sistema teórico –

que também incorporou vertentes contemporâneas da Antropologia e da Comunicação – a fim

de justificar o plano da SCDT; sistema esse exposto em texto impresso pelo DEC no ano de

1979. Nele, nosso personagem enunciava os conceitos de “educação” e de “cultura” que

fundamentariam a ação da Secretaria. Educação, segundo Lessa, é, em sentido lato, “o

638

ESPORTES, CULTURA e turismo, tudo junto. Correio do Povo. Porto Alegre, 11/03/1979, p. 17. Pasta

2.11.1.1 do Acervo Barbosa Lessa. 639

O caso da construção da Bretanha francesa é exemplar neste aspecto; por isso, a adoção da expressão de

Catherine Bertho para designar os discursos de salvaguarda cultural de inspiração nacionalista. BERTHO,

Catherine. L‟invention de la Bretagne: genèse sociale d‟un stéréotype. Actes de la recherche en sciences

sociales, Année 1980, Volume 35, Numéro 1, p. 47. 640

GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A Retórica da Perda: os discursos do patrimônio cultural no Brasil.

Rio de Janeiro: Editora UFRJ, IPHAN, 1996, p. 32.

202

processo pelo qual o indivíduo adquire, pela aprendizagem, os hábitos que o capacitam a

viver de acordo com os padrões de uma determinada sociedade”.641

Em sentido estrito, “é o

processo pelo qual a sociedade institui mecanismos para transmitir, à criança e ao jovem, os

padrões de comportamento e certos conhecimentos necessários à perpetuação dessa mesma

sociedade”. Dessa forma, em um nível mais básico, a educação se referiria às formas

“naturais” e institucionalizadas da transmissão da “tradição”. A escola se originaria da

complexificação das sociedades, que exigiria a instituição de “mecanismos específicos para a

transmissão de conhecimentos, sob regras pedagógicas expressas”. A “cultura” seria, então,

nessa perspectiva, o objeto sobre o qual trabalhariam escola e tradição “espontânea”: “é o

resultado, em síntese, dos referidos processos de manutenção e transmissão de hábitos e

conhecimentos, constituindo-se num sistema de símbolos, atitudes, técnicas e idéias que

caracterizam esta ou aquela sociedade”. Em termos muitos semelhantes àqueles expostos na

tese O sentido e o valor do Tradicionalismo, de 1954, o conceito de cultura é ainda definido

como “herança cultural”, transmitida de geração à geração. A partir daí, Barbosa Lessa

estabelece uma tipologia histórica das formas culturais segundo o desenvolvimento social e

tecnológico da coletividade:

“Durante milênios, e mais precisamente até o advento da palavra escrita,

predominou um tipo de cultura natural, espontânea, ainda hoje

característica dos grupos pré-letrados que habitam regiões não atingidas pelos

modernos veículos audiovisuais de comunicação em massa. Nesse estágio, a

maior parte das pessoas ganha a vida manipulando coisas: a enxada, o

serrote, a forja, a agulha, etc. Depois, durante alguns séculos, a partir da

palavra escrita, com o surgimento e desenvolvimento das escolas, ganhou

prestígio oficial a cultura erudita, conscientemente estimulada pelos

colégios e universidades e constantemente enriquecida por laboratórios da

pedagogia. Nesse estágio, passa-se a manipular, cada vez mais, símbolos. E,

finalmente, desde o tímido aparecimento do livro e do jornal até a explosão

do rádio e da televisão, surgiu a cultura de massa, tremendamente

influenciadora pelo simples fato de um só indivíduo ou grupo emissor de

mensagem poder se comunicar simultaneamente com milhares ou milhões de

indivíduos ou grupos receptores de mensagem [grifos do autor]”.

A “cultura de massa” seria, assim, típica da “moderna sociedade de consumo”,

caracterizando-se por “uma supervalorização dos acréscimos culturais novos, ao sabor de

passageiras modas”. Nessa sociedade, no entanto, os três tipos de cultura conviveriam ainda

com um quarto, a “cultura escolarizada”, epicentro e “fiel da balança” do sistema. A ação da

641

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. Sistema de Intercâmbio Cultural. Op. cit. As citações seguintes são da

mesma fonte.

203

SCDT se daria, no Rio Grande, na busca do “correto equilíbrio” entre as quatro

manifestações, num contexto de “perda” e de instabilidade.

Se o universo da cultura extrapola, portanto, as salas de aula, o próprio “domínio dos

símbolos” se torna mais difícil, à medida que estes mudam ou se contradizem:

“De um lado, o segmento dos jovens afina pelo acréscimo de novos

elementos culturais, ainda que sua validade não tenha sido testada pelo

tempo. E, de outro lado, consciente ou inconscientemente, perdura com maior

ou menor força o respeito à Tradição, ou seja, àquela parte mais antiga da

herança social, transmitida de geração à geração, verificando-se aqui um

certo menosprezo ou temor diante dos acréscimos culturais novos não

sancionados ainda pelas experiências do passado”.

A reestruturação efetivada pelo governo Amaral de Souza nessa área também é

justificada por tal interpretação, já que a constatação do fenômeno acima descrito sustenta a

tendência de desvincular os setores voltados à Cultura dos organismos oficiais da Educação.

A escola não perderia, portanto, sua função de transmissão de conhecimentos e de

aprimoramento da sociedade, mas, com tal medida, o Estado também voltaria suas atenções

“para as manifestações extra-escolares de cultura, reconhecendo a necessidade de uma

equilibrada interdependência entre as instituições oficiais (às vezes com tendência elitizante),

as manifestações populares (quase sempre marginalizadas) e os avassaladores processos de

comunicação em massa”. O registro folk de memória oficial acaba sendo, pois, privilegiado

nas diretrizes para o desenvolvimento de políticas públicas no setor cultural, da mesma forma

que o fora no projeto de invenção das tradições: “Antes, centralizada no Colégio e na

Universidade, a cultura oficial se impunha de cima para baixo, da metrópole para os confins

do país; hoje, é válido auscultar a cultura natural, espontânea, do povo, e tentar levá-la, de

baixo para cima, desde os confins do país, para um salutar diálogo com a metrópole”. O

“popular” se tornaria, com Barbosa Lessa, prioridade de Estado, na rubrica da cultura:

“Verbas que eram antes concentradas sobre eventos institucionalizados de Arte, Literatura,

etc. (cada vez mais rateadas, aliás, à medida que a classe média amplia seus interesses

culturais), agora necessitam atender também às manifestações populares de cultura

espontânea e às complexas exigências da cultura de massa”.

Esta configuração não seria possível, como apontado acima, se não estivesse adequada

à perspectiva dos organismos federais de política cultural vigente naquele momento. Segundo

Cláudia Engler Cury, a brasilidade perseguida por diversos agentes sociais sob a égide do

Estado nos anos 1970 deveria ser elaborada através de um conjunto de instituições

representativas de variados segmentos culturais, o que abarcaria os estratos populares,

204

“mesmo que debaixo de uma forte repressão inclusive às formas de expressão de

cidadania”.642

De outro lado, o período é marcado por certo “caráter tecnicista” para a área de

cultura: “quanto mais despolitizados fossem os órgãos ligados à cultura e mais tecnicamente

confiáveis melhor para a brasilidade que se pretendia daquele momento”. O desgaste político

do regime militar em sua fase final, ao sofrer derrotas eleitorais para a oposição, acrescido

pela crise econômica decorrente da excessiva concentração da renda nacional, e pelos ataques

resultantes da articulação da classe artística levariam à ampliação das discussões a respeito

das políticas culturais de Estado. Para Cury, as reestruturações ocorridas na área da cultura,

formuladas já nas gestões do Ministério de Educação e Cultura (MEC) de Jarbas Passarinho

(governo Médici, 1969/1973) e de Ney Braga (governo Geisel, 1974/1978), vêm ao encontro

da necessidade de afirmação simbólica da ditadura para assegurar sua permanência.643

No

mesmo sentido, Renato Ortiz aponta a possibilidade de que as ações estatais no setor tenham

sido, a partir de 1975, calculadas visando a “um reequilíbrio das forças políticas através do

mundo da cultura”.644

De acordo com Joaquim Arruda Falcão, a busca por políticas culturais

socialmente mais abrangentes e operacionalmente mais eficazes não seria possível sem que

ocorresse uma “liberalização do controle político e do compromisso ideológico” exercido pelo

governo sobre a burocracia civil.645

Dessa forma, o regime redirecionou sua trajetória de

iniciativas oficiais em relação aos meios artísticos, estabelecendo novas medidas e diretrizes

de ação e erigindo novos organismos de gestão cultural.646

642

CURY, Cláudia Engler. Op. cit., p. 3. 643

Ibidem, p. 49. 644

O autor salienta, entretanto, que o Estado brasileiro sob o regime militar manifestou interesse pela questão

cultural desde o golpe de 1964. ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. 9ª reimpressão da 5ª

edição. São Paulo: Brasiliense, 2006, p. 85. Segundo Ortiz, 1975 desponta como um ano marcante para a política

cultural devido à rearticulação ideológica do II Plano de Desenvolvimento Nacional, o qual, alimentado pela

euforia econômica, permitiu, através de políticas de distribuição indireta de renda, o incentivo financeiro de

novos empreendimentos culturais. Ibidem, p. 86. 645

“Em outras palavras, quer por pressão do voto, dos movimentos sociais e da reorganização da sociedade civil,

quer pela necessidade de o regime se modernizar para se manter (e seguramente por ambas), o fato é que, a nível

do Estado, criaram-se espaços para políticas públicas socialmente mais abrangentes, ideologicamente mais

autônomas e operacionalmente mais eficazes”. FALCÃO, Joaquim Arruda. Política cultural e democracia: a

preservação do patrimônio histórico e artístico nacional. In: MICELI, Sergio (org.). Estado e cultura no Brasil.

São Paulo: Difel, 1984, p. 31 646

“As iniciativas tomadas durante a gestão Jarbas Passarinho à frente do MEC (governo Médici 1969/1973)

marcaram um „novo‟ estilo de prática cultural. Ampliaram-se as linhas de atividade do Instituto Nacional do

Livro (INL, criado pelo Decreto-lei nº 93 de 21/12/37), é lançado o programa de Ação Cultural (PAC, em agosto

de 1973) cuja operacionalização dos projetos se dava através de núcleos e grupos-tarefas, com recursos vindos

do Fundo Nacional para o desenvolvimento da Educação, e da possibilidade de contratação de pessoal fora da

estrutura do quadro de carreira do MEC. Além disso, foram criados vários órgãos como, por exemplo, a

Embrafilme, em 1969, vinculada ao MEC; a Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional foi

transformada em Instituto (IPHAN)/MEC; foram criados o Departamento de Assuntos Culturais (DAC)/MEC,

em 1972, o Conselho Nacional de Direito Autoral (CNDA, em 1973) e o Programa de Reconstrução de Cidades

Históricas (PCH)/Secretaria de Planejamento da Presidência da República (Seplan), em 1973. A gestão seguinte,

tendo como ministros no MEC, Ney Braga/Euro Brandão (governo Geisel 1974/1978), prossegue com a criação

205

Chama a atenção, nesse sentido, a criação, naquele ano, do Centro Nacional de

Referência Cultural (CNRC), ligado ao Ministério da Indústria e Comércio, através de

convênio com o governo do Distrito Federal. Segundo Cláudia Cury, a autonomia em relação

ao MEC gozada pelo órgão permitiu a reunião de intelectuais e técnicos de diversas áreas nas

dependências da UnB, onde buscaram traçar novas diretrizes para a área da cultura, seguidas

em maior ou menor grau por outras instituições governamentais do regime militar em nível

federal e dos executivos estaduais, em especial “a organização de programas que delineassem

a cultura brasileira, tais como mapeamento do artesanato brasileiro, história da ciência e

tecnologia no Brasil, os levantamentos de documentação sobre o Brasil [grifos da autora] e

que tornassem visíveis parte da cultura excluída até então, as chamadas manifestações

populares”.647

O CNRC é ainda uma das primeiras iniciativas de separação entre os setores de

cultura e educação, tendência constatada e assumida pelo DEC de Barbosa Lessa, como vimos

acima. A conseqüência dessa postura de incorporação do “popular”, ou seja, a reserva de

verba pública para o fomento de manifestações “folclóricas”, também defendida por nosso

personagem em 1979, vinha sendo experimentada pelo CNRC, comandado por Aloísio

Magalhães648

, expressa na preocupação “de corrigir a visão elitista do SPHAN, marcada pela

preservação de pedra e cal [grifo da autora], e de aproximar-se de uma cultura popular e

autenticamente brasileira”.649

Com a implementação do Plano Nacional de Cultura (PNC/MEC), em 1975, o

governo Geisel designava o desenvolvimento da cultura como uma de suas metas, procurando

abarcar, conforme mencionado, os estratos populares até então excluídos da produção cultural

de outros órgãos e campanhas ligadas ao setor cultural, como a Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro

(15/09/1975), posteriormente incorporada à Funarte, criação do Conselho Nacional de Cinema (Concine,

16/03/1976), reformulação da Empresa Brasileira de Filmes S.A (Embrafilme, criada em 12/09/1969 e ampliada

em 09/12/1975), além da criação de um dos principais órgãos em funcionamento até hoje, a Fundação Nacional

de Arte (Funarte), criada pela Lei nº. 6.312, de 16/12/1975, a continuidade das frentes de operação do Serviço

Nacional do Teatro (SNT), criado em 21/12/1937, e a criação da Secretaria de Assuntos Culturais (SEAC/MEC,

em 1978). Nossa intenção em indicar um número grande de órgãos públicos que vão ser constituídos ou

ampliados para o setor cultural, naquele período, foi indicar a preocupação do governo em redimensionar o

investimento e criar uma malha que, em nosso entendimento, recuperasse a proximidade com a classe artística

nacional e os elos com a sociedade civil que dava sinais cada vez mais nítidos de resistência ao regime militar e

que marcava a vontade política de recuperar seus direitos de cidadania”. CURY, Cláudia Engler. Op. cit., p. 49-

51. 647

Ibidem, p. 53. 648

Aloísio Magalhães assumiria o comando do SPHAN em 1979. José Reginaldo Santos Gonçalves comparou

os discursos de Magalhães com os de Rodrigo de Melo Franco Andrade, diretor do organismo em sua primeira

fase, e identificou esta mudança também em suas diretrizes. Segundo o autor, ainda que Magalhães tenha

assumido a “retórica da perda” como elemento legitimador/criador de seu projeto para o patrimônio nacional,

este é marcado por noções de “desenvolvimento” e “diversidade cultural”: “Diferentemente de Rodrigo, seu

propósito não é „civilizar‟ o Brasil preservando uma „tradição‟, mas revelar a diversidade da cultura brasileira e

assegurar que ela seja levada em conta no processo de desenvolvimento”. GONÇALVES, José Reginaldo

Santos. Op. cit., p. 53. 649

CURY, Cláudia Engler. Op. cit., p. 53.

206

dominante. Além disso, como assinala Cury, a classe artística foi convocada, pela primeira

vez, a indicar representantes nos órgãos oficiais de decisão política, recobrando seu “direito

de sugerir diretrizes para a política cultural que se pretend[ia] construir”.650

No Rio Grande do

Sul, a própria escolha de Barbosa Lessa – nome reconhecido no cenário local como

compositor, escritor e, ainda, como militante tradicionalista – para a direção do DEC da

SCDT pode ser encarada como uma expressão da recomendação federal. Sem militância

partidária ou vínculos com o regime, que não o de servidor público da CORSAN, devida,

também, à competência técnica demonstrada na área de publicidade, sua indicação, no ano

seguinte, para suceder Lauro Guimarães, sofreria rejeição da base pedessista na Assembléia

Legislativa do Rio Grande do Sul.651

Assim como na elaboração da “brasilidade”, a

capacidade técnica, aliás, se tornava, nesse momento, fator importante para a configuração de

sua “gauchidade”, ainda que a indicação de seu nome fosse garantida pela “mão forte” do

governador.652

650

Ibidem, p. 55. 651

Enquanto que, em âmbito nacional, as pressões sociais e os avanços eleitorais da oposição levaram o regime a

se reforçar e a se renovar em termos simbólicos, com uma maior abertura desse campo a agentes não vinculados

diretamente ao governo, o cenário semelhante no Rio Grande do Sul, também avaliado pela classe política

tradicional com cautela e preocupação, parece ter produzido respostas diferentes para o setor cultural: buscando

assegurar sua hegemonia política, a base pedessista na Assembléia Legislativa reclamava a ocupação dos

principais cargos no Executivo por membros do Partido: “Foi iniciada ontem uma intensa mobilização entre

deputados federais e estaduais, inclusive junto à direção do PDS, no sentido de que seja indicado um político

para a Secretaria do Turismo, vaga a partir da próxima semana com a posse de Lauro Guimarães na diretoria de

Planejamento da Embratur. O movimento, segundo os que dele participam, coincide com a posição do

governador que também entende necessário o prestigiamento do partido, „onde temos nomes com altos

predicados e pleno domínio na área do turismo, da cultura e do esporte‟, revelam os deputados”. PDS SE articula

para que o novo Secretário do Turismo seja um político atuante. Zero Hora. Porto Alegre, 29/11/1980, p. 8.

Pasta 2.11.1.1 do Acervo Barbosa Lessa. A confirmação do nome de Lessa por Amaral de Souza, contrariando o

esperado pelo “movimento”, induziu seus principais líderes a declarações públicas de descontentamento: “O

deputado Jesus Guimarães (PDS) garante que ficou „um tanto decepcionado‟ com a indicação de Barbosa Lessa

para o cargo de Secretário da Cultura, Desporto e Turismo em substituição a Lauro Guimarães, que irá para um

cargo de direção na Embratur. O deputado lembra inclusive a posição existente entre a maioria do bloco,

pedessista, que acreditava, fosse indicado para o cargo, „um político‟. (...) Ele conclui assinalando que pretende

deixar bem claro que „admiro muito o nome do novo Secretário pois estas observações naturalmente não são

feitas em desmerecimento à sua competência como técnico‟ embora admita que „não posso deixar de comentar,

como político, que fiquei frustrado por não ver um político de atuação permanente, como tantos que possuímos

dentro do PDS, ser indicado para aquela Secretaria‟”. JESUS SE decepcionou com a indicação de Barbosa

Lessa. Zero Hora. Porto Alegre, 04/12/1980, p. 17. Pasta 2.11.1.1 do Acervo Barbosa Lessa. 652

Ao contrário do que a cúpula do Executivo poderia esperar, a nomeação de Barbosa Lessa também não foi

consenso entre os agentes ligados ao setor cultural no Rio Grande do Sul, como demonstra a nota de insatisfação

pela rejeição de um dos postulantes ao cargo, que representaria a região de Caxias do Sul: “Diversos eram os

candidatos à Secretaria de Cultura, Turismo e Esporte do Estado, entre os quais o caxiense João Flávio Ioppi que

já havia ocupado aquela pasta, quando Mário Ramos foi para a EMBRATUR. Mas o nomeado pelo governador

Amaral de Souza foi o folclorista e tradicionalista Barbosa Lessa, dos próprios quadros da Secretaria. Como

havia disputa entre vários candidatos do interior, foi nomeado alguém da capital do Estado”. NOTA. Jornal de

Caxias. Caxias do Sul, 08/12/1980, p. 31. Pasta 2.11.1.1 do Acervo Barbosa Lessa. A situação gerou protesto de

simpatizantes de Barbosa Lessa: “Quando se esperaria o consenso da classe ligada à cultura em geral em torno

de determinado nome, aí vem problemas de toda a ordem e a desunião fica patente. É o caso do ex-ministro

Portella e do recém nomeado secretário da Cultura, Desporto e Turismo, Barbosa Lessa. Nem bem seu nome foi

anunciado e as elites artísticas já divergiam da escolha alegando isso ou aquilo. Se fosse um político diriam o

207

Na elaboração dessa gauchidade, então, a perspectiva folk de memória regional

assumida por nosso personagem em seus textos e na produção dos ritos gauchescos acabou

por dialogar com o contexto brasileiro de rearticulação do setor cultural. Marcado

ideologicamente pela continuidade em relação ao pensamento sobre a cultura nacional

estabelecido durante o governo Vargas, como apontado por Alexandre Barbalho, o PNC

retrabalhava uma “mitologia verde-amarela”, assumindo o lema “Proteger e Integrar a

Nação”.653

Dessa forma, segundo esse autor, a “cultura popular” era apropriada através de

uma representação unificada da “nação”, em que não se descartava a diversidade, “porém, no

conceito, o todo se torna a diversidade do que é, em si, uno e idêntico”:

“O lema da diversidade na unidade referenda a ação governamental na

cultura, dando-lhe aspecto de neutralidade, de guardião da identidade

brasileira definida historicamente. A miscigenação revela uma realidade sem

contradições, já que o resultado do encontro entre as culturas passa por cima

das possíveis divergências, e acaba por qualificar a cultura brasileira como

democrática, harmônica, espontânea, sincrética e plural”. 654

Tal configuração ideológica pode ser creditada, de acordo com Renato Ortiz, à

cooptação de intelectuais tradicionais, membros dos Institutos Históricos e das Academias de

Letras locais, pelo regime militar, através do Conselho Federal de Cultura (CFC), de caráter

normativo, na década precedente. A idéia de harmonia social presente na obra de Gilberto

Freyre teria orientado os discursos dos eruditos articulados no Conselho, o que possibilitara,

inclusive, a reivindicação de um caráter “democrático” à cultura brasileira “popular” em

função de seu suposto sincretismo da heterogeneidade:

“A ideologia do sincretismo exprime um universo isento de contradições,

uma vez que a síntese do contato cultural transcende as divergências reais

que porventura possam existir. Calcada na antropologia culturalista, a

imagem de um Brasil cadinho das raças exprime o contato entre os povos

como uma aculturação harmônica dos universos simbólicos, sem que se leve

em consideração as situações concretas que orientam os próprios contatos

culturais”.655

Também segundo Ortiz, a rápida gestão de Eduardo Portella (1979-1980) no MEC não

representou uma ruptura de fato com esse cenário. O novo Ministro perseguia parâmetros

que? De resto, Barbosa Lessa dispensa apresentações e não é um homem para ser pixado (sic) sem mais aquela,

antes mesmo de ocupar o lugar”. CLASSE DESUNIDA. Jornal do Comércio. Porto Alegre, 08/12/1980, p. 4.

Pasta 2.11.1.1 do Acervo Barbosa Lessa. 653

BARBALHO, Alexandre. Políticas culturais no Brasil: identidade e diversidade sem diferença. In: ANAIS do

II ENECULT – Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura. Salvador: Faculdade de Comunicação –

Universidade Federal da Bahia (UFBa), 2007, p. 5. 654

Ibidem, p. 6. 655

ORTIZ, Renato. Op. cit., p. 95.

208

próximos daqueles predicados tanto pelo CNRC656

, quanto pelo Plano Nacional de Cultura de

1975, cuja perspectiva essencialista de identidade se revelaria, conforme Barbalho, nos

valores que aspirava preservar: “originalidade, genuinidade, peculiaridade, enraizamento,

tradição, fixidez, personalidade, vocação, perenidade, consciência nacional”.657

Essa

concepção de política cultural era divulgada em encontros nacionais de cultura com a

participação de representantes de todos os estados da Federação, como o Seminário sobre

Política e Planejamento da Educação e Cultura, realizado em julho de 1979, na capital do

país, e o evento promovido pela Secretaria de Assuntos Culturais do MEC, no mês seguinte,

na cidade do Rio de Janeiro. Ambos contaram com a presença do secretário gaúcho Lauro

Guimarães e o segundo, também com a participação de Barbosa Lessa, além da de

representantes do Conselho Estadual de Cultura do Rio Grande do Sul e da Secretaria

Municipal de Educação e Cultura de Porto Alegre.658

O Sistema de Intercâmbio Cultural proposto por nosso personagem começaria a ser

posto em prática no ano seguinte, com a criação dos “pólos culturais” que passaram a dividir a

administração do Estado na área, num mosaico semelhante àquele proposto imageticamente

para a nação.659

A relação da região com a brasilidade invocada nos trabalhos precedentes de

Lessa, como vimos nos capítulos anteriores, é análoga à concepção do PNC, já que, conforme

aquela, a existência das peculiaridades culturais dos gaúchos é característica de uma nação

continental, como uma das peças do mesmo maquinário. Mas a parte também passa a ser

representada como a articulação de múltiplas realidades locais, como se a diversidade também

atravessasse os pequenos “pedaços da pátria”. Assim, a adequação do SIC ao debates

nacionais sobre políticas culturais não pode ser compreendida como a aplicação mecânica, em

656

Como a implementação de programas de recuperação arquitetônica de cidades consideradas históricas, a

criação de organismos de apoio ao patrimônio cultural material e imaterial – entre eles, a Fundação Nacional

Pró-Memória (Pró-Memória/MEC) - e a transformação do Instituto Joaquim Nabuco em Fundação, em 1979.

CURY, Cláudia Engler. Op. cit., p. 55. 657

BARBALHO, Alexandre. Op. cit., p. 7. 658

Conforme o documento: CONSIDERAÇÕES ADICIONAIS para o Plano de Atividades do DEC para 1980.

Secretaria da Cultura, Desporto e Turismo. Governo do Estado do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 07/05/1980.

Pasta 2.11.2.1 do Acervo Barbosa Lessa. 659

O SIC previa a instalação de 12 pólos principais, representando as doze regiões culturais “identificadas” pelo

levantamento da SCDT no estado. Seriam implantados nas cidades de Cachoeira do Sul, Caxias do Sul, Erechim,

Livramento, Osório, Passo Fundo, Pelotas, Porto Alegre, Rio Grande, Santa Cruz do Sul, Santo Ângelo e

Vacaria. Junto a eles deveriam coexistir pólos de apoio em Santa Rosa e São Borja (Região das Missões), Rio

Pardo e Santa Maria (na Região Central), Camaquã e Jaguarão (na Zona Sul), Alegrete, Bagé e Uruguaiana (na

Região da Campanha), Nova Petrópolis, Novo Hamburgo e São Leopoldo (na Região Colonial dos Vales),

Guaporé (na Região Colonial da Serra), Cruz Alta, Ijuí e Santiago (no Planalto), Iraí, Marcelino Ramos e Três

Passos (no Alto Uruguai) e Viamão (na Região Metropolitana). PÓLOS CULTURAIS do Rio Grande do Sul.

Secretaria de Cultura, Desporto e Turismo do Estado do Rio Grande do Sul. Manuscrito. Pasta 2.11.2.2 do

Acervo Barbosa Lessa. Para uma visualização da distribuição dos municípios rio-grandenses de então no SIC,

ver Anexo II.

209

micro escala, da perspectiva que geria o governo federal na área. Ao contrário, ela só pode ser

analisada em termos de “apropriação”, nos mesmos moldes explicitados no Capítulo III para a

articulação das teorias sociológicas da Escola de Chicago com os projetos de renovação do

mito do gaúcho pampiano dos anos 1950. No Rio Grande do Sul, tal adequação se efetiva em

mão-dupla: assim como a gestão cultural da SCDT precisava corresponder às exigências do

regime militar (em processo de reestruturação nessa e em outras áreas), o PNC deveria se

adaptar, para sua mínima exeqüibilidade, à realidade local, num estado onde as disputas

identitárias possuíam longa vida e mobilizavam diversos agentes sociais.

Dessa forma, a concepção de “diversidade da unidade” que norteava a política cultural

federal não pôde ser transposta de maneira estrita aos projetos da SCDT. Como temos visto,

Barbosa Lessa se posicionava nas disputas simbólicas do estado de forma aberta e agregadora,

incorporando segmentos culturais marginalizados na memória local e, dessa forma,

evidenciando conflitos tanto entre os grupos sociais “representados” quanto entre

“representantes” da identidade regional que falavam a partir de lugares de enunciação oficiais,

como no “caso Sepé”. Ainda que cantasse o mito do gaúcho a cavalo, escolhendo-o como

figura central da dinâmica identitária do estado, a obra de nosso personagem, até aquele

momento, não deixava dúvidas quanto à “pluralidade” da história e da população do Rio

Grande do Sul. Nosso pedaço de Brasil era diverso não somente porque manifestava a

variedade do todo, mas porque era visto como fendido por contribuições culturais distintas e,

por vezes, contraditórias. De outra forma, como explicar que a proposta de divisão

administrativa do aparato estatal no setor de cultura previsse o intercâmbio como objetivo

principal? A necessidade de fomentar a troca traduzia a percepção de um desenvolvimento da

cultura local tão segmentado espacialmente quanto o fora socialmente. Ao contrário da

representação nacional de brasilidade harmônica porque sincrética, a perspectiva de Lessa

sobre a região evidenciava suas contradições internas, diferentemente, inclusive, do

desenvolvimento do projeto tradicionalista, que vinha apagando essas diferenças, desde os

anos 1950, como apontado por Letícia Nedel, em função do renascimento do “monarca das

coxilhas”. Mas tal constatação, feita pelo mesmo Barbosa Lessa que predicava a manipulação

simbólica como política de Estado, frente à dificuldade de domínio espontâneo pela

população de “atitudes, técnicas e idéias” no complexo momento então vivido, como

apontamos acima, exigiria medidas corretivas como o SIC, que propunha, mais do que o

intercâmbio, um grande plano de reconciliação regional.

210

Em 1981, em plena execução do SIC, que previa a implantação de mais 14 Pólos

Culturais660

, a Samrig (S.A Moinhos Rio Grandenses) publicou texto de Barbosa Lessa

intitulado Os doze Rio Grandes, como parte de seu relatório bienal de atividades. Com fotos

de Leonid Streliev, o livreto era apresentado como fruto dos esforços de definição do “Mapa

Cultural do Estado”, empreendido pela SCDT, pelo qual se descobrira que o Rio Grande se

constituía em um “pitoresco mosaico” de doze regiões: “Cada uma delas com características

muito particularizadas, resultantes de fatores tais como a cronologia do povoamento europeu,

as condições fisiográficas, o tipo de etnia e produção, etc”.661

Cada uma correspondendo,

então, às doze partes do Estado em que se planejara a instalação do SIC. Na publicação, nosso

personagem expunha resumidamente os aspectos do mapa cultural reproduzido abaixo.

660

O projeto previa para aquele ano a implantação dos pólos de Bagé, Santana do Livramento, Alegrete,

Uruguaiana, Palmeira das Missões, Santiago, Passo Fundo, Santo Ângelo, Soledade, Cruz Alta, Ijuí, São Borja,

Santa Rosa, Três Passos e Novo Hamburgo. OBSERVAÇÕES SOBRE os pré-planos apresentados com vistas ao

programa 1981. Secretaria de Cultura, Desporto e Turismo. Governo do Estado do Rio Grande do Sul. Porto

Alegre, 14/01/1981, p. 27. Pasta 2.11.2.1 do Acervo Barbosa Lessa. O mesmo documento mostrava como vinha

sendo construída a estrutura administrativa dos pólos culturais: “Estruturar efetivamente os pólos já implantados,

com transferência de funcionários hoje em Porto Alegre e a inauguração de uma „sedezinha‟ com escrivaninha e

telefone. Dar uma verba quase simbólica, de por exemplo Cr$ 30.000,00, para que cada pólo comece a dominar,

na prática, a linguagem burocrático-financeira do Estado (SCDT)”. Ibidem, p. 26. Em 1980, foram implantados

os pólos de Cahoeira do Sul, Camaquã, Pelotas, Jaguarão e Santa Maria. PLANO DE atividades do DEC para

1980. Secretaria de Cultura, Desporto e Turismo. Governo do Estado do Rio Grande do Sul. Porto Alegre,

07/5/1980. Pasta 2.11.2.2, p. 26. Para que o leitor tenha uma noção aproximada do que o valor citado

representaria atualmente, converti o montante para reais, tendo como base para a atualização monetária a

variação anual da inflação acumulada de janeiro de 1981 a dezembro de 2008 segundo o Índice Nacional de

Preços ao Consumidor Amplo (IPCA/IBGE), medidor oficial da inflação no país. Dessa forma, chegaríamos ao

valor de R$ 2.078,00. Para uma avaliação do poder de compra da quantia, vale mencionar que, em janeiro de

1981, o salário mínimo estava fixado em Cr$ 5.788,80, o que equivaleria, segundo os mesmos critérios, a R$

401,12. Fonte: Pró-Reitoria de Administração e Finanças da Universidade Estadual de Londrina. Tabela

disponível em: www.uel.br/proaf/informacoes/indices/salminimo.htm. Acessado em 05/01/2010. 661

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. Os doze Rio Grandes. Porto Alegre: Samrig, 1981, p 1.

211

Figura V – Regiões Culturais do Rio Grande do Sul662

A perspectiva “neoromântica” adotada na elaboração de suas obras literárias foi

recuperada para celebrar imagens ufanistas do nosso mosaico regional. O Litoral Norte (1) é

apresentado como o Rio Grande mais antigo, porta de entrada do elemento português, hoje

transfigurado em mundo de turistas, nos ensolarados meses de verão: “É o Rio Grande do

princípio, O Rio Grande da solidão”. As Missões (2) compreendem o segundo momento da

história regional: “Aqui os padres jesuítas realizaram o milagre de, sendo tão poucos,

reduzirem à Fé mais de cem mil índios, com os quais levantaram Sete Povos – sete formosas

cidades – e um incontável número de estâncias”. Os Campos de Cima da Serra (3)

representam o Rio Grande do frio e do “gaúcho serrano”: “Do café „camargo‟, ao amanhecer,

com o leite diretamente da fábrica para o caneco. Das desoladas lonjuras. Mas das noites que

se alegram com o sapeco do pinhão e com o serrano gaiteiro sapecando um vanerão”. O

Litoral Sul (4) é delineado como um fantástico cenário natural cortado pelo Porto

Continental, que escoa a produção agrícola e industrial do estado. Nesse ambiente, a cultura

local se desdobra em rituais específicos: “E que fartura de peixe! Para agradecer tal sorte, o

662

Reproduzido do livro Os doze Rio Grandes, p. 2.

212

povo vai até a praia e dá presentes a Iemanjá”. O Centro (5) é marcado pela história militar e

econômica da região, acompanhando os declives do desenvolvimento social rio-grandense:

“As guerrilhas de fronteira, „Tranqueira Invicta‟ em Rio Pardo. As minas de São Jerônimo, os

arrozais de Cachoeira, a velha Maria-fumaça, e as inscrições da Pedra Grande em São Pedro.

E onde o arvoredo se faz fóssil, para ser, sempre, Rio Grande, com vigor de Eternidade”. As

charqueadas criaram um Rio Grande diferente na Zona-Sul (6): “Moço estudando em Paris,

modos de aristocracia, requintes de burguesia que até davam o que falar. Moça desescondida

tocando piano, em sarau, e alimentando paixões com pastéis de Santa Clara. Este é o Rio

Grande, bonito, dos pessegueiros em flor”. A Campanha (7) é a matriz da cultura gauchesca,

“pátria da amplidão, da liberdade, sem o mínimo obstáculo ao andar dos cavaleiros”. O

mundo da distância é também o “mundo da tradição”: “De longe em longe, as casas de uma

estância. „As casas‟ são sempre duas: a casa da sinhá-dona, com suas filhas e empregadas, e,

separado, o galpão”. A Região Colonial dos Vales (8) é desenhada como um pedaço dos

campos germânicos no Brasil: “Os vales todos-plantados. As casinhas coloridas. A pequena

agricultura, o curtume e o artesanato. A construção de enxaimel, os quadrinhos na parede, os

bordados de cozinha. As velhas festas cristãs. As Sociedades de Canto, as Sociedades de Tiro.

E as bandinhas gostosas tocando polca no Kerb. „Prosit!‟”. A Europa se mescla com a pampa

na configuração ítalo-gaúcha da Região Colonial da Serra (9): “Pão, queijo e vinho.

Passarinhada e polenta, depois galleto e radicci. Inventou o multi-churrasco. La Sagra [grifo

do autor] é a festa da igreja. Pra jogar bocha e a môra, copos de vinho rolando e todo mundo a

cantar. Quem foi, antes, carreteiro, hoje é caminhoneiro e leva vinho, cantando, por tudo

quando é Brasil”. A ocupação recente do Planalto (10) se deveu à fraqueza do campo de

“barba-de-bode” para a pecuária. Sua descoberta para o plantio de trigo e soja o transformara

no décimo Rio Grande: “um dos pedaços mais ricos de todo o nosso país”. “Sertão de

madeireiros” e “epopéia dos balseiros”, a última região a ser povoada, o Alto-Uruguai (11),

alia modernidade e tradição no planejamento da reserva indígena e da urbanização: “É o Rio

Grande onde se encontram o índio de pé no chão e a „aldeia global‟ da antena de televisão”. A

Região Metropolitana (12) é um microcosmo espacial e a fusão da complexidade rio-

grandense: “É a caixa de ressonância de todo o Rio Grande do Sul. Aqui vibra o mutirão, em

que o tropeiro dá a mão ao negro e ao marisqueiro; ao açoriano, ao Dragão; ao sacerdote e ao

alemão; ao italiano, ao campeiro; ao serrano, ao madeireiro; ao polaco e ao missioneiro.

Mescla dos 11 Rio Grandes, este é o 12º. Porto aberto para o mundo!”. A capital é, então,

vista como o espaço convergente das culturas locais, no plural: o templo da reconciliação.

Interessante notar que, na figura acima, em que o estado é representado como uma grande

213

estância, a “casa-sede” se encontra justamente na região metropolitana de Porto Alegre, o que

não deixa dúvidas sobre seu protagonismo na vida local. Todavia, seu cosmopolitismo de

cidade grande não supera a marca das tradições regionais:

“Porto aberto para o mundo, Porto Alegre é um cadinho do espírito universal.

Ela não vê sacrifícios para que sua mocidade chegue até a Universidade. E

sua rua mais bonita comprova, nos luminosos, que é super-cosmopolita.

Mas, por mais que o mundo corra, a capital do Rio Grande vai devagar com o

andor. Há alguém que está vigiando... Se ela tentar disparar, é certo que vai

parar no laço do Laçador!”.663

É a concepção de cultura num sentido lato, como modo de vida, que define, assim, as

características intraregionais do estado. Cultura é o que fazem europeus, índios e negros no

cotidiano. É a agricultura, a pecuária e a indústria. É a casa de enxaimel e o jogo de môra. É o

pé descalço de um índio e a antena de televisão. É o pastel de Santa Clara e a oferenda a

Iemanjá. É a casa grande e o galpão da estância. Dessa forma, a confusão do conceito geral de

cultura com a “cultura erudita” deveria ser evitada na formulação das políticas conciliatórias

da SCDT. O popular deveria ser incorporado à dinâmica intelectual do Rio Grande do Sul,

sem abrir mão do correto equilíbrio com a cultura de elite, a cultura de massas e o ensino

escolar. O fomento ao “folclórico” era legitimado também pela resolução federal e é dessa

forma que a aproximação das obras e da atuação de Lessa com as diretrizes do regime militar

para a área, no momento, deve ser lida. Não é por acaso que justamente a rápida passagem do

professor universitário, escritor, crítico literário e editor Eduardo Portella, que tentou construir

um programa “alternativo”, “voltado para o atendimento das demandas das populações de

baixa renda”664

, pelo governo Figueiredo, encontrou maior entrada no projeto formulado pela

SCDT de Lauro Guimarães e Barbosa Lessa. Assim, o plano de atividades para 1980 do DEC,

que objetivava o incremento das atividades culturais e do “patrimônio histórico, arqueológico,

antropológico, cultural, artístico e científico” no Estado, também equaciona o registro folk de

663

Ibidem, p. 26. A estátua do Laçador foi erigida pelo artista plástico Antônio Caringi, em 1954, para a

exposição do IV Centenário da Fundação de São Paulo. Paixão Côrtes pousou então para Caringi, trajando a

pilcha tradicionalista. Em 1958, a escultura foi adquirida pela Prefeitura de Porto Alegre e transplantada para o

Largo do Bombeiro, na entrada da cidade, onde permaneceu até 2007. Neste ano, por conta da construção do

viaduto Leonel Brizola, foi transferida para o Sítio do Laçador, pequeno parque situado nas proximidades do

Aeroporto Internacional Salgado Filho. Em 2008, a Assembléia Legislativa aprovou projeto de lei do Deputado

Giovani Cherini (PDT) que declara a estátua como “patrimônio histórico e cultural e escultura símbolo do Rio

Grande do Sul”. Ver. ESTÁTUA DO Laçador é escultura símbolo do RS. Zero Hora. Porto Alegre, 21/05/2008.

Disponível na internet:

http://zerohora.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2/jsp?uf=1&local=1&source=a1879473.xml&template=3898.

clwt&edition=9907&section=67. Acessado em: 10/01/2010. 664

“Essa tentativa mal-sucedida apressou o esvaziamento político do ministro Portella, sem deixar, no entanto,

de suscitar um acirrado debate interno e externo ao MEC, em torno dos conceitos e diretrizes do que então se

considerava a „política cultural oficial‟”. MICELI, Sergio. O processo de “construção institucional” na área

cultural federal (anos 70). In: MICELI, Sergio (org.). Op. cit., p. 59.

214

memória regional com os parâmetros orientadores da gestão Portella no MEC. Os pontos

comuns são afirmados e hiperdimensionados no texto através de citações de trechos do III

Plano Setorial de Cultura, Educação e Desporto do Ministério para o período de 1980-1985,

como o que segue:

“Não se entende aqui Cultura como aquela típica das elites intelectuais e

econômicas, muito imitativa dos padrões externos e fortemente excludente

das expressões populares. Pelo contrário, acentua-se a prioridade daquelas

dimensões culturais ligadas à identificação nacional. É importante que se

promovam as manifestações culturais em todas as suas formas, numa

perspectiva de desenvolvimento integrado em que se completam as

manifestações populares e eruditas da cultura brasileira” [grifos do autor].665

O mesmo documento traz excerto de notícia do Correio do Povo, de maio de 1980,

intitulada “Portella contra o elitismo e uniformidade da cultura”:

“Os 50 projetos da área cultural que o Ministério da Educação pretende

executar até o final de 1985 têm a finalidade de „preservar e dinamizar os

valores culturais, deixando de lado qualquer elitismo, além de contribuírem

para a desconcentração da renda cultural, até agora localizada, basicamente,

no eixo Centro-Sul‟. „Serão observados, principalmente, os valores e as

carências regionais, para afastar o colonialismo cultural interno que tende a

impor os valores cosmopolitas dos centros urbanos‟”.

A incorporação do “popular” às atenções dos órgãos federais de gestão cultural

dilataria ainda mais seu campo de atuação. Segundo Joaquim Arruda Falcão, o duplo

movimento de reconhecimento da existência de um patrimônio a ser preservado e da

exigência de independência em relação à visão patrimonial até então dominante conduziu as

novas políticas do IPHAN/CNRC no sentido da crítica às três “reduções-exclusivismos” do

patrimônio histórico e artístico nacional concretizadas nos 42 anos iniciais do Instituto: 1) ao

patrimônio da etnia branca; 2) ao patrimônio cultural da elite vitoriosa; 3) ao mimetismo

estrangeiro.666

Críticas similares às do primeiro e do terceiro pontos são encontradas no

projeto intelectual de Barbosa Lessa, como temos visto, além do privilégio nele concedido ao

pólo opositor à “elite vitoriosa” do segundo item. A articulação dos debates locais sobre a

memória oficial do Rio Grande, bem como as posições defendidas por nosso personagem,

com as novas diretrizes federais no setor cultural, portanto, orientariam a formulação das

ações da SCDT, como veremos na próxima seção.

665

PLANO DE Atividades para o DEC 1980. Op. cit. 666

FALCÃO, Joaquim Arruda. Op. cit., p. 33-34.

215

5.2 – A região conciliada (?): a dilatação oficial da memória regional

Como dito acima, o Estado deveria, segundo o projeto desenvolvido por Barbosa

Lessa e equipe, corrigir os conflitos simbólicos da sociedade sulina. Isto se daria a partir da

representação equânime do popular e da elite, do “galpão” e da “casa-grande”. Há, assim, na

dinâmica comemorativa da SCDT, a expansão dos marcos definidores da memória regional

oficial em todas as direções apontadas pela reconfiguração dos órgãos federais de cultura.

Exemplo disto foi a elaboração, em 1981, do Calendário Histórico Cultural do Rio Grande

do Sul (CHCRS) por um grupo coordenado pelo próprio secretário Lessa667

. O texto final,

redigido por nosso personagem, ganhou duas impressões: a primeira, em formato de jornal,

destinada às escolas do estado; a segunda, como livro, para distribuição ao público em geral.

Ambas eram vistas pela equipe como um “instrumento de ação”, parte integrante do SIC, no

intuito de “ampliar o espaço cultural do Rio Grande do Sul”.668

Assim, o texto deveria

divulgar fatos e personagens da história local, representativos de diversos setores e do mais

amplo espectro de facetas que definiriam a sociedade gaúcha (e brasileira):

“Abrindo o leque para bem além dos acontecimentos militares, chegamos até

a contribuição do índio, o negro, o colono açoriano, o imigrante alemão ou

italiano (a importante imigração polonesa foi impossível de caracterizar

através de uma data precisa), o nascer municipalista, a implantação do Poder

Executivo, o Poder Legislativo, o Judiciário, a classe política, a imprensa, o

professorado, o esporte, a Literatura, o Teatro, as Artes Plásticas, a Música, a

Indústria e o comércio, a Igreja Católica e a Igreja Protestante, a Brigada

Militar, Exército, Marinha, Aeronáutica, os símbolos oficiais do Estado e a

marcante presença nossa em alguns fatos notáveis da História do Brasil”.669

A iniciativa respondia também à avaliação de nosso personagem, compartilhada pelo

“time” da SCDT, de que a população do Rio Grande desconhecia seu próprio passado. O

Calendário seria, assim, uma contribuição da pasta de cultura à de educação, a pedido do

governador Amaral de Souza, na tentativa de sanar o “problema”. Três anos antes, em Rodeio

dos Ventos, Barbosa Lessa queixava-se ao leitor sobre tal situação de amnésia social. No texto

intitulado “Um tal Cristóvão Pereira”, o escritor relatava a descoberta de uma fonte inédita, os

manuscritos do historiador Manuel José Gomes de Freitas, sobre o fidalgo português que teria

667

A equipe de pesquisa incluía Anni Graff Kladt, Arthur Ferreira Filho, Beatriz Maria Lazzari, Elena Liberato,

Moacyr Domingues e Mozart Pereira Soares. 668

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. Calendário Histórico Cultural do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: IEL,

1981. 669

Ibidem

216

fundado o Rio Grande do Sul ao interligar a região a Sorocaba, abrindo a primeira rota de

tropeiros, e ao criar o quartel e a vila de Rio Grande. Após quatro páginas e meia de

transcrições, Barbosa Lessa lamenta o desconhecimento geral sobre o personagem, refletido

na ausência de seu nome na memória oficial do estado e do país: “E não há nenhum nome de

rodovia homenageando quem abriu o primeiro caminho entre o Sul e o Centro do Brasil (há

porém a free-way [grifo do autor] e a „Presidente Kennedy‟)”.670

Junto à crítica do mimetismo

estrangeiro vem a indignação do escritor regionalista: “Ou nossa memória nacional é uma

vergonha, ou então perdi meu precioso tempo lendo um disparate ou brincadeira de mau gosto

do finado historiador”.671

Em 1981, o Calendário estabelecia o dia da morte de Cristóvão

Pereira de Abreu, 22 de novembro de 1775, como data chave da gauchidade/brasilidade

originária, celebrando o “incansável apoio” do fidalgo às armas portuguesas” e os serviços

prestados à construção do Brasil.672

O secretário Lessa afirmava ao jornal Zero Hora que o texto do livreto não buscava

descobrir as causas da “extrema desinformação do povo gaúcho (e por extensão, do Brasil

inteiro) sobre os assuntos de sua própria História e Cultura, e sim tentar soluções para

diminuir a curto prazo o problema”.673

A falta da memória é vista, portanto, como um

fenômeno correlato ao de destruição dos hábitos e costumes tradicionais. A “retórica da

perda” também cumpre nesse momento a função de “objetificação” da região e da nação, já

que ambas são construídas por oposição a seu próprio processo de destruição.674

Dessa forma,

a crítica ao mimetismo cultural se alia à política de recuperação de uma identidade imaginária

gaúcha e brasileira como narrativa original, coerente e autêntica: “o Calendário também

representa uma tentativa no sentido de fazer com que a comunidade gaúcha assimile sua

própria identidade como povo e possa refletir sobre seus valores culturais, sobrevivendo assim

às imposições culturais alienígenas”.675

670

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. Rodeio dos Ventos. Op. cit., p. 35. 671

Ibidem. 672

Idem, Luiz Carlos. Calendário Histórico Cultural do Rio Grande do Sul. Op. cit., p. 48. 673

RIO GRANDE do Sul revive o seu passado em 38 datas. Zero Hora. Porto Alegre, 07/01/1981, s./p. Pasta

2.11.2.1 do Acervo Barbosa Lessa. 674

Sobre o discurso monumentalista, José Reginaldo Santos Gonçalves alerta: “No entanto, este discurso, que se

opõe vigorosamente àquele processo de destruição, é o mesmo que, paradoxalmente, o produz. Os objetos que

vêm a integrar as coleções ou os patrimônios culturais, retirados do contexto histórico, social, cultural e

ecológico em que existem originalmente, são recodificados com o propósito de servirem como sinais diacríticos

das categorias e grupos sociais que venham a representar. (...) Num mesmo movimento produzem-se,

transformados em coleções e patrimônios culturais, os objetos que estão sendo destruídos e dispersados. Esses

objetos são concebidos nos termos de uma imaginária e originária unidade, onde estariam presentes atributos tais

como coerência, continuidade, totalidade e autenticidade”. GONÇALVES, José Reginaldo Santos. Op. cit., p.

23. 675

RIO GRANDE do Sul revive o seu passado em 38 datas. Op. cit.

217

As datas selecionadas pela equipe da SCDT não constituíam feriados regionais, mas

momentos chave para a mitologia cívica comemorada nos órgãos oficiais do Estado e nas

escolas públicas, além de intervirem na conformação da memória regional. Ainda assim,

pode-se inferir que, da mesma forma que o feriado, estas celebrações “quebram a banalização

do tempo quotidiano, fazendo irromper um tempo-outro, sob os auspícios da entidade que se

pretende celebrar”.676

Os critérios de escolha de fatos e personagens representativos desse

tempo mítico redivivo associa as recomendações de expansão do patrimônio nacional e a

tradição regionalista historiográfica, literária e folclórica. Para uma melhor visualização da

agenda comemorativa do secretário Lessa, elaborei a tabela a seguir, cotejando os parâmetros

expostos em documento da SCDT677

e as posições que orientavam, como vimos acima, a

formulação das novas políticas públicas federais no setor de cultura, a saber, “etnia

branca/questões indígena e negra”, “elite vitoriosa/cultura popular”.678

Tabela I – Distribuição das datas comemorativas do CHCRS679

Critérios de seleção de

datas utilizados pela

SCDT

38 datas comemorativas do Calendário Histórico

e Cultural do Rio Grande do Sul (1981)

Oposição:

etnia(s)

branca(s)

(EB) X

indígenas

(QI) e negros

(QN)

Oposição:

elite

vitoriosa

(EV) X

cultura

popular

(CP)

1) Acontecimentos que

contribuíram para a atual

fisionomia territorial do

Rio Grande do Sul

- 02 de abril de 1776: retomada da vila de Rio

Grande (então sob jugo espanhol);

EB EV

676

AMALVI, Christian Apud CATROGA, Fernando. Portugal: as comemorações como nostalgia do Império.

In.: ______. Nação, mito e rito: religião civil e comemoracionismo. Fortaleza: Edições NUDOC/Museu do

Ceará, 2005, p. 169. 677

Além dos nove critérios expostos na tabela, a distribuição proporcional das datas ao longo do ano também foi

buscada, daí a escolha ora da morte ora do nascimento dos personagens históricos listados. CRITÉRIOS

SEGUIDOS na seleção de fatos ou personalidades. Secretaria de Cultura, Desporto e Turismo. Governo do

Estado do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, s./d., s./p. Pasta 2.11.2.2 do Acervo Barbosa Lessa. 678

A terceira oposição, “mimetismo estrangeiro/cultura nacional”, não consta na tabela, pois, obviamente, todas

as datas dizem respeito ao segundo pólo. O privilégio da “cultura nacional” frente às manifestações eruditas

provenientes do exterior parece ter sido critério para auxílio e fomento de atividades artísticas no estado durante

a gestão Barbosa Lessa na SCDT. Tal fato repercutiria negativamente na mídia gaúcha especializada, como

demonstra o debate entre o jornalista Ney Gastal e o secretário Lessa, nas páginas do Correio do Povo e através

de correspondência pessoal, em 1982, como veremos abaixo. 679

Vale ressaltar que tal disposição tem potencial expositivo e, portanto, didático, à medida que nos permite

visualizar os pressupostos dos agentes envolvidos, na época, com a elaboração do CHCRS, e tecer interpretações

para eles. Não se trata, de forma alguma, de reificar tais classificações, mas de tentar compreender quais delas

fundamentaram o novo projeto de atualização da memória pública regional.

218

- 11 de agosto de 1801: conquista das Missões

Orientais [guaranis]; EB EV

- 18 de setembro de 1865: reconquista de

Uruguaiana;

EB EV

- 12 de outubro de 1851: integração do Chuí ao

território brasileiro; EB EV

2) Acontecimentos que

contribuíram para a

integração do Rio Grande

do Sul ao contexto luso-

brasileiro

- 09 de janeiro de 1975: morte de Rafael Pinto

Bandeira (lutou contra espanhóis na defesa do

território luso);

EB EV

- 19 de fevereiro de 1737: fundação de Rio Grande; EB EV

- 22 de novembro de 1755: morte do desbravador

Cristóvão Pereira de Abreu; EB EV

3) A institucionalização

do Estado

- 08 de março de 1824: posse do primeiro

presidente da província do Rio Grande do Sul (Dr.

José Feliciano Fernandes Pinheiro, futuro Visconde

de São Leopoldo);

EB EV

- 20 de abril de 1835: instalação da primeira

assembléia provincial; EB EV

- 19 de julho de 1816: criação da comarca de São

Pedro; EB EV

- 19 de setembro de 1807: criação da Capitania

Geral do Rio Grande do Sul; EB EV

- 18 de novembro de 1837: criação da Brigada

Militar; --- EV

- 19 de novembro de 1863: nascimento de Antônio

Augusto Borges de Medeiros; EB EV

- 16 de dezembro de 1751: instalação do primeiro

município e Câmara de Vereadores em Rio Grande; EB EV

219

4) As grandes forças

comunitárias (a Igreja

Católica, a Igreja

Evangélica, a mulher

participante)

- 07 de maio de 1848: criação do bispado do Rio

Grande do Sul; EB EV/CP

- 20 de maio de 1886: criação do sínodo rio-

grandense (Igreja Evangélica Luterana); EB EV/CP

- 09 de junho de 1886: nascimento da médica Dra.

Rita Lobato; EB +

Questão

Feminina

EV+

Questão

Feminina

5) As correntes étno-

culturais

- 07 de fevereiro de 1756: morte de Sepé Tiaraju; QI CP

- 20 de maio de 1875: imigração italiana (referente

à chegada dos imigrantes pioneiros na “Colônia

Caxias”, hoje “próspera cidade industrial de Caxias

do Sul”);

--- CP

- 11 de junho de 1865: morte do marinheiro

Marcílio Dias (na explicação do CHCRS, negro

destacado nas operações brasileiras no Prata, morto

durante a Guerra do Paraguai);

QN EV/CP

- 29 de junho: dia de São Pedro (tradição popular

portuguesa); EB CP

- 25 de julho de 1824: imigração alemã (referente à

chegada dos colonos alemães pioneiros na margem

esquerda do Rio dos Sinos);

--- CP

- 09 de agosto de 1747: imigração açoriana

(referente ao dia da assinatura, pelo rei D. João V, da

autorização para que famílias dos Açores fossem

transferidas para o Brasil);

EB CP

6) Os segmentos

geradores de progresso

humanístico

- 21 de janeiro de 1861: nascimento do cientista Pe.

Roberto Landell de Moura; EB EV

- 02 de fevereiro de 1778: criação do primeiro

estabelecimento de ensino; EB EV

- 03 de abril de 1916: nascimento do esportista

Breno Paulo Petzhold (“atleta símbolo” do Clube

Grêmio Náutico União);

EB EV

- 18 de junho de 1868: fundação do Partenon

Literário; EB EV

220

- 30 de junho de 1875: nascimento do engenheiro

Carlos Torres Gonçalves (cuja principal obra,

segundo o CHCRS, foram os planos de recepção e

assimilação dos contingentes migratórios vindos da

Europa, principalmente nas regiões do Planalto e do

Alto Uruguai, “pretendia valorizá-los, não como

braços, mas como cérebros, tendo o cuidado de

evitar que formassem quistos raciais ou que

entrassem em conflito com as populações locais,

inclusive indígenas”);

EB/QI EV/CP

- 02 de setembro de 1885: morte do maestro

Joaquim José de Mendanha (compositor da melodia

do Hino Farroupilha, hoje Hino Rio-Grandense,

ainda que “monarquista convicto”, segundo a

explicação do CHRS);

EB EV

- 29 de novembro de 1806: nascimento do pintor,

arquiteto e autor teatral Manuel Araújo Porto

Alegre, Barão de Santo Ângelo;

EB EV

7) Os segmentos

geradores de progresso

material

- 21 de outubro de 1889: morte de Irineu

Evangelista de Souza, Visconde de Mauá (segundo a

explicação do CHCRS, construtor da primeira

estrada de ferro do Brasil, do cabo telegráfico do

Brasil para a Europa, além de investimentos na

construção naval, no abastecimento de água e

iluminação no Rio de Janeiro);

EB EV

8) Os símbolos cívicos - 05 de maio de 1838: primeira audição do Hino do

Rio Grande do Sul;

--- EV

- 12 de novembro de 1836: criação da bandeira da

República Rio-Grandense; --- EV

9) A presença gaúcha na

grande pátria brasileira

- 1º de março de 1845: assinatura da Paz de

Ponche Verde (fim da Revolução Farroupilha); EB EV

- 08 de maio de 1851: nascimento do senador José

Gomes Pinheiro Machado (figura política forte no

cenário nacional durante a República Velha);

EB EV

- 10 de maio de 1808: nascimento do Marechal

Manuel Luís Osório, Marquês do Herval (militar

rio-grandense que recebera o título de nobreza por

conta da atuação de liderança durante a Guerra do

Paraguai, segundo a explicação do CHCRS);

EB EV

- 02 de junho de 1888: nascimento do Dr. Salgado

Filho, primeiro Ministro da Aeronáutica; EB EV

221

- 05 de agosto de 1834: nascimento do conselheiro

Gaspar Silveira Martins (segundo o texto do

CHCRS, deputado provincial no Rio Grande do Sul,

durante o Segundo Reinado; fundador do Partido

Liberal Histórico, opositor do regime castilhista no

estado, após a proclamação da república, líder do

Partido Federalista e chefe civil dos revoltosos na

“sangrenta Revolução de 1893);

EB EV

- 03 de outubro de 1930: início da Revolução de

30; EB EV

- 12 de dezembro de 1873: nascimento de Plácido

de Castro (líder dos caboclos brasileiros que

impediram a cessão do Acre a uma companhia

norte-americana e obrigaram a incorporação da

região ao Brasil, mediante indenização à Bolívia);

EB/QI/QN EV/CP

- 13 de dezembro de 1807: nascimento do

Almirante Joaquim Marques Lisboa, Marquês de

Tamandaré;

EB EV

Evento emblemático - 20 de setembro de 1835: Revolução Farroupilha:

entrada do Cel. Bento Gonçalves da Silva em Porto

Alegre.

EB EV

Uma análise quantitativa da distribuição das datas celebradas a partir dos critérios da

SCDT demonstra que a perspectiva tradicional de memória regional continuava

proporcionalmente majoritária, através da confirmação dos eventos ligados a questões

emblemáticas para a elite intelectual rio-grandense, como a formação institucional do Estado,

a conquista do território nas guerras de fronteira e o papel rio-grandense no panorama

nacional, ou seja, questões ligadas à elite branca, principalmente lusa, “vitoriosa” na

construção de um Rio Grande gaúcho e brasileiro. Entretanto, a leitura qualitativa permite

nuançar a interpretação propiciada pela divisão esquemática estabelecida na tabela acima.

Primeiro porque o privilégio da “etnia branca” (EB) carrega consigo a diversificação cultural

decorrente da incorporação do contingente de imigrantes alemães e italianos, além de

reconhecer a contribuição polonesa (pese a alegada impossibilidade de propor uma data

representativa). Tal postura, como vimos nos capítulos anteriores, vai de encontro às posições

avocadas na produção gauchesca em geral, que definem a imigração como um dos fatores

responsáveis pela crise estrutural da economia pecuária tradicional e, como conseqüência,

pela morte do gaúcho a cavalo. Por outro lado, os signos do imigrante aparecem na ótica da

“cultura popular” (CP), através de sua contribuição como um todo aos hábitos e costumes da

222

região. Outra questão que pode ser levantada pelo Calendário é a diversificação das

representações sobre a elite lusa construtora do Rio Grande: além da incorporação da indústria

e do comércio, através da figura do Visconde de Mauá, a uma memória marcada pelo mundo

rural, os grupos sociais celebrados vão muito além daquela elite política e militar da

historiografia tradicional: são mulheres participantes da vida pública, grupos de intelectuais,

artistas, esportistas e profissionais liberais, incluindo, assim, também a classe média urbana na

dinâmica comemorativa do Estado. Por último, a simples constatação da existência de um

maior número de eventos ligados às etnias brancas e à “elite vitoriosa” (EV) não permite

compreender a importância qualitativa da dilatação da memória oficial expressa pela

enunciação de uma data específica referente à questão indígena (QI) e outra à questão negra

(QN), devido a seu conteúdo contestatório em relação à perspectiva dominante até então. A

primeira, ligada diretamente aos debates em torno do “caso Sepé”, apresenta não somente o

elemento indígena como construtor do Rio Grande, mas estabelece a narrativa sobre Sepé

Tiaraju enquanto um mito de matiz universal produzido pela região como contribuição às

causas nobres no mundo: “A legenda desse índio-mártir tem sido alimentada, em prosa e

canção, através das gerações, e hoje sua força mitológica é associada à resistência latino-

americana contra o domínio colonialista europeu”.680

Já a segunda data afirma a tão negada

participação histórica do negro na formação do estado. Assim inicia o texto explicativo sobre

a homenagem a Marcílio Dias no CHCRS:

“O negro participou ativamente desde os primeiros passos da formação do

Rio Grande do Sul. A própria „frota‟ de João de Magalhães – a primeira

incursão oficial no território rio-grandense, a partir de Laguna, em 1715 – era

constituída, em sua quase totalidade, por escravos. Quando José da Silva Pais

desceu à terra, em Rio Grande, em 1737, também o acompanhavam inúmeros

negros ou mulatos. O ciclo econômico das charqueadas só foi possível

porque havia o braço escravo para impulsioná-lo”.681

Mas, como tenho procurado mostrar, a diversidade é sempre apresentada através de

uma perspectiva conciliatória. Daí o décimo critério de elaboração do Calendário não tratar da

escolha de fatos e vultos, mas de sua exclusão: “Evitar datas que „arranhem‟ o relacionamento

com as repúblicas irmãs, do Cone Sul, bem como aquelas datas que relembram a cisão da

família rio-grandense por rivalidades partidárias”.682

Assim, batalhas contra Argentina,

Paraguai e Uruguai, bem como as guerras internas, como a Revolução Federalista de 1893 e a

680

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. Calendário Histórico Cultural do Rio Grande do Sul. Op. cit., p. 10. 681

A escolha da morte de Marcílio Dias para o Calendário deveria sintetizar “todo o espírito de participação e

sacrifício, caracterizador do „crioulo‟ rio-grandense”. Ibidem, p. 24. 682

CRITÉRIOS SEGUIDOS na seleção de fatos ou personalidades. Op. cit.

223

dissensão entre chimangos e maragatos de 1923, que haviam sido narradas, inclusive, em

contos de Rodeio dos Ventos, foram suprimidas da memória histórica rediviva nas

comemorações oficiais do Estado. A única exceção diz respeito ao evento emblemático da

história local e que, portanto, não poderia ser ignorado: a Revolução Farroupilha. Dessa

forma, a SCDT também se apropriava das recomendações do III Plano Setorial do MEC, que

predicavam a promoção de manifestações culturais em todas as suas formas, “numa

perspectiva de desenvolvimento integrado em que se complementem – sob a ótica da

identidade nacional – as manifestações populares e as manifestações eruditas da Cultura

Brasileira”.683

Portanto, as políticas de fomento da SCDT às atividades artísticas e, por

conseqüência, a divisão das verbas públicas destinas à área deveriam levar em conta os

critérios de diversificação e de conciliação da “cultura gaúcha” utilizados no CHCRS.

O orçamento do DEC para o ano fiscal 1980-1981 é, nesse sentido, exemplar. Pouco

mais da metade do montante (em torno de 54,85%) era destinado à manutenção das

instituições vinculadas à SCDT684

, cerca de 6.650.000,00 de 12.122.000,00 cruzeiros.685

Os

restantes Cr$ 5.472.000,00 seriam divididos entre projetos e promoções de oito rubricas, da

seguinte maneira (ver gráfico abaixo): 1) 24,3% para Artes Cênicas; 2) 5,88% para Cinema;

3) 8,22% para Manifestações Regionais; 4) 3,65% para Artes Plásticas; 5) 23,2% para Música

Erudita; 6) 18,27% para Música Popular; 7) 12,79% para a Promoção Especial do DEC

(Projeto Mutirão686

); e 8) 3,65% para a rubrica Especial DEC, que significava a soma das

verbas dispensadas ao II Festival de Coros e ao Festival Infantil de Coros.

683

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. Anotações preliminares para contribuições ao PLANO 81. Secretaria de

Cultura, Desporto e Turismo. Governo do Estado do Rio Grande do Sul. Manuscrito. Pasta 2.11.2.1 do Acervo

Barbosa Lessa. 684

O Plano de Atividades do DEC para 1980 listava as seguintes “instituições culturais” vinculadas ao órgão:

Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, Biblioteca Pública, Discoteca Pública Natho Henn, Instituto Estadual

do Livro, Museu de Artes, Museu Júlio de Castilhos, Teatro São Pedro, Biblioteca Infantil Lucília Minssen,

Museu de Comunicação Social, Biblioteca Infantil São João, Biblioteca Infantil Romano Reif, Biblioteca Infantil

Leopoldo Roeck, Centro de Desenvolvimento da Expressão, Escola de Arte Carlos Barone, Escola de Arte

Odessa Macedo, Museu Arqueológico de Taquara, Museu Histórico Farroupilha e Museu Antropológico do Rio

Grande do Sul. PLANO DE atividades do DEC para 1980. Op. cit., p. 23. O orçamento detalhado se encontra

transcrito no Anexo III. 685

Utilizando os mesmos critérios de atualização monetária expostos acima, o orçamento total da SCDT para

1980-81 seria, em dezembro de 2008, o equivalente a R$ 1.673.783,88. 686

Tal projeto visava a promover e divulgar expressões artísticas e culturais para a população “carente”, com

atividades desenvolvidas em entidades como a Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor – FEBEM.

224

Gráfico I – Orçamento do DEC/SCDT na rubrica “Promoções Culturais” para o ano

fiscal 1980-1981687

Artes Cênicas

Cinema

Manifestações Regionais

Artes Plásticas

Música Erudita

Música Popular

Promoção Especial(Projeto Mutirão)

Especial DEC

Caso separássemos as oito rubricas segundo a oposição “cultura erudita/cultura

popular”, considerando, no primeiro pólo, Artes Cênicas, Cinema, Artes Plásticas, Música

Erudita e Especial DEC, e, no segundo, Manifestações Regionais, Música Popular e

Promoção Especial, teríamos a seguinte configuração: cerca de 60% da verba pública para

promoções culturais “eruditas” e 40% para manifestações “populares”.

Gráfico II – Orçamento do DEC/SCDT 1980-81 na rubrica “Promoções

Culturais” segundo oposição “Cultura Erudita/Cultura Popular”

"Cultura Erudita"

"CulturaPopular"

687

Os gráficos foram elaborados segundo as informações constantes do Plano de Atividades do DEC para 1980.

225

Ainda que tal esquema seja falho – já que itens os quais os atores envolvidos poderiam

considerar relacionados à “cultura erudita” também eram encontrados entre aquelas atividades

da rubrica Manifestações Regionais, como a verba destinada ao Teatro de Câmara da

Secretaria Municipal de Cultura de Porto Alegre (Cr$ 180.000,00)688

, ou, ao contrário,

atividades referentes à “cultura regional” poderiam ser realizadas por meios “eruditos”, como

o cinema (Cr$ 200.000,00689

destinados ao filme de curta metragem intitulado “Chimangos e

Maragatos”) –, a distribuição da verba pública não aprisionada por instituições culturais

oficiais segundo o gráfico acima permite visualizar a tendência de

equação/complementaridade das chamadas “manifestações eruditas” e “manifestações

populares” da “cultura brasileira”, proposta pelo III Plano Setorial do MEC.

O saldo favorável na balança orçamentária da SCDT para promoções de “cultura

erudita” pode ser explicado em função de dois fatores: primeiro, do tradicional peso da elite

na configuração de políticas culturais no país, o que vinha sendo, como vimos, há pouco

tempo questionado; segundo, da organização política dos setores artísticos tradicionais, mas

também de novos grupos intelectuais que passaram a exigir presença nas instituições públicas

da área. Como em outros pontos do Brasil, a nova classe artística do Rio Grande do Sul

começaria, também, a ser ouvida na elaboração do orçamento público do setor cultural. Em

1981, um grupo de intelectuais de Porto Alegre criou a “Campanha Gaúcha em Defesa da

Cultura”, logo articulada como Movimento Gaúcho em Defesa da Cultura (MGDC), que

reivindicava justamente participação no poder decisório relativo às diretrizes do Estado para a

área, através de indicações ao Conselho Estadual de Cultura e aos órgãos ligados à SCDT690

.

688

Equivalente, em dezembro de 2008, a R$ 24.854,08. 689

Da mesma forma, R$ 27.615,04. 690

Encontra-se no Acervo Barbosa Lessa uma reportagem sobre o movimento sem indicação da data e do

veículo de publicação. Podemos datá-la contextualmente como referente ao ano de 1981 e anterior ao mês de

agosto, quando foi realizado o seminário que estabeleceu as pautas do grupo (ver próxima nota). Neste texto, o

objetivo principal da MGDC era assim apresentado: “Propomos a adoção pelo Estado de um canal de

comunicação permanente entre o poder constituído e a comunidade cultural, através de um sistema

representativo legítimo. Essa representatividade deverá efetivar-se dentro do Conselho Estadual de Cultura,

organismo já existente na estrutura administrativa do Estado e em conselhos setoriais a serem criados em cada

instituição cultural pública”. O grupo se dizia confiante no diálogo com o novo secretário Barbosa Lessa: “Eles

pretendem agora entrar em contato com Lessa para „levar nossa contribuição e sabemos que ele também tem

interesse em conversar‟”. O MGDC era coordenado pelos arquitetos Enilda Ribeiro e Antonio Castro; os artistas

plásticos Zoravia Bettiol e Jader Siqueira; Luís Antônio do Assis Brasil e Paixão Côrtes representando as

Ciências Sociais; Jesus Pieil e Alpheu Godinho representando o cinema; os estudantes Nádia Musre e Cláudio

Barbosa; os fotógrafos Assis Hoffmann e Adolfo Gerchmann; os jornalistas Cláudia Lindnor e Lauro Hagemann;

Evelyn Berg e Carlos Carvalho representando a Literatura; David Machado e Celso Loureiro Chaves, a Música;

Luís Paulo Vasconcelos e Ludoval Campos, o Teatro; Zilah Totia e José Hugo Ramos o Magistério. CARTA

DEFENDE a cultura. Sem referência. Pasta 2.11.2.1 do Acervo Barbosa Lessa. Cabe salientar que o Conselho

Estadual de Cultura abrigava, naquele momento, intelectuais reconhecidos no cenário rio-grandense. Eis a lista

de seus 12 membros: o editor Maurício Rosemblatt, o pintor Aldo Malagoli, a ex-diretora do Departamento de

Assutnos Culturais (DAC) da extinta Secretaria de Educação e Cultura (SEC) Antonietta Baroni, o filólogo e

226

Em agosto daquele ano, o Movimento estabeleceria as pautas específicas de cada grupo

profissional em um seminário de cultura.691

Em um documento interno da Secretaria,

encontramos notas referentes às recomendações de Barbosa Lessa para que a elaboração das

atividades da Secretaria se desse em conjunto com o Movimento.692

Nosso personagem

procurava, então, atender as demandas da chamada “cultura erudita”, desde questões pontuais,

como a cessão de espaço para o funcionamento da Academia Rio-Grandense de Literatura

(ARGL) – da qual Barbosa Lessa fazia parte, cabe mencionar – no Instituto Estadual do Livro

(IEL)693

, até a configuração de um grande projeto cultural em torno do prédio do antigo Hotel

Majestic, como proposto pelo MGDC.694

Lessa engajou-se pessoalmente na aquisição desse

espaço e em sua cessão para utilização pública, ocorrida no final de 1982.695

No entanto, ele

não teve tempo útil de governo para executar seus planos para o local, já que sua inauguração,

lingüista Celso Pedro Luft, o historiador e crítico literário Guilhermino Cesar, o historiador santa-cruzense

Hardy Elmiro Martin, o jornalista caxiense Mário Gardelin, o jornalista cachoeirense Liberato Figueiredo Vieira

da Cunha, o advogado e professor da UFRGS Luiz Benito Viggiano Luisi, o médico e professor da UFRGS

Rubens Mário Garcia Maciel, a escritora Ruth Caldas e o historiador tradicionalista bageense Tarcísio Taborda,

que substituiu Barbosa Lessa na direção do DEC da SCDT, em 1981. Ver CONSELHO ESTADUAL de Cultura.

Departamento de Cultura. Secretaria de Cultura, Desporto e Turismo do Estado do Rio Grande do Sul. Porto

Alegre, s./d., 01 fl. Pasta 2.11.2.1 do Acervo Barbosa Lessa. 691

Tais pautas incluíam desde políticas de aproximação entre os escritores e o público leitor, até questões

específicas como a cobertura do Auditório Araújo Viana, localizado no Parque Farroupilha, e a transformação do

desativado Hotel Majestic em casa de cultura, além da regulamentação da profissão de fotógrafo, a criação de

um corpo de baile municipal ou estadual e a utilização dos espaços públicos para mostras de artes plásticas.

Também chama a atenção a posição do professorado, que reivindicava o retorno do setor de cultura à pasta de

educação, na sua avaliação carente de verbas. RESULTADOS E PROPOSTAS do Seminário de Cultura. Folha

da Tarde. Porto Alegre, 17/08/1981. Pasta 2.11.2.1 do Acervo Barbosa Lessa. 692

“Seria conveniente dividir com o Chico Lisboa e com a Campanha de Defesa da Cultura Gaúcha o

planejamento do MARGS (Museu de Artes do Rio Grande do Sul) para 1981, dentro de nossas tremendas

limitações de orçamento e de recursos humanos? SECRETÁRIO ESTÁ CONVENCIDO DE QUE ISTO SERIA

MUITÍSSIMO OPORTUNO! [grifo do autor]”. OBSERVAÇÕES SOBRE os pré-planos apresentados com

vistas ao programa 1981. Op. cit., p. 21. Pasta 2.11.2.1 do Acervo Barbosa Lessa. Outras ações em órgãos

públicos, ainda que sem a menção ao Movimento, permitem pensar que suas pautas passaram a, no mínimo,

entrar em discussão na elaboração dos planos da SCDT, como um projeto de relacionamento entre escritores e

sociedade, semelhante à proposta do Seminário de Cultura, sob o comando do IEL. Ibidem, p. 11. 693

Sobre o questão, Barbosa Lessa recebeu carta de agradecimento de Dante de Laytano: “Tenho subida de

honra de levar ao seu conhecimento que a ACADEMIA RIO-GRANDENSE DE LETRAS [grifo do autor], da

qual V. Exa. é um dos imortais mais destacados, houve por bem, em sessão especial com a presença da maioria

dos acadêmicos, propor um voto de louvor a V. Exa., por minha sugestão e que foi recebido sob palmas, para

agradecer-lhe de todo o coração a generosa iniciativa de ceder as instalações do Instituto Estadual do Livro, onde

então poderá funcionar a Academia”. Correspondência de Dante de Laytano para Barbosa Lessa. Porto Alegre,

12/07/1982. 694

Além da continuação do SIC com a implantação de novos pólos culturais, da ampliação do programa de

preservação do patrimônio histórico do Estado e da expansão do programa de concertos da OSPA, a SCDT

anunciava seus planos para o espaço como uma das principais ações na área da cultura para o ano de 1981:

“...criar a Casa de Cultura, no antigo prédio do Hotel Majestic, agrupando os órgãos culturais do Governo do

Estado”. OS NOVOS planos da Secretaria de Cultura, Turismo e Desporto. Zero Hora. Porto Alegre,

07/01/1981, s./p. Pasta 2.11.2.1 do Acervo Barbosa Lessa. 695

Sem disponibilidade do montante necessário na pasta de Cultura, o governo Amaral de Souza utilizou o

Banco do Estado do Rio Grande do Sul (BANRISUL) para a compra, em 1980, do Hotel Majestic. Ver

BANRISUL COMPROU o Hotel Majestic. Folha da Tarde. Porto Alegre, 09/04/1980, s./p. Pasta 2.11.2.3 do

Acerbo Barbosa Lessa. Somente em dezembro de 1982 o governo adquiriu oficialmente do Banco o espaço para

a execução do projeto de Barbosa Lessa.

227

em março de 1983, se resumiu a uma exposição de aquarelas e desenhos de Hermann Rudolf

Wendroth.696

A Casa de Cultura Mário Quintana – que recebeu o nome do poeta em 1983, na

gestão de Jair Soares (PDS) no governo do Estado – passaria por reformas estruturais entre

1987 e 1990, quando foi finalmente aberta ao público.697

Todavia, ao contrário do que poderia sugerir a presença proporcionalmente majoritária

da “cultura de elite” na agenda comemorativa analisada acima e na distribuição orçamentária

das promoções culturais, simbolicamente as manifestações consideradas “populares” foram o

principal alvo das políticas da SCDT, como transparece no texto do SIC, postura que também

acompanhava a estratégia do III Plano Setorial do MEC: “Prioridade às áreas mais carentes:

campo e a margem urbana”.698

Em sua leitura do Plano, aliás, Barbosa Lessa avaliava tal

medida de acordo com a postura política sobre “cultura popular” presente na tese O Sentido e

o Valor do Tradicionalismo, qual seja, a de que o amparo cultural se desdobrava em

desenvolvimento social:

“A área da Cultura, uma vez concebida prioritariamente como expressão

criativa da comunidade, particularmente daquela menos favorecida, adquire

importância intersetorial de primeira ordem. Ela extrapola as dimensões

sociais e econômicas, atingindo a esfera de participação política, também

condição fundamental do desenvolvimento. Não é difícil fundamentar que

certos progressos econômicos, sociais e políticos estão fortemente

condicionados a traços culturais. No mínimo, pode-se afirmar que O

CRESCIMENTO QUE VENHA A DESFIGURAR AS

CARACTERÍSTICAS CULTURAIS DA COMUNIDADE e a coibir seu

potencial participativo DIFICILMENTE TEM CONDIÇÕES DE SER

QUALIFICADO COMO DESENVOLVIMENTO SOCIALMENTE

DESEJÁVEL [grifo do autor]”.699

As atividades do Museu Antropológico do Rio Grande do Sul (MARS) eram, por

exemplo, uma das vias de encontro do fomento ao “popular” com a diversificação e

conciliação cultural da região, através de sua intervenção na chamada “cultura escolarizada”,

ao promover os cursos “O negro no Rio Grande do Sul”, realizado em 1980, “O alemão”, “O

italiano” e “O índio”, ocorridos no ano seguinte700

, todos destinados a público geral. No

696

Segundo carta de Barbosa Lessa ao prefeito de Porto Alegre, Tarso Genro, em 1996, solicitando correção das

informações sobre a Casa de Cultura no Mapa Panorâmico de Porto Alegre, impressão da Empresa Porto-

Alegrense de Turismo (EPATUR). Carta de Luiz Carlos Barbosa Lessa para Tarso Genro. Camaquã,

15/03/1996. 697

Ver o histórico do Hotel Majestic disponível no sítio da Casa de Cultura Mário Quintana. PENNA, Rejane.

Hotel Majestic. Porto Alegre: Casa de Cultura Mário Quintana. Disponível em: www.ccmq.com.br/hotel-

majestic.php. Acesso em 08/01/2010. 698

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. Anotações preliminares para contribuições ao PLANO 81. Op. cit. 699

Ibidem. 700

OBSERVAÇÕES SOBRE os pré-planos apresentados com vistas ao programa 1981. Op. cit, p. 14.

228

tocante à incorporação do patrimônio material e imaterial indígena e negro à cultura sul-rio-

grandense, duas ações chamam ainda a atenção. No primeiro item, a SCDT, que negociava a

restauração das ruínas de São Miguel junto ao SPHAN, solicitou seu tombamento como

patrimônio histórico e cultural da humanidade pela UNESCO701

, o que se efetivou no ano de

1982. O feito não se daria, entretanto, sem atrito com a comunidade local. Isto porque o

espaço abrigava o espetáculo “Som e Luz”702

, que deveria ser cancelado temporariamente.703

O fato gerou comoção entre os prefeitos da região, que viam no show a possibilidade de

incrementar a economia local com divisas provenientes do mercado turístico. O próprio

Barbosa Lessa teve que intervir junto aos órgãos de patrimônio e ao governo federal para

resolver o impasse.704

Em 1982, o “Som e Luz” voltou a ser executado no espaço705

, durante a

finalização das obras do IPHAN, mas passou a cobrar ingresso para sua assistência, no intuito

de incrementar a verba disponível para o restauro e acelerar os trabalhos.706

Em relação à cultura negra, a SCDT propôs, em 1980, a utilização do aparato que

vinha sendo montado pelo SIC para divulgar o folguedo dos maçambiques, realizado

anualmente no município de Osório por descendentes de africanos, em homenagem a Nossa

Senhora do Rosário. A Secretaria previa o deslocamento dos participantes aos diversos pólos

culturais implantados no Estado para a execução das cantigas e danças do cortejo da “rainha

Jinga” e de seu consorte, o “Rei do Congo”. O plano, entretanto, como relatou o antropólogo

Norton Correa, teria conseqüências sociais desastrosas para os “maçambiqueiros”,

agricultores muito pobres que deixavam suas pequenas roças abandonadas, o que lhes custaria

701

Ver: UNESCO PODE encampar a proteção das Missões. Zero Hora. Porto Alegre, 23/04/1981, p. 7. Pasta

2.11.2.4 do Acervo Barbosa Lessa. 702

O show, que vinha sendo exibido desde 1978, almejava apresentar as relações entre os padres jesuítas e os

índios guaranis, através de jogos de luz e reprodução de falas creditadas a personagens históricos e fictícios. Para

as gravações foram escolhidos atores de renome no eixo Rio-São Paulo, como Fernanda Montenegro, Paulo

Gracindo, Juca de Oliveira, Armando Bogus, Rolando Boldrim e Lima Duarte. SOMENTE 40 por cento da

população missioneira assistiram ao Som e Luz. Correio do Povo. Porto Alegre, 27/12/1979, p. 30. Pasta

2.11.2.4 do Acervo Barbosa Lessa. 703

O cancelamento do espetáculo havia sido adiado por vinte dias, para não interferir na agenda já divulgada ao

público. MAIS VINTE dias de Som e Luz. Zero Hora. Porto Alegre, 11.02/1981, p. 2. Pasta 2.11.2.4 do Acervo

Barbosa Lessa. 704

“Cumprimentando Vossa Excelência, venho trazer à sua presença a preocupação do Estado do Rio Grande do

Sul quanto à remontagem do espetáculo „Som e Luz‟ junto às ruínas da Igreja de São Miguel, no Município de

Santo Ângelo. No dia 10 de fevereiro, no Palácio Piratini, na oportunidade em que foi deliberada a sustação do

programa, face o estágio das obras que ali se realizavam, Vossa Excelência informou que em entre 60 e 90 dias

haveria condições do SPHAN anunciar a data para possível reinício desse programa. (...) Sem ter notícias em

relação ao assunto, ficamos na expectativa desse pronunciamento de Vossa Excelência, eis que constantes são os

pedidos de esclarecimentos se o espetáculo poderá ser remontado e quando”. Correspondência de Luiz Carlos

Barbosa Lessa a Aluísio Magalhães (Secretário de Assuntos Culturais do Ministério de Educação e Cultura –

MEC). Porto Alegre, 30/06/1981. 705

“SOM E Luz” de volta. Diário Popular. Pelotas, 03/10/1981, p. 9. Pasta 2.11.2.4 do Acervo Barbosa Lessa. 706

Outra reportagem sem referências de publicação que relata a situação da restauração das ruínas de São Miguel

no ano de 1982 se encontra no Acervo Barbosa Lessa. Ver. RUÍNAS DE São Miguel já estão quase totalmente

recuperadas. Sem referência. Pasta 2.11.2.1.

229

grandes esforços de recuperação da terra findo o evento. Diante da situação, a Prefeitura de

Osório não permitiu a realização da turnê. O mesmo jornalista acusava a SCDT de colocar os

interesses turísticos à frente das questões sociais e culturais implicadas no caso, já que

também desrespeitava, com sua proposta, a “autenticidade” e a “espontaneidade”

características do auto.707

Parece, então, que o setor em que o projeto de Barbosa Lessa para a renovação cultural

do estado obteve maior êxito e receptividade foi mesmo o tradicionalismo organizado. E não

era para menos. Sua participação na construção do movimento dotava-lhe de conhecimentos

especializados que permitiam a configuração de ações cujas conseqüências poderiam ser

mesuradas antecipadamente e aquilatadas adequadamente, quando postas em prática, de

acordo com as diretrizes do projeto tradicionalista. Além disso, o Secretário era cercado de

um corpo técnico proveniente do movimento, fornecido pelo Instituto Gaúcho de Tradição e

Folclore, que formulava as políticas para a área em conjunto com o novo diretor do DEC,

Tarcísio Taborda. Dessa maneira, a atualização da figura mítica do gaúcho pampiano tornava-

se, também, política de Estado, como veremos a seguir.

5.3 – Do “popular” ao gauchesco: “Fierros” domesticados nas ações do Estado

A programação da Semana Farroupilha (SF) de 1981, primeira sob responsabilidade

de Barbosa Lessa como secretário, ganhou grandes proporções. Nela, a memória da elite

revoltosa era, como na dinâmica tradicionalista, conciliada com a “cultura de galpão”, tida

como manifestação do peão de estância. A estrutura da comissão organizadora das

comemorações, encabeçada por Lessa junto ao coronel Milton Weyrich, Comandante Geral

da Brigada Militar, e a Dionísio de Araújo Nascimento, presidente do MTG, parece denotar

simbolicamente a aliança dos elementos militar e folk. Além das promoções da Brigada e do

Movimento Tradicionalista, as atividades oficiais se distribuíam capilarmente pela rede de

instituições vinculadas à SCDT. Toda a estrutura da Secretaria foi colocada em ação durante a

SF, através de atividades variadas como exposições no Museu de Comunicação Social, no

Museu Júlio de Castilhos, na Discoteca Pública Nato Henn e na Biblioteca Pública do Estado,

por exemplo, aliadas, ainda, a promoções de outros órgãos vinculados, direta ou

707

CORREA, Norton F. As atividades folclóricas do litoral e a “ajuda” da Secretaria de Cultura. Correio do

Povo. Porto Alegre, 30/01/1980, s./p. Pasta 2.11.2.2 do Acervo Barbosa Lessa.

230

indiretamente, ao aparato estatal, como o Centro de Professores do Estado e seu Ciclo de

Estudos Históricos “O movimento farroupilha e sua época”.708

A agenda comemorativa da SF representava, obviamente, um momento de exceção no

cenário cultural do Rio Grande do Sul, já que condensava e sintetizava em poucos dias o

trabalho de diversos grupos e organismos da sociedade civil e do Estado sobre o imaginário

local. Mas a atualização do gaúcho pampiano (e da elite militar “agauchada”) também

comparecia em ações permanentes ou de extensa duração na secretaria de Barbosa Lessa.

Nesse sentido, dois projetos709

, pelo menos, segundo a documentação disponível, foram

supervisionados diretamente por nosso personagem: primeiro, a construção de um parque

temático histórico na Estância do Cristal, propriedade pertencente à família do General

farroupilha Bento Gonçalves da Silva, no município de Camaquã; segundo, a utilização da

música e do bailado popular gauchesco para a divulgação da “cultura local”, através do

Projeto Vanerão.

O Parque Bento Gonçalves deveria reproduzir, na sede da Estância do Cristal, a vida

da elite rio-grandense que comandara a Revolução Farroupilha, por meio de um museu da

“casa-grande”. A acentuação do registro historiográfico de inspiração militar da memória

oficial tendia, no momento, a responder às duas principais diretrizes da SCDT escrutinadas

acima: a) conciliação da cultura local, aliando os patrimônios folk e da “elite vitoriosa”; b)

diversificação das representações sobre a “cultura gaúcha”, leia-se, neste caso, “cultura

tradicionalista”, caracterizada, então, pela figura do peão da estância. As justificativas do

empreendimento se davam pelo viés nacionalista, já que ele fomentaria o senso de unidade do

país: “Este sentido nos é dado por uma cultura comum que vai muito mais além das linhas

cartográficas que delimitam territórios, pois só a cultura nos aproxima e personaliza como

povo, plantando os verdadeiros alicerces da nacionalidade”.710

O parque deveria, pois,

estimular a coesão cultural brasileira, sem implicar na descaracterização das peculiaridades

rio-grandenses:

708

Ver SEMANA FARROUPILHA 1981. Programa. Porto Alegre: SCDT, 1981. Pasta 2.11.1.2 do Acervo

Barbosa Lessa. 709

A SCDT possuía uma Divisão de Promoções, encarregada do desenvolvimento de projetos e ações por ela

implementadas diretamente, sem passar pela gerência dos organismos e instituições que a compunham (como

IEL, museus, bibliotecas etc.). Em 1981, ela punha em prática, pelo menos, seis projetos: Semana Santa de Rio

Pardo, Projeto ARTESOL (para divulgação de bandas municipais e de música nativa), Projeto Lupicínio

(voltado à música urbana), Projeto Mutirão, Projeto de Música Erudita e Festival de Teatro Amador de Novo

Hamburgo. Além disso, unia o DEC e o Departamento de Turismo na relação da Secretaria com os festivais

nativistas, como a Califórnia da Canção Nativa. OBSERVAÇÕES SOBRE os pré-planos apresentados com

vistas ao programa 1981. Op. cit, p. 25-26. 710

ANTEPROJETO COMPLEXO Turístico-Cultural do Cristal – Camaquã – RS. Secretaria da Cultura,

Desporto e Turismo. Estado do Rio Grande do Sul. Elaborado pela Coordenadoria Técnica do Instituto Gaúcho

de Tradição e Folclore. Pasta 2.11.2.1 do Acervo Barbosa Lessa.

231

“Sabemos que o Brasil é um mosaico sociológico. Sua extensão territorial

continentina distancia seus habitantes de tal maneira que, deslocados, os

torna estranhos dentro da própria Pátria pelo afastamento das várias regiões

culturais que a caracterizam. Culturas singulares se agitam, em ebulição, nos

mais diferentes quadrantes da nossa Pátria. E nós somos parte integrante dela.

Se apagarmos a cultura que nos distingue neste complexo sociológico,

estaremos borrando a policronia do mosaisco cultural brasileiro”.711

A “epopéia farroupilha” era colocada, neste caso, como o evento conciliatório da

especificidade gaúcha com a brasilidade, devido à sua conclusão em favor do pertencimento

do Rio Grande à nação brasileira. Sua celebração, no entanto, também envolvia manifestações

da chamada cultura popular. As atividades da SCDT no parque passariam a ser

implementadas em diferentes fases, para evitar sua interrupção por falta de recursos.712

Dentre

elas, a Secretaria previa uma festa junina, no dia 24 de junho daquele ano, consagrada ao

padroeiro do município de Camaquã, São João Batista, e o fomento à “tradição dos doces da

Zona Sul”: “Houve verdadeiras artistas da cozinha – pretas velhas, tias velhas – que estão

marginalizadas em nossa sociedade. Será uma oportunidade para readquirirem o prestígio por

má [sic] condição de doceiras ou quituteiras de mão cheia”.

A ligação entre a SCDT e o Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG) também fica

explícita nos planos de transferência do espaço do Parque para a construção da sede de sua

Fundação Cultural e para a instalação de uma emissora, Rádio Tradição, “que, embora de

caráter particular, se dedicaria à cobertura exclusiva no setor tradicionalista gaúcho”.713

Estas

últimas propostas não foram levadas a cabo, mas, em agosto de 1982, a Secretaria da Fazenda

do Estado regularizava a cessão, por cinco anos, do Parque Bento Gonçalves para a Fundação

Cultural MTG.714

Em 1981, um documento com o título “confidencial”, redigido pelo secretário Lessa,

apontava para a “libertação do ciclo fechado de cantores tradicionalistas” como medida a ser

adotada na SCDT. A crítica ao governo anterior considerava que a antiga Secretaria de

Educação e Cultura mantinha apenas um grupo determinado de artistas gauchescos da capital

em evidência. A nova Secretaria deveria, ao contrário, ampliar a área de atuação dos “artistas

regionais”, tanto atendendo a outros setores, quanto dilatando o entendimento do que deveria

ser considerado como música representativa da região: “não apenas os „gaúchos‟ da capital,

711

Ibidem. 712

CAMAQUÃ REVIVE tradição no Parque Bento Gonçalves. Folha da Tarde (Caderno Regional). Porto

Alegre, s/d, p. 2. Pasta 2.11.2.1 do Acervo Barbosa Lessa. 713

Ibidem. 714

TERMO DE Cessão de Uso. Secretaria da Fazenda. Governo do Estado do Rio Grande do Sul. 13/08/1982, fl.

3. Pasta 2.11.2.1 do Acervo Barbosa Lessa.

232

mas também os gaúchos, italianos, alemães, poloneses, negros do Interior, inclusive os

defensores da música urbana (tradição Lupicínio, Túlio Piva, Plauto Cruz, etc.)”.715

Mas foi o

“vanerão”, ritmo binário para ser dançado em par, executado em “fandangos” tradicionalistas

e bailes populares em geral, que ganhou projeto específico de fomento. Elaborado por

Tarcísio Taborda, o plano previa a realização do I Festival do Vanerão, que mobilizaria,

através da Fundação MTG, as coordenadorias regionais do movimento tradicionalista e a

estrutura administrativa dos pólos culturais da SCDT. O objetivo do evento era promover, em

consonância com o III Plano Setorial do MEC, a cultura popular gauchesca - identificada por

Taborda, contraditoriamente, pelo vocábulo de língua inglesa “underground” - no seio da elite

rio-grandense, além de sua expansão para os estados de Santa Catarina, Paraná e eixo Rio-São

Paulo.716

As justificativas davam-se nos já conhecidos termos da “retórica da perda”, “num

período em que as manifestações artísticas e culturais demonstram relativa fragilidade em

nosso Estado”, e da crítica ao mimetismo estrangeiro, que saturava o mercado nacional com o

“iêiêiê, a discoteca e outros „sons‟ de importação em massa”. O fomento ao “popular”,

representado aqui pelos músicos que animavam bailões, programas radiofônicos, fandangos, e

que atingiam, inclusive, outros cantos do país, daria, mais uma vez, a resposta ao contexto de

“fragilidade” cultural do Rio Grande.

O lançamento do projeto ocorreria em março de 1982, durante a abertura do III

ACORDE – Encontro Anual da Associação de Compositores Regionalistas do Estado. Na

ocasião, o próprio secretário Barbosa Lessa ministraria palestra com o significativo título de

“Vanerão: símbolo máximo da alegria gaúcha”. A programação de lançamento incluiria a

“Noite do Vanerão” no Festival de Cinema de Gramado e palestra para estudantes porto-

alegrenses. Dessa forma, o diretor do DEC avaliava atingir três setores interdepentendes: o

“artista popular”, a elite artística reunida em Gramado e, em bom vocabulário tradicionalista,

a “magrinhagem” porto-alegrense.717

A documentação indica, entretanto, que o projeto

restringiu-se à organização de “fandangos” dispersos, sem a realização dos concursos

musicais e a almejada conexão entre os pólos culturais. Uma reportagem do Segundo Caderno

do jornal Zero Hora de maio de 1982 mostra que o baile de vanerão no Festival de Gramado

já acontecia há dois anos. Em junho seguinte, nova promoção levaria o ritmo aos salões do

Petrópolis Tênis Clube, de Porto Alegre, o que ia, portanto, ao encontro dos objetivos de

715

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. Confidencial. Secretaria de Cultura, Desporto e Turismo. Porto Alegre,

julho de 1981, p. 12. Pasta 2.11.1.1 do Acervo Barbosa Lessa. 716

TABORDA, Tarcísio. Projeto Vanerão. Departamento de Cultura da Secretaria de Cultura, Turismo e

Desporto do Estado do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 1981, p. 1. Pasta 2.11.2.1-2 do Acervo Barbosa Lessa. 717

Ibidem, p.

233

divulgação expostos no projeto original de Taborda, que então afirmava: “Queremos mostrar

que essa música é válida para qualquer ambiente, inclusive clubes de elite. Pretendemos

mostrar, também, que não é preciso fazer um fandango, com todos trajados a caráter, para

dançar na cidade a música rural”.718

Maria Eunice Maciel interpretou o projeto como uma tentativa de apropriação pelo

Estado do fenômeno social dos “bailões”, analisado em sua dissertação de mestrado. Tais

eventos aconteciam de forma crescente nas periferias das grandes cidades rio-grandenses

desde os anos 1970, como mostra a autora. Na década seguinte, ele atingiria grande parcela da

população urbana de baixa renda, que já constituía significativo “mercado suburbano de bens

culturais”. Tais bailes privilegiavam musicalmente manifestações da chamada “cultura

rústica”, segundo conceituação de Sérgio Micelli, que abordava temas rurais sob a ótica do

saudosismo e, dessa forma, fornecia uma maneira de reconstituição do mundo rural no espaço

urbano.719

Era o caso dos vanerões, chotes e rancheiras da música regionalista de um Gaúcho

da Fronteira ou de uma Berenice Azambuja, no estado, mas também do gênero sertanejo das

duplas “caipiras” Tonico e Tinoco e Milionário e José Rico, por exemplo, além de músicas de

“apelo popular”, como as de Sidney Magal e Gretchen, divulgadas em rede nacional por

programas de televisão de comunicadores como Chacrinha e Sílvio Santos. Para Maciel,

então, o Projeto Vanerão buscaria expandir socialmente o fenômeno, atingindo a classe média

e a elite urbana, mas visando, também, a sua depuração musical, já que tolerava, durante os

“vanerões”, somente ritmos gauchescos e tradicionalistas.720

Sua análise corrobora, assim,

minha hipótese sobre a perspectiva de conciliação da região e de atualização do gaúcho mítico

adotada pela SCDT.

Esta ingerência do Estado em fenômenos de massa de certa forma consolidados no Rio

Grande do Sul tinha, na Secretaria, (desastrosos) precedentes. Desde 1971, acontecia

anualmente, na cidade de Uruguaiana, a Califórnia da Canção Nativa, festival musical

patrocinado pelo CTG Sinuelo do Pago. O evento deu início à dissidência nativista do

movimento tradicionalista, como veremos no próximo capítulo, que conheceu grande

718

SEXTA-FEIRA NÃO perca o vanerão. Zero Hora. Segundo Caderno. Porto Alegre, 31/05/1982, p. 3. A

“Noite do Vanerão” do Teresópolis Tênis Clube contou com um público de cerca de 5.000 pessoas, segundo

Maria Eunice Maciel. MACIEL, Maria Eunice. Bailões, é Disto que o Povo Gosta: Análise de uma Prática

Cultural de Classes Populares no Rio Grande do Sul. Op. cit., p. 169. 719

Ibidem, p. 37-38. 720

“Quanto às músicas, todas faziam parte do conjunto de músicas regionais gauchescas, como ritmos típicos da

região, tais como polkas, xotes, rancheiras e, é claro, vanerões. Não foram apresentadas músicas sertanejas

originárias do centro do país ou as chamadas „músicas populares brasileiras‟. Esta restrição deveu-se,

prioritariamente, aos objetivos do projeto, „divulgar a música-massa do RGS‟, onde não haveria espaço para

outra forma musical”. Ibidem, p. 170.

234

expansão na década de 1980. A Divisão de Promoções da Secretaria era responsável, como

sabemos, pelo relacionamento do governo com a organização da Califórnia. Em 1980, pela

primeira vez, o Estado não colaborou financeiramente com a realização do evento; isto porque

a Comissão Organizadora não teria cedido ao assédio e à reivindicação de mais influência por

parte da SCDT, cortando, então, o vínculo com a gestão Amaral de Souza.721

Dois anos

depois, Barbosa Lessa respondia, em missiva, à reclamação do prefeito de Uruguaiana,

Antônio Carus, nas páginas do Correio do Povo, sobre a ausência de um representante da

Secretaria na abertura do evento.722

Nosso personagem afirmava que o fato se devia ao

mesmo motivo que suprimira o apoio financeiro à Califórnia: o embargo da Contadoria e

Auditoria Geral do Estado dado por falta de prestação de contas referente ao auxílio fornecido

à edição de 1977. Esclarecia que, por conta disso, o governo precisaria respeitar uma carência

de cinco anos para voltar a colaborar financeiramente com o evento. Todavia, deixava claro

que tinha autoridade legal para retomar o apoio sem a entrega da documentação exigida, mas

afirmava que só o faria após a regularização da situação. Dizia, ainda, que havia procurado os

organizadores do evento para resolver o assunto, mas sem obter retorno. Interessante notar

que Lessa reconhecia a ingerência política na organização do evento, pois assumia, ainda, ter

negado, indiretamente, o patrocínio de músicos de fora do Rio Grande, pela falta de

contrapartida pública dos locais de origem desses artistas.723

Terminava sua carta afirmando

que o governo tinha direito, em caso de financiamento, de interferir na constituição do júri:

“Achamos, isto sim, que ninguém é obrigado a pedir patrocínio do Estado. Mas, se alguém

pede e o Estado concede, o Estado torna-se co-partícipe, assume ônus de co-responsabilidade,

precisa repartir o sucesso e o insucesso, não deve ser mero espectador”.

Outra ação, de dimensões mais modestas, teve resultado positivo para os objetivos da

Secretaria, podendo ser citada como exemplo de sua política de harmonização entre “cultura

erudita”, “cultura popular” e “cultura de massas”, conforme as categorias de Barbosa Lessa,

sob o arrimo do gauchismo/tradicionalismo: o “Concurso de Literatura Oral”. Sendo realizado

em apenas três “noitadas” no mês de fevereiro de 1982, o evento considerava como “literatura

721

Ver SANTI, Álvaro. Do Partenon à Califórnia: O Nativismo Gaúcho e suas Origens. Porto Alegre: Ed. da

UFRGS, 2004, p. 63. 722

CALIFÓRNIA DA Canção Nativa tem várias inovações este ano. Correio do Povo. Porto Alegre, 09/12/1982,

s.p. Pasta 2.11.2.4. 723

“É verdade que, em fins de 79, na condição de diretor do Depto. De Cultura, recebia a incumbência de trocar

idéias com os promotores da Califórnia, dizendo-lhes que seria de nosso interesse não apenas importar artistas de

outros Estados ou de outros países, mas lutar para que artistas nossos também fossem patrocinados, em

intercâmbio, pela Argentina, São Paulo, Rio, etc. Certa ou errada, francamente externada, e freqüentemente

combatida, esta tem sido diretriz nossa, não „contra Uruguaiana‟ mas „a favor‟ de todos os municípios que

constituem o nosso Estado”. Correspondência de Barbosa Lessa ao Correio do Povo. Porto Alegre, 10/12/1981.

Pasta 2.11.2.4 do Acervo Barbosa Lessa.

235

oral” exclusivamente os “causos” gauchescos “típicos” da região de fronteira. A parceria entre

a Divisão de Promoções e o IGTF com o Município de São Gabriel e com a Cia. União de

Seguros Gerais, do Banrisul, inseria a atividade na Semana do Carreteiro, comemorada na

cidade. As narrativas orais foram avaliadas seguindo critérios como “originalidade”,

“segurança e clareza no desenrolar do causo”, “riqueza da linguagem regional com uso de

provérbios e comparações, sabedoria popular e conhecimento ambiental” e “expressividade

cênica”724

O júri, entretanto, não poderia ser composto – se tomarmos como parâmetro a

perspectiva “ecumênica” de Lessa – apenas por representantes de instituições de inspiração

claramente gauchesca, como a Fundação Cultural MTG. O setor artístico atuante nas

repartições públicas de nível estadual e municipal foi assim representado pelas indicações da

SCDT, do Conselho Estadual de Cultura e do Município de São Gabriel. Por fim, a “cultura

erudita” compareceu na composição da comissão julgadora através da participação de um

professor universitário de Letras, de um crítico literário e de um jornalista ligado à área de

cultura.725

Os dois projetos escrutinados acima (ainda que sua execução não tenha seguido todas

as ações previstas) e a promoção abordada por último indicam que a conciliação cultural

proposta pela SCDT se dava cada vez mais em sentido formal, quando bem sucedida, através

de estruturas setorialmente mais amplas, abrigando grupos do interior e setores supostamente

representativos das quatro culturas articuladoras da tipologia de Barbosa Lessa. Mas, no

tocante ao conteúdo elaborado, eram os signos renovados do gauchismo (tradicionalista) que

gozavam de certa prerrogativa. Por mais que o projeto de Lessa previsse a diversificação

cultural, os vínculos com o tradicionalismo acabavam por fazer com que o popular perseguido

se confundisse com o gauchesco. Tal fato acabaria por levantar suspeitas de agentes culturais

institucionalmente independentes e sem compromissos com a “identidade gaúcha”. Nesse

sentido, em setembro de 1982, o jornalista Ney Gastal726

atacava as “poucas” e

“exclusivistas” ações da SCDT. Em coluna no Correio do Povo, ele criticava a falta de apoio

do governo estadual ao concerto da Orquestra de Câmara de Moscou, realizado no Salão de

Atos da UFRGS, diferentemente do ocorrido nos outros nove estados visitados. A crítica dura

se estendia ao que considerava ausência de políticas culturais por parte do Estado e à falta de

ação pela conclusão do Teatro São Pedro:

724

LITERATURA ORAL. Correio do Povo. Porto Alegre, 29/01/1982, p. 15. Pasta 2.11.2.1 do Acervo Barbosa

Lessa. 725

Os nomes que constituíram o júri, entretanto, não foram divulgados na imprensa. Também não encontrei

documentos da SCDT que revelassem sua composição no Acervo Barbosa Lessa. 726

Ney Gastal era, na época, editor de cultura e crítico de cinema do Correio do Povo.

236

“Não temos teatro, não temos política cultural, não temos administração

cultural. O que antes era disfarçado agora é assumido e espalhado por dez

Estados, para que todos possam ver. Não sei se a culpa é do governador,

pessoalmente. Até acredito que não, e que ele, como tantos outros, „esteja

mal assessorado‟. Mas uma coisa é certa: quanto mais se esparrama o vazio,

quanto mais a incultura e o desleixo tomam conta de nosso outrora pródigo

contexto cultural, mais ele corre o risco de, no futuro, ter associado a este

quadro negro a frase: „Uma realização da Administração Amaral de Souza‟.

Assim, se ele não quiser ficar lembrado como o governador em cuja gestão

foi aviltada a cultura gaúcha, é bom que se movimente rápido: resta-lhe

pouquíssimo tempo para inverter o processo”.727

Barbosa Lessa usou as mesmas páginas do Correio do Povo para responder ao

jornalista. Explicava não ter recebido solicitação de auxílio por parte da organização e

comemorava a realização da apresentação mesmo sem a necessidade de tal apoio, o que

demonstraria o amadurecimento do público gaúcho. Em seguida, listava as ações culturais do

governo no momento:

“Sob uma aparente pasmaceira – que é simplesmente uma quebra de rotina

de programações antes sacramentadas –, o Estado vem fazendo o possível

para promover Cultura, mas em roupagens ou locais inusitados. Mário

Quintana recitando na Biblioteca Pública. Em São Paulo, lá esteve agora a

cantora Maria Rita Stumpf, vai inda a cantora Lori Kehler e, daqui a pouco, o

cantor popular Giba-Giba. No Rio de Janeiro, no Teatro João Caetano, agora

estiveram Jerônimo Jardim e outros ases da Música Popular Gaúcha, houve

uma exposição sobre o genial inventor Padre Landell de Moura, vai indo o

Governador Amaral de Souza para uma conferência sobre Garibaldi na

Academia Brasileira de Letras, estamos tentando levar nosso espetáculo

„Esperando Godot‟. Em Brasília, no Salão da Funarte, dia 15 abre a

exposição de 40 artistas plásticos gaúchos, e dia 18, no Teatro Nacional,

estréia um espetáculo popular com dançarinos e músicos de Erechim, Nova

Petrópolis, Caxias do Sul, Rio Grande, Alegrete e Porto Alegre. Embora sem

o compreensível prestígio internacional da Orquestra de Moscou, nossa gente

está tendo por primeira vez apoio para ir falar além de nossas divisas

estaduais. Pode haver uma diferente conceituação pessoal do que seja

Cultura, mas, em absoluto, não há pasmaceira nem, muito menos,

aviltamento”.728

727

GASTAL, Ney. Quem cuida da cultura gaúcha? Correio do Povo. Porto Alegre, 28/09,1982, p. 14. Pasta

2.11.2.1 do Acervo Barbosa Lessa. Gastal já havia criticado a SCDT em 1980, por ocasião do leilão dos objetos

do quarto do poeta Mário Quintana no Hotel Majestic. A Secretaria, que, como apontamos, visava o espaço para

a criação de uma casa de cultura, não participou do leilão: “Pergunta-se, então, se não seria tempo de recolocar a

Cultura ao lado da Educação, onde sem dúvida alguma estaria mais bem cuidada do que está agora”. GASTAL,

Ney. Nossa cultura ao abandono. Correio do Povo. Porto Alegre, 20/06/1980, p. 15. Pasta 2.11.2.1 do Acervo

Barbosa Lessa. 728

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. O que faz o Governo do Estado na promoção de nossa cultura. Correio do

Povo. Porto Alegre, 30/09/1982, s./p. Pasta 2.11.2.1 do Acervo Barbosa Lessa.

237

O retorno de Gastal veio em correspondência pessoal. Além de queixar-se do

endereçamento do texto de Lessa diretamente ao dono do jornal, Dr. Caldas Jr., o jornalista

reiterava, com palavras ainda mais duras, a crítica:

“Pedir apoio? Não solicitaram apoio da SCDT para a Orquestra de Moscou?

Mas por que iriam? O fato das pessoas nem sequer procurarem mais a

Secretaria não deveria ser divulgado por ti, e sim escondido. Realmente,

ninguém te procura mais para estas coisas, pois sabem, todos, ser tempo

perdido. Nove outros estados brasileiros estão errados. Só o Rio Grande está

certo. A cultura de Minas, do Rio, do Recife, de Belém, para citar alguns

exemplos, se esparrama por todo o Brasil sem que para isto seus habitantes

precisem privar-se de outras coisas. Aqui, agora, é só bombacha?”.729

Apesar desta avaliação, o Secretário preparou, nos últimos meses de gestão, um

documento destinado ao seu sucessor em que predicava a continuidade da distribuição

equilibrada das políticas do setor entre os quatro tipos de cultura definidos pelo texto do SIC.

Recomendava, ainda, a descentralização e a diversificação das atividades culturais, a atenção

à cultura das massas populares (incluindo o artesanato, então sob responsabilidade da

Secretaria do Trabalho e Ação Social), aos intelectuais e artistas, associações e sindicatos,

cidades interioranas e populações rurais.730

Quanto aos projetos da SCDT, destacava a

importância do fortalecimento da dinâmica dos pólos culturais, do prosseguimento das

atividades na Estância do Cristal no Parque Histórico General Bento Gonçalves e da

instalação da Casa de Cultura no recém adquirido prédio do antigo Hotel Majestic,

congregando “instituições ora desativadas ou pouco ativas, tais como o Museu Arqueológico

(Taquara) e o Museu Antropológico”.731

No ano seguinte, Lessa inaugurava o sonhado pólo cultural gaúcho em Brasília,

encerrando sua gestão à frente da SCDT732

. Para a solenidade, foi escolhida a “cultura” da

região Litoral Sul, representada pelo pólo da cidade de Rio Grande. Os rio-grandenses

presentes ao evento teriam se assustado ao assistir uma apresentação de candomblé, ao invés

de vaqueiros pilchados.733

Barbosa Lessa reafirmava, na ocasião, que o Rio Grande do Sul

não era um só: “tem doze faces!”. No balanço de sua gestão, nosso personagem declarava ter

preferido “enfatizar a cultura folk [grifo do autor], a cultura popular e a cultura de massa”,

729

Correspondência de Ney Gastal para Barbosa Lessa. Porto Alegre, 1º de outubro de 1982. Pasta 2.11.2.1 do

Acervo Barbosa Lessa. 730

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos et al. Cultura, Desporto e Turismo: dez problemas prioritários para a nova

administração. Secretaria da Cultura, Desporto e Turismo. Governo do Estado do Rio Grande do Sul. Porto

alegre, 31/01/1983, p. 7-8. 731

Ibidem, p. 8-9. 732

Os pólos gaúchos de São Paulo e do Rio de Janeiro foram inaugurado em 1982. 733

DIECKMANN, Lauro. Variações Gaúchas. Revista Visão. São Paulo, 07/03/1983, p. 63. Pasta 2.11.2.2(2) do

Acervo Barbosa Lessa.

238

apesar da “reação dos meios culturais rio-grandenses”: “E o projeto mais consistente dessa

política foi o de realizar o inventário da realidade regional”.734

Em março de 1983, o governador Amaral de Souza reunia seu secretariado pela última

vez antes do fim de seu mandato à frente do executivo estadual. Nosso personagem,

surpreendentemente, solicitou a dispensa do cargo em forma de poema, assim concluído:

“Peço, ao senhor, desculpar/meu modesto versejar/e dê licença aos Reis Magos/seguirem para

outros pagos/para onde Deus apontar./Também sigo o meu fadário.../Me desculpe,

solidário,/se eu errei nisto ou naquilo/e me dispense tranqüilo,/das funções de Secretário”.735

* * *

A passagem de Barbosa Lessa pelo governo estadual foi, portanto, marcada, desde sua

nomeação, por alguns atritos e polêmicas. Também é verdade que nosso personagem possuía

a simpatia de muitos grupos atuantes no setor cultural. Era caracterizado como alguém aberto

ao diálogo e a reconhecida competência técnica na área, ainda que insuficiente para a classe

política pedessista, legitimava sua escolha pelo amigo governador. Aos olhos de muitos,

justificava ainda o novo projeto cultural da SCDT. Para outros tantos, todavia, causava receio

ou desconfiança, devido à sua ligação orgânica com o movimento tradicionalista. Ainda

assim, Lessa buscou ampliar as bases da memória regional, incorporando setores

historicamente marginais a essa. No último evento oficial, a inauguração do pólo cultural de

Brasília, ele parecia dizer aos críticos que não, seu Rio Grande não era só bombachas! Assim

mesmo, com um pomposo ponto de exclamação, para que gaúchos e demais brasileiros não

tivessem dúvidas. A “região” foi, dessa forma, reconstruída, sob a tutela estatal, como um

composto heterogêneo de pequenos pedaços de pátria bastante idiossincráticos. Se ela era

diversa vertical e horizontalmente, caberia ao Estado sua pacificação. Isso implicava uma

reorientação simbólica, mas também orçamentária na área da cultura.

Contudo, na perseguição ao “popular”, dada pela almejada adequação das diretrizes

dos órgãos federais de cultura com a “tradição” local, o privilégio, ao menos simbólico, coube

ao “gauchesco”. Talvez o mais correto seja dizer que, na ânsia pela representação equânime e

734

Ibidem. 735

AMARAL REÚNE última vez todo o seu Secretariado. Zero Hora. Porto Alegre, 12/03, 1983, p. 14. Pasta

2.11.1.1 do Acervo Barbosa Lessa.

239

pela conciliação de todos os grupos étnicos e sociais identificados no Rio Grande, as ações

melhor sucedidas, salvo exceções, tocavam ao domínio mais próximo de sua trajetória

intelectual. Pois um projeto assim concebido não poderia ser senão carregado de tensões.

Tais tensões parecem acompanhar também a produção textual de nosso personagem ao

longo da década. Já em 1983, ele voltava a publicar em editoras comerciais. O espírito de

diversidade também imbuía o Barbosa Lessa escritor, que se aventurava em gêneros os mais

variados, como uma síntese historiográfica, biografias de figuras ilustres e emblemáticas para

a história local, uma “proposição antropológica” sobre a questão indígena nas Missões

Orientais, romances, crônicas, discursos memorialistas e, inclusive, textos para estórias em

quadrinhos e livros paradidáticos. A dualidade diversificação cultural/gauchismo atravessa

internamente a maioria destas narrativas, ora se resolvendo em favor de um pólo, ora de outro.

É o que veremos no próximo e último capítulo deste trabalho.

240

Capítulo VI – Dois lados da mesma moeda?: a construção da “região” através dos

discursos historiográfico e memorialista

Depois de uma série de textos redigidos em função de sua atuação na SCDT, Barbosa

Lessa voltou ao mercado editorial, em 1983, com obras encomendadas, como um relatório

histórico dos cem anos de atividade da Livraria do Globo e uma adaptação da canção

“Negrinho do Pastoreio” para um livro brinde da empresa Riocell Celulose; mas também com

resultados de suas pesquisas sobre a história do Rio Grande do Sul e de algumas de suas

figuras consideradas marcantes, como uma pequena biografia do médico gaúcho Severino de

Sá Brito, patrocinada pela Academia Rio-Grandense de Letras736

. Outras duas biografias

foram encomendadas pela Rede Brasil Sul de Comunicações e publicadas na Coleção “Esses

Gaúchos”, alusiva aos 150 anos da Revolução Farroupilha, em 1985: a do líder farrapo

Domingos José de Almeida737

e a do presidente do Estado Antônio Augusto Borges de

Medeiros.738

A literatura de ficção voltaria com República das Carretas739

, um romance de

fundo histórico sobre a Revolução Farroupilha que foi adaptado pelo próprio Lessa para

seriado da Rede Bandeirantes de Televisão. A partir de 1985, nosso autor passou a se dedicar

a textos voltados ao público infanto-juvenil, ligados sempre a assuntos históricos e regionais,

como História das Missões e História dos Índios, daquele ano, e O Tesouro no Arroio do

Conde, de 1986, ou, ainda, a estórias em quadrinhos, como O Continente de São Pedro, com

arte de Flávio Colin, de 1987.740

Mas os textos de maior fôlego foram mesmo produzidos na chave da escrita da

História: São Miguel da Humanidade: uma proposição antropológica, Rio Grande do Sul:

prazer em conhecê-lo, ambos de 1984 e, de menor tamanho, mas não complexidade, o livro

de bolso Nativismo: Um fenômeno social gaúcho, do ano seguinte. O primeiro, como o título

indica, foi concebido pelo autor como uma contribuição antropológica à compreensão da

736

Trata-se da publicação de conferência proferida por Barbosa Lessa, na Sessão Extraordinária da ARL

realizada na cidade de Alegrete, em outubro de 1982. Ver BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. Vida e obra de

Severino de Sá Brito. Porto Alegre: Academia Rio-Grandense de Letras, 1983, 32. 737

Idem. Domingos José de Almeida. Porto Alegre: Tchê!, RBS, 1985, 102. 738

Idem. Borges de Medeiros. Porto Alegre: Tchê!, RBS, 1985, 106 p. 739

Ver Idem. República das Carretas: o romance da Guerra dos Farrapos. Porto Alegre: Tchê!, 1986, 162 p. 740

Idem. História das Missões. Porto Alegre: Tchê!, 1985, 23 p.; Idem. Histórias dos Índios. Porto Alegre:

Tchê!, 1985, 24 p.; Idem. O tesouro do Arroio do Conde. Porto Alegre: Tchê!, 1986, 24 p.; Idem. O continente

de São Pedro. Porto Alegre: Ipiranga, 1987, 88 p.

241

história da missão jesuítica de São Miguel. Nele, Lessa busca dissecar a cultura guarani, suas

crenças, seus mitos e a forma como seu sistema de pensamento condicionou o contato com o

conquistador branco e sua religião.741

A questão indígena no Rio Grande do Sul passa, então,

a ocupar um espaço tão grande em seu projeto quanto a figura do gaúcho, mítica ou histórica,

como indica também alguns dos títulos infanto-juvenis citados acima. Em 1993, Lessa

publicaria ainda um compêndio de crônicas intitulado Era de Aré que, no conjunto, deveria

narrar a “evolução mitológica e histórica da gente karaí-guarani”.742

Tal preocupação pode ser interpretada como desdobramento da experiência como

folclorista e da perspectiva inclusiva adotada no tocante à memória regional, tanto na

literatura dos anos 1950, quanto no projeto da SCDT, como vimos no terceiro e no quinto

capítulos, respectivamente. Mas a aproximação da Secretaria com o MTG, bem como a

reaproximação do escritor com o tradicionalismo organizado, levara suas políticas de

diversificação e pacificação da “cultura regional” ao encontro do gauchismo também

conciliado, que abrigava, nos anos 1970-80, tanto o registro folk quanto o militar de memória

oficial. Parece-me, então, que uma espécie de tensão entre um Barbosa Lessa folclorista, de

perspectiva agregadora, mas contestatória, e um Barbosa Lessa historiador, tradicional e

tradicionalista, conciliador e, em certa medida, “lusitanista”, acompanhará seus escritos nos

da década de 1980. Por conta disso, optei por analisar neste capítulo, em duas seções distintas,

o segundo e o terceiro livros acima indicados, pois, em minha avaliação, cada um deles

denota um dos pólos desta tensão, mas ambos permitem avaliar melhor o problema principal

deste trabalho, qual seja, dar conta do processo de construção e atualização das “tradições

gaúchas” a partir do entrecruzamento do projeto individual de Barbosa Lessa com o projeto

coletivo do movimento tradicionalista.

Antes de começarmos o exame pretendido, vale avisar o leitor que, se Rio Grande do

Sul: prazer em conhecê-lo, pode ser considerado uma obra historiográfica, devido às suas

741

Dessa forma, encontramos na obra inclusive certa valorização romântica da cultura indígena que remete, em

alguma medida, ao mito do bom selvagem de Rousseau. Por exemplo: “Construir uma igrejinha de pau a pique,

com a ajuda dos índios, era tarefa fácil e rápida. Padres Cristóbal e Paulo sabiam que o difícil, mesmo, viria

depois. Ensinar a doutrina cristã para gente que, não compreendendo a razão do homem se sentir como centro da

natureza, tinha uma visão cósmica onde homem, pássaro, serpente, árvore, chuva, rio e terra eram tudo a mesma

coisa. Pedir que cobrissem o sexo e escondessem sob vestes o corpo, quando não viam indecência nos demais

bichos que andavam nus pelo mundo. Insistir para que trabalhassem e produzissem além do estritamente

necessário para a subsistência coletiva, quando a religião deles condenava qualquer atentado inútil contra a

natureza. Fazê-los entender que havia um Rei, na Espanha, um vice-rei, em Lima, um Governador, em Buenos

Aires, e que as „Leyes de Indias‟ exigiam a organização de um Cabildo municipal para administrar, legislar,

julgar. Mas administrar o que, se nem sequer a terra era de propriedade individual? Legislar o que, se a tradição

se transmitia claramente de uma geração a outra nas rodas ao pé do fogo? E julgar o que, se não havia o roubo,

nem a ambição, nem o egoísmo?”. BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. São Miguel da Humanidade: uma

proposição antropológica. Porto Alegre: SAMRIG, 1984, p. 14. 742

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. A era de Aré: raízes do Cone Sul. São Paulo: Globo, 1993, p. 12.

242

preocupações e objetivos, metodologia, trabalho com fontes primárias, diálogo com a

bibliografia historiográfica precedente e abordagem do material; Nativismo: um fenômeno

social gaúcho deve ser lido como um texto de memória. Ainda que pretenda relatar a história

do gauchismo em suas variadas vertentes desde o século XIX, grande parte de sua narrativa se

concentra no depoimento pessoal de um militante tradicionalista – e se revela, inclusive,

importante fonte para a compreensão do movimento. Mesmo quando nosso autor trata de

experiências “nativistas” anteriores, o texto é carregado de emoção e sensibilidade para com

os “pioneiros” da batalha telúrica de louvor ao Rio Grande. Há, assim, diferenças

significativas entre a historiografia de Barbosa Lessa e seu discurso propriamente

memorialista. A meu ver, como desenvolverei abaixo, a opção pela forma ou gênero

discursivo condiciona os enunciados possíveis743

, o que aponta também para uma ou outra das

“facetas” do personagem acima descritas. Por último, gostaria de esclarecer que o objetivo de

ambas as leituras é dar prosseguimento à questão colocada na análise do projeto da SCDT:

identificar as representações de “Rio Grande do Sul” elaboradas por Lessa; mas, agora, na

escrita da História e da memória.

6.1 – A conquista do “País da Solidão”: a invenção historiográfica do Rio Grande do Sul

luso e brasileiro

“Nada mais internacional do que a formação das identidades nacionais”, nos diz Anne-

Marie Thiesse na abertura de seu livro sobre o tema744

. Através do caso do Rio Grande do Sul,

poderíamos argumentar que não há nada mais nacional do que construção das identidades

regionais. A “nação”, como sabemos, é um artefato social nascido no século XIX, com o

desenvolvimento e a expansão do capitalismo industrial e das experiências liberais de

743

Vale lembrar, nesse sentido, os apontamentos de Mikhail Bakthin sobre as relações entre as esferas da

atividade humana e os usos da língua. Esta utilização se dá na forma de “enunciados (orais e escritos), concretos

e únicos, que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade humana”. Para o autor, o enunciado

“reflete as condições específicas e a finalidade de cada uma dessas esferas, não só por seu conteúdo (temático) e

por seu estilo verbal, ou seja, pela seleção operada nos recursos da língua – recursos lexicais, fraseológicos e

gramaticais –, mas também, e sobretudo, por sua construção composicional”. Dessa forma, estes três elementos

se articulam no “todo” do enunciado, marcado ainda pela esfera da comunicação na qual está inserido. Isso quer

dizer que cada esfera da comunicação elabora seus “tipos relativamente estáveis de enunciados”, denominados

“gêneros do discurso”. BAKTHIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In ______. Estética da criação verbal. São

Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 279. 744

THIESSE, Anne-Marie. La création des identités nationales: Europe XVIIIe – XXe siècle. Paris: Éditions du

Seuil, 1999, p. 11.

243

democratização política. Para Benedict Anderson, a queda dos antigos sistemas culturais,

como o reino dinástico e a comunidade religiosa, permitiu que nos imaginássemos enquanto

nações politicamente limitadas e, ao mesmo tempo, soberanas.745

O período final daquele

século e o início do próximo (1840-1914) é responsável, segundo Eric Hobsbawm, pela

transformação do conteúdo ideológico da “nação” e pela sua configuração compósita, que

uniu elementos políticos e novos marcos lingüísticos e étnicos.746

Conforme Anne-Marie

Thiesse, a concepção romântica de nação, de vertente alemã, aliou-se, assim, à acepção

política, ligada aos ideais da Revolução Francesa e do Iluminismo, para construir, tendo por

base mais de um século de trocas intelectuais “internacionais”, um modelo único de produção

da diferença, através da seguinte listra prescritiva de demarcadores da identidade coletiva:

ancestrais fundadores, uma história que estabeleça a continuidade da nação, uma galeria de

heróis, uma língua, monumentos culturais e históricos, lugares de memória, uma paisagem

típica, um folclore e, ainda, aquilo que a autora chama de “identificações pitorescas” (modo

de vestir, gastronomia, animal emblemático etc.).747

Este mesmo modelo, em grande medida, foi também responsável pela delimitação das

regiões. Aqueles espaços que, pelas vicissitudes da história, não ascenderam à categoria de

nação poderiam distinguir-se do todo e reivindicar certa autonomia administrativa, econômica

e cultural de acordo com os elementos deste mesmo “check-list” identitário, atualizados,

evidentemente, conforme as novas exigências de seu tempo.748

Num país de proporções

gigantescas como o Brasil, a constante elaboração e ressemantização da nação acaba passando

745

Aqui me refiro à sua conceituação já clássica de “nação” como “comunidade imaginada”. Para o autor, a

substituição dos antigos sistemas culturais pelos nacionalismos como estruturas de referência só foi possível

graças, de um lado, às transformações nos modos de apreender o mundo e, de outro, à expansão do capitalismo.

Primeiro, devido ao surgimento da noção de simultaneidade, marcada pela “coincidência temporal” e “medida

pelo relógio e pelo calendário”. Segundo, porque imaginar-se como nação exigiu das diversas sociedades

determinado nível de desenvolvimento econômico e tecnológico, prefigurando o que o Anderson denominou

“capitalismo tipográfico”: a invenção da imprensa e a organização capitalista dos produtos culturais, aliadas ao

aparecimento do vernáculo administrativo, da alfabetização em massa e da formação de um mercado consumidor

letrado. ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do

nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p 54. 746

Quatro aspectos dessa nova configuração chamam a atenção de Hobsbawm: primeiro, a adoção do

nacionalismo e do patriotismo como ideologia também pela direita política; segundo, a pressuposição de que o

direito de autodeterminação nacional aplicava-se não somente às unidades que demonstrassem viabilidade

econômica, política e cultural, mas a toda comunidade que reivindicasse o título de nação; terceiro, a tendência a

admitir que tal “autodeterminação nacional” corresponderia à plena independência do Estado; quarto, a nova

propensão em definir uma nação em termos étnicos e de linguagem. HOBSBAWM, Eric. A Era dos Impérios:

1875-1914. 10a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006, p. 206.

747 THIESSE, Anne Marie. Ficções criadoras: as identidades nacionais. Anos 90, Porto Alegre, n. 15, 2001/2002,

p. 8-9. 748

Como Letícia Nedel aponta, o regionalismo “fundamenta a legitimidade do caráter regional por ele inventado

(e inventariado) utilizando-se de estratégias discursivas comuns ao nacionalismo, em uma lógica ao mesmo

tempo integradora e excludente de práticas, „traços culturais‟ ou personagens sociais específicos”. NEDEL,

Letícia Borges. Paisagens da Província: o regionalismo sul-rio-grandense e o Museu Julio de Castilhos nos anos

cinqüenta. Op. cit., p. 39.

244

pela afirmação das diferenças regionais.749

O discurso histórico, nesse sentido, cumpre

importante papel, pois constrói a nação e a região, bem como suas aproximações e

distanciamentos, não somente através do estabelecimento de um passado-presente legitimador

da continuidade, mas também pelo seu poder de “autenticar” os signos da identidade coletiva

inseridos na linha evolutiva desenhada. Nesta seção, analisarei, então, como a escrita da

História é utilizada por Barbosa Lessa para proceder a “naturalização dos atributos”

associados ao gaúcho mítico e ao estado750

, valendo-me do “check-list” proposto por Thiesse

como grade de leitura do livro Rio Grande do Sul: prazer em conhecê-lo.

“Como surgiu o Rio Grande”, diz a inscrição em sua capa. É essa a história que

Barbosa Lessa pretende nos contar: como, nos primeiros três séculos de colonização européia,

construiu-se uma região brasileira diferenciada, com seus símbolos, hábitos e costumes tão

peculiares. Ou, poderíamos dizer também, como lentamente nos tornamos “gaúchos”. As

orelhas do livro trazem a seguinte apresentação (não assinada):

“Faz de conta que você está sendo apresentado ao Sr. RS pela primeira vez.

Logo se percebe que ele ainda é muito jovem, vigoroso, expansivo e de boa

saúde. Esse inesperado acesso de espirros pode explicar-se pelo tempo, que

hoje está muito instável. Puxemos assunto, indagando sobre os pais e avós,

sobre a família dele. Provavelmente ele queira desconversar sobre tais

obscuros dias de nascimento e infância, mas insista, que vale a pena ouvir a

história. Consta que nasceu de uma índia guarani. O pai, um espanhol

espadachim, preferiu colher prata em Potosi e se sumiu. Aí um bondoso

português se condoeu do desguaritado guri e resolveu tomar conta e adotar.

Volta o outro pai e começa uma briga sem fim. À medida que a amizade for

se solidificando, você descobrirá nele uma série de manias. Mania de comer

carne. Andar a cavalo. Sentar-se à beira do fogo em absoluto relax de fazer

inveja a um hindu. Tomar chimarrão em sorvos de democracia. E enfeitar seu

cavalo com prata – metal que nunca houve por aqui! Seus cantares, suas

comidas, seus lazeres. Suas esperanças e desesperanças. Seus amores.

Perceberá que, no fundo, RS é um bom rapaz. Digno da gente ajudar em tudo

o que for possível. Ele, por certo, agradecerá. E você nunca se arrependerá de

tê-lo conhecido”.

A divertida brincadeira com o “Sr. RS” é reveladora de muitos dos signos comuns do

gauchismo: a jovialidade e a força do estado e, por conseqüência, de seu habitante; o clima

difícil; o gosto pela carne sempre em abundância; a simbiose com o cavalo e os cuidados e

caprichos com seu amigo; o pouso à beira do fogo de chão; o trago ritual do chimarrão e a

749

O romantismo literário do século XIX é apontado por Alexandre Lazzari como a origem da forma renitente de

representar a nação pela diversidade regional. O autor desenvolve, em sua tese, a análise da elaboração, neste

período, dos “artefatos culturais” apropriados, mais tarde, pelo regionalismo gaúcho. LAZZARI, Alexandre. Op.

cit. 750

NEDEL, Letícia Borges. Um Passado Novo para uma História em Crise: Regionalismo e Folcloristas no Rio

Grande do Sul. Op. cit., p. 15.

245

“democracia” da estância.751

Realmente, não encontramos discordâncias significativas quanto

a estes elementos no texto de Barbosa Lessa. Muitos deles são pontos nodais da identidade

regional do Rio Grande do Sul reafirmados constantemente ao longo do livro. O mais

interessante, no entanto, é a filiação apresentada: “Sr. RS” é um filho de guaranis e espanhóis

bondosamente acolhido pela casa lusitana. Até que ponto essa interpretação é “comprada” por

nosso autor? Lembramos que a produção historiográfica tradicional negou veementemente

qualquer laço de dependência entre a formação rio-grandense e a sociedade platina. As duas

matrizes interpretativas correntes, desde o final do século XIX, na escrita da história do Rio

Grande do Sul, que Ieda Guttfreind denominou “lusitana” e “platina”, e que Barbosa Lessa

chamou, como vimos no terceiro capítulo, de “lusitanófila” e “hispanófila”, afirmavam sua

brasilidade através da origem paulista e açoriana – ainda que a segunda reconhecesse a

existência de trocas (materiais e simbólicas) entre o estado e os países do Prata. Um Rio

Grande castelhano (ainda que inicialmente) caminha, portanto, na contramão das

interpretações nacionalistas correntes.752

Mas antes do Rio Grande do Sul, nosso autor desenha o “País da Solidão”. Quando

os europeus aqui chegaram, encontraram distâncias e barreiras. A gente era pouca: índios

carijós vivendo dos frutos do mar no litoral norte, ibiraiaras coletores e caçadores nos campos

de cima da serra, guainás caçadores no alto do rio Uruguai, güenoas de hábeis boleadeiras

predando veados e avestruzes nas campinas de escasso arvoredo. Todos nômades, "não havia

o que os fizesse sentar pouso”. Mas, nas férteis várzeas e margens dos rios Jacuí, Ijuí e médio

Uruguai, viviam também grupos de guaranis agricultores. E com os guaranis, surge a primeira

referência de Lessa a um dos maiores símbolos da identidade regional, como vimos no

Capítulo III, o chimarrão: “Esses também coletavam as dádivas da natureza, especialmente

folhas de erva-mate, que, desidratadas e trituradas, resultavam numa bebida tônica preventiva

do cansaço”.753

Tais tribos, segundo nosso escritor, acolhiam de bom grado quem quisesse se

abrigar sob sua cultura, como o fizeram com os índios “tapes”. Por conta disto, a terra dos

guaranis seria conhecida pelos conquistadores espanhóis como o “País do Tape”.

751

Segundo Ieda Gutfreind, a idealização das relações de trabalho na estância (grande fazenda do século XIX)

como “democráticas” – onde peão e patrão, servidor e proprietário, viveriam em harmonia e igualdade

econômica, inclusive – tem seu primeiro momento na História Popular do Rio Grande do Sul (1882), de Alcides

Lima. A historiografia tradicional do começo do século XX seguiria e desenvolveria o mito da democracia rural

no Estado, como vimos pelas críticas acadêmicas dos anos 1980. GUTFREIND, Ieda. Op. cit. 752

Para a autora: “As matrizes historiográficas lusitana e platina apresentaram polêmicas entre si, extrapolando o

ambiente do Instituto [Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, fundado em 1920] e chegando ao grande

público. No entanto, apesar dessas diferenças, ambas defenderam, no após-1920, uma história político-ideológica

de alto teor nacionalista”. Ibidem, p. 25. 753

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. Rio Grande do Sul: prazer em conhecê-lo. 2a ed. Porto Alegre, Rio de

Janeiro: Globo, 1985, p. 1.

246

Temos aqui mais do que uma referência ao espaço onde o Rio Grande do Sul se

construiria; encontramos uma de suas fontes culturais. A contribuição guarani é reconhecida

em diversos momentos pelo autor, mas com certa dubiedade, como veremos. Para Barbosa

Lessa, outra característica, esta física, marcaria também a história da região e de sua gente,

pela "introspecção forçada dos grandes isolamentos”. O País do Tape era dominado pela

solidão: “O país dos horizontes sem-fim, das silenciosas lonjuras, dos gritos sem

ressonância”.754

A presença da geografia como elemento explicativo da formação rio-

grandense é constante na historiografia tradicional. Segundo Gutfreind, os primeiros estudos

históricos do século XIX – Anais da Província de São Pedro, de José Feliciano Fernandes

Pinheiro (futuro Visconde de São Leopoldo), de 1819, e Memórias econômo-políticas sobre a

administração pública no Brasil, de Antônio José Gonçalves Chaves, publicada em dois

volumes, respectivamente em 1822 e 1823 – forneceram os pontos de vista essenciais sobre a

questão e, desta forma, uma perspectiva a ser adotada: “detalhada descrição geográfica,

elogios ao clima, às belezas, aos recursos materiais e às potencialidades da área”.755

Ruben

George Oliven também ressalta a utilização da geografia do estado para justificar suas

especificidades:

“A natureza, ao mesmo tempo que teria premiado os gaúchos com um espaço

físico dos mais favorecidos e benéficos às atividades humanas, os teria

contemplado com uma posição de difícil acesso, ilhando-os no Continente de

São Pedro, e fazendo com que este ficasse isolado por dois séculos do

Brasil”.756

No texto de Barbosa Lessa, parte dessa chave de leitura é bem evidente:

“Quem quer que descesse por terra da donataria de São Vicente ou da

donataria de Santo Amaro, e ultrapassasse a enseada de Laguna, ao entrar no

atual Rio Grande do Sul como que entrava em um bolsão geográfico, em uma

„ilha‟ cercada de obstáculos, em um verdadeiro e imenso „curral‟ formado

pela Natureza”.757

Contudo, nosso autor não tem tantas certezas quanto ao caráter benéfico da natureza

às atividades humanas na região. Ao contrário, à conquista da solidão se entreporiam diversos

obstáculos naturais: “A esse bolsão geográfico os próprios carijós pouco chegavam,

desencorajados por um chão extremamente arenoso e varrido por ventos poeirentos”.758

A

754

Ibidem, p. 2. 755

GUTFREIND, Ieda. Op. cit., p. 11. 756

OLIVEN, Ruben George. Op. cit., p. 62. 757

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. Op. cit., p. 27. 758

Ibidem.

247

história do Rio Grande do Sul se configura assim, na narrativa de Barbosa Lessa, como um

lento processo de conquista e ocupação das distâncias.

Mas voltemos à questão da “paternidade”. O Tratado de Tordesilhas concedia à

Espanha o grande quinhão das novas terras. Segundo Barbosa Lessa, tendo ciência dessa

condição, Portugal jamais tomaria a iniciativa de promover a demarcação ou assentar as torres

divisórias do Novo Mundo. A história do Rio Grande do Sul passou, então, inevitavelmente,

pela história da América Hispânica; em específico, pela colonização do estuário do Prata e

adjacências. Nasceram, com a ocupação européia da região, dois outros símbolos da futura

identidade gaúcha: a exploração do gado e o uso do cavalo. Espanhóis vindo das Astúrias

teriam sido os responsáveis pela introdução desses animais no Continente. Considerando um

contra-senso o uso do braço humano para o transporte de bens, procuraram campos propícios

para o pastoreio: “Foram finalmente encontrados, com extraordinário verdor, abaixo de Salta

e a leste de Tucumã – vale dizer, na borda oeste do pampa argentino. Ali se introduziram

éguas, jumentos, cavalos, bois, ovelhas, tudo o que pudesse aproveitar um pastiçal tão

rico”.759

A disseminação dos animais fora rápida, chegando à borda leste do rio Paraná. Numa

última etapa, eles foram levados, a mando do Governador Hernandarias de Saavedra, para a

desabitada “Banda Charrua” (atual República do Uruguai), a fim de que ali se reproduzissem

e permitissem suprir de carne as gentes de Buenos Aires. Enfim, o rebento parece ser

castelhano.

No entanto, para Barbosa Lessa, Portugal esteve presente, em alguma medida, desde

a concepção do nascituro. O desinteresse português fora, na verdade, fruto da dificuldade em

estabelecer seus limites na região. O próprio nome registrado pela cartografia contemporânea

teria sido contribuição tanto hispânica quanto lusitana, segundo nosso autor. Em 1530,

chegaram na saída da laguna dos Patos os exploradores Martim Afonso de Souza e seu irmão

Pero. Julgando tratar-se de um rio e em homenagem ao irmão, Martin Afonso batizou-o como

rio de São Pedro. Olhando a entrada da laguna, de longe, os espanhóis também pensaram ser

um rio e deram-lhe o nome de Grande. Assim: “...ficaram aparecendo os dois nomes. O

português, São Pedro, e o espanhol, Rio Grande. Quando não, São Pedro do Rio Grande ou

Rio Grande de São Pedro”.760

Já a origem indígena acaba sendo, no decorrer do livro, relativizada, pois, para o

autor, ao contrário das cidades incásticas, “aqui havia apenas palhoças de índios nus em

atrasadíssimo estágio da pedra polida, sem nenhuma vontade de produzir além do simples

759

Ibidem, p. 9. 760

Ibidem, p. 14.

248

nível de subsistência e jamais entendendo por que motivo alguém deveria trabalhar em

benefício de outrem”.761

O ranço evolucionista demonstrado por Lessa não parece combinar

com outras passagens, como aquela abordada acima, em que a cultura indígena é, inclusive,

tratada como matriz da história rio-grandense, além de destoar completamente de sua postura

folclorista de diversificação da cultura regional e inclusão dos grupos sociais e étnicos

marginalizados na memória histórica, e da atenção por ele dada, já naquele ano, à questão

indígena com a publicação de São Miguel da Humanidade. Todavia, tal assertiva justifica a

primazia que será dada no texto a uma “terceira classe de homens” que surgia da interação

entre três culturas (indígena, hispânica e lusa) e que, com o passar do tempo, formaria o povo

do Rio Grande do Sul: o gaudério, gauche, ou, mais tarde, gaúcho. Sua procedência é

marginal, como narra Barbosa Lessa:

“À frente do estagnado porto de Buenos Aires, do outro lado do estuário, na

banda oriental do rio Uruguai ou Banda dos Charruas – onde os gados

introduzidos pelo Governador Hernandarias iam gradativamente se

reproduzindo – não havia ainda nenhum estabelecimento fixo espanhol.

Todavia, a introdução do cavalo começava a mudar os hábitos das tribos

andarilhas. A galope, as boleadeiras já deixavam de caçar avestruzes e

veados para caçar gordos bois „chimarrões‟ (selvagens) nos „campos

realengos‟ (do patrimônio do Rei). Também alguns espanhóis dos povoados

do rio Paraná começam a trilhar, aventurosamente, aquelas planícies sem-fim

onde a subsistência se garante pela carne fácil. Nem „accioneros‟ nem

„faeneros‟, espontaneamente surgia uma terceira classe de homens, à margem

do rei e da lei. Muito pouco numerosos, ainda, mas já com seu lugarzinho

assegurado na História do futuro. Do ajuntamento de brancos com as índias

vão nascendo piás (che piá, meu coração), que ao crescerem serão chinas e

chirus (che iru, meu amigo). Quando eventualmente contratados pelos

accioneros ou faeneros para algum serviço de caça ou coureada de bois,

ganham um nome: „changadores‟. Mas preferem viver sem fazer nada,

cavalgando sem rumo, andarengos sem casa mas com a carne garantida para

o espeto. Pouco se preocupam com o futuro, ou quem sabe nem tenham uma

noção sobre o amanhã. Por causa desse viver de gáudio, de despreocupação,

de gozo, ganham outro nome: „gaudérios‟”.762

Os “filhos da solidão”, cantados pela literatura de Barbosa Lessa, como vimos nos

Capítulo II e III, num futuro não muito distante, serão também os seus senhores.

Quanto aos portugueses, aos poucos chegam às paragens sulinas por vias terrestres

ou descendo o litoral. Com a unificação ibérica de 1580, não precisam mais respeitar a velha

linha de Tordesilhas: “os moradores do litoral vicentista já descem pela praia até além da ilha

de Santa Catarina e vão caçar índios carijós e vendê-los para os plantadores de cana da

761

Ibidem, p. 13. 762

Ibidem, p.17.

249

Capitania Real do Rio de Janeiro”. De outro lado, “os moradores da vila espanhola [existente

em] de São Paulo de Piratiningua vão igualmente caçar índios guaranis nas cabeceiras do rio

Tietê ou do rio Paranapanema (já em área além-Tordesilhas) para identicamente vendê-los, à

razão de 100$000 réis por „peça‟”.763

Em meio a esta confusão, a Companhia de Jesus,

centralizada na residência de Córdoba de Tucumã, inicia o processo de conquista espiritual

dos indígenas, estabelecendo paróquias fixas nas quais seriam agrupadas as aldeias nativas

aos moldes dos municípios espanhóis.

Neste ponto, três grupos de “ancestrais fundadores” que delineariam o passado

comum dos atuais habitantes do Rio Grande do Sul já nos foram apresentados – índios

(principalmente guaranis), espanhóis e portugueses, além de sua mescla “gaudéria”. A

paisagem, como vimos, é uma moldura anterior e, por isso mesmo, condicionante deste

passado e da sociedade dele derivada. Mais interessante é notar como todos os principais

símbolos da identidade regional foram também introduzidos: a exploração do gado, o animal

emblemático (cavalo) e a bebida típica (chimarrão). O tabuleiro fora montado contendo, desde

a origem, as principais peças do jogo identitário. Trata-se, então, de acompanhar seus

movimentos e sua evolução, acrescentando, vez por outra, uma figura complementar.

Todavia, o legado indígena ainda é posto em questão. Barbosa Lessa aponta que

grande parte dos “sul-rio-grandeses” das missões guaraníticas situadas no território atual do

estado foi forçada a deixar a região devido aos ataques bandeirantes dos hispano-lusitanos de

Piratininga. Vão-se as gentes, ficam os gados. Um novo capítulo da história agrária que

condicionaria a construção do Rio Grande do Sul é desenhado (lembrando em muito o

episódio da implantação e disseminação de gadaria na pampa pelos espanhóis das Astúrias,

mas com diferente implicação, conforme veremos abaixo): a formação das Vacarias Del Mar.

Trata-se de um grande rebanho que se tornaria a principal fonte de exploração econômica do

estado: “a apressada fuga dos tapes viria a gerar, com o correr do tempo, a maior riqueza do

Rio Grande do Sul, qual seja uma multidão de bois, aqui deixados e que se multiplicaram nas

pastagens ao sul do Jacuí até a lagoa dos Patos, lagoa Mirim e pontas do rio Negro”.764

São três os desdobramentos possíveis deste marco: a) a fixação do vínculo quase

eterno do estado com a exploração do gado; b) o deslizamento da responsabilidade pela

763

Ibidem, p. 21. 764

Ibidem, p. 33. Cabe salientar que a historiografia acadêmica contemporânea também estabelece o episódio

como marco fundador do Rio Grande do Sul. Vejamos Sandra Jatahy Pesavento. Segundo a autora, após o

último combate entre bandeirantes paulistas e índios missioneiros em 1640, os jesuítas “retiraram-se para a outra

margem do Uruguai, levando os índios mas deixando o gado que criavam nas reduções”. Estes rebanhos,

abandonados no pampa e reproduzidos livremente, constituiriam “o fundamento econômico básico de

apropriação da terra gaúcha: a preia do gado xucro”. PESAVENTO, S. J. História do Rio Grande do Sul. Op.

cit., p. 9.

250

introdução dos animais no território em mais de um século, do envio deliberado do

governador de Buenos Aires para o abandono das reses pelos guaranis fugidios; em

conseqüência, deslocam-se, também, os hábitos e costumes gerados pela atividade pastoril a

um período em que a presença lusitana já se fazia marcante, enquanto a espanhola tendia a

desaparecer; c) a relativização da participação do elemento indígena na formação sul-rio-

grandense. Todavia, a terceira assertiva, como dito, aparece de maneira bastante dúbia na

escrita de Barbosa Lessa. O próprio gado xucro desponta, nela, enquanto motivo para um

pacto entre os minuanos (grupo também identificado com os “gaudérios”), um povo autóctone

nômade que teria resistido à conquista espiritual hispânica empreendida pelos jesuítas, e os

exploradores portugueses: “Critóvão Pereira, aproveitando-se do ódio dos minuanos à

Espanha em razão da recente hecatombe do rio Ji [batalha que terminara com a Confederação

dos Güenoas em 1702, dizimando cerca de dois mil indígenas] firma aliança com estes

nômades, aplicando-os na caça e coureada dos gados chimarrões”.765

Décadas depois, no

antigo entreposto português do Rio da Prata, a Colônia do Santíssimo Sacramento, forma-se

nova aliança para reocupar a praça que estava até então em mãos espanholas:

“Mas desta vez Portugal traz, além de soldados e canhões, várias famílias de

colonos do arquipélago de Açores, com seus filhos, suas tradições e suas

sementes de trigo. Vem com a determinação de ficar. Reforça as muralhas da

cidadela, reata as relações com os índios nômades e vê nos próprios

gaudérios um reforço guerrilheiro para qualquer eventualidade”.766

Contudo, tais grupos nômades demonstram, também, apoio aos espanhóis que, para

fazer frente à Colônia, constroem Montevidéu. Quatrocentos soldados e cinqüenta famílias de

agricultores das Ilhas Canárias chegam ao novo posto e “trava-se, lentamente, o

relacionamento entre os colonos canários e o grupo de gaudérios”. Do encontro, começa a

desenhar-se o vocábulo “gaúcho”: “Lá, nas Canárias, dava-se o nome de „guanches‟ aos

habitantes autóctones. E o nome se transplanta para cá. „Guanches‟, os autóctones sul-

americanos que andejam pela solidão...”.767

A primeira referência à miscigenação no texto de Barbosa Lessa surge por conta do

relato das deserções de soldados portugueses que serviam ao Governo Militar da Ilha de Santa

Catarina e que deveriam proteger a nova guarnição portuguesa implantada na barra do Rio

Grande para dar suporte à Colônia do Sacramento: “os praças continuaram desertando, já que,

mulher por mulher, havia as chinas da planície e, churrasco por churrasco, o dos guanches não

765

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. Op. cit., p. 17. 766

Ibidem, p. 40. 767

Ibidem, p. 41.

251

exigia em contraprestação a rigorosa disciplina militar”.768

Mas, do intuito de colonizar a

região com legítimos filhos de Portugal, nasce outro símbolo da formação sul-rio-grandense, a

grande fazenda ou estância:

“Um pouco menos desarvorados que os soldados sentiam-se os

desbravadores que, atendendo a estímulo do capitão-general de São Paulo,

haviam topado o desafio de constituir casa e fazenda nos campos de Viamão,

sob promessa de que após cinco anos de „estança‟ – isto é, de permanência –

adquiririam seus títulos de propriedade ou cartas de sesmaria”.769

E, com ela, a solidão começa a ser conquistada pelos portugueses. No litoral norte,

apesar das agruras da natureza, construíam-se povoados desde a paragem do Quintão até a

lagoa dos Barros, Santo Antônio da Patrulha e freguesia de Nossa Senhora da Conceição do

arroio Caleira: “com alegria vinham chegando mais alguns tramontanos, alentejanos,

minhotos, madeirenses, principalmente paulistas e lagunistas, para amalgamarem nesta região

a base do povo sul-rio-grandense”.770

O rebento castelhano se revela, enfim, um temporão

lusitano.

A partir de então, a contribuição espanhola, assim como a indígena, passa a ser

minorada. A colonização tem que seguir com gentes de além-mar. Grupos de colonos

açorianos começam a chegar no território e a adentrar o Continente pela laguna dos Patos.

Com o Tratado de 1750, Espanha e Portugal trocam a Colônia do Sacramento pelos setes

povos orientais das missões guaranis. A população indígena, que deveria desalojar suas

cidadelas, resiste militarmente, mas é vencida por forças lusitanas e espanholas unidas. Parte

dos colonos açorianos destinados à região acaba assentando-se nas margens do estuário do

Guaíba, fundando o “Porto dos Casais”, futura cidade de Porto Alegre. Outra parte edifica o

povoado de Rio Pardo, a meio caminho das Missões. Apesar de ter dirimido a participação

indígena na construção do Rio Grande do Sul, Barbosa Lessa aponta que, finda a Guerra

Guaranítica, setecentas famílias missioneiras foram levadas a Rio Pardo e às imediações de

Porto Alegre, instituindo uma nova capela para abrigá-las – a aldeia de Nossa Senhora dos

Anjos, hoje cidade de Gravataí.771

Da articulação destas gentes nascem os primeiros sul-rio-grandenses verdadeiros:

“Entrecruzam-se as famílias e vai surgindo a primeira geração de autênticos „continentinos‟,

768

Ibidem, p. 47. 769

Ibidem, p. 48. 770

Ibidem, p. 52. 771

Ibidem, p. 64-65.

252

isto é, nascidos no Continente”.772

A esta altura, Barbosa Lessa põe em risco a argumentação

em favor dos gaudérios: “A presença da mulher [branca e lusitana] como importante partícipe

do processo social vai neutralizando a influência dos guanches e dos demais nômades”.773

Mas isso sem colocar em xeque uma das peças-chave do simbolismo gaúcho contemporâneo:

“É bem verdade que o churrasco sangrento continua a ser espetado, com glutonismo, no fogão

dos quartéis e acampamentos”. No entanto, com a referida presença da mulher lusitana, a

culinária sul-rio-grandense ganha novas formas e sabores. Um bom momento para se

apresentar o cardápio que assumiria, futuramente, o lugar de “comida típica gaúcha”:

“Da adaptação da gastronomia açoriana ou tramontada [trazida] para as

condições locais, surgem as primícias da culinária jacuiense [referente ao

Vale do Rio Jacuí]. Manteiga e queijo. Pão de milho, beiju, broa de polvilho,

bolinho de coalhada. Milho verde, quirera, paçoca, humita de milho, pipoca e

farinha-de-cachorro. Quibebe de abóbora. Da outra banda do Atlântico

vieram a salsa, o louro, o alecrim e a manjerona; para aqui se encontrarem

com o feijão preto, o feijão mexido, a sopa de feijão. Com as criações de

terreiro, surge a galinha cozida, assada ou ao molho pardo; o leitãozinho

assado, queijo-de-porco, torresmo, sarrabulho, morcilha preta, morcilha

branca e lingüiça. Da fartura de carne bovina resultam o ensopado de aipim,

o cozido com pirão, a rabada, o mocotó, o mondongo, o guisadinho com

abóbora ou batata, depois o charque desfiado, o charque frito com pirão. Para

os lados do [rio] Taquari já ganham fama o bom mel, a laranja, a tangerina.

Para a criançada, fazem-se balas de mel ou guaco; ou uma chupeta de

goiabada, em paninho, para o nenê não chorar”.774

E a lista continua: “Logo que possível, surge o trigo. E a videira, para o primeiro vinho

caseiro”. E as sobremesas? Temos “canjica de trigo, com leite, em prato fundo. Ou uma

gostosa e aquecedora canjica de milho com vinho tinto caseiro e uma pitada de açúcar trazido

de Santo Antônio da Patrulha”.775

Se a contribuição biológica do indígena à formação do habitante do Rio Grande do Sul

acaba sendo minorada, ainda que contradizendo as evidências apontadas pelo próprio autor,

resta à cultura do gado e às faculdades da geografia “agauchar” os lusitanos:

“Nos primeiros tempos há muita identidade dessas raízes açorianas com as

dos ilhéus que permaneceram, com seus barcos e redes, nas praias de Santa

Catarina. Mas, à medida que cresce a nova geração, já é difícil resistir ao

atrativo dos campos abertos, das cavalgadas, da lida com os fartos

rebanhos”.776

772

A designação de “Continente” dada às terras que hoje compõem o Rio Grande do Sul se deveu à vontade de

se opor, simbolicamente, esse espaço à Ilha de Santa Catarina. 773

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. Op. cit., p. 73. 774

Ibidem, p. 73-74. 775

Ibidem, p. 74. 776

Ibidem.

253

Um empecilho para a miscigenação seria o constante estado de guerra experimentado

pela região. Para se tornar um oficial de milícias, havia uma série de requisitos, como ser

proprietário rural, charqueador ou possuidor de comércio próprio, a fim de facilitar o custeio

da empreitada. Podendo ser transferido para o exército de primeira linha, toma-se com o

jovem oficial a preocupação típica da nobreza metropolitana: “ele terá que defender a

condição de homem branco, submetendo-se a uma comprovação de pureza de linhagem em

sua ascendência até trisavôs”. Assim, diferentemente de outras partes do Brasil, “aqui a

miscigenação racial será muito menos presente. Branco para um lado, negro para o outro. Não

vá um mulato se imiscuir na família e pôr abaixo qualquer pretensão de ascensão militar dos

filhos e dos netos...”.777

Apesar do tom jocoso de reprovação à postura, Barbosa Lessa não

contesta o fruto de tal condição - o Rio Grande do Sul é majoritariamente branco e lusitano.

Em 1774, o governador de Buenos Aires, D. Juan de Vértiz y Salcedo, marcha com

cerca de três mil soldados em direção a Rio Pardo. A respeito do episódio, num arroubo de

indisfarçável patriostismo, Barbosa Lessa afirma: “Mas já então florescia a primeira geração

de continentinos, dispostos a defender até o último sangue o pedaço de chão natal”.778

Vencida a batalha pelos filhos de Rio Pardo, a Corte de Lisboa, “dando-se conta de que era

mais do que tempo de ajudar aos pobres e humilhados vassalos do Sul do Brasil”, envia novas

tropas para Santa Catarina. Em 1777, novo tratado, o de Santo Ildefonso, determina os limites

dos impérios português e espanhol. Com as demarcações das terras no continente de Rio

Grande, registra-se, pela primeira vez, a grafia “gauche” para os andarengos da região:

“palavra espanhola usada neste país para designar os vagabundos ou ladrões do campo que

matam os touros chimarrões, tiram-lhes o couro e vão vender ocultamente nas povoações”.779

Já os lusitanos continuam avançando as lonjuras e conquistando a solidão. Diversos arraiais

nascem na zona sul, confirmando o domínio português e, com eles, as charqueadas e a

importação de uma nova peça, o escravo negro. Como vimos em citações anteriores, a

contribuição negra é apresentada, nessa narrativa de nosso autor, de forma equivalente à

indígena: útil e importante, mas sem deixar grandes marcas nos agentes da história sul-rio-

grandense, contradizendo a memória cultivada em sua literatura e na agenda comemorativa da

SCDT.

Na mesma época, Portugal atinge definitivamente as últimas fronteiras para a

formação física do atual Rio Grande do Sul: conquista as missões jesuíticas e expande a

777

Ibidem, p. 76. 778

Ibidem, p. 83. 779

Ibidem, p. 91.

254

presença na região da campanha: “Teoricamente o Tratado de Santo Ildefonso havia fixado

fronteiras no rio Piratini e no divisor de águas entre o Jacuí e o Ibicuí, reservando ainda uma

faixa de campos neutrais, mas na prática, o espírito lusitano de expansão na área do Prata

confirmou seu incorrigível atavismo”. Incorrigível, mas justificado: “Acresce notar que,

enquanto os espanhóis viviam relativamente longe, em Buenos Aires ou Montevidéu, e

deixavam deserta a fronteira, Portugal dava condições para que os próprios titulares de

guarnições militares obtivessem sesmarias a um passo dos campos neutrais”.780

Em 1807, o

Rio Grande se torna Capitania Geral do Rio Grande do Sul. Começa a nascer, então, a “nossa

região da Campanha”, a Campanha lusitana, sem muito tardar, brasileira.

O pêndulo parece mover-se em uma só direção: cada vez menos espanhol e indígena,

o Rio Grande é fruto das gentes lusitanas. Mas não sejamos apressados. Nesse ponto, uma

reviravolta narrativa acontece e o autor volta a tratar do elemento gauche, dedicando-lhe um

capítulo intitulado “China, galpão e bolicho”. A miscigenação, negada anteriormente, torna-se

o laço que envolve portugueses e gaudérios na composição definitiva do sul-rio-grandense.

Em 1808, o frei João Batista Prazeres entra em desacerto com o novo administrador

geral das Missões, Capitão João de Deus Mena Barreto, e denuncia seu caso com uma “china

do povoado”, Maria Salomé: “Para servi-la e cercá-la determinara o comandante que os índios

levassem à casa de Salomé tudo quanto havia de melhor para ela, trabalhando sem

remuneração de espécie alguma”. Segundo o autor: “A partir desse exemplo do próprio

administrador geral das Missões, não houve quem impedisse a livre aproximação entre

soldados e mulheres índias. O difícil mesmo é que se encontrasse um homem, em suas

andanças de fronteira, sem levar uma china à garupa do cavalo”.781

Fora tal “promiscuidade”, “explicável pela numerosa população em crescente

processo de marginalização da sociedade”, que permitiu o surgimento de um fenômeno

tipicamente sul-rio-grandense, o galpão: “Não estamos nos referindo restritamente à

construção rústica, para acomodar peões e equipamentos agropastoris, junto à casa-grande de

uma fazenda; mais do que isso, queremos enfatizar toda uma gama de relações sociais

desenvolvidas em torno do núcleo galponeiro”. Diferentemente de outros pontos do Brasil, no

Rio Grande não exisiria a “instituição dos ranchos” para dar abrigo aos viajantes e seus

animais. Então, nas campinas e caminhos do Continente de São Pedro, não se cobrava o

pouso de ninguém. Todavia, algumas regras deveriam ser seguidas:

“Andarengo sem ocupação, forasteiro sem identidade, índio ou chiru,

780

Ibidem, p. 105. 781

Ibidem, p. 111.

255

desertor ou tropeiro, cada qual podia se aproximar do galpão, acercar-se do

fogo-de-chão, tomar seus mates, e ali ficar pousando, ao lado dos peões da

estância, por um tempo que geralmente não poderia ultrapassar três dias – de

acordo com a tradição dos „tambos‟ incásicos e missionistas. Além de morada

dos peões (necessariamente solteiros), depósito de implementos e algo assim

como um clube masculino para as horas de descanso, o galpão também

possuía uma estranha característica de albergue dos viajantes humildes”.782

Dessa forma, Barbosa Lessa aponta para a contradição que permearia a futura história

do Rio Grande do Sul: “A família do estancieiro, as moças da casa grande, jamais desciam ao

nível do galpão. Por outro lado, a moradia do estancieiro se tornava praticamente inacessível a

estranhos”. Assim, na estância, conviveriam aquilo que muitos autores chamaram de

“democracia sulina” (termo não utilizado por Barbosa Lessa, é bem verdade) e um rigoroso

patriarcalismo: “Daí o paradoxo de uma super-hospitalidade de galpão – simbolizada pela

cuia de chimarrão logo alcançada ao recém-chegado – ao lado de um círculo patriarcal

extremamente fechado para quem não fosse parente, compadre ou amigo íntimo”. Falta

apresentar um último costume “muito típico”, “que já teria se configurado nesses primórdios

da formação sul-rio-grandense”: as compras dos campeiros no “bolicho” - “Às vezes

cavalgando muitas léguas, para adquirem erva-mate, fumo, sal, açúcar, rapadura, um pedaço

de tecido, quem sabe lá um espelho ou uma panela”.783

Agora sim, assentados todos os principais elementos da cultura do Rio Grande do Sul,

abre-se espaço para seus heróis. Cabe ressaltar que a narrativa de Lessa chega até as vésperas

da Revolução Farroupilha, mas não se ocupa do episódio, fonte de mitos e legendas

reverenciadas até nossos dias. No entanto, em capítulo dedicado ao contexto mundial, onde

Barbosa Lessa trata da Revolução Francesa, os ideais democráticos atribuídos a ambos os

movimentos são conectados pela associação dos “sans-culottes” aos “farroupilhas”: “A

rebeldia tomou uma outra dimensão quando o tribuno Marat e outros liberais exaltados

excitaram a emoção dos segmentos populares”. E a ligação: “Então saíram à rua os sans-

culottes, assim apelidados os homens sem o calção de veludo dos burgueses, sem roupa

decente, andrajosos, esfarrapados, farroupilhas [grifo meu]”.784

Além disso, aquele que se

tornaria o maior ícone da epopéia farrapa, o General e presidente da República de Piratini

Bento Gonçalves, merece uma menção nas páginas da obra, quando o autor narra sua

incorporação às milícias do Estado.785

Outros tantos nomes de heróis militares são citados,

782

Ibidem, p. 112. 783

Ibidem, p. 112. 784

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. Op. cit, p. 101. 785

Ibidem, p. 130.

256

como os do General Joaquim Manuel Curado, do General Manuel Marques de Souza e do

então furriel Bento Manuel Ribeiro.

Segundo José Carlos Chiaramonte, o pressuposto da nação como ponto de partida786

influenciou a historiografia da América Ibérica desde fins do século XIX de duas formas: a

primeira, direta, é a que põe a nação no começo; a segunda, indireta, é aquela que, tendo

corrigido este erro de percepção, continua dominada pela preocupação com a gênese da nação

de maneira que toda a história anterior à sua constituição se conforma teleologicamente para

explicá-la: “Y, de tal modo, permanece un mundo de „protonacionalismos‟, de

„antecipaciones‟ o de „demoras‟, de tendencias favorables o de obstáculos a su

emergencia”.787

Este parece o ser o “pecado” do Barbosa Lessa historiador. Ainda que, como

vimos, o autor busque acompanhar a formação do Rio Grande do Sul e o surgimento de seus

principais símbolos de uma maneira processual, manifestando cuidados narrativos que evitam

tomar locais e episódios históricos como pertencentes às futuras nações e regiões do Prata, a

conquista do País da Solidão é um lento caminhar em direção ao Rio Grande do Sul lusitanto,

gaúcho e, portanto, brasileir. Nesta construção, a contribuição indígena é,

surpreendentemente, minorada com a expulsão dos espanhóis e considerada, biológica e

culturalmente, apenas pela via indireta, “gaudéria”; e a negra, da mesma forma, é sufocada

pela presença portuguesa.

Com a invenção da “região”, temos a formação de sua identidade coletiva, seus

símbolos e mitos. O passado comum que unifica gaúchos e portugueses (ancestrais

fundadores) é costurado com a descrição de uma paisagem peculiar que, por seus obstáculos e

possibilidades, configura lugares de memória, vilas e cidadelas que são tomados como marcos

da colonização lusa e esteios da fronteira brasileira, abriga heróis e condiciona o folclore, os

hábitos e os costumes dos habitantes da região. A Campanha, com suas verdes coxilhas, ganha

destaque nessa geografia identitária, mas o litoral também é lembrado como porta de entrada

dos lusitanos. Os heróis são os militares que conquistaram novos postos e avançaram as

fronteiras, mas também os colonos que trabalharam a terra e manejaram o gado, ocupando as

distâncias e produzindo as riquezas do Rio Grande. O espaço, como a história, oferece-lhes

786

No mesmo sentido, Elías Palti aponta que, na perspectiva dessa historiografia, a história nacional deveria ser

escrita como um curso evolutivo pelo qual o princípio que identifica a própria nacionalidade se desenvolveria

progressivamente e explicaria seu transcurso efetivo. Tal princípio particular, segundo Palti, deveria ser também

reconhecível como universalmente válido: “es decir, encarnar valores incontestables que justifiquen por sí su

existencia y su defensa ante cualquier posible amenaza interior o exterior”. PALTI, Elias. La nación como

problema: los historiadores y la “cuestión nacional”. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2002, p. 132. 787

CHIARAMONTE, José Carlos. Nación y Estado en Iberoamérica: el lenguaje político en tiempos de las

independências. Buenos Aires: Sudamerica, 2004, p. 21

257

cavalos de boa monta, carne em abundância e, para curar os excessos e minorar o cansaço, a

digestiva e tonificante erva-mate. Hábitos e costumes são desenhados em função dessa

configuração e, com tal base, o folclore só tende a se desenvolver e complexificar. Surgem

comidas, bebidas e doces “típicos”; um linguajar regional (chirú, china, piá etc); rodas de

chimarrão em torno do fogo de chão dos galpões de estância; compras no bolicho... Toda uma

série de elementos pitorescos que se tornam signos da identidade regional e de um ethos sul-

rio-grandense, de um modo de ser gaúcho que reverencia o conhecido modelo romântico do

“centauro da Pampa” - o qual fora, conforme vimos, a matriz do tradicionalismo organizado -,

reconciliado, como neste movimento, com a “elite vitoriosa” da historiografia tradicional.

6.2 – A estância de ponta-cabeça: o discurso da memória na batalha dos sentidos

Como mostrado por Jacy Alves de Seixas, a divisão estabelecida pelo sociólogo

Maurice Halbwachs entre memória coletiva e história foi apropriada pela historiografia

posterior, conduzindo a uma oposição radical entre os dois termos. Nesse sentido, por

exemplo, os trabalhos de Pierre Nora associam ao primeiro a “tradição vivida, espontânea,

múltipla e vulnerável”, e ao segundo uma “operação profana, uma reconstrução intelectual

sempre problematizadora que demanda análise e explicação, uma representação sistematizada

e crítica do passado”.788

Porém, a essa ruptura seguiu-se a tentativa de aproximação entre

memória coletiva e memória histórica, o que, ainda segundo Seixas, não permitiu o

reconhecimento de uma distinção clara entre ambas as formas de representação do passado:

“No esforço de recompatibilizar memória e história, a temática da memória é aproximada em

demasia da noção de história, de tal forma que uma união simbiótica se efetua e se acaba por

aplicar aos procedimentos e mecanismos da memória, aqueles que reconhecemos de longa

data como historiográficos”.789

As análises de memória teriam, assim, recaído exclusivamente

sobre a problemática do controle do passado. Para a autora, nem a oposição radical nem a

indistinção, mas a recuperação da noção de memória involuntária das obras do filósofo Henri

Bergson e do literato Macel Proust pode iluminar tanto outros aspectos políticos, diferentes

daquele dos usos públicos, da memória, como suas dimensões afetivas e criativas, próprias

788

SEIXAS, Jacy Alves de. Percursos de Memórias em Terras de História: problemáticas atuais. In:

BRESCIANI, Stella, NAXARA, Márcia (orgs.). Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão

sensível. Campinas: Editora da UNICAMP, 2001, p. 40-41. 789

Ibidem, p. 41

258

dos mitos e utopias: “se buscamos refletir sobre as relações entre memória e história, penso

ser necessário iluminar a memória também a partir de seus próprios refletores e prismas;

necessário, portanto, incorporar tanto o papel desempenhado pela afetividade e sensibilidade

na história quanto o da memória involuntária [grifos da autora]”.790

A proposta adotada aqui não negligencia, então, as funções políticas do discurso

memorialista, como a tentativa de domínio do passado e de legitimação do presente, nem os

mecanismos de produção e reprodução da memória791

, mas atenta também para suas

diferenças em relação ao discurso historiográfico como o analisado na seção anterior. O título

deste subcapítulo, tão abrangente que poderia designar boa parte do caminho percorrido até

agora, pretende, portanto, apontar para as especificidades das memórias escritas por nosso

personagem no âmbito do debate identitário rio-grandense dos anos 1980. Minha hipótese a

esse respeito é a de que os elementos de afetividade e de sensibilidade presentes nestas

memórias, devido à sua condição discursiva792

, possibilitam enunciações diversas, em relação

à historiografia, e, de certa forma, mais “adequadas” aos debates intelectuais sobre a

identidade gaúcha travados no período referido. Daí sua interlocução direta com dois

fenômenos contemporâneos ocorridos nesse campo: 1) a grande e acelerada expansão do

movimento tradicionalista e do gauchismo em geral, com seu concomitante parcelamento em

propostas estéticas e políticas distintas e conflitantes; 2) a ascensão da universidade como

locus de saber sobre o Rio Grande do Sul, com a paralela crítica à “ideologia gaúcha”.

Publicado em 1975, Danças e Andanças da Tradição Gaúcha situa-se temporalmente

no início do primeiro processo citado e é anterior ao segundo. Sua redação pode mesmo ser

considerada indicativa da relevância que o tradicionalismo vinha adquirindo na cena pública

local.793

Barbosa Lessa e Paixão Côrtes falavam, assim, na condição de autoridades

790

Ibidem, p. 44-45. 791

Segundo Jacy Alves de Seixas, no momento em que a historiografia levantou um divisor de águas com a

memória, para em seguida destruí-lo, tais aspectos foram esquecidos em função da mera definição das

características da memória, seja coletiva ou histórica, “em relação ao próprio paradigma histórico, apresentado

em toda sua positividade e voracidade”. Ibidem, p. 43. 792

Segundo Bakthin, o enunciado é individual e, por isso, pode refletir a individualidade do enunciador, ou seja,

possui um “estilo individual”. No entanto, nem todo enunciado permite a manifestação deste estilo. Os gêneros

mais propícios à “individualidade” seriam os literários e os menos propícios aqueles que requerem uma “forma

padronizada”, como os documentos oficiais. BAKTHIN, Mikhail. Op. cit., p. 183. Compreendendo memória e

História como gêneros discursivos, poderíamos aproximar a primeira dos gêneros literários e a segunda do

documento oficial, uma das fontes privilegiadas, aliás, durante sua constituição como disciplina científica. A

meu ver, então, ao adotar a proposta de Seixas, devemos pensar os condicionantes discursivos na exibição da

“afetividade” e da “sensibilidade” do autor. 793

A configuração do movimento naquele ano é apresentada pelos próprios autores no último capítulo do livro:

“Neste momento há várias cidades em que existem – numa só cidade – cinco, seis ou mais CTGs. No total,

consta que existem mais de duzentos CTGs no Rio Grande do Sul. Há os centros-mirins, nas escolas primárias e

ginásios. Há núcleos de tradições gaúchas em Santa Catarina, Brasília, Manaus e por aí afora. Um Conselho do

„Movimento Tradicionalista Gaúcho‟ (MTG), com amparo do Governo do Rio Grande do Sul, procura

259

intelectuais nas questões de folclore e tradição, mas também enquanto fundadores do

tradicionalismo gaúcho. Falavam, portanto, para militantes tradicionalistas e para rio-

grandenses em geral que possuíssem algum tipo de contato com o movimento. Como vimos

no capítulo IV, o livro apresenta dois segmentos narrativos bem definidos: o primeiro atualiza

o texto ganhador de menção honrosa no VII Concurso Mário de Andrade, de 1952; o segundo

é designado pelos próprios autores como “memória”. Esta parte denota, portanto, sua primeira

tentativa de elaboração a posteriori de uma memória coletiva do grupo pioneiro, bem como

de uma memória oficial do movimento e, conseqüentemente, um novo momento de

intervenção na identidade tradicionalista.794

Seguindo a proposta teórica de Pollak,

poderíamos dizer que Barbosa Lessa e Paixão Côrtes realizam, nesse texto, um “trabalho de

enquadramento” em que determinados “marcos” são erigidos como pontos incontornáveis

desta identidade.795

Tal trabalho se alimenta, como salienta aquele sociólogo, de material

fornecido pela história, pois deve atender a exigências mínimas de credibilidade e coerência.

Nossos autores se valem, assim, de sua posição de “testemunhas autorizadas” para

relatar a história do tradicionalismo, através de momentos-chave do projeto coletivo do qual

participaram, dotando-lhe de continuidade e linearidade e, ao mesmo tempo, nele

reivindicando posição de destaque para seus projetos individuais. Sua atuação no complexo

período de formação do movimento e o processo de elaboração das danças gaúchas são

“rememorados” a partir de três eixos: a) o “incentivo à formação de invernadas artísticas nos

CTGs”, o que passa a justificar inclusive a experiência teatral de Barbosa Lessa nos anos

1950; b) a “realização de cursos em escolas primárias”, o que explica os diversos convites por

eles recebidos para ministrar palestras e aulas já na terceira fase do tradicionalismo, segundo a

periodização utilizada no quarto capítulo; c) o “incentivo à formação de grupos artísticos para

as músicas de danças gaúchas”, o que confere papel preponderante na consolidação do

coordenar, com crescente eficiência, toda essa avalanche de cultura popular. Diz-se que existem 200.000

associados de CTGs; centenas de milhares de outros rio-grandenses praticam seu próprio tradicionalismo, de

uma maneira ou de outra, sem estarem filiados a CTGs; em grandes empresas – como a Borregard e a Corsan –

existe um Galpão Gaúcho, para convívio de seus funcionários; o próprio Palácio Piratini, do Governador do

Estado, tem seu Galpão para recepcionar visitantes ilustres; „fandangos‟, „rodeios‟ e demonstrações de laçadores

se realizam semanalmente por todo o Estado, desde a fronteira até a colônia alemã ou italiana; sem exagero,

friamente, poderíamos dizer que, hoje, em menor ou maior escala, todos os oito milhões de rio-grandenses são,

ainda que inconscientemente, tradicionalistas, embora não aprovem fanatismos ou distorções popularescas”.

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos, PAIXÃO CÔRTES, João Carlos. Danças e Andanças da Tradição Gaúcha.

Op. cit., p. 143. 794

Nesse sentido, gostaria de lembrar a passagem já citada no segundo capítulo deste trabalho, em que Michael

Pollak apresenta a relação entre memória e identidade, conceituando esta última como “imagem de si, para si e

para os outros”. Ver POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. Op. cit., p. 204. 795

A noção de “memória enquadrada” foi, como sabemos, emprestada por Pollak dos trabalhos do historiador

Henry Rousso. Idem. Memória, Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, 1989, p.

9.

260

tradicionalismo ao Conjunto Folclórico Brasileiro, de Barbosa Lessa, e ao Conjunto Tropeiros

da Tradição, de Paixão Côrtes.796

Dessa forma, tal memória deveria legitimar as principais

opções de nossos autores na invenção das tradições gaúchas. No caso da dança, objeto

principal do livro, tratar-se ia de reafirmar como pouca ou quase inexistente a influência de

bailados e/ou folguedos platinos, indígenas e negros nas coreografias tradicionalistas. Mas a

veia historiográfica de certificação lusa e brasileira da cultura gaúcha se restringe a este

elemento, já que os folcloristas não negam a diversidade étnica na composição da sociedade

rio-grandense.797

A tensão explicitada na introdução desse capítulo comparece, então, já no livro de

1975. Todavia, o discurso memorialista de Barbora Lessa permitiria maior flexibilidade no

tocante à escrita da formação social do estado do que a sua produção historiográfica. Seu

novo ensaio memorialístico, intitulado Nativismo: um fenômeno social gaúcho, seria

publicado dez anos depois, em pleno apogeu do ciclo de festivais iniciado em 1971 com a

Califórnia da Canção Nativa798

. Nele, as (re)definições do mito e da “utopia” tradicionalista se

aproximam ainda mais da prática folclorista dos anos 1950. O motivo, a meu ver, também já

foi enunciado: o recrudescimento do movimento e a reação acadêmica a ele.

O aceleramento da expansão tradicionalista, já apontado por Lessa e Côrtes em 1975,

levaria Ruben Oliven a considerar a década de 1980 como de “renascimento do

796

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos, PAIXÀO CÔRTES, João Carlos. Op. cit., p. 123-125. 797

“Sem entrar a fundo na questão – que não é o objetivo deste trabalho – poderíamos talvez apontar os

seguintes sinais de influência indígena sobre o gaúcho: o galpão como unidade social masculina, o caráter

místico do fogo-de-chão, a resistência à dor física, a pouca importância dada ao futuro, o preparo de caças em

geral e do churrasco em particular como tarefa exclusivamente masculina, etc”. Ibidem, p. 134. “Concentração

populacional expressiva, de negros, só houve em determinadas „ilhas‟ econômicas como por exemplo as

lavouras de cana-de-açúcar de Osório, charqueadas de Pelotas, lavouras extensivas do Vale do Taquari, algumas

fazendas de Santa Maria ou – no planalto – de Passo Fundo e Vacaria. Nesses redutos não foram desconhecidas

as danças teatrais que a Igreja ensinava às camadas populares – como os „ensaios‟, „maçambiques‟ e

„quicumbis‟, em louvor de São Benedito ou Nossa Senhora do Rosário – bem como algumas versões locais de

batuque: „candombe‟ e „bambaquererê‟”. Ibidem, p. 134-138. Já a influência platina só é aceita com a

incorporação de outras regiões brasileiras como parte de um círculo gauchesco muito mais amplo do que o Rio

Grande do Sul, Argentina e Uruguai, e com a declaração de diferenças internas a ele. Dessa forma, a gauchidade

é traçada como um elemento compartilhado por castelhanos e lusitanos e não como influxo dos primeiros sobre

os segundos. Mas, vale ressaltar, tal unidade é bastante fraca frente aos limites identitários fixados pela pertença

a um dos dois povos ibéricos: “É uma solução demasiado simplista resolver o problema da formação gauchesca

dizendo que gaúcho do Rio Grande, do Uruguai e da Argentina são a mesma coisa. É verdade que eles montam

de maneira semelhante, dispõem de uma mesma linguagem técnica para se referirem aos instrumentos e

processos da pecuária. Mas não podemos esquecer que existem „gaúchos‟ em Itapetininga, Tatuí, Sorocaba e

outras regiões do Sul de São Paulo, ao longo do velho caminho das tropas no Paraná, nos campos de invernagem

de Santa Catarina, e muito principalmente lá longe, no Sul de Mato Grosso, sem terem tido um contato mais

permanente com os „castelhanos‟ do Prata. Quer dizer: a área „gauchesca‟ pode ser entendida muito além das

margens do Prata. E, por outra parte, mesmo na área dos povos gaúchos existem dessemelhanças gritantes: o

„gaucho‟ da província argentina de Salta, com seus apetrechos de couro para defender-se da vegetação árida, é

muito mais parecido com o sertanejo da caatinga nordestina do que com o peão das coxilhas rio-grandenses”.

Ibidem, p. 138-139. 798

Ver SANTI, Álvaro. Op. cit.

261

gauchismo”.799

Tanto a bibliografia militante quanto a acadêmica, portanto crítica, apontam

para condicionantes sócio-estruturais, no período, semelhantes àqueles que possibilitaram, no

final dos anos 1940, a criação do tradicionalismo: êxodo rural, crescimento urbano acelerado,

industrialização, integração econômica do país, importação cultural e, finalmente, abertura

democrática após longo período de centralização política, o que teria facilitado a difusão de

idéias particularizantes, ainda que não necessariamente opostas à retórica da brasilidade

unificada. Novamente, o contexto social propiciava, paradoxalmente, tanto os

motivos/justificativas quanto os meios técnicos para a reação cultural. A cultura de massa,

conciliada teoricamente com a “cultura popular” no projeto da SCDT, se impunha, a partir

dos anos 1970, segundo Álvaro Santi, como nova realidade em nível nacional. Como na

década de 1950, os líderes do gauchismo organizado souberam, então, valer-se

estrategicamente dos recursos “oferecidos pela grande evolução observada nesse período

pelos meios de comunicação de massa”.800

Cabe citar ainda um último elemento que teria não somente possibilitado o

alargamento das bases tradicionalistas no interior do estado, mas sua transformação social.

Segundo José Hildebrando Dacanal, o movimento teria atingido, até os anos 1980,

principalmente as elites intelectuais e sócio-econômicas dos grandes centros urbanos, ainda

que tocasse mais aos setores de origem rural. Nas pequenas cidades, os CTGs configuravam-

se em espaços populares de sociabilidade, como previa o projeto de Barbosa Lessa. Mas, para

Dacanal, a rápida desintegração de valores religiosos ligados a todas as igrejas tradicionais

teria feito com que boa parcela dos grupos dirigentes destas cidades abdicasse de suas

“posições ideológicas conservadoras” e, na impossibilidade de se reconhecer nas novas

formas culturais veiculadas pela televisão, passasse a se apropriar dos centros de tradições já

existentes e fundasse novos núcleos:

“Ali, na idealização de um passado que não era o deles e a rigor nem existira,

mas que, de uma forma ou outra, os marcara a todos, fosse pelo seu próprio

passado agrário, fosse por se terem difusamente impregnado de alguns

elementos de uma tradição comum a quase todas as regiões do Rio Grande do

Sul – churrasco, carreiradas, bailes, chimarrão, etc. – estes grupos reinventam

799

OLIVEN, Ruben George. O renascimento do gauchismo. In: FISCHER, Luís Augusto, GONZAGA, Sergius

(orgs.). Nós, os gaúchos. 2ª ed. Porto Alegre: UFRGS, 1993, p. 77-80. 800

“Feita sob medida para os mass media [grifo do autor], a canção nativista tornou-se um veículo estratégico

para o Tradicionalismo, e essa foi uma importante mudança de perspectiva, trazendo mais destaque, no interior

do movimento, aos poestas, músicos e compositores envolvidos. Basta verificar os índices de audiência

alcançados pela Rádio Liberdade FM, de Porto Alegre, cuja programação é exclusivamente voltada para música

regionalista e que, em janeiro de 1999, conforme pesquisa IBOPE, ocupou a quinta posição na capital, com o

expressivo índice de 7,1%”. SANTI, Álvaro. Op. cit., p. 75-76.

262

um espaço, por provisório que fosse, em que se reencontram e

recongregam”.801

Em meio ao franco crescimento do tradicionalismo, o nativismo surgia como

alternativa estética e, por vezes, política às diretrizes fixadas pelo MTG. O vocábulo é

derivado de “canção nativa”, objeto dos novos festivais de música gaúcha, mas já possuía

utilizações precedentes enquanto sinônimo de tradicionalista, como na Carta de Princípios,

redigida, em 1968, por Glaucus Saraiva. Entretanto, como mostra Álvaro Santi, a definição do

termo só se daria depois de sua popularização, já na década de 1980, devido à propagação de

iniciativas semelhantes à Califórnia, e em oposição ao sentido denotado, por seus defensores,

ao de “tradicionalista”, o que renderia acalorados debates nos jornais locais entre os dois

grupos. Num destes embates, em 1986, os jornalistas nativistas Juarez Fonseca e Gilmar

Eitelvein atacaram os “aiatolás da tradição”, referindo-se aos líderes e teóricos conservadores

do tradicionalismo. Com o questionamento do controle exercido pelo MTG em matéria de

cultura gaúcha, os autores demarcavam as posições da dissidência, definindo suas

características:

“... não se pode dizer que exista de direito um Movimento Nativista, mas é

inegável que ele existe de fato. O nativista não é dogmático, não está ligado a

critérios pré-estabelecidos e sabe que além do Rio Grande do Sul existem

outros estados brasileiros e, além dele, o mundo. Em música, quer

experimentar, inventar, criar sem que alguém lhe esteja permanentemente

„avisando‟ que tal coisa pode e tal não pode. O nativista acha que guitarras e

sintetizadores são apenas instrumentos musicais e não objetos diabólicos e

corruptores. Ele também quer ter a liberdade de tranquilamente se deixar

influenciar por outras idéias musicais, como aconteceu com seus

antepassados do século 19, que levaram para animar o campo os ritmos que

vinham dos centros europeus – e os transformaram dando-lhes outras

personalidades, regionais e únicas. (...) Os nativistas são a favor da reforma

agrária, de uma ordem social mais justa, e contra o sistema latifundiário e

quase escravagista que ainda persiste. Os nativistas não concordam com a

hierarquização alimentada e defendida pelos tradicionalistas, como se o

mundo fosse um grande quartel. Os nativistas sabem que têm um passado,

mas não vivem cultuando este passado como forma de ausentar-se do

presente, nem vivem mitificando heróis que já estão por demais sacralizados,

como se o Rio Grande do Sul tenha estacionado no início do século”.802

Para Ruben Oliven, as diferenças entre os dois grupos se resumiam a questões de

estilo, sendo os tradicionalistas conservadores no tocante à indumentária e aos instrumentos,

801

DACANAL, José Hildebrando. Origem e função dos CTGs. In: FISCHER, Luís Augusto, GONZAGA,

Sergius (orgs.). Nós, os gaúchos. 2ª ed. Porto Alegre: UFRGS, 1993, p. 86. 802

EITELVEIN, Gilmar, FONSECA, Juarez. Apud OLIVEN, Ruben George. A parte o Todo. 2ª ed. Op. cit., p.

181-182.

263

gêneros e temas musicais, enquanto os nativistas predicavam a liberdade estética,

considerando-se inovadores e “progressistas”. Além disso, na perspectiva desse autor, a

contenda se daria mais pela semelhança do que pela diferença: “O que eles têm em comum,

além da preocupação com as raízes gaúchas, é o fato de disputarem o mesmo mercado de bens

simbólicos e utilizarem instâncias medianas de consagração como festivais de música, debate

jornalístico, etc”.803

Para Álvaro Santi, o movimento iniciado com a Califórnia buscava a

qualificação estética da música regional, procurando elevá-la a “um patamar superior de

sofisticação, através da canalização de esforços de um contingente cada vez maior de

artistas”.804

Todavia, pese a concordância com outro crítico acima citado, José Hildebrando

Dacanal, na asserção de que o conservadorismo cultural dos tradicionalistas não implicava o

mesmo em política e, de outro lado, a inovação estética dos nativistas não significava, no

mesmo quesito, “progressismo”, Santi aponta para o fato de que, na reta final do regime

militar, as forças conservadoras da sociedade contrárias à democratização encontraram apoio

naqueles setores do movimento que lutavam contra a “descaracterização da cultura gaúcha”.

Na direção inversa, “artistas com uma posição política mais à esquerda, sabendo da

repercussão do evento [Califórnia], não perdiam a oportunidade de levar suas idéias ao palco.

E temendo que ao „fechamento‟ do Festival pudesse corresponder um retrocesso político,

procuravam marcar posição com firmeza”.805

Portanto, mesmo que a polarização radical entre

ambos os grupos tenha sido improvável, pode-se identificar, no período, uma tendência mais

“aberta” também para questões sociais e políticas entre os simpatizantes do nativismo, como

denota o texto de Juarez Fonseca e Gilmar Eitelvein.

Neste contexto, a escolha do título do livro de Barbosa Lessa que deveria narrar – e,

em alguns momentos, explicar – definitivamente a história do gauchismo no Rio Grande do

Sul não foi, obviamente, aleatória. Nativismo se dirige, direta e indiretamente, aos

“cavaleiros” da batalha semântica deflagrada nos jornais e nos festivais de música. Enxerga a

disputa com olhar condescendente e acena aos dois flancos com um passado comum. A

definição do novo termo emerge aos poucos na narrativa. Primeiro, o telurismo, “capacidade

de sentir a presença do solo, do chão, da gleba, amando-a a mais não poder”; sentimento

universal, quase natural: “Os animais em geral têm esse amor à querência, ao lugar de bem-

querer, ao lugar onde se nasceu. E alguns seres humanos, também”.806

Com a configuração da

sociedade rio-grandense e de alguns de seus marcos organizacionais, como a casa-sede e o

803

OLIVEN, Ruben George. Ibidem, p. 187. 804

SANTI, Álvaro. Op. cit., p. 57. 805

Ibidem, p. 66. 806

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. Nativismo: um fenômeno social gaúcho. Op. cit., p. 12.

264

galpão, de origem indígena, da estância, abrigo de seu campesino típico, o gaúcho, surge a

idéia de “pago”, local de nascença e de pertencimento afetivo. Dessa forma, o “inconsciente

coletivo” do Rio Grande teria chegado ao século XIX carregado de “fatores de predisposição”

ao nativismo. A elasticidade da conceituação permitiria a Barbosa Lessa englobar sob tal

epíteto diversas sociedades literárias e cívicas da história rio-grandense. Tudo se passaria

como se, em ciclos de cerca de trinta anos, uma nova geração irrompesse o marasmo

intelectual do estado com propostas de resgate da cultura e do passado local. Por exemplo: a

Sociedade Partenon Literário de 1868, o Grêmio Gaúcho de Cezimbra Jacques criado em

1898, a literatura gauchesca da década de 1920, o tradicionalismo gaúcho inagurado em 1947

e, finalmente, o “nativismo musical” dos anos 1980.

Interessante notar que a genealogia assim constituída é semelhante àquela presente nas

memórias de fundadores e nos textos de teóricos tradicionalistas, que as redigiam, aliás, no

mesmo momento, e viria a ser corroborada, involuntariamente, como vimos no capítulo IV,

pela literatura acadêmica especializada. Entretanto, a narrativa de Barbosa Lessa não tem a

intenção de perenizar como recorrência na história local o projeto do qual fez parte. Em

momento algum o autor estende a dinâmica tradicionalista às organizações e atividades

“telúricas” precedentes e, em sentido inverso, não deixa de reconhecer as especificidades de

cada período. Tal configuração pode ser creditada à reivindicação de originalidade para o

movimento tradicionalista. Mas vale ressaltar que a complexidade do argumento apresentado

no texto também é um impeditivo para reduções simplistas e filiações mecânicas. Seu

objetivo principal parece ser o de apontar para um substrato comum entre as diferentes

manifestações históricas de nativismo, dado não pela figura do gaúcho pampiano, mas pelo

sentimento universal de amor ao torrão natal que teria operado artisticamente (sim) sobre ela.

Daí a unidade dos dois grupos conflitantes e, ainda, destes com as futuras gerações de

“gaúchos”.

Uma primeira leitura do livro evidencia, assim, a presença daquele Barbosa Lessa

conciliador da SCDT que desaguara no historiador tradicional do Rio Grande unificado sob o

signo luso. Porém, assim como o secretário e o folclorista, o memorialista pacifica porque

reconhece a diferença. Mais do que isso, a harmonização se dá sob a égide das reivindicações

nativistas. Se Fonseca e Eitelvein reclamavam a liberdade artística e a possibilidade de

apropriação das tradições culturais estrangeiras, como fizeram os antepassados do século

XIX, Lessa avisava aos conservadores que o tradicionalismo fizera o mesmo nos anos 1950.

As tradições gaúchas então referendadas com a marca da autenticidade pelas autoridades do

MTG não eram, de acordo com o tradicionalista pioneiro, senão a criação de jovens

265

estudantes imbuídos do mesmo pendor antropofágico da geração nativista: “Pois, afinal, não

estávamos vivendo num galpão autêntico de estância: nosso galpão, porto-alegrense, teria de

ser simbólico!”.807

Da mesma forma proposta pelos críticos dos “aiatolás da tradição”, o

grupo do “35” CTG operara, diz Lessa, sobre a “cultura tradicional”, buscando respeitar

“todos aqueles elementos que pudessem ser mantidos em Porto Alegre e alhures”, para “criar

uma cultura tradicionalista [grifo do autor], adaptável às mais diversas situações de tempo e

espaço”.808

No tocante à música, aliás, nosso personagem informava, em capítulo

significativamente intitulado “A invenção das tradições”, referência direta ao livro de

Hobsbawm e Ranger809

, que a “pobreza franciscana”810

do cancioneiro gaúcho exigira muitos

esforços dos compositores tradicionalistas, entre os quais ele figurava, inclusive na seleção

dos ritmos “típicos”:

“Quem não quer, manda – diz o ditado – e, quem quer, faz. Tivemos de fazer.

Para saber o que é que o público entenderia como música do Rio Grande, eu

fui tenteando os ritmos na base da tentativa-e-erro: uma toada („Negrinho do

Pastoreio‟), depois duas milongas („Milonga do casamento‟ e „Milonga do

bem-querer‟), mais tarde até um chamamé („Balseiros do Rio Uruguai‟). Mas

por paus e por pedras ia nascendo um cancioneiro do Rio Grande do Sul!”.811

Cabe ressaltar que o chamamé sofria, na época, restrições, devidas à sua paternidade

castelhana, por parte da ala tradicionalista812

, que exigia da organização da Califórnia a

proibição do gênero no concurso.813

Quanto às danças, já vimos que nosso autor evitava a

confusão entre as manifestações folclóricas espontâneas e as coreografias do Manual,

classificadas como “projeções folclóricas”. Assim, a inovação não deveria ser condenada, mas

saudada pelo movimento, já que “de lá pra cá, continuou o tradicionalismo evoluindo, como a

confirmar que ninguém pretende ficar estagnado no passado”.814

A própria Califórnia da

807

Ibidem, p. 63. 808

Ibidem. 809

“Hobsbawm, que já alcançara notoriedade com seus ensaios sobre a era das revoluções e a era do capital, aqui

analisa a função social das tradições – sem as quais, pelo jeito, a humanidade não consegue viver. Quando a

tradição não existe completamente formalizada, completa-se o que está faltando para fortalecer o alicerce

nacionalista”. Ibidem, p. 69. 810

A expressão seria do cronista mineiro radicado no Rio de Janeiro Henrique Pongetti. Ibidem, p. 65. 811

Ibidem, p. 66. 812

Paixão Côrtes e Barbosa Lessa o consideravam, entretanto, como variante platina da chimarrita lusitana que

se espalhara pelo território rio-grandense no século XIX. Ver BARBOSA LESSA, Luiz Carlos, PAIXÃO

CÔRTES, João Carlos. Danças e Andanças da Tradição Gaúcha. Op. cit. 813

O regulamento da XXV Califórnia, realizada em 1985, proibiu, finalmente, não somente o gênero, mas

também o tango, a zamba e a chacarera, “representativos de países e regiões vizinhas, por não considerá-los

integrados à cultura musical rio-grandense”. Apud SANTI, Álvaro. Op. cit., p. 86. 814

Ibidem, p. 67-68.

266

Canção Nativa era vista por Barbosa Lessa como uma das tantas “boas novidades” surgidas

com a evolução do movimento.815

Politicamente, o clamor, mesmo que retórico, por justiça social no campo, que incluía

bandeiras da esquerda partidária e dos novos movimentos sociais como o pela reforma

agrária, poderia ser equacionado com a defesa do campesino e da cultura popular presente,

como vimos, no projeto individual de Barbosa Lessa e recorrente nos discursos de

companheiros seus como Sady Scalante e Fernando Brockstedt, durante a organização do

movimento. Ainda que a atenção ao pequeno proprietário e ao trabalhador rural em geral

estivesse na pauta dos partidos conservadores da década de 1950, o apelo ao “popular”

poderia, no novo contexto, facilmente ganhar ares “progressistas”. Como também sabemos,

duas vertentes disputaram o projeto tradicionalista durante sua constituição. Foi justamente

menos contemplada pela configuração posta em prática aquela que previa uma estrutura

elitizada baseada nos símbolos cultivados pelo registro militar da historiografia tradicional.

Consciente da “vitória”, naquele período, de suas próprias posições, nosso autor se vale

daquela dicotomia para reafirmar a opção pelo popular:

“De um lado, alguns companheiros acreditavam que os CTGs deveriam ter

uma preocupação „cultural‟, no sentido de cultura escolarizada ou cultivada

(estudo da História, da Literatura, do Folclore, etc). Outros julgavam ser esta

uma posição preconceituosa, no sentido de negar valor cultural às expressões

populares não-institucionalizadas (como a meteorologia empírica, a medicina

caseira, a literatura oral dos causos, o artesanato em couro ou lã, a lida

campeira, etc). Viva a cultura popular!”.816

A crítica ao elitismo de um dos grupos fundadores do “35” apontaria, assim, para um

dos rumos tomados pelo tradicionalismo, como vimos acima através do texto de Dacanal:

“Alguns, mais „aristocratas‟, temiam que o movimento se popularizasse

demais e que a arraia miúda também terminasse fundando seus Centros de

Tradições. Mas era exatamente isso o mais lógico, pô! A elite já tinha seus

815

Eis a transcrição da lista completa de “novidades” reverenciadas por nosso autor: “Por isso surgiram

espontaneamente os „quadros‟ para competições campeiras (a exemplo de um „quadro‟ de futebol de várzea)

que hoje se contam às centenas sob a denominação de „Piquetes de Laçadores‟. Por isso algum arquiteto bolou

forma de dar abrigo, na cidade, ao fogo-de-chão, e assim surgiu o estilo dos galpões Crioulos – com paredes

feitas de „costaneiras‟, algo inexistente na fronteira mas talvez autêntica tradição de Bom Jesus ou Cambará do

Sul. Por isso o CTG Porteira do Rio Grande criou o Rodeio Internacional de Vacaria, que não existia antes, mas

hoje é um dos pontos altos do calendário tradicionalista. Por isso o CTG Sinuelo do Pago criou a Califórnia da

Canção Nativa de Uruguaiana, que não existia antes, mas hoje se multiplica em dezenas de festivais de música

constituindo o próprio cerne da atual corrente nativista. Por isso Jayme Caetano Braun saiu por primeira vez

„pauando‟, em décimas de improviso, declamadas, e ganhou calorosos aplausos da gauchada. Por isso o espeto

saiu do acampamento campeiro e ganhou toalha, talheres e requintes para o atendimento a senhoras e crianças,

assim surgindo as chamadas „churrascarias à gaúcha‟ – que não existiam antes mas passaram a existir nas

principais cidades de todo o Brasil. E por isso alguém inventou uma dia o „Concurso de 1ª Prenda‟ (miss

tradicionaista), que não havia”. Ibidem, p. 68. 816

Ibidem, p. 79.

267

grêmios tipo Club Comercial, Jockey Club, Rotary Club ou Lions Club.

Então o pobre peão de estância ficaria condenado para o resto da vida a só

freqüentar chinedos e bochinchos?”.817

Sem entrar em atrito direto com os tradicionalistas conservadores, nosso autor

demonstra, então, sua simpatia pelas causas do novo grupo. Talvez por isso Luiz Augusto

Fischer tenha afirmado que o escritor preferia se pensar como nativista, “querendo escapar do

destino esteticamente pobre e ultraconservador do tradicionalismo [grifo do autor], que foi de

certa forma engolido pela lógica do mercado, coisa que a ele repugnava”.818

Todavia, Barbosa

Lessa nunca abdicaria da alcunha de “tradicionalista”. Pelo contrário, consciente da proporção

tomada pelo movimento, traçaria suas memórias, escritas a partir da década de 1990, muito

em função desta militância.819

Além disso, a afirmação do tradicionalismo como projeto popular não se dirigia

somente aos integrantes do movimento. Também era um recado à nova geração de

intelectuais universitários. Como sabemos pelo trabalho de Mara Rodrigues, quando os cursos

de Geografia e História da Universidade de Porto Alegre, futura UFRGS, e da Universidade

Católica do Rio Grande do Sul, futura PUCRS, se instituíram no estado, nos anos 1940, seus

objetivos centraram-se na formação e preparo de professores. Naquele momento, gerações de

eruditos vinculados ao IHGRS e aos museus históricos já assumiam a função de porta-vozes

locais do saber. Se a Universidade atraiu parte destes intelectuais, era na qualidade de

membros das academias tradicionais que eles empreendiam suas pesquisas históricas. Esta

configuração só começaria a mudar na década de 1970, quando a legislação federal passou a

exigir dos professores universitários a titulação em cursos de pós-graduação para sua

progressão funcional.820

Foram, então, os novos historiadores profissionais, mas também os críticos literários,

sociólogos e juristas que ocupavam os espaços vagos pelas primeiras gerações de professores

universitários ou que, fora da academia, obtinham reconhecimento através do debate público

local em interlocução com a universidade, que começaram a crítica ao gauchismo em

expansão. O livro RS: Cultura & Ideologia, como vimos, é um marco nesse sentido. Nele, os

pesquisadores acadêmicos Sandra Jatahy Pesavento, Nelson Boeira, Maria Elizabeth Lucas,

817

Ibidem, p. 79-80. 818

FISCHER, Luís Augusto. Op. cit., p. 107. 819

Apresentarei, de forma ensaística, alguns de seus textos autobiográficos nas Considerações Finais. 820

RODRIGUES, Mara Cristina de Matos. A institucionalização da formação superior em história: o curso de

Geografia e História da UPA/URGS – 1943 a 1950. Dissertação (Mestrado em História). Porto Alegre. 2002.

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do

Rio Grande do Sul, 2005, p. 181.

268

Flávio Loureiro Chaves, José Hildebrando Dacanal e Sergius Gonzaga uniam-se a nomes

como o do advogado e historiador diletante Décio Freitas e o do advogado trabalhista e

político profissional Tarso Genro para denunciar os mitos da “produção sem trabalho” e da

“miscigenação que não houve”; as relações orgânicas da historiografia, do pensamento

jurídico, da música e da literatura com a ideologia da classe dominante; e, por conseqüência,

as “mentiras sobre o gaúcho”. Doze anos mais tarde, Dacanal definia os esforços de

desmistificação do gauchismo empreendido por sua geração da seguinte maneira:

“A verdade é que a mitologia reinava soberana ainda na década de 70,

quando o Rio Grande já se integrara não apenas na moderna sociedade

urbano-industrial brasileira como também no macrossistema capitalista

internacional. E foi contra esse monstruoso anacronismo que uma geração de

intelectuais levantou-se – como óbvio contraponto aos interesses de novos

grupos econômicos e sociais emergentes – por não agüentar mais ouvir

múmias ambulantes repetindo os ecos de uma sociedade há muito

desaparecida”.821

Na esteira da crítica, surgiram, ao longo dos 1980, novos trabalhos de pesquisa, como

aqueles de Tau Golin e Ruben Oliven, abordados na introdução dessa dissertação. Tais

interpretações repercutiram, como sabemos, na produção antropológica e historiográfica local

até a década seguinte. Como denota a fala de Dacanal, alguns dos textos extrapolavam a

condição “objetiva” almejada pelas análises acadêmicas e se tornavam libelos contra a

anacrônica fábula gaudéria. Era o caso de Golin:

“Quando o homem trabalhador, do campo e da cidade, descendente ou não do

gaúcho, adquirir consciência de classe e organização política para

encaminhar sua conquista, estará identificando o Tradicionalismo e seus mais

ferrenhos defensores, para combatê-los. Bem mais do que lutar contra suas

idéias, é preciso afrontar os homens que as produzem. Não há por que

conservar imune ao debate quem tradicionalmente [grifo do autor] produz e

executa os princípios da dominação”.822

Ainda que, por influência de sua escrita de ficção, se faça presente estilisticamente nos

textos historiográficos de Barbosa Lessa uma cadência narrativa que, em muitos momentos,

lembra (propositalmente) a do contador de causos dos galpões gaúchos, tais textos buscam o

distanciamento recomendado para, segundo o autor, “verificar com clareza”823

os fenômenos

sociais. Se, como vimos na última seção, havia algum espaço para arroubos cívicos nessas

narrativas, eles foram, entretanto, raros. O afastamento temporal seria, aliás, na perspectiva de

821

DACANAL, José Hildebrando. Op. cit., p. 83. 822

GOLIN, Tau. A ideologia do gauchismo. Op. cit., p. 69. 823

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. Nativismo. Op. cit., p. 111.

269

Lessa, um ingrediente importante a uma avaliação adequada da história. Talvez por isso seu

livro de síntese historiográfica, analisado acima, não tenha ultrapassado, enquanto marco

temporal, o começo do século XIX, e seus demais escritos sobre o passado, como as

biografias de personagens ilustres, tenham se restringido, no máximo, ao período da

República Velha. Talvez por isso, também, o passado recente e o gauchismo como tema,

mesmo que referente ao século XIX, quando abordados, surjam na ótica da memória e não do

discurso historiográfico. Em Nativismo, portanto, Barbosa Lessa não tem pudores em declarar

seus vínculos afetivos com a identidade gauchesca e em narrar também afetivamente a sua

história, ainda que tecendo explicações para ela.

É dessa maneira que nosso autor responde às críticas da geração de Golin824

,

lembrando gerações passadas de intelectuais “antigauchistas”. Segundo Lessa, no começo do

século XX, os rio-grandenses que chegavam na capital federal passaram a ganhar o “apelido”,

no momento bem informal, de gaúchos. Se alguns integrantes desta “colônia” receberam a

alcunha com simpatia, no estado o fato teria causado mal-estar à elite urbana. O escritor

Arthur Toscano se tornaria o porta-voz desse segmento no debate público de então, proferindo

sentenças como as seguintes:

“Por que carga d‟água chamam ao nosso Estado de terra gaúcha e aos rio-

grandenses gaúchos? Gaúcho, no sentido étnico, histórico, ou peculiar da

palavra, é um tipo extinto” [grifos do autor].

“Os rio-grandenses do sul não são, nunca foram gaúchos, não descendem de

gaúchos, não têm os hábitos dos antigos gaúchos, salvo se se pode chamar

gaúcho um indivíduo só porque enverga poncho, bombachas, botas, chilenas

[esporas], chapéu de aba larga e lenço ao pescoço. (...) Mas nesse caso é

gaúcho também o mineiro, o paulista, o cearense, que em trabalhos de

idêntica natureza envergam por comodidade os mesmos trajos e, com

pequenas modificações, têm os mesmos hábitos”.825

A negação de Toscano à alcunha e à ascendência étnica gaúcha ao rio-grandense,

contrariando o que seria, na ótica tradicionalista, a identificação de hábitos e costumes

gauchescos próprios do povo do estado é, então, aproximada por Barbosa Lessa à negação ao

tradicionalismo efetivada pelos intelectuais dos anos 1980:

“Ainda hoje, quando existem cerca de 800 Centros de Tradições Gaúchas, ou

mais, muita gente boa preferiria jogar uma bomba atômica em todos eles para que o povo não tivesse vez de participar do espetáculo da vida com suas

„trovas atoleimadas‟ e seus hábitos arcaicos. Imagine-se, então, como deve

824

Muitos textos de Golin publicados na imprensa local se encontram entre os recortes das pastas do Acervo

Barbosa Lessa e, com base nisso, podemos inferir ter sido nosso personagem leitor deste historiador (diletante

naquele momento). 825

TOSCANO, Arthur. Apud BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. Op. cit., p. 46.

270

ter sido fácil cortar desde o início as asas daqueles precursores reunidos em

meia dúzia de grêmios gaúchos”.826

O discurso de Lessa se torna ainda mais veemente quando trata do último ciclo do

gauchismo, o nativismo musical. Nesse ponto, nosso autor ressalta que a complexa situação

de então, “exótica mistura de telurismo, culto dos antepassados, farroupilhismo, gauchismo

cívico, regionalismo literário, tradicionalismo e nativismo”827

, experimentada nos

acampamentos dos festivais de música gaúcha e que ganhava o cotidiano de significativa

parcela da população do Rio Grande do Sul e de outros estados, gerava desconforto aos olhos

de muitos pela falta de definição, parecendo tudo isso “muito confuso e um pouco grotesco”.

Todavia, assim como nos anos 1950, a “bagunça” não seria privilégio do gauchismo, mas

característica do contexto social mundial. O desenvolvimento da cultura de massa viria a

aprofundar o sentimento generalizado de caos. A teoria das “quatro culturas” desenvolvida

durante a elaboração das diretrizes da SCDT volta à cena pra explicar o momento:

“Na verdade, a cultura como um todo acha-se em processo de reformulação

no mundo inteiro. Foi-se o tempo em que havia um profundo poço separando

a cultura letrada, „superior‟, da cultura espontânea, „inferior‟. A cultura de

massa entrou rachando, com televisão e demais recursos audiovisuais, e

bagunçou o coreto do conhecimento acadêmico”.828

O autor prossegue criticando a reação negativa da universidade à nova cultura de

massas, que aliava a cultura letrada à popular, e que, no Rio Grande do Sul, seria representada

pela nova fase do tradicionalismo e sua variante nativista: “Nesse conturbado contexto, a

escola e demais segmentos da cultura cultivada dão por vezes a impressão de dançar na corda-

bamba”.829

Barbosa Lessa recorre, então, ao filósofo e sociólogo francês Edgar Morin pra

rebater os ataques da academia: “Mas antes de perguntarmos se a cultura de massa é na

realidade como o vê o culto, é preciso nos perguntarmos se os valores da „alta cultura‟ não são

dogmáticos, formais, mitificados”.830

A partir daí, passa a questionar diretamente as posições

dos professores universitários na cena local com apontamentos realizados também por

acadêmicos. Evoca com esse objetivo o livro Educação: Terra de Ninguém, da professora

Arlete Marques da Silva, doutora em Educação pela Sorbonne, para mostrar que a política de

capacitação de professores buscada pela legislação federal “desembocou na formação de uma

elite de especialistas bolsistas no Exterior”; e enfatiza a advertência da autora sobre a possível

826

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. Op. cit., p. 47. 827

Ibidem, p. 111. 828

Ibidem, p. 111-112. 829

Ibidem, p. 112. 830

MORIN, Edgar. Apud ibidem, p. 112.

271

alienação de tais especialistas da própria realidade sobre a qual pretendem interferir. Como

remédio, balizado pela proposta de Silva, nosso personagem recomenda que os acadêmicos

“se desloquem para os rincões perdidos nos confins-do-judas”. Se existiria este tipo de

predisposição de contato com o “popular” entre doutores como Arlete da Silva, sua ausência

entre os intelectuais locais seria o principal motivo para os ataques desferidos por esses ao

gauchismo, como demonstra a questão colocada: “E é aí que eu me pergunto: por que motivo,

no Rio Grande do Sul, a cada vez que as nossas gerações abraçaram os valores da gleba como

uma expressão de suas expectativas, a escola contraria estas expectativas?”.831

O contra-

ataque ganha ares de repreensão e, por fim, de convite: “De trinta em trinta anos renova-se no

Rio Grande do Sul o interesse dos jovens pela cultura popular, e só falta a Escola se engajar

nesse movimento”.832

Vinculando estreitamente a noção de “popular” ao “gauchesco”, como efetivado pelas

ações da SCDT cerca de cinco anos antes, Barbosa Lessa pôde, então, defender o gauchismo,

em suas variadas e conflitantes vertentes, da crítica acadêmica. O signo do popular deveria

pacificar o movimento, pelo viés mais “aberto”, aliás, e rebater as acusações de

conservadorismo, elitismo e aval da dominação social. Não importava se os “aiatolás da

tradição” também defendessem os interesses do latifúndio e as elites de base agrária do

interior se apropriassem dos CTGs. Ou melhor, o apelo ao “popular” também era um recado

político dado a eles, os quais não deveriam esquecer que o terreno em que se moviam não era

só seu. Por último, tradicionalismo e nativismo eram populares porque se configuravam como

movimento de massa e, dessa forma, marginalizado pela “cultura escolarizada”. Essa

oposição poderia ser facilmente atestada pela própria academia. Aliás, o sentido de popular

corrente nos estudos acadêmicos balizava esta oposição binária. Na mesma época, por

exemplo, Roger Chartier caracterizava o objeto desses estudos como “formas culturais

situadas fora ou à margem dos modelos eruditos ou letrados”.833

O que Barbosa Lessa fez

com habilidade foi reverter discursivamente esta oposição a seu favor no debate com os

professores universitários rio-grandenses. Afinal, como afirma Geneviève Bollème, “o

interesse pelo popular é sempre político ou resultado de uma política a partir do momento em

831

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. Op. cit., p. 115. 832

Ibidem, p. 116. O convite não surge, entretanto, sem provocação: “Mas para isso é preciso um pouco de

coragem. A coragem do pedagogo olhar cara a cara o seu povo. E que prefira, à tese de mestrado „O

comportamento sexual na Antiga Babilônia‟ (facilmente aprovável com louvor pois ninguém esteve lá para

comprovar a história), algo prosaico e chão como „As soluções de alimentação entre os migrantes rurais do

Alegrete‟”. Ibidem, p. 116-117. 833

CHARTIER, Roger. Apud BOLLÈME, Geneviève. O povo por escrito. São Paulo: Martins Fontes, 1988, p.

52.

272

que declara sua marginalidade, distância e diferença”.834

Assim como o “popular”, o

“gauchesco” em específico é apresentado como culturalmente marginalizado, distante das

atenções “alienadas” da erudição local. Sendo também popular, ele seria ainda duplamente

marcado pela diferença. Caberia à academia do estado, segundo o autor, seguir o exemplo dos

doutos além Mampituba e se aproximar da “geléia geral” nativista dos anos 1980.

Portanto, o Rio Grande do Sul que emerge deste texto volta a se diferenciar do “País

da Solidão” conquistado por luso-brasileiros. Ele é ainda “gaúcho” em sua plenitude. Todavia,

o gaúcho almejado é novamente aquele do projeto individual de nosso escritor nos anos 1950,

quando sua literatura atualizava o mito incorporando a diversidade cultural, mas também

aquele do mosaico rio-grandense de Rodeio dos Ventos. Se o discurso afetivo da memória

permitiu enunciações mais apaixonadas e melhor direcionadas ao debate público local, sua

incitação pelo novo contexto fez com que algumas posições mais “rígidas” assumidas no

primeiro texto memorialístico também se apagassem. A questão das colônias de imigração do

Estado é um exemplo. Para Álvaro Santi, o contexto de abertura política também influenciaria

esta mudança: enquanto que no livro Danças em Andanças Lessa e Côrtes teriam

caracterizado as manifestações destas colônias num plano idêntico ao destinado à cultura

norte-americana, ambas igualmente “alienígenas”, a obra Nativismo “já aparece

convenientemente depurada desse preconceito”.835

Para nuançar ainda mais nossa oposição

entre historiografia e memória, vale ressaltar que algumas das explicações tecidas neste livro

encontraram eco acadêmico: tomando-o como texto de História, Maria Eunice Maciel pode

assumir a diferenciação entre “cultura tradicional” e “cultura tradicionalista” para analisar o

tradicionalismo836

; mais recentemente, a caracterização das linhas musicais regionalistas

auxiliou a pesquisa de mestrado em História de Francisco Cougo Junior sobre o músico Vitor

Mateus Teixeira, vulgo Teixeirinha.837

Todavia, acredito que posso afirmar, pelo mostrado até

aqui, como conclusão da seção, que o discurso memorialista de Nativismo, expressivamente

distinto de Rio Grande do Sul: prazer em conhecê-lo, permitiu, em grande medida, o retorno

de um Barbosa Lessa folclorista e artista, compositor de músicas e de ritos, culturalmente

agregador e aberto à inovação.

834

BOLLÈMME, Geneviève. Ibidem, p. 53. 835

SANTI, Álvaro. Op. cit., p. 47. 836

Ver MACIEL, Maria Eunice. Tradição e Tradicionalismo no Rio Grande do Sul. Op. cit. 837

COUGO JR., Francisco. Canta meu povo: Uma interpretação histórica sobre a produção musical de

Teixeirinha (1959-1985). Dissertação (mestrado em História). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,

Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2004, 221 p.

273

* * *

Ao longo deste capítulo, procurei apontar para as características gerais da nova

produção escrita de Barbosa Lessa após sua saída da SCDT. A partir da identificação de uma

tensão que, de certa forma, surge com o projeto de pacificação cultural desenvolvido no

governo do Estado, escolhi duas obras do período, além de retomar a leitura de Danças e

Andanças, de 1975, que indicam um ou outro pólo desta tensão, mas que privilegiam ainda a

figura do gaúcho pampiano e a construção/atualização das “tradições gaúchas”. Para o

primeiro livro, ensaio histórico sobre a formação social do Rio Grande do Sul, bastante

próximo da historiografia tradicional quer pela temática quer pela postura adotada em relação

ao seu objeto, optei por centrar a análise nas características internas da narrativa, ainda que as

tenha relacionado com as imagens construídas pela erudição precedente, ancorado no trabalho

de Gutfreind, principalmente. Já para o exame do segundo livro, procurei restabelecer seus

diálogos diretos com a cena pública local. Busquei, também, atentar para as especificidades

discursivas da memória que possibilitaram enunciações carregadas de afetividade e de estilo

pessoal na conciliação de tradicionalistas e nativistas e na contenda com os intelectuais

universitários. Assim, de um Rio Grande luso e brasileiro “agauchado” pelo meio, chegamos

a outro Rio Grande plenamente “gaúcho” porque cindido pela diversidade e pela mudança.

Os próximos livros de Barbosa Lessa, como dito, parecem resolver a tensão em função

do segundo Rio Grande. É desta forma que nosso autor se tornaria uma referência sobre a

questão indígena e a cultura guarani, através da circulação nacional de A era de Aré e, não

menos importante, que se daria o seu tardio reconhecimento acadêmico local, com sua

inclusão junto a outros escritores consagrados neste cenário, como Décio Freitas e Armindo

Trevisan838

, na coletânea de textos intitulada Missões Jesuítico-Guaranis, publicada em 1999

pelo Instituto Humanitas da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISNOS).839

838

Doutor em Filosofia pela Universidade de Friburgo (Suíça), em 1963. Na década de 1970, fez estudos de

Literatura, Arte e Filosofia, como bolsista da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa (Portugal). Tornou-se

professor, em 1986, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Recebeu diversos prêmios como escritor,

entre os quais Prêmio Gonçalves Dias da União Brasileira de Escritores por seu primeiro livro de poesias, “A

surpresa do ser”, publicado em 1967 e em cuja comissão julgadora se incluíam Carlos Drummond de Andrade,

Manuel Bandeira e Cassiano Ricardo, o prêmio nacional de Brasília pelo livro “O abajur de Píndaro” em 1972 e

o prêmio APLUB de Literatura 1996-1997 pelo livro “A dança do fogo”. Fonte: ARMINDO TREVISAN.

Biografia. Disponível na internet: http://www.ufsm.br/literaturaehistoria/armindotrevisan.html. Acesso em:

15/02/2010. 839

MISSÕES JESUÍTICO-GUARANIS. São Leopoldo. Editora da UNISINOS, 1999.

274

Após se aposentar como jornalista, em 1987, ele partiu para o interior do município de

Camaquã, junto com a esposa Nilza. Viveu mais de uma década em sua chácara, chamada

Água Grande, entre livros, sua velha máquina de escrever, muitas pastas de documentos – que

viriam a se tornar o Acervo Barbosa Lessa, em 2002840

–, buscando reviver aquela vida

“gaúcha” de comunhão com a terra e com a natureza idealizada em muitos de seus escritos,

plantando e processando, inclusive, sua própria erva-mate. De lá assistiu atento ao

crescimento do tradicionalismo organizado e chegou a participar, nos anos 1990, de novos

congressos tradicionalistas. Nestes, mais uma vez, o Barbosa Lessa folclorista e “agregador”

comparecia na defesa de uma tese em que o Rio Grande se tornava apenas uma das peças da

“cultura gaúcha” mais ampla, centrada na figura do “cevador”, quer dizer, do homem

campeiro que prepara e oferece o mate841

com a cordialidade que caracterizaria os diversos

países e regiões inseridos neste círculo (Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, Mato

840

No ano anterior, tramitava na Assembléia Legislativa, um projeto para a aquisição da Biblioteca de Barbosa

Lessa e seu acervo pessoal. As autoridades políticas locais e agentes da área de cultura, capitaneados pelo então

prefeito de Camaquã, João Carlos Machado, reivindicaram a permanência do material na cidade: “Sendo o

escritor e historiador Luiz Carlos Barbosa Lessa natural de Piratini e cidadão Camaqüense, portanto um

patrimônio vivo da metade sul do Estado, nada mais oportuno que a referida biblioteca continue onde está, vindo

a tornar-se um referencial da história gaúcha na tão esquecida metade sul, o que vem de encontro (sic) com a

proposta atual do Governo de descentralização da cultura”. Correspondência assinada pela Associação Gaúcha

Municipalista, pela Prefeitura Municipal de Camaquã, pela Secretaria da Cultura, pelo Núcleo de Pesquisas

Históricas de Camaquã, pela Câmara Municipal de Vereadores, pela Casa do Poeta Camaqüense (CAPOCAM),

pela FUNDASUL – Faculdades da Região Sul e pelo CTG Camaquã, dirigida ao Deputado Estadual Sérgio

Zambiasi, então presidente da Assembléia Legislativa, em 08/08/2001. Pasta sem numeração do Acervo Barbosa

Lessa [referente aos documentos do Acervo e notícias de jornal sobre o personagem e sobre o arquivo,

recolhidas pelos funcionários da Secretaria]. O projeto de lei foi aprovado em dezembro daquele ano,

contemplando a exigência da comunidade local. Ver TERMO DE CESSÃO de auxílio social entre Assembléia

Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul e o Município de Camaquã. Assembléia Legistativa do Estado do

Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 05/12/2001 [o documento se encontra na pasta do Acervo Barbosa Lessa acima

referida]. Com o recrudescimento do câncer que acometia o escritor, em 2002, a secretária de cultura daquele

município, Maria Beatriz Tavares da Silva, pressionou pela liberação do pagamento, que auxiliaria a custear seu

tratamento e solicitou a aceleração dos trâmites de implantação do Acervo. No mesmo ano do falecimento de

Barbosa Lessa, iniciou-se, então, o processo de transferência dos documentos para o Forte Zeca Neto, prédio

histórico que abriga a Secretaria Municipal de Cultura e Turismo. Segundo os relatos dos funcionários da

instituição, uma bibliotecária do Estado foi designada para orientar os trabalhos. No entanto, esses se

restringiram à limpeza dos documentos mais antigos e sua deposição em novas pastas, as quais seguiriam a

organização das caixas de papel em que eles se encontravam, na reserva de Água Grande. Parece-me, entretanto,

que não houve rigor no respeito à catalogação realizada pelo próprio Barbosa Lessa. A numeração das novas

pastas, creditada ao escritor, não segue, por exemplo, a estrutura das fichas catalográficas elaboradas por ele.

Desde então, os funcionários da Secretaria vêm desdobrando-se entre suas atividades contratuais específicas e o

trabalho elogiável de manutenção do espaço. Mas muito há, ainda, por fazer, como o restauro de documentos,

sua catalogação e acondicionamento adequados, o que só ocorrerá quando as autoridades competentes dos

governos municipal e estadual reavaliarem sua relação com o Acervo, dotando-lhe de projeto técnico elaborado

por especialistas como arquivistas, museólogos e historiadores. 841

“É o nosso verdadeiro professor de cordialidade. Ele é quem oficia este rito e é mais importante do que o

simples mateador que pode estar tomando seu mate escondido, egoisticamente. Já o cevador deve

necessariamente ter um outro a quem ele estende a cuia do chimarrão e que pode ser até um inimigo porque é seu

dever colocar acima de uma eventual antipatia, este sentido coletivo de solidariedade”. CEVADOR, O núcleo de

nossa cultura (entrevista com Barbosa Lessa). Buenas Tchê. Santa Catarina, dezembro de 1991. Disponível na

internet: http://www.buenas.com.br/edi5/geral1.htm. Acesso em: 10/01/2010.

275

Grosso do Sul, Mato Grosso, Paraguai, Uruguai, Argentina e Chile): “o que mais nos

caracteriza é a cordialidade, o sentido de coração aberto, a comunicação com outros seres

humanos e outros efeitos resultantes como a concórdia, o respeito pelos concidadãos, a

hospitalidade [e] até a sonhada e desejada paz”.842

Mas a distância de Porto Alegre também o afastou, de certa forma, da cena intelectual

metropolitana, ainda que ele tenha se tornado colunista de cultura do jornal Zero Hora. A

mesma distância o levou a pedir exoneração das academias tradicionais das quais fazia parte,

como o IHRGS. Com o seu concomitante (re)aparecimento no meio tradicionalista, nosso

personagem passou a ser lembrado principalmente como militante desse movimento, o que foi

ressaltado por ele mesmo em seus escritos autobiográficos. O seu esquecimento como escritor

só começou a ser resolvido, como apontado, muito tardiamente, nos últimos anos de sua vida.

Para concluir este trabalho, gostaria de, a seguir, tecer de forma ensaística algumas

considerações sobre o binômio consagração/estigma na trajetória de Barbosa Lessa. A

estratégia visa, outrossim, introduzir o balanço final dos resultados desta pesquisa e

apresentar, ainda, algumas de suas lacunas e/ou insuficiências.

842

Ibidem.

276

“Porteira Aberta”: considerações finais

Terminarei esta dissertação da maneira como ela foi iniciada, ou seja, relatando uma

situação por mim vivida durante o percurso da pesquisa que me sensibilizou para algumas

questões aqui tratadas. Já no segundo ano de mestrado, quando iniciava efetivamente o

trabalho de análise das fontes e de escrita dos capítulos, fui convidado para falar sobre o

Barbosa Lessa historiador em um evento de minha própria Universidade.843

Além das muitas

dúvidas sobre os rumos que a investigação tomaria, também fiquei apreensivo com a

solicitação de uma fala ampla, que apresentasse a obra do autor “em geral”. Por conta disso,

optei por expor seus principais textos historiográficos e alguns de seus livros de ficção que

trabalharam com material histórico, relacionando-os com o projeto coletivo tradicionalista.

Assim, também pretendia tecer algumas considerações sobre a construção prospectiva do

projeto individual de nosso personagem, criticando os usos, a meu ver, às vezes abusivos da

noção de “ilusão biográfica” nos estudos de vida, nos mesmos termos do Capítulo I dessa

dissertação. Após a comunicação, recebi uma daquelas perguntas que, ao mesmo tempo, nos

desestabilizam e estimulam: seria Barbosa Lessa um escritor “decente”? Naquele momento,

inconscientemente, optei por não responder, ao menos de forma direta, à interrogação, a qual,

de alguma forma, questionava o próprio trabalho que vinha desenvolvendo. Tergiversando,

disse que a obra de nosso escritor era bastante heterogênea, além de complexa, e que, para ser

compreendida, seria necessário restabelecermos sua interlocução, como procurei fazer ao

longo desse trabalho. Nesse sentido, a “pobreza” de alguns de seus textos podia ser creditada

ao fato deles se dirigirem a certos destinatários principais, como a militância tradicionalista

não especializada ou mesmo um público mais vasto, leitor de jornal, mas desacostumado com

os “requintes” estilísticos do debate intelectual. Eram “panfletos”, na sua acepção mais

comum, de pequenos escritos políticos direcionados a polêmicas específicas, marcados ainda

por aquele pendor pedagógico que levaria Lessa a escrever um manual de danças e, por fim, a

se aventurar na literatura infanto-juvenil, e que exigiam simplicidade e clareza para a melhor

compreensão de sua mensagem. Disse ainda, ou tentei dizer, que a leitura de Barbosa Lessa

843

Trata-se da I Jornada de História da História: Historiadores, realizada nas dependências do Instituto de

Filosofia e Ciências Humanas da UFRGS, em abril de 2009, em que apresentei a comunicação intitulada “Luiz

Carlos Barbosa Lessa: literato, historiador, gaúcho, brasileiro”.

277

me agradava, pois encontrava mesmo em seus textos historiográficos, e mais “rígidos”, aquela

consciência narrativa literária que faz de um escritor o senhor de sua obra. Permiti-me então

um exercício de anacronismo e afirmei, de forma semelhante ao que fez Joana Bosak de

Figueiredo para Rodeio dos Ventos, que um livro como Rio Grande do Sul: prazer em

conhecê-lo, se escrito da mesma maneira dez anos depois e por alguém que portasse um título

acadêmico, poderia ser visto facilmente como uma “história cultural à brasileira”, apesar de

suas funções políticas e das conclusões a que chegara. De lá para cá, não mudei estas

opiniões. Ao contrário, as tenho consolidado com a leitura mais atenta e cuidadosa de seus

textos. Mas, obviamente, a pergunta continuou a me intrigar. Gostaria, assim, de refletir sobre

ela e, com isso, retomar, ainda que de forma não linear, os principais resultados dessa

pesquisa.

Como afirmei na conclusão do último capítulo, Barbosa Lessa experimentou certo

reconhecimento como escritor, ainda que muito tardiamente. Fatos como sua escolha para

patrono da 46ª Feira do Livro de Porto Alegre, no ano de 2000 – o que só aconteceu, vale

ressaltar, após a constatação de sua aceitação pelo grande público, ao ser eleito um dos “20

gaúchos que marcaram o século XX”844

, no ano anterior – reforçam essa avaliação. No

entanto, a questão antes levantada mostra que tal reconhecimento foi bastante limitado, ao

menos no ambiente acadêmico. A lembrança serôdia não pode, assim, ser confundida com

sagração final. No caso de Lessa, aliás, o movimento foi inverso: ao aplauso inicial da crítica

especializada seguiu-se o estigma e o esquecimento. Nas décadas de 1940 e 1950, nosso

personagem, como sabemos, publicou reportagens e artigos em veículos, ao mesmo tempo, de

prestígio intelectual e grande circulação, como a Revista do Globo, de Porto Alegre, e a

Revista da Semana, do Rio de Janeiro. Tal inserção no meio jornalístico, aliada à bem-

sucedida empreitada no ramo teatral, abriu-lhe as portas, em 1958, de uma editora prestigiosa

como a Livraria Francisco Alves, para a publicação do livro Primeiras Noções de Teatro. Um

844

A pesquisa realizada pelo jornal Zero Hora, do grupo RBS, contou com mais de um milhão e setecentos mil

votos depositados em 360 urnas espalhadas pelo Estado. Barbosa Lessa recebeu a 11ª maior votação, com 42.094

indicações, ficando, assim, atrás somente de Erico Verissimo e Mário Quintana entre os escritores selecionados.

Os outros 19 nomes lembrados, em ordem de votação, foram: José Mariano da Rocha Filho, Érico Verissimo,

Mário Quintana, Getulio Vargas, Lupicínio Rodrigues, Francisco Bastos, Elis Regina, Dom Vicente Scherer,

Alberto Pasqualini, João Goulart, Padre Landell de Moura, Lya Luft, Rubem Berta, Paixão Côrtes, Assis Brasil,

Oswaldo Aranha, Teixeirinha, A. J. Renner e Ieda Maria Vargas. Receberam, ainda, grande votação, mas não

suficiente para constar na lista, personalidades políticas como Leonel Brizola, Borges de Medeiros, Luiz Carlos

Prestes, Flores da Cunha, Pinheiro Machado, Ramiro Barcellos e Ernesto Geisel; escritores como Josué

Guimarães, Simões Lopes Neto, Cyro Martins, Caio Fernando de Abreu e Dyonélio Machado, entre outros.

Fonte: OS VINTE gaúchos do século. Portal Página do Gaúcho. Disponível em:

http://www.paginadogaucho.com.br/pers/20mais.htm. Acessado em: 25 de abril de 2009.

278

ano depois, era a vez do romance Os Guaxos ser lançado pela mesma empresa.845

Conforme

mostrado por Letícia Nedel, poucos autores dentre aqueles da geração precedente de eruditos

rio-grandenses tinham acesso a editoras com esse tipo de apelo no eixo Rio-São Paulo, daí a

atuação na CNFL ser encarada como uma possibilidade de rompimento com o isolamento

imposto pelo “centro”, de intercâmbio com outras elites intelectuais periféricas e, mesmo, de

obtenção da “celebridade” necessária para pleitear tal acesso.846

Nosso autor, todavia, parece

não ter encontrado as mesmas resistências, talvez também devido à sua atuação na Comissão

Paulista de Folclore. De qualquer forma, a aposta no “escritor moço, mas já bem marcado

com a marca do ferro e do fogo do Rio Grande do Sul”847

, rendeu bons frutos de crítica. Em

Porto Alegre, Os Guaxos foi saudado, por exemplo, como “romance enxuto, áspero e de

paixão”, por Aldo Obino, nas páginas do Correio do Povo848

, e considerado, por Walter

Spalding, no jornal Estado do Rio Grande, como o “melhor e maior romance do Rio Grande

até hoje aparecido”.849

Mas chama mesmo a atenção a profusão de notas, comentários e

críticas sobre esse livro no centro do país. Antonio Olinto, do jornal O Globo, do Rio de

Janeiro, caracterizou-o como “romance bem realizado” que, além disto, impunha o nome de

Barbosa Lessa à “literatura brasileira de hoje”.850

Sérgio Milliet, n‟O Estado de São Paulo,

recomendava sua leitura “sem medo de errar” e afirmava que nosso personagem havia

conquistado “lugar de honra entre os romancistas nacionais”.851

Já Carlos Lacerda, no

845

A biografia do autor preparada pela editora e publicada nas orelhas do livro o caracteriza como “um gaúcho

plenamente vitorioso na literatura brasileira”. Recorre também à autoridade intelectual de Erico Verissimo para

confirmar o talento precoce do jovem de 29 anos, na lendária sentença proferida ao conhecê-lo na redação da

Revista do Globo: “Tome nota desse nome. Este rapaz ainda há de ir longe”. A experiência com o Conjunto

Folclórico brasileiro teria, igualmente, lhe conferido, segundo o texto, notoriedade: “Teatrólogo ilustre, Barbosa

Lessa, com base no folclore gaúcho, suma matéria prima, escreveu e encenou a peça, „NÃO TE ASSUSTA

ZACARIA!‟ [grifo do autor], cujo êxito foi invulgar”. Por fim, salienta-se o sucesso de crítica: “Ainda

recentemente, Barbosa Lessa, que é um trabalhador incansável, obteve grande êxito de crítica e de livraria,

através da publicação de dois livros: „PRIMEIRAS NOÇÕES DE TEATRO‟, editado por esta casa, e „O BOI

DAS ASPAS DE OURO‟ [grifos do autor], histórias gauchescas, volume que figura na prestigiosa „Coleção

Província‟ da Editora Globo, de Porto Alegre”. In BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. Os guaxos. Op. cit. 846

“Até o ingresso nas redes da CNFL, Dante de Laytano publicava seus livros ou pela Editora Globo, ou pela

Imprensa Oficial do estado. Depois disso, juntamente com Walter Spalding, começa a publicar pela Editora

carioca Simões. Já publicar pela José Olympio, a Martins ou a Francisco Alves era geralmente um privilégio de

poucos”. NEDEL, Letícia Borges. Op. cit., p. 260. 847

In: BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. Os guaxos. Op. cit. 848

OBINO, Aldo. “Os Guaxos”, de Barbosa Lessa. Correio do Povo. Porto Alegre, s./d., s./p. Pasta 2.4.1 do

Acervo Barbosa Lessa. 849

SPALDING, Walter. Impressões de leitura. Estado do Rio Grande. Porto Alegre, 24/10/1959, s./p. Pasta 2.4.1

do Acervo Barbosa Lessa. 850

Demonstrando conhecer a obra de nosso escritor, Olindo ainda fazia a seguinte comparação: “O que em „O

boi das aspas de ouro‟ – um de seus livros anteriores – era promessa, transformou-se, neste, em obra segura e

espessa. Não há dúvida de que o Sul do país volta, com „Os Guaxos‟, a firmar sua presença em nossa ficção”.

OLINTO, Antonio. “Os Guaxos”. O Globo. Rio de Janeiro, 14/10/1959, s./p. Pasta 2.4.1 do Acervo Barbosa

Lessa. 851

MILLIET, Sérgio. “Os Guaxos”. O Estado de São Paulo. São Paulo, 17/10/1959, s./p. Pasta 2.4.1 do Acervo

Barbosa Lessa.

279

Tribuna da Imprensa, vaticinava: “quem agarrar este livro, duvido que o largue antes de

acabá-lo, falo por experiência”.852

O próprio Barbosa Lessa soube capitalizar o prestígio

adquirido em favor de novos projetos, como a coletânea Estórias e Lendas do Rio Grande do

Sul, na coleção Antologia Ilustrada do Folclore Brasileiro, publicada pela então novata

Literart, também de São Paulo, em 1960.853

Mas o retorno a Porto Alegre deu início a uma história bastante ambígua. O

reconhecimento intelectual, como vimos no capítulo V, lhe denotou a “capacidade técnica”

necessária para assumir a pasta de Cultura do governo estadual. Dois anos antes, em 1978,

nosso personagem foi escolhido orador oficial da 24ª Feira do Livro de Porto Alegre, edição

na qual o historiador e amigo Walter Spalding era homenageado com o título de patrono. A

distinção honrosa a Lessa, no entanto, era vista, já naquele momento, pelo próprio autor,

como uma espécie de justiça extemporânea aos trinta anos de dedicação à escrita, muitas

vezes esquecidos em função de seu apego às “coisas do Rio Grande do Sul”, o que tinha feito,

aliás, nesse quesito, com que lhe incluíssem na “subspécie que é o tradicionalismo ou o

regionalismo”: “Considero esse ato um degrau acima na minha carreira, porque parece, pela

primeira vez, que estou sendo considerado não o tradicionalista, mas o escritor”.854

A

receptividade aos seus novos livros, como Rodeio dos Ventos855

, daquele ano, não era

suficiente para modificar a percepção de que a imagem de militante tradicionalista continuava

852

LACERDA, Carlos. “Os Guaxos”. Tribuna da Imprensa. Rio de Janeiro, 09/10/1959, s./p. Pasta 2.4.1 do

Acervo Barbosa Lessa. A publicação do livro também repercutiu em outros pontos do país, como mostra a nota

do crítico Abadias Lima, da Gazeta de Notícias, de Fortaleza: “O Rio Grande do Sul, que já tem dado bons

romancistas, Erico Verissimo à frente, apresenta agora um moço de 29 anos que já é verdadeira revelação como

ficcionista”. LIMA, Abadias. Notas literárias. Gazeta de Notícias. Fortaleza, 25/12/1959, s./p. Pasta 2.4.1 do

Acervo Barbosa Lessa. Para uma análise de recepção das críticas publicadas sobre o romance Os Guaxos, ver a

seção 4.6 do quarto capítulo da tese de Joana Bosak de Figueiredo. 853

O texto das orelhas deste livro apresenta nosso autor como “um dos maiores conhecedores do folclore

brasileiro em geral e do folclore gaúcho em particular”. In: BARBOSA LESSA, Luiz Carlos (org.). Estórias e

lendas do Rio Grande do Sul. Op. cit. 854

In: BARBOSA LESSA: na praça o reconhecimento como escritor. Zero Hora. Porto Alegre, 01/12/1978, p.

38. Pasta 2.3.2 do Acervo Barbosa Lessa. 855

Uma matéria sobre o lançamento da obra aponta para a boa aceitação do texto e do autor: “A mistura singela

e bárbara de lenda e realidade, de pesquisa e ficção, faz com que o lançamento da Editora Globo em parceria

com a Rede Brasil Sul de Comunicações se torne não só uma oportunidade de leitura para o brando povo, como

também um documento latente popular do que é o Rio Grande e o que são os seus grandes escribas”. NO

RODEIO dos Ventos mais um grande lançamento literário do Estado. Diário Serrano. Cruz Alta, 27/01/1979, p.

5. Pasta 2.3.2 do Acervo Barbosa Lessa. Dois anos antes, o crítico literário Antonio Hohlfeldt igualmente tecia

uma análise abonadora do romance policial O crime é um caso de marketing, publicado por Barbosa Lessa em

1975: “Ao leitor das coisas óbvias, chamará a atenção sobretudo o desvendamento do fascinante e massacrante

mundo da publicidade que o escritor nos entrega. Efetivamente, com a segurança de quem, de um lado, conhece

profundamente o tema que enfoca (pelos muitos anos dedicados a esta profissão), e simultaneamente conhece

também a própria tarefa do narrar, que é a literatura, Barbosa Lessa leva a narrativa deste seu novo livro com um

envolvimento do leitor que poucas vezes se encontra, mesmo naqueles mais conhecidos autores de romances

policiais importados do estrangeiro, e que se costuma consumir ao nível de best-seller”. HOHLFELDT, Antonio.

O romance policial em nova fase? Correio do Povo. Caderno de Sábado. Porto Alegre, 14/05/1977, p. 13-14.

Pasta 2.3.2 do Acervo Barbosa Lessa.

280

preponderante. Três anos antes, aliás, a mesma reportagem que noticiava a eleição de Barbosa

Lessa para ocupar a cadeira n. 5 da Academia Rio-Grandense de Letras indicava que sua

figura estava “muito vinculada ao Movimento Tradicionalista Gaúcho”.856

Dessa forma, a

atuação no movimento passa a ser um dos seus atributos mais destacados, a ponto de

neutralizar as demais facetas de sua vida intelectual. Ao longo dos anos 1980, tal atributo se

tornou estigma. Nos termos de Goffman, poderíamos dizer que a “identidade social virtual”

de Barbosa Lessa, entendida como fruto das expectativas normativas de caráter imputadas ao

indivíduo por um retrospecto em potencial857

, passa a ser marcada cada vez mais

exclusivamente por aquele atributo de sua “identidade social real”, inicialmente diferente, mas

em breve conflitante, daqueles exigidos para que fosse classificado plenamente na categoria

“escritor”, ou melhor, “escritor decente”.

O estigma, segundo Goffman, não é em si mesmo nem honroso nem desonroso, pois

se trata de um atributo considerado depreciativo dentro de uma linguagem de relações.858

A

gênese das relações que estabelecem o tradicionalismo como estigma para a carreira

intelectual no estado pode ser encontrada já na década de 1950, com as disputas entre a

geração de folcloristas eruditos e os teóricos tradicionalistas pelo espaço na mídia local e,

posteriormente, no aparato estatal, com a fundação do IGTF. Como vimos, no capítulo IV,

através dos trabalhos de Nedel, muitas suspeitas pesavam sobre a versão “carnavalesca” de

folclore perseguida pelo novo movimento. Como apontado no mesmo capítulo, tanto Barbosa

Lessa quanto Paixão Côrtes, no entanto, gozavam de uma situação diferenciada, tendo ambos

atuado igualmente na CEF e no “35” CTG. A experiência com folclore, como sabemos, foi

revertida a favor de nosso personagem na sua estada em São Paulo. Mas Lessa encontrou, em

seu retorno a Porto Alegre, um contexto bem mais complexo. O Movimento Tradicionalista

Gaúcho, agora associação e órgão regulador desta espécie de gauchismo cívico, consolidava

sua influência na estrutura do Estado e expandia suas bases sociais, ao mesmo tempo em que

recebia certo reconhecimento público por parte, inclusive, de jornalistas vinculados ao setor

de cultura. Mas, como não poderia deixar de ser, causava ainda muitas desconfianças.

Ainda que nosso personagem tenha tentado se firmar como escritor, sua associação

com o novo MTG nunca foi considerada problemática pelo mesmo. Muito pelo contrário. Daí

a publicação de Danças e Andanças da Tradição Gaúcha visar, como vimos no Capítulo VI,

856

BARBOSA LESSA, o novo imortal. Zero Hora. Porto Alegre, 15/10/1975, p. 9. Pasta 2.3.2 do Acervo

Barbosa Lessa 857

GOFFMAN, Irving. Estigma: Notas sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada. 4ª edição. Rio de

Janeiro: LTC, 1988, p. 12. 858

Ibidem, p. 13.

281

a afirmação da autoridade teórica e da liderança de Lessa e de Côrtes na fundação do

movimento. Ao longo do Capítulo V, busquei mostrar que o projeto de nosso personagem

para a SCDT se configurava inicialmente muito em função de sua perspectiva como

folclorista, mais ampla, portanto, do que aquela do tradicionalismo. O mesmo viés marcara

sua nova literatura, como demonstra a leitura de Rodeio dos Ventos. No entanto, o

estreitamento dos vínculos da Secretaria com o Movimento levou à confusão entre o

“popular” perseguido em suas promoções e o “gauchesco”. Ainda que Lessa tenha buscado

uma divisão equânime das verbas públicas e executado ações para a diversificação da cultura

regional, ao menos simbolicamente a figura do gaúcho pampiano, conciliada com o registro

militar e elitista da memória oficial, como vinha sendo celebrada pelo MTG, ganhava grande

destaque. Tal configuração marcou, como visto, sua produção nos anos seguintes.

Como sabemos, a década de 1980 trouxe novos elementos ao debate identitário local.

A grande ampliação experimentada pelo tradicionalismo veio acompanhada de seu

parcelamento em propostas estéticas e políticas conflitantes. Independentemente disto, a

crítica acadêmica reagiu a tal expansão hostilizando o gauchismo como um todo. Procurei

compreender, assim, no Capítulo VI, os textos de memória redigidos por nosso personagem

como artefatos de intervenção nesse contexto. Vimos que a tensão entre um Barbosa Lessa

folclorista, de perspectiva inclusiva, e outro historiador, tradicional e tradicionalista, acaba se

resolvendo em favor do primeiro, indicando aos conservadores do MTG que seus excessivos

cuidados com a deturpação da “tradição” engessavam as inovações necessárias à sua própria

sobrevivência. As opções estéticas do nativismo musical eram, então, endossadas pelo projeto

de invenção de tradições do qual Lessa participou nos anos 1950. A mudança e a diversidade

deveriam, portanto, marcar a identidade coletiva do Rio Grande do Sul. Mas ela continuaria

“gaúcha”. Politicamente, o apelo ao “popular” também serviu para rebater o julgamento

efetuado pela nova geração de intelectuais universitários. Ao afirmar, assim, as diretrizes de

seu projeto intelectual, iniciado trinta anos antes, Barbosa Lessa declarava sem pudores o

compromisso com o gauchismo, reforçando sua imagem de tradicionalista.

A classificação como escritor “regionalista”, aliás, parecia já não o incomodar, como

na queixa manifestada na entrevista de 1978. Mas o devotamento às “coisas do Sul”

começava a apagar paulatinamente de sua biografia pública a dedicação às artes e à escrita.

Combater o anacronismo das “múmias ambulantes” do regionalismo, nas palavras de

Dacanal, significava lutar contra tais idéias, mas também “confrontar os homens que as

produzem”, como afirmava Golin. É assim que o status de “intelectual” passa a ser negado a

todos os teóricos do movimento, independentemente de sua diversidade política interna e de

282

sua grande heterogeneidade no tocante à qualidade literária. Barbosa Lessa é colocado,

portanto, na vala comum dos “ideólogos” do tradicionalismo. Outros fatores, ainda, poderiam

ser arrolados como possíveis agravantes para a deterioração da identidade virtual de nosso

autor, como sua inserção nas academias tradicionais (IHGRS e ARL), além dos vínculos com

o movimento folclórico brasileiro. Assim como ocorreu no centro do país durante a

institucionalização das disciplinas sociais e a constituição da universidade como local de

pesquisa, a partir da década de 1950859

, a nova geração universitária do Rio Grande do Sul,

dos anos 1980, também procurou se legitimar através da diferenciação com a erudição

diletante precedente.

Tal configuração parece determinar a estratégia adotada por Lessa na redação de seus

textos autobiográficos dos anos 1990: ao mesmo tempo enfatizar sua dedicação à escrita e

reivindicar um lugar de destaque na construção do tradicionalismo gaúcho.860

Ao pensar,

então, sobre seu lugar social, nosso autor se reconstruía e se atualizava. Neste sentido, ele

delineava sua memória autobiográfica, mas também o esquecimento. Afinal, “A escrita de si

enquanto construir, desconstruir e reconstruir sentidos para o passado delineia uma fronteira

fluida entre o dito e o não-dito, a memória e o esquecimento, o revelado e o escondido”.861

A

escrita de si para Barbosa Lessa era, nesse momento, uma forma de ordenar quase que

exclusivamente sua biografia profissional. Tanto os feitos narrados quanto as homenagens

posteriores eram vinculados à trajetória do homem de letras. Foi jornalista, folclorista e

escritor, mais do que “pai”, “marido” ou mesmo “empresário”, e, desta forma, se tornou uma

“pessoa realizada”:

“A vida, agora, ela já está cumprida. Cumprida com „u‟ e comprida com „o‟.

No comprimento dela, em muita coisa me envolvi. Acho que em todos os

gêneros da comunicação, bem ou mal, eu fui levado a me experimentar. (...)

Eu me realizei escrevendo. Se a minha máquina mecânica pifar o teclado

amanhã, eu não vou ficar frustrado porque não posso escrever mais. O que eu

tinha que escrever, eu já escrevi”.862

859

Ver o primeiro capítulo de Projeto e Missão, de Luís Rodolfo Vilhena, intitulado “A „marginalização‟ dos

estudos de folclore no Brasil”. VILHENA, Luís Rodolfo. Op. cit. 860

Os apontamentos feitos a seguir tomam como base a análise de conjunto dos textos autobiográficos de nosso

personagem, como os prefácios e apresentações de livros, a autobiografia epistolar Prezado Amigo Fulano e,

inclusive, manuscritos esparsos encontrados no Acervo Barbosa Lessa; análise essa apresentada no VI Seminário

Nacional do Centro de Memória da UNICAMP, em 2009. Ver ZALLA, Jocelito. Aquilo que fica: luto, memória

de vida e memória social na despedida de Barbosa Lessa. Anais do VI Seminário Nacional do Centro de

Memória da UNICAMP: Memória e Testemunho. Campinas: CMU, 2009. Publicação em CD-ROM. 861

DELGADO, Andréa Ferreira. A rede de memórias e a invenção de Cora Coralina. In: SCHMIDT, B. (org.). O

biográfico: perspectivas interdisciplinares. Op. cit., p. 160. 862

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. Antologia pessoal. Porto Alegre, Alcance: 2005, p. 15.

283

Além disso, sua obra mais lembrada é aquela da “tradição”. Seus poemas se traduzem

no papel, mas também na vida social, nas danças gauchescas, enfim, nos novos ritos

encenados nos palcos dos CTGs. O Movimento, aliás, é evocado como mais um dos tantos

frutos de seu trabalho intelectual: “Eu já havia feito aqui a fundação do CTG 35 com o Paixão

Côrtes (48), e com ele fiz o levantamento das danças gaúchas (50/52). Como eu já havia

aberto caminhos na área do Tradicionalismo, continuei tocando esses caminhos por gostar do

assunto e por ter muitos amigos nessa área”.863

O binômio tradicionalismo/atividade literária – e seus desdobramentos, como os

vínculos com o meio rural, no primeiro pólo, ou a posição de destaque no cenário cultural

local, no segundo – dá sentido, em suas memórias pessoais, aos cerca de setenta anos de sua

existência. Quando Barbosa Lessa faleceu, em 2002, vítima de câncer pulmonar, a mídia local

lhe rendeu uma série de homenagens. Além das notícias sobre a morte e reportagens sobre sua

vida e obra, diversos depoimentos de autoridades políticas e personalidades, vinculadas ou

não ao tradicionalismo ou ao regionalismo musical e literário, foram publicados, numa

espécie de biografia coletiva construída em tempo real.864

O mais interessante é que todos os

textos partiam irremediavelmente do quadro de referências autobiográficas erigido pelo

próprio escritor, organizado em função do binômio citado acima. No conjunto, os discursos

produzidos e/ou divulgados pela mídia impressa rio-grandense realizavam uma espécie de

“folclorização” do folclorista, em que a confusão entre a atividade literária, o tradicionalismo

e o próprio personagem acabavam por construí-lo também como parte do patrimônio e do

imaginário regional: “Se o Rio Grande tem uma alma, nela vive, e agora pela eternidade,

Barbosa Lessa”.865

Dessa forma, pode-se inferir que a estratégia de nosso personagem, de certa forma,

surtiu efeito. Não podendo, nem querendo, se desvincular da imagem de tradicionalista, ele

ressaltou o estigma, mas lhe conferiu uma nova relação, em que a militância pelo gauchismo

cívico não destoava dos atributos denotados à atividade literária. Não quero dizer com isso

que a vontade individual de Lessa foi suficiente para reverter a pecha tradicionalista a seu

favor, ou mesmo para, sozinha, tê-la neutralizado como elemento depreciativo à sua imagem

de escritor/pesquisador nos últimos anos de vida. Outros aspectos, de ordem conjuntural,

ainda podem ser listados como possíveis fatores que permitiram o tardio e limitado

863

Ibidem, p. 14. 864

RONDELLI, Elizabeth., HERSCHMANN, Micael. Os media e a construção do biográfico: a morte em cena.

In: SCHMIDT, B. (org.). O biográfico: perspectivas interdisciplinares. Op. cit., p. 286. 865

ASSIS BRASIL, Luiz Antônio de. In: CAPITAL FARROUPILHA se despede de tradicionalista. Zero Hora.

Porto Alegre, 12/03/2002. Disponível em:

http://www.paginadogaucho.com.br/barbosalessa/rep/zh20020312.htm. Acessado em: 10/09/2009.

284

reconhecimento intelectual, como a distância temporal dos conflitos com a academia dos anos

1980 e, inclusive, a ascensão de novas gerações de intelectuais universitários sem ligações

afetivas diretas com aquele debate, principalmente na área de literatura, como denota sua

inclusão em alguns manuais, como o de Luís Augusto Fischer e o de Lisana Berturssi866

, além

da análise efetuada por Gilda Bittencourt e, muito recentemente, a tese de Joana Bosak de

Figueiredo. O isolamento geográfico de Lessa na reserva Água Grande, que inicialmente pode

ter contribuído para seu esquecimento como escritor, devido ao relativo afastamento da cena

pública metropolitana, parece ter cooperado, por outro lado, para o apagamento daquelas

contendas na memória local recente.

Se nesse trabalho foquei o olhar na militância tradicionalista de Barbosa Lessa e em

seus escritos sobre assuntos regionais, isso se deu em função de meu problema de pesquisa,

que foi o de analisar o processo de construção e atualização da identidade coletiva “gaúcha”

no Rio Grande do Sul. Ao fim desta dissertação, sabemos, entretanto, que o tradicionalismo

foi apenas uma das frentes de atuação de nosso personagem. Lessa também foi um

especialista em folclore brasileiro em geral, tendo empreendido pesquisas de campo que

cobriam uma área que ia do interior de São Paulo ao norte do Amazonas. Foi, ainda,

jornalista, diretor de teatro, produtor de cinema e televisão, publicitário, professor de

comunicação, compositor e escritor de assuntos diversos, o que incluía um romance policial

que em nada lembrava os temas e a linguagem “gauchesca” recorrentemente empregada em

seus livros. Mas, grosso modo, construiu seu projeto intelectual em função da figura mítica e

social do “gaúcho a cavalo” e/ou de “assuntos do Rio Grande”, como a questão indígena

missioneira e outros tantos objetos da história local. Na década de 1950, seu projeto

individual pressionou e acabou por se confundir com o projeto coletivo tradicionalista, tendo

nosso autor, como vimos no Capítulo IV, empreendido com Paixão Côrtes grandes esforços

para a invenção de símbolos e ritos do movimento nascente. Em outros momentos, no

entanto, sua perspectiva pessoal se diferenciou daquelas adotadas pelo tradicionalismo

organizado e/ou dialogou com essas a partir de uma posição externa. Nesse sentido, pudemos

acompanhar aqui debates intelectuais bem mais amplos do que aqueles internos ao

movimento tradicionalista, como as disputas entre as perspectivas do regionalismo literário

precedente, aquelas concernentes ao movimento folclórico brasileiro, às diretrizes de gestão

866

O manual de Lisana Bertussi é, na verdade, um compêndio de excertos de livros de escritores gaúchos. Os

textos de apresentação dos autores citados possuem um tom paradidático, retomando alguns lances de suas

trajetórias e listando suas principais obras. No caso de Barbosa Lessa, são transcritos os contos “O confronto” e

“Origem da palavra gaúcho”, ambos de Rodeio dos Ventos. Por não trazer uma reflexão crítica sobre as obras de

nosso personagem, o livro de Bertussi não foi abordado anteriormente. Ver BERTUSSI, Lisana. Literaura

Gauchesca: do Cancioneiro Popular à Modernidade. Caxias do Sul: EDUCS, 1997, p. 234-247.

285

cultural no país durante a abertura democrática e os conflitos entre o gauchismo parcelado dos

anos 1980 e a produção universitária. Dessa forma, percebi, inclusive, que o subtítulo pensado

inicialmente para a pesquisa, “invenção do tradicionalismo gaúcho”, já não dava mais conta

do trajeto realizado. Optei, então, pelo mais largo, e talvez mais justo com o autor, “invenção

das tradições gaúchas”.

Assim, chego à minha última resposta à pergunta inicial motivadora desta reflexão, a

qual pensei de forma um tanto hesitante naquele momento de exposição, mas decidi não

colocar em discussão pelo tempo tomado já em demasia dos colegas de mesa: não creio que a

avaliação da qualidade estética da obra de um escritor seja função do historiador. Quando

expus acima algumas considerações sobre a dicotomia consagração/estigma na trajetória de

nosso autor, não pretendi provar seus dotes literários, mas apontar para algumas causas e

efeitos da maximização do atributo tradicionalista imputado à sua imagem pública. Não quis,

portanto, replicar a questão que me foi colocada, mas compreender qual a sua razão histórica

de ser.

Flávio Loureiro Chaves iniciou seu ensaio sobre Simões Lopes Neto, publicado

originalmente em 1982, dissecando o livro O gaúcho, de José de Alencar. Sabe-se que a

crítica não foi generosa com o texto, identificando nele problemas estruturais como a

incongruência entre o personagem João Canho e o tipo por ele idealizado, o “centauro da

pampa”, duas “almas contraditórias e irreconciliáveis”. A ruptura da verossimilhança

decorreria, então, mais desta falha formal do que das transgressões à veracidade sociológica

regional. Todavia, Chaves apontava para duas frentes no trabalho do crítico: a) o juízo que se

pode emitir sobre a obra literária enquanto discurso autônomo, b) as conseqüências que ela

desencadeia no plano histórico ou sociológico.867

Dessa forma, a relevância do texto de

Alencar recai sobre o estabelecimento de um modelo narrativo, centrado na figura do

“monarca das coxilhas”, seguido em grande medida pelos literatos nacionalistas do século

XIX e pelo regionalismo gauchesco do século XX.868

Parece-me, então, que o ofício do

historiador se aproxima ao do crítico literário justamente no segundo quesito.

Independentemente das virtudes narrativas de Barbosa Lessa, sua obra me interessa na medida

em que ela denota um modelo identitário seguido hoje, como vimos na introdução, por

milhões de habitantes do Rio Grande do Sul e de outros estados brasileiros (e mesmo de

867

CHAVES, Flávio Loureiro. Alencar, matriz de uma tradição literária. In: ______. Simões Lopes Neto. Op.

cit., p. 34. 868

“… sejam quais forem as deficiências da narrativa alencariana, a tradição posterior abrigou e conservou o

modelo proposto no livro de 1870, que aí surge pela primeira vez, e todas as representações ulteriores do gaúcho

podem não corresponder à personagem falhada de Manuel Canho, mas derivam direta ou indiretamente do tipo

idealizado por Alencar, já não importa se com base concreta na „realidade‟ ou infiel a esta”. Ibidem.

286

outros países). Seus textos de História, seus contos, seus romances, suas músicas informam

direta ou indiretamente tradicionalistas e leigos, reforçando o modelo idealizado do gaúcho a

cavalo de Alencar no imaginário regional, introduzindo-lhe, entretanto, novos elementos,

atualizando sua roupagem, mas também sua “essência”.

A análise historiográfica é, evidentemente, uma das ocupações do historiador e o

conhecimento histórico, como sabemos, avança através da crítica e do debate, não somente no

tocante ao conteúdo, às interpretações e aos resultados de pesquisa, mas igualmente à forma,

às concepções teóricas, às estratégias metodológicas e, assim, à qualidade do trabalho,

segundo as diretrizes e normas de cada momento, realizados pelas gerações precedentes de

pesquisadores. Mesmo assim, não pretendi tomar sequer os textos historiográficos de Barbosa

Lessa nessa perspectiva. Tal produção foi encarada como uma dentre outras tantas fontes

escritas que permitem acessar o processo de construção da identidade “gaúcha”, e não como

objeto em si. Acredito que esta leitura de sua obra como um todo, em busca de suas propostas

éticas, políticas e estéticas, mas atenta às suas nuances e transformações, permitiu

compreender como as representações escritas condicionaram modelos de se portar em

sociedade.

Dessa forma, foi possível, ao longo do Capítulo II, reestabelecer o diálogo de nosso

autor com a tradição literária precedente e identificar seu projeto intelectual como uma

proposta de articulação do regionalismo ufanista com a crítica desenvolvida, a partir dos anos

1930, pela geração de intelectuais “realistas” do estado. A representação de “gaúcho” que

emerge assim se coloca contra e entre o “gaudério” idealizado e o peão empobrecido e

marginalizado pelo processo de introdução do capitalismo no campo, o modelo do “gaúcho a

pé”, de escritores como Cyro Martins. Do mesmo modo, pude abordar, no Capítulo III, o

projeto político de nosso personagem, o qual buscava no mito romântico a solução para os

problemas sócio-econômicos enfrentados pelo homem do campo, predicando sua valorização

cultural e amparo social pelo Estado, com o auxílio do nascente movimento tradicionalista. A

análise de sua literatura, redigida e publicada na década de 1950, permitiu acompanharmos os

esforços de recuperação cultural do campesino, mas também a atualização do gaúcho mítico

com a incorporação de setores então social e literariamente marginalizados, como o negro, o

índígena, a mulher e o imigrante. A reconstrução do mito operada por Barbosa Lessa

possibilitou fundamentar o projeto tradicionalista no registro folk de memória regional. No

Capítulo IV, então, passei à análise da simbologia e da ritualística elaboradas pelo grupo

fundador do tradicionalismo, pensando as aproximações e distanciamentos deste projeto

coletivo com o projeto individual de Barbosa Lessa, que pregava a construção de tradições

287

baseadas na figura do peão de estância, de forte apelo “popular”, em detrimento do registro

dominante de memória oficial no Rio Grande do Sul, baseado na elite militar, nobre, branca e

luso-brasileira. Em função disso, pude examinar a teatralização do “gaúcho a cavalo” nos

palcos dos Centros de Tradições Gaúchas, com a invenção de uma indumentária “típica”, de

ritos regulares, das danças tradicionais e, inclusive, da “prenda”, a nova mulher

tradicionalista. Nos dois últimos capítulos, já retomados nesse espaço, pudemos acompanhar

as relações de seus textos com sua atuação à frente da SCDT e, no sentido inverso, a

influência desta experiência em sua escrita. Em última instância, tratou-se, ainda, de seguir os

novos movimentos da pena na reconstrução do centauro.

* * *

Em 1992, nosso personagem publicou um pequeno texto na coletânea Nós, os

gaúchos, organizada por Luís Augusto Fischer e Sergius Gonzaga. Porteira Aberta

apresentava uma retrospecto de sua infância e adolescência, mesclado a situações narradas em

Porteira Fechada, de Cyro Martins, como a expulsão de um peão dos campos onde vivia e a

marginalidade na cidade, até a configuração do grupo fundador do “35” CTG.869

Esta era a

saga do “guri a pé”, que, chegando à capital, relembraria seus “antepassados” gaudérios,

agora maltrapilhos, e lhe concederia lugar de honra na memória pública local. Minha intenção

aqui foi compreender os desdobramentos desta “saga”. Reconheço que muito ficou por fazer.

Como sabemos, existe toda uma história do MTG como instituição, iniciada em 1966, a ser

analisada. A grande expansão, inclusive geográfica, gozada pelo tradicionalismo nos últimos

anos, ainda merece atenção de antropólogos, sociólogos e historiadores. Da mesma forma que

as transformações de seus ritos e símbolos, ao ultrapassar as fronteiras políticas e entrar em

contato com diferentes culturas. Também poderíamos levantar outras tantas questões sobre o

tema que, no entanto, fugiriam aos objetivos dessa investigação, como as novas incursões

artísticas e literárias no âmbito do gauchismo ou mesmo as utilizações políticas deste, cada

vez mais “democráticas” e “ecumênicas”, servindo, como os nacionalismos originários do

869

BARBOSA LESSA, Luiz Carlos. Porteira Aberta. In: FISCHER, Luís Augusto, GONZAGA, Sergius (orgs.).

Nós, os gaúchos. Op. cit., p. 72-76.

288

século XIX, a atores comprometidos com os mais variados matizes ideológicos.870

No tocante

à biografia intelectual de Barbosa Lessa, como dito, deixei de abordar muitos de seus textos

em função do problema desta pesquisa, mas também abri mão de outros pelas condições e

proporções limitadas de uma dissertação de mestrado. Gostaria, especialmente, de ter

abordado com mais acuro a produção autobiográfica de Barbosa Lessa, ainda que tenha me

comprometido com a análise da construção prospectiva de seu projeto intelectual. Procurei,

no entanto, no último momento, apontar para algumas de suas características gerais. Pese

tantas possibilidades inexploradas, espero ter contribuído, de alguma forma, para suprir as

lacunas expostas na introdução deste trabalho.

De outro lado, quis listar tais possibilidades, a título de exemplo, para indicar ao leitor

que a academia ainda tem importante papel a desempenhar na compreensão do fenômeno

social do gauchismo, desde que não condicione suas interpretações ao estigma imputado a tal

objeto. Da mesma forma, a obra de Barbosa Lessa permanecerá à espera de novos estudos que

dêem conta daqueles textos não abordados aqui ou analisados muito rapidamente, mas

também de outras perguntas e olhares àqueles que pude ler com mais cuidado. Parece, então,

que nosso personagem tinha razão ao afirmar que a “porteira” continuava aberta. Para Moacyr

Scliar, a “gauchidade” tem muitas destas “estranhas portas”: “Alguns são gaúchos porque

nasceram no pampa; outros, os emigrantes, vieram de locais distantes, mas acabaram

incorporando a condição de gaúcho – graças ao chimarrão, ao churrasco, e sobretudo graças

ao imaginário que acabamos todos partilhando”.871

Cruzar a “porteira” é, portanto, um passo

necessário para compreendermos a sociedade em que, ainda hoje, vivemos.

870

Indicativo disto são os artigos sobre o tema publicados na imprensa local por políticos profissionais tanto de

“esquerda” quanto de “direita”, citados na introdução deste trabalho. 871

SCLIAR, Moacyr. Sobre centauros. Revista ZH (Zero Hora). Porto Alegre, 14/09/1997, p. 3. Pasta 2.3.2 do

Acervo Barbosa Lessa.

289

Arquivos e bibliotecas consultadas

Acervo Barbosa Lessa - Secretaria de Cultura e Turismo do Município de Camaquã.

Arquivo Histórico Municipal de Porto Alegre Moysés Vellinho.

Biblioteca Central da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

Biblioteca Central da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Biblioteca Setorial de Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa.

290

Fontes pesquisadas

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Textos de outros autores e coletâneas:

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AZAMBUJA, Darcy. No galpão. 7a edição. Rio de Janeiro, Porto Alegre, São Paulo: Editora

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Dante de Laytano para Barbosa Lessa. Porto Alegre, 12/07/1982.

Ney Gastal para Barbosa Lessa. Porto alegre. Em 1º de outubro de 1982.

295

Veríssimo de Melo para Barbosa Lessa. Natal. Em 14/11/1979. Pasta 2.11.2.1

Ativa:

Luiz Carlos Barbosa Lessa para Tarso Genro. Camaquã, 15/03/1996.

Luiz Carlos Barbosa Lessa ao Correio do Povo. Porto Alegre, 10/12/1981.

Luiz Carlos Barbosa Lessa a Aluísio Magalhães (Secretário de Assuntos Culturais do

Ministério de Educação e Cultura - MEC). Porto Alegre, 30/06/1981.

Outra:

Correspondência assinada pela Associação Gaúcha Municipalista, pela Prefeitura Municipal

de Camaquã, pela Secretaria da Cultura, pelo Núcleo de Pesquisas Históricas de Camaquã,

pela Câmara Municipal de Vereadores, pela Casa do Poeta Camaqüense (CAPOCAM), pela

FUNDASUL - Faculdades da Região Sul e pelo CTG Camaquã, dirigida ao Deputado

Estadual Sérgio Zambiasi, então presidente da Assembléia Legislativa, em 08/08/2001.

Documentos da SCDT:

ANTEPROJETO COMPLEXO Turístico-Cultural do Cristal - Camaquã - RS. Secretaria da

Cultura, Desporto e Turismo. Estado do Rio Grande do Sul. Elaborado pela Coordenadoria

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CONSIDERAÇÕES ADICIONAIS para o Plano de Atividades do DEC para 1980. Secretaria

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MAPEAMENTO CULTURAL do Rio Grande do Sul. Departamento de Cultura. Secretaria

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OBSERVAÇÕES SOBRE os pré-planos apresentados com vistas ao programa 1981.

Secretaria de Cultura, Desporto e Turismo. Governo do Estado do Rio Grande do Sul. Porto

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PLANO DE atividades do DEC para 1980. Secretaria de Cultura, Desporto e Turismo.

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BARBOSA LESSA, o novo imortal. Zero Hora. Porto Alegre, 15/10/1975, p. 9.

CALIFÓRNIA DA Canção Nativa tem várias inovações este ano. Correio do Povo. Porto

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CAMAQUÃ REVIVE tradição no Parque Bento Gonçalves. Folha da Tarde (Caderno

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Publicação em CD-ROM.

ZILBERMAN, Regina. A literatura no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado Aberto,

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310

Anexos

311

ANEXO I

Reprodução das páginas 52-53 da Revista do Globo, de 9/12/1950, referentes à

reportagem intitulada Tropeiros, de autoria de Barbosa Lessa:

312

ANEXO II

Transcrição do documento “Pólos Culturais do Rio Grande do Sul”, do DEC-SCDT,

sem data:872

PÓLOS CULTURAIS

Região do LITORAL NORTE

Pólo Cultural de OSÓRIO

Mostardas

Santo Antônio da Patrulha

Tramandaí

Torres

Região das MISSÕES

Pólo Cultural de SANTO ÂNGELO

Catuípe

Caibaté

Cerro Largo

Giruá

Guarani das Missões

Porto Xavier

Roque Gonzales

São Paulo das Missões

São Nicolau

Pólo Cultural de SANTA ROSA

Alecrim

Campina das Missões

Cândido Godoi

Independência

Porto Lucena

Santo Cristo

Tucurunduva

Tuparandi

Pólo Cultural de SÃO BORJA

Santo Antônio das Missões

São Luiz Gonzaga

Bossoroca

872

A crítica externa da documentação permite sua datação para 1979, devido à sua inclusão numa série de

documentos da SCDT redigidos naquele ano. Ver Pasta 2.11.2.2(2) do Acervo Barbosa Lessa

313

Região dos CAMPOS DE CIMA DA SERRA

Pólo Cultural de VACARIA

Barracão

Bom Jesus

Cacique Doble

Cambará do Sul

Esmeralda

Ibiraiaras

Lagoa Vermelha

São Francisco de Paula

São José do Ouro

Região do LITORAL SUL

Pólo Cultural de Rio Grande

São José do Norte

Santa Vitória do Palmar

Região do CENTRO

Pólo Cultural de RIO PARDO

Arroio dos Ratos

Butiá

General Câmara

São Gerônimo

Taquari

Triunfo

Pólo Cultural de SANTA MARIA

Dona Francisca

Faxinal do Soturno

Formigueiro

Nova Palma

Restinga Seca

São Pedro do Sul

São Sepé

Pólo Cultural de CACHOEIRA DO SUL

Encruzilhada do Sul

Santana da Boa Vista

Região ZONA SUL

Pólo Cultural de PELOTAS

314

Canguçu

Pedro Osório

Piratini

São Lourenço do Sul

Pólo Cultural de CAMAQUÃ

Barra do Ribeiro

Dom Feliciano

Tapes

Pólo Cultural de JAGUARÃO

Arroio Grande

Herval do Sul

Região CAMPANHA

Pólo Cultural de BAGÉ

Caçapava do Sul

Dom Pedrito

Lavras do Sul

Pinheiro Machado

Pólo Cultural de SANTANA DO LIVRAMENTO

Quaraí

Rosário do Sul

São Gabriel

Pólo Cultural de URUGUAIANA

Itaquí

Pólo Cultural do ALEGRETE

Cacequi

São Francisco de Assis

Região PLANALTO

Pólo Cultural de CRUZ ALTA

Colorado

Ibirubá

Júlio de Castilhos

Pejuçara

Santa Bárbara do Sul

Selbach

Tapera

Tupanciretã

315

Pólo Cultural de SANTIAGO

Jaguari

Mata

São Vicente do Sul

Pólo Cultural de PASSO FUNDO

Carazinho

Chapada

Ciríaco

Ibiaçá

Marau

Não-Me-Toque

Sertão

Tapejara

Pólo Cultural de SOLEDADE

Barros Cassal

Espumoso

Fontoura Xavier

Vitor Craeff

Pólo Cultural de PALMEIRA DAS MISSÕES

Braga

Campo Novo

Coronel Bicaco

Erval Seco

Miraguaí

Redentora

Santo Augusto

Seberi

Três de Maio

Pólo Cultural de IJUÍ

Ajuricaba

Augusto Pestana

Chiapeta

Condor

Pananbi

Região COLONIAL DOS VALES

Pólo Cultural de NOVO HAMBURGO

Campo Bom

Dois Irmãos

Sapiranga

Pólo Cultural de SÃO LEOPOLDO

Estância Velha

316

Ivoti

Portão

Sapucaia do Sul

Pólo Cultural de LAJEADO

Arroio do Meio

Encantado

Roca Sales

Pólo Cultural de ESTRELA

Cruzeiro do Sul

Bom Retiro

Teotônia

Pólo Cultural de MONTENEGRO

São Sebastião do Caí

Salvador do Sul

Pólo Cultural de SANTA CRUZ DO SUL

Agudo

Arroio do Tigre

Candelária

Sobradinho

Venâncio Aires

Vera Cruz

Pólo Cultural de NOVA PETRÓPOLIS

Canela

Feliz

Gramado

Igrejinha

Rolante

Taquara

Três Coroas

Região COLONIAL DA SERRA

Pólo Cultural de CAXIAS DO SUL

Antônio Prado

Bento Gonçalves

Carlos Barbosa

Farroupilha

Flores da Cunha

Garibaldi

São Marcos

Veranópolis

Pólo Cultural de GUAPORÉ

317

Anta Gorda

Arvorezinha

Casca

Davi Canabarro

Ilópolis

Muçum

Nova Araçã

Nova Bassano

Nova Bréscia

Nova Prata

Paraí

Putinga

Serafina Corrêa

Região ALTO URUGUAI

Pólo Cultural de ERECHIM

Aratiba

Barão de Cotegipe

Campinas do Sul

Erval Grande

Gaurama

Getúlio Vargas

Itatiba do Sul

Jacutinga

Sananduva

São Valentim

Viadutos

Pólo Cultural de MARCELINO RAMOS

Machadinho

Mariano Moro

Maximiliano de Almeida

Paim Filho

Severiano de Almeida

Pólo Cultural de IRAÍ

Alpestre

Caiçara

Frederico Westphalen

Palmitinho

Planalto

Rodeio Bonito

Vicente Dutra

Pólo Cultural de SARANDI

Constantina

Liberato Salzano

318

Nonoai

Pólo Cultural de TRÊS PASSOS

Boa Vista do Buricá

Crissiumal

Horizontina

Humaitá

São Martinho

Tenente Portela

Região METROPOLITANA

Pólo Cultural de PORTO ALEGRE

Canoas

Esteio

Guaíba

Pólo Cultural de VIAMÃO

Alvorada

Cacchoeirinha

Gravataí

319

ANEXO III

Orçamento detalhado da Secretaria de Cultura, Desporto e Turismo (SCDT-RS) para o

ano fiscal de 1980, na rubrica “Promoções Culturais” (em cruzeiros):

Artes Cênicas

Espetáculo Infanto-Juvenil 300.000,00

Dança 150.000,00

Textos contemporâneos 150.000,00

Teatro Amador 250.000,00

Espetáculo fora do Estado 480.000,00

1.330.000,00

Cinema

Curta metragem (com MCS) 72.000,00

Chimangos e Maragatos (MSC) 200.000,00

Ponto de Cinema 50.000,00

322.000,00

Manifestações Regionais

Festa Junina (Estância do Cristal) 100.000,00

Baile da Pelúcia (Est. Do Cristal) 100.000,00

Teatro de Câmera (sic) (SMEC) 180.000,00

Festival Nova Petrópolis 70.000,00

450.000,00

Artes Plásticas

I Bienal de Desenho (c/ MARGS) 200.000,00

200.000,00

Música Erudita

Projeto Luís Cosme, locais 500.000,00

Projeto Villa-Lobos 150.000,00

Projeto Bruno Kiefer 150.000,00

Miguel Proença e jovens 120.000,00

PUC 200.000,00

Clube Flautistas 100.000,00

320

1.270.000,00

Música Popular

Projeto Lupiscínio 1.000.000,00

1.000.000,00

Projeto Especial

Projeto Mutirão 700.000,00

700.000,00

Especial DEC

Festival Coros (II) 100.000,00

Festival Infantil de Coros 100.000,00

200.000,00

[montante final:] 5.472.000,00