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1 | 1 | Cid Seixas JORGE AMADO: DA GUERRA DOS SANTOS À DEMOLIÇÃO DO EUROCENTRISMO Assim como os poetas épicos e dramáticos da antiguidade clássica estabelecem um discurso recorrente aos mitos e à tradição da sua cultura, o texto amadiano se instaura como diálogo intertex- tual com o viver da Bahia, os mitos e tradições dos descendentes de súditos e príncipes africa- nos trazidos como escravos. Seguindo esta perspectiva crítica, Jorge Amado deve ser visto como um clássico da cultura do seu povo e do seu tempo, cujos temas constroem o perfil do herói coletivo: o homem comum. PREPOSIÇÃO / PROPOSIÇÃO

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Cid Seixas

JORGE AMADO:DA GUERRA DOS SANTOSÀ DEMOLIÇÃO DO EUROCENTRISMO

Assim como os poetas épicos e dramáticos daantiguidade clássica estabelecem um discursorecorrente aos mitos e à tradição da sua cultura, otexto amadiano se instaura como diálogo intertex-tual com o viver da Bahia, os mitos e tradiçõesdos descendentes de súditos e príncipes africa-nos trazidos como escravos.Seguindo esta perspectiva crítica, Jorge Amadodeve ser visto como um clássico da cultura do seupovo e do seu tempo, cujos temas constroem operfil do herói coletivo: o homem comum.

PREPOSIÇÃO / PROPOSIÇÃO

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O texto da plaquete acima foi apresentado aoI SIMPÓSIO INTERNACIONAL

DE ESTUDOS SOBRE JORGE AMADO,promovido pela Fundação Casa de Jorge Amado

e pela Universidade Federal da Bahia,sob a coordenação de Ildásio Tavares.

Salvador, 10 a 13 de agosto de 1992.

EM HOMENAGEM AOS 80 ANOSDO ROMANCISTA.

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Fonte dos onze mistériosdo filho de Oxóssi, Amado,eis a Cidade da Bahiaonde Virtude e Pecado,amantes inseparáveis,habitam o mesmo sobrado.

Uma paisagem de sonhonesta Cidade se vê:até mesmo o intangívelse torna fácil de crer.Mistério ou cristal do tempotecendo seu conhecer.

Cidade da morenagemdo Encoberto e Revelado:o mundo do desencantose completa no encantado,porque o falso é o verdadeiroquando visto do outro lado.

BAHIA DE TODOS OS SANTOS

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Nas histórias sucedidas,Engenho e Realidadepartilham o mesmo dizer:não se sabe o que é verdade,se vestida de Magia,e o que é lenda na cidade.

O Encoberto e o Reveladotecendo seu conheceronde Virtude e Pecadopartilham o mesmo dizer:uma paisagem de sonhonesta cidade se vê.

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DA GUERRA DOS SANTOSÀ DEMOLIÇÃO DO EUROCENTRISMO

Um outro grande escritor brasileiro, embora ma-rinheiro de águas diversas, João Guimarães Rosa,nos dá a chave de um dos segredos da escrita deencantado, ou do ebó do filho de Oxóssi, Amado.Ao responder a uma pergunta do ensaísta alemãoGünter Lorenz a propósito da ideologia da ficçãolatino-americana, ou mais especificamente deAsturias, numa margem do rio, e de Jorge Ama-do, na terceira, Guimarães Rosa discute o proble-ma do compromisso do escritor com a sociedadeem que vive.

Não nos esqueçamos que o autor de GrandeSertão: Veredas rejeitava a imposição de um dis-curso partidário ao narrador de ficção, reservan-do para o artista um compromisso maior e menosimediato, um compromisso com a vida. Daí o fato

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da referência feita por Rosa ser, mais apropriada-mente, aplicável à obra da maturidade de JorgeAmado e não aos seus romances da primeirafase.

Em janeiro de 1965, no Congresso de Escrito-res Latino-Americanos, realizado em Gênova, aquestão política e o engajamento do escritor erampalavras de ordem. Vejamos como, nestas circuns-

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tâncias, Guimarães Rosa via a obra de JorgeAmado. Para isto daremos a palavra, por um ins-tante, a Günter Lorenz e a Guimarães Rosa,flagrando os dois num momento de diálogo duran-te o encontro na Itália.

Pergunta Günter Lorenz:

– “E Amado, o senhor não acha que estefabulista magnífico e amigo dos homens tam-bém pensa ideologicamente?”

Rosa responde:

– “Com certeza, ele também é um ideólogo,mas sua ideologia me é mais simpática do quea de Asturias. Asturias tem algo daqueledistanciamento incorruptível de um Sumo Pon-tífice. Ele pronuncia sempre novos dez manda-mentos. Isto é admirável, mas não encanta. Aspalavras de Asturias são palavras de um pai,um patriarca, que pronuncia sentenças no gê-nero do Velho Testamento. Amado é um sonha-dor, ele é com certeza também um ideólogo,mas é a ideologia da fábula, com suas regrasde justiça e expiação. Amado é uma criança” –

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prossegue Guimarães Rosa, “uma criança – quecontinua acreditando na vitória do bem. Ele de-fende a ideologia menos ideológica e maisamável que eu conheço. Asturias é a grande vozdo Juízo Final. Amado dá pinceladas à toa atémais não poder. Ele quer na verdade mandarpara o diabo várias coisas, mas isto ele faz comtanto charme que a gente lhe acredita com mai-or razão.” (Rosa, 1971, p. 285)

Creio que Guimarães Rosa sintetiza de modoinequívoco o que chamei de um dos segredos daescrita de encantado, ou do ebó do filho Amadode Oxóssi. Jorge não usa a sua pena como umalança de matar dragões, mas como uma vara decondão, querendo transformar a serpente do malem serpentinas do carnaval. Sim, a festa, a felici-dade, a alegria dos homens e das mulheres são osonho obsessivo do velho contador de históriasda nossa gente. A literatura para Jorge Amado nãoé um catecismo onde se diz como devemos rezar,ela é um jogo, que nos convida ao riso. Ele alegrae diverte os seus leitores. Mas não se enganem:este menino sonhador de oitenta anos não temnada de ingênuo. Enquanto um olho dorme o ou-

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tro pisca malicioso e certeiro. Por isso, quandosugere, por entre breves clarões do raio, a gentelhe acredita com maior razão. Jorge Amado é umfingidor. Finge tão amadamente que ensinou aGabriela e também a Dona Flor.

O texto de Jorge é maroto, matreiro. As armasdo cavaleiro, o santo do dragão, e os poderes deOxóssi, guerreiro imbatível, não são depostos naescrita do nosso Jorge, o não santo. Nele, os po-deres do Orixá e do Santo se escondem, numatocaia grande, para o golpe certeiro.

Na tradição luso-brasileira, desde Gil Vicente,com suas pantomimas e presepadas, que o textode um escritor hábil distrai e destrói a hipocrisia,a usura e a injustiça. Ridendo castigat mores é adivisa aplicada à obra vicentina. Rindo, corrige oscostumes, a ambição da obra amadiana.

Mas esse objetivo o escritor baiano não con-fessa. Suas armas são certeiras, mas silenciosas.Vejamos o que dizem as palavras finais do pórti-co do livro O sumiço da santa:

“Projeto de romance anunciado há cerca devinte anos, sob o título de A Guerra dos Santos,somente agora, no verão e no outono de 1987,

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na primavera e no verão de 1988, em Paris,coloquei o enredo no papel. Escrevendo-o, di-verti-me; se, com sua leitura, alguém mais sedivertir, me darei por satisfeito.” (Amado, 1988,p. 11)

Muita gente ingênua, intelectual, que só sabeler palavra grave, sisuda, acredita que as palavrasdeste livro são apenas “deliciosos divertimentospara adultos”, expressão feliz do poeta CarlosPena Filho (1969, p. 151). Não esqueçamos, po-rém, que o velho Jorge é um narrador dissimuladoe sinuoso, como se fosse Oxum a dona da suaescrita. Ou, como foi dito há pouco, o autor de D.Flor quer que tudo mais vá pro inferno. Com umadiferença, ele não o faz com a revolta e ainconsequência juvenil dos protestos. O discretocharme da burguesia reside em dizer as coisasmais desagradáveis de forma mais agradávelpossível.

Ao trocar o nome original do livro A guerra dossantos, de aspecto épico e grandiloquente por umprosaico O sumiço da santa: Uma história de fei-tiçaria, Jorge Amado encena diante do leitor opapel do jogral alegre que se diverte ao fazer os

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outros se divertirem. Ou melhor: que se diverte aodespistar o divertido leitor.

Evidentemente, não podemos dizer se a inten-ção consciente do autor era divertir ou despistar.Mas este texto nos diz que seu autor não é so-mente um escritor divertido. É um feiticeiro fingidoque esconde os poderes do seu ebó. O sumiçoda santa é, na verdade, uma guerra de demiurgos,de deuses poderosos, um confronto de culturas eraças em busca de caminhos.

O realismo mágico da escrita amadiana con-verte-se em alegoria épica de um povo.

De um lado os valores sacrossantos da civili-zação europeia cristã, representados pelo padreespanhol José Antonio Hernandez, exemplo debom cristão aos olhos inquisidores do Santo Ofí-cio, valores estes reafirmados pela arquidiocese,na figura de D. Rudolph, Bispo Auxiliar; pelos po-deres do Estado, através do coronel Raul Antônioou do doutor D’Ávila, juiz de menores e falangistada Cruzada Anticomunista.

Do outro lado, a “gentinha”, a “ralé”, os cavalosde encantados trazidos da África nos porões dosnavios negreiros, a gente mestiça da Bahia, seus

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orixás, suas crenças, sua ética adversa à moraldominante.

O narrador dos romances de Jorge Amado si-mula a perspectiva do dominador, dos bem-nas-cidos homens da terra. A escolha vocabularmarcada pelo preconceito das expressões usuaispara designar os párias da pátria ganha relevo emconfronto com a gesta plebeia, o canto das faça-nhas de heróis anônimos. Ironia e exaltação épicaperpassam o texto numa fusão insólita: aquilo queele designa, entre irônico e sério, de “romancebaiano”.

(No frontispício do livro, logo abaixo do título Osumiço da santa: Uma história de feitiçaria, se lê:“romance baiano”. Na contracapa, aparece o ape-lo festivo a gosto paulista: “só na Bahia podia acon-tecer”.)

A nação negra e mestiça, que constitui cercade oitenta por cento da população de Salvador, éo herói plural da narrativa amadiana.

Assim como os poetas épicos e dramáticos daantiguidade clássica estabelecem um discursorecorrente aos mitos e à tradição da sua cultura, acultura helênica, o texto amadiano se instaura

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como diálogo intertextual com a cultura popular daBahia, os mitos e tradições dos descendentes depríncipes e súditos africanos trazidos como escra-vos.

As formas poéticas iorubanas, comuns na poe-sia oral deste povo e rediviva nas manifestaçõesreligiosas do candomblé, em forma de saudaçãoe apresentação, perpassam o discurso donarrador amadiano. São os orikis, ou saudaçõesà cabeça do iniciado, ou ainda, para usar um ter-mo da nossa cultura chapa branca, um pequenocurriculum de quem se apresenta, pronunciandoseu oriki.

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Seguindo esta perspectiva crítica, Jorge Ama-do deve ser visto como um clássico da cultura doseu povo e do seu tempo, cujos temas constroemo perfil do herói coletivo: o homem comum.

Um clássico de um tempo agreste, mas umclássico, de uma civilização dita moderna, quesegrega a maioria da população em relações eco-nômicas e sociais tipicamente medievais. Não épor outra razão que, há muito tempo, MonteiroLobato percebeu: “Na planura da literatura brasi-leira, Jorge Amado vai ficar como um bloco súbitode montanha híspida, cheia de alcantis, de caver-nas, de precipícios, de massas brutas da nature-za.” (Lobato, in: Amado, 1977, contracapa.)

Outros clássicos de todos os tempos, comoPlauto, Shakespeare, Molière, Gil Vicente ou Ma-chado de Assis, também fizeram dos homens edos costumes, das misérias e das pequenezas,das grandezas imperceptíveis e das coisas sim-ples, a matéria ficcional mais densa e mais dura-doura.

A simplicidade discursiva da obra amadiana, asua intenção de ser lido por toda gente, como umcontador de histórias, ao invés de afastá-lo damelhor literatura, como pode supor o pedantismo

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intelectual, ou o teórico engomado, como bem apropósito dizia Ezra Pound, insere Jorge Amadono rol de criadores universalmente lembrados. Masa presença física do autor, o seu grande prestígiopessoal, não permite ao nosso tempo um distan-cia-mento necessário para o julgamento seguro edesapaixonado que só o próximo século propici-ará. Quem viver verá.

De forma incompleta e redutora ao âmbito deuma conversa breve, podemos dizer que a teiacentral do romance O sumiço da santa, ou o pre-texto da alegoria, gira em torno de Adalgisa, abicunrebelde que teima em impedir a passagem do seusanto. O preceito ensina que quando uma mulhergrávida se submete aos rituais de iniciação, o fi-lho ainda em gestação também se liga ao axé doorixá. Foi o que aconteceu com Adalgisa, peque-no óvulo fecundado sem que a mãe o soubesse.

Para relembrar o trecho do livro em que se con-ta a iniciação da Andreza, a mãe de Adalgisa, nosmistérios de encantado, peçamos ao próprio Jor-ge Amado para falar. É ele quem conta:

“Nem por amigada com espanhol branco erico, Andreza desdenhou de sua gente negra e

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pobre, seguiu frequentando candomblés, cum-prindo obrigações de santo e normas de ami-zade. Quando o conheceu, acabara de acertarcom mãe Aninha, do Axé do Opô Afonjá, que serecolheria à camarinha no próximo barco deiaôs para raspar a cabeça e receber Yansã, seuorixá de frente. Assim o fez, deixando-o [aoamante] a ver navios, contando nos dedos osdias da iniciação. Apenas não sabia que leva-va no ventre o produto dos amores com o gringoque a seduzira e lhe montara casa: estavaprenha de Adalgisa. Ao descobrir, já era tarde:iaô de éfun completo, cabeça raspada, corpopintado, banhos de maionga, o encantado den-tro dela junto com o abicun. Não lhe pertenceriao filho que palpitava em seu ventre, pertencia àsanta. No dia do ôrunkó, da festa do nome,Andreza saltara duas vezes, dera dois nomes,um era o seu, o outro, o do abicun.”

E prossegue o narrador:

“Sendo Adalgisa ainda menina nova, acaba-ra de ultrapassar a primeira etapa, a dos seteanos, Andreza lhe contara o acontecido com

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abundância de detalhes, informando-a acercada condição especial dos abicuns. [...] Adalgisarecusou-se a ouvir, sua crença era outra, outrosseus santos, seus preceitos e obrigações, seusfundamentos. Não adiantou lhe revelar o preçoque pagara substituindo o abicun nos dois limi-tes, aos sete e aos quatorze anos: no derradei-ro, aos vinte e um, o preço era a morte. Adalgisa,espanhola, tinha outros compromissos, a coroade espinhos, a cruz de Cristo, desprezava cren-dices e feitiçarias.

Não chegou a saber que Andreza às véspe-ras do aniversário fatal, para que a sentençaao se cumprir não fulminasse o abicun, propu-sera a Oyá a troca de cabeças: no dia da festada maioridade da filha mais velha, amanhece-ra morta. Adalgisa não sabia o que fosse trocade cabeças e a palavra abicun nada lhe dizia.”(Amado, 1988, p. 233.)

A partir da recusa de Adalgisa em aceitar o cul-to dos orixás, uma série de outros binômios, oude outras dicotomias, põe em confronto, de umlado, os valores civilizacionais da Europa cristã e,do outro lado, os valores mestiços que se impõem

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ao povo baiano. Todo o livro de Jorge Amado éuma exaltação à cultura popular, suas crenças,seus mistérios, e é também uma divertida sátira àgente bem-nascida do lugar. Neste sentido, O su-miço da santa se estrutura como uma síntese cri-ativa do próprio universo ficcional amadiano, ondea dicotomia de valores que desemboca na demo-lição do eurocentrismo é o tema recorrente. Ca-racterística das suas últimas obras, a síntese douniverso ficcional construído, O sumiço da santasegue o mesmo rastrear operado por Tocaia gran-de, embora a oposição rural versus urbano tracea linha divisória entre estes dois romances e duasgrandes vertentes da obra amadiana.

Ao contar os feitos da gente do povo, especial-mente do negro, Amado é generoso e pródigo emexaltação. O dominado, quer pelas antigas leis daescravidão, quer pelas modernas leis do liberalis-mo econômico, é herói incondicional, numa inver-são violenta da perspectiva da tradição literária.Sabemos que a literatura, durante sua longa his-tória, até o realismo, marcado pelo determinismoreducionista, tratou as camadas submetidas àscondições humilhantes de vida como personagensmoralmente tão miseráveis quanto sua própria

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condição material. Somente um novo realismo,inaugurado no Brasil com o romance de 30, foicapaz de redesenhar a caricatura do homem dopovo de modo a despertar maior solidariedade.

Como na velha Cidade da Bahia o trabalhador,o proletariado, se confunde com o negro e o mes-tiço, este, com suas crenças, seus valores, suacultura portanto, é o herói permanente da gestaamadiana. Embora mudando o tom do seu dis-curso, abandonando as sentenças partidárias dosprimeiros romances, Jorge Amado não abando-nou a sua crença na redenção do homem sofrido.

Toda alegoria do texto do contador de históriasdo povo tem uma só e redundante finalidade: afir-mar os valores dos vencidos e sua olvidada con-dição de vencedores. Mas o ódio, o ressentimen-to, é um fantasma que não tem lugar na obra damaturidade amadiana. A conciliação, a fusão e oentendimento são a pedra de toque da constru-ção da sua república, do seu universo ficcional.Estes elementos desembocam num outro: osincretismo. No realismo fantástico de Jorge Ama-do a imagem de Santa Bárbara se confunde comYansã, negra sensual que abandona o andor e saicaminhando pelos becos e ladeiras da Bahia.

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Enquanto a santa católica é apenas uma ima-gem inerte, objeto de veneração, o orixá é umacriatura viva que participa das virtudes e das fra-quezas da sua gente. Assim, Santa Bárbara setorna forte, quando encarna Oyá, a Yansã das tem-pestades dos homens.

Se o seu discurso de hoje encanta e seduz odespreocupado e bem nascido burguês, a quequase todos aspiram ser; se ele quer divertir e ale-grar; seus livros são também um palimpsesto, ondepor vezes brotam as palavras sob as palavras.Raspada a tinta da escrita fácil e divertida, peloleitor atento na busca do que se esconde por sobas cores luminosas, surge o cerne da sua alego-ria, como a moral da fábula.

É esta escrita escondida e, às vezes, quaseapagada que me encanta na obra amadiana. Umaobra que possibilita a cada um de nós o encontrodas raízes da sua própria formação, seu própriocaráter, o caráter do homem do lugar, do baiano,místico e manhoso como as histórias de encanta-do do velho e amado romancista.

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AMADO, Jorge: O sumiço da santa: uma história defeitiçaria. Rio de Janeiro, Record, 1988.

MONTEIRO LOBATO. Crítica. In: AMADO, Jorge: Tietado Agreste. Rio de Janeiro, Record, 1977.

MONTEIRO LOBATO. Paranoia ou mistificação[Crítica originalmente publicada em dezembro de1917]. Ideias de Jeca Tatu. São Paulo, Brasiliense,12ª ed. 1967, p. 59-65.

MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da Culturabrasileira. 3ª ed. São Paulo, Ática, 1977.

PENA FILHO, Carlos: Livro geral; poesia. Recife,Universidade Federal de Pernambuco, 1969.

ROSA, João Guimarães. Literatura deve ser vida. Umdiálogo de Günter W. Lorenz com João GuimarãesRosa. In: Exposição do novo livro alemão. Frankfurtam Main, Ausstellungs und Messe-GmbH desBörsenvereins des Deustschen Buchhandels,1971.

Referênciase Bibliografia Consultada