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Jorge Amado - Os Subterraneos Da Liberdade 1 - Os Asperos Tempos

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Jorge Amado - Os Subterraneos Da Liberdade 1 - Os Asperos Tempos

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OS SUBTERRNEOS DA LIBERDADE

Aviso: Falhas na numerao das pginas referem-se a pgs. embranco que foram eliminadas.Os speros Tempos, Agonia da Noite e A Luz no Tnel constituem uma trilogia na qual, sob o ttulo geral de Os Subterrneos da Liberdade, o autor tentou traar um panorama da vida poltica brasileira nos anos do Estado Novo. Nas suas cinco primeiras edies foi esta trilogia publicada em 3 volumes, como um nico romance. Para maior comodidade dos leitores, resolveu o Editor brasileiro das Obras de Jorge Amado dar-lhe a forma atual de 3 volumes, ligados pelo ttulo geral da trilogia, atendendo assim, alis, idia inicial do autorPara Zlia e James.

Para Digenes Arruda, Laurent Casanova,Anna Seghers e Michael Gold,

com amizade,

Metida tenho a mo na conscincia e no falo seno verdades puras que me ensinou a viva experincia.

CAMES (Sonetos).

OS SUBTERRNEOS DA LIBERDADE

I OS SPEROS TEMPOS

Buscava el amaecer

y el amaecer no era.

GARCA LORCA

C A P I T U L O P R I M E I R O

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AQUELE fora um ms de ms notcias. O deputado Artur Carneiro Macedo da Rocha, descendente da velha estirpe paulista, pensava com alegria que dentro em poucas horas aquele fatdico ms de outubro do ano de 1937 estaria terminado, talvez novembro se iniciasse sob melhores auspcios.

Vinha de trocar de roupa e, ao esvaziar os bolsos do palet que usara durante a tarde, encontrou o telegrama de Paulo. Mais uma vez o releu e logo o jogou sobre a cama num gesto irritado. Afinal quando le chegaria? Por que se demorava em Buenos Aires? Nenhuma preciso no telegrama. Paulo poderia desembarcar de um avio a qualquer momento e se encontraria, com certeza, cercado de reprteres vidos. Fez um esforo para no pensar no filho, na sua prxima chegada, no escndalo que o cercava.

Olhou-se novamente no espelho, antes de sair, e encontrou-se elegante no smoking bem talhado, um formoso homem ainda, apesar dos seus cinqenta anos. Quem lhe daria essa idade? Soubera conservar-se jovem e os raros fios de cabelos brancos emprestavam-lhe um certo ar de distino que ia a calhar num poltico da sua responsabilidade. Ajustou a gravata, agora pensava em Marieta Vale.

Na rua, o chofer curvou-se um pouco ao abrir a portinhola do grande automvel negro. Artur ordenou:

Vamos casa do Costa Vale. Chovera no principio da noite e o automvel atravessava uma cidade molhada e semideserta nas ruas silenciosas do barro elegante. Atravs dos vidros, Artur enxergava os postes eltricos derramando uma luz baa sobre gotas dgua no passeio, dando-lhes um brilho de pedra preciosa. proporo que avanavam para o centro da cidade o movimento aumentava e a marcha se fazia lenta. Uma longa fila de autos atulhava o viaduto do Anhangaba, dirigindo-se ao Teatro Municipal. Enquanto esperava o descongestionamento do trnsito, Artur leu, quase soletrando atravs dos cristais midos, a inscrio em piche que mos desconheci das haviam traado sobre os slidos muros do edifcio monumental da Light & Power, monoplio americano da energia eltrica:

ABAIXO O IMPERIALISMO IANQUE VIVA O P.C.B.

E de novo foi lanado em turvos pensamentos sobre o ms de outubro e suas desagradveis lembranas. O automvel marchava outra vez mas Artur continuava a enxergar a inscrio subversiva. E ela relembrava-lhe a entrevista com o dirigente comunista, a preciso das palavras do moo, suas propostas de unio e a perspectiva dramtica que le traara no caso que os polticos democrticos continuassem de olhos fechados. Uma estranha mistura de sentimentos dominava Artur ao recordar a entrevista: um certo despeito aquele homem ainda moo, mal vestido, sado sem dvida dos meios operrios, querendo lhe ensinar poltica e uma certa admirao pela severa figura do revolucionrio.

Pensou na outra entrevista que tivera naquele ms: com o Ministro do Exterior, gordo e pegajoso diplomata, a propsito do caso de Paulo. Fora igualmente desagradvel, no lhe deixara tampouco uma lembrana amvel. Mas tinha sido diferente: com o Ministro ele se encontrara dono da situao em todos os momentos, dirigira o desenrolar da entrevista como melhor lhe parecera. Em todo caso, muito desagradvel.

Gostaria de pensar em coisas alegres, de arrancar-se das recordaes daquele outubro exasperante. Por que no pensar em Marieta Vale que ia rever aps longos meses de ausncia o colar de prolas brilharia sem dvida mais sobre a brancura do seu colo que as gotas dgua cortadas pela luz por que no pensar em seus olhos e em seu sorriso que dentro de momentos reencontraria, por que amargurar-se com a boataria poltica, com o telegrama anunciando a prxima chegada de Paulo, com o escndalo que cercara a bebedeira do rapaz, com a entrevista com o Ministro, com o recente encontro com o dirigente comunista? Parecia-lhe ouvir ainda as ltimas palavras pronunciadas, com uma gravidade quase solene, pelo revolucionrio:

A culpa caber inteiramente aos senhores. Quanto a ns, saberemos como agir...

Fitando o pavimento molhado, tentava enxergar, sob a luz derramada pelos postes, o rosto moreno e melanclico de Marieta, tantos anos inutilmente desejado. E o que via era a face magra, de uma extrema magreza, do homem jovem que Ccero dAlmeida lhe apresentara simplesmente como Joo. A testa larga onde comeavam a rarear os cabelos, uns profundos olhos curiosos, as mos nervosas em contraste com a voz grave e tranqila, pausada como a de um professor. A certeza mais absoluta que a entrevista deixara a Artur que sua comentada habilidade poltica aquilo sutil com um gato, dizia dele o lder da maio ria na Cmara de nada lhe servira ao conversar com o comunista. O homem sabia o que queria e o dizia tranqilamente, sem escolher palavras, sem frases dbias, de uma forma direta e clara qual Artur no estava habituado. E quando le tentava envolv-lo nos meandros das suas sutilezas, o rapaz apenas sorria e o deixava falar para depois voltar aos seus argumentos precisos, citao dos fatos concretos, proposta de unio de todas as foras democrticas contra Getlio Varias e os integralistas. Em nenhum momento, durante hora e meia em que conversaram, Artur se sentiu senhor da situao.

Sim, outubro fora um ms de ms notcias, de indesejveis acontecimentos. Um clima nervoso de incerteza andava pelo ar, dominava os polticos e dele se despendia um indefinvel sentimento de medo, medo de qualquer coisa que iria fatalmente acontecer de um momento para outro sem que nenhuma pessoa pudesse evitar. Ningum precisava o que mas por que diabo ningum acreditava tampouco que as eleies se realizassem? Por que essa quase certeza de um imprevisto cortando a marcha regular da campanha eleitoral, que parecia estar no conhecimento de todos quando na realidade nada de positivo se sabia, nada de concreto se provava? No entanto, era to forte aquela atmosfera de expectativa que Artur podia sentir o medo como uma coisa quase palpvel quando conversava com os colegas nos corre dores da Cmara, com os correligionrios pelas cidades do interior. Terminara por domin-lo a le tambm, apesar da sua longa experincia poltica que o situava como um dos mais hbeis parlamentares do pas e um dos chefes antigetulistas de maior prestgio.

A verdade que o comunista Joo (como se chamaria ele em realidade?, perguntava-se Artur. Joo no era certamente o seu nome) precisara essa coisa que andava no ar, falara concretamente do golpe de Estado que Getlio Vargas preparava em aliana com os integralistas e, ao contrrio de todos os demais polticos, le afirmava, em nome do seu Partido, desse misterioso e amedrontador Partido, que nunca se contava na relao dos partidos polticos do pas, que o golpe poderia ser evitado, as eleies poder-se-iam realizar se as foras dos dois candidatos presidncia da Repblica se quisessem unir, fazendo uma trgua na campanha eleitoral, para impedir as manobras de Vargas e dos fascistas. Uma declarao pblica, afirmada pelos dois candidatos e pelos governadores que os apoiavam, senhores da situao nos Estados mais importantes, seria o bastante para alertar a opinio pblica e pr um paradeiro ao golpe em preparao. O comunista mostrava um perfeito conhecimento da situao:

No me refiro ao governador de Minas. Esse um homem de Getlio, cem por cento. Falo dos Estados que apiam realmente os dois candidatos: So Paulo, Bahia, Rio Grande do Sul e Pernambuco.

Bem, o comunismo falara de coisas concretas. Da viagem do agente de Vargas, o avio parando em cada capital de Estado para consultar para avisar, dissera o rapaz os governadores sobre o golpe, cuja data j estava marcada. Uma constituio fascista linha sido redigida por um jurista mineiro e aprovada pelos integralistas. Um general fascista seria nomeado comandante militar da cidade do Rio de Janeiro. No eram boatos, o rapaz estava perfeitamente bem informado. Artur j antes tivera notcia da viagem do emissrio de Getlio, mas o comunista dera-lhe detalhes novos, irrefutveis, trechos de conversas, a certeza de que o golpe se estava gestando e no tardaria a liquidar a campanha eleitoral, a liquidar tambm as mais caras esperanas do deputado Artur Carneiro Macedo da Rocha, cuja designao para Ministro da Justia era considerada coisa assentada no caso de Armando Sales ser eleito presidente da Repblica.

Nem mesmo o escndalo provocado com a bebedeira de Paulo abalara a solidez da sua candidatura ministerial. A imprensa inimiga utilizara o incidente explorando-o de maneira revoltante. Manchetes, ttulos e subttulos em grossos caracteres, editoriais falando em nome do Brasil arrastado na lama, um bbedo rompendo a nobre tradio da diplomacia brasileira, metiam sob os olhos dos leitores, menos que o nome de Paulo, o nome de seu pai, o deputado Macedo da Rocha, chefe de propaganda da candidatura Armando Sales e um dos seus lderes mais importantes. Como se fosse um bicho-de-sete-cabeas um jovem segundo-secretrio de Embaixada, farto at a raiz dos cabelos da chata monotonia da vida em Bogot, beber alm da medida e dizer alguns palavres em meio a uma festa diplomtica, Admitindo mesmo como verdade (e Artur sabia que era verdade, Paulo perdia todo o controle quando se embriagava) que tentara, como narravam num excesso de detalhes os telegramas nas primeiras pginas dos jornais, despir em plena saia de baile a esposa de um certo dom Antnio Reyes, e que rolara pelo assoalho em luta corporal com as pessoas que o tentavam dissuadir de tal empresa, ainda assim, noutra ocasio qualquer, a coisa no passaria de incidente sem maiores conseqncias, motivo apenas para cochichos murmurados nos corredores do Itamarati, dando margem quando muito remoo de Paulo para uma capital europia onde as bebedeiras dos secretrios de Embaixadas sul-americanas no chegam a escandalizar.

Desta vez entretanto, resultara em toda essa ignbil explorao, editoriais em negrito, artigos de fundo nos jornais, caricaturas nas revistas e at um quadro humorstico que fazia o sucesso de um espetculo de variedade num teatro carioca. Como o rapaz houvesse criado um perigo de guerra entre o Brasil e a Colmbia, como se um porre (acontecimento trivial em meio ao nosso corpo diplomtico, Como le dissera ao Ministro) houvesse liquidado a honra da ptria e insultado os sentimentos mais profundos da Repblica colombiana.

Pura explorao poltica. Tentativa, envolver num clima escandaloso no s a le, Artur, mas a toda a faco poltica que le representava, as velhas famlias paulistas donas de enormes extenses de terra, de milhes de cafeeiros, apresentando-os como os smbolos de um fim de raa que se termina no lcool e na devassido, incapazes portanto de dirigir os negcios pblicos do pas. Os jornais getulistas atacavam, tomando como pretexto o escndalo de Paulo, toda a campanha eleitoral, e os integralistas falavam na necessidade de sangue novo no Itamarati. E todos, unanimemente, pediam um castigo exemplar para o filhinho-de-papai que emporcalhara na culta capital da Repblica irm, o nome que Rio Branco construiu para a nossa ptria frente do Ministrio do Exterior.

Projetaram mesmo demitir o rapaz. Por isso Artur fora obrigado a falar muito francamente com o Ministro, e dizer- lhe duras verdades. Eis o que fizera a entrevista desagradvel: Artur tivera que sair de seus hbitos, da sua costumada maneira de ser, sutil e macia, le que no amava a violncia. Mas, de fonte segura, lhe haviam informado que o Ministro j linha redigido o telegrama onde exigia que Paulo apresentasse seu pedido de demisso. Que jeito seno ser violento, ameaar, mostrar que era um adversrio perigoso? Tinha de salvar a carreira do filho.

Com essa entrevista comeara o ms e terminara com a entrevista com o dirigente comunista, cercada de mistrio, duas vezes adiada, deixando-lhe uma recordao ainda mais amarga que a conversa pouco diplomtica no gabinete ministerial do Itamarati. que, por mais desagradvel que houvesse sido, a visita ao Ministro terminara numa vitria: nenhum castigo perturbaria a carreira de Paulo, apenas le ficaria no Rio de Janeiro, sem designao para o estrangeiro, durante alguns poucos meses. Tivera de falar franco, num tom ameaador, mostrar que conhecia nas pontas dos dedos possua vinte e cinco anos de vida poltica a srie infinita de escndalos que se escondia sob os muros respeitveis e hipcritas do Itamarati. Citara nomes e fatos. Detalhara ao Ministro horrorizado o discurso que havia preparado para quando a demisso, ou qualquer outra sano contra Paulo, o obrigasse a debater o assunto na Cmara dos Deputados. Enquanto a coisa no passasse de explorao poltica nos jornais. le se manteria calado. Mas, se atingissem o rapaz com qualquer medida disciplinar, nesse caso...

Mesmo para dizer as coisas mais duras Artur mantinha aquela voz redonda e macia que lhe dera fama de bom orador parlamentar: que significava a juvenil embriaguez de Paulo (que jovem diplomata no se embriagou pelo menos uma vez na vida?) comparada com o escndalo dado pelo Conselheiro da Embaixada em Lisboa agora Embaixador no Egito , figura ilustre do Itamarati? O ministro recordaria o fato certamente, datava apenas de um ano: o ento Conselheiro de Embaixada fora preso pela polcia lusitana quando, bbedo como uma cabra, tomava banho nu na praia elegante do Estoril, meia-noite, em companhia da esposa do Ministro salazarista de Obras Pblicas, nua ela tambm, sem ter sequer longos cabelos com que cobrir o corpo como o fazia Eva no paraso. Sorria a essa frase que, como o Ministro podia ver, daria certa graa ao discurso, O pior era ser obrigado a citar o nome da esposa do Ministro portugus envolvida no escndalo, quando to cordiais se mantinham as nossas relaes com o governo de Salazar. Mas que fazer, se esse enorme escndalo fora completamente abafado, nem uma notcia nos jornais, e o Conselheiro da Embaixada tivera sua vocao nudista premiada com a Legao no Egito?

O Ministro tentava interromp-lo, mas Artur continuava a detalhar escndalo sobre escndalo: que dizer do Embaixador na Finlndia que passara trs dias na cadeia de Helsinque, sem dar a conhecer a sua qualidade de diplomata, por ter, em estado da mais lastimvel embriaguez, quase destrudo um pacifico cabar nrdico? No Brasil quase nem se soubera do fato que, no entanto, servira aos caricaturistas da Scandinvia para ilustrar revistas humorsticas que le, Artur, por casualidade possua e que exibiria na tribuna da Cmara. Lastimava ter que faz-lo pois o aludido diplomata, atualmente Embaixador nos Estados Unidos e uma das mais prestigiosas figuras da nossa diplomacia, era seu velho camarada, juntos haviam cursado a Faculdade de Direito de So Paulo, Mas, o Ministro havia de compreender, era a carreira de seu filho que estava em jogo, sua honra tambm, e a prpria honra dele, Artur, que a imprensa, com a cumplicidade do governo sublinhava essas palavras , enxovalhava devido a um incidente sem a mnima importncia, uns tragos a mais que o rapaz bebera. E no ficaria apenas no relato de cachaadas homricas de ilustres embaixadores. O Ministro tinha conhecimento, certamente, de que em seu Ministrio sucediam coisas mais graves do que simplesmente borracheiras mais ou menos rumorosas, coisas que Artur afirmava com voz quase terna no desejaria jamais tornar pblicas. Como homem poltico que era, zeloso do prestgio das classes conservadoras, Artur preferia que a grande massa popular, as classes trabalhadores j to desiludidas e atualmente to influenciadas pelas idias subversivas dos comunistas, no tomassem conhecimento desses fatos que em nada ajudavam a manter o prestgio dos homens pblicos do pas. Se o fizesse, se fosse obrigado a pronunciar o tal discurso, no o culpassem a le e, sim, aos que queriam explorar politicamente a bebedeira de Paulo. Que diria o povo ao saber do escndalo do ch, em que estivera envolvida quase toda a representao diplomtica do Brasil na China, uma negociata que rendera milhares de dlares aos funcionrios da nossa Embaixada em Pequim? E que gozo no seria para a gentinha do povo a leitura de lista enorme verdadeiramente enorme, senhor Ministro dos funcionrios categorizados do Itamarati que se davam ao elegante vcio da pederastia? Nesse particular os escndalos se amontoavam, alguns realmente picantes, bom material, sem dvida, para um discurso de oposio ao governo. Havia, por exemplo, aquela divertida histria acontecida em Buenos Aires, quando da Conferncia pela paz do Chaco, em que estavam envolvidos um belo e jovem Secretrio de Embaixada e o respeitabilssimo e efeminadssimo Embaixador...

O Ministro no o deixou continuar (Artur queria citar trechos do poema que o Embaixador escrevera para o jovem Secretrio). Estava vencido, esmagado, e desejava evitar sobretudo referncias ao caso do ch no qual estava envolvido um seu prximo parente... Comeou le mesmo a desculpar o procedimento de Paulo, coisas de rapaz, disse, e afirmar que jamais lhe passara pela cabea qualquer medida punitiva. Tambm le condenava a excitao sensacionalista da imprensa, onde enxergava velha m vontade para com o Itamarati, antiga rivalidade entre diplomatas e jornalistas, agravada naquele caso pelo aspecto poltico, pela paixo despertada com a campanha eleitoral. Mas tudo havia de se arranjar da melhor forma, talvez fosse necessrio que Paulo estagiasse uns seis meses numa das secretarias do Ministrio, logo depois se encarregariam de dar-lhe um bom posto na Europa. E acrescentou, uma falsa nota de melancolia na voz:

Nesse momento eu j no serei Ministro, as eleies j se tero realizado e outro ocupar esse gabinete...

Mas Artur descobria uma distante ponta de ironia na sua voz, como quem no acreditava nem em eleies nem em novo Ministro. E se surpreendeu ao reconhecer no oficial de gabinete que o acompanhou pelos corredores, aps a entrevista, a um intelectual integralista cujos artigos violentos reclamavam um regime forte para o pas e o fim da torpe comdia eleitoral. Por todas as partes se encontravam agora os integralistas e era por toda parte aquela atmosfera de conspirao, de golpes que se preparavam, de conversas cochichadas, de expectativa.

Talvez tivesse sido esse clima de nervosismo, esse sentimento obscuro de medo, que o houvesse levado a aceitar a idia de uma conferncia com um dirigente comunista que Ccero dAlmeida, o conhecido escritor, lhe propusera. Artur desejava saber o que os comunistas pensavam da situao, colher dados, pois eles passavam por bem informado Tinha tambm uma certa curiosidade de conhecer e tratar com uma dessas misteriosas personalidades que dirigiam a luta comunista dos seus impenetrveis esconderijos. Os que le conhecia eram geralmente intelectuais como Ccero dAlmeida e Artur no podia julg-lo como um comunista, ligando-o a tudo que esta palavra lhe significava. Como le prprio, Ccero descendia de uma antiga famlia da aristocracia cafeeira, seus avs haviam sido senhores de escravos como os de Artur, Ccero havia cursado como le a Faculdade de Direito de So Paulo, vestiam-se no mesmo caro alfaiate, faziam os sapatos sob medida na mesma elegante sapataria, encontravam.se nas mesmas recepes e por vezes at discutiam, o escritor citando Marx entre os cristais onde brilhava o usque.

O comunismo em Ccero era, segundo Artur, uma extravagncia intelectual, no representava um srio perigo e ele mesmo interviera certa vez junto s autoridades para libert-lo quando o escritor estivera preso. Dissera ento ao chefe de polcia:

Extravagncia de intelectual jovem. Afinal um robusto talento e filho do velho conselheiro Almeida, herdeiro da sua fortuna. Um dia desses ns o faremos deputado e ele cura-se do comunismo...

Acrescentara, numa generalizao:

Essa coisa de comunismo e integralismo como o sarampo que todos os meninos tm, em certa idade. Os intelectuais o tm tambm, mas depois, com a idade, passa...

O chefe de polcia, porm, estabelecia diferenas. Uma coisa era o comunismo querendo destruir a sociedade, outra, muito diferente, o integralismo, uma doutrina de muito patriotismo, cheio de um sadio e nobre nacionalismo, baseada nos sentimentos cristos. Mas atendeu ao pedido e mandou pr Ccero em liberdade.

Quando se colocara o problema das candidaturas presidenciais, Artur se valera das relaes com Ccero para sondar a opinio dos comunistas a propsito de um possvel apoio candidatura Armando Sales. Nada conseguira, verdade, os comunistas exigiam um programa impossvel: reforma agrria, anistia para os presos de 1935, luta concreta contra o fascismo e o imperialismo, nacionalizao dos trusts americanos... Apesar disso continuara a manter boas relaes com Ccero, admirando-se sempre de ainda encontr-lo comunista a cada vez que o via, como se admiraria se o encontrasse com a camisa suja ou a barba por fazer. Para Artur, comunismo era uma espcie de coisa que no cabia na personalidade de Ccero, to marcadamente aristocrata paulista.

Porm, com o outro, aquele com quem conversara nessa tarde, era diferente. Por esse, ele no interviria junto ao chefe de polcia. Nele (como seria mesmo o seu verdadeiro nome? Artur gostaria de sab-lo) se percebia em seguida uma fora, uma convico que nada linha de amadorismo intelectual, uma flama na voz severa, nos olhos penetrantes. Falara de coisas concretas, acusara Artur e seus correligionrios, sem sequer alterar a voz:

Quando os senhores da oposio votaram a prorrogao do estado de stio estavam votando a prpria dissoluo da Cmara. Um suicdio parlamentar.

Mas a Cmara no foi dissolvida...

Ser, com certeza.

Artur quisera contra-atacar; referiu-se ao plano subversivo descoberto pelo Estado-Maior do Exrcito e no qual se baseara a mensagem presidencial pedindo o estado de stio, um plano de revoluo comunista, traado no estrangeiro, certamente em Mascou. O moo, em sua frente, sorria quase com doura:

Nenhum dos senhores acredita nesse plano. Todo mundo sabe que le foi fabricado, pea por pea, no gabinete do General Gis Monteiro. Ademais, um plano imbecil.

Rasgava depois as cortinas daquele obscuro medo que flutuava nos corredores da Cmara, nos meios polticos:

Os senhores se enganam se pensam que a luta dos fascistas se restringir perseguio aos comunistas. Comearo conosco, aps sero os senhores, O que os integralistas e Getlio preparam um golpe de Estado fascista.

Artur sentia inteis os rodeios; as nuanas de palavras, to gratas nas discusses parlamentares, no cabiam naquela conversa. Ouviu a proposio comunista; unio das foras antifascistas das duas candidaturas presidenciais contra o golpe projetado, uma pausa nas campanhas eleitorais, o lanamento de um manifesto assinado pelos dois candidatos presidncia e pelos governadores dos Estados que os apoiavam declarando sua deciso de defender a legalidade constitucional contra qualquer ameaa de governo fascista. Segundo o comunista, talvez essa simples declarao fosse suficiente para impedir o desencadeamento do golpe. E se no o fosse, se Vargas e os integralistas persistissem, ento as foras democrticas unidas poderiam rapidamente abafar qualquer golpe, restabelecer a ordem e garantir a realizao das eleies.

Artur buscava encontrar o que se esconderia por trs da proposta do suposto Joo. Que esperam os comunistas ganhar, eles que haviam preferido ficar margem das candidataras presidenciais, sem apoiar nenhum dos dois candidatos, aproveitando a campanha para readquirir algumas posies legais, perdidas aps a derrota da insurreio de 35? Sem dvida eles tinham interesse em lutar antes de tudo contra Getlio e os integralistas, contra um regime fascista, mas no queriam eles, com essa idia de unio, utilizar as foras chamadas democrticas a seu servio? Artur sentia uma instintiva desconfiana em relao aos comunistas, sentia-os inimigos, naturalmente, sem que lhe fosse necessrio buscar explicaes para tal fato. Quando o rapaz acabou de falar, Artur disse:

Getlio tem o Exrcito com ele e os integralistas tm muita fora na Marinha...

Os senhores tm armas, as armas das polcias militares dos Estados. O povo est disposto a lutar contra um golpe fascista. Grande parte da oficialidade do Exrcito antifascista. E todo o povo. S aqui, em So Paulo podemos levantar vinte mil trabalhadores se os senhores se dispem a resistir ao golpe...Calou-se, esperando uma resposta. Artur acendeu um charuto, refletia. A princpio a proposta de unio das foras antifascistas no lhe parecera uma coisa impossvel. Realmente, talvez assim pudessem evitar o golpe, ganhar tempo tambm para consolidar a candidatura Armando Sales, para buscar-lhe uma popularidade que lhe faltava. Mas agora que o comunismo falara em armar trabalhadores, em misturar os sindicatos naquilo tudo, ele se fazia reticente e desconfiado. No era assim que ele concebia a poltica; para le poltica era um assunto que cabia elite, cujos problemas deviam ser resolvidos por um grupo de homens e no por todo esse mundo estranho, distante e inquietante de trabalhadores. J no era pouco ter de fazer promessas ao z-povinho, a uma gente que nos dias de ontem votara no escuro nos nomes que lhe indicavam os cabos eleitorais...

Disse que ia conversar com os correligionrios, que a idia tinha seus lados interessantes, procurou no se comprometer. O comunista parecia ler nas suas reticncias. Levantou-se para despedir-se:

O senhor tem medo de armar o povo, isso que se passa. O senhor prefere ver Getlio continuar no poder, prefere mesmo os integralistas com sua constituio fascista, do que se apoiar no povo... Os senhores iro se arrepender depois...

Artur sorriu:

Jovem, eu fao poltica h vinte e cinco anos...

O comunista se retirara e o sorriso desapareceu da face do deputado Artur Carneiro Macedo da Rocha. Da conversa ficara-lhe a certeza, sem nenhuma possibilidade de dvida, de que o golpe de Estado estava em marcha e seus sonhos de ministrio, de grandes negcios, seriamente ameaados. Ainda agora, no automvel que o conduz casa do banqueiro Costa Vale, onde rever Marieta recm-chegada de seis meses da Europa, nisso que pensa. Quando desejaria estar de corao limpo de qualquer preocupao para se entregar alegria da presena da Marieta.

O automvel penetra na rua elegante onde se elevava o palacete dos Costa Vale. rvores copadas abafavam a luz difusa dos postes eltricos e uma certa calma, que descia sobre aquele recanto rico da cidade, restituiu a Artur sua perdida jovialidade. Fechou os olhos, por um momento: havia um segredo que o comunista no conhecia e que ele, Artur, se guardara bem de dizer tambm eles, os partidrios da candidatura Armando Sales, no se contentavam com a preparao das eleies. Tambm eles articulavam um golpe, estabeleciam ligaes no Exrcito e na Marinha, e, antes ou depois de Getlio se movimentar, eles chegariam ao poder sem necessidade de entregar armas aos sindicatos e aos comunistas... Sorriu um meio sorriso, aquele fatdico ms de outubro estaria terminado dentro de poucas horas. Novembro comearia, Marieta agora estava na cidade, em breve ele seria Ministro, a vida era bela, apesar de tudo... Espreguiou-se no assento fofo do auto como a afastar os ltimos restos dos pensamentos melanclicos.

A noite era morna quando Artur atravessou por entre as rvores do jardim que cercava a residncia em estilo colonial. Ficou um momento parado antes de transpor a porta de entrada. At ele chegava, atravs da porta semi-aberta, o rudo abafado das conversaes, o tilintar dos clices de bebidas, um riso cristalino de mulher. Ele o reconheceu de imediato: era de Marieta aquele riso, nenhum outro possua to doce melodia.

Da grande sala de recepo, Marieta do Vale o viu diante da porta de entrada e veio com as mos estendidas. Artur beijou-lhe a mo magra e a conservou entre as suas um instante, num gesto de carinho, enquanto ela perguntava:

verdade que Paulinho vai chegar?

A qualquer momento esse louco pode descer de um avio.

Marieta sorriu mostrando os dentes magnficos, a notcia a deixava mais alegre do que ela mesma desejava. Artur a olhava longamente, como no o poderia fazer depois na sala: era ainda uma bela e desejvel mulher, apesar de seus quarenta e trs anos. Possua uns olhos rasgados no rosto moreno e fino e uma boca esplndida que dava sua face, com o meio sorriso que lhe era permanente, um ar desdenhoso de quem se divertia com tudo e com todos. Seu corpo conservava a esbeltez da mocidade, as cintas e os porta-seios no tinham sido feitos para ela. Corpo ainda mais fresco que o rosto como se os anos no lhe houvessem pesado. Artur murmurou:

Ests mais linda do que nunca

Manrieta encolheu os ombros nus sob o decote do traje negro de perfeita elegncia:

Paris rejuvenesce...

Mas logo voltou a falar sobre Paulo, pedindo detalhes dos acontecimentos de Bogot, indignada com o escndalo dos jornais:

Preocupo-me muito com Paulinho, tu o sabes. Menino criado sem me, por um pai estrina como tu. ngela era minha amiga e hei de velar pela sorte do seu filho...Artur baixou a cabea ao peso de recordaes subitamente evocadas:

Poderias ter sido a me de Paulo. Fui um estpido.

No vamos falar outra vez nessas coisas passadas e enterradas, faz muito que j nem me lembro delas. E, se alguma vez penso nisso, para concluir que fizemos bem. J pensaste a srio no que teria sucedido se nos houvssemos casado? Seramos por a dois pobretes, amargando uma vida difcil. Eu no tinha dinheiro, s tinha por mim esse rosto que Deus me deu. Tu no tinhas dinheiro, teu nico capital era o nome ilustre que herdaste, nica coisa que no podias gastar nos cabars... Empregamos bem o nosso pequeno capital... Sorriu e seu rosto tinha novamente aquele ar desdenhoso que por um momento o abandonara. Com bons juros...

Artur a olhava espantado. Jamais ela lhe falara assim. verdade que nesses vinte e cinco anos muito poucas vezes haviam recordado aqueles tempos. Logo depois que ela se casara, pouco antes de Paulo nascer, le tentara fazer-lhe a corte mas ela o repelira de uma vez para sempre. Se ele, porm, quisesse ser seu amigo ela se sentiria feliz, porm jamais seria sua amante. E o disse com tal firmeza que le no voltou a insistir. A amizade entre eles, qual jamais faltara certa ternura familiar, crescera e muitas vezes Artur vinha pedir conselhos a Marieta ou a seu marido, de quem se fizera tambm ntimo amigo. Durante os ltimos vinte anos, aps a morte de ngela, a casa dos Costa Vale fora um pouco a sua casa, onde vinha para o bridge, para os jantares, pan as longas conversas. Quando, depois da luta armada de 1932, Artur esteve exilado em Portugal e Frana, foi Costa Vale quem fez todas as despesas do poltico desempregado, como ele dizia rindo.

Ficaste cnica na Europa... disse le.

Ela encolheu novamente os ombros, mais uma vez sorria:

Cnica? Se assim o queres... Tu morrers sem te libertares desse sentimentalismo que tanto tem te atrapalhado na vida. Eu possuo o hbito saudvel de raciocinar sua voz tinha uma certa dureza que se prolongava por todo o seu semblante, marcando com uma nota spera a beleza de sua face. Para mim a cabea est antes do corao... Tenho me dado bem... Alis, Artur, necessitamos falar contigo seriamente, eu e Jos era seu marido talvez possamos faz-lo aps a recepo. Artur encheu-se de curiosidade:

Do que se trata?

conversa longa, fica para mais tarde... Um instante ficou como que refletindo. Pensava em Paulo que estava para chegar. Disse:

No pense que sou m de toda. Por Paulinho at sacrifcios eu faria, le a minha fraqueza...Ps a mo sobre a mo de Artur num gesto carinhoso:

Vamos entrar..

E como atravessassem a porta que dava entrada ao grande salo repleto de convidados, Marieta elevou a voz para dizer: Ento tudo isso que falam de um golpe de Estado no passa de boatos?

Tambm Artur elevara a voz e dava-lhe aquela entonao um pouco declamatria:

Boatos, Marieta, boatos de quem no tem o que fazer. As eleies se realizaro normalmente e ns venceremos por mais de trezentos mil votos. So Paulo ainda e So Paulo!

2

Marieta o conduziu ao grupo onde Costa Vale, enxugando com o leno o suor na testa calva, traava os rumos da poltica mundial. Um velho professor da Faculdade de Medicina, mdico de nomeada, doutor Alcebades Morais, o senador Venncio Florival fazendeiro dono de imensas terras em Mato Grosso e de uma ignorncia ainda maior e o poeta Csar Guilherme Shopel, mulato e gordssimo, ouviam com respeito as consideraes do banqueiro. De quando em vez, Csar Guilherme deixava escapar uma exclamao admirativa e sua voz to cheia de clida adulao como se ele estivesse se dirigindo, numa declarao de amor, a uma mulher de extraordinria beleza. Artur comentou para Marieta, enquanto se aproximavam:

Jos est feito todo um orador... preciso candidat-lo ao Senado. Veja como Shopel bebe-lhe as palavras...

Marieta resumiu, num apressado murmrio, sua opinio sobre o poeta:

No sei como se pode ser ao mesmo tempo to inteligente e to srdido.

Mas j o silncio se fazia no grupo onde Costa Vale estendia os braos para Artur, enquanto o poeta Shopel repetia, meia voz como para apreci-la em toda a sua justeza, valorizando-a ainda mais aos olhos dos outros, a ltima observao do banqueiro:

Esse Hitler um gnio...

Depois do abrao, Artur separava-se de Costa Vale para melhor estudar-lhe o rosto plido onde brilhavam uns olhos frios e agudos:

Ests com uma fisionomia excelente. A Europa te fez bem.

Costa Vale tambm examinava o deputado. Apreciava Artur e sorria-lhe com amizade. Tinha um certo respeito pela habilidade poltica do outro e uma certa inveja daquele seu ar aristocrtico, daquela espcie de superioridade de casta que decorria de Artur naturalmente e que jamais Costa Vale vindo de muito baixo, como le mesmo gostava de repetir com certa vaidade conseguira adquirir apesar dos seus milhes. Essa admirao e essa estima por Artur no iam sem um certo amigvel desprezo pela sua falta de energia, pela sua permanente indeciso, que lhe criavam problemas a cada dia. Uma das grandes satisfaes de Costa Vale era chamar a ateno de Artur para erros que estava a cometer, considerava-se um pouco como o guia e conselheiro daquele poltico que era o seu deputado. Era o seu banco que financiava as campanhas eleitorais de Artur e Costa Vale no podia pensar nele sem imagin-lo como uma espcie de alto funcionrio seu, ao mesmo tempo prestimoso e decorativo, seu representante na Cmara. O prestgio poltico de Artur era-lhe de muita utilidade.

Sim, senhor disse no envelheces... Quanto a mim, a Europa e seus clebres mdicos nada adiantaram. Venho mais doente do que fui, mas venho contente com a Europa. Principalmente com a Alemanha. Menino, qualquer coisa de srio como eu dizia agora mesmo ao amigos. A obra de Hitler digna de toda admirao.

Csar Guilherme Shopel, gordo de mais de cento e vinte quilos, as banhas do rosto mulato balanando-se sob o riso de admirao que se espalhava por sobre a larga face, interrompeu:

Costa Vale devia escrever um livro de impresses de viagem... Uma finura de observao, uma penetrao poltica como a dele no devem se restringir s conversas com os amigos. Devem servir a todo o pas...

O banqueiro teve um pequeno sorriso entre lisonjeado e irnico, passou a mo pelo queixo:

Esse Shopel depois que fundou uma casa editora pensa que todo mundo poeta. Isso de escrever livros para quem no tem o que fazer e eu tenho muito o que fazer, no tenho tempo para sujar papel...O poeta arrancou o charuto da boca, a cinza se espalhou sobre o smoking, protestou:

Tu vs, Arturzinho, sse desprezo de burgus milionrio pela literatura... Mas seu Costa Vale, me diga o que seria dos grandes homens se no fossem os livros. Hitler mesmo: toda sua carreira se deve ao Mein Kampf. Veja Churchill: le no se envergonha de escrever, nem le nem Ford, o grande Ford...

Voltava-se para Marieta:

No acha que le devia escrever suas impresses de viagem, dona Marieta?

Mas antes que ela respondesse, Costa Vale disse:

Hitler um grande homem, no h dvida. Mas, Shopel, tire da cabea essa idia absurda que foi o seu livro que o fez. O livro teve a sua importncia junto ao povo. Mas, menino, quem levou Hitler ao governo no foi nenhum livro, preste bem ateno. Quem o levou ao poder foram os Costa Vale de l, os que no sabem escrever livros mas sabem enxergar em meio confuso...

Dizia-o mais para Artur, como se quisesse antecipadamente convenc-lo de algo, que mesmo para Shopel. Marieta agora os deixava para atender aos insistentes chamados da Comendadora da Torre, viva riqussima de um industrial portugus. Essa velha Comendadora no perdia uma nica recepo e dela diziam ser a mais viperina lngua de todo o Estado de So Paulo. Os olhos de Artur acompanharam Marieta enquanto ela atravessava a sala em direo poltrona onde a Comendadora, literalmente coberta de jias, fazia rir todo um grupo s gargalhadas. O poeta Shopel tambm fitava com uns olhos ensombreados de desejo, a mulher que se afastava. E como Costa Vale estava um pouco ao lado, falando a um convidado, disse a Artur, em voz baixa:

uma balzaquiana divina!... fez um rudo com a lngua, e Artur achou tudo aquilo pornogrfico e indigno de Marieta: a aluso sua idade, o rudo cpido, os olhos vidos do poeta, seu corpanzil imenso e balofo. No respondeu, no sorriu, sentia-se pouco vontade na recepo, desejoso que ela terminasse e le pudesse ficar na intimidade de Marieta e Costa Vale, ouvindo-os falar da Europa, contando-lhes do Brasil, sabendo por fim que coisa to importante desejavam lhe dizer. Tinha agora o pressentimento de que a atmosfera mals daquele ms de outubro ameaava prosseguir nesse novembro prestes a comear. O poeta perguntava por Paulo, mas Artur em vez de responder, voltou-se para o velho professor de medicina que repetia uma interrogao ansiosa ao senador Florival:

O senhor no cr, realmente, na possibilidade de golpe?

Quanto a mim, eu no creio... disse Artur.

O poeta fazia-se conspirativo, aproximava-se para ouvir o que o deputado Artur Carneiro Macedo da Rocha, um dos lderes mais influentes da candidatura do governador de So Paulo Presidncia da Repblica, revelasse. Tambm o senador curvou-se um pouco para ouvir melhor.

O Exrcito empenhou sua palavra em como as eleies se realizaro normalmente. a honra do Exrcito que est em jogo! E se formos duvidar dessa honra, ento no poderemos acreditar em nada do Brasil.

Sim, o Exrcito... fez o professor numa tmida aprovao de quem no parecia muito convencido.

E os integralistas? preciso contar com eles. Csar Guilherme chupava o charuto entre as frases.

Os integralistas Artur fez um gesto de pouco caso com a mo eles gritam muito e fazem pouco. Ameaas, ameaas, e mais nada.. Palavras no vazio.

Eles so uma fora, discordou o poeta. O fascismo uma idia em marcha em todo o mundo. Veja a Alemanha, veja a Itlia, agora a Espanha. Ainda h pouco Costa Vale estava falando sobre isso. a realidade da Europa.

O velho professor de Medicina balanou a cabea, agora no era uma aprovao medrosa, eram palavras de homem convencido do que dizia:

So uma fora, sim. Cresceram de um dia para o outro e tm o apoio da Igreja, do governo, da Marinha. Mesmo de muita gente do Exrcito... E suas idias, eu no sou poltico, sou um cientista que vive no seu gabinete, mas suas idias me agradam... So srias, patriticas, respeitosas para com a religio e o Estado.

Um criado servia coquetis numa bandeja de prata. O professor recusou; Artur, o senador e Csar Guilherme serviram-se. Costa Vale continuava, um pouco distante sua conversa com um convidado. Artur olhou atravs do cristal do clice, pensativo:

Concedo que haja na doutrina integralista princpios sos e srios, possveis de apaixonar a juventude. Concedo mesmo que eles tenham certa fora. Mas no tm chefes capazes...

O poeta atalhou:

No diga isso. Plnio um dolo...

Foi meu aluno na Escola de Farmcia... disse o professor. Dei-lhe uma boa nota nos exames do segundo ano. No sei e havia uma dvida melanclica em sua voz se le ainda se recordar de mim...

Mas Artur no acreditava no prestgio de Plnio Salgado:

Um idiota, um fantico. No um poltico... E ademais eles no tm foras para, s dar um golpe de Estado... Nem eles, nem Getlio...

E se eles se unem? o poeta fez-se ainda mais conspirativo. Vocs sabem, a verdade que as conversaes entre Plnio e Getlio comearam h muito tempo. Chico de Campos quem serve de intermedirio.

Todos sabiam que o poeta era ntimo do ex-Ministro da Educao e sua revelao trouxe um silncio que ameaava durar se o senador Venncio Florival no abrisse a boca pela primeira vez em toda a conversa. H muito que bebera o seu coquetel e agora agitava o clice como uma arma:

Eu apio o doutor Armando sua voz era arrastada como a de um homem do campo e meus votos so pra le se houver essas danadas eleies, do que duvido. Mas eu no sou homem de mentiras e no vou dizer que os integralistas no tm razo. Outro dia eles vieram com uma subscrio, pedindo dinheiro. Pra que o dinheiro. eu quis saber. Pra lutar contra o comunismo, eles me responderam. Dou de corao, eu disse, e assinei vinte contos de ris. O que preciso acabar com os comunistas. E quem quiser mesmo acabar com eles conta comigo, seja Armando Sales, Z Amrico, Getlio ou Plnio Salgado, seja americano, ingls ou alemo.

Os comunistas considerou o poeta Shopel esto de cabea cortada, levaram um golpe definitivo em 1935. Com Prestes na cadeia, o que podem fazer?

O que eles podem fazer? o senador se animava, gesticulava, brandia o clice levando-o at a barriga do poeta como se estivesse com um punhal pronto para ferir. Vou lhe contar, seu Shopel: esses bandidos conseguiram no sei como, se meter com os homens da minha fazenda e encaixar coisas na cabea deles. No que outro dia vieram colonos me falar querendo contratos de trabalho assinados, cheios de clusulas? Sabem o que eles diziam: que era para garantir o direito dos camponeses. Camponeses eles, imagine. Direito de camponeses, pense nisso! Eu nunca pensei de ver tal coisa em minha vida! Botei tudo pra fora da fazenda, uns dois saram meio rebentados de chicotes. Umas lambadas pra aprender o respeito. Obra dos comunistas...

um fim de mundo... disse o professor e estava ao mesmo tempo horrorizado com a ousadia dos colonos e com a sem-cerimnia com que o senador falava do chicoteamento dos homens.

Artur deu largas ao seu antigetulismo:

Tudo isso o resultado da demagogia trabalhista de Getlio com suas leis de proteo aos trabalhadores, com o Ministrio e a Justia do Trabalho. Tudo isso encheu a cabea dos operrios e agora dos colonos e trabalhadores das fazendas. Getlio assanhou um ninho de marimbondos... Mas o senador no concordava:

Qual o qu, seu doutor Artur, qual o qu! Eu sou um caipira, no sou homem de muita instruo, mas vou lhe dizer: o que Getlio fez foi muito bem feito, no veio assanhar os marimbondos, no senhor, veio acalmar. Fez a justia do trabalho mas quer acabar com as greves. Que que os industriais podem querer mais? No so essas leizinhas de conversa fiada que bolem com os homens. E pras fazendas ele nem leis fez, essa que a verdade. So os comunistas que esto botando coisas na cabea dos homens. preciso acabar com esses bandidos. Quanto a mim, j dei ordens: se algum aparecer pela fazenda, pau nele. No sai de l com vida, Deus me ajude...

Artur riu:

Justia sumria, senador! Como nos tempos da colnia.

Olhe l, seu doutor Artur, que esses tempos tinham suas boas coisas...

Os escravos... Artur continuava a rir.

Por exemplo... concordou o senador escravo nunca veio reclamar contrato de trabalho...

O poeta Shopel tomou do brao do senador:

O ltimo escravista do Brasil... Cuidado, senador, que os jornais inimigos podem explorar esse seu amor aos tempos coloniais.

O fazendeiro estendeu o brao livre, rindo le tambm:

Sou um homem fraco, seu Shopel. No sei escrever verso como o senhor nem fazer discursos bonitos como o nosso dr. Artur. No Senado espio os projetos, vejo os que servem, dou meu voto. Quando falo pra dizer o que penso. Escravista? Todos ns somos ainda um pouco escravistas, eu, o Costa Vale com seu banco e suas fbricas, a Comendadora da Torre com suas indstrias, aqui o Artur com suas aes nas fbricas de Pereira, voc mesmo que vive bem porque essas coisas existem. Somos ns que mandamos, os outros devem obedecer e os escravos sempre obedecem melhor que os assalariados. O mal a gente estar dividido. isso que me agrada nos integralistas, eles querem juntar todo mundo contra os comunistas...

Fazia-se eloqente:

Quem nasce pobre que Deus o fez pobre, sempre houve pobres e ricos, esses comunistas querem modificar aquilo que a obra de Deus...

Costa Vale, que voltara ao grupo, concordava:

Palavras sensatas. Vejam a diferena entre a Alemanha de Hitler e a Frana do Front Popular. Na Alemanha a ordem, a preciso no trabalho, um ritmo acelerado, nada de greves, de desordens, de motins. Na Frana a anarquia, os comunistas ameaando as instituies mais respeitveis.

E a Espanha... lastimou-se o poeta Shopel. A Espanha afogada em sangue..

Os comunistas so uns bandidos... resumiu o senador.

Hitler acabou com eles na Alemanha e acabar com eles no mundo inteiro sentenciou Costa Vale dando s suas palavras todo o peso da autoridade de um homem recm-chegado da Europa. Eu vi a obra de Hitler com meus prprios olhos... Admirvel. Um grande homem!

Tomou do brao de Artur, levou-o consigo:

Quando a recepo terminar no te vs embora. Quero conversar contigo...

No grupo houve um silncio. O senador, despedia-se, gostava de dormir cedo. Mas antes de sair ainda disse: Se houver um golpe eu perco minha cadeira de senador, mas no me importa. Desde que haja um governo forte, capaz de pr cobro aos comunistas, ele tem meu apoio...

O professor estava impressionado, interrogou Shopel que conhecia bem Plnio Salgado, havia mesmo editado livros seus:

Ser que o doutor Plnio ainda se recordar de mim? Fui seu professor durante dois anos...

O poeta parecia imerso em cogitaes. De sbito perguntou ao professor:

Doutor Morais, me diga uma coisa: por que o senhor no entra para a Ao Integralista?

O professor recuou um pouco ante a proposta:

Nunca fiz poltica em toda a minha vida, vivi sempre entre meu consultrio, o laboratrio da Faculdade e os alunos...

O poeta segurou-o pelo brao:

O senhor pensa como os integralistas, o senhor possui um nome conhecido e ilustre, por que no coloc-lo a servio dessas idias que so tambm as suas? Para os integralistas sua adeso seria de muita utilidade e para o senhor...

Puxou o professor para junto de si, sussurrava-lhe aos ouvidos:

Veja, professor Morais: quando Plnio Salgado, h quatro ou cinco anos, apareceu falando em integralismo todo mundo ria dele. Hoje Costa Vale o banco e a indstria o senador Florival as fazendas, o latifndio o apiam, esto com le e, assim, todo mundo. Ele est a, est no governo...

O doutor Artur tem dvidas...

Um poo de ambio e um pote de vaidade. Inteligente mas sem viso poltica. Est certo que ser Ministro se doutor Armando ganhar as eleies. Isso se chegasse a haver eleies... Mas, professor, j no estamos no tempo da liberal-democracia...

O professor alou os olhos para o teto:

O mundo perdeu o juzo, Shopel. Eu no sei pan onde marcha... Nem o mundo nem o Brasil...

Ainda duvida, professor? O Brasil marcha para o integralismo e o senhor pode ser reitor da Universidade de So Paulo.

No, no duvido. Sua proposta interessante e eu estou inclinado a aceit-la. Muitas vezes antes pensei nisso. Mas no conheo essa gente jovem que est frente do integralismo e tinha receio de ir incomodar o doutor Plnio... Mas se voc se dispe a transmitir-lhe minha solidariedade...

Fazia-se confidencial:

Voc me conhece, Shopel, sabe que tenho famlia grande, tenho que pensar no futuro dos meus...

Amanh mesmo falarei com Plnio. Os integralistas vo ficar contentes, uma grande adeso nesse momento decisivo...

Eu lhe sou muito agradecido...

O poeta calculava o interesse que a adeso do professor, nome conhecido nos crculos cientficos, poderia ter para os integralistas. Amava fazer desses pequenos favores aos fascistas se bem jamais houvesse oficialmente ingressado no partido. Durante algum tempo continuou a fazer o elogio do integralismo para o professor com se tivesse medo que esse recuasse. E da falaram nos tempos atuais e no aspecto desolador da humanidade se afundando cada vez mais num srdido materialismo,. O poeta era catlico, sua poesia estava cheia do horror do pecado, do tenor da ira de Deus, das penas do inferno, de cataclismos inesperados, do juzo final. Comeou a desenvolver para o professor uma teoria salvadora:

Deus castiga os homens que perderam o senso da vida simples e da humildade... Devamos retornar a uma austeridade, a uma sobriedade de vida como a dos antigos ascetas.

E foi desenrolando essa tese que se dirigiu, em companhia do professor, para a outra sala onde estava servida a mesa de doces e salgados. Garons passavam com bebidas. Junto mesa, o poeta encontrou Susana Vieira que devorava, com seus dentes gulosos, pequenas pores de po cobertas de caviar.

Uma delcia... disse ela.

O professor desaparecera na confuso em torno mesa. O poeta deixou de fitar o decote do vestido de Susana, por onde podia imaginar a rigidez dos seios jovens, para receber das mos enluvadas do garom um prato repleto. E, enquanto comia, explanou para a moa sorridente ao seu lado, a sua teoria sobre a austeridade, a sobriedade, a vida asctica capazes de arrancar o mundo do abismo onde se enterrara. Ali estava a salvao do homem, a nica coisa ainda a tentar. Suzana Vieira ouvia risonha as palavras s quais Csar Guilherme imprimia um tom proftico:

Uma cabana no deserto, as oraes e as maceraes longe de todas as vaidades da vida, gafanhotos por nico alimento...

Farelos de pastel rolavam dos cantos dos seus lbios sobre o queixo gordo, caam no peito alvo da camisa, na gola negra do smoking.

3

Enquanto caminhava para o canto da sala de onde a Comendadora da Torre, cercada de todo um grupo, a chamava, Marieta ia recebendo cumprimentos e galanteios, elogios sua elegncia ou sua beleza, aos quais respondia maquinalmente, quase sem o sentir. Seu pensamento estava longe, estava em Paulo que podia chegar a So Paulo a qualquer momento, amanh, quem sabe? Todo seu corao estremecia ao pensar que talvez no dia seguinte o pudesse ver, ouvi-lo falar com sua voz displicente e cansada. Recordava-se de quando le viera despedir-se, antes de viajar para a Colmbia, h uns sete meses. Estava contente com o posto diplomtico, confiou-lhe suas simpatias pela carreira: no havia quase nada que fazer, poderia ler, ver quadros, escrever... Por ora era a Colmbia. Bogot no lhe interessava muito, mas com um ano ou dois conseguiria um posto na Europa, em Paris talvez e isso era bom... O rosto do rapaz, orgulhoso, de ar fatigado, estava naquele dia excepcionalmente alegre. Fazia projetos, traava planos, Marieta o escutava de corao cortado: le ia partir, quando ela o voltaria a ver?

Amanh talvez le chegue de regresso, mais uma vez ela poder fitar aquela face que parece indiferente a tudo como se carregasse o fastio de geraes e geraes. Paulo recordava-lhe o pai, mas no o Artur de hoje, ao qual a poltica tinha roubado quase toda a naturalidade, mas aquele outro Artur de h vinte e cinco anos que a deixara para ir casar com uma moa rica, a filha de um governador do Estado e fazer-se assim em seguida deputado. Tinham os dois idnticos ar de satisfao para consigo mesmos e de desprezo para todos os demais. A mesma afabilidade que escondia com que dor Marieta constatava a incapacidade total de ser bom e verdadeiramente amigo. Era o mesmo Artur repetido agora, o mesmo rapaz que ela amara loucamente, a cujo abandono pensara no resistir. Fora necessrio naquele tempo empregar toda a fora de vontade de que era dotada para vencer a crise e buscar, ela tambm, o seu caminho de riqueza. Quando Costa Vale apareceu em sua vida, ela ainda estava sofrendo por Artur. Mas se refez e vingou-se dele fazendo-se sua amiga, negando-lhe esse amor pelo qual no quis sacrificar-se. Tivera outros amantes, no fora uma santa nesses vinte e cinco anos de vida matrimonial com um homem doente e eternamente ocupado com seus bancos e suas fbricas. Todos le foram ligaes pouco importantes, nenhum tomou dela nada alm do que ela desejou lhe dar. E, de sbito, quando Paulo regressou, de um ano passado numa aventurosa viagem atravs de Mato Grosso e Gois, em companhia de uns artistas estrangeiros, ela percebeu que le se apossara de todos os seus sentimentos. Durante mais de um ano foi quase feliz com o v-lo em todas as partes, com as longas conversas s quais Paulo se habituara de muito pois Marieta tomara um pouco o lugar de sua me, morta quando le era ainda criana.

No pudera ficar em So Paulo quando le fora nomeado segundo-secretrio de Embaixada em Bogot. Eis por que arrastara Costa Vale quela viagem pela Europa, sob o pretexto de que le necessitava consultar as celebridades mdicas do velho continente. E na Europa fora o esperar ansioso de cada raro carto de Paulo, cartes onde o rapaz se queixava da monotonia de Bogot e falava em pedir umas frias indefinidas. Na Europa a alcanara tambm o rudo do escndalo dado por Paulo e ela arrumara as malas, convencera Costa Vale das vantagens do avio sobre os tardos navios, e desembarcara em So Paulo esperando encontr-lo. Talvez amanh ela o veja, possa contemplar aquela face magra e enfastiada de tudo.

Mesmo antes de alcanar o grupo em torno Comendadora da Torre, ela adivinha que sobre Paulo que falam. Comentam a bebedeira e Marieta se esfora para sorrir. A Comendadora tomou-a pela mo rugosa mo cheia de nsia, f-la sentar-se ao seu lado:

Sente-se aqui, meu amor, e conte-me tudo, tintim por tintiin, que sabe sobre o caso do Paulinho...

Mas se no sei nada, Comendadora. Eu estava na Europa...

Voc intima de Arturzinho, le lhe ter contado...

Nem conversamos ainda...Um jovem, de cabelos alisados fora de brilhantina, quis saber se era verdade que estava presente festa, na hora do escndalo, o Ministro de Relaes Exteriores da Colmbia. Ningum sabia ao certo. O que todos sabiam que Paulo dissera uma srie de palavres senhora que tentara despir em plena sala de baile. O jovem de cabelos engomados fez o moralista:

Um horror Era uma senhora da alta sociedade...

A Comendadora da Torre conservava, de sua mocidade, certa liberdade de expresso nem sempre muito condizente com sua atual riqueza e importncia social:

Da alta sociedade... Mas se rebolava com le na cama, no era? Ele lhe disse em pblico coisas que naturalmente j lhe havia dito na intimidade... Bobagens...Voltou-se para Marieta:

No acha, Marieta? Quem pode atirar a primeira pedra? Eu me lembro desse rapaz; ele uma vez comeu em minha casa. Achei que le era simptico; tinha uma cara cansada como se no gostasse de nada. Ora, tomou seu pileque, fez bem.

Agora todos simpatizavam com a atitude de Paulo j que ela merecia a aprovao da Comendadora. Essa Comendadora da Torre, hoje carregada de jias caras, cujos vestidos vinham de Paris, fora um dia, h muitos anos j, tantos que ela nem mais se recorda, uma simples prostituta, e at fome passara. Havia quem dissesse que fora ela quem amassara, com suas rudes mos, a riqueza do marido. O Comendador tinha sido um portugus modesto, se haveria contentado com a pequena indstria inicial, mas a ambio da mulher o aguilhoara e le se atirara audaciosamente construo de fbricas, montando em poucos anos a base da indstria txtil no Estado. Fora ela tambm quem o obrigara a comprar o ttulo de Comendador, algo que ostentar nos meios elegantes. Agora, viva e velha, arrastava pelas festas sua bajulada fortuna e certas vezes gostava de humilhar esses jovens orgulhosos das suas tradies de famlias, dos seus quatrocentos anos de paulista, esses aristocratas do caf. No tinha papas na lngua, sabia que o dinheiro lhe dava uma agradvel imunidade e era temida, Por outro lado amava proteger certos jovens que lhe caam na simpatia, envolvia-se na poltica, nas eleies para a Academia Brasileira de Letras, era adulada. O poeta Shopel lhe dedicara um largo poema onde falava da sua infncia triste e ela lhe fornecera o capital necessrio para le fundar a sua casa editora ( qual alis se associara depois Costa Vale). Agora se interessava por Paulo. Durante dias se divertira com os comentrios em torno ao escndalo dado pelo jovem diplomata e aos poucos a idia de proteger Paulo foi criando razes dentro dela. Tinha duas sobrinhas, que mantinha longe das festas e da alta sociedade, internadas num colgio de freiras apesar de j haverem concludo o curso, e era chegado o tempo de cas-las. Paulo descendia de uma dessas velhas famlias paulistas; seu pai era um poltico em evidncia e o rapaz estava na diplomacia. Voltou-se para os jovens em torno sua poltrona:

Vo-se embora, vo comer e beber, vo fazer qualquer coisa. No quero v-los mais em minha frente, seus ms-lnguas...

Riu. Eles riram tambm, ela ficou s com Marieta.

Marieta, voc conhece esse rapaz. Que tal ele ?

um bom rapaz, eu o quero como a um filho. Tomou sua bebedeira, foi uma tolice...

claro, mas isso no tem importncia. Nada vai lhe suceder e esses disse-no-disse s servem para excitar o interesse das mulheres por le... Quando le chegar, vai ter uma fartura de amantes...

Marieta desejava ir-se, aquela conversa sobre Paulo a enervava, enchia-lhe de pensamentos inquietos. Pretextou ter que atender aos convidados.

Faa-me um favor pediu a velha. Se encontrar por a o pai desse rapaz mande-o aqui. Quero falar com le...

Que desejaria ela? interrogava-se Marieta enquanto procurava Artur pela sala. Talvez tivesse resolvido intervir a favor de Paulo junto ao ministro, essa velha louca era capaz de tudo quando se tomava de amores por algum. Encontrou Artur que vinha de deixar Costa Vale:

A Comendadora da Torre quer falar contigo. Est apaixonada por Paulo, no sei o que quer...

Apontou a poltrona de onde a milionria os olhava. Artur dirigiu para l os seus passos. A velha o fitou demoradamente:

Como vai, seu deputado? Ento o seu filho anda pelos jornais?

Artur sentava-se a seu lado;

Pura explorao poltica. Aproveitaram a farra do rapaz para atacar a candidatura do doutor Armando. Tentaram colocar-me fora de combate mas no to fcil assim como eles pensam. No sou homem para me assustar com campanhas de imprensa...

A velha Comendadora o interrompeu bruscamente:

No diga idiotices... fitava o deputado com seus olhos que conservavam uma certa juventude. Tudo isso idiota...

O qu? perguntou Artur, surpreso.

Tudo que o senhor diz. No se assustar, etc. No fundo o senhor est preocupado e a campanha eleitoral o inquieta mais do que o senhor desejaria. Preocupado com a sorte do seu filho, com as eleies ameaadas, com os integralistas, com Getlio... Por que quer me enganar? Muita gente pensa que sou uma velha ridcula, imbecil, um traste antigo que se tem a obrigao de convidar aos jantares e s recepes porque rica...

O deputado ficou calado, a Comendadora prosseguiu:

Deixemos isso de lado, quero falar do seu filho. Eu o vi uma vez em minha casa, gostei dele. .. Eu lhe falo franco, gosto ainda mais desse nome sonoro que o senhor tem. Como mesmo seu nome todo?

Artur Carneiro Macedo da Rocha.

Isso: Carneiro Macedo da Rocha... Um bom nome, cheira a coisa antiga. Quando que seu filho chega?

Eu mesmo no sei... Talvez amanh...

Traga-o para jantar em minha casa no primeiro domingo que le passar em So Paulo. Quero apresent-lo s minhas sobrinhas. Esto em idade de casar, so minhas herdeiras. Deus no quis me dar filhos...

Que estava pensando aquela velha louca e vaidosa? perguntava-se Artur. Jamais entendera proposta to cnica e direta e, em sua vida poltica, ouvira muitas propostas cnicas. No podia tomar aquele convite para jantar seno como uma proposta de casamento para Paulo. Fitava o cho em sua frente, que pensava dele a Comendadora, da sua honorabilidade, da sua delicadeza de sentimentos? Sentia-se um pouco ofendido mas, ao mesmo tempo, a sua ambio, aquela tentao de dinheiro que dirigira toda a sua vida, fora aguada pela perspectiva aberta pela velha. Resolveu ganhar tempo:

um grande prazer jantar com o Paulo em sua casa. Mas eu devo partir para o Rio ainda esta semana, para uma reunio importante com outros lderes da candidatura do doutor Armando... Tolice, O senhor deve saber perfeitamente que no vai haver nenhuma eleio. Ou o senhor faz que no sabe ou ento mais tolo do que eu pensava. Todo mundo sabe disso...

Boatos...

A velha tinha agora uma voz quase insolente:

O senhor advogado, deputado, de uma famlia que vem do Imprio, d entrevistas nos jornais, faz discursos na Cmara. Eu comecei num armazm e esse ttulo de Comendadora me custou duzentos contos de ris, contados. Enfim, le no me vai mal de todo. Mas, seu poltico, oua uma coisa: quando eu digo que as eleies no se realizaro que eu sei que elas no se realizaro.

Levantava-se com esforo da poltrona:

Leve o rapaz para jantar em minha casa. Minhas sobrinhas so bonitas e bem educadas. Marieta Vale me disse que seu filho um bom rapaz. Eu espero que le seja menos tolo que o pai.

Erguera-se de todo, era pequena e curvada, s os olhos pareciam jovens e pareciam rir de Artur.

D-me o brao, deputado, acompanhe-me at o automvel...

Do outro extremo da sala, Marieta os observava desatenta conversa em torno dela, doida para saber que coisas haviam falado Artur e a Comendadora. Sentia-se como se tivesse dezoito anos, adolescente que amasse pela primeira vez, um amor doloroso e impossvel.

Estou ficando ridcula... pensou consigo mesma. Estendia a mo indiferente aos convidados que se despediam. Que projetos tinha a Comendadora para Paulo? Quando chegaria le, meu Deus, quando ela o veria, quando o apertaria nos seus braos desejando-lhe as boas-vindas? Amanh talvez e Marieta sabe que no poder dormir, que suas noites sero de insnia at que le chegue e ento comece um outro sofrimento mais agudo ainda.

4

Esperaram at que o criado arrumasse os copos, as garrafas, o gelo, todo o material necessrio para os usques. Marieta fez um sinal com a mo que le podia ir-se. Ficaram os trs a ss, num canto familiar da sala enorme e silenciosa. Costa Vale havia tirado o palet e o colete, desabotoava o peitilho engomado da camisa. Depois estendeu-se, num suspiro de alvio, numa poltrona, enquanto Marieta servia os usques. Artur olhava o casal, sentia o nervosismo de Marieta e aquela rgida calma de Costa Vale, cuja palidez acentuava-se no confronto com o couro negro da poltrona. Assim, quase deitado na cadeira, o banqueiro dava uma impresso de homem acabado, a quem no restasse seno pouco tempo de vida. Toda energia parecia haver-lhe abandonado mas Artur sabia quanto era falsa essa impresso. Esse homem plido e doente possua imensas reservas de fora, numa ambio descomunal de fazer dinheiro e sabia faz-lo como nenhuma das outras pessoas que Artur conhecia.

Marieta suspendeu o clice, num brinde:

Pelo prazer de estarmos a ss...

Costa Vale estendeu a mo para o copo, bebeu um trago largo, falou enquanto se ajeitava outra vez sobre a poltrona, semicerrando os olhos:

Ento, Arturzinho, como vo as coisas? Que me diz dessas eleies?

Quer os boatos ou os fatos? sorriu Artur.

Quero tudo. Por vezes, menino, os boatos que so a realidade e os fatos so apenas sua mscara.Marieta intervinha:

Os boatos nos perseguiam por toda Europa. Em cada Embaixada, em cada consulado, todos tinham o que contar. Ningum parecia se sentir seguro nem sobre o que pode vir a acontecer nem sobre o seu emprego. Por toda parte, pareciam ratos amedrontados...

Aqui a mesma coisa. Seja no Rio, aqui em So Paulo, em qualquer pequena cidade, todo mundo parece temer alguma coisa. Como se o cu estivesse carregado de nuvens, dessas que anunciam tempestade. S que voc olha o cu e le est azul e no se sabe ento por que esse medo, essa expectativa.

A voz de Costa Vale veio do fundo da poltrona:

Menino, no h pior tempestade do que aquela sem nuvens carregadas, que estala quando o cu est lmpido. o que chamam no interior de trovoada seca. Fez uma pausa, abriu de todo os olhos, agora fitava o deputado. E tu, que sabes de certo? Conta-me tudo. Tu ests no meio dos acontecimentos, deves poder julgar melhor que os outros. Qual a tua impresso? Golpe de Estado? De quem? Getlio? Os integralistas? Os dois associados? E o pessoal de Jos Amrico? Que dizem a Bahia e Pernambuco? E vocs com o doutor Armando? Fala, menino, eu estou morto para saber.

Artur comeou a contar. Era como se desse um balano para si mesmo. Costa Vale e Marieta ouviam atentos, o banqueiro semicerrara novamente os olhos, apenas os dedos polegares que le movimentava nas mos entrelaadas indicavam que existia vida naquele corpo de palidez cadavrica.

Uma coisa que pode se considerar certa: Getlio e os integralistas esto aliados. Os termos exatos dessa aliana no se sabe. H quem diga que Plnio Salgado ser ministro da Educao e que os integralistas tero ainda outro ministrio, como h quem diga que Getlio ficar na presidncia como uma figura de proa e Plnio ser o verdadeiro ditador. Uma espcie de Hindenburgo e Hitler. Os integralistas j falam por toda a parte como senhores. Ameaam e por vezes vo alm das ameaas. Em certos municpios tm at espancado eleitores nossos. A polcia no faz nada. Eles desfilam, gritam, fazem discursos...

So simpticos esses integralistas comentou o banqueiro sem mesmo abrir os olhos.

Sua atitude mudou muito em relao a ns. H um ano mantivemos conversaes com eles, tu te recordas, dr. Armando fez mesmo referncias elogiosas ao fascismo e pensvamos que seria possvel uma aliana para as eleies. Agora eles nos chamam de parasitas, de sanguessugas, de polticos profissionais!

Continuou narrando. Falou da campanha de Jos Amrico, populacheira, prometendo mundos e fundos massa, falando em reformas econmicas, numa fraseologia confusa mas que captava eleitores.

A verdade que se houver eleies Jos Amrico ser eleito. O Norte em peso vota nele, Minas tambm, e quando le era ministro da Viao, fizeram sua popularidade.

Agora Costa Vale se agitava na poltrona:

Esse no ser presidente. Com eleies ou sem eleies, a verdade, menino, que os americanos no vo deixar Jos Amrico subir as escadas do Catete. Ele disse muita besteira nessa campanha, eu acompanhei pelos jornais. No que eu pense que le v fazer nada do que disse, mesmo que le quisesse no poderia. Mas os nossos amigos americanos gostam das coisas seguras e esse Z Amrico andou falando em antiimperialismo e outras besteiras assim. O mal dele ser um tabaru da Paraba que no entende nada de poltica. Vai levar uma porrada que talvez lhe ensine. Conversei em Paris com um homem importante do Departamento de Estado. Estava muito preocupado com a demagogia de Jos Amrico. Tudo menos Z Amrico, me disse.

Artur sorria contente:

Tu vs, o que eu pensava. A cada discurso de Jos Amrico eu via que le se enterrava mais. No sei quem o convenceu . talvez fossem os comunistas de que poltica o povo quem faz. Essa uma frmula que pode servir na Inglaterra ou nos Estados Unidos. Mas no Brasil quem faz poltica Londres e Nova Iorque.

Berlim tambm, menino, Berlim, no te esqueas. E no comeces com Londres. Oua, Arturzinho, o que te vou dizer. Vocs tambm vo levar uma porrada de criar bicho para aprender que a Inglaterra um leo que perdeu os dentes. Vocs j apanharam em 1930, em 1932 e vo apanhar agora...

Artur suspirou, tomou o copo de usque, bebeu:

No vai ser to fcil assim... Ns tambm temos cabea e desde que Getlio comeou a ameaar com o golpe, ns comeamos a nos preparar tambm. Tu dizes que Londres no pesa mais. Pois bem, Jos, foi na Embaixada inglesa que me deram, detalhe por detalhe, todo o plano de Getlio, suas conversas com os integralistas, e o conselho de nos prepararmos por nosso lado... o que estamos fazendo; h gente boa do Exrcito na brincadeira, ns e o Rio Grande do Sul. Podemos voltar aos tempos de antes de 1930...

Os ingleses esto financiando essa conspirao de vocs? No bastou 1932 para te convencer, Arturzinho, que os dias dos ingleses no Brasil esto contados?

Eles tm enormes capitais ainda aqui em So Paulo, nos frigorficos do Rio Grande, um pouco por toda parte. No penses que se trata de um plano no ar. A polcia militar do Rio Grande do Sul recebeu um grande carregamento de armas modernas, chegadas da Inglaterra, via Argentina. um verdadeiro Exrcito. Aqui tambm estamos bem armados. E podemos pegar Getlio de surpresa; ele pensa que estamos enterrados at o pescoo nas eleies.

Costa Vale se levantava andava de um lado para outro, finalmente parou em frente a Artur:

Oua, menino, vocs esto jogando uma cartada perdida. Londres no conta mais na vida poltica do Brasil. Eles possuem por a uns restos de capital, mas por quanto tempo os possuiro ainda? H uma diviso do mundo, Arturzinho, e a Amrica do Sul, pertence aos Estados Unidos. A Inglaterra fica pela ndia e pela Arbia; mas a mesmo os americanos vo entrando cada vez mais. Eu te digo, menino, a coisa hoje se coloca entre os americanos e os alemes. Teu mal, Artur, pensar que o mundo fica parado. Tu s de uma famlia do Imprio, dos tempos em que a Inglaterra mandava e desmandava aqui. s conservador, ests acostumado aos ingleses, s suas estradas de ferro, s suas minas, aos seus costumes tambm. Pensavas que isso era eterno, coisa vinda do Imprio, sagrada, uma herana de famlia como o teu nome. Levaste a porrada de 30, a revoluo de Getlio, e no compreendeste ento que os americanos haviam tomado o lugar dos ingleses. Te lembras do que eu te disse quando vieste me falar da conspirao de 1932? E eu, que fiz eu? Tenho ganho muito dinheiro com os amerIcanos. H muito dinheiro a ganhar com eles... S que eu no sei se no h mais ainda a ganhar com os alemes.

Tu pensas que os americanos vo sustentar Getlio se ns nos levantarmos?

Segurissimamente... o banqueiro separava as slabas para dar mais fora palavra. Getlio o homem dos americanos, como Plnio o homem dos alemes...

Mas eles esto unidos; Getlio parece agora mais fascista do que qualquer integralista. No crs mais na possibilidade de um entendimento entre ingleses e americanos que entre americanos e alemes?

O banqueiro refletiu:

Essa aliana de Getlio e de Plnio como a da raposa com o gato. Um quer comer o outro. isso o que me preocupa, Arturzinho, s isso: quem vai ser o capataz nessa fazenda que se chama Brasil? Com quem devemos marchar? Com os americanos ou com os alemes? Quanto aos ingleses, foi um dia...

Estendia o copo a Marieta para que servisse outro usque, novamente caminhava pela sala, falando:

Hitler o futuro. A guerra no tarda, Arturzinho. A guerra da Alemanha contra a Rssia. Quando Hitler tiver a Rssia, tem toda a Europa, inclusive a Inglaterra. E ento a coisa vai se decidir entre le e os americanos. O importante saber o momento exato de apoi-lo aqui. Talvez seja ainda cedo... Mas, de qualquer maneira, preciso estar de olhos abertos. Sabe, os alemes fizeram-me grandes propostas de negcios. Estou estudando o assunto

Artur se lastimava:

E eu que contava contigo para convencer alguns generais... Contvamos muito sobre ti, Jos, essa a verdade.

No, menino, eu no marcho nesse golpe de vocs. No me convence. Vai ser outra vez 1932, se chegar a ser... Sou franco contigo, como sempre: no marcho. E, se queres um conselho, tira isso da cabea. Mais dias menos dia vem o golpe de Getlio. Vai para a tua fazenda uns tempos, descansar, depois volta e j haver lugar para ti... No posso, Jos. Estou comprometido.

Besteira, Arturzinho. Diga ao dr. Armando que intil. E, se le no se convencer, trata tu de sair disso. Ainda tens tempo. Afinal no s uma criana para no ter juzo. E, outra coisa, no fiques falando mal do integralismo por a como vives fazendo. Os integralistas podero vir a ser muito teis... E muito poderosos.

Tu o crs, ento?

Eu creio que a guerra vai vir. A guerra contra a Rssia, j tempo de acabar com esse foco de infeco. Hitler o homem de que o mundo precisa. Os demais governos lhe facilitaro tudo para acabar com o comunismo. E depois que le abocanhar a Rssia, ento o capital alemo se estender por todo o mundo. Os integralistas so os seus homens, no Brasil. Alm da colnia alem, no te esqueas dela, importante. preciso, nesse momento, saber manter-se entre os alemes e os americanos, tratar com os dois, ou seja, com Getlio e com Plnio Salgado... Depois j se ver... Armando Sales e Jos Amrico no contam para nada. Se tu queres ir at o fim da campanha eleitoral e quando digo fim da campanha eleitoral, digo o dia do golpe de Estado por honra da firma, podes ir. Mas no vs alm disso. Recolhe-te fazenda, ouve o rdio, l os jornais, eu te mandarei chamar depois... O que no quero que faas besteiras, que te metas novamente em conspiraes sem possibilidades de vitria. Pensa bem no que te digo...

Marieta estendeu a mo por sobre a poltrona, pousou-a no brao de Artur que se curvara para a frente, num ar de desnimo:

Jos est a par das coisas. Tu no podes te lanar numa aventura, no s por ti, tambm por Paulo. Principalmente agora com esse pretexto que tm, poderiam demiti-lo se tu aparecesses envolvido numa conspirao... Jos conversou com muita gente na Europa... Artur voltou-se para ela:

Esse ms de outubro me perseguiu... espiou o relgio sobre um mvel da sala, eram mais de duas horas da madrugada novembro j comeou e as ms notcias no terminaram. Sabes como acabei o ms, Jos? seus olhos buscavam o banqueiro outra vez estendido na poltrona. Com uma entrevista com um dirigente comunista. No sei como se chama, apresentou-se com o nome de Joo. Propunha a aliana de todas as foras democrticas contra Getlio e os integralistas... Uma espcie de Front Popular para evitar o golpe. .. Uma idia tentadora se no viesse dos comunistas...

Foras democrticas o banqueiro lanava as palavras com desprezo , foras democrticas... Que pensas tu dos franceses que foram envolvidos pelas conversas dos comunistas? Tudo que eles desejam, radicais ou socialistas, sair da embrulhada em que se meteram. S existe uma unio possvel, Artur, e hoje o senador Florival o dizia com palavras brutais de fazendeiro: a unio contra os comunistas. esta que se est fazendo na Europa e se vai fazer aqui... Seja com Getlio, seja com Plnio como centro... Penso que ainda ser Getlio, dentro de poucos dias te poderei dizer com certeza. O que vocs precisam, os polticos democrticos, conversar com Plnio e no com os comunistas... Para conversar com esses, temos a polcia. Tu vais me prometer uma coisa: desmanchar essa conspirao armandista. Ou, se no o puderes, pelo menos sair dela...

Levantava-se, apanhava o palet, o colete e a gravata, bocejava:

Vou dormir... Amanh estarei no banco, mas penso ir para o Rio depois de amanh. Ver como marcham as coisas. No virs comigo?

Sim, devo ir Cmara...

Ficou s com Marieta. Durante um momento foi um silncio cheio de pensamentos diversos. Artur refletia sobre tudo o que o banqueiro lhe dissera. Marieta pensava em Paulo, por fim deixou cair a pergunta que a enervava desde a recepo:

O que que a Comendadora queria?

Artur suspendeu o rosto:

Aquela velha maluca... Penso que ela deseja casar o Paulo com uma de suas sobrinhas. Disse-me quase claramente: leve o rapaz para comer em minha casa. Minhas sobrinhas esto em idade de casar, so minhas herdeiras. Uma espcie de negcio: o nome da famlia contra seu dinheiro...

Tu fizeste quase o mesmo negcio... Casaste para ser deputado.

verdade... Mas Paulo no precisa... Temos de que viver, ele j est encaminhado na diplomacia... Enfim... Que tu pensas?

O que ela pensava? Seus sentimentos quase a afogavam, ela sentia vontade de chorar. Fez um esforo para responder:

Por que no? A Comendadora possui uma das maiores fortunas do Estado. Uma pessoa como Paulo precisa de muito dinheiro para viver... Assim no necessitar de servir aos outros como tu serves a Jos... Meu Deus, no desejo que Paulo seja jamais mandado por ningum... Talvez o melhor seja mesmo que le se case com uma dessas meninas. Assim ter dinheiro e ser livre...

Artur pensava nas palavras do banqueiro:

O plano da conspirao est to bem amarrado... E no gosto desses integralistas. Eles so to vulgares...

A vida vulgar generalizou Marieta. Esse horrvel Shopel escreveu num poema que tudo que resta a solido. Penso que le tem razo. Por vezes me sinto to s...

Tens a mim... Sou teu amigo.

No, no te tenho, nem a Jos, nem a ningum. Nem mesmo a Paulo para quem fui como uma me. Ningum tem a ningum, muito menos a quem se deseja ter...

Artur sorriu em meio aos seus pensamentos e calculou:

Voltaste dramtica da Europa. Algum amor fatal por l?

No digas bobagens. Contigo jamais se poder falar de coisas srias.

No achas srio o que falamos, Jos e eu?

Que me importam eleies, Hitler, americanos, ingleses, comunistas e russos? Isso importa a ti que no gostas de trabalhar e vives desses enredos polticos, importa a Jos que deles faz dinheiro, a vocs que vivem para isso..

E tu, para que vives? j

Ela o olhou, repetiu a pergunta para si mesma. No encontrou resposta, estendeu.lhe a mo:

Vou-me embora, sou uma idiota.

O chofer dormia na almofada do carro. A chuva recomeara. Artur respirou o ar da madrugada, deixou que os pingos dgua molhassem sua face. Outubro fora um ms de ms notcias, novembro se iniciava sob pressgios ainda mais soturnos. Buscou algo que pudesse alegr-lo em meio a tantas coisas desagradveis. E foi na Comendadora que le pensou, no anunciado jantar em sua casa, nas sobrinhas casadoiras, nas fbricas de tecidos, nas aes de estradas de ferro, enquanto se sentava no automvel. Restava saber se Paulo estaria de acordo. Contava com Marieta para ajud-lo a convencer aquele estrina...

5

Naquele dia Mariana completava vinte e dois anos e noite haviam vindo alguns camaradas sua casa, a pretexto de festejar o acontecimento, O velho Orestes havia enviado umas garrafas de vinho de abacaxi que ele mesmo fabricava nas horas de folga. Mariana esperava que le chegasse para servir o vinho e as talhadas de um bolo que sua me fizera. No havia muito o que comer e beber, os tempos eram maus, a prpria Mariana fora despedida da fbrica h dois meses, agora se entregara por completo atividade partidria e os funcionrios do Partido ganhavam muito pouco, um minguado salrio quase sempre recebido pela metade. Se no fosse o velho Orestes, um ex-anarquista italiano que jamais perdera, apesar de se haver tornado comunista h muitos anos, o amor s frases retumbantes e o anticlericalismo violento, nem vinho haveria para as visitas. No entanto, Mariana se sentia alegre, havia posto seu melhor vestido e trazia uma flor vermelha nos cabelos castanhos que contornavam um rosto cheio de doura. Seus grandes olhos negros expressavam toda a alegria que a possua naquele seu aniversrio. Pela manh, no quarto onde dormia com a me, ela pensara em sua vida, dera um balano autocrtico como diziam nas reunies de clula. Ingressara no Partido aos dezoito anos mas, em verdade, desde muito jovem sua vida estivera ligada aos comunistas. Seu pai tinha sido um dos mais antigos militantes do Partido e, na casa que ocupava antes da sua morte, um pouco maior e melhor que a atual, muita reunio ilegal se tinha realizado, muito material de propaganda tinha sido escondido e por mais de uma vez a polcia chegara pela noite, acordando os moradores, dizendo palavres, ameaando, vasculhando os menores recantos.

Mariana recordar sempre a primeira batida da polcia em sua casa. Ela no havia completado mesmo quatorze anos e era franzina e irrequieta. Os policiais apareceram pela madrugada e ela, atravs da porta entreaberta do seu quarto, os via tirando livros da pequena estante aqueles livros que o pai lia pela noite adentro com uns culos rebentados, amarrados com cordo, aqueles livros cujos dorsos Mariana limpava a cada dia para que o pai, ao chegar da fbrica, os encontrasse sem nenhuma partcula de p, aqueles livros que ela amava ento pelo amor que o pai lhes tinha jogando-os sobre uma mesa, repetindo ttulos que Mariana sabia de cor de tanto os mirar em mos do pai, sentada aos seus ps, enquanto le lia: O manifesto comunista. Origens da famlia. O extremismo, doena infantil do comunismo, um resumo do Capital em espanhol. Um dos investigadores os empilhava uns sobre os outros, enquanto, um pouco parte, um cigarro apagado no canto dos lbios, um mulato de voz rouca, que parecia ser o chefe do grupo, dizia para seu pai:

Prepare-se para nos acompanhar...

A me estava plida, de lbios cerrados, A irm menor no acordara e Mariana via o pai vestindo o palet, lentamente, o rosto srio, esse rosto em geral risonho que ela tanto amara. Depois o viu dirigir-se para onde estava a me e beij-la na face. Foi neste momento que ela abandonou seu esconderijo e se precipitou na sala, agarrando o pai pelo brao:

Para onde o senhor vai?

E ele sorriu, aquele mesmo sorriso com que respondia s inmeras perguntas sobre os mais diversos assuntos colocadas pela infatigvel curiosidade de Mariana quando, noite, se sentava na pequena sala, ao lado da estante de livros; sorriu e tomou-a nos braos, beijou-lhe os olhos:

Vou preso. Cuide de mame e da irmzinha. Seja uma boa menina enquanto eu estiver fora...

O policial mulato dava pressa:

Vamembora...

Ela se desprendeu dos braos do pai, veio se colocar ao lado da me, calada, uma raiva crescendo dentro dela e um esforo para no chorar, pois adivinhava que o pai no gostaria de v-la chorando naquela hora. Ele ia saindo da sala,. cercado pelos trs investigadores, um dos quais levava o pacote de livros. O mulato lanou um derradeiro olhar em torno, ao grupo de me e filha silenciosas. Sorria e Mariana no se pde conter diante daquele sorriso insultante: correu para ele de punhos fechados, batia-lhe no peito com dio

Desgraado! Bandido!

O policial segurou-lhe nos braos, atirou-a no cho mas ela voltava a atac-lo, com as mos e os ps.

Foi seu pai quem, retornando do corredor que conduzia porta da rua, a veio acalmar:

Calma, Mariana. Cuide da mame e da irmzinha.

O mulato comentou, reajustando a gravata:

Filho de comunista j nasce de sangue ruim riu um riso satisfeito, apontou os braos de Mariana onde se viam as marcas vermelhas da presso que le fizera ao segur-la. De outra vez, menina, eu lhe marco melhor... jogou no cho a ponta apagada de cigarro, saiu atrs dos outros.

A me caminhou para a porta onde ficou at ouvir o rudo do automvel partindo entre as descargas do motor. Na sala, Mariana chorava baixinho, mirando os pulsos doloridos. Sentia-se um pouco humilhada, no pela brutalidade do policial, mas por no ter sabido se conter, quem sabe se isso no seria mau para seu pai? Olhou assim, com ar medroso, a me que voltava. Mas ela acariciou-lhe a cabea e a levou consigo para o quarto do pai, onde, sobre uma pequena mesa, ao lado do grande leito de casal, estavam os seus culos de aros partidos. A me retirou as cobertas, levantou o colcho, pegou sob as tbuas da cama uns papis impressos, disse-lhe:

Venha me ajudar... Eles podem voltar com o dia para uma busca mais rigorosa.

Acenderam o fogo e quando terminaram de queimar os volantes, e os velhos nmeros da Classe Operria a manh vinha chegando azulada sobre a cidade. A me ps um xale na cabea e saiu para ir avisar aos camaradas.

Depois Mariana, com o passar dos tempos, se habituou s visitas da polcia. Lera tambm os livros que o pai possua, outros livros que camaradas emprestavam, o material impresso pelo Partido. Ouvira muitas vezes o pai discutindo com os outros e assim se formam militante, conduzindo volantes sob a blusa, levando recados, guardando a porta da rua quando havia reunies em sua casa, de tal forma que lhe parecia ter sempre pertencido ao Partido. Aos quinze anos deixara a escola pela fbrica de tecidos onde, um ano depois, a irm mais moa viera lhe fazer companhia. O pai, muito visado pela polcia, no parava em nenhum emprego; a me fora obrigada a retornar fbrica que deixara desde o casamento. Era uma das fbricas da Comendadora da Torre e elas tinham conseguido trabalho porque a Comendadora, quando recm-casada tinha sido vizinha da sua famlia.

Foi com a morte do pai que ela ingressou no Partido. Ele estivera muitos meses preso durante a luta constitucionalista de 1932 e quando o soltaram estava envelhecido e fraco. Arranjou emprego numa oficina mecnica mas no durou muito; apanhou o tifo e morreu em poucos dias. Foram dias de quase contnuo delrio, onde le repetia, montona e dramaticamente, a mesma frase com que enfrenta ra as torturas policiais:

De mim no arrancam nada.

Mariana sentava-se ao lado da cama, nas noites insones, e, escutando-o repetir aquela frase, podia reconstruir os seus sofrimentos na cadeia, sobre os quais le jamais falava em casa. A irm mais moa preocupava-se com cinema, com vestidos economizando no salrio para comprar vistosas fazendas baratas com romances para moas, namorava rapazes do bairro, parecia no tomar conhecimento das atividades polticas do pai. A me sofria num silncio resignado, a cabea cheia de cabelos brancos apesar de ter pouco mais de quarenta anos. S Mariana parecia compreender toda a ignorada grandeza da vida do pai e certo dia, durante uma das suas repetidas prises, expulsara de casa uma vizinha linguaruda que lastimava a me:

esse negcio de comunismo... Em vez de cuidar da famlia, de trabalhar no seu canto sossegado, vai se meter com essas invenes do demnio...

Tambm o pai fora se ligando cada vez mais a ela no correr dos anos, alegre de explicar-lhe a significao da luta operria, de contar-lhe sobre a Unio Sovitica, de falar-lhe sobre Lenin e Stalin. Pusera aqueles seus livros to amados em suas mos adolescentes e Mariana podia ver a alegria resplandecer na sua face quando le constatava o interesse que ela tomava pela luta do Partido. Certa vez le lhe dissera:

Eu mesmo no sei muito, minha filha. Foi j depois de homem feito que compreendi a significao da nossa luta. E isso mudou tudo para mim: antes a vida era vazia e eu achava o trabalho um ganha-po apenas. Vocs duas eram pequenas, tua me era moa e bonita, e, no entanto, muitas noites eu ia para a rua, pra casa de amigos ou pro botequim. Hoje no Partido, sei que o trabalho no humilhante, humilhante a opresso e que s lutando contra ela podemos melhorar a vida. Desde ento tudo foi alegre para mim e nunca mais me cansei de vocs... A me tem sofrido muito com essa minha vida, sei que s vezes vocs tm passado dificuldades. Mas penso que estou no caminho direito, no nico que liberta a gente do sofrimento.

Mariana tinha dezesseis anos quando le lhe dissera essas coisas numa noite em que estavam os dois ss em casa. A me fora de visita com a irm. Mas j possua uma certa seriedade no encarar a vida e se fizera j uma das mais capazes operrias da fbrica, respeitada pelos companheiros de trabalho. Disse ao pai:

Penso que o senhor faz bem, pai. S no entendo mesmo como todos no so comunistas, como tem operrios que no se interessam...

preciso ser paciente e explicar, explicar, sempre. Ns somos como professores e soldados, ao mesmo tempo... Um dia, tu vers, no seremos mais uma parte dos operrios, seremos milhares e milhares.

Essas coisas conversavam. Mariana aprendia com o pai e com outros camaradas. Quando o pai estava preso era quase sempre ela quem ia visit-lo nos dias de permisso. Conhecera muitos camaradas, alguns eram simpticos e perdiam tempo discutindo com ela, explicando-lhe problemas, outros quase no tomavam conhecimento daquela morena de rosto grave, mas ela sentia-se ligada a todos eles e quando um dia lhe deram uns nmeros da Classe para distribuir na fbrica se encontrou to orgulhosa quanto a irm menor ao ser deita rainha numa festa de bairro.

Nas vsperas da morte, a febre abandonou o pai por algumas horas, le procurou Mariana com os olhos fundos. Ela trouxe-lhe um caldo de laranjas com q