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JORNADA DOS - bvespirita.combvespirita.com/Jornada dos Anjos (psicografia Sandra Carneiro... · JORNADA DOS. ANJOS. PELO ESPÍRITO. LUCIUS . ROMANCE PSICOGRAFADO POR. SANDRA CARNEIRO

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JORNADA DOS

ANJOS

PELO ESPÍRITO

LUCIUS

ROMANCE PSICOGRAFADO POR

SANDRA CARNEIRO

Os direitos desta obra foram doados a VivaLuz Editora contribuindo com a divulgação da doutrina espírita. Portanto faça diretamente uma doação ou compre um exemplar.

http://www.vivaluz.com.br/

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PREFÁCIO O TEMPO É CURTO. E imprescindível estarmos prontos e disponíveis para

fazer o trabalho que se apresenta diante de nós. Não percamos momentos pre-ciosos correndo atrás de ilusões efêmeras, que não nos levarão a nada.

Acordemos do longo e pesado sono que nos entorpece os sentidos e, principalmente, a percepção espiritual, dificultando nossa compreensão do que é verdadeiro e perene.

Façamos uso da prece e não nos permitamos adormecer de novo. Aban-donemos definitivamente a atitude que nos afasta de Deus e traz sobre nós profundo sofrimento.

É hora de despertar! Que Jesus, da luminosa morada onde nos aguarda há quase 2 mil anos,

nos ajude a trilhar o caminho do bem, da renúncia e do amor, libertando nossas consciências e nossas vidas para iniciarmos a jornada da iluminação interior, rumo à perfeição, ao Criador.

Amigo leitor, que a paz do Mestre envolva o seu coração, bem como nossa morada terrestre, em fulgurante esperança de renovação.

Lúcius

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INTRODUÇÃO

O MAR ESTAVA AGITADO. A pequena embarcação se afastava com di-ficuldade, buscando alcançar o navio que esperava para partir. Com as vestes ensopadas e água até a cintura, João1 e os outros cristãos tentavam atingir a praia, mas eram jogados, pelas fortes ondas da arrebentação, exatamente onde acabavam de ser deixados. Cefas - uma senhora cristã, exilada junto com os demais do grupo - caiu e, na tentativa de se levantar, chorava desesperada:

- O que será de nós agora? Como sairemos deste lugar? Vamos morrer a-qui!

Paciente e amoroso, João procurava acalmá-la: - Tenha fé, minha irmã, Deus nunca nos desampara. Ele sempre cuida de

todos. E enquanto a ajudava a se erguer, prosseguiu: - Não desanime. Por mais difícil que seja nossa situação, vamos confiar no

Mestre. Um pouco mais confortada, a mulher assentiu com a cabeça e enxugou as

lágrimas misturadas à água do mar. Explicou a razão de sua angústia: - Não temo por mim, apóstolo João, e sim por meus filhos, que ficaram em

Efeso. E por eles que me angustio. Estou pronta a dar a vida pelo Senhor, se ele assim o desejar, mas e meus filhos? Como é difícil para uma mãe ver os filhos ameaçados...

- Eu posso imaginar, Cefas, posso mesmo. No entanto, Jesus está no co-mando de nossas vidas, não está?

Cefas o olhava calada e, ao chegarem finalmente à praia, exaustos, ele a-conselhou:

- Agora descanse. Precisamos recuperar as forças. Aqueles eram mais alguns dos muitos cristãos exilados por ordem do im-

perador romano Domiciano. Os componentes do pequeno grupo estenderam-se na areia quente e fina, enquanto tentavam recompor as forças e os corações, abalados pela longa e difícil jornada.

Não obstante a solicitude com que atendia e se preocupava com todos, Jo-ão parecia cansado. Olhou ao redor, notando a beleza do cenário: Patmos era uma ilha esplendorosa, localizada no leste do mar Egeu. Acostumado aos en-cantadores cenários já vistos quando saía para a pesca, e depois pelas viagens que empreendera para difundir o Evangelho de Jesus, ele estava embevecido diante da pequena ilha grega. Já ouvira muitos falarem daquele lindo lugar,

1 João foi um dos doze apóstolos de Jesus.

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porém nunca estivera ali antes. Acomodou-se ao lado dos demais e ficou a contemplar a bela paisagem. A brisa perfumada soprava suavemente. O sol se punha devagar, deixando no horizonte um rastro de tons avermelhados e inten-sos. A vegetação da ilha parecia acalentar o entardecer e recebê-lo com todo o prazer, pois o aroma exalado pelas plantas era doce e agradável.

Não demoraria a anoitecer. Ebenezer tocou o ombro de João e sugeriu: - Não seria melhor procurarmos abrigo para passarmos a noite? Será que

conseguiremos encontrar ainda hoje outros cristãos, também presos na ilha? - Não tenho a menor idéia de onde possam estar... - A ilha é pequena, João, e não creio que estejam muito longe da praia. Se-

ria melhor que nos colocássemos logo a caminho. Ao observar o olhar de João, que focalizava o grupo, Ebenezer aconselhou: - Embora estejamos todos cansados, não podemos passar a noite aqui. Te-

mos de procurar abrigo. João sorriu ao admitir: - Seu bom senso é inegável. E dirigindo-se ao grupo, pediu: - Vamos, irmãos, precisamos de um abrigo. Sei que estão todos esgotados,

mas não podemos demorar mais. - Também parece cansado, apóstolo. João abriu sincero sorriso e respon-

deu: - E estou mesmo! A idade chegou de vez para mim, minha irmã... Entregando-se a enorme esforço, puseram-se a caminho, em busca de ou-

tros que já estivessem na ilha. Caminharam cerca de meia hora e avistaram algumas casinhas improvisadas, feitas de madeira e cobertas com vegetação. Antes que alcançassem o minúsculo vilarejo, alguns moradores correram ao encontro do grupo. Um dos homens perguntou, ainda a distância:

- São cristãos? Foi João quem respondeu: - Somos, viemos de Éfeso. Um dos que vinham mais atrás gritou: - João! Apóstolo João? É você mesmo? Quando reconheceu o companheiro de longos anos, com quem fizera mui-

tas viagens tendo por objetivo disseminar o Evangelho, João exultou: - Ananias, é você? Ao se encontrarem, trocaram apertado e carinhoso abraço. Emocionado, o

mais jovem disse, enxugando as lágrimas: - Não pouparam nem a você, João! - Ora essa, e por que poupariam?

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- Já está com idade avançada! Eles deveriam levar isso em conta. Além do mais, você só faz o bem a todos...

João sorriu e fitou o outro nos olhos: - Você esquece que não pouparam o melhor de nós todos, Ananias? Aquele

que só fez o bem em toda a sua vida? Quem pode exigir ser tolerado ou aceito depois do tratamento que teve o Mestre dos Mestres? Não, não podemos nos iludir jamais. Nossa luta é difícil. Jesus já nos ensinou que o caminho para aqueles que desejam segui-lo é estreito.

Fez-se longo silêncio, e Ananias convidou: - Vamos à minha casa. Mesmo pequena e improvisada, todos nos arranja-

remos por lá. Depois de conversarem muito e trocarem informações sobre o dia-a-dia na

ilha e o que acontecia no continente, com notícias de amigos e parentes de muitos daqueles que ali estavam há mais tempo, Raquel, a irmã de Ananias, aproximou-se e sugeriu:

- Devem estar com fome. Vou servir o jantar. Embora bastante frugal, vai alimentar a todos.

Depois da leve refeição, sentaram-se à volta de João e alguns pediram: - João, conte-nos uma história sobre Jesus. Temos ouvido muitas, mas sei

que você deve saber de outras que ainda não conhecemos. O rosto de João iluminou-se, refletindo suave luminosidade que imediata-

mente envolveu a todos. O cansaço que sentia desapareceu, ele ajeitou-se no assento que ocupava e disse sorrindo:

- E sempre uma grande alegria poder relembrar as experiências preciosas que tivemos ao lado de Jesus de Nazaré.

E pôs-se a narrar episódios que vivenciara como discípulo de Jesus. Fica-ram acordados até muito tarde, relembrando as doces experiências.

No plano espiritual, em torno do pequeno agrupamento, brilhava intensa luz. Se os olhos materiais o permitissem, eles se surpreenderiam ao observar a numerosa companhia espiritual com que contavam naquela noite. Um grupo bem maior de espíritos envolvia aqueles que se reuniam na Terra, e com eles apreciava as histórias sobre o enviado de Deus. Entre seus integrantes estava Ernesto, outrora exilado de Capela. Só muito mais tarde, João disse:

- Bem, agora gostaria de descansar. Ananias concordou com a cabeça e o ajudou a se levantar, enquanto dizia: - Ficaria aqui a noite toda ouvindo você. Ao colocar-se de pé, João bateu levemente nos ombros do mais novo e disse: - Teremos muitas ocasiões para conversar, não é mesmo? - Acha que ainda ficaremos muito por aqui?

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- Quem sabe? De toda forma, vamos aproveitar bem nosso tempo. Tenho uma porção de histórias sobre Jesus para compartilhar.

Depois de acomodar a todos, distribuindo-os pelos espaços disponíveis nas pequenas casas, Ananias voltou, sentou-se e, sorvendo um copo de água fres-ca, em um suspiro desabafou com Raquel:

- Não sei se fico triste ou feliz com a chegada de João. A irmã afirmou: - Quanto a mim, estou aliviada por tê-lo conosco. Já estava começando a

perder as esperanças... No dia seguinte, mal os primeiros raios de sol surgiram no horizonte, João

já se levantara e, silencioso, saíra da pequena cabana que os abrigava. Cami-nhou devagar em direção ao mar e em algum tempo avistou a praia. Admirou a beleza do alvorecer, com os raios cada vez mais fortes do astro-rei rasgando o céu até dominar o espaço. O dia amanhecia belo e cheio de energia. João olhou ao redor e notou uma pedra bem desenhada que poderia servir de banco. Sen-tou-se, ainda contemplando o mar e o céu. Depois, indagou em pensamento:

- Deus, meu Pai, Mestre Jesus, o que desejam de mim? Estou aqui, isolado de tudo e de todos. Como prosseguir com a tarefa de levar o Evangelho ao povo, de difundir seus ensinamentos, se permitiram que para cá eu viesse? É chegado o momento da minha passagem para o mundo espiritual?

Ernesto, espírito que fora seu pai em existência longínqua, em Capela, afa-gou-lhe os cabelos e sussurrou-lhe ao ouvido: "Não, querido Henrique, não é o momento da sua transição. Serene seu coração e espere tranqüilo. Ainda tem muito trabalho a fazer. Contamos com você, com sua força física e sua fé em Jesus".

Registrando no coração aquelas palavras, João sorriu e falou baixinho: -Estou aqui, Senhor, pronto para fazer tudo o que de mim desejar. Sou seu

servo. Ele se calou. Mais uma vez Ernesto afagou-lhe os cabelos e beijou-lhe a

fronte envelhecida. Aquela altura João já somava 85 anos de vida, e ainda mantinha vigor físico que impressionava a todos.

O apóstolo continuou a meditar e orar por mais algum tempo. Foi inter-rompido pela voz amiga de Ananias:

- Sabia que o encontraria aqui. João sorriu para o companheiro, que logo se acomodou ao seu lado e co-

mentou: - É lindo ver o nascer do sol deste local. Muitas vezes tenho vindo para a-

preciar a beleza e orar...

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- É um lugar ideal para a prece. O silêncio ainda domina a paisagem e tudo vai despertando aos poucos, à medida que oramos. E como se nos integrásse-mos a toda a natureza, louvando a Deus pelo dom da vida.

Ananias ficou calado. Lágrimas brotaram em seus olhos e lhe desceram pe-la face. Limpou o rosto, porém elas teimavam em cair. João tocou-lhe o ombro fraternalmente e indagou:

- O que foi, Ananias? O que o entristece tanto, meu irmão? - Eu não entendo bem o que acontece, João. Por que estamos aqui, separa-

dos de nossos parentes e amigos? Estamos tentando fazer o bem, conforme Jesus nos ensinou, e somente isso. Não infringimos nenhuma lei, e tantos cris-tãos já foram sacrificados, tantos... Por que isso está ocorrendo, João? Você compreende?

- Meu caro Ananias, não se deixe abater. A tristeza pode vir, é normal, mas não permitamos que ela tome conta de nós. Lutemos contra a tentação do aba-timento e do sentimento negativo de derrota. Lembre-se de que somos mais do que vencedores por aquele que nos amou até a morte.

Depois de breve silêncio, Ananias continuou, enxugando as lágrimas: - Eu sei, João, e por isso me entristeço. Não consigo ter fé igual à que vejo

em você e em tantos outros cristãos. Apesar de amar o Mestre e confiar nele, às vezes fico realmente cansado de lutar tanto. Por que tudo isso acontece?

- As resistências e oposições que levaram Jesus ao madeiro são as mesmas que nos perseguem e querem nos calar. Assim como acham que emudeceram Jesus, matando-o, pretendem matar a todos nós, para silenciar a própria cons-ciência que lhes desperta sutilmente na alma. Não querem enxergar, pois isso os obrigaria a mudar, a abrir mão de seus interesses, de seu orgulho, das ilu-sões sobre si mesmos e sobre o mundo que acalentam no íntimo. Jesus os in-comodou, Ananias, e nós, igualmente, muito os incomodamos.

Ananias ficou novamente pensativo. João prosseguiu: - Apesar de tudo, veja que eles não conseguem calar os cristãos. Alguns

realmente foram sacrificados, mas muitos outros estão abraçando a causa do Evangelho.

- E dá para crer que logo seremos aceitos e finalmente poderemos viver nossas vidas, tentando aplicar e ensinar o que Jesus nos deixou? Isso só fará bem às pessoas... Como é possível que não percebam?

Dessa vez foi João que nada disse. Ananias suspirou fundo, em curto inter-valo, e confessou:

- Estou cansado, João. Foi muito doloroso para mim perder entes queridos da minha família. Você sabe, meu pai e meus irmãos foram mortos por ordem de Domiciano. Minha mulher e meus filhos estão em Efeso, escondidos na

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casa de amigos. Não consigo perdoar totalmente, conforme Jesus nos ensinou. Sinto muita dor no coração, muita saudade...

- Ananias, você sabe que seu pai e seus irmãos não morreram! Estão vivos e a serviço de Jesus, em outra dimensão da vida. Eles estão bem, muito bem!

Subitamente, João parou de falar, fechou os olhos por um instante e em se-guida os abriu.

- E estão aqui agora - disse. Ananias arregalou os olhos e perguntou: - Aqui, conosco? Eles estão aqui? - Sim. Seu pai pede que você se tranquilize, pois Ester e as crianças pas-

sam bem. Estão seguras e bem protegidas. Ananias, tocado pela energia de amor que emanava do pai e dos irmãos de-

sencarnados, vertia copioso pranto. João prosseguiu: - Seu pai o envolve em terno abraço, Ananias, e lhe diz que eles partiram

porque a hora havia chegado; já tinham cumprido a tarefa que lhes cabia na encarnação. Agora precisam dar seqüência ao trabalho, no plano espiritual, e contam com sua ajuda para realizá-lo. Eles têm permanecido muitas vezes ao seu lado, intuindo-o e orientando-o quanto à forma de colaborar.

Limpando as lágrimas, ele disse: - Gostaria de poder abraçá-los também. Eu os amo tanto... - Eles sabem, sentem o seu carinho. Todavia, você os ajudará muito mais

confiando na Providência e sabendo que continuam por perto. Ananias calou-se, tomado pela emoção. Aos poucos se acalmou e, depois

de prolongado silêncio, afirmou: - Estou melhor, e só posso agradecer-lhe por me proporcionar tamanha a-

legria. Sem dizer nada, João abraçou carinhosamente o amigo. Então, Ananias

convidou: - Não seria melhor irmos? Você precisa se alimentar. Comeu algo antes de

sair? - Não. Gosto de orar pela manhã, antes de me alimentar. - Só que agora deve comer. - Vá indo, Ananias. Eu sigo logo atrás. - Não, João.Vamos, terá tempo de sobra para voltar aqui quantas vezes qui-

ser; está na hora de cuidar bem de seu corpo, ainda vai precisar muito dele... João ergueu-se e concordou: - Tem razão; Ananias; vamos indo. Enquanto caminhavam em silêncio pela trilha que levava da praia até a ca-

bana, João imaginava quantos cristãos deveriam estar sentindo angústia idênti-ca à que vira em Ananias. Por certo havia os que compreendiam o sentido do

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sofrimento que lhes era imposto, ao passo que muitos provavelmente se ques-tionavam sobre os motivos de tanta resistência, de tamanha oposição enfrenta-da. À medida que pensava, uma idéia lhe surgia, clara e nítida, no fundo da mente: escrever aos cristãos, esclarecendo e comentando a vitória do Cristia-nismo no mundo.

Em pensamento indagou: "Quando começaremos?". E a resposta lhe soou na mente: "Em breve".

Quase um ano se passou. Outros grupos de cristãos chegaram à ilha, con-tando os horrores que muitos estavam enfrentando por causa dos governadores romanos. Por toda a parte era árdua a luta dos cristãos. Certa noite, depois de ouvir alguns deles narrarem o que se passava em diversos pontos da Palestina e de outras regiões, João se recolheu com o coração dolorido. Sabia que o combate seria duro, mas sempre que constatava a aridez do coração humano, e quanto de mal um homem era capaz de fazer ao seu semelhante, ficava triste. Ao acomodar-se na cama, naquela noite, ele não conseguia dormir. Virava-se de um lado para o outro, na tentativa inútil de conciliar o sono. Sentou-se, e escutou mentalmente, com nitidez uma voz: "Durma, João, aquiete-se e durma. Hoje começará a receber as informações que deverá escrever". Ainda sentado, ia questionar, quando a voz pediu com suavidade: "Deite-se. Logo você dormi-rá e então verá, diante de seus olhos, o que deverá escrever".

Acostumado a obedecer às orientações espirituais que recebia, João deitou-se outra vez, procurando pensar apenas no rosto amigo e meigo de Jesus, que trazia na memória com todos os detalhes. Pouco a pouco a lembrança o acal-mou e ele adormeceu. Seu corpo espiritual foi então desprendido do corpo físico e Ernesto, que o aguardava, perguntou:

- Então, Henrique, está pronto para traduzir o que ainda há por vir para os cristãos, as lutas e também as vitórias?

Abraçando o querido amigo, João respondeu: - Estou pronto para tentar. - Vamos, está tudo preparado. Você verá o desenrolar dos fatos futuros lá

na colônia, e, ao regressar, começará a traduzir para nossos irmãos encarnados aquilo a que tiver assistido.

João calou-se, pensativo. - O que foi, está preocupado? - Ernesto indagou. - Nunca fui muito bom para escrever, você sabe, não é? Tenho lá minhas

dificuldades. - Não se preocupe. Você terá muita ajuda. Preparavam-se para partir quan-

do João perguntou, com um sorriso: - Tem visto Elvira?

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- Não, desde que ela regressou para Capela, mas sei que está sempre pen-sando em nós. Sinto seus pensamentos envolvendo minha mente.

- E como está você, Ernesto? - Fortalecendo-me com o seu exemplo. João sorriu e abraçou-o. - Podemos ir agora - falou. Partiram, Logo alcançaram a colônia, próxima ao orbe da Terra, e lá João

pôde visualizar, numa tela imensa, muitos fatos que ao longo do tempo se su-cederiam no planeta. Mais tarde, ao retornar, ele pediu:

- Por favor, Ernesto, precisarei de ajuda para o que devo realizar. Não sei como colocar na linguagem dos meus contemporâneos aquilo que vi hoje.

- Voltaremos muitas vezes à colônia. Você poderá rever o que para você for motivo de dúvida e conversaremos sobre cada detalhe. Ajudaremos em tudo que estiver ao nosso alcance. Vai dar certo, não se preocupe.

Na manhã seguinte, o sol já ia alto quando João despertou. A cabana estava vazia e ele se sentia atordoado. Sentou-se e meditou um pouco, buscando com-preender tudo o que sentia. Então saiu em busca de Ananias e logo encontrou Raquel, que informou:

- Ananias foi pescar. Pediu que ninguém o acordasse e todos tentamos dei-xar a cabana sem fazer barulho.

- E conseguiram. Agora, preciso de pergaminhos, pena e tinta. Tenho de escrever.

Imediatamente Raquel correu para a cabana e logo surgiu à porta, avisando: - Está tudo na mesa. Sobre o que o senhor vai escrever? É alguma orienta-

ção para nós? - Para nós e todos os cristãos, Raquel. - Puxa, que notícia boa! Sorrindo, João explicou: - Vou tratar de escrever, antes que o que vi em sonho esmaeça em minha

mente. Assim, durante os anos que passou na ilha de Patmos, João ocupou-se em

registrar, da melhor forma possível, tudo o que observava no plano espiritual, com relação ao futuro da Terra e dos homens. Embora desejasse ardentemente transmitir mensagens de otimismo e esperança, constatava, dia a dia, que o porvir da humanidade seria marcado por uma longa trajetória de dor, lutas e muito sofrimento, até que o raiar de nova era libertasse, finalmente, a consci-ência humana.

Naquele cenário de rara beleza, João escreveu as páginas que seriam co-nhecidas pelas futuras gerações como o Livro do Apocalipse, retratando uma das fases de transformação da Terra, em seu processo evolutivo.

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PRIMEIRA PARTE

"Não cuideis que vim trazer paz à Terra; não vim trazer a paz, mas a espada."

Jesus (Mateus, 10:34)

“... Na verdade, o Cristo trouxe ao mundo a espada renovadora da guerra contra o mal, constituindo em si mesmo a divina fonte de repouso aos corações que se

unem ao seu amor; esses, nas mais perigosas situações na Terra, encontram, nele, a serenidade inalterável...”

Emmanuel / Francisco Cândido Xavier

"Caminho, Verdade e Vida

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UM ROMA, ANO 324 DA ERA CRISTÃ. No salão de audiências ouviam-se os gritos

do poderoso general: - Saia já da minha frente, verme inútil! Desapareça, suma, ou não sei o

que faço com você! Licínio2, agressivo, empurrou o mensageiro que se mantinha curvado dian-

te dele, fazendo-o cair nos degraus da escadaria próxima. O jovem logo se ergueu e, aterrorizado, saiu rapidamente da sala. Sabia do que aquele velho general era capaz.

Constância entrou a tempo de presenciar a cena e, verificando a enorme ir-ritação do marido, indagou:

- Por que maltrata tanto o pobre rapaz? Ele trouxe más notícias? O experi-ente general do império endereçou olhar furioso à esposa e limitou-se a dizer:

- E seu irmão outra vez. Aproximando-se do marido e buscando aparentar calma, Constância insistiu. - E o que foi agora? - Sei muito bem o que ele planeja, suas intenções... - O que houve? Medindo a mulher de alto a baixo, o general disse, enquanto saía apressado

do amplo salão: - Não vai vencer, escreva o que digo... Por Zeus! Ele não vai vencer! Constância fez Licínio estacar na porta ao argumentar: - Constantino é determinado e ardiloso. Consegue tudo aquilo que deseja. Ele virou-se para ela e esbravejou, ainda mais contrariado, deixando per-

ceber todo o seu furor contra o opositor: - Tem conseguido ampliar o território sob seu poder à custa de muito ouro

e muitas vidas romanas. Sabe seduzir os generais com seus argumentos e pon-tos de vista, mas não é perfeito. Pelos deuses! Quem ele pensa que é? Quer dominar todo o império. Quer tornar-se o único César, poderoso e absoluto!

Constância afirmou, hesitante: - Provavelmente sim. - Pois ele não conseguirá! Vou impedi-lo, custe o que custar! A mulher se-

gurou o braço do marido e advertiu: - Seja cauteloso. Com Constantino, todo o cuidado é pouco. Por favor, veja lá

o que planeja. Além do mais, é meu irmão, e não quero que nada lhe aconteça.

2 Valério Liciniano Licínio, coimperador romano no período de 308 a 324 d.C.

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- Não se iluda, Constância. Ele jamais teria qualquer piedade de você. A esposa argumentou: - Está enganado. Constantino é um homem determinado, ambicioso e astu-

to, mas é justo. Não faria nada que me prejudicasse, a menos que eu o prejudi-casse primeiro. Portanto, pense muito bem antes de agir contra ele.

Sem responder, o velho general desapareceu pelo corredor, deixando a es-posa a meditar. Respeitava o marido e admirava o irmão; queria bem aos dois, mas temia pelas atitudes sempre intempestivas de Licínio. Sentou-se e, obser-vando pela janela a movimentação dos soldados sob as ordens do marido, fi-cou a se perguntar o que exatamente estaria acontecendo. Licínio se irritava muito com as atitudes de Constantino; embora antes fossem muito próximos (até mesmo o seu casamento havia sido negociado com o irmão, para estreitar os laços entre eles), agora estavam a ponto de um confronto direto. Depois de muitas lutas e combates, mentiras e traições, assassinatos e disputas cruéis, que não poupavam ninguém e nem mesmo laços familiares dos mais próximos, Constantino havia conquistado toda a região ocidental do império, tornando-se o imperador do Ocidente, e Licínio era então o Augusto do Oriente. Ambos dividiam o poder do imenso território sob a égide da águia.

O olhar de Constância, que parecia perdido, encheu-se de temor. Ela conti-nuava a refletir que haviam sobrado apenas os dois e que seu irmão não dividi-ria o poder. Pressentia que eles iriam entrar em confronto direto, e não demo-raria muito. Tirando de sob as roupas, junto ao peito, uma pequena cruz de madeira que trazia pendurada em uma corda fina feita de couro, apertou-a com uma das mãos e pediu, baixinho:

- Ajude-me, Jesus, por favor. Proteja Constantino e também Licínio. Não deixe que minha família seja dizimada por essas disputas estúpidas de poder! Por favor, Nazareno, olhe por mim...

Ainda segurava firme a pequena cruz quando sua serva pessoal entrou, o-fegante:

- Minha senhora, precisa vir depressa! - Calma, Ana. O que foi? - Venha, senhora, rápido! Uma desgraça está prestes a acontecer! A senho-

ra precisa impedir! Constância acompanhou Ana pelos corredores do palácio até chegar à por-

ta do gabinete do marido que, aberta, permitia que o escutasse a gritar pela sacada do amplo salão, diretamente aos soldados. Enfurecido e enlouquecido, ele gritava:

- Meus leais servidores, moradores da bela e poderosa Bizâncio, obedeçam às minhas ordens. Quero que todos os funcionários cristãos deixem seus postos

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e partam imediatamente. Que não fique um só em meu reino. Todos fora! São traidores, perigosos, eu os quero longe daqui. Todos servem a Constantino!

Constância aproximou-se do marido e, segurando-o pelo braço, implorou: - Acalme-se, por favor! O que está fazendo? Ele arremessou-a para longe com toda a violência, fazendo-a cair sobre um

banco e depois sobre uma mesa mais adiante. A serva ia entrar para socorrer sua senhora, que continuava no chão, ferida, quando Licínio, olhando-a com fúria, gritou:

- Não ouse entrar em meu gabinete, cristã imunda! Suma daqui! A ordem é para você também! Suma da minha frente ou acabo com você com minhas próprias mãos! Já! Desapareça!

Em seguida ele voltou para a sacada, e continuou a gritar aos subordina-dos:

- Até o final do dia quero todos os cristãos bem longe daqui. Todos eles, sejam romanos ou não! Não quero um remanescente! Aqueles que não concor-darem com minhas ordens, podem partir também. Quero limpar meu reino dessa praga e vai ser hoje mesmo.

Constância permanecia no chão, desacordada e ferida na cabeça. Total-mente cego pelo ódio que sentia por Constantino e por seus freqüentes avanços militares, Licínio escrevia uma ordem expressa para que, em todas as cidades de seu reino, os cristãos fossem banidos imediatamente de qualquer cargo ou função que tivessem em qualquer área relevante. Que se tornassem todos es-cravos! Assim que terminou, saiu da sala com o pergaminho nas mãos e sumiu no corredor, diretamente para o grêmio onde ficavam os seus soldados mais graduados. Levava pessoalmente a ordem.

Ana, que se afastara aturdida, buscou ajuda de outra serva de confiança de Constância, que mantinha em segredo sua opção pelo Cristianismo, e pediu:

- Helena, precisa ajudar a senhora! Ela está ferida. - O que houve? - Já escutou a ordem do imperador Licínio? - Sim, já correu por todo o palácio. - A nossa senhora tentou intervir e ele a empurrou... Ana começou a chorar angustiada. Helena trouxe-lhe um pouco de água e

pediu: - Fale, o que houve? - Eu acho que a matou... - Não é possível! Ele não seria capaz...

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- Acho que foi sem querer. Ele estava com muita raiva, jogou-a com força e ela caiu e bateu a cabeça na mesa... Vi que sangrava... Se não está morta, acho que está morrendo...

Pálida, Helena ergueu-se dizendo: - Precisamos ajudá-la! - Eu não posso. O imperador me impediu de entrar em seu gabinete e me

quer fora do palácio. Se me encontrar de novo por aí, é capaz de me matar... Precisava ver como ele estava... Parecia fora de si, enlouquecido... Você preci-sa ajudá-la... Eu não posso fazer nada!

Helena pensou por um instante e, virando-se para Ana, pediu: - Vá então, Ana, vá antes que ele a encontre. Mas primeiro peça a Juliano

para vir até aqui; diga que a mãe está ferida, não fale de suas suspeitas mais graves.

Olhando para o céu, disse: - Tenho esperança de que ela esteja apenas ferida. Agora vá. Procure por

Juliano e diga que me encontre no gabinete de Licínio. Vamos socorrer Cons-tância.

Antes de sair, ao alcançar a porta, Ana se voltou e disse, em lágrimas: - Tome cuidado, Helena. Ele está fora de si... Ana saiu depressa e Helena correu pelos corredores, encontrando

amigos e parentes que, com alguns pertences nas mãos, fugiam assustados. Ela seguiu até atingir a parte mais alta do edifício, onde ficava o amplo salão de Licínio. Observou que estava vazio e correu até Constância. Havia sangue es-palhado sob sua cabeça e Helena constatou que o ferimento era grave. Debru-çou-se sobre o peito da outra e escutou-lhe o coração. Ainda batia. Logo, Juli-ano entrou, à procura das duas:

- Estou aqui. Ele estava lívido, com as mãos trêmulas e suando frio. Olhou para a mãe e

depois para Helena e perguntou, assustado: -Ela... está... - Ela está viva, mas precisamos tirá-la logo daqui e tratá-la. Se perder mais

sangue, não sei o que poderá acontecer... - É claro! Mas o que foi que deu no meu pai dessa vez? - Não sei, Juliano. Acho melhor você se preocupar com isso depois. Agora

precisamos socorrer sua mãe. - Claro... Helena rasgou parte de suas vestes e cobriu o ferimento, procurando estan-

car o sangramento. Assim que o curativo improvisado ficou pronto, Juliano carregou a mãe para seu quarto e colocou-a na cama.

- E agora, o que faremos? Helena não titubeou:

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- Vou procurar ajuda. Fique aqui com ela e não deixe ninguém se aproxi-mar antes que eu chegue, está bem?

O rapaz balançou a cabeça afirmativamente.

DOIS JULIANO SENTOU-SE À BEIRA da cama e afagou com ternura o rosto da mãe.

Seu coração batia descompassado; suas mãos suavam frio e de seus olhos des-ciam pesadas lágrimas que corriam pela face alva, alcançando, vez por outra, as mãos de Constância. Esta, imóvel, empalidecia mais e mais, e agora já tinha os lábios arroxeados. O rapaz olhava para a porta a todo instante, ansioso para que alguém aparecesse em socorro da mãe. Ele a beijou na face e sussurrou, angustiado:

- Por favor, mamãe, agüente! Helena foi buscar ajuda. Não morra, por fa-vor...

Escutou a voz forte e irritada do pai: - O que está fazendo aqui? Onde está sua mãe? Juliano ergueu-se indigna-

do: - Não está vendo que ela está aqui, prestes a morrer por sua causa? Sustentando o olhar arrogante, Licínio, incrédulo, acercou-se da ampla

cama que acomodava a esposa. Fitando-a, exclamou: - Não tive a intenção de machucá-la, mas ela insistia em interferir em mi-

nhas ordens! - Não sente nada por ela, mesmo, não é? - E quem você pensa que é para questionar meus sentimentos, rapaz?

Ainda não sabe nada da vida, das dificuldades e desafios que o mundo nos impõe. Não tem o direito de julgar-me ou discutir meus atos.

- Você machucou a minha mãe, tratou-a com violência, e é só isso que me diz? Vem ainda me censurar...

Juliano interrompeu-se, em pranto. Licínio aproximou-se mais da mulher, auscultou-lhe o coração, ergueu-lhe a cabeça e observou o curativo e o feri-mento. Depois, recolocando-a com cuidado na cama, ergueu-se e disse:

- A mim você não puxou, definitivamente. Parece uma mulherzinha cho-ramingando. Vou buscar alguém que a possa ajudar.

Sem esperar pela resposta do rapaz, Licínio saiu decidido. Antes de deixar o cômodo, no entanto, virando-se para o rapaz, disse:

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- Mandarei um dos sacerdotes vir vê-la. Depois partirei com meus melho-res homens para terminar o que comecei. Quero expulsar definitivamente to-dos os funcionários cristãos que trabalham em áreas administrativas do meu reino.

- Por que tanto ódio, meu pai? - Você pensa que sabe alguma coisa sobre esses cristãos, mas não sabe. E-

les são como uma praga que se espalha por toda parte e se infiltra em todas as áreas do império. Um sem-número de aristocratas da mais alta casta romana está se juntando a esses seguidores de um mestre nazareno que faz milagres e promete vida eterna... Vida eterna... Promete o paraíso...

- Eu realmente não o compreendo, meu pai. Não foram você e meu tio que fizeram promulgar o Édito de Milão, em que determinam que haja tolerância religiosa no império? Você apoiou tio Constantino e fez valer essa lei. Por que fez isso, se não aprecia os cristãos?

Licínio, de cenho fechado e olhar distante, considerou: - Eram outros tempos, muito diferentes de agora. Constantino ainda tinha

algum respeito pelos seus colegas militares, e talvez até mesmo pelos desgra-çados cristãos. Agora, todos não passam de instrumentos de seus interesses, de bonecos em suas mãos... De coisas, entendeu? Coisas que ele usa conforme seus desejos e caprichos. A cada um ele usa e descarta, como fez comigo. Ou você acha que seu tio vai descansar enquanto não me enfrentar?

Licínio parou por um momento, depois bradou, ainda mais enfurecido: - E vou derrotá-lo! Ele não me vencerá! Juliano baixou a cabeça, limpando as lágrimas, e fitou a mãe com terna

tristeza. Licínio sumiu esbravejando pelo corredor. Podia-se escutar sua voz ecoando pelo palácio e desaparecendo aos poucos. Logo que Licínio afastou-se, Helena entrou depressa, trazendo consigo um médico romano, que havia pouco se tornara cristão. Já conhecendo a gravidade do problema de Constân-cia, ele não demorou a fazer-lhe novo e cuidadoso curativo, e em seguida fê-la beber um preparado que ele fizera com muitas ervas, para restituir-lhe a força e ajudar seu próprio corpo na restauração do ferimento. Helena o ajudava, ob-servando-o em silêncio. Juliano se afastara um pouco, pois não suportava ver a mãe naquelas condições. Otávio não havia ainda terminado os seus cuidados, quando Gripínio, o sacerdote mais graduado e responsável pelos serviços aos deuses romanos, entrou no quarto em busca da mulher de Licínio. Juliano adi-antou-se e informou:

- Otávio já cuidou dela. - Seu pai ordenou que eu a visse.

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- Pois ele não está aqui agora. Eu, sim, e digo que ela já recebeu os cuida-dos de que necessitava. Deixe-nos. Meu pai não sabia que eu já mandara vir ajuda, por isso foi procurá-lo.

- Engano seu. Ele foi à minha procura porque confia em mim e sabe que farei o que é o melhor para salvar sua mãe.

- Ela já foi socorrida. Agradeço, mas não necessitamos mais de sua ajuda. - Pois bem, se algo acontecer a ela, será sua responsabilidade! - Minha?! Ora essa! Meu pai foi quem quase a matou e você vem me dizer

que a responsabilidade será minha? - Então me deixe vê-la! Otávio, que terminara o atendimento, interveio: - Consinta que ele a veja, Juliano. Que mal pode haver? O estado dela é

muito grave e toda a ajuda é bem-vinda. O rapaz afastou-se da cama para que Gripínio se aproximasse. Ele a exa-

minou minuciosamente; depois se ajoelhou e fez alguns gestos, pedindo socor-ro aos deuses. Em seguida, fitou Otávio, que aguardava em silêncio, e disse a Juliano:

- Ela recebeu cuidados adequados. Agora está nas mãos dos deuses. Vou até o templo preparar um sacrifício especial pela vida dela. Eles haverão de me escutar.

Juliano balançou a cabeça sem dizer nada e Gripínio saiu do quarto. Otávio aproximou-se do rapaz e, tocando-lhe o ombro, disse:

- Como disse antes, o estado dela é bem delicado. O que podemos fazer agora é pedir a Deus por ela.

- Será que está sentindo muita dor? Dessa vez foi Helena quem se aproximou e disse: - Uma das ervas que Otávio lhe deu tem efeito de atenuar a dor. Dirigindo-

se ao médico, ela indagou: - Não há mais nada que possamos fazer? - Continue dando o chá de hora em hora. Isso vai ajudá-la. Se seu estado

piorar, veremos o que podemos fazer. Por enquanto, temos de aguardar. Helena se prontificou: - Se você me permitir, Juliano, vou ficar aqui cuidando dela, dia e noite. Otávio também se ofereceu: - Tenho algumas tarefas para terminar, mas depois posso ficar aqui tam-

bém. Apertando as mãos de Helena e depois de Otávio, ele concordou: - Aceito, por certo.

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O estado de Constância alternou fases de ligeira melhora e de piora acen-tuada nos dias que se seguiram. Ela permanecia inconsciente. Às vezes sussur-rava palavras desconexas, quase incompreensíveis, em outras calava comple-tamente. Juliano, dedicado e amoroso, não saía do lado da mãe. Otávio e Hele-na também se revezavam em cuidados e atenção e a jovem, vez por outra, ajo-elhada à beira da cama, orava ao Mestre que há pouco conhecera, rogando pela vida daquela mulher aparentemente frágil, mas cheia de força interior. Muitas vezes, ao terminar suas orações, ia devagar até a cabeceira da cama e sussurra-va no ouvido de Constância:

- Não nos abandone. Por favor, lute! Algumas semanas depois, a notícia do ocorrido com a irmã chegou aos ou-

vidos de Constantino3. Ele permanecia sentado, ocupando o lugar de maior destaque no centro de seus conselheiros, e ouvia a narrativa sobre as últimas ações de Licínio sem esboçar nenhuma reação. Constantino era um general respeitado pelos seus homens e pelos seus súditos. Conquistara cada pedaço do território romano que ora estava sob seu controle com muita astúcia e arguta estratégia, o que o tornara um conquistador querido e respeitado.

Com rosto de forte ossatura, transparecia em seu corpo e sua postura a de-terminação e a coragem de, destemida e sabiamente, lutar pelas suas aspira-ções. Constantino parecia incansável e inabalável. Nada tirava dele a calma e a determinação na tomada de decisões e nas ações. Ele raramente reagia e, sim, utilizava toda e qualquer informação ou situação em seu favor. Quando o men-sageiro terminou de narrar o que se passava no império do Oriente, ele parecia distante, mas logo perguntou:

- E como está minha irmã agora? - Não sabemos exatamente, parece que seu estado é muito grave. - Está recebendo os cuidados devidos, ou Licínio a abandonou à própria

sorte? - Juliano, seu sobrinho, é quem está tomando conta dela. Constantino ca-

lou-se, pensativo. O silêncio era absoluto no salão, quando um soldado surgiu à porta e interrompeu a reunião:

- Senhor, um mensageiro da fronteira chegou apressado e deseja falar-lhe. Diz que é extremamente urgente.

Constantino não respondeu, apenas inclinou a cabeça afirmativamente. O soldado reproduziu o sinal positivo e saiu apressado. Logo retornou com o mensageiro, que aparentava abatimento e cansaço extremo.

- Senhor, trago notícias da fronteira. Más notícias, senhor. Constantino dis-se, atento: 3 Constantino I, Constantino Magno ou Constantino, o Grande.

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- O que houve? - Os sármatas se preparam para invadir o reino do Ocidente. Já arregimen-

taram grande número de homens, que não param de chegar. O exército deles está crescendo a cada dia.

O imperador guardou silêncio. Seus generais mais leais e seus conselheiros já o conheciam bem e sabiam que seu silêncio era a maior ameaça contra seus inimigos. Todos esperavam pelo que diria Constantino, sem se manifestarem. Ele se levantou, caminhou até um mapa de seu reino e de suas fronteiras, exa-minou o desenho com atenção, depois virou para o soldado e perguntou:

- Mostre-me onde exatamente se concentram. O jovem foi até o desenho colocado sobre uma mesa enorme, observou o

mapa com atenção, depois apontou: - Estão aqui, entre as montanhas... Constantino observou o lugar exato que o jovem apontara, depois sorriu

levemente e sugeriu: - Descanse e coma um pouco. Parece exausto. - Agradeço, senhor, mas estou a seu serviço, aguardando suas ordens. Só

descansarei depois que o atender, meu senhor. Tocando-lhe o ombro, Constantino insistiu: - Descanse, pois tenho planos para seu regresso. O jovem escutava o imperador com atenção, assim como os demais ouvin-

tes. Constantino aproximou-se do mapa, analisando ainda melhor cada detalhe, depois se virou para o rapaz e disse:

- Amanhã quero que parta bem cedo e vá direto ao meu amigo, Augusto do Oriente, Licínio.

Sem compreender, todos aguardavam o esclarecimento de seu líder, que prosseguiu depois de longa e premeditada pausa:

- Quero que Licínio nos permita atravessar seu território para exterminar-mos os sármatas. Quero que ele me autorize a atravessar suas cidades mais lucrativas, para surpreender os sármatas, pelos flancos, certamente por onde não esperam que ataquemos.

Um de seus generais apenas balbuciou: - Mas esse é o caminho mais longo... Constantino comentou, com sorriso

irônico: - Pode até ser mais longo, mas iremos conquistando tudo o que estiver em

nosso caminho. Ao nos defrontarmos com os sármatas, não somente nosso exército será maior, como meu império estará consolidado. Confie em mim, Galenius, sei o que estou fazendo.

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Erguendo todo o seu corpo e esticando o braço em sinal de profundo res-peito, Galenius saudou o seu imperador:

- Não tenho a menor dúvida disso! Ave César! Todos em uníssono repeti-ram:

-Ave! Constantino manteve-se sério e em silêncio. No entanto, um observador a-

tento registraria em seu olhar a enorme satisfação que sentia pela destacada posição que ocupava, pela admiração que recebia de seus subordinados e súdi-tos, bem como pela perspectiva cada vez mais próxima de tornar-se o único imperador de Roma.

TRÊS À MEDIDA QUE os GENERAIS e conselheiros deixavam a sala em alvoroçada

conversa, Constantino acomodou-se em sua cadeira suntuosa, seu trono. Sen-tou-se e observou seus homens se afastando; apenas os mais próximos ainda permaneceram com ele. Mentalmente, felicitou-se por estar mais uma vez a-proveitando tão bem as circunstâncias em seu favor. Claro que não ficara feliz com a notícia de que a irmã estava doente, mas a agressão de Licínio contra ela era desculpa mais do que suficiente para que seus homens o seguissem em sua condição de Augusto ferido no orgulho familiar. Licínio mais uma vez passava por um brutamontes, e deveria ser contido a todo o custo.

Ele acompanhou a movimentação com o olhar, depois fitou Marco e inda-gou:

- Está comigo no que pretendo fazer? - Sim, sem restrições, senhor. Constantino levantou-se, tocou-lhe o ombro e comentou: - Meu bom Marco, eu sei que posso contar com você. O outro respondeu

sem pensar: - E como poderia ser diferente? Licínio quase lhe mata a irmã! Constantino aproveitou e, ainda que demonstrasse fixar apenas Marcos, es-

tudava de canto de olho as mínimas reações de Helenus e Domenico; consci-ente da admiração e do respeito que ambos dedicavam aos cristãos, arrematou:

- Ele está piorando a cada dia. E esse problema com os cristãos, agora? Os outros dois permaneciam calados. Marco, Helenus e Domenico eram os

três homens de confiança absoluta de Constantino, o que no império romano daquela época era algo quase impossível. Temia-se até a própria sombra. Os três generais que ocupavam a mais alta graduação do exército pretoriano havi-am sido transformados em guarda pessoal do imperador do Ocidente e agora

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acompanhavam-no em tudo, participando de todas as suas decisões. Experien-tes e astutos, apoiavam Constantino, não sem questionar-lhe, muitas vezes, as ações.

Constantino calou-se, usando o silêncio como tão bem sabia fazer. Voltou a sentar-se e fixou o olhar para fora da janela, distante. Pensava ativamente nas estratégias que usaria para vencer Licínio. Esperava pelo apoio de seus ho-mens de confiança, pois sabia do tremendo desafio que vencer o imperador do Oriente representaria. Seria uma batalha das mais difíceis, pois o próprio Licí-nio era igualmente um general experiente e dominador, possuindo um exército muito maior do que o de Constantino, em número de homens.

Finalmente, Helenus e Domenico aproximaram-se de Constantino e, reve-renciando-o, afirmaram:

- Também estamos com você em sua decisão. Licínio precisa ser detido. - Ótimo. Logo mais nos reuniremos para traçar um plano de ataque deta-

lhado. Já tenho algumas idéias e poderemos definir nossa estratégia. Helenus e Domenico se retiraram, enquanto Marco permaneceu ao lado de

seu imperador, a quem tanto admirava. Daria a própria vida por ele, tamanha sua admiração. Constantino, confortavelmente instalado em seu trono, pensava em suas estratégias, e, apesar de estar convicto de sua decisão, sentia um des-conforto ao imaginar-se confrontando Licínio. Era a sua consciência que bus-cava espaço para alertá-lo do perigo de suas intenções.

Ao perceber-lhe o titubear sutil, duas entidades espirituais, trajando pesado manto negro, aproximaram-se dele e sussurraram-lhe aos ouvidos da mente: "Licínio precisa ser detido. Não há nada de errado nisso. Você, e somente vo-cê, deve ser o único e absoluto César de Roma. Será muito melhor para o im-pério. Um reino dividido não pode subsistir. Roma precisa de você. Você, Constantino I, será um imperador que marcará a história de sua época e jamais será esquecido. Um reino dividido não pode subsistir... Um reino dividido não pode subsistir...".

Registrando as palavras do espírito ao seu lado, Constantino tomou-as co-mo seus próprios pensamentos e sentiu-se aliviado. Sem dúvida, estava fazen-do o correto.

Distante dali, Juliano acabara de pousar sobre a mesa uma cumbuca com água fresca que dera à mãe. Olhando pela janela, suspirou profundamente. Com olhar distante, pensava no pai, no tio e em toda a situação do império. Ele desprezava a atitude de Licínio, sua ganância e seu desejo de poder o enoja-vam - especialmente porque detectava na corte, e naqueles que circundavam seu pai e acompanhavam seus passos de perto, os interesses acima de tudo. Percebia o ambiente hostil em que passara toda a sua vida, com medo de to-

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dos, sempre protegido pela mãe. Aquilo não era a vida que ele imaginava. Não apreciava aquela disputa pelo poder a qualquer preço. Quando acompanhava o pai em alguma viagem perigosa, a mãe sempre o cercava de uma guarda pes-soal reforçada, temendo pela sua vida. Ela temia até que o próprio pai lhe fi-zesse mal, e ele também. Definitivamente não confiava no pai. Também não confiava no tio. A única pessoa em quem de fato confiava era sua mãe. E na-quele momento ela estava naquele estado, praticamente entre a vida e a morte.

Estava distraído quando escutou: - Meu filho... Sem acreditar, correu até a mãe. Ajoelhando-se, beijou-lhe a face e em lá-

grimas balbuciou: - Mãe... graças aos céus... - Onde está seu pai? - Eu não sei. Ele viajou, acho. Fique calada, mãe, você não pode fazer ne-

nhum esforço. Foi ferida gravemente e precisa ficar tranqüila para se curar. - Seu tio... - Constantino? - Sim... Precisamos falar com ele... - Por quê? - Sei que algo ruim vai acontecer... - Não, mãe, você precisa se acalmar. Tudo ficará bem, mas precisa ficar

calma. Como se sente? - Estou com fome. Juliano exclamou sorrindo: - Isso é um ótimo sinal! Você está melhorando! Que maravilha, mal posso

crer... - Pensou que iria livrar-se de mim tão fácil?... - Não diga isso, mãe. Não sabe o quanto sofri esse tempo todo. - Faz tempo que estou aqui, nesta cama? - Umas duas semanas. Fazendo menção de erguer-se, foi impedida pelo rapaz: - Não, mãe, o que está fazendo? Não pode levantar-se ainda. Deixe que

Otávio a examine primeiro. Você ficou muito mal... Constância, impedida pelo filho, voltou a deitar-se enquanto falou: - Sinto-me bem. Apenas um pouco tonta e fraca, mas estou bem. Não te-

nho nenhuma dor. - Mas seu corte foi fundo e você perdeu muito sangue. Agora vai precisar

de uma dieta especial por algum tempo para poder recuperar-se por completo. Portanto, fique aí quietinha. Logo Helena virá e então pedirei que chame Otá-vio. Somente ele poderá autorizá-la a se levantar.

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- Estou aflita por seu pai. Onde ele está? - Já disse que viajou, mãe. - Para onde? Quando volta? - Ele saiu daqui enfurecido. Sabe que tio Constantino o irrita profundamente. - Eu sei. - E receio, mãe, que não haja mais nada que possamos fazer. - Eles se enfrentarão em breve. - O que me diz? Ele lhe falou que iria atacar Constantino? - Não. Constantino marchará contra seu pai. - Como sabe? - Eu simplesmente sei e temo por ele. - Como pode ainda querer-lhe bem, depois de tudo? E não somente o que

lhe fez agora, mas a forma como a tratou a vida inteira? - Fui e sou fiel aos meus deveres. E você também deve ser. O caráter de

um homem se mede pelo respeito que ele tem por si mesmo e pelos seus seme-lhantes.

- Acontece que meu pai não tem respeito por ninguém. - E como aprenderá, se o tratarmos de igual modo? Juliano sorriu afetuoso e comentou, depois de longo período de silêncio: - Simplesmente não sei como consegue, mãe. Constância insistiu: - Sabe onde ele está? - Não, mãe, ele não me disse nada e realmente não me interessei em saber.

Em breve estará de volta. Apreensiva, ela balbuciou: - Não tenho tanta certeza... Helena entrou e ao deparar com os dois conversando, correu ao encontro

deles, chorando: - Minha senhora, graças a Deus acordou! Está melhorando... A madura senhora respondeu: - Seria melhor estar no mundo espiritual agora, mas ainda tenho tarefas a

cumprir por aqui. Limpando as lágrimas Helena disse, segurando as mãos de sua senhora: - Fico feliz, a senhora nos faria muita falta.

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QUATRO DUAS TESTEMUNHAS espirituais assistiam àquela cena repleta de alegria,

suavidade e amor. Com vestes diáfanas e luminescentes, Angélica acompa-nhava o despertar de Constância, de quem havia cuidado carinhosamente. Sor-rindo, ao constatar finalmente a recuperação de sua protegida, comentou com Maurício:

- Pode voltar agora à colônia. Ela ficará bem. O belo rapaz, que mais lembrava a figura de um anjo, tão insistentemente

retratado por artistas de todos os tempos, fitou Angélica com ternura e pergun-tou:

- Tem certeza? - Sim, ela conseguiu responder muito bem ao nosso tratamento. Seu corpo

está em recuperação e o quadro é promissor. Fazendo pequena pausa, ela prosseguiu, com suave entonação na voz: - Você ajudou muito, agradeço mais uma vez. - Não me agradeça. Devemos tudo a Jesus. - Sim, eu sei. Agora é importante que você retorne à colônia, levando a Er-

nesto as boas notícias. Pelo empenho com que tem acompanhado o processo de expansão do Evangelho de Jesus sobre a Terra e pelo seu envolvimento em todos os detalhes, ele gostará de saber que conseguimos impedir a partida de Constância antes do previsto.

- Vou agora mesmo. Você me parece cansada. Vai demorar-se muito ainda aqui?

- Ficarei até que a situação se acalme. - Mas parece agravar-se cada vez mais. - Você sabe o porquê. Ambos emudeceram por longo tempo. Maurício, por fim, comentou: - É... Não podemos desanimar. - De modo algum; vamos perseverar. O Cristianismo haverá de triunfar so-

bre a Terra. Por mais que haja resistência de todos os lados, a verdade que Je-sus veio trazer à humanidade prevalecerá!

- Por quanto tempo ainda negaremos e deturparemos seus ensinamentos? Por que o homem não compreende o que o Mestre veio ensinar?

- Porque somos ainda crianças, espiritualmente falando. Temos muito a a-prender, e enxergamos tudo com nossa limitada compreensão da realidade.

- E por que alguns conseguem e outros não?

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- É por causa da humildade e da fé. Alguns já conseguem ser humildes o suficiente para intuir que são limitados demais, e não podem confiar nas pró-prias interpretações; precisam buscar a verdade. E mais do que isso: estão dis-postos a fazer o esforço necessário para trilhar o caminho da iluminação espiri-tual, da regeneração de si mesmos. Estão dispostos a abrir mão dos prazeres e ilusões passageiros, para dedicar seus esforços àquilo que é essencial e perene.

- Por quanto tempo ainda os cristãos sofrerão tamanha perseguição? Não deveria ser assim, não é mesmo?

- Quem somos nós para tirar esse tipo de conclusão? No entanto, meu mais profundo desejo é que os homens despertem do sono da ignorância em que ainda estão imersos. Mas agora é melhor que você vá. Leve notícias e peça novas orientações. Preciso saber em que poderei ajudar, no caso de as suspei-tas de Constância estarem certas. As circunstâncias se precipitam cada vez mais e estou receosa pelas decisões que Constantino tem tomado; ele vem co-laborando com os nossos objetivos, como se propôs, mas sinto que pouco a pouco distancia-se, na essência, daquilo que deveria fazer.

- Mas ainda age em nosso favor. - Aparentemente. Entretanto, sinto que suas motivações estão se desvirtu-

ando. - Se estiver certa, ele poderá perder-se a qualquer momento. - Esse é o meu receio. Preciso da ajuda de nossos orientadores do Mais Alto. Sem demora, ambos se despediram e Mauricio partiu em direção a uma co-

lônia espiritual situada sobre a região da Europa central. Não teve dificuldade de ultrapassar a grande diferença de vibrações entre os planos material e espi-ritual, e logo cruzava enorme portão que se abria para uma região espiritual de serena suavidade e intensa atividade do bem. A atmosfera se fez mais leve, doce fragrância de flores as mais diversas invadia o ar; pássaros e borboletas coloridas cruzavam o céu. Maurício deteve-se diante da beleza da colônia e respirou fundo, haurindo com satisfação as energias sutis que vibravam no ambiente. Entrou. Logo estava em companhia de Ernesto, que o aguardava:

- Maurício, é bom vê-lo. Que notícias nos traz dos irmãos encarnados? Acomodando-se ao lado do orientador, Maurício suspirou: - A situação continua difícil. - Tenho percebido grande adensamento energético sobre o planeta. - Sim, como se nuvens negras e pesadas se acumulassem sobre a Crosta.

Apesar disso, trago-lhe boas notícias. Conseguimos contribuir efetivamente para a melhora de Constância. Ela acaba de despertar e se recupera muito bem.

- Excelente trabalho, Maurício. Ela é nossa grande aliada no sentido de manter Constantino nos trilhos de sua programação. Ela é fundamental.

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O rapaz prosseguiu, interessado: - Angélica continua dedicada à sua recuperação. - Ela tem conseguido maior influência sobre Constantino? - Tem trabalhado muito, mas também está receosa de que ele se desvie de

sua tarefa. - Honestamente, Maurício, eu também estou, e muito. O jovem fitou Ernesto sem dizer palavra. Também estava apreensivo. De-

pois de breve pausa, indagou: - Achei que talvez Angélica exagerasse... Então ele realmente está se des-

viando da tarefa? - Pouco a pouco, quase imperceptivelmente, vem se distanciando de nossa

programação. - E o que podemos fazer? - Faremos tudo o que estiver ao nosso alcance, mas a decisão é dele. Sério, Maurício indagou: - Conhece-o há muito tempo? - Sim, desde Capela. Surpreso, Maurício comentou: - É... faz tempo mesmo. Também vieram de lá? - E chegamos antes de você, um pouco antes. - A grande maioria já retornou.... - Contudo, há ainda muitos por aqui. Estamos tentando, não é mesmo? - Sinto saudade de meu verdadeiro lar. Desejo retornar assim que for pos-

sível; mas como fazer isso, deixando para trás tantas pessoas queridas? Não posso, por enquanto.

- Sei bem o que sente. É o caso de Ferdinando, ora vivendo na Terra como Constantino.

- Ele já tem preparo suficiente para realizar a tarefa que se propôs. - Certamente. Entretanto, não importa quão preparados estejamos, sempre

poderemos falhar; basta uma distração, um enveredar pelo caminho do orgulho e nos deixar dominar por ele, e pronto. O retorno fica muito difícil.

Calaram-se novamente. Ernesto ergueu-se, caminhou até uma grande jane-la que dava para florido jardim e comentou, por fim:

- Continuemos orando e confiando. Deus jamais permite que se coloque sobre qualquer de seus filhos peso maior do que está preparado para suportar. Confiemos que Constantino será capaz de reencontrar-se e ser vitorioso, afinal.

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CINCO ERA MADRUGADA QUANDO o mensageiro de Constantino alcançou os por-

tões de Bizâncio. Constância, que se recuperara quase completamente do triste incidente com o marido, deu um pulo na cama e sentou-se, tremendo, assusta-da. Ofegante, tirou o pequeno crucifixo que trazia junto ao peito e suplicou:

- Mestre Jesus, socorra-me e à minha família. Meu coração está opresso e me diz que algo sombrio está por acontecer. Ajude-nos, por favor...

Sem compreender por que a dor no peito a oprimia tanto, não pôde conter as lágrimas que lhe desciam pela face alva. Pedindo repetidamente o socorro de Jesus e de seus enviados, ela finalmente conseguiu acalmar-se e voltou a se deitar. Entretanto, por mais que tentasse, não conseguia conciliar o sono e revi-rou-se na cama até o sol brilhar intenso no céu do Mediterrâneo.

Assim que adentrou os portões da fortificada cidade, o mensageiro do Au-gusto do Ocidente deu de comer ao seu cavalo e descansou brevemente. Tinha ordens de seu general para retornar com a resposta de Licínio tão logo a obti-vesse. Quando o dia amanheceu, dois soldados da guarda pessoal do imperador vieram buscá-lo:

- O imperador Licínio irá recebê-lo agora. Acompanhe-nos. Prontamente o mensageiro os seguiu até o imperador. Ajoelhado diante do

grande general que dividia o poder do império romano com Constantino, o jovem permaneceu calado, aguardando as instruções do soberano, que depois de longo silêncio indagou:

- O que quer Constantino? - Os sármatas ameaçam nossa fronteira, senhor, e Constantino pede autori-

zação para cruzar seu território, a fim de surpreender o inimigo, antes que este avance sobre Roma.

- O quê? Que estratégia ridícula é essa de seu imperador? O que ele pre-tende? Vamos, responda!

Sem erguer os olhos, o rapaz apenas disse: - Eu não sei, senhor. A única orientação que recebi foi para pedir-lhe a au-

torização e retornar imediatamente com sua resposta. Licínio sorriu, cínico, e insistiu: - Não sabe? Tem certeza? Vociferou então, com o rapaz: - Vamos, diga o que Constantino planeja! Você não é um soldado? Deve

saber, então. Trêmulo, o rapaz redarguiu: - Eu não sei, senhor, apenas cumpro ordens.

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- E por que Constantino planeja atacar os sármatas por minhas terras? É certamente o caminho mais longo. Decerto ele planeja algo contra mim.

Licínio levantou-se e caminhou até a janela da ampla sala. Ficou longo tempo em silêncio, olhando pela janela. Depois, aproximou-se do rapaz e, en-costando a cabeça na dele, segurou-lhe a face com uma das mãos e gritou com violência:

- Sei muito bem o que ele planeja. Vou esperá-lo muito bem preparado. E quanto a você, meu rapaz, se quiser fixar residência aqui, a partir de agora, será poupado de longa e dolorosa viagem.

O jovem soldado fitou o general, que naquele momento lhe parecia ainda mais alto e mais forte, antes de responder com estranheza:

- Não posso, senhor... Meu general me aguarda. Com ar prepotente e arro-gante, Licínio ordenou:

- Pois bem, que assim seja. Quero dar uma resposta contundente ao seu se-nhor.

E chamando um de seus homens, ordenou: - Levem-no ao poste. Cem chibatadas, depois deixem-no partir. O rapaz fitou o imperador com os olhos arregalados, mal acreditando no

que escutava. Sabia que Licínio era um general duro e muito experiente, mas jamais esperaria tal atitude de um outro soldado. Sem dizer palavra, foi arras-tado pelos guardas e chicoteado impiedosamente. Depois, colocaram-no sobre o cavalo t mandaram-no partir. Embora muito machucado, ele conseguiu con-duzir seu cavalo até a divisa dos domínios do Oriente com os do Ocidente. Foi socorrido pelos colegas e logo acomodado em um leito, para receber tratamen-to. Antes de ficar inconsciente, disse com enorme esforço:

- Ele não permitirá... O general, que pessoalmente o auxiliava, acalmou o rapaz: - Nós já sabemos. Agora, descanse. Logo o soldado ficou inconsciente. E depois de duas noites naquele estado,

não resistiu aos ferimentos que, associados à longa jornada, ceifaram-lhe a jovem vida. Alguns dias depois, Constantino chegou ao acampamento, com seu exército já arregimentado e ordenando que todos os seus melhores ho-mens, espalhados pelo império, se juntassem a ele para a batalha iminente. Policarpo, o general responsável pelo acampamento próximo à divisa, detalhou o estado em que o jovem chegara. Cheio de ódio, Constantino fê-lo repetir a narrativa a todo o acampamento e, ao final, mostrando-se indignado, proferiu suas ordens da maneira mais eloqüente:

- E por essas decisões arbitrárias que temos de tomar o reino do Oriente das mãos de Licínio. Invadiremos Bizâncio e subjugaremos o imperador do

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Oriente e seus homens mais fiéis. Chega de agressões descabidas. Primeiro os cristãos, depois minha própria irmã quase morreu nas mãos desse monstro, e agora esse jovem inocente, que simplesmente cumpria ordens, deixando sua família, por estupidez absoluta.

Fez longa e calculada pausa, e depois concluiu: - Não toleraremos mais isso! Sigam-me e seremos vitoriosos! Vou liderá-

los pessoalmente nesta batalha e, ouçam bem o que digo, nós venceremos! Envolvidos pela emoção que as palavras inflamadas de Constantino lhes

causavam, eles gritaram, liderados pelos homens de confiança do imperador: - Ave César, único imperador de Roma! Constantino fitou os seus homens a ovacioná-lo e emocionou-se. Eram

mais de 100 mil homens a gritar diante dele. Sentia com todas as forças que venceria Licínio e se tornaria o único imperador. Era esse, agora, seu propósi-to. Toda a sua força estava voltada para esse fim. Retirou-se com seus gene-rais, para organizar o ataque que fariam em breve à capital do Oriente.

Durante vários dias o exército de Constantino avançou mais e mais, rumo a Bizâncio, cidade que pretendiam dominar e ocupar. De fato, Constantino dese-java fazer dela a sede de seu império. Famosa pela posição estratégica que ocupava, desde muito havia despertado o interesse do grande general. Quanto mais avançavam, mais crescia o número de soldados. Acampavam à noite, e mal o dia amanhecia todos se punham a caminho. Superaram o frio e regiões de difícil acesso, mas foi às margens do rio Ebro, pouco distante de Bizâncio, que foram obrigados a parar, dada a violenta correnteza que dificultava a tra-vessia dos 120 mil soldados, entre homens de infantaria e cavalaria.

Constantino determinou que acampassem: - E inútil avançarmos agora. Precisamos entender bem a situação de nosso

oponente. Passaremos esta noite aqui. Marco observou, preocupado: - Acho bom mesmo descansarmos. Os homens estão exaustos - Pois ficaremos aqui por ora. Marco, quero que envie uma pequena tropa

de seus melhores homens - pequena mesmo, dois ou três - para que verifiquem a situação logo após o rio. Precisamos saber exatamente a situação de Licínio.

Atendendo de pronto à ordem de seu imperador, Marco retornou algum tempo depois, informando:

- Estão a caminho. Enviei três de meus melhores soldados. - Ótimo. Aguardaremos o retorno deles. Quero que montem vários turnos

de descanso, e que metade dos homens esteja sempre desperta e em alerta. Licínio pode atacar a qualquer momento.

Marco indagou, surpreso:

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- Acredita mesmo que ele planeja atacá-lo, senhor? - Acredito que um homem desesperado seja capaz de qualquer ação. Ao final da tarde seguinte, os três experientes soldados retornaram trazen-

do informações precisas e preciosas, que foram logo levadas a Constantino. - As tropas de Licínio ocupam as planícies de Adrianópolis. Estão espa-

lhadas por terrenos elevados, o que definitivamente lhes garante vantagem, pelas condições do terreno.

- Quantos homens? - E grande demais o seu exército. Meus homens ficaram muito im-

pressionados. Relataram que o campo está como coberto por formigas. São muitos homens. Garantem que excede em número nosso exército.

Constantino ficou longo tempo pensando e depois ordenou: - Iniciaremos a construção de uma ponte ainda de madrugada. Quero mui-

tos envolvidos nessa construção. Metade dos homens deve se dedicar à em-preitada.

Os generais de Constantino o ouviam atentos. Jamais questionavam suas ordens ou suas estratégias, que muitas vezes não compreendiam, mas sabiam que elas já haviam concedido àquele exército mais de dezessete vitórias; por-tanto, confiavam em seu general. E o seguiriam lealmente até a morte.

Vários dias se passaram, e a ponte se erguia pouco a pouco sobre o rio. Naquela noite, ao despedir-se de seus homens, Constantino sabia que a ho-

ra de atacar havia chegado. Sabia que o oponente acompanhava suas mano-bras, e chegara a hora de surpreendê-lo. No meio da madrugada, mandou cha-mar seus três principais generais e ordenou:

- Quero um regimento com cinco mil arqueiros. Vamos atravessar o rio e nos embrenhar pela floresta densa; surpreenderemos os homens de Licínio pela retaguarda. Eles não nos esperam. Meu objetivo é atacar o acampamento de Licínio.

Os generais se entreolharam, surpresos pela ordem inesperada; no entanto, não ousaram sequer fazer qualquer comentário. Obedeceram de pronto. Sabi-am que o elemento surpresa seria fundamental na ousada estratégia de Cons-tantino. Antes de saírem, Marco virou-se para Constantino e perguntou:

- Permita-me saber se poderei estar entre os líderes desse ataque. - Você e os demais, meus homens de confiança. E eu, pessoalmente, vou

liderar o ataque. Fazendo posição de sentido e olhando com profunda admiração para aque-

le jovem general que estava diante dele, Marco se retirou. Ao sair da tenda de Constantino, cruzou com Crispus, filho mais velho do imperador, que entrou ansioso, indagando:

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- Vai sair à batalha, meu pai? - Assim que os homens estiverem prontos. - Quero acompanhá-lo. - Seja paciente, Crispus, tenho planos para você. - Que planos, senhor? - Dada a sua habilidade náutica, quero poupá-lo para o possível confronto

que teremos com a armada de Licínio, que ocupa o estreito de Helesponto. Temos de derrotá-los no mar para poder aniquilá-los de fato. Não podemos correr o risco de desembarcarem e nos atacarem no momento em que estiver-mos para invadir Bizâncio. O que sabe sobre a armada?

- Sei que é poderosa, com mais de 350 navios grandes e bem equipados ocupando todo o Helesponto.

Fitando o rapaz como a desafiá-lo, o mais velho inquiriu: - E o que você pensa sobre isso? O que acha? Pode vencê-los? Crispus

pensou um pouco, depois continuou: - Nossa frota é bem menor, é verdade, mas nossos homens são leais e cora-

josos. Aguardam suas ordens, prontos a obedecer. Tocando com a mão direita o ombro do filho, Constantino autorizou: - Muito bem, meu filho, aguarde minhas ordens. Permaneça no acampa-

mento. Sua luta será no mar. Diligente, o rapaz assentiu com a cabeça e respondeu: - Atenderei prontamente às suas ordens. - Voltarei em breve com a vitória para prosseguirmos rumo à conquista de-

finitiva de Bizâncio e à derrota final de Licínio. Quero que destrua completa-mente sua força náutica; transforme-os em fumaça...

Crispus tão-somente respondeu: - Pois assim será! Logo em seguida Marco entrou e comunicou: - Estamos prontos, senhor. Constantino vestiu a armadura, empunhou a pesada espada que o acompa-

nhara em tantas outras batalhas e, fitando-a como a conversar com ela, con-clamou em alta voz:

- À vitória!

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SEIS ENQUANTO CAMINHAVA pela colônia, em um dos grandes jardins floridos,

Angélica cumprimentava os amigos e colegas com quem compartilhara traba-lho e aprendizado. Ela também viera de Capela e alcançara, através de esforço e dedicação em diversas encarnações penosas, significativo progresso. Estava pronta para retornar à constelação do Cocheiro, mas embora sua alma suspi-rasse por voltar ao lar, seu coração se enchera de compaixão pelos habitantes da Terra e seu difícil caminho de evolução. Queria ajudar e, como Ernesto, resolvera permanecer para isso.

Finalmente chegou a uma grande construção, onde Ernesto a aguardava. Assim que a viu, encheu-se de alegria. E abraçando-a exultou:

- É bom vê-la outra vez, Angélica. Retribuindo-lhe o carinho, ela o abraçou ternamente e disse: - Também estava com saudade, mas achei melhor permanecer junto a

Constância. Deixando visível sua preocupação, Ernesto comentou: - A situação está piorando muito, não é? - Muito. Constância já não consegue acesso ao irmão. Constantino distan-

ciou-se emocionalmente de toda a família. Inclusive dos próprios filhos. Tem se enclausurado em si mesmo cada vez mais, e perigosamente acredita naquilo que falam sobre ele.

Entristecido, Ernesto lamentou: - O poder o está cegando totalmente. - Eu temo que sim. - O poder que ele deveria utilizar para fortalecer o bem e a verdade, para

fazer expandir-se sobre a Terra a luz do Evangelho, está usando para satisfazer as próprias paixões.

- E isso mesmo. Infelizmente, creio que ele não conseguirá! Ernesto calou-se e meditou por longo tempo. Depois, perguntou:

- E como está Constância? - Apesar de fisicamente recuperada, sua alma sofre muito, pois sabe que

ambos, Licínio e Constantino, se desviaram de suas tarefas, e estão prestes a se confrontar.

- E eram dois imperadores justamente para se ajudarem mutuamente em ta-refa de tamanha responsabilidade.

- Não resistiram aos apelos da personalidade, do ego. Ao egocentrismo e ao endeusamento de si mesmos.

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Suspirando fundo, Angélica emendou: - Nossa irmã sofre profundamente, pois intui a dor e o sofrimento que os

aguarda após deixarem a Terra. A jovem fez uma pausa, depois continuou: - O que poderemos fazer, Ernesto? Uma programação reencarnatória tão

preparada, longamente planejada, agora prestes a se perder... - E... O livre-arbítrio. Não podemos impedir que Constantino faça suas es-

colhas. Ele tem esse direito. E aqueles que o seguem também. O que podemos fazer, agora, é rogar ao Pai Celeste nos socorra e nos oriente.

- Eles estão prestes a se enfrentar. Talvez o façam agora, enquanto nos fa-lamos. Constantino alcançou as planícies de Adrianópolis com mais de 120 mil homens; Licínio está acampado com seus homens nas planícies, já mais para o lado de Bizâncio. A guerra é inevitável e...

Angélica não pôde continuar. A dor tomou conta de seu coração e pesadas lágrimas desciam pela sua face. Ernesto buscou consolá-la e disse, tocando suas mãos:

- Sei que é difícil... - Quantas vidas perdidas... Quanto sofrimento inútil... Quanta dor se proje-

tando para o futuro dessas almas... - Sim, minha irmã, infelizmente. Limpando as lágrimas, ela indagou: - Por quê? Por que ainda é tão difícil para os homens compreender... - Porque a verdade incomoda os homens, Angélica. - Por quê? Ernesto pensou por alguns momentos, depois, envolto em safírica luz, dis-

se: - Os homens tentam de todas as maneiras fugir de sua difícil, angustiosa si-

tuação espiritual. - Por que não procuram sair da situação, para serem mais felizes? A verda-

de nos liberta, nos faz donos de nossos destinos, nos aproxima de Deus e nos torna seres mais felizes.

- Não sem antes nos obrigar e enxergar nossa real condição espiritual. Je-sus trouxe para os homens a consciência de nossa real condição espiritual, ar-rancando-nos das ilusões em que nos apoiávamos, acreditando-nos possuidores de uma superioridade que não existe.

Fez curta pausa. Angélica o escutava atenta. Ele continuou: - Conscientes de nossa real situação, temos de tomar uma decisão, e arcar

com as conseqüências advindas dela. Podemos optar pela iluminação espiritu-al, conscientes de que ela é árdua, difícil e demorada, mas o único caminho para nossa real felicidade. Ou então, abafar a consciência e escolher a fantasia,

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a mentira, pois ela nos dá maior prazer, maior satisfação e não nos obriga a empreender os esforços de resignação, humildade e desapego às ilusões, prin-cipalmente sobre nós mesmos.

Angélica balançou a cabeça em sinal afirmativo e disse: - Tem razão, meu sábio amigo. A verdade nos liberta, mas depende de nos-

so esforço e coragem para nos vermos como realmente somos. - Exatamente. Por isso matamos Jesus impiedosamente. Calando o Messi-

as, tentamos fazer silenciar a própria consciência que gritava dentro de nós. Angélica ia fazer uma pergunta, quando Ernesto sugeriu: - Oremos a Deus. Ele haverá de nos orientar. E acima de tudo, tenhamos

paciência, sabendo que nós mesmos viemos de longa data fugindo destas ver-dades...

Angélica sorriu ao repetir: - Paciência... E Ernesto finalizou: - E muita perseverança. O bem triunfará, isso é inevitável. A verdade será

vitoriosa.

SETE CONSTANTINO LIDEROU CERCA de 5 mil homens que atravessaram o rio E-

bro nadando e logo que cruzaram as águas, tal qual Constantino havia planeja-do, embrenharam-se por densa floresta para atacar o acampamento de Licínio pela retaguarda. Contavam com a surpresa do oponente para enfraquecê-lo.

Pouco antes do alvorecer, quando se ouviam os primeiros pássaros aqui e acolá, fez-se grande rumor por todo o acampamento e a confusão se instalou. Licínio ergueu-se de um salto e em poucos segundos estava armado, já sobre seu cavalo. Viam-se as flechas voando pelos céus do acampamento, e homens tombavam por todos os lados. Licínio gritou enquanto tentava controlar o ca-valo:

- De onde vem o ataque? Um de seus generais aproximou-se, informando: - Estão nos atacando pela floresta. A reação do exército de Licínio foi rápida, mas perdiam muitos homens,

rapidamente. Tombavam às dezenas por todos os lados. Os poucos minutos que levaram para conseguir se organizar, foram suficientes para conceder grande vantagem a Constantino, que se aproximava velozmente.

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Um dos generais de Licínio enviou alguns de seus melhores homens à frente, para tentarem saber quão perto estava o inimigo. Dos cinco enviados apenas um retornou, e ferido, informando:

- Eles se aproximam muito depressa. Melhor proteger o general... não pos-so... não...

Não suportando os ferimentos, desfaleceu. Logo um grupo de generais se reuniu, em meio à confusão, para pedir ao imperador que se retirasse:

- Deve retornar imediatamente à segurança da cidade, senhor. O acampa-mento já não é seguro.

Licínio nem tentou argumentar. Arregimentou rapidamente um grande número de homens e partiu em retirada, caminhando na direção das muralhas que fortificavam e protegiam a importante cidade de Bizâncio.

Constantino, por sua vez, avançava mais e mais. Os homens de Licínio, a-inda que em número muito maior, eram forçados a deixar sua vantajosa posi-ção em terreno íngreme e descer para uma grande área plana em terras de A-drianópolis, concedendo assim mais vantagens aos atacantes. Quando conse-guiu alcançar o coração do acampamento, onde alguns minutos antes estava Licínio, Constantino ordenou que os arqueiros atirassem flechas flamejantes, com tochas nas pontas, para o alto, avisando a seu exército que deveria atacar.

Cruzando bravamente o rio, o exército de Constantino avançou intrépido ao encontro de seu general. Este, de espada em punho, atacava tudo e todos que encontrava pelo caminho. Desejava o confronto com Licínio, mas já pres-sentia que ele tivesse recuado. Seguiu-se, então, violenta batalha que dizimou mais de 34 mil homens.

Pelo meio da tarde, Constantino vencera o exército do opositor e imedia-tamente se dirigiu para as muralhas de Bizâncio, com o objetivo de invadi-la. Conclamando mais uma vez seus homens, gritava com vibrante entonação:

- Não esmoreçam agora! Depois de breve pausa, gritou ainda mais alto: - A vitória está próxima! Breve Bizâncio será nossa! Marco, tentando protegê-lo mas conhecendo seu imperador, indagou hesi-

tante: - Não seria melhor descansarmos um pouco, meu senhor? Precisa cuidar

desse ferimento. Está sangrando muito. Descendo de seu cavalo, Constantino improvisou ataduras e amarrou-as

fortemente à coxa, acima do profundo corte que sofrerá. Depois, subiu no ani-mal e agradeceu:

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- Compreendo seus cuidados, Marco, mas nada me deterá agora. Estamos a um passo da conquista completa do império. Não quero me demorar. Temos de invadir a cidade.

Chamando outro de seus generais, ordenou: - Encontrem os homens de Licínio que debandaram para a floresta. Não

quero surpresas... Prontamente, o outro aquiesceu: - Sim, imediatamente. Depois, intrépido, Constantino ergueu uma vez mais a espada já sem brilho

e gritou: - Logo estaremos dentro da cidade. Sigam-me e seremos donos de todo o

império! Envolvidos pelo forte magnetismo daquele homem, os soldados o segui-

ram sem titubear. Confiavam cegamente em seu vitorioso imperador. Ao se aproximarem das altas muralhas de Bizâncio, Constantino ordenou

que montassem um forte cerco e começassem a construir engenhosas torres de terra.

Depois de montar sua tenda e acomodar-se no local, chamou um de seus melhores mensageiros e ordenou pessoalmente:

- Diga a Crispus que ele deve atacar imediatamente a frota de Licínio anco-rada no Helesponto. Que force a passagem e destrua os seus navios. Precisa-mos que os alimentos nos cheguem por terra, e somente abrindo a estreita pas-sagem que eles controlam poderemos receber os suprimentos de que necessi-tamos.

O mensageiro partiu no mesmo instante. Ao final daquele dia as torres co-meçaram a ficar prontas e pouco a pouco, com muito esforço e utilizando grandes alavancas de madeira, foram posicionados sobre elas catapultas que começaram a arremessar pesadas pedras e gigantescas tochas sobre as fortes muralhas da cidade.

Em seu palácio, Licínio caminhava de um lado a outro, aflito, escutando o barulho do impacto que as pedras enormes causavam nas muralhas. Quando um de seus generais entrou na sala, ele logo indagou:

- O que estão fazendo agora? Será que terão alguma chance de transpor es-ta fortaleza?

Preocupado, o general respondeu: - Estão atacando as muralhas. Inseguro, Licínio retrucou: - Elas são muito resistentes, suportarão os ataques. O outro prosseguiu,

com forte tensão na voz:

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- Estão atacando no centro da muralha, justamente no ponto onde são mais frágeis.

- Como isso foi possível? Elas são muito altas. - Não conseguimos ver, mas de alguma forma colocaram as atiradoras num

ponto mais alto, atingindo o centro de nossos paredões. Cansado pelo recuo rápido que fora obrigado a realizar, e profundamente

contrariado pelos avanços e manobras inteligentes do rival, Licínio gritava descontrolado:

- Eles não podem entrar, está entendendo? Tem de impedi-los. Derramem óleo fervendo sobre eles, agora!

- É o que estamos tentando, mas fomos pegos de surpresa. Não temos nada preparado de pronto, para responder a esse ataque à altura. Se conseguirem entrar...

Agarrando o subordinado pelo pescoço ele bradava: - Eles não podem entrar, está me entendendo? Vá, faça seu trabalho, seu

incompetente! Estou cercado por incapazes, homens fracos! O general saiu logo e Licínio continuou gritando impropérios. O cerco se

estendeu por toda a noite e pelo dia seguinte, sem interrupções. Constantino, acampado em local estratégico de onde acompanhava toda a movimentação de seus homens, estava totalmente convencido da vitória. Já podia ver-se ocupan-do o trono de Licínio.

Amanhecia quando o mensageiro entrou depressa pelo acampamento pró-ximo às margens do rio Ebro, onde Crispus aguardava as ordens do pai. Tão logo o mensageiro o procurou e transmitiu as ordens para o ataque, o jovem organizou seus homens e imediatamente lançou-se ao mar, ocupando a maior e mais bem equipada embarcação de que dispunham. Enquanto esperava, plane-jara detida e minuciosamente o ataque que encetaria. Estava empolgado e via naquele ataque a grande oportunidade para ocupar um lugar de destaque e hon-ra ao lado do pai. Queria muito que o grande Constantino reconhecesse seu talento e seu empenho.

Não demorou muito a alcançar as embarcações do inimigo. Travou-se grande batalha. Embora a esquadra de Licínio fosse maior e melhor equipada, a determinação e a destreza de Crispus logo fizeram sua armada sobressair. Vários navios se queimavam sob o fogo da força marítima do filho mais velho de Constantino. A batalha durou todo o dia. Na manhã seguinte, muito embora seus homens demonstrassem sinais visíveis de cansaço, Crispus seguiu atacan-do. Perdeu várias embarcações importantes, e pelo meio do dia julgou que não poderia sair vencedor daquela batalha. Entretanto, de súbito, forte ventania soprou sobre o estreito do Helesponto, levando os navios de Crispus para bem

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perto dos do opositor. O jovem não teve dúvida: ordenou ataque maciço e in-cendiaram a frota adversária. Vários navios partiram em retirada e 130 foram destruídos. O seu próprio navio estava em chamas quando proclamou, erguen-do a espada, à semelhança do que fazia o pai:

- A vitória é nossa! Ao grito uníssono da tripulação, Crispus escutou o cumprimento de seu

subordinado imediato, que lhe tocava o ombro: - Brava vitória, Crispus! Excepcional! Seu pai se orgulhará de você. Sorrindo satisfeito, o belo rapaz observou, com ligeiro sinal de cabeça: - Espero que ele seja comunicado da batalha em seus pormenores. Compreendendo imediatamente o que o rapaz desejava, o outro respondeu: - Ele saberá, Crispus, todos os detalhes dessa brava e corajosa vitória. Logo depois, alimentos e água chegavam ao acampamento de Constantino.

Não demorou e a primeira muralha começou a ruir. Desesperado, Licínio a-guardava informações. Um de seus generais entrou, ofegante:

- Precisamos partir, senhor. Um de nossos muros externos acaba de ruir. Não vai demorar para que consigam enfraquecer outros e, assim, não tardarão a entrar.

Licínio ergueu-se, e logo organizou uma grande comitiva e partiu em reti-rada, levando consigo muitos baús contendo suas riquezas e tesouros. Deixou para trás sua família e seu povo. Em região não muito distante, conseguiu reu-nir novo exército, com cerca de 60 mil homens.

Constantino avançava em sua ofensiva e, pouco a pouco, outras muralhas foram derrubadas. O grande general estava prestes a invadir Bizâncio, quando foi informado por Marco:

- Licínio escapou e formou um novo exército em Bitínia. - Quantos homens conseguiu arregimentar? - Certamente mais de 50 mil. - Muito bem. Quantos homens ainda temos? - Quase 100 mil, senhor. - Mande 80 mil para Bósforo, em pequenas embarcações. O restante, que-

ro que ocupe a cidade. E tocando no ombro de Marco, pediu: - Você deverá ficar aqui e comandar a ocupação. Marco fez menção de re-

trucar, mas ele prosseguiu: - Preciso de você aqui, Marco; é em você que mais confio. Eu irei com os

outros. - Mas...

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- Quero enfrentar Licínio pessoalmente. Tenho de ter certeza que ele não vai escapar desta vez.

Desistindo de argumentar, Marco conformou-se: - Cuidarei de tudo. - Muito bem, seja cuidadoso com as mulheres e as crianças. Não quero

mortes desnecessárias. E cuide de minha irmã... - Sim, meu senhor, cuidarei de tudo. - Muito bem, vamos. Não quero dar nenhuma vantagem a Licínio.

OITO NÃO TARDOU E DEZENAS de pequenas embarcações atracaram. O de-

sembarque foi rápido e ágil. Assim que a maioria de seus homens alcançou terra firme, Constantino subiu depressa em seu cavalo e tomou a dianteira dos soldados. Andou um pouco e logo avistou o exército de Licínio. Intensa bata-lha se seguiu. Embora quase 25 mil homens tenham sido dizimados naquela tarde, Constantino não se sentia satisfeito. Caminhou, sem sucesso, entre os corpos estendidos à procura do rival. Depois se aproximou dos homens derro-tados e perguntou irritado:

- Onde está seu vencido imperador? Por que não o encontro em parte al-guma? Fugiu novamente, aquele covarde?

Os soldados de Licínio mantinham-se de cabeça baixa, temerosos. Cons-tantino insistia, erguendo mais e mais a voz:

- Todos ficarão a noite inteira sem água ou comida, e amanhã também, e assim sucessivamente, até que me digam onde está o covarde!

Um dos soldados ergueu levemente o rosto e, sem olhar diretamente para Constantino, balbuciou quase num murmúrio:

- Ele fugiu para a Nicomédia. Constantino virou-se e olhou para a direção de onde vinha a voz, quase em

enxergar o homem. Aproximou-se, agachou-se e, segurando-lhe o queixo, or-denou:

- Fale sem medo, homem! Não lhe farei mal. Não um mal maior do que o seu general lhes fez! Não tenha piedade de alguém que não se preocupa com seus próprios soldados!

Ainda temeroso, o homem prosseguiu: - Ele fugiu assim que viu seus barcos se aproximarem; antes mesmo que

seu exército tocasse o solo, fugiu para a Nicomédia. Erguendo-se satisfeito, Constantino ordenou:

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- Água e comida a todos os prisioneiros. Cuidem dos feridos e coloquem-nos nos barcos. Vamos voltar imediatamente a Bizâncio.

E silenciando por alguns instantes, balbuciou por fim, como se pensasse alto: - Deixem esse covarde comigo... Quando adentrou os pesados portões de Bizâncio, o imperador encontrou

seus cidadãos a esperá-lo. Não pareciam um povo vencido, mas sim um povo que aguardava ansiosamente por seu imperador. Aquele povo estava cansado dos desmandos e agressões de Licínio e esperavam que ò novo imperador fos-se mais condescendente com eles, pois a fama do heroísmo e grandeza de Constantino a todos encantava.

Em seu quarto, andando de um lado a outro, Constância aguardava angus-tiada pelo irmão. Desejava notícias do marido e temia pela sua vida. Pressentia que Licínio estivesse vivo, mas sabia que mesmo que isso fosse verdade, não era garantia alguma para o futuro de sua família. Estava profundamente abati-da. O filho pediu:

- Por favor, mãe, sente-se. Você parece exausta. Assim não terá forças para falar com tio Constantino, quando ele chegar.

Constância sentou-se ao lado de Juliano e de Helena, e segurando as mãos do rapaz, desabafou:

- Tem razão, meu filho. Estou sendo tola. É que sinto que falhei de algum modo. Não deveria ser assim...

O rapaz obtemperou: - Ora, mãe, o que está dizendo? Não conheço ninguém que tenha tido tanta

paciência e perseverança com outra pessoa, como você com meu pai. Mesmo sendo ele um homem tão rude, você jamais desistiu ou mudou sua conduta com ele. Como pode ainda sentir-se em falta, seja da forma que for?

Olhando o filho nos olhos, ela respondeu como se olhasse para o infinito: - Não sei explicar, meu filho... Mas sinto que falhei... Meu dever era ajudar

seu pai a ser, junto de seu tio, o forte pulso do império... Estranhando muito, o rapaz comentou admirado: - Mãe, estou surpreso. Você, envolvida em questões políticas... - Não se trata disso... Antes que ela pudesse concluir, Marco entrou no quarto e comunicou, gentil: - Seu irmão a aguarda, senhora. Com o coração batendo descompassado, ela balbuciou: - E Licínio... Abrindo a porta para que ela passasse, Marco limitou-se a dizer: - Ele está vivo.

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Constância dirigiu por sobre os ombros olhar quase aliviado para o filho e para a amiga, depois seguiu Marco em silêncio. Assim que Constantino a viu, abriu largo e sincero sorriso, estendendo-lhe os braços:

- Minha irmã, como está? Fiquei deveras preocupado com você. Tocando de leve a cicatriz na cabeça da irmã, ele continuou:

- O que foi que aquele monstro lhe fez? Ela sorriu com ternura, evitando fitar o irmão, e pediu: - Não fale assim de Licínio. - E ainda tem coragem de defendê-lo, Constância? - Ele fez isso numa hora de desespero extremado... - Ele vive em desespero extremado. Não consegue conviver com sua pró-

pria estupidez. E pare de defendê-lo, minha irmã. Já chega! Tem de parar com isso. Precisa desistir de vez desse homem que só lhe fez mal.

Ajoelhando-se aos pés do irmão, ela implorou: - Não lhe faça mal, por favor, meu irmão... Erguendo-a com ternura, Constantino comentou enquanto lhe afagava os

cabelos: - Como você se parece com nossa mãe, é impressionante. Seus gestos, seu

carinho, sua dedicação... Vocês se parecem muito. Sente-se aqui, venha. E acomodando a irmã ao seu lado, pediu que lhe servissem comida e bebi-

da. Convidou seus homens de confiança para que se sentassem também. - Vamos celebrar a fragorosa derrota de Licínio. Constância calou-se por

longo tempo. Bem mais tarde, quando terminaram o demorado jantar, quando estavam praticamente a sós, Constância pediu de novo:

- Meu irmão, pelo amor que você tem por mim, eu lhe imploro pela vida de Licínio. Deixe que ele viva...

E, envolvida pelas energias de Angélica, que lhe influenciava o pensamen-to, disse sem que pudesse dar conta de suas palavras:

- Não destrua sua oportunidade de reconstrução... Constantino sentiu forte arrepio a percorrer-lhe o corpo. Olhou sério para a irmã e indagou:

- Do que está falando? Sem esperar resposta, continuou: - Não importa. Vou descansar agora e você deve fazer o mesmo. Falare-

mos sobre isso em outro dia, outra hora. Constância ia insistir, mas deteve-se percebendo que naquele momento o

melhor era silenciar. Constantino, por outro lado, pensou muito por quase toda a noite. Tinha ímpetos de enviar soldados para eliminar o seu rival, mas ao mesmo tempo pensava no impacto que causaria sobre o povo. Já era quase dia claro quando finalmente decidiu o que fazer.

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Ao encontrar-se com a irmã para o desjejum, informou-lhe, solícito: - Tenho notícias que lhe agradarão muito. Decidi conceder perdão a Licí-

nio. Vou mandar chamá-lo. Com lágrimas nos olhos, Constância quase não conseguia conter a emoção.

Abraçou efusiva o irmão e agradeceu: - Deus seja louvado! Graças a Deus! Você é mesmo um homem bom e dig-

no, Constantino. A verdadeira dignidade de um chefe de estado, a meu ver, está em sua capacidade de clemência. Eu lhe agradeço, meu irmão.

Abraçando-a também, ele comentou: - Não poderia agir diferente com você, não é mesmo? Ela sorriu e, limpando as lágrimas de alegria que lhe desciam pela face,

perguntou: - E como vai informá-lo? - Ainda não sei. - Posso ir ao encontro dele pessoalmente, assim ele confiará em você. - Não gostaria de fazê-la expor-se a uma viagem, ainda que curta, depois

de tudo pelo que passou... - Não me será pesado. Vou levar Juliano e Helena comigo. - Tem certeza? - Sim, eu quero ir. - Pois muito bem. Vou designar um grupo de alta confiança para acompa-

nhá-los. E depois de breve pausa, perguntou: - Acha que consegue trazê-lo? - E claro, ele confiará em mim. - Então, boa sorte. Abraçando o irmão mais uma vez, ela confirmou: - Partiremos após o desjejum. Não quero esperar mais. Sem nada acrescentar, Constantino tomou seu lugar à mesa e se acomo-

dando, em local cuidadosamente escolhido, de onde conseguia ver pela janela as construções da cobiçada cidade que acabara de conquistar.

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NOVE CONSTÂNCIA, o FILHO, Helena e pequena comitiva saíram logo pela manhã.

Seguiam rumo a Nicomédia, onde Licínio se refugiara, buscando algum tempo para que pudesse negociar algo em seu favor, junto ao seu opositor.

Assim que o pequeno grupo alcançou o seu destino, Licínio foi avisado da chegada da família. Ao avistá-lo, o coração de Constância disparou. O marido estava pálido e abatido, visivelmente doente. Ela correu-lhe ao encontro, an-gustiada:

- Como está, querido? Fiquei tão preocupada... Erguendo um pouco a ca-beça, ele respondeu, agressivo:

- Como acha que posso estar? Seu irmão me tirou tudo... Abraçando-o com ternura, ela pediu:

- Querido, é hora de abrir mão dessa disputa. Acabou. Constantino ocupou Bizâncio, mas lhe concedeu o perdão e o direito de ficarmos todos juntos. Po-deremos viver nossa vida...

- Que vida? O que me resta além da vergonha, da humilhação da derrota? Uma vida medíocre, em um buraco qualquer, fugindo e temendo as atitudes de Constantino?

Aproximando-se, Juliano tocou o ombro do pai, que permanecia sentado, cabisbaixo, e pediu:

- Anime-se, pai. Com sua experiência, pode ainda realizar muitas coisas... Erguendo a cabeça o imperador abatido fitou o filho e comentou: - Você não tem mesmo brios, não é? Estou derrotado. Minha família está

envergonhada, vencida... Meu reino foi tirado, eu perdi tudo... Estou derrota-do... Já nada mais me interessa...

- Constantino permitirá que vivamos com tudo aquilo de que necessitamos - aduziu Constância. - Você poderá fazer as coisas de que gosta, ou pelo me-nos gostava quando nos conhecemos...

Olhando para a esposa, ele permaneceu em silêncio. Depois indagou: - E para onde vai nos enviar? Decerto para algum fim de mundo, abando-

nado por todos... - Não sei bem, mas acho que nos enviará para Tessalônica. Erguendo-se,

Licínio indagou: - Tessalônica? - Acho que sim. - E por quê?

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-Quando me disse que concordava em perdoá-lo, ouvi uma conversa breve entre ele e Marco, e parece que falaram algo sobre Tessalônica. Gostaria de ir para lá, Licínio?

- Mas é claro! É um lugar de onde posso fazer muitos contatos e, quem sa-be, reorganizar um exército...

Colocando o dedo indicador sobre os lábios do marido, ela pediu: - Não fale nada, por favor. Olhou na direção dos soldados que os haviam acompanhado e pediu: - Agora temos de ir. Constantino nos aguarda. Ainda sem ânimo, Licínio juntou-se ao grupo e retornaram para Bizâncio.

Ao entrarem na localidade fortificada, Licínio não conseguia conter o ódio que sentia por ter perdido aquela poderosa cidade. Via o desprezo no olhar daque-les que haviam sido seus súditos. Seu ódio crescia a cada passo que dava. Ao aproximar-se da ampla sala que havia sido seu lugar preferido para governar, sua cólera aumentou ainda mais. Seu coração batia descompassado, suas mãos estavam geladas e trêmulas, mas Licínio sabia, como ninguém, controlar e dissimular as emoções. Ao divisar seu trono ocupado pelo rival, sentiu como se todo o sangue do corpo lhe subisse à cabeça. Seu coração parecia que ex-plodiria dentro do peito. Ao vê-lo, Constantino ergueu-se e aproximou-se. Li-cínio, ciente de sua posição, ajoelhou-se diante do inimigo e permaneceu de cabeça quase no chão. Constantino observou-o atentamente e depois de alguns segundos disse:

- Levante-se, Licínio. Você está perdoado. Poderá passar o resto de seus dias com todo o conforto e toda a sua riqueza. Seu exílio será em Tessalônica. Partem pela manhã.

Sem dizer nada, Licínio balançou a cabeça e ajoelhou-se outra vez em re-verência diante do opositor. Constantino pediu:

- Agora vamos, como forma de encerrarmos de vez essa disputa. E hora de agirmos como cidadãos romanos da alta estirpe que somos. Venha sentar-se comigo á mesa. Cearemos e encerraremos essa discórdia de vez. Fomos ami-gos, afinal. Consideremos que a posição que ocupávamos nos obrigou aos atos que tivemos. Mas entre nós, Licínio, nada existe que nos faça reais inimigos...

Concordando mais uma vez com a cabeça, em silêncio, Licínio acompa-nhou a comitiva que seguia Constantino até uma enorme sala onde grande me-sa estava montada. Acomodaram-se. Constância, que ocupava o lugar ao lado do marido, buscava distraí-lo e animá-lo o quanto podia. Mas sabia que aquele era um momento tremendamente difícil para ele. O ato de perdão e concórdia de Constantino tornava-o ainda mais forte diante dos cidadãos de Bizancio e

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de seus próprios comandados. Aquele parecia um homem perfeito, quase um deus...

Na manhã seguinte, número considerável de homens seguiu para Tessalô-nica com Licínio e sua família. O imperador vencido seguiu calado a maior parte do caminho. Por mais que Constância tentasse conversar, permaneceu mudo.

Depois de acomodado em ampla mansão, com todo o conforto e trazendo consigo as riquezas pessoais, conforme Constantino havia prometido, Licínio descansou pelo resto do dia. À noite, pouco antes do jantar, avisou:

- Não me esperem para o jantar. Surpresa, a esposa perguntou: - Aonde vai? - Preciso encontrar alguns velhos amigos. Espero que eles possam ajudar-me. Pressentindo com clareza as intenções do marido, Constância pediu: - Querido, acabamos de chegar e você precisa se recuperar. Ainda está can-

sado... Sem esperar que terminasse ele falou: - Cale-se, Constância. Sua voz me irrita! Com lágrimas nos olhos ela res-

pondeu: - Eu só quero o seu bem... - Então deixe-me em paz! E saiu imediatamente, sem dizer mais nada. Distante dali, Constantino jantava exultante com seus homens de confiança

e com a família. Crispus estava sentado à sua direita e Fausta ocupava o outro lado da mesa. A bela e sensual esposa do imperador tinha traços delicados. Sua beleza era suave e discreta, carregada de feminilidade e sutilezas. Ela sabia da atração que causava no sexo oposto e utilizava esse poder conscientemente. Era altiva, e sua posição a envaidecia e alimentava fortemente seu orgulho.

Constantino conversava animado sobre seus planos: - Vou transformar Bizâncio na capital do império. Aqui será o centro do

mundo! Marco sorriu e indagou: - E quanto a Roma? - Roma está decadente. Quero algo especial, que marque minha passagem

sobre este império para sempre. Fausta acompanhava a conversa em silêncio. Depois de longa pausa do pai,

Crispus indagou: - Confia em Licínio? Vai deixá-lo mesmo livre? Acho que ele será perigo-

so... Deveríamos tê-lo aqui conosco, como seu prisioneiro... Constantino fitou o filho e comentou:

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- Ora, Crispus, por que sempre questiona minhas ordens? Não consegue confiar em minhas decisões, não é?

O rapaz ficou imediatamente lívido. Não conseguia aproximar-se mais de seu pai e isso o incomodava muito. Respirou fundo antes de responder:

- Não é isso, pai... Mas ele é um homem perigoso, você sabe... Constantino bateu com toda a força sobre a mesa e disse:

- Acha que porque venceu uma batalhazinha no mar pode questionar mi-nhas ordens, minhas decisões?

Fez uma pausa, depois concluiu: - Sei muito bem o que estou fazendo. Rubro de raiva, Crispus baixou a cabeça e continuou comendo. Constanti-

no comentou com Marco, sentado à sua direita: - Insolente, esse meu filho... Na verdade, Marco também não compreendia a reação do imperador.

Quando recebera a notícia da corajosa e brava vitória que o rapaz havia alcan-çado no estreito do Helesponto, ele demonstrara quase desdém. O homem de maior confiança de Constantino não conseguia compreender-lhe a reação.

Fausta, que tudo observava em silêncio, comentou com sua serva pouco depois, em seu quarto, enquanto aquela lhe penteava os longos cabelos casta-nhos:

- Sei bem por que Constantino não reconhece a fragorosa vitória do filho. - E por que, minha senhora? - Ficou com ciúme, isso sim. - A senhora acha?! - Tenho certeza. Ele tem medo até da própria sombra. Não tardará e esse

ciúme vai controlá-lo. Até porque Crispus está ficando cansado de fazer tudo pelo pai e não ser reconhecido.

Sorrindo maliciosamente, ela completou: - Vamos dar uma ajudazinha à natureza, é claro... Sem compreender, a serva terminou o que fazia e então ajudou sua senhora

a trocar de roupa, acomodou-a na cama e saiu do quarto apagando uma das velas.

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DEZ ALGUNS MESES SE PASSARAM. Vez por outra chegavam aos ouvidos de

Constantino rumores de que Licínio se encontrava com antigos amigos de combate. E ele calmamente comentava:

- Não conseguirá fazer mais nada. Simplesmente, está acabado. Enquanto dormia, Constantino recebia visitas espirituais que desejavam

controlá-lo para satisfazer seus interesses. A respeito dessas companhias, An-gélica comentava com Ernesto:

- Está cada vez mais difícil transmitirmos nossos pensamentos a Ferdinan-do, ora encarnado como Constantino. Ele parece não nos ouvir mais. Continua cercado, e cada vez mais, pelos nossos irmãos que caminham distante da luz de Jesus, opondo-se sistematicamente à expansão do Cristianismo sobre a Ter-ra. A escuridão, pouco a pouco, toma conta da mente e do coração de Ferdi-nando. Agora, mais do que nunca, pode-se observar claramente em torno de seu corpo espiritual a formação de densas energias enegrecidas e de baixo teor vibratório.

Suspirando fundo, Ernesto comentou: - Eles insistem em combater qualquer esforço para a expansão dos ensinos

de Jesus e, principalmente, para que eles sejam devidamente compreendido pelas pessoas.

- É muito triste a situação desses nossos irmãos. Não percebem que os en-sinos de Jesus lhes trarão libertação e auxílio? Não vêem quanta esperança espalham sobre a humanidade?

- Eles sabem disso. - No entanto, mesmo assim se opõem sistematicamente. - Desejam deturpar os preciosos ensinos de Jesus. - E o que ganham com isso? - Persistem na ilusão que os alimentava na Terra, e ainda os alimenta no

plano espiritual imediatamente ligado ao orbe terreno. Ambos ficaram pensativos por alguns instantes, depois Angélica afirmou: - Do modo como Ferdinando está agora, acho que não conseguirá mais nos

ajudar. Ernesto comentou: - E acho até que poderá prejudicar, e muito, o processo de crescimento do

Cristianismo. Percebendo a preocupação de Ernesto, Angélica indagou: - Será que ele apagou por completo da memória os compromissos assumi-

dos antes de reencarnar?

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- Por certo que não. Ele sabe, tem consciência deles, mas de seu subcons-ciente emergem forças que o atraem para o que ainda é no íntimo. Os defeitos morais que tenta combater exercem profunda atração sobre sua personalidade atual. Somente com muito esforço, humildade e dedicação ao bem ele poderia vencer-se e superar-se.

- E a nossa grande luta interior... Abraçando Angélica fraternalmente, Ernesto reforçou: - E é por esse motivo que nossos irmãos sobre a Terra necessitam tanto de

nossa ajuda. Somente na troca entre os dois planos conseguiremos nos ajudar mutuamente e sair vitoriosos desta luta, que é de toda a humanidade, pela ilu-minação interior de cada ser humano e a conseqüente ascensão da Terra para um mundo de regeneração.

Muito interessada, Angélica indagou: - E você sabe quanto tempo ainda levará para que isso aconteça, Ernesto? - Acho que, de fato, só Deus o sabe. Dependerá de como a humanidade

conduzirá seu destino rumo ao Criador. Angélica ergueu-se e disse, cheia de entusiasmo: - Então temos muito trabalho a fazer. - Temos muito trabalho, minha amiga. - E o que vamos fazer de agora em diante com Ferdinando? - Por enquanto, continuaremos a cercá-lo com toda a ajuda que pudermos,

no sentido de lembrá-lo de seus compromissos. Consultaremos nossos orienta-dores, mas se possível for, traremos Ferdinando até aqui, durante o sono, para conversar com ele.

- Então, volto agora mesmo para junto de nosso amigo. Estarei de pronti-dão para o que for necessário.

- Ore muito, Angélica, pois sua vibração de amor atinge sempre o coração de nossos irmãos encarnados.

Abraçando mais uma vez o amigo e companheiro de trabalho, Angélica a-briu largo e sincero sorriso e despediu-se de Ernesto, retornando para junto de Ferdinando. Logo que adentrou o quarto onde ele dormia, encontrou três enti-dades espirituais de pesado teor vibratório que permaneciam em torno dele. Conversavam, sem registrar a presença de Angélica:

- Ele está cedendo às nossas sugestões... - E será completamente dominado por nós. O outro concordou: - Com algumas interferências aqui e ali, acabaremos com a encarnação dele. Um deles perguntou, confuso: - Ele vai morrer logo?

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- Claro que não, estúpido! Se conseguirmos desvirtuá-lo do caminho que tinha tomado inicialmente, será de muita utilidade para nossos superiores...

- Então ele continuará vivo. - Vivo e conquistando tudo pela frente. Quanto mais sucesso tiver, no pon-

to em que está, mais ficará em nossas mãos. A sua gana de poder nos é muito útil.

Um deles comentou: - De fato, é uma das ferramentas que nos facilita a aproximação. Uma das

entidades aproximou-se do corpo físico de Constantino, sugando-lhe as ener-gias vitais e sussurrando-lhe ao ouvido:

- Acabe com Licínio. Ele ainda lhe trará problemas. Coloque seu plano em ação. Por que esperar mais?

Por vezes, Constantino se revirava na cama agitado. Seu corpo espiritual, em profundo torpor, permanecia em repouso ligeiramente acima de seu corpo físico. Angélica suspirou fundo e, avistando outro companheiro espiritual da luz, aproximou-se dele e comentou:

- Olá, Germano, como está? - Muito preocupado com a situação de nosso irmão. - Ernesto deverá vir buscá-lo, na tentativa de relembrá-lo de seus deveres. Os dois avaliaram a situação espiritual danosa em que se encontrava o

grande imperador e depois se entreolharam. Com os olhos marejados, Angéli-ca convidou:

- Oremos, Germano, pedindo aos céus que auxiliem nosso irmão. Fechou os olhos e proferiu sentida oração, rogando o amparo divino para

Constantino. Em alguns instantes o quarto encheu-se de safírica luz, e as enti-dades espirituais das trevas experimentaram imediato desconforto. Uma delas falou:

- Estão aqui, mas não vamos sair. Um deles gritou, irritado: - Quero ir embora! Estou me sentindo mal aqui dentro. - Pois agüente firme. Precisamos ficar. Aqueles que sugavam as energias de Constantino não conseguiram conti-

nuar e tiveram de afastar-se ligeiramente. Diante das emanações de amor e paz que envolveram o ambiente, suas próprias energias se enfraqueceram, conce-dendo momentânea trégua ao imperador, que pareceu dormir mais serenamen-te. Germano comentou:

- Bem, conseguimos uma trégua, não é mesmo? Preocupada, Angélica a-quiesceu e disse:

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- Mas por quanto tempo, meu amigo? As atitudes de Constantino não aju-dam; pelo contrário, fortalecem mais e mais a ação desses irmãos equivocados e doentes.

Depois de longa pausa, ela suspirou fundo e falou: - Confiemos em Deus. Ele é dono de tudo e de todos. Na manhã seguinte, Constantino acordou ainda entorpecido, mas decidido.

Três dias depois, em Tessalônica, Licínio despertou cedo naquela manhã. Mar-cara um encontro com alguns de seus amigos e estava saindo, quando Cons-tância foi ao seu encontro:

- Licínio, aonde vai? Antes que ele respondesse, segurou-lhe os braços, pedindo: - Não saia hoje, por favor. - E por que não? Hesitante, ela explicou: - Tive um sonho estranho e confuso esta noite. Estou angustiada, triste.

Não sei explicar, mas gostaria que você ficasse aqui hoje, por favor. Afastando-se da esposa, ele falou, desdenhoso: - Ora, Constância, se eu for dar ouvidos a esses seus sonhos, não faço na-

da... Você vive tendo sonhos a toda hora. Ela tentou argumentar: - É que esse foi tão real... Silenciou por um instante e, em lágrimas, continuou: -Tão triste... - Não quero saber desses seus sonhos. Tenho compromisso e não venho

para o almoço. Saiu. Ao aproximar-se do estábulo, um de seus servos aproximou-se e lhe

entregou pequeno pergaminho com curta mensagem: "Estamos aguardando você nas colinas. E necessário termos muito cuidado

e sigilo absoluto. Constantino espreita nossos passos." Licínio montou seu cavalo e dispensou o serviço de seus soldados: - Não precisam me acompanhar. Vou sozinho hoje. E desapareceu depressa na direção do ponto onde era esperado. Assim que alcançou o alto da colina, de onde podia avistar a cidade, apeou

e prendia o animal quando viu um homem encapuzado aproximar-se. Antes que pudesse fazer qualquer coisa, o homem sacou uma espada e feriu-o no coração. Apesar de ser um homem de vigorosa compleição física, Licínio sen-tiu o forte golpe e agarrou-se à túnica do agressor, desnudando-lhe a cabeça. De joelhos, já quase sem vida, olhou para o homem que o agredira e balbu-ciou:

-Marco...

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Foram suas últimas palavras, antes que seu corpo tombasse ao chão sem vida. Marco certificou-se de que cumprira devidamente suas ordens e foi de-pressa para trás de alguns arbustos, onde escondera seu cavalo.

Assim que o corpo físico de Licínio tombou, inerte, seu corpo espiritual se desprendeu. Indignado, ele gritava, sem ter total consciência de seu novo esta-do:

- Eu acabo com você, seu covarde. E bem próprio de seu senhor! Eu acabo com ambos.

E rapidamente, sem que Marco pudesse notar qualquer diferença, agarrou-se a ele, em espírito, e seguiram a galope para Bizâncio. Marco levava consigo o inimigo de Constantino, agora desencarnado.

ONZE A VIAGEM DE VOLTA a Bizâncio foi marcada por dificuldades inesperadas,

ladrões e animais perigosos. Marco estava perturbado e agitado. Executou as ordens de seu imperador, mas, ao contrário das outras vezes, em que nos cam-pos de batalha era obrigado a executar seus inimigos, aquela situação o deixara visivelmente vulnerável.

Demorou-se mais do que o previsto e, quando adentrou os portões da bela cidade oriental do império romano, suspirou aliviado, murmurando:

- Finalmente estou em casa! Apresentou-se imediatamente ao imperador, que o aguardava aflito. Ajoe-

lhando-se diante de Constantino, ouviu dele: - Levante-se, Marco. Estava a ponto de enviar alguém atrás de você. O que

aconteceu afinal? Desincumbiu-se da tarefa que lhe confiei às mãos? - Certamente, meu senhor. Sua ordem está cumprida, com todos ou cuida-

dos necessários. Meu atraso deve-se a problemas que tive no caminho de volta. - Que problemas? Foi seguido? Alguém presenciou? - Não, meu imperador, não fui visto por ninguém. Enfrentei alguns percal-

ços inesperados: animais selvagens me atacaram sem que pudesse pressentir-lhes a aproximação e também dois bandos de ladrões me cercaram. Consegui fugir de um deles, mas com o outro tive de deixar todos os meus bens, até mesmo meu cavalo.

- Não posso acreditar. Isso aconteceu aqui, no oriente? - Não, foi ainda no ocidente.

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Sentando-se outra vez em seu portentoso trono, o imperador segurou firme nos braços da suntuosa cadeira e comentou, triunfante, quase sem escutar o que seu fiel servidor lhe narrava:

- Então, sou finalmente o imperador absoluto. Fazendo sinal de reverência, Marco confirmou:

- Sim, o senhor agora é o único imperador de Roma. Constantino sorriu en-tre aliviado e satisfeito. Depois, levantou-se e tocou com firmeza o ombro do amigo, pedindo:

- Vá descansar, Marco, você merece e me parece muito cansado. Realmen-te sua viagem não deve ter sido fácil.

Marco agradeceu e se retirou sem conseguir parar de pensar que nada ha-via sido fácil naquela tarefa que cumprira para o seu senhor. Por diversas ve-zes, vinha à sua mente a imagem de Licínio em seus derradeiros instantes, e sentia-se atormentado por aquela lembrança.

Por sua vez, Licínio, cujo corpo espiritual ficara na sala do trono, em com-panhia de Constantino, sussurrou ao ouvido do imperador:

- Pensa que vai fazer bom uso de seu poder? Vou infernizar e destruir sua vida. Você não terá mais paz. Pensa que acabou comigo? Triste engano. Agora posso destruí-lo sem que perceba, e vou fazê-lo devagar, pouco a pouco, com-prazendo-me com cada gota de seu sofrimento.

Constantino remexeu-se no trono, experimentando inexplicável desconfor-to e súbita sensação de perigo. Licínio achegou-se ainda mais, colocando as mãos em volta do pescoço do imperador. Sem conseguir tocá-lo, gritou mais impropérios e tentou socar-lhe o estômago, também sem obter nenhuma reação de Constantino.

Quando ia agredir o opositor outra vez, escutou uma voz grave e pesada que vinha do fundo da sala:

- Não acha que vai atingir seu objetivo dessa forma, não é mesmo, Licínio? Tem muito que aprender, ainda, sobre sua nova condição.

O recém-desencarnado reagiu assustado: - Quem está aí? Pode me ver? Das sombras escuras da sala emergiu, devagar, um espírito envolto em

uma capa negra, que lhe cobria também a cabeça. Acompanhado de outros dois semelhantes a ele, aproximou-se e se apresentou:

- Sou Núbio. Estes são meus ajudantes Plínio e Normando. Licínio sentiu violento tremor percorrer-lhe o corpo espiritual.

Ainda assustado, gaguejou: - O... que... fazem aqui? - Estamos aqui para destruir os planos de Constantino.

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- Também são inimigos dele? - Não propriamente dele, mas isso não vem ao caso agora. Podemos ajudar

você a realizar seu desejo de vingança, de maneira inteligente e eficaz. - E se eu não quiser? Olhando fixo nos olhos de Licínio, aquele espírito ameaçador respondeu: - Junte-se a nós e nos obedeça, e garanto que realizará seus desejos. Caso

contrário, seremos obrigados a expulsá-lo daqui, pois poderia, eventualmente, atrapalhar nossos planos.

Intimidado, Licínio indagou: - Quem são vocês, afinal? Sorrindo, o encapuzado respondeu apenas: - Servidores das trevas. Fitando Licínio e aguardando por sua resposta, Núbio obrigou-o, através

da energia de seu pensamento, a ajoelhar-se diante dele. Ainda mais assustado, Licínio concordou:

- Está bem, está certo. Faço o que quiserem, desde que me permitam vin-gar-me dele.

- Terá a sua vingança, saboreando-a lentamente. Agora venha conosco. Licínio deixou a sala junto com os outros. Foram direto para os aposentos

de Fausta, a segunda esposa de Constantino e mãe de seus três filhos mais no-vos. Ela dormia sono profundo, mas estava inquieta. Seu corpo espiritual pai-rava sobre seu corpo físico. Licínio observou o fato e espantado indagou:

- O que é isso? Como ela pode ser duas ao mesmo tempo? Foi Plínio quem respondeu:

- Todos os homens encarnados são assim. Você também era. Agora, depois que morreu na Terra, tem somente seu corpo espiritual.

Licínio se examinava ao mesmo tempo em que olhava Fausta dormindo. Depois, Núbio convidou:

- Observe bem esses pontos colados ao corpo espiritual dela. Consegue re-conhecer alguma imagem?

Licínio observou atentamente, e depois respondeu: - São imagens? - Muitos são imagens que refletem os pensamentos que povoam sua mente.

E é aqui que reside sua tarefa, por ora. Encontre, na exteriorização dos pensa-mentos dela, alguma imagem que possamos utilizar para destruir Constantino.

Licínio continuava observando, sem entender a que Núbio se referia. Esta-va curioso demais para registrar suas ordens. Núbio, então, falou irritado:

- Plínio vai lhe dizer o que são essas imagens e como tirar proveito delas. Eu tenho mais o que fazer.

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Antes que pudesse sair, Licínio o deteve, agastado, mas contido: - Por que não posso ir com você? - Não seja estúpido. Você pode ser mais inteligente do que isso. Tem de

aprender a lidar com sua nova situação e podemos ensiná-lo bem depressa. Agora pare de me trazer problemas. Tenho muito a fazer e você não pode me ajudar com sua atual ignorância.

Fez breve pausa, depois continuou: - Se quer mesmo sua vingança, terá de agir do nosso modo. Está bem claro? Licínio balançou a cabeça em sinal afirmativo e Núbio desapareceu no cor-

redor. O primeiro, então, notou que havia outras entidades que andavam para todos os lados do castelo; alguns pareciam verdadeiros zumbis, já outros se assemelhavam mais a eles. Sem dizer nada, Licínio acompanhou Plínio, fazen-do tudo o que ele dizia. Sua tarefa principal era vigiar os pensamentos e atos de Fausta, para compreender-lhe bem as fraquezas e poder atuar sobre elas de acordo com seus interesses. Dia e noite espreitavam-lhe os passos, os atos e as palavras. A presença daquelas entidades de pesado teor vibratório foi aos pou-cos envolvendo Fausta em uma pesada energia, que a debilitava lenta e sutil-mente, tornando-a dia a dia mais desconfiada e insatisfeita.

Vários meses se passaram. Constantino se dedicava ao projeto de recons-trução de Bizâncio, e transformou-a na capital do império, ainda que contra a vontade dos senadores de Roma. Ele pouco viajava para a antiga capital, de-morando-se cada vez mais na cidade que escolhera para sua residência.

Estava satisfeito. Tinha nas mãos o controle absoluto do império, como sempre desejara, e queria que assim continuasse. Estava debruçado sobre a janela a contemplar os homens que trabalhavam, restaurando e modernizando construções, quando Marco chegou e saudou:

- Ave, César! - Meu amigo, o que o traz logo pela manhã? - Notícias de sua irmã. - O que tem ela? - Está gravemente doente. - O que houve? - Desde a morte de Licínio ela tem estado adoentada. Não se refez de todo

do choque da perda do marido. Constantino ficou calado algum tempo, depois disse: - O que se pode fazer? São reflexos indesejados, mas que eventualmente

acontecem em uma empreitada, ainda mais da envergadura na nossa, não é, Marco?

O outro concordou:

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- Sem dúvida. O que devo fazer? - Continue a cercá-la de tudo de que necessita. - Ela tem comentado com freqüência sua preocupação com as dissensões

entre os cristãos. Interessado, Constantino indagou: - Isso continua? Pensei que, após todos os nossos esforços, os cristãos esti-

vessem vivendo finalmente em paz... - Parece que isso ainda não aconteceu. Constantino sentou-se, tomou um belo cacho de uvas e ofereceu-o a Mar-

co, que recusou, agradecendo. Depois de saborear algumas uvas, o imperador perguntou interessado:

- Mas afinal, são sérias essas discordâncias? - Parece que sim. Elas estão crescendo e criando certa animosidade entre

diversos grupos e igrejas. Alguns bispos se atacam durante as pregações e até os seguidores mais distraídos estão começando a perceber o que se passa.

- Isso não é nada bom, Marco; ao contrário, essa notícia me preocupa mui-to. A última coisa de que preciso é de grupos antagônicos dentro do meu impé-rio. Sobretudo agora, que finalmente ocupo o trono absoluto.

Depois de breve pausa, ele indagou: - Você acha que essas discórdias tendem a aumentar? - Se nada for feito, acredito que sim. - Mas afinal, o que está causando esse antagonismo, essas divergências? - Não sei ao certo. Parece que são opiniões conflitantes, pontos de vista di-

ferentes sobre determinados aspectos dos ensinos do Cristo e até mesmo sobre o próprio Cristo.

Pensando alto, Constantino comentou: - Os cristãos unidos me interessam muito. Eles crescem mais e mais a cada

dia e precisam de uma força que os lidere, os conduza... Marco escutava atentamente. Constantino prosseguiu: - Quero ouvir os líderes. Organize audiências com os principais líderes cristãos. Quero saber tudo e ver como poderei ajudá-los neste momento. - Vou convocá-los imediatamente. Tocando no braço de Marco, o imperador reiterou: - Faça isso depressa. Meu reinado precisa ser marcado pela união e pela

concórdia. Como sempre, agradeço suas úteis informações. Marco esboçou sincero sorriso e saiu. Constantino foi até a janela nova-

mente e ficou a pensar. Depois balbuciou: - Vou dar um jeito nisso, ah, se vou!

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DOZE CONSTANTINO SE PREPARAVA para o encontro que teria com os principais

bispos cristãos. Apressado, estava com dois servos à sua volta quando Fausta entrou no quarto, dizendo:

- Bom dia, meu imperador. Ligeiramente contrariado, respondeu: - Bom dia. O que deseja, Fausta? - Pedi permissão para vê-lo ontem, mas como não me respondeu vim ao

seu encontro assim mesmo. Há dias não nos vemos. Temos muito que conver-sar, meu senhor.

- Hoje não, Fausta. Tenho compromisso importante com seleto corpo de lí-deres cristãos. Amanhã, quem sabe? Façamos melhor: assim que tiver algum tempo livre, eu aviso.

A mulher sentiu o sangue subir e queimar-lhe o rosto, à feição de um foga-réu que se acendesse próximo à pele; procurando manter o controle, disse:

- Já faz tempo que tendo tentado conversar a sós com você e nunca está disponível, exceto...

Constantino apenas fitou-a nos olhos, sem responder. Ela ia prosseguir quando Marco entrou informando:

- Todos já chegaram e o aguardam no grande salão. O imperador levantou-se de pronto saiu respondendo: - Ótimo. Vamos, então. Ao passar por Fausta, limitou-se a dizer: - Mando avisar assim que pudermos conversar. Quando ele deixou a sala, Fausta esmurrou a mesa de madeira e lançou um

vaso à parede; não satisfeita, arremessou também uma cadeira, quebrando uma das pernas. Em seguida, saiu como a pensar em voz alta:

- Ele nunca tem tempo para mim. Estou cansada disso. Nem eu nem meus filhos temos recebido atenção. Nenhuma! Isso não está certo... Os filhos preci-sam ficar com o pai...

Constantino entrou no grande salão e ocupou o trono. Durante horas escu-tou atentamente as argumentações dos bispos cristãos mais intransigentes e dos que seguiam as orientações de Ario4, provenientes de diversas regiões do império. Esforçava-se por entender o ponto fundamental da grande divergência que se instalara no clero de todo o império havia quase seis anos; uma questão

4 Presbítero cristão de Alexandria fundador da doutrina cristã do arianismo.

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que se agravava mais e mais, promovendo uma cisão entre os bispos e seus seguidores, começando a despertar o interesse do povo. A questão ariana tor-nou-se uma disputa teológica que agitou o mundo romano da época: como conciliar a divindade de Jesus Cristo com o dogma da fé em um único Deus? Ao final, sem alcançar concordância alguma, muito menos compreender a fundo o porquê de tanta controvérsia, Constantino confidenciou à Ósio, um dos bispos em quem mais confiava:

- Caro Ósio, não consigo compreender por que tanta discordância... Ósio aproximou-se bem dele e disse: - Não se preocupe, senhor imperador, podemos e devemos resolver isso de

maneira definitiva. Os arianos5 estão equivocados... Deus e Jesus são uma única pessoa que escolhe seus representantes na Terra, como o fez com o santo papa, e também concede a autoridade aos governantes, para que conduzam o povo...

Constantino fitou-o por um segundo. Depois, ergueu-se e pediu silêncio à grande assembléia, convocando:

- Meus irmãos, estou aqui há horas a ouvi-los com muita atenção. Compre-endo que tenham pontos divergentes, mas para que o Cristianismo cresça e se expanda com força precisam estar unidos. Essas sérias divergências que mani-festaram hoje deixam-me profundamente preocupado. E urgente maior união de todos - e o Cristianismo merece isso - inclusive de minha parte, como re-presentante máximo do poder da Terra. E não me furtarei a fazer o melhor pelo bem dos ensinos do Messias.

Fez prolongada pausa, caminhando de um lado a outro, depois prosseguiu: - É imperativo que nos reunamos novamente, dessa vez em Nicéia - cidade

de fácil acesso a todos - para realizar uma grande reunião de conciliação, de onde sairemos com uma linha única a ser seguida por toda a Igreja. Só que, dessa vez, convocaremos todos os bispos. O que dizem, senhores?

E olhando para o representante do papa Silvestre I, indagou: - O santo padre viria a essa ampla reunião de conciliação? - Sem dúvida, meu senhor. Suas intenções são das mais nobres, por que ele

se negaria? Ao contrário, estou certo de que incentivará a participação de to-dos.

Satisfeito, Constantino concluiu: - Pois muito bem, em breve nos encontraremos em Nicéia. Marco se en-

carregará de confirmar a todos a data exata de nosso encontro.

5 O arianismo foi a visão cristológica sustentada pelos seguidores de Ario nos primeiros tempos da Igreja primitiva, que negava a consubstancialidade entre Jesus e Deus, que os igualasse, e fazia do Cristo pré-existente uma criatura, embora a primeira e mais excelsa de todas, que encarnara em Jesus de Nazaré.

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Levantou-se, despediu-se de todos os bispos, um a um, e se retirou, dei-xando a assembléia em meio ao burburinho geral. Mais tarde, comentava com Marco:

- Eles precisam de alguém com visão de liderança. Alguém que represente a palavra máxima e que defina o rumo a ser seguido por todos.

Depois de pensar um pouco, continuou: - Estou impressionado com a organização que atingiram. Eles possuem

uma estrutura hierárquica montada, um corpo eclesiástico bem formado e fun-cionando. A única coisa de que precisam é ...

Marco fitou o imperador e tentou completar a frase: - Um Deus na Terra? Constantino sorriu e corrigiu: - Um representante fidedigno de Deus, Marco. O imperador calou-se, ficou pensativo, depois sorriu novamente ao dizer: - Eles precisam de um pouco mais de poder. Isso fortalecerá seus ideais e

será um excelente motivador a fazê-los unirem-se diante de meus interesses... - Poder?! - Isso mesmo, Marco. Um pouco de poder os fará mais confiantes. Quero

que o encontro não tarde a acontecer. Não posso perder tempo, abrindo possi-bilidades para que alguém use contra mim essa desunião dos cristãos...

Núbio estava colado ao ouvido de Constantino, repetindo-lhe diversas ve-zes o que queria que ele fizesse, e o primeiro quase lhe repetia as palavras:

- Um poder que seja capaz de centralizar todos os interesses da Igreja e que a torne de fato universal: a Igreja Católica Apostólica Romana.

Ao ouvir a última frase, a entidade das trevas exultou: - Isso mesmo, Constantino! Essa reunião será de suma importância para os

nossos interesses. Queremos todos lá... E aqueles que forem contrários às nos-sas determinações, destruiremos... Ninguém poderá opor-se à nossa vontade... Ninguém pode opor-se a você, Constantino, o grande imperador de Roma...

A entidade espiritual recalcitrante no mal soltou ruidosa gargalhada, que ecoou por todo o prédio, provocando nos mais sensíveis súbito temor.

Nas semanas que se seguiram, Constantino teve diversos encontros com o bispo ortodoxo Ósio, que tentou esclarecer-lhe melhor a natureza teológica das disputas que ameaçavam a unidade da Igreja. Depois dessas conversas, mesmo sem compreender a disputa teológica que envolvia a questão ariana, Constan-tino optou por defender a posição dos ortodoxos, aqueles que acreditavam que Jesus e Deus eram uma só pessoa. Jesus era Deus, e ele, na posição de impera-dor Romano, teria a autoridade máxima na Terra, concedida por Deus, especi-almente se também fosse um cristão confesso. A questão ariana representava

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um grande obstáculo à realização da sua idéia de um império universal, que deveria ser alcançado com a ajuda da uniformidade da adoração divina...

Adentrando o grande salão onde Constantino dialogava com Marco sobre suas deliberações, Ernesto e Angélica, envoltos em luminosas emanações, ca-minhavam em direção ao trono. De imediato, Núbio registrou a mudança sutil ocorrida nas vibrações do ambiente e comentou com Normando e Plínio:

- Devemos nos afastar. Há perigo próximo. Fitando o chefe, Normando in-dagou:

- Que tipo de perigo? - Sinto uma vibração suave enchendo pouco a pouco o ambiente. Afaste-

mo-nos agora, para não sermos afetados. Normando insistiu: - Como poderíamos ser afetados? Puxando os dois servidores do mal pela mão, ele respondeu ríspido: - Fique quieto, Normando... E sigam-me. Temos de nos afastar deste ambi-

ente. Vocês não sabem que, se uma entidade de luz nos tocar de alguma forma os sentimentos, podemos sucumbir aos seus apelos?

Dessa vez foi Plínio quem comentou: - Você deve estar exagerando... Não é possível... - Cale-se, idiota. Não tem noção do que está falando. Eu já vi isso aconte-

cer várias vezes, até mesmo com entidades mais poderosas mentalmente do que eu. Presenciei tal situação e vi aquele forte espírito prostrado de joelhos, implorando perdão! Foi uma cena patética e não admito a menor possibilidade de que um dia isso passe por perto de mim.

Os dois visitantes luminosos tudo observavam. Assim que as entidades das trevas se afastaram, Angélica comentou:

- Quanto mal ainda causarão! Não podem compreender que o maior mal fazem a si próprios... Sabe quem é esse Núbio?

- Eu o conheço, vem há muito tempo lutando contra o Cristianismo. Pre-senciei muitos cristãos sinceros sofrendo profunda dor, impingida por Núbio e seus seguidores diretos. Ele, por sua vez, apesar de muito independente, res-ponde também a uma entidade ainda mais desenvolvida intelectualmente do que ele.

- Como ficaram assim? - Desenvolveram o conhecimento, mas nada colocaram em prática, e se

perderam no orgulho e na vaidade. O amor, essa jóia do coração que tempera e controla nossos desvarios, anda distante de suas almas.

- Ainda assim, em germe eles trazem o amor dentro de si, não é?

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- Sem dúvida alguma. Essa cena que Núbio descreveu já vi igualmente a-contecer muitas vezes, e só é possível graças às sementes de sentimentos ele-vados que todos os homens trazem no íntimo.

Angélica calou-se, pensativa. Ernesto acercou-se de Constantino, acompa-nhando sua conversa com Marco:

- Estou decidido, Marco. Abafarei a questão ariana e darei poder ao clero. Controlarei a Igreja, você verá.

Marco não respondeu, ouvindo atentamente. Ernesto manteve-se calado por mais algum tempo, depois suspirou fundo e falou:

- Infelizmente, Angélica, acho que não poderemos fazer mais nada. Cons-tantino está firmemente decidido, totalmente influenciado por Núbio. Ele não só o deixou dominar sua mente, como sente a falta da entidade, quando ela se afasta. Estão permutando energias o tempo todo.

- E não podemos mesmo fazer nada? Ernesto meditou um pouco, depois respondeu:

- Faremos uma última tentativa esta noite. Mas Constantino tem seu livre- arbítrio e está optando por deixar que os aspectos que ele tem de combater nesta encarnação, como condição para realizar sua tarefa sobre a Terra, domi-nem sua personalidade, tomem seu coração e conduzam suas decisões. Está totalmente sob o domínio de Núbio.

- E o que faremos? Ele tem um papel fundamental a cumprir, auxiliando a fortalecer o Cristianismo e sua expansão, contornando as dissensões e fortale-cendo seus princípios puros e simples! Os éditos de tolerância em relação aos cristãos que ele já publicou e outras ações que já implementou em favor do Evangelho confirmam que caminhava na direção certa.

- Sem dúvida, Angélica. Ele iniciou sua trajetória, mas os riscos que corria eram grandes.

- Não estava preparado o suficiente? - Ele tinha todas as condições para realizar sua tarefa. Mas, para isso, deve-

ria renunciar a vícios mentais de outrora. Em especial abrir mão da vaidade, e ela fala muito alto ainda na alma de Ferdinando...

- Que poderemos fazer? - Vamos aguardar para tentar falar com ele durante o sono. - E se não conseguirmos? - Então, teremos de deixá-lo entregue às conseqüências das próprias deci-

sões. - E quanto ao Cristianismo? Será prejudicado! - Constantino não decide sozinho. A organização eclesiástica que se de-

senvolveu no contato dos convertidos ao Cristianismo com as estruturas roma-

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nas vem, ao longo das décadas, contaminando de forma negativa a pureza da Boa Nova. Os homens, devido às suas escolhas equivocadas, afastam-se cada vez mais da fonte verdadeira dos ensinos de Jesus.

Como Angélica permanecia calada, ele prosseguiu: - Nada podermos fazer para impedir as intenções de Constantino. Mas te-

nha certeza, de que outros virão para lutar por trazer o Cristianismo de volta à pureza original. E certamente as trevas poderão retardar, mas não irão impedir que o Cristianismo seja triunfante, afinal.

Ouvindo Ernesto, e antevendo a situação dolorosa que se delineava, Angé-lica indagou, com os olhos rasos de lágrimas e o coração comovido pela situa-ção humana:

- Mas quanta dor a humanidade ainda terá de viver? Tocando-lhe as mãos com amor de pai, Ernesto respondeu:

- Isso eu não saberia dizer... Naquela noite Ernesto tentou despertar o corpo espiritual de Constantino,

adormecido sobre seu corpo físico. Mas ele não acordava. A certa altura da delicada operação, Angélica indagou:

- Por que ele não acorda? - Vê os fios negros que o ligam às entidades das trevas? - Sim. - Eles o estão entorpecendo para que não desperte. - Continuam agindo, ainda que a distância... - Sim. Eles jamais desistem, uma vez que Constantino lhes elegeu a com-

panhia conscientemente. Depois de muito tempo em prece, Ernesto finalizou suas atividades, convi-

dando: - Vamos, Angélica, precisamos ir. Não poderemos ajudar agora. Prepare-

mo-nos para prosseguir com o socorro àqueles que se dispuserem a cooperar com Jesus. Ele busca tais servidores, jamais constrangendo alguém a segui-lo.

Com angústia na voz, Angélica lamentou: - E Núbio prosseguirá com suas intenções tenebrosas... - Não permita que o triste quadro que presenciamos desvie seu coração da

serenidade e da confiança em Deus. O Pai tem tudo sob o seu comando. Os dias de ação livre de Núbio estão acabando.

- Como assim? - Ele logo viverá nova experiência na Terra, encarnando de novo. Confie-

mos na Providência Divina. Agora temos de voltar... E as duas entidades partiram, deixando atrás de si um intenso rastro de luz.

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TREZE No VERÃO DE 325, em Nicéia, Constantino presidia a primeira conferência

mundial dos bispos da igreja cristã . Estavam presentes cerca de 250 bispos de todo o império, além de padres acompanhantes e diáconos. Foram oferecidas aos bispos as comodidades do sistema de transporte imperial - livre transporte e alojamento de e para o local da conferência - para encorajar o maior número possível de audiência. E o objetivo foi atingido, pois todo o corpo eclesiástico da época compareceu em peso àquele que seria um dos marcos da fundação da Igreja Católica6.

O imperador abriu a reunião. - Sejam bem-vindos. Como já devem saber, nosso único propósito é resol-

ver disputas internas e fortalecer o Cristianismo, para que ele cresça ainda mais. Todos sabem que há muito venho me esforçando por contribuir com a expansão desta bela religião. Sou cristão e toda a minha família também o é. Desde que comecei a governar, tenho dado atenção especial às questões cris-tãs. Muitas vezes temos deparado com opiniões divergentes e temos de saná-las, para o bem geral. Esse é nosso objetivo aqui, e para alcançá-lo vamos ou-vir a todos.

Um dos bispos que seguia a visão ariana de que Jesus era um enviado de Deus, mas de natureza exclusivamente humana, falou baixinho ao colega a seu lado:

- Será que ele está de fato bem intencionado? Sinto algo suspeito... O outro respondeu: - Será? Ele tem dado boas contribuições para o Cristianismo. Veja o Edito

de Constantino. Com ele, o domingo ficou definido como o dia de adoração a Deus. Recorda-se de como estava difícil essa definição? A ala judaica queria o sábado, e os romanos preferiam o domingo.

- Lembro bem como estava ficando confuso. Mas igualmente não esqueci outros comentários que escutei sobre a escolha do domingo.

- Que tipo de comentários? - Parece que foi escolhido também porque é o dia do sol, do culto do Sol

Invictus, celebrado pelos romanos. Por isso desconfio das reais intenções de Constantino e não me sinto totalmente convencido.

O outro se calou, pensativo. Os discursos começaram. Os primeiros a ar-gumentar foram os defensores da questão ariana. A princípio teve a palavra o

6 Católico quer dizer, em sua acepção etimológica, universal.

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próprio Ário, seguido de seus discípulos mais devotados, Eusébio da Nicomé-dia e Eusébio de Cesaréia. Depois de eloqüente e entusiasmada exposição dos arianos, foi a vez dos ortodoxos. Vários deles falaram, especialmente Ataná-sio, diácono novo e companheiro de Alexandre, de Alexandria, lutador vigoro-so contra os arianos; depois Eustáquio de Antióquia e Macário, de Jerusalém. Não obstante, muito antes de terminarem as discussões, Constantino tinha to-mado todas as decisões concernentes àquele encontro. Dali sairia a forte Igreja, comandada indiretamente por ele.

Esgotados os debates, Constantino propôs uma votação. E todos foram a favor da posição ortodoxa, com exceção de Ário, Eusébio e Eusébio de Cesa-reia. A sentença para os perdedores foi dramática: os três foram exilados, as obras de Ário condenadas à fogueira e todos aqueles que porventura as possu-íssem seriam mortos. O direito à liberdade intelectual foi vencido pela exigên-cia de conformidade espiritual da parte dos membros da Igreja à extensa e crescente organização eclesiástica. O Estado romano concedeu às deliberações daquele corpo eclesiástico o poder imperial.

Por fim, afastada em definitivo a ameaçadora questão ariana, os participan-tes estabeleceram a profissão de fé: os vinte cânones que deveriam nortear a Igreja a partir daquela data. Nascia, assim, a Igreja Católica Apostólica Roma-na. Roma tomou posse do Cristianismo e subjugou-o para usá-lo a seu favor, com a anuência do corpo eclesiástico.

Ao final, o imperador decretou: - Os que resistirem ao divino juízo deste sínodo podem preparar-se para

um exílio imediato. Depois de seis anos de disputa, coube às decisões do Concilio de Nicéia

manter e perpetuar a unidade da fé. Os éditos posteriores de Constantino visa-vam infundir em seus súditos a aversão pelos arianos.

A reunião foi encerrada. Um a um os presentes foram deixando o grande salão, que ficou frio e vazio. Constantino, que permaneceu por longo tempo em seu trono, sentiu calafrios a lhe percorrerem o corpo. Obtivera o que dese-java, mas por alguma razão que desconhecia não se sentia feliz. Algo o inco-modava. Ao seu lado, Núbio gargalhava satisfeito. Ele, sim, sentia satisfação total pelos objetivos atingidos. Naquela noite tinha consigo uma legião, e ria afirmando:

- Venceremos o Nazareno! Vocês podem acreditar em mim. Vejam a nossa vitória! De hoje em diante, afundaremos o Cristianismo em dogmas e mais dogmas. Ele jamais se erguerá de novo!

E continuava gargalhando espalhafatoso, admirado pelos seus seguidores.

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QUATORZE NÃO DEMOROU PARA que a notícia chegasse aos ouvidos de Constância,

que, acamada, recebeu-a com indizível sofrimento: - O que me diz, Helena? Tem certeza de que isso é verdade? - Infelizmente sim, senhora. - Não é possível! Meu irmão não está agindo corretamente... Ele deveria

tentar compreender melhor o que se passa junto aos cristãos, e não simples-mente admitir que dogmas e regras estranhos aos ensinos do Mestre sejam inseridos com essa naturalidade.

Calou-se momentaneamente. Observou o céu pela janela e pediu: - Abra um pouco a janela, Helena, que o ar está me faltando. Depois de a-

tender sua senhora, Helena voltou e sentou-se outra vez ao seu lado. Constância suspirou profundamente e disse quase num

gemido: -Ai, meu Deus... Assustada, Helena indagou solícita: - Não se sente bem? Quer que eu chame alguém? Fez menção de erguer-se, mas Constância segurou-lhe o braço: - Não, minha filha, não precisa. Estou profundamente entristecida. Sei que

meu irmão está equivocado e se entrega cada vez mais a um fundo abismo. Olhando-a com ternura, Helena admoestou: - A senhora precisa reagir! Desde que Licínio partiu a tristeza instalou-se

em seu olhar, em sua voz, em seu coração. É necessário que se reequilibre, minha senhora. Temos muito trabalho na seara de Jesus.

Com os olhos rasos de lágrimas que logo lhe desciam pela face, ela esbo-çou ligeiro sorriso, dizendo:

- Querida Helena, tem toda a razão. Sei que nossas tarefas são extensas e que muitos dependem de nosso trabalho... Mas os golpes têm sido duros...

Sem responder, Helena segurou firme as mãos de Constância e apertou-as carinhosamente entre as suas. A segunda prosseguiu:

- E agora, mais esse golpe que tanto me entristece... Vejo com grande re-ceio as mudanças que Constantino está impondo aos ensinos cristãos. Temo pelo futuro daqueles que terão somente esses ensinos deturpados que começam a tomar consistência em nosso meio; e agora, ainda mais, sancionados pelo próprio imperador... E os bispos, os presbíteros, como podem aceitar tamanha invasão do poder romano?

- Acho que até estão contentes...

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- Mas por quê? Não entendo... Inspirada por Angélica, Helena respondeu: - Muitos haverão de se levantar para lembrar aos cristãos as verdadeiras

lições de Jesus. Não se preocupe. Reconhecendo o tom profético das palavras da serva e amiga, Constância

indagou: - O que está querendo dizer? - Que não podemos desanimar. - Mas estão calando Ário e seus seguidores, estão calando a verdade... - Não importa. Alguns poderão se calar, mas outros se levantarão e a ver-

dade prevalecerá! Temos de confiar em Deus e fazer a nossa parte! A verdade nunca ficará sufocada, por mais que o tentem. Ela prevalecerá!

Com o corpo enfraquecido pelos sucessivos golpes emocionais que sofrerá, Constância acomodou-se no travesseiro e suspirou, depois de breve pausa:

- Ah, minha querida Helena, estou cansada. Sinto-me só; tenho apenas vo-cê e meu filho; dói-me a saudade de Licínio, assim como me magoam a dis-tância e a indiferença de Constantino; mais ainda, seus desmandos e suas deci-sões equivocadas com relação ao nosso Mestre. Ele age como se quisesse a-gradar aos cristãos, mas está traindo Jesus, e não sei por que faz isso...

Não conseguiu prosseguir. Envolvida pela dor, entregou-se a convulsivo pranto. Helena trouxe-lhe água e avisou:

- Vou preparar-lhe um chá para que se acalme, senhora. Não pode continu-ar a se martirizar assim. Seu corpo está cada vez mais fraco e temo seriamente pela sua saúde... Agora tente descansar, eu já volto.

Sendo tarde da noite e preocupada com a situação de Constância, a serva logo providenciou a bebida calmante, e sugeriu:

- Tente dormir agora. O chá deverá ajudar, procure descansar. Arrumando as cobertas sobre a cama, voltou-se para a dama da

alta sociedade romana e perguntou: - Quer que eu fique aqui fazendo-lhe companhia? - Não, querida, estou bem. Vá se deitar. Você tem se dedicado muito e

também deve descansar. Não insista, por favor. Eu realmente preciso ficar so-zinha.

Percebendo que seria inútil insistir, Helena foi para seu quarto, ao lado do de Constância, e ajoelhando-se ante o leito suplicou a Jesus ajuda e amparo, entristecida pelos rumos que Constantino imprimia ao movimento dos cristãos. Depois, sentindo-se suavemente confortada, deitou-se e adormeceu. Logo seu corpo espiritual despertou e viu Angélica, que a convidou:

- Temos trabalho a fazer, venha. Constância precisa de toda a nossa ajuda.

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Ambas foram até o quarto da irmã de Constantino, ainda em dificuldade para repousar, com um sono leve e angustiado. Estenderam as mãos sobre o seu corpo, e após uma transferência abundante de energia ela se acalmou e adormeceu pesadamente. Logo o corpo espiritual de Constância pairava, em repouso, sobre seu corpo físico. Carinhosamente Angélica a chamou:

- Constância, somos nós, seus amigos, que aqui estamos e precisamos fa-lar-lhe.

Aos poucos, Constância em espírito, ganhou lucidez: - Não me sinto bem... Estou fraca. Amparando-a, Angélica aconselhou: - Tome este copo de água e espere um pouco. Deverá auxiliar. Minutos depois de sorver toda a água, Constância parecia um pouco mais

fortalecida; fitando as amigas disse, entre lágrimas: - É bom vê-las... Estou precisando de ajuda... Enlaçando-a com ternura de

mãe, Angélica afirmou: - Por isso estamos aqui, para ajudá-la. Venha conosco. - Para onde vamos? Vão me levar embora? Está na hora de deixar o corpo

físico? - Não, querida, ainda não. Tem muito trabalho a fazer e sua presença na

Terra é por ora indispensável. Os cristãos precisam que lhes infunda fé e espe-rança para ajudá-los a não esquecer o belo e simples Evangelho de Jesus. Va-mos buscar auxílio para fortalecê-la na seqüência de sua tarefa.

Segurando Constância pela mão, em alguns minutos estavam diante de um belíssimo vale, cheio de lindas flores, pássaros voando por toda parte e lindos animais correndo de um lado a outro em meio à vegetação. Seguiram por um caminho cercado de árvores frondosas. Mais adiante, surgia uma cidade lumi-nosa, e melodiosa música soava pelo ar. À medida que ouvia a música e sentia as suaves e harmoniosas vibrações do ambiente, Constância sentia-se mais forte. Angélica indagou:

- Sabe onde estamos? - Não me lembro. Sei que conheço este lugar, ele me é tão familiar... Con-

tudo, não consigo lembrar. Só sei que me sinto muito bem aqui. - Este é o seu lar, Constância. A dama romana fitou-a, buscando na memória aquilo que Angélica lhe di-

zia, e por fim sorriu feliz como há muito não fazia. - E claro! Meu lar... Como poderia esquecer tão abençoada morada espiri-

tual? Caminharam animadas. Constância, recordando-se cada vez mais de seu

lugar de origem, recobrava mais e mais as energias. Chegaram em uma casa simpática, rodeada por lindos jardins. A construção era sóbria e ampla, com

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varandas circundando-a. Assim que se aproximaram, uma simpática senhora apareceu na porta e saudou:

- Que alegria, Constância chegou! Foram recebidas na bela residência, cujo interior também era adornado

com objetos de arte de suave beleza. Constância reconhecia cada objeto, cada quadro, cada móvel, lembrando-se com clareza de sua antiga casa.

Sentaram-se, acolhidas por amigos devotados. A conversa corria animada quando Ernesto chegou, feliz, e abraçando a visitante falou:

- Que bom que conseguiram trazê-la hoje. Há dias estamos tentando, mas seu estado físico não permitia; foi preciso fortalecê-la primeiro.

Enquanto conversavam, música sublime ecoava pelos ares. Aquele mundo elevado e belo era o lar de origem de Constância. A palestra continuou por longo tempo, e Ernesto ia relembrando a trabalhadora da Terra de seus com-promissos e desejos antes de retomar o corpo físico que ora ocupava no plane-ta. Com a memória aclarada ela disse, ao final:

- Estou envergonhada, Ernesto. Como pude deixar-me abater tanto? - Não se sinta envergonhada, Constância. O torpor do esquecimento que

nos domina no orbe representa grande desafio e acentuado perigo. Disso, todos sabemos. Mesmo com seu nível de elevação e consciência, estar mergulhada no corpo denso da Terra envolve riscos. Por isso, estamos aqui para ajudar. Reavivar suas lembranças fez-se imperioso.

Levantando-se, ela disse: - Agora que me recordo vivamente de tudo, estou pronta para retornar.

Mais do que nunca, os compromissos que me levaram ao planeta chamam por mim.

Comovida, ela disse, fitando seus mais doces afetos: - Agradeço-lhes por não me abandonarem nunca, mesmo nos meus mo-

mentos de fraqueza. Muito obrigada. Agora, preciso retornar. Helena e Angélica acercaram-se dela, e a segunda disse: - Pois então vamos, que o dia está prestes a raiar na Terra. Abraçando os

amigos um a um, Constância se despediu e partiu com as companheiras. Assim que retornaram, ela acomodou-se sobre seu

corpo físico. Olhando com carinho aquelas que eram suas irmãs de longas ca-minhadas sobre a Terra em outros tempos, comentou:

- O adensamento da matéria chega a ser doloroso, porém não vou mais fra-quejar. Estou aqui para trabalhar e é isso o que vou fazer.

Após abraçar as duas com carinho, ajustou-se melhor ao corpo físico. As outras impuseram-lhe novamente as mãos, envolvendo-a em intensa transfusão

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de energias. Logo o dia amanheceu e raios de sol entravam pelas venezianas da ampla janela.

Constância despertou, sentou-se na cama e relembrou aquela experiência maravilhosa que poderia ser tomada por um sonho. Então balbuciou:

- É claro que não foi um sonho. Antes que terminasse, Helena entrou no aposento e disse: - Como se sente, senhora? Constância levantou-se e abraçou Helena com ternura, sorrindo ao dizer: - Ora, minha irmã, não me chame de senhora nunca mais... Sua humildade

me comove. Helena, que também mantinha total lembrança da vivência espiritual que

ambas haviam partilhado, sorriu e disse, limpando as lágrimas: - Como Jesus é bom! Sempre nos envia ajuda... A partir daí Constância entregou-se ao trabalho pelo Evangelho de maneira

incansável. Esforçou-se por esquecer as próprias dores e inquietações e lan-çou-se ao serviço em favor dos necessitados. Sua primeira atitude foi procurar alguns amigos mais próximos e propor-lhes:

- Não me sinto bem na igreja de Tessalônica. Se isso já não acontecia an-tes, agora não consigo ficar lá dentro. Não reconheço os ensinos de Jesus nas palavras do bispo; elas me soam vazias.

- Sinto da mesma forma - concordou Helena. - Então vamos começar nossa própria Igreja. Olhando-a com estranheza,

Juliano indagou: - Será mesmo o melhor a fazer, mãe? Sem titubear, ela prosseguiu: - Sim, meu filho. Além do mais, não posso aceitar o fato de que estarmos

proibidos de receber as orientações dos nossos irmãos espirituais. Isso é de grande importância para podermos saber que decisões tomar nos momentos mais difíceis, ou diante de um grande desafio. Mas estamos proibidos... É la-mentável, e precisamos adotar uma atitude firme.

- Mãe, você sabe que, por ordem de Constantino, qualquer um que ensine de modo diferente dos dogmas definidos em Nicéia poderá pagar até com a morte!

- Vamos confiar em Deus e fazer nossa parte. Se isso tiver de ocorrer, é porque é necessário. Olhando para Helena, perguntou:

- O que acha, amiga? - Temos como fazer. Muitos de nossos irmãos aguardam essa oportunidade,

pois estão igualmente insatisfeitos com os rumos que a Igreja vem tomando. - Pois então, está decidido. Vou encontrar um bom lugar e aviso a todos.

Não quero mais perder tempo.

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Em uma semana um pequeno grupo de doze pessoas chegava para a pri-meira reunião. Recebidos por Helena, foram se acomodando. Eliseu indagou:

- Onde está Constância? Ela não vem? - Já deve estar chegando. E nos traz uma grata surpresa. - Que surpresa será essa? - Eliseu estava curioso. - Eles logo estarão aqui. - Eles? Então se trata de uma pessoa? Antes que Helena pudesse responder, Constância apareceu à porta; sorri-

dente, falou enquanto entrava: - Que a paz de Jesus envolva a todos. Trouxe uma surpresa... Assim que

ela entrou, viu-se no vão da porta a figura suave de Ário, que entrou em seguida e também cumprimentou: - Que a paz de Jesus esteja conosco, irmãos. Doces emoções envolveram os presentes. Ário cumprimentou um por um,

osculando-lhes as mãos com genuína humildade. Depois, sentou-se ao lado de Constância, na frente da sala, diante de todos. Ela ergueu-se e disse:

- Meus irmãos, boa noite. É com muita alegria que estamos aqui nesta noi-te para iniciar uma nova Casa de Jesus. Neste lar nos encontraremos para orar e estudar o Evangelho, bem como compartilhar os desafios da jornada terrena. Vamos também ouvir nossos irmãos espirituais, como temos feito desde que Jesus voltou ao seu lar luminoso nas dimensões mais elevadas. E é aqui que receberemos, ainda, todos aqueles que necessitem de socorro e amparo, sejam de caráter material ou espiritual. Para dar início às nossas modestas atividades, convidamos o bispo Ário para estar conosco. E ele, gentilmente, aceitou. A ele solicitamos, então, que faça a prece de abertura, dando por iniciada nossa reu-nião...

O bispo Ário, coberto por suaves luzes que desciam sobre ele e depois se expandiam para todo o grupo, pronunciou fervorosa oração, rogando as bên-çãos do Mais Alto para aquela tarefa que se iniciava na seara de Jesus. A co-moção tomou conta de todos. Não tardou e a doce Angélica se materializou entre eles, diante dos olhos dos presentes. Dela emanava intensa luz cumpri-mentou a todos:

- Meus irmãos amados, nós, do plano espiritual, estamos felizes pela inici-ativa a que estão se dedicando. E para nós motivo de grande júbilo. Manter acesa sobre a Terra a chama do amor ao próximo, da humildade, da sincerida-de de propósitos e do esforço de auto aperfeiçoamento é o caminho para pre-servarmos a pureza dos ensinos do Evangelho do Mestre Jesus. Abracem este propósito com determinação, pois muitos serão os obstáculos que enfrentarão. Não desanimem, estaremos sempre com vocês.

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Várias outras entidades espirituais podiam ser vistas pelos presentes, emi-tindo muita luz, que agora banhava toda a pequena sala onde se abrigava o grupo. Os trabalhadores do espaço, vindos em nome de Jesus, impunham as mãos sobre os encarnados e lhes infundiam energias físicas e perispirituais, enchendo-os de esperança e confiança. Depois, foram desaparecendo, um a um. Por fim, Angélica se despediu:

- Permaneçam ligados aos ensinamentos de Jesus, não apenas conversando sobre eles, mas, como fiéis servidores do Mestre, seguindo seus exemplos na vida de cada dia. Fiquem em paz.

Depois que Angélica desmaterializou-se, Constância e Ário continuavam a vê-la, agora no plano espiritual. Ele fez sinal para que Constância assumisse novamente, mas ela, dominada pela emoção, pediu:

- Não posso... Poderia conduzir a reunião de hoje, for favor? Ário levan-tou-se e falou, sob forte envolvimento espiritual, das

belezas do mundo espiritual evoluído, e da maravilha que representava pa-ra todos os homens a possibilidade de estarem em constante contato com os espíritos, para serem por eles orientados e dirigidos. Lembrou, ainda, que ou-tros tipos de espíritos rondam os homens e que estar com Jesus sempre é fun-damental para a defesa contra sua influência. Concluiu a bela explanação lem-brando as palavras de Jesus:

- "Quem não é por nós, é contra nós." Sigamos Jesus com todo o nosso co-ração. Estejamos dispostos a viver seus ensinos e a seguir-lhe os exemplos. Ele estará sempre conosco, conforme prometeu, "até a consumação dos séculos".

Depois de encerrada a reunião, permaneceram ainda longo tempo em ele-vada conversação, escutando de Ário as informações sobre os últimos aconte-cimentos de Nicéia e a iminente realidade de seu exílio. Ele os orientou sobre diversas atividades que passariam a executar na Casa e sugeriu:

- Façam desta mais uma Casa do Caminho e recebam todos os necessitados na luta terrena.

Antes de sair, entregou vários de seus textos a Constância, dizendo: - Eis aqui os pergaminhos que me solicitou. São diversos textos que grafei

sobre o que tenho aprendido e refletido sobre o Evangelho, sobre Jesus e sobre a natureza do Mestre. Tenham cuidado, pois Constantino proibiu que sejam lidos. Tenho apenas esta cópia e mais uma, que está devidamente guardada. Façam bom uso.

Segurando os textos com cuidado, Constância respondeu: - Vamos cuidar muito bem, querido amigo. Muito obrigada pela sua pre-

sença entre nós nesta noite e pelos seus ensinamentos. Olhando-a com ternura, ele se dirigiu a todos:

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- Queridos irmãos, não se desviem da simplicidade do Evangelho. Meus dias na Terra terminarão em breve. Fortaleçam-se no estudo, na oração e no trabalho em favor do bem comum. Amem-se uns aos outros e ensinem o E-vangelho com o exemplo de suas vidas.

Despediram-se com um abraço, retornando todos aos seus lares. A pequena casa brilhava com grande intensidade, e embora não pudesse ser registrado pelos homens da Terra, seu brilho era visível do espaço. Da colônia espiritual em que se encontrava, Ernesto vibrou de alegria:

- Mais um ponto de luz sobre a Terra! Graças a Deus! Enquanto tantas lu-zes se apagam rapidamente, algumas se acendem e outras lutam por brilhar apesar dos desmandos eclesiásticos. Que Jesus nos abençoe e ajude!

QUINZE COM o PODER IMPERIAL recebido, o corpo eclesiástico dos bispos ortodoxos

ganhou grande força. Aqueles que não aceitavam as novas orientações e insis-tiam em seguir as idéias de Ário eram perseguidos, humilhados, exilados. To-das as obras escritas por ele que encontraram foram queimadas, inclusive as do próprio Ário. A única que restou foi a que estava em poder de Constância, que foi poupada pelo imperador. Ele fez vistas grossas às reuniões que a irmã lide-rava. Quando o bispo Ósio lhe cobrava uma atitude, argumentava:

- Por que se incomodam tanto? O que faz Constância de mal? Aquela pe-quena casa recebe doentes e pessoas famintas e tornou-se a razão de viver de minha irmã; não quero que a impeçam. Deixem-na viver. Ela já sofreu demais; não quero que a aborreçam.

Osio se irritava com a atitude do imperador, e não obstante usasse todos os argumentos de que dispunha, não conseguiu mover em nada as disposições de Constantino que, ao contrário, de quando em quando visitava a Casa do Cami-nho que a irmã coordenava, deixando-a profundamente feliz.

Por outro lado, Fausta enchia-se cada vez mais de mágoa e ressentimento pelo marido, e envolvida por Licínio, que não a deixava um só minuto, alimen-tando-se das energias deletérias que o ódio dela gerava, sentia seu rancor au-mentar a cada dia.

Naquela manhã ela fazia o desjejum em companhia do marido, determina-da a falar-lhe da necessidade de dar maior atenção aos filhos, quando Crispus entrou na sala, satisfeito, informando:

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- Pai, acabamos de fechar uma fantástica negociação com os persas e com-pramos uma frota de navios inteiramente nova. Vão entregá-la em cerca de um ano, e poderei acompanhar pessoalmente o acabamento das naus. Era isso que você queria?

Satisfeito, Constantino convidou-o: - Sim, era isso mesmo. Agora venha, sente-se ao meu lado para um desje-

jum conosco. - Eu já tomei... - Então não me prive da sua companhia. Venha, sente-se ao meu lado,

meu filho. Estou orgulhoso! Você me lembra a mim mesmo, na sua idade... Fausta tinha os olhos falseando de ódio, e naquele momento decidiu, in-

centivada por Licínio, que tomaria uma atitude firme contra o jovem, ou ele teria toda a atenção do imperador e seria seu sucessor natural. Ela não poderia deixar isso acontecer. Licínio lhe soprava ao ouvido:

- Um de seus filhos deve ser o sucessor de Constantino, e não esse Crispus, arrogante como o pai.

Inconformada e profundamente irritada, ela não se conteve. Erguendo-se, olhou para o imperador e comunicou:

- Preciso sair agora, meu senhor. Ele, surpreso, comentou: - Mas ainda não terminou de comer, e disse que queria falar-me. - O apetite me deixou, e igualmente o ânimo de conversar. Não me sinto

bem, preciso retirar-me, com o seu consentimento, senhor. - Você o tem. E permaneceram os dois em longa conversação de teor militar. Já em seus

aposentos Fausta desatou, colérica, a gritar impropérios contra o imperador; chegou mesmo a assustar sua serviçal, acostumada a suas crises de raiva cons-tantes. Depois de esbravejar, atirar objetos e se descabelar no acesso de raiva, sentou-se diante do espelho e observou-se exausta. Licínio, satisfeito pelos resultados que obtinha, insistia tenaz nas provocações. Aproveitando o mo-mento de aparente calmaria, aproximou-se e sussurrou-lhe:

- Você está ficando velha. Seus filhos estão crescendo e, se não tomar uma atitude agora, acabará por perder o marido e seus filhos ficarão sem o trono. Olhe para você. Acha que ele não vai trocá-la em breve por uma mulher mais jovem e bela, como fez ao deixar a primeira esposa por você? Preste atenção. Você precisa fazer alguma coisa, e logo. Acabe com Crispus! Tire-o de seu caminho o quanto antes. Não perca mais tempo.

Totalmente envolvida pelas sugestões de Licínio, que tomava por suas, er-gueu-se resoluta.

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- É isso mesmo. Chega de gritos e choro. Vou tomar a atitude que já deve-ria ter tomado! Vou afastar Crispus de meu caminho, ah, se vou!

Parando por um instante, pensou em voz alta: - Mas como o farei? Outra vez Licínio sussurrou:

- Não se preocupe. Tenho um plano perfeito para você destruir o pai e o fi-lho ao mesmo tempo.

Ela acatou de imediato a sugestão. - Logo terei uma idéia brilhante para acabar com os dois... Licínio, sorrin-

do sarcasticamente, murmurou: - Como é estúpida e fraca... Dias depois, Constantino embarcava com Crispus para acompanhar de per-

to a construção das naus. Nutria profunda admiração e grande paixão pelo mar e por forças bélicas marítimas. Apreciava as armadas gigantescas, com seus aparatos bélicos e suas velas enormes, pesadas; tudo isso o fascinava.

O imperador caminhava animado pelo corredor do imenso palácio de Bi-zâncio, quando Fausta o chamou, desejando despedir-se do esposo.

- Então está de partida, meu senhor? - Já havia mandado lhe avisar. - Eu sei. Estou aqui para despedir-me e desejar-lhe uma viagem segura. - Eu terei, obrigado. Aproximando-se mais do esposo, ela sussurrou-lhe: - Tenha cuidado, meu senhor, muitos olhos o espreitam, intentando destru-

ir-lhe a paz e a alegria. São seus inimigos mesmo aqueles que comem com o senhor!

Assustado, o imperador afastou-se um pouco e indagou: - O que diz? Ela insistiu: - Peço-lhe tão-somente que tenha cuidado. Aqueles em quem confia pode-

rão traí-lo, meu imperador... Segurando-a pelo braço com firmeza, ele indagou novamente, perturbado: - Explique o que está tentando dizer. Fale de uma vez! O que está insinu-

ando? Sabe alguma coisa? O quê? Muito suave e simulando preocupação, ela comentou: - Os servos dizem muitas coisas por estes corredores, senhor. O vaivém de

informações é incessante... Diz-se que Crispus alardeia aos ventos que deseja sucedê-lo no trono do império romano. Fala-se mesmo que já está preparado para tal, quando a hora chegar.

Fitando-a incrédulo, ele comentou: - E ele será, sem dúvida, meu sucessor. Que tem isso?

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- Nada, meu senhor, se ele não dissesse também que sabe mais que o impe-rador e fará melhor governo do que vossa majestade.

Imediatamente o sangue sumiu do rosto de Constantino. Velhos medos, resquício das antigas disputas vividas, acenderam-se-lhe na alma e inexprimí-vel angústia apossou-se dele. De imediato, Licínio percebeu-lhe a reação e viu que as palavras da consorte lhe haviam ateado fogo ao coração. Então cochi-chou aos seus ouvidos:

- Ele quer tomar-lhe o trono, é isso o que deseja. Vai fazer de tudo para u-surpar-lhe o poder. É seu inimigo e está prestes a traí-lo. Prepara um grande complô para tirá-lo do trono.

Esforçando-se ao máximo para controlar seus impulsos, Constantino enfim respondeu a Fausta:

- Assim que regressarmos iremos todos a Roma para celebrar os vinte anos de meu reinado, de meu domínio, de meu poder.

- Sim, meu senhor, sei que se prepara em Roma uma grande festa a ser dada em sua honrosa homenagem. Deseja que eu vá até lá para acompanhar os preparativos?

- Não vejo necessidade, apenas esteja pronta. - Posso ir, se desejar, meu senhor. - Pois então vá, Fausta, e esteja certa de que tudo, absolutamente tudo, es-

teja perfeito. Ao retornar, logo irei para Roma. - Farei o melhor ao meu alcance... Afinal, são vinte anos de glória que pre-

cisam ser celebrados! Despediram-se. Marco, que ouvira a conversa a meia-distância, aproxi-

mou-se do imperador e comentou: - Acha que ela falou a verdade? - Algo me diz que é possível. Vamos ficar atentos. - Não creio que Crispus seja capaz de uma traição dessas, senhor. - Meu caro Marco, sua lealdade e sua pureza o impedem de enxergar com

clareza a alma humana, não é mesmo? Marco se manteve calado e Constantino prosseguiu, instigado pelas pala-

vras de Licínio, que permanecia ao seu redor, repetindo-lhe impropérios sobre o filho.

- Todo homem é capaz de tudo pelo poder. Crispus já me tem chamado a atenção há muito tempo, tentando sempre se igualar a mim.

- Mas ele é seu filho; cresceu bem perto, assistindo à sua trajetória; é natu-ral que nutra admiração pelo pai e que deseje imitá-lo.

Fitando o amigo, ele quase se deixou envolver por suas palavras, mas Licí-nio argumentou:

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- Marco é ingênuo demais e sua submissão o impede de enxergar com cla-reza; não é um bom juiz para esse assunto. Melhor nem discutir com ele, pois nada poderá auxiliar nesta questão.

Constantino calou-se por longo tempo. Quando afinal estavam perto da embarcação que utilizariam para chegar ao porto, onde eram construídas as naus romanas, disse a Marco:

- Não comente nada com ninguém sobre o que conversamos no caminho. Fique de olhos e ouvidos bem abertos e, ao menor sinal, me avise. Farei o mesmo.

- Sim, meu senhor. Entraram. Durante toda a viagem, Licínio buscou oportunidades de con-

fundir as situações e, ligado à mente de Constantino, fazia-o enxergar distorci-dos todos os fatos. Assim, qualquer gesto do filho ele interpretava por provo-cação; começou a instalar-se um sentimento de irritação recíproca entre Cons-tantino e Crispus, sem motivo aparente. A irritação passou depressa à fúria, e antes de atracarem no porto de destino os dois tiveram exasperada discussão e Constantino decidiu retornar. Ofendido, Crispus não podia compreender o que se passava com o pai, que de uma hora para a outra passou a tratá-lo com des-confiança e azedume, como se ele o houvesse ofendido seriamente. Licínio vibrava. Conseguira mais um sucesso contra o inimigo.

DEZESSEIS DEPOIS DA DISCUSSÃO, pai e filho não se falaram mais. Amargurado, Cris-

pus estava decidido a não participar das festividades em Roma. No entanto, Marco, sabedor de sua intenção, procurou-o em segredo e argumentou:

- Acho um erro você não ir. Será um momento importante e marcante para seu pai. Mesmo que agora esteja magoado com ele, se for, encontrarão um meio de resolver o problema. Se não for, ele poderá interpretar de modo errado e a distância entre vocês se aprofundará ainda mais.

O rapaz comentou, aborrecido: - Não sei, Marco. Não posso compreender meu pai. O que aconteceu com

ele? Marco queria contar ao rapaz das suspeitas que o pai acalentava no cora-

ção; todavia, como prometera ao imperador que não o faria, limitou-se a de-fender Constantino.

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-Tente aceitar seu pai como é: um general que já realizou muito pelo impé-rio e que merece o respeito de todos nós. Se um dia você for o imperador, de-sejará o mesmo de seus servidores e até de seus filhos.

Crispus não respondeu, mas as palavras de Marco calaram-lhe fundo. Mar-co despediu-se e saiu.

- Pense bem no que eu lhe disse. Crispus balançou a cabeça e respondeu: - Vou pensar.

* * * A cidade estava enfeitada para receber o grande e único imperador Roma-

no. Constantino era aclamado pelo povo, e especialmente os cristãos de Roma o aguardavam com verdadeiro sentimento de gratidão. Ele representava a li-bertação para eles: libertação do medo, da insegurança e da dor. Era a figura que restituíra a tranqüilidade aos lares que tinham o Cristianismo como religi-ão. Devolvera a dignidade e a paz aos seguidores de Cristo e ao clero em geral. Todos o aclamavam como o grande César.

Os festejos transcorriam conforme esperado. Muitas homenagens e apre-sentações artísticas aconteciam em diversos lugares. Quanto a Constantino, embora usufruísse com entusiasmo aquelas demonstrações de respeito e até de adoração, sentia profunda insatisfação íntima. Licínio não o abandonara e o perturbava dia e noite, insuflando-o contra o filho.

Naquela noite o ar estava perfumado com o aroma dos pratos preparados em tributo ao imperador. Comidas exóticas de regiões distantes e as iguarias prediletas do poderoso César também foram oferecidas. Belas mulheres enfei-tavam a festa, usando suas mais lindas vestes. Constantino entrou no grande salão onde todos o aguardavam para o banquete mais importante que marcaria as comemorações. Sentou-se ao lado da esposa, que logo indagou:

- Está tudo a seu contento, meu senhor? - Sim, tudo perfeito. Ela sorriu satisfeita e comentou: - Pena que Crispus insista em não o prestigiar. Todas as autoridades roma-

nas estão aqui, e inclusive os imperadores das regiões vizinhas nos enviaram seus representantes ou vieram pessoalmente. Todos reconhecem seu poderio, menos...

- Cale-se, Fausta. Estou ficando cansado de suas provocações. - Minhas provocações?! - Já basta! Ela ia responder, mas observou que Crispus acabava de entrar no grande

salão e imediatamente foi notado pelo pai e por aqueles que já sabiam do de-

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sentendimento entre os dois. O rapaz se acomodou junto de mais alguns ho-mens, e Fausta aproveitou para dizer:

- Eu ficaria atenta, se fosse o senhor. Ele está com seus homens aqui e ou-tros devem estar lá fora. De certo planeja alguma coisa...

Dessa fez foi Marco quem pediu que ela parasse: - Agora chega, senhora, deixe que o imperador aproveite a noite especial

em sua homenagem. Interrompida sem esperar, ela se calou, evidentemente contrariada. Ver

Crispus adentrar o salão a confundiu e incomodou. Não sabia o que fazer. Era tarde quando o imperador despediu-se de seus convidados e se retirou.

Antes, porém, pediu a Marco: - Quero falar com Crispus. Avise-o que me encontre imediatamente para

uma palestra a sós. Marco argumentou: - É tarde, senhor; todos estão muito cansados. Não seria melhor promo-

vermos esse encontro amanhã? - Não. Agora. A voz de Constantino não permitia nenhuma contra-argumentação e Marco

obedeceu. Localizou Crispus e logo os dois estavam frente a frente. O rapaz disse, em tom sincero:

- Vim para homenageá-lo, meu pai. Apesar de nossas diferenças, e antes de tudo, você é meu imperador.

- Não seja cínico, rapaz. Sei que me deseja ver pelas costas. - Do que está falando? - De seu desejo de ocupar meu lugar. - Quero ser seu sucessor, e isso nunca escondi, mas quando chegar a hora. - Que deseja ver abreviada o mais possível, não é mesmo? - O que está insinuando, meu pai? - Que quer ver-me morto. Confesse! - Isso é uma calúnia das mais absurdas! Quem foi que lhe... Completamen-

te dominado por Licínio, Constantino agarrou o filho pelo pescoço e insistia: - Confesse, confesse seu desejo de matar-me! Assustado, o rapaz pedia: - Pare, pai, por favor! O que está fazendo? E Constantino, sem medir a força que colocava nos braços, continuava: - Vamos, confesse seu desejo descontrolado de usurpar-me o poder. Eu sei

de tudo, Fausta abriu-me os olhos. -Pai... Por favor... A voz de Crispus já quase não lhe saía da garganta.

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- Ninguém me tirará o que conquistei, está entendendo? Este império é meu! Eu o conquistei pedaço por pedaço e ele me pertence! Só a mim...

Sem conseguir respirar, o rapaz desfalecia pouco a pouco e disse, num es-forço derradeiro:

- Ela... o ... envenenou... contra... mim... Licínio, às gargalhadas, observava o pai consumar o ato homicida. Crispus

desfaleceu e Constantino abandonou-o ao chão, ao mesmo tempo em que o olhava aterrado pelo que acabara de fazer. As últimas palavras do filho lhe suscitaram de imediato à lembrança a conversa que tivera com Fausta antes da viagem à Pérsia. Teria sido enganado por ela? Observou o filho sem respirar e gritou, sentindo profunda dor no peito:

- O que foi que eu fiz?! Marco entrou depressa na sala, constatando o que ocorrera. Rapidamente tirou o imperador dali e levou-o para seus aposentos. Cons-

tantino estava alterado e Marco tentava acalmá-lo: - Não foi sua culpa, não é mesmo? Ele tentava agredi-lo, não foi assim? - Claro, foi isso. Foi assim que aconteceu. - Pois então, acalme-se. O senhor é o imperador de Roma! Constantino

sentou-se na cama, respirou fundo por três vezes, depois repetiu: - Sim, eu sou o imperador de Roma. Eu sou o imperador. Eu sou... Logo outros pediam notícia sobre o ocorrido e Marco limitou-se a dizer

que o imperador se defendera da agressão do filho, que queria usurpar-lhe o trono.

Enquanto tentava acalmar-se, Constantino escutava com nitidez a derradei-ra afirmação do filho - "ela o envenenou contra mim..." -, que se repetia sem cessar. Sentia-se duplamente traído, pela esposa e por si mesmo, sem ter forças para reagir. Buscou algum consolo na bebida, mas antes que as festividades terminassem procurou por Fausta e uma serva lhe informou, desviando os o-lhos:

- Está nas termas, senhor. Constantino a encontrou cercada por suas serviçais e pediu que os deixas-

sem a sós. - Que prazer vê-lo, meu senhor. - O que você fez, Fausta? - Como assim? - Por que me colocou contra meu filho? - Ora, senhor, apenas quis proteger-lhe os interesses. - Os seus interesses, você quer dizer, não é mesmo? Assustada com a ex-

pressão do olhar de Constantino, ela começou a gritar:

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- Claro que não, meu senhor, dos seus... Antes que pudesse dizer mais alguma coisa ele a afundou na banheira, ti-

rando-lhe a vida. Licínio, que a tudo assistia, gargalhava satisfeito, quando Núbio apareceu,

indagando: - Está satisfeito? Executou sua vingança? - Ainda não. Este homem não sofreu o suficiente. Tem de morrer também;

vou acabar com ele... - Não. Sua missão acabou. - Como assim? - Constantino serve agora aos nossos interesses. O Cristianismo está cons-

purcado e se afasta mais e mais de suas raízes. Constantino vai continuar nos dando seu apoio. E útil demais para agirmos contra ele agora. Mas não se pre-ocupe. Os dias dele na Terra findarão, mais cedo ou mais tarde, e você poderá ter sua vingança completa quando ele também estiver aqui.

- Como saberei que não me enganam? - Você é nosso servo, Licínio, e fará o que estou ordenando. Utilizando a

força mental, Núbio provocou em Licínio fortes dores no peito, no lugar onde fora atacado por Marco. E ele, gritando, suplicou:

- Por favor, pare com isso! - Vai obedecer, ou o que terei de fazer? - Obedecerei. -Então ande na linha comigo. Virá a hora de consumar sua vingança.

Quando Constantino chegar a este lado, você estará esperando...

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DEZESSETE REPÚBLICA DA BOÊMIA7, 1402. Enquanto a mãe permanecia deitada, repetindo orações decoradas, a jovem

(ainda não completara dezoito anos) sentada à sua cabeceira segurava-lhe as mãos com firmeza. Ao notar as mãos frias da filha, Geórgia balbuciou em voz fraca, quase inaudível:

- Vá comer alguma coisa... Você está gelada... A jovem fitou-a com ternu-ra e redarguiu:

- Não, mãe, eu estou bem. Com esforço Geórgia insistiu: - Vá, minha filha, vá comer alguma coisa... Suas mãos estão geladas. - É que está muito frio. Está nevando... Num esboço de sorriso, a mãe bal-

buciou: - É quase Natal... Esforçando-se por sorrir, a jovem concordou: - Sim, é quase Natal. - Precisamos rezar nossas novenas em homenagem ao menino Jesus. - Nós já vamos... Geórgia começou a tossir sem parar, para angústia de Verônica, que a o-

lhava sem saber o que fazer. Aproximou-se e a ajudou a se sentar. Depois de alguns minutos, acalmou-se a tosse e Verônica observou a mãe, entristecida. Sabia que o estado de saúde de Geórgia era muito grave; há algumas semanas vinha se preparando para o pior. Por isso mesmo procurava aproveitar cada segundo em companhia da mãe; afastava-se apenas pelo tempo absolutamente necessário. Quando se assegurou de que ela estava bem acomodada, foi buscar uma sopa que fumegava no caldeirão, mantido aceso com pouca lenha. A beira da cama, pediu:

- Vamos, mãe, tome um pouco de sopa. - Só se você me acompanhar, filha. Sorrindo, Verônica concordou: - Está bem... A senhora não tem jeito, não é? A mãe esboçou um sorriso

suave e comentou: - A quem será que você puxou? - Decerto foi a você, minha mãe. - Acha mesmo?

7 Boêmia é uma região histórica da Europa Central, ocupando os terços ocidental e médio da atual República Checa.

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- E como não? Com quem mais me pareço, se não com você? Além do mais, estamos juntas, só nós duas, há tanto tempo que é natural que nos asse-melhemos...

Calou-se de súbito. Recordava os últimos incidentes em que a mãe estivera envolvida com manifestações sobrenaturais. Geórgia, adivinhando-lhe os pen-samentos, disse:

- Minha criança, não se preocupe. Venha, sente-se perto de mim. - Vamos tomar a sopa. - Depois. Agora, precisamos conversar. - Mas, mãe... - Venha, filha, precisamos falar. Não desperdicemos o tempo precioso que

nos resta com algo que pouco ou nada nos auxiliará. - Você deve se alimentar. - Já vou comer. Venha, sente-se bem perto de mim. Verônica aproximou-

se da mãe, que a abraçou enternecida, aconchegando-a ao peito. Ficaram assim por longo tempo, a permutar profundo carinho. Depois, a mãe olhou a filha nos olhos, pedindo:

- Seja forte, minha filha, e não confie a ninguém os fatos que nos acome-tem de quando em quando. Ninguém nos compreenderia.

- Mãe, tento entender o que se passa com você, o que acontece quando fica daquela maneira... E não consigo.

- Também não posso explicar ao certo, mas sei que é algo bom. - Você diz coisas estranhas, age de maneira esquisita... Dá receitas, fala

coisas como se não fosse você. - Minha filha, se não fosse uma heresia, diria que os céus se manifestam

através de mim. E assim que eu penso. - Mãe, não diga isso nunca mais! Se alguém a escutar... - Não temo por mim, que tenho os dias na Terra contados, e sim por você.

Não quero que carregue o peso da ser filha de uma bruxa. Por isso me calei, você sabe, e não por aceitar o que me dizem. Sei o que sou e o que sinto. Não sou uma bruxa.

- E claro que não! Você é a pessoa mais querida... Verônica não pôde continuar, afogada pela emoção e pelo sentido pranto

que lhe brotou da alma. Amava profundamente a mãe e sabia que logo não a teria mais perto de si.

Geórgia abraçou-a apertado e disse: - Rogarei a Nossa Senhora que me permita vê-la sempre. Se depender de

mim, jamais ficarei longe de você.

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Verônica abraçou a mãe ainda mais forte e ambas choraram enlaçadas. Depois, Geórgia pediu:

- Vamos, filha, confiemos em Deus, que sabe todas as coisas. Tudo será para o melhor.

A jovem apenas aquiesceu com a cabeça, mantendo silêncio. Após alguns dias o estado de Geórgia agravou-se. Ela quase não conseguia falar, tendo su-cessivas crises de tosse. Verônica atendia ao seu mínimo sinal de necessidade.

Naquela noite, porém, a jovem adormeceu pesadamente aos pés da cama da mãe. Estava exausta pelas consecutivas noites em claro e pelo desgaste e-mocional de ver-lhe a vida esvair-se pouco a pouco, sem que pudesse ajudá-la. Buscava sustentar a fé em Deus, aprendida com a voluntariosa Geórgia, que a criara sozinha, afirmando ter o pai morrido quando a menina era muito peque-na. A luta para cuidar dela foi grande e consumiu os poucos recursos que ele lhes deixara. Verônica despertou assustada. A mãe a chamava:

- Verônica, chegue mais perto. Quase de um salto acercou-se da mãe. Geórgia, com grande esforço, tirou

do pescoço um antigo escapulário e depositou-o nas mãos da filha, pedindo: - Leve-o sempre consigo. Coloque, vamos. Verônica objetou: - Não, mãe, é a sua proteção... - Coloque, vamos. Sem energia para seguir argumentando, a jovem obedeceu. Colocou a pe-

quena peça no pescoço e amarrou atrás da cabeça a cordinha que sustentava a medalha com a imagem de Nossa Senhora desenhada.

- Pronto, mãe. - Ótimo.,. Quero que você... busque ajuda da irmandade... - Não, mãe. -Prometa. Tem de prometer... que não vai ficar sozinha... à mercê dos hor-

rores da inquisição. Se cismarem com você, filha, é morte certa... E morte na fogueira.

- Ainda assim, não posso trancar-me em um convento. Não é o que quero para minha vida.

- Mas terá de procurar ajuda... Seu primo de segundo grau é padre, você sabe.

- Boris... - Isso mesmo... Procure a ajuda dele... Você não pode ficar sozinha. - Mas, mãe... Geórgia teve outra crise de tosse e, quando se acalmou, foi mais assertiva: - Prometa-me! - Mãe...

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- Por favor... - balbuciou quase sem forças. Comovida, a jovem anuiu: - Está bem, eu prometo. Geórgia suspirou profundamente e, devagar, soltou as mãos da filha. A jo-

vem observou seu semblante sereno e murmurou, entre pesadas lágrimas que lhe desciam pela face:

- Descanse, minha mãe. Um dia nos encontraremos... Depois apertou com força o escapulário que trazia no peito e,

ajoelhando-se diante da cama, chorou sentida e longamente.

DEZOITO NA MANHÃ SEGUINTE, assim que os primeiros raios do sol entraram no di-

minuto aposento, Verônica se embrulhou nas cobertas de sua cama e saiu à procura dos vizinhos mais próximos. Queria ajuda para as providências neces-sárias às últimas homenagens a serem prestadas àquela que partia para a gran-de viagem. Todos, sem exceção, bateram-lhe a porta ao rosto com desculpas as mais descaradas.

A jovem resolveu, então, procurar o padre do vilarejo em que viviam, ao norte do antigo reino da Boêmia. Ela e a mãe nutriam temores e prevenções com relação à Igreja Católica, entre outras questões pelos seus métodos de coação e controle do povo. Desde o ano de 476, quando o império romano do Ocidente caíra após ser invadido por diversos povos bárbaros, a única institui-ção que não se desintegrara junto com o esfacelamento do império fora a Igre-ja Católica; pelo contrário, fortalecida, passara a exercer forte influência polí-tica e econômica sobre todos os povos da Europa. Já nesse período iniciou-se intensa perseguição àqueles que se opusessem aos seus dogmas e interesses. Iniciou-se uma sucessão de abusos de toda sorte, com a execução de qualquer um que atrapalhasse os seus propósitos. E cresciam a força e o poder que deti-nha.

Verônica foi até o fundo da igreja e bateu à porta do alojamento do pároco. Ouviu de dentro:

- Quem me procura? - Verônica, padre. - O que deseja? Lembrando-se do rosto inerte da mãe, os olhos dela encheram-se de lágri-

mas e, com a voz embargada, continuou: - Preciso do senhor...

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O padre Edmundo apareceu à porta e, demonstrando contra-riedade, falou áspero:

- O que deseja? - Minha mãe está morta, padre. Preciso de sua ajuda para os serviços finais

aos seus despojes. O eclesiástico a mediu de alto a baixo. Por mais que desejasse mandá-la

embora, sua posição o obrigava a tomar alguma providência. Ainda buscando alternativa, perguntou:

- Não tem nenhum sacerdote em sua família que possa prestar-lhe os últi-mos atendimentos? Estou muito ocupado hoje.

Respirando fundo, a jovem implorou: - Por favor, padre, os poucos familiares que me restam vivem em terras

distantes. Não posso levar o corpo de minha mãe para uma viagem tão longa... Não seria correto...

Ela silenciou por alguns instantes, depois prosseguiu: - Além do mais, ainda há focos da peste em alguns lugares. Não posso ar-

riscar atravessar as plantações com um corpo... Depois de longo silêncio que se estabeleceu entre os dois, padre Edmundo

disse: - Muito bem, minhas obrigações sacerdotais me impõem a realização dos

serviços. Leve-a até o rio depois do almoço e faremos o que é necessário. Com lágrimas nos olhos, Verônica - em busca de algum conforto para sua

dor - ajoelhou-se diante do padre, osculando-lhe as mãos macias. Ele as puxou logo e reforçou:

- Logo no início da tarde. Não se atrase, estarei à espera. - Sim, padre, obrigada. Sem dizer mais nada ele entrou e fechou a pesada porta. Só depois de lon-

go tempo frente à porta cerrada e fitando o vazio foi que Verônica enxugou as lágrimas e buscou a saída, atravessando a igreja. No corredor viu algumas mu-lheres, suas vizinhas, e uma delas lhe perguntou:

- Conseguiu o que queria? - O padre Edmundo vai me ajudar. - Somente um santo como ele para ter compaixão de vocês. Olhando para a

mulher que lhe falava em tom agressivo, ela indagou: - O que lhe fizemos para terem por mim e por minha mãe tamanho desprezo? A outra ignorou a pergunta e continuou: - Do que foi que ela morreu? - Não sei. - Claro que sabe. Foi da peste, não foi?

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- Não, é claro que não! - Tenho certeza que foi. É castigo de Deus àqueles que lhe desobedecem... Verônica assegurou: - Sempre procuramos obedecer aos ensinos de Jesus. - Sua mãe era uma bruxa e certamente foi castigada, e você também o será.

Se a peste não a atacar, a Inquisição haverá de pegá-la. Não conseguirá livrar-se, como o fez sua mãe. Aliás, livrou-se tão-só porque o outro padre, antes de dom Edmundo, era um fraco e a protegeu.

Para não agredir a mulher, Verônica saiu correndo da igreja em prantos. Correu a trancar-se no seu casebre, onde se agarrou ao corpo inerte da mãe, protestando em voz alta:

- Você não podia me deixar aqui, mãe. Este é um mundo muito cruel... Grossas lágrimas corriam pela sua face, quando o quarto foi subitamente

envolvido em intensa e safírica luz. Verônica pôde registrar, assustada, a ima-gem de um jovem que se aproximou e disse:

- Tenha coragem e fé, minha irmã. Você não está sozinha. Sua mãe repou-sa e se recupera da longa jornada terrena, e você deve continuar firme sua tare-fa. Estarão juntas novamente no futuro, mas agora precisa confiar em Deus e seguir na vida com coragem, como sua mãe lhe ensinou.

Verônica limpou as lágrimas e indagou: - Quem é você? Um anjo ou um demônio? Por que vejo você e as outras

pessoas não? Por que isso acontece comigo e acontecia com minha mãe? Por que nos castigam com essas visões, fazendo-nos alvo da implacável persegui-ção religiosa que avança sobre todos os que são diferentes?

Sorrindo com doçura, o rapaz comentou: - Quantas perguntas, Verônica! Pousando as mãos sobre a cabeça da jovem, o rapaz fixou os olhos no céu

e orou em silêncio. Uma chuva de pequenas luzes caía profusamente sobre Verônica, que se sentiu envolvida em suave e re-confortante sentimento de paz. Cessou o medo e a mente da jovem aquietou-se. O enviado do mundo espiritual falou:

- Estou aqui para fortalecer-lhe o ânimo. Não sinta pena de si mesma. A capacidade que traz consigo de ver e ouvir o mundo espiritual é dádiva de Deus àqueles que necessitam aprender novas lições e aqui estão para o traba-lho do bem.

- Do que está falando? Que trabalho posso fazer? Muitos dos que tiveram essa capacidade já morreram nas fogueiras. Não quero ser a próxima. Tenho medo, muito medo. Não quero passar pelo que já vi e ouvi outros passarem. Por favor, você pode fazer isso acabar?

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Tocando-lhe os cabelos com amor fraterno, ele disse: - Não compreende, ainda, o que me pede. Deve utilizar sua sensibilidade

para ajudar as pessoas. Esta é sua tarefa aqui na Terra: ajudar seus semelhan-tes, a despeito de todas as dificuldades. Foi isso que sua mãe lhe ensinou, não foi?

Verônica baixou a cabeça e balbuciou sem coragem: - Sim, foi isso, mas não quero correr o risco de morrer queimada. Sério,

Alexandre a fitou nos olhos e disse, enquanto sua imagem se desvanecia diante dos olhos da moça: - Essa foi sua escolha, Verônica. Faça bom uso dela e sirva a Jesus. - Espere, por favor, espere. Como faço para chamar você? O que devo fa-

zer agora? Para onde vou? O rapaz desapareceu. Verônica fitou o rosto sereno da mãe, que parecia

dormir em profunda paz, e questionou: - O que faço, minha mãe? Que triste futuro me aguarda? Ficou em silêncio por muito tempo. Depois, sem motivo aparente, tocou no

escapulário que a mãe lhe dera e relembrou o seu pedido para que se refugias-se no mosteiro, em Praga. Verônica relutava. Não queria nada com conventos, padres e freiras. Sentia repugnância pela Igreja desde pequena; a muito custo sua mãe e levava à missa aos domingos. Para a menina, aquilo sempre repre-sentara um martírio. Não obstante, tinha genuíno carinho por tudo o que se relacionasse a Jesus; sentia atração pelo Mestre nazareno e dele sabia muitas informações, bem antes de completar sete anos.

Geórgia se surpreendia e ao mesmo tempo se alegrava com a natureza da filha. Temia por ambas, naqueles tempos extremamente difíceis para as mulhe-res, especialmente aquelas que dependiam de si mesmas para viver. Por diver-sas vezes foram humilhadas pelos vizinhos; entretanto, a dignidade da mãe inspirava Verônica, que cresceu admirando a ela e aos valores que dela adqui-rira.

Depois de longo tempo, apertou fortemente a pequena moeda do escapulá-rio e pediu a Jesus que lhe desse forças. Levantou-se, então, e preparou a mãe para ser levada à beira do rio Elba. Mais tarde, contemplava em silêncio as labaredas a consumir os despojes de Geórgia, que seguiam carregados pelas águas do caudaloso rio, enquanto as lágrimas corriam pela sua face lívida. A emoção dominava-lhe o espírito, e quase desfalecia. O padre prosseguia repe-tindo frases em latim, que ela não entendia, e fazendo várias vezes o sinal da cruz. Depois da curta cerimônia, ele virou-se para a jovem e afirmou:

- Pronto, está feito. Que Deus a perdoe.

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Erguendo os olhos ela o fitou sem coragem de dizer nada. Apenas agrade-ceu mecanicamente:

- Obrigada, padre. Este a observou detidamente e perguntou: - O que vai fazer agora? Verônica respondeu, com voz embargada pela dor que sentia naquele mo-

mento: - Ainda não sei. - Pois é bom que pense depressa no que vai fazer daqui por diante; seria

bom se me deixasse ajudá-la. Vou recomendá-la ao convento de nossa ordem, para que a recolham e a preparem para servir a Nosso Senhor Jesus Cristo e à Santa Madre Igreja.

Verônica sentiu forte opressão no peito. Lembrou de novo da recomenda-ção da mãe sobre os perigos que poderiam estar a espreitá-la e, prudentemente, respondeu:

- É uma boa idéia, padre. Preciso de poucos dias para me preparar; logo vi-rei procurá-lo.

- Vou esperar que retorne o mais breve possível.

DEZENOVE

VERÔNICA TRANCOU A PORTA e fechou a rota cortina que cobria a pequena

janela. Antes, olhou para fora e viu que começava a nevar outra vez. Sentou-se na cama e chorou por longo tempo. Depois, movida por um sentimento de ur-gência que não compreendia, abriu o baú da mãe e de novo examinou um a um os objetos que ela guardava ali: um livro do padre Jan Huss8, amigo de Geór-gia que ela não conhecia e que as ajudava através de outro amigo comum. Fa-lou baixinho:

- Como minha mãe podia gostar de um padre como esse? Abriu o livro e fixou as páginas manuscritas, porém não sabia ler o sufici-

ente para poder compreender o sentido do que lia. A mãe lhe estava ensinando as letras, embora ela própria também tivesse muitas limitações. Somente os nobres ou os padres, que se internavam nos conventos, recebiam educação; os simples e humildes, o povo, não tinha acesso a ela. Verônica tinha sorte de a mãe poder ler um pouco e lhe transmitir algo. Essa era outra das razões por

8 Jan Huss foi pensador e reformador religioso, precursor do movimento protestante.

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que as demais mulheres da vila não aceitavam as duas. Definitivamente elas eram diferentes.

Verônica folheou um pouco mais o livro e depois remexeu nos demais per-tences. Correndo os olhos pela casa, separou e enrolou numa trouxa de pano o pouco de pão e frutas secas que tinha. Então voltou a olhar pela janela. A neve tinha parado. Separou todas as roupas que possuía, e também as da mãe, e em-brulhou tudo em outra trouxa de pano que fez com um lençol; tomando o pe-queno baú nas mãos, recolocou dentro dele tudo o que a mãe guardava ali e o fechou. Acomodando as duas trouxas nas costas e o baú sob um dos braços, disse, indo para a porta:

- Preciso partir agora, imediatamente. Apertando a jóia simples que trazia no peito, suspirou fundo e pediu: - Que Nossa Senhora me proteja e me mostre o caminho. Foi direto para o mercado central e por ali ficou, o mais discreta possível,

observando o movimento. Ouviu que uma carroça com alimentos ia partir logo para Praga. Aproximou-se do proprietário da carroça, que não conhecia, e dis-se:

- Senhor, ouvi que se dirige para Praga... - Sim, vim trazer minha filha para ver a avó doente e vamos retornar agora

com alguns alimentos. Indecisa, ela arriscou: - Preciso muito ir para a capital. - E uma viagem e tanto, moça. - Eu sei. - Pode pagar? Baixando os olhos, ela balbuciou: - Não, senhor, não tenho dinheiro. Calou-se por um instante, depois tentou de novo: - Tenho um primo em Praga que vai me ajudar. - Sem dinheiro, sem viagem. - Por favor, senhor, preciso muito ir. Posso ajudar nos serviços de sua casa,

como pagamento... O homem pensou por alguns segundos; lembrando-se da sujeira em seu

pequeno armazém, assentiu: - Pois bem, tenho uma pequena mercearia que precisa de uma boa limpeza.

Se fizer o trabalho, e bem, posso levá-la. - Está combinado. Limpo tudo e pago a viagem com esse trabalho. - Então suba. Vamos partir assim que minha filha chegar, antes que reco-

mece a nevar.

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Não demorou muito e Verônica viu surgir ao longe o rosto meigo de uma jovem que andava depressa, procurando a carroça do pai. Ao avistar Verônica, sorriu, simpática. O pai logo esclareceu a presença da estranha, e a garota disse apenas:

- Que bom! Teremos companhia para a volta. A carroça partiu, sumindo pela estrada. A viagem durou quase três dias in-

teiros. Nevou e parou de nevar algumas vezes durante o trajeto. Verônica co-chilava e acordava, apreensiva com aquela experiência e na expectativa do que a aguardava em seu destino.

Tão logo amanheceu, o padre Edmundo, em companhia de mais dois ho-mens do vilarejo, bateu à porta da casa da jovem, chamando várias vezes por ela:

-Verônica, abra. Vamos minha filha, precisamos conversar. Abra. Um dos homens opinou: - Não adianta, ela não vai abrir. Vamos entrar e levá-la à força! O outro

concordou: - Vamos, padre, não podemos permitir que ela continue fazendo sabe lá

Deus o quê! Arrombe a porta. O outro homem forçou a porta, que não resistiu. Entraram. Vasculharam o

pequeno cômodo e, nada encontrando, foram direto ao mercado central. O pa-dre comentou:

- Deveria tê-la levado à força quando tive chance - Devia mesmo, padre, não podia ter deixado que ela escapasse! Agora, es-

palhará o mal por toda a parte. - Calma, vamos descobrir para onde foi. Chegando ao mercado, logo descobriram que uma jovem viajara com um

comerciante de Praga, que para lá retornava. Um dos homens ameaçou: - Vou atrás dela e a trago de volta. O padre o deteve pelo braço, sugerindo: - Vou enviar um mensageiro ao arcebispo de Praga e alertá-lo sobre a garo-

ta. Achei que não seria necessário preocupá-lo, mas o farei imediatamente. Não precisam se preocupar. O nosso líder a achará sem demora e tomaremos as medidas cabíveis. Enviarei o mensageiro agora mesmo. Antes que ela che-gue, o arcebispo terá as informações.

O outro falou enérgico: - Que seja queimada na fogueira dos hereges! E virando-se para o padre,

indagou: - E o casebre, o que fará? Vai queimá-lo também? O padre respondeu: - Já está confiscado, agora nos pertence.

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- Melhor assim. Aliás, nem sabemos como foi que ela obteve o imóvel. Aquela mulher era ardilosa. Quase nos envolveu a todos.

O outro homem, invocando na memória a figura de Geórgia, comentou re-ticente:

- Sim, era uma mulher perigosa... De volta à igreja, o padre Edmundo escreveu ao arcebispo de Praga, in-

formando-o sobre a jovem e pedindo que tomasse providências. Enquanto isso, Verônica entrava na capital do antigo reino da Boêmia. O

homem mostrou-lhe o estabelecimento que deveria limpar e ela quis iniciar o trabalho de imediato. Catarina, a filha de Vicente, argumentou:

- Fique conosco esta noite. Você deve estar exausta, depois de tudo pelo que passou e ainda mais essa viagem. Fique conosco hoje e faça amanhã o trabalho combinado.

- Agradeço, mas não posso pagar. - Pois não terá de pagar... Não é, papai? Meio a contragosto, o pai ia responder, quando Verônica, tomada nova-

mente por estranho sentimento de urgência, afirmou: - Não posso mesmo ficar. Agradeço a sua hospitalidade, Catarina, mas

quero pagar o combinado e seguir meu caminho. - E para onde vai? Conhece mesmo alguém na cidade? - Sim, meu primo Boris mora aqui. - Boris? E o que ele faz? No intuito de desviar a conversa para outro rumo, a jovem perguntou, ao

avistar uma pequena mercearia: - É ali, senhor? - Sim, essa é minha loja. - Vou começar já. - Está certo. Se estiver tão animada assim... Ao abrir a porta da pequena loja, Verônica soltou um grito abafado. O es-

tabelecimento estava imundo e até viu ratos se esconderem entre sacos de ali-mentos, montes de tecidos e outros objetos. Respirou fundo e pôs-se a limpar o salão. Era quase de manhã quando terminou. Ao ver tudo limpo, sentou-se em um canto da sala e, não podendo controlar o sono, adormeceu.

Ainda dormia quando escutou fortes pancadas na porta. De um salto, cor-reu para trás de uns tonéis de carvalho que guardavam vinho; ficou agachada enquanto escutava a movimentação do lado de fora. Olhou pela janela e viu dois padres indo para a entrada da casa, que ficava nos fundos da mercearia. Pegou as suas coisas que estavam junto da porta e, ao se certificar de que não era vista, saiu correndo e embrenhou-se na mata que ficava perto da estrada. A

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intervalos de alguns minutos, virava-se para ter certeza de que não era seguida. Conhecia a cidade e foi em direção ao convento franciscano. Apesar de ficar bem distante, ela correu para lá sem parar.

Os dois padres vasculharam a mercearia e não acharam nenhum vestígio da jovem. Vicente indagou:

- O que foi que ela fez? - É uma herege. Proteja sua família dessa moça. Catarina assistia, incrédula, a toda a cena. Assim que os dois padres saí-

ram, ela falou ao pai: - Pai, sabe que Verônica não é isso de que a acusam. - Não sei de nada. Nós sequer a conhecemos! - Mas deu para notar que é boa pessoa. - Você não sabe o que está dizendo. Não quero que converse mais com e-

la, ouviu bem? Se a acusam, podem acusar-nos também. E erguendo a voz, ordenou: - Não quero que a ajude, está claro? Sem responder, a garota balançou a cabeça em sinal afirmativo, e entrou

em casa chorando. Verônica alcançou os portões do mosteiro, que em seu anexo abrigava o

convento. Bateu na pesada porta, chamando: - Por favor, preciso de ajuda! Ajudem-me, por favor! Depois de alguns mi-

nutos, um padre apareceu e indagou: - O que deseja, filha? - Meu primo Boris é padre nesta irmandade. Ele me conhece bem. - Deixamos nossos parentes para trás quando nos unimos a Jesus, menina.

O que deseja? - Minha mãe morreu, padre, e me pediu que viesse até aqui. Ela disse que

seria auxiliada, se viesse para cá. - Se não a conheço, como posso acolhê-la? Como saber se me diz a verda-

de? - Por favor, padre, pergunte ao meu primo. Ele poderá dar todas as infor-

mações a meu respeito. - Não posso permitir que entre uma estranha sem nenhuma recomenda-

ção... O padre começou a fechar a porta, quando uma das trouxas escorregou e

caiu dos ombros de Verônica; quando a moça se abaixou para pegá-la, o esca-pulário de Nossa Senhora lhe caiu para fora do vestido. Ao vê-lo, o padre pa-rou e perguntou: - De onde veio isso?

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- Era de minha mãe. Ela me deu, pouco antes de morrer. O padre olhou em volta e então disse:

- Entre, vamos. Depressa. Ambos entraram e o padre conduziu a jovem pelo interior do mosteiro.

VINTE

O SACERDOTE ANDAVA na frente. Verônica o seguia e, a cada passo que

dava no interior da portentosa construção, sentia o coração bater mais descom-passado. Suas mãos suavam frio e seu desejo era sumir dali. À medida que caminhava, olhava as paredes altas e escuras daquela edificação e violentos arrepios lhe percorriam o corpo. Suas pernas estavam trêmulas e temia não conseguir completar a caminhada. De repente, o padre parou, tirou uma chave de um dos bolsos e, abrindo uma porta de madeira maciça, virou-se para ela:

- Espere aqui - disse. - Vou buscar água e algo para você comer. Ela en-trou, e em seguida ele trancou a pesada porta. Verônica bateu em desespero, suplicando em lágrimas:

- Por favor, padre, o que vai fazer comigo? Por que está me trancando a-qui?

Ela gritava e batia com força. A porta se abriu e o padre apareceu, recrimi-nando-a:

- Fique quieta! Vou trazer-lhe comida e já volto. - Por que me tranca aqui? - E o que quer? Devo avisar meus superiores. E se você resolve sair andan-

do por esses corredores, antes que eu informe aos responsáveis que está a-qui?... Não vou arriscar. Fique aqui, e calada. Queria ajuda, não queria? Pois bem, está a salvo, seja lá o que for que a esteja perturbando. Agora, acalme-se que vou avisar também seu primo de sua presença.

Verônica o observou desconfiada, medindo-o de cima a baixo, e depois fa-lou num suspiro, enquanto ele fechava a porta:

- O que posso fazer? Tenho de esperar... Ela ouviu a voz do padre: - Isso mesmo. Aguarde em silêncio, é o melhor que tem a fazer. Ele se afastou e a jovem observou o pequeno quarto em que estava. Ali ha-

via uma cama, uma mesa e duas cadeiras; sobre a cabeceira da cama um gran-de crucifixo e, acima, uma janela minúscula, por onde alguma claridade entra-va. Apesar de ser dia lá fora, o cômodo permanecia na penumbra, deixando ver parcamente os objetos que continha.

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Verônica acomodou seus pertences em uma cadeira e se sentou na cama. Embrulhou-se nas roupas, tremendo. Começava a nevar e fazia muito frio den-tro do austero aposento. Ela refletiu por alguns instantes, tentando recuperar o controle e compreender o que se passava. Lembrou-se da expressão nos olhos do padre ao notar o escapulário que trazia ao pescoço. Tirou-o e apertou-o en-tre as mãos, balbuciando:

- O que este escapulário tem de tão especial? Sei que foi abençoado para proteger minha mãe, por Nossa Senhora, mas... O que o padre viu nele que o levou a me acolher sem vacilar? Não compreendo...

Encafifada, ficou a relembrar que a mãe o usava constantemente; nunca o tirava. Depois de algum tempo, ouviu uma voz de mulher anunciar:

- Trouxe comida. A porta se abriu e uma jovem freira entrou, colocando pão e água sobre a

mesa. Sem olhar para Verônica, a freira saiu, fechando novamente a porta. Ela se alimentou e voltou a sentar-se na cama. Cansada, acabou por se a-

quecer e caiu, por fim, em sono profundo. Transcorrido algum tempo, acordou assustada, ouvindo vozes. Sentou-se rápido na cama, sem entender o que acon-tecia e mesmo sem atinar onde estava. Tentando se localizar, viu a porta se abrir e um jovem entrar, saudando-a:

- Olá, Verônica. Logo atrás vinha a freira que antes trouxera a refeição da garota. Verônica

fitou o rapaz, buscando na memória identificar aquele rosto que lhe parecia tão familiar. Ao olhar seus olhos, forte e indefinida emoção dominou-a. Teve von-tade de chorar e de atirar-se aos seus pés. Ao mesmo tempo, um medo enorme, pavor até, apossou-se dela. Afastou-se, ficando à cabeceira da cama, mas o jovem aproximou-se e estendeu-lhe a mão, dizendo:

- Não fique assustada. Sou eu, Boris, seu primo. Verônica, perdida em suas emoções, parecia não escutar. Encolhia-se cada

vez mais na cabeceira da cama. Boris parou e falou com voz calma: - Por que está tão apavorada? Sei que não nos vemos há muitos anos, mas

ainda assim deve lembrar-se de mim. Que idade tem agora? Verônica respondeu mecanicamente: - Quase dezoito. - Você deve estar cansada, criança. Veio de longe... Como conseguiu che-

gar até aqui? Ainda temerosa, ela não respondeu. Boris insistiu: - Não tenha receio, Verônica. Aqui estará segura. Fique calma. Agora que-

ro que me conte tudo o que aconteceu. Dominada pelo medo e pelo cansaço, ela desabou, entre lágrimas:

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- Minha mãe morreu. Não tenho mais ninguém nesta vida. Estou sozinha, abandonada. Estou com medo e não tenho a quem pedir ajuda. Minha mãe me disse que viesse procurá-lo, mas acho que não devia ter vindo... É que não tinha a quem recorrer...

O padre, homem esguio e de porte nobre, procurou tranquilizá-la: - Você não está mais sozinha. Fez bem em nos procurar, estará amparada

aqui. Verônica sentia uma vontade quase incontrolável de abraçar o primo e, por

outro lado, desejava correr para bem longe. Ficou imóvel enquanto ele a ob-servava, parecendo desconfiado. Depois, ao ouvir tocar o sino, ele ergueu-se e recomendou:

- Agora descanse. Logo mais o bispo celebrará a missa das seis horas e vo-cê deve se juntar a nós.

Foi até a porta e, antes de fechá-la, disse: - A irmã Adriana virá buscá-la mais tarde. Assim que a porta se fechou, Verônica deitou-se na cama e não pôde con-

trolar as lágrimas. Sentia-se desprotegida e aflita. Aquele breve encontro com o primo não a fizera sentir-se melhor. Sem saber ao certo por que, Boris sem-pre a assustara, desde que eram pequenos. Nove anos mais velho do que ela, sempre a tratara de maneira rude e agressiva. Experimentava em relação a ele emoções conflitantes: temor e carinho, medo e desejo de aproximar-se. Defini-tivamente, não o compreendia e o temia. Crescera distante do primo, que vira poucas vezes; no entanto, guardava em seu íntimo forte impressão dos poucos encontros que haviam tido.

Perdida em suas lembranças da infância e vencida pelo cansaço dos últi-mos dias, Verônica tornou a adormecer. Quando despertou, sentia-se ligeira-mente mais animada. Sentou-se na cama e observou com maior atenção os detalhes do pequenino ambiente que ocupava. A angústia assolar-lhe o cora-ção. Qual seria o seu futuro? Ficaria para sempre presa naquele cubículo? Não era o tipo de vida a que aspirava. Sonhava ter uma família, filhos - muitos fi-lhos - , um lar e uma vida com fartura; queria viajar, vestir belas roupas... Sim, desejava ardentemente vestir belas roupas. Sempre que encontrava uma dama da nobreza, com seus trajes lindos e vistosos, ficava a desejar o mesmo para si. A jovem suspirou, lembrou-se da mãe e sussurrou:

- Eu não vou ficar aqui para sempre. Não vou mesmo! Escutou alguém chegando. Depois de duas leves batidas, a porta se abriu e

a freira que já estivera ali disse: - Boris enviou esta roupa e pediu que a vestisse. Ao tomá-la nas mãos Verônica viu como era austera e indagou:

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- Que roupa é esta? - São os trajes que toda noviça usa ao entrar para a ordem. Depois, ao se

tornar freira, veste-se igual a mim. Verônica ficou sem ação. A freira informou: - Vista-se. Aguardo lá fora. Assim que estiver pronta me avise, para que eu

corte os seus cabelos. Verônica sentiu o sangue sumir-lhe do rosto. Adorava seus cabelos - eram

lindos, louros, e tinha verdadeira paixão por eles. Porém, antes que pudesse esboçar qualquer objeção, a freira saiu e fechou a porta. A jovem sentou-se na cama sem saber o que fazer. Levantou-se e andou de um lado para outro. O-lhou a roupa sobre a cama e colocou-a em frente ao corpo; depois, atirou-a longe, em prantos. Caminhou até onde estava a roupa, pegou-a e sentou-se com ela entre as mãos. Tocou os cabelos e ergueu-se, firme. Foi até a porta, abriu-a e chamou a freira:

- Entre, por favor, preciso falar com você. - Por que ainda não está pronta? Temos de chegar antes de começarem os

serviços religiosos. - Qual é o seu nome? - Irmã Adriana. - E seu nome de batismo? - Esse é o meu nome de renascimento. Você precisa se vestir. - Por que quer cortar meus cabelos? - Todas as noviças fazem isso quando entram para a ordem. E uma maneira

de renunciarmos à vaidade e ao orgulho. - Mas eu não quero ser noviça. Eu não quero ser freira. - Então, o que veio fazer aqui? Verônica caminhou de um lado ao outro no quarto. Depois, sentando-se ao

lado da freira, desabafou: - Eu vim porque necessito de proteção. Estou sozinha no mundo e preciso

que alguém me ampare. - Pois então, veio ao lugar certo. Nosso Senhor Jesus Cristo há de protegê-

la. Em troca, entregue-lhe sua vida. - Você não está entendendo. Eu não tenho nenhuma vontade de ser freira.

Quero viver a minha vida, tenho sonhos, planos para o futuro. Não quero aca-bar aqui dentro, apodrecendo em um cubículo como este.

A freira ergueu-se e, com evidente contrariedade, disse: - Você acha que todos que estão aqui vieram porque foram chamados por

Deus? Não, moça. A grande maioria está aqui por outros motivos. Mas aqui estamos e só nos resta servir à Santa Madre Igreja da melhor maneira.

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- Muitos estão aqui obrigados, então? - Não diria obrigados, e sim compelidos pelas circunstâncias, como no seu

caso. Você foi trazida pela vida e o melhor que tem a fazer é conformar-se. Lutar contra o destino causará maior sofrimento ao seu coração. Não foi sua mãe que lhe pediu para vir?

Verônica, sem ânimo para responder, inclinou a cabeça concordando. - Pois então, ela sabia o que é melhor para você. Agora vamos, vista-se. Verônica, resoluta, declarou: - Não, eu não vou. Você não vai encostar um dedo em meus cabelos. Eu

não quero ser freira. Não vou. Irmã Adriana saiu sem dizer nada. Alguns minutos depois, a porta se abriu

de novo e Boris entrou, sério. - Vista-se e deixe que a irmã Adriana corte os seus cabelos. - Não posso, não quero ser freira. - O arcebispo de Praga está lá fora à sua procura. Ele quer conversar com

você e averiguar determinados eventos referentes à sua mãe... Pretende julgar se você é ou não uma herege, uma bruxa. Foi isso o que me disse.

A jovem empalideceu. Ele continuou: - Eu lhe disse que você está sob a proteção da irmandade e que se tornará

freira. Só assim obtive a concordância dele em deixá-la em paz. Prefere que eu o chame aqui agora, para levá-la?

Quase sem poder respirar, a jovem respondeu: - Claro que não. - Pois vista a roupa que lhe enviei e assuma o seu destino. Veio em busca

da minha ajuda, e eu posso ajudá-la indicando-a à irmandade para que se torne urna servidora da Igreja; e assim, se seu comportamento for adequado, a Inqui-sição poderá deixá-la em paz.

Ele silenciou por alguns instantes, depois prosseguiu: - Então, o que vai ser? Geórgia sabia o que estava fazendo. Ela quis prote-

gê-la. Vamos, vista-se. Você não tem alternativa. Ou assume a nova vida, ou vai ficar sem nenhuma.

Aturdida e sem saber o que fazer, ela pegou a roupa das mãos do primo e ainda insistiu:

- Você não pode fazer alguma coisa? Eu não quero ser freira. Não pode me ajudar de outro modo?

Ele esboçou ligeiro sorriso e respondeu, antes de fechar a porta: - Até poderia, minha prima, mas sempre achei você e sua mãe muito estra-

nhas. Acho que deve mesmo se tornar uma servidora da Igreja. Eu quero que seja freira, para sua própria proteção.

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Em seguida, fechou a porta atrás de si e saiu. Verônica sentia o corpo intei-ro tremer. Queria sumir dali, o que era impossível. Estava claro que o primo, por alguma razão, a fizera prisioneira. Enquanto as lágrimas lhe corriam pela face, ela trocou de roupa e entreabriu a porta:

- Já me vesti - informou. A freira entrou e disse: - Muito bem. Sente-se, que vou cortar seus cabelos. Com uma faca afiada ela começou a cortar as lindas mechas de Verônica.

A cada novo corte, os fios caíam pelo chão e para a jovem era como se um punhal lhe fosse cravado no peito. Sentia que, junto com os cabelos, perdia parte de sua vida. Ao terminar, a freira convidou:

- Pronto. Agora sim, está preparada para tornar-se uma noviça. Venha co-migo, e não fale com ninguém. Você deverá fazer voto de silêncio até se tornar freira.

Limpando as lágrimas, a jovem indagou: - E quanto tempo isso irá levar? - Isso Boris definirá com sua santidade o arcebispo. Amargurada e sem sa-

ída para aquela situação, Verônica seguiu a freira pelo corredor, até alcançarem a grande capela. Um coral de freiras

entoava cânticos sacros, enquanto ela era colocada ao lado de outras duas jo-vens, que também iniciavam o noviciado naquela noite.

VINTE E UM

O ATO LITÚRGICO SEGUIA sem contratempos. Verônica assistia a tudo o que

ocorria à sua volta como se não estivesse acontecendo com ela. Seu desejo era desaparecer daquele lugar. Aquilo lhe parecia um pesadelo. A certa altura, fitou a imagem do Cristo crucificado e, envolvida pela emoção, orou baixinho:

- Jesus, você foi crucificado e sofreu tudo o que não merecia. Sabe melhor do que ninguém o que é sofrer. Ajude-me, por favor... Eu quero sair desta situ-ação e não sei como. Perdoe-me se me julga ingrata, mas não desejo ser freira nem servir à Igreja. Não acredito que a Igreja, tal qual se apresenta hoje, esteja a seu serviço.

Sentindo a angústia aumentar, à medida que a solenidade se encaminhava para o momento de oficializar o ingresso das jovens nos serviços eclesiásticos, ela murmurou:

- Ajude-me, por favor, Jesus. Ajude-me, minha mãe, de onde você esti-ver...

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Enquanto as lágrimas lhe desciam pelo rosto, ela era conduzida por uma freira ao altar onde receberia a bênção do arcebispo e seria oficialmente rece-bida pela Igreja. Ao lado do arcebispo estava Boris.

Ela foi a última da três jovens e, ao aproximar-se, ouviu-o perguntar ao pa-dre:

- É esta? - Sim, santidade. Ele a fitou de cima a baixo e, detendo-se nos olhos, comentou: - Tem os mesmos olhos irrequietos da mãe. Ante a surpresa de Verônica,

chamou: - Venha, minha filha. A jovem caminhou devagar. Ao chegar bem perto, ele disse, áspero: - Quero seu escapulário. Ela o fitou, incrédula, e o ouviu prosseguir: -Assim que terminarmos, tire-o e segure-o. Quando nos despedirmos e vier

me beijar a mão, entregue-o sem que ninguém perceba. Incapaz de acreditar no que escutava, ela balbuciou, tentando sorrir: - Pertenceu à minha mãe e é a única lembrança que trago dela. Não, meu

senhor, não posso entregá-lo. E afastou-se depressa, antes que ele pudesse reagir. Baixou a cabeça e vol-

tou ao seu lugar próximo às outras noviças. Quando a solenidade terminou, Boris se aproximou dela e disse:

- Não será tão ruim assim, você verá, minha prima. Ela o encarou sem responder. Depois, levantou-se e seguiu as demais jo-

vens sem dizer nada. Acompanhava as outras moças pelo longo corredor, en-quanto maquinava como faria para sair dali, para fugir da cidade. Seu coração batia descompassado e suas mãos estavam frias. Desejava ardentemente jamais ter entrado naquele local, naquela armadilha. Finalmente entrou em seu quarto; irmã Adriana fechou a porta, dizendo:

- Amanhã, às cinco horas, virei despertá-la para as orações da manhã. De-pois teremos o desjejum e uma longa lista de tarefas a realizar. Assim que ba-ter, deverá levantar-se, entendeu?

Sem suportar mais, explodiu: - Isto é uma verdadeira prisão! Vocês me transformaram em uma prisio-

neira! A freira sorriu e respondeu, irônica: - Melhor presa aqui do que no tribunal da Inquisição, que é certamente

onde estaria neste momento, se não tivesse sido acolhida por nós. Agradeça a seu primo e à intervenção dele junto ao arcebispo, que está bastante disposto a

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colocá-la nas mãos dos inquisidores. Portanto, moça, aquiete-se e aprenda a servir à Igreja com devoção. Quem sabe, com isso, Deus se apiede de você e a perdoe.

Sem esperar resposta, a moça fechou a pesada porta atrás de si e Verônica lançou-se na cama, chorando desesperada. Não demorou muito a ouvir barulho no corredor e logo a porta se abriu. Era Boris. Verônica ajeitou-se na cama e perguntou:

- O que quer? - O arcebispo pediu que viesse buscar o escapulário. - Não! Isso eu não vou dar. - Mas por que, criatura? - E por que ele o quer tanto? O que deseja fazer com uma lembrança queri-

da de minha mãe? Não posso me separar dele! - Olhe, Verônica, para mim essa medalha nada significa, mas o arcebispo a

quer. Enfurecida, ela ergueu-se e desafiou, altiva: - Pois então que venha ele mesmo buscá-la e me diga por que deseja tanto

uma coisa sem valor para ele, e que para mim vale tanto. - Deixe-me apenas ver o escapulário. O padre que a recebeu me falou dele. - Afinal, o que tem de tão especial? Boris insistiu: - Deixe-me vê-lo. Não vou tirá-lo à força. De longe, Verônica tirou-o de dentro da blusa e deixou que o primo o vis-

se. Ele se espantou: - Não é à toa que o padre deixou-a entrar. Somente a alta cúpula da Igreja

possui escapulários azuis, como esse. São extremamente raros e pertencem às mais eminentes personalidades. Onde Geórgia o conseguiu?

Guardando a peça, ela respondeu: - Não sei, não faço a menor idéia. Minha mãe nunca me disse, mas jamais

tirou-o do pescoço. Sempre o usou, desde as mais remotas lembranças eu a via com ele.

- Seria melhor para você não fazer o arcebispo vir até aqui. - Não se aproxime, Boris, ou vou gritar! Você já me fez muito mal. Já bem perto da prima, Boris tocou-lhe os cabelos macios e disse, balan-

çando a cabeça: - Deveria me agradecer, priminha. Estou lhe prestando um grande favor.

Sabe que não existiria futuro para você se eu não a estivesse ajudando. - Se deseja me ajudar mesmo, deixe-me ir embora daqui. Ajude-me a fu-

gir! Não quero viver neste lugar...

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O jovem padre deu uma gargalhada e andou até a porta, dizendo: - Você nunca sairá deste lugar, ouviu? Sua vida, agora, pertence à Igreja e

também a mim. Vou usá-la de acordo com meus interesses. Afinal, sou seu protetor aqui dentro, e enquanto assim for estará suficientemente protegida. Saiba, porém, que a um estalar de meus dedos você estará em poder da Inqui-sição. Portanto, pense muito bem e se comporte, minha prima. Faça o que digo e continuará viva.

Antes que o jovem deixasse o quarto, ela indagou, entre lágrimas: - Por que me detesta tanto? Ele a fitou, mas seu olhar parecia buscar alguma reminiscência do passado.

Por fim, falou: - Só o que sei é que sempre me provocou verdadeira aversão. Desde o pri-

meiro dia em que pus os olhos em você. Não sei, deve ser algo que faz, o que você é... Talvez seja mesmo o demônio se expressando através de seus atos.

Após tal afirmação, fechou a porta e saiu, deixando-a desconsolada. Muito tempo se passou até que ela adormeceu e recebeu uma visita espiritual; era uma jovem que, sentando-se ao seu lado na cama, disse com doçura:

- Verônica, escute-me. O corpo espiritual de Verônica se desprendeu e sentou-se, atordoado, ao

lado da bela jovem. Ela disse: - Sinto-me confusa e estranha. Quem é você? Que sensação é esta? Vendo o próprio corpo adormecido na cama, gritou assustada: - O que está acontecendo? Estou morta? - Não, seu corpo físico está dormindo e precisamos conversar. - Quem é você? - Sou uma amiga. Verônica, você tem de resignar-se à situação em que se

encontra. Não deve arquitetar planos de fuga. - O que me diz? Se não compreende o desespero que sinto neste lugar, vo-

cê não pode ser minha amiga! - Eu compreendo bem seus sentimentos, acredite. Ainda assim, sei que vo-

cê está no lugar em que deveria estar. A vida é muito mais do que as ilusões que alimentamos em torno dela. Nossa vida é eterna. Já tivemos outras exis-tências e muitas outras teremos. Cada uma será o reflexo do bem ou do mal que plantarmos com nossos atos diários.

Limpando as lágrimas, a jovem encarnada afirmou: - Mas eu não faço o mal. - Tampouco faz o bem. Está na hora de usar sua sensibilidade e começar a

ajudar as pessoas que necessitam. E que melhor lugar do que este, onde a o-portunidade de auxiliar acontece dia e noite?

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- Do que está falando? - Aqui você terá oportunidade de ajudar muitas pessoas. E ainda poderá ser

colaboradora de importante obra que está para principiar. Depois de breve pausa, ela prosseguiu: - Já ouviu falar de Jan Huss? - Vagamente. - Poderá colaborar com ele, se tiver paciência e nos escutar. Verônica se-

gurou a cabeça entre as mãos e disse: - Não estou entendendo nada... Afagando-lhe os cabelos, a entidade espiritual esclareceu: - Você concordou em vir para cá e ficar perto de seu antigo inimigo, de

modo a servir-lhe e buscar cultivar sua simpatia e seu perdão. - De quem está falando? - Que sentimentos Boris lhe desperta? Verônica pensou um pouco, depois

nomeou: - Medo, tristeza, culpa... - Exatamente. Em existência pregressa, há muitos séculos, você arquitetou

a morte de seu enteado. Distanciou-se do bem que poderia ter cultivado e per-deu-se em orgulho e vaidade. Após desencarnar vagou durante séculos, e seu inimigo a perseguiu por escuras cavernas, nas regiões sombrias do planeta. Sofreu muitas dores até ser finalmente resgatada por abnegados servidores da luz. Em várias etapas de aprendizado, reencarnou algumas vezes. Por fim, mais preparada, aceitou regressar para resgatar os débitos contraídos com esse inimigo do passado. Agora tem nova oportunidade de convívio, exatamente como desejou. Seja forte. Peça ajuda a Deus, com sinceridade, e submeta-se à sua vontade amorosa. E para seu próprio bem. Quando recobrou um pouco de lucidez, percebeu o quanto se desviara da senda que deveria trilhar e arrepen-deu-se. Não reincida num caminho tortuoso. Aprenda a ouvir seu coração. Nós vamos lhe falar através dele. Ouça-nos. Ouça sua consciência. Sua sensibilida-de foi intensificada para ajudá-la a nos perceber melhor.

Fazendo grande esforço para compreender o que dizia aquela bela jovem, ela procurou confirmação:

- Quer dizer que prejudiquei Boris em outra vida? - Muito. Você colocou pai contra filho, e vice-versa. Suas intrigas e insi-

nuações venenosas instilaram desconfiança e ódio entre os dois. E como resul-tado da intemperança do pai, ele acabou com a vida do filho.

Verônica soltou um grito de horror e murmurou: - Não pode ser verdade... Não posso ter sido esse monstro... Sorrindo afe-

tuosa, a entidade tomou-lhe as mãos e falou, carinhosa:

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- Todos já praticamos crimes contra as leis de Deus. Não há um só ser que não tenha cometido erros. Estamos aqui para auxiliá-la a consertar os enganos do passado. Para isso, precisa aprender a perdoar-se, com humildade, e convi-ver com Boris, buscando ser-lhe útil, ganhando sua simpatia e por fim seu per-dão. Somente assim poderá refazer esse doloroso momento de sua história. Não conseguirá retomar o caminho da ascensão espiritual enquanto não se redimir com Boris.

Verônica ficou muda por alguns instantes, depois comentou: - Não consigo me lembrar... Como era o nome dele? - Ele se chamava Crispus. Verônica arregalou os olhos e gemeu: - Crispus... Crispus... Sim, eu me lembro...

VINTE E DOIS

O INVERNO DE 1402 se anunciava dos mais rigorosos. O dia amanheceu

muito frio. A neve cobria as ruelas da esplêndida cidade de Praga e o ar gelado dificultava a respiração dos caminhantes. O extenso rio Vltava, congelado, transformara-se na sensação das crianças e dos jovens, que adoravam andar sobre ele durante o período em que assim permanecia.

A reforma da bonita capela estava quase terminada. Venceslau9 veio pes-soalmente supervisionar o andamento das obras. Depois de caminhar por todo o interior da capela, comentou, ao sair:

- Quando poderão entregá-la pronta? - Dentro de três ou quatro meses, majestade. - Por que tanto tempo? Já está quase tudo feito! O arquiteto responsável calou-se, enquanto o rei meditou um pouco antes

de determinar: - Contratem mais homens, se isso resolver. Quero que me entreguem a ca-

pela no máximo em dois meses. Vou colocá-la logo para funcionar! Um dos arquitetos adiantou-se e disse, resoluto: - Vamos providenciar mais homens para abreviar os trabalhos de renova-

ção da capela. - Muito bem! Têm dois meses. Ao entrar na carruagem, comentou com a esposa, que o aguardava: - Mais dois meses e estará pronta.

9 Venceslau IV, da casa de Luxemburgo, foi rei da Boêmia e governou entre 1363 e 1419.

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- Está ficando uma beleza, Venceslau. Já decidiu quem vai ser o próximo responsável por ela?

O jovem rei pensou por instantes, visualizando a figura do homem que ha-via escolhido, e respondeu:

- Sim, vou colocá-la nas mãos de Jan Huss. - Excelente! Ninguém poderia ser melhor! Creio que esse é o homem esco-

lhido por Deus para conduzir nossa capela de Belém10. Já contou a ele sobre sua nova responsabilidade?

- Ainda não. - Pois faça-o logo. Ele ficará feliz. - Jan tem estado muito ocupado. Suas atribuições como reitor da universi-

dade estão tomando bastante seu tempo. - Não se preocupe, querido. Sei que ele está decidido a denunciar os abusos

da Igreja, e não há melhor modo de fazê-lo do que lhe oferecendo o púlpito da capela, onde vai falar em nossa própria língua, estendendo a todos a possibili-dade de compreensão dos serviços religiosos. Ele saberá usá-lo muito bem. Afinal, tem preparo e coragem para enfrentar os clérigos.

Venceslau, atento à manifestação da esposa, fitou-a sério e indagou: - Acha mesmo? - Não tenho qualquer dúvida. O rei silenciou e ela sorriu, detendo-se em minuciosa observação da cape-

la, enquanto a carruagem se afastava. A neve começou a cair novamente sobre a cidade, e Vesceslau e a rainha foram direto para o Castelo de Praga, lar da família real da Baviera.

Ao entrar, o soberano ordenou a um de seus mensageiros: - Quero que mandem chamar Jan Huss. Desejo vê-lo o quanto antes. Jan Huss, então com 33 anos de idade, havia assumido a reitoria da Facul-

dade de Filosofia de Praga e comandava-a com paixão. Fortemente influencia-do pelas obras de John Wyclif11, tornou-se abertamente defensor da idéia de que a Igreja precisava passar por profunda mudança, por uma reconstrução espiritual, para retornar à sua essência; não aceitava a supremacia papal, mas a doutrina de que Cristo, e não Pedro, era o chefe da Igreja, considerando o E-vangelho como única lei que deveria ser seguida.

10 A capela de Belém foi fundada no ano 1391, como o lugar onde se pregava em checo, e tinha capacidade de albergar 3 mil pessoas. 11 John Wyclif foi professor da Universidade de Oxford, teólogo e reformador religioso inglês, considerado precursor das reformas religiosas que sacudiram a Europa nos séculos XV e XVI. Trabalhou na primeira tradução da Bíblia para o idioma inglês, que ficou conhecida como a Bíblia de Wyclif.

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Sentado a sua mesa, Jan empunhava a pena e escrevia quando o mensagei-ro do rei lhe bateu à porta:

- Entre. Cumprimentando-o com sincera simpatia, o jovem mensageiro informou: - Sua alteza, o rei Venceslau, deseja vê-lo, senhor. Quer que jante com ele

esta noite. Jan Huss se levantou e caminhou até a janela. Entreabriu-a e logo sentiu no

rosto o vento gelado. Depois, virou-se para o rapaz e disse: - É claro que irei ter com o rei. Pode confirmar minha presença à mesa real. O mensageiro se retirou e o padre ficou fitando pela janela a bela cidade de

Praga, que se tornara seu lar; havia muito trocara sua pequena Husinec pela grande cidade. Depois voltou a sentar-se e retornou as notas com as quais pre-parava uma obra em que denunciava os abusos da Igreja Católica. Jan amava o Evangelho com desvelo e recitava-o praticamente de cor. Meditava nas lições deixadas por Jesus e encantava-se com a beleza e profundidade daqueles ensi-nos, que julgava ainda distantes da compreensão dos religiosos de seu tempo. Por alguma razão de que não tinha total clareza, a grande maioria do clero não entendia o Evangelho, tampouco se comprometia em aprofundar suas experi-ências e meditações sobre Jesus e seus ensinamentos. Para ele, a Igreja torna-ra-se um amontoado de dogmas e regras que serviam aos interesses temporais e terrenos de seus líderes, que estavam muito distantes das verdadeiras lições do Mestre de Nazaré. Jan se preocupava também com o povo e seus sofrimen-tos. Tocado pela dor do próximo, era freqüentemente visto pelas ruas distribu-indo mantimentos e conversando com as pessoas, que buscava consolar e a-tender sempre que podia. Tornara-se um homem respeitado pelo clero e pela nobreza, e amado pelo povo tcheco.

Logo que entardeceu, Jan se dirigiu ao castelo. Sentado à mesa em compa-nhia de Venceslau, da rainha Sofia, do arcebispo de Praga e de alguns mem-bros da nobreza tcheca, o rei informou sua decisão.

- A capela de Belém em breve estará completamente renovada. Quero que assuma sua direção e seu púlpito, Jan.

O padre sorriu. - Fico extremamente honrado, majestade. Gostaria imensamente de ex-

pressar com maior liberdade meus pensamentos a respeito das mudanças que creio serem necessárias à Igreja.

- Pois, com meu consentimento, tão logo a capela esteja pronta, assumirá seu comando e poderá dizer o que pensa sobre a situação da Igreja e apresentar suas idéias para a necessária renovação.

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Erguendo pesada taça de ouro puro, cravejada com pedras preciosas, Ven-ceslau levantou-se e conclamou:

- Um brinde à nossa capela e ao seu novo líder. Tocados os copos, o rei fi-nalizou:

- Saúde. Com discreto sorriso nos lábios, o arcebispo acompanhava a movimenta-

ção. Simpatizava com Jan, embora por vezes o achasse demasiado apaixonado e emotivo. No entanto, acreditava que eram arroubos do jovem pobre de Husi-nec que em poucos anos se tornara influente e admirado. Acompanhava seus mínimos gestos e analisava-os com atenção.

Ao final da celebrada ocasião, despediu-se de seu anfitrião: - Preciso retirar-me, alteza. O rei objetou. - Tão cedo? - Meus deveres são muitos, senhor, preciso mesmo ir. - Pois então vá, arcebispo. Antes que o clérigo terminasse de vestir a capa, com vista a proteger-se do

intenso frio que fazia fora do palácio, o rei indagou: - Crê que nossa capela de Belém estará em boas mãos? - Como não? Jan é um padre estudioso e capacitado, e seu poder de retóri-

ca o fará um excelente pregador. Temos o homem apropriado para as funções. - Fico satisfeito. - Boa noite, alteza. Retirando-se, o arcebispo foi direto para o monastério, à procura de Verô-

nica. Assim que chegou, perguntou sobre a jovem. Adriana informou: - Ela está trancada em seu quarto, senhor. - Vou até a biblioteca. Traga-a até mim. Ocupando uma cadeira espaçosa próxima à lareira, o arcebispo ajeitava de

leve a lenha quando Verônica, assustada, apareceu à porta. Estendendo-lhe a mão para que a beijasse, o arcebispo convidou:

- Vamos, minha filha, entre. Como a moça parecia hesitar, ele insistiu: - Entre. Sente-se, precisamos conversar. Verônica entrou e se acomodou em uma cadeira de onde o olhava de fren-

te. Ele limpou a garganta e disse, pegando de sobre a mesa uma carta manus-crita:

-Tenho aqui informações sobre a senhorita. Fugiu, não é mesmo? Verônica observava o religioso em absoluto silêncio. Seus olhos azuis a-

companhavam-lhe os menores gestos. Ele ergueu-se, caminhou até bem pró-ximo dela, fitou-lhe o rosto e comentou:

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- E muito bonita, Verônica... Como sua mãe. Ouvindo falar da mãe, a jo-vem animou-se a perguntar:

- Conhecia minha mãe? - Sim, conhecia-a muito bem. Fez breve pausa, depois prosseguiu: - Como acha que conseguiu entrar neste mosteiro? - Não sei. Acho que por causa de meu primo. - Boris? - Sim. Esboçando cínico sorriso, o arcebispo redarguiu: - Sua entrada neste santuário nada tem a ver com seu primo, muito embora

agora ele seja o responsável por você. O arcebispo se ergueu novamente, caminhou até a moça e pediu: - Deixe-me ver o escapulário. Instintivamente, como para proteger a preciosa lembrança que trazia da

mãe, ela segurou-o forte sob as vestes e murmurou: - E um presente de minha mãe. Pertencia a ela e agora é meu. Erguendo li-

geiramente a voz, o religioso ordenou: - Quero vê-lo já! -Não! - Minha jovem, não seja inconseqüente. Sei que não é isso que sua mãe de-

sejaria, por isso mesmo deu a você esse precioso objeto que agora ordeno que me entregue.

Verônica continuou a segurá-lo firme, e o arcebispo acrescentou: - Tenho um pedido aqui em minhas mãos para entregá-la à Inquisição, a

fim de que a investiguem. Com os olhos arregalados de terror, a jovem ajoelhou-se diante do religio-

so e implorou: - Por favor, não faça isso... Erguendo-a, ele sussurrou-lhe ao ouvido: - Então colabore. Deixe que eu veja o escapulário. Temerosa, a jovem pu-

xou a pequena peça e colocou-a sobre a roupa. O arcebispo tomou-a nas mãos, observou-a atentamente e a arrancou com força do pescoço da jovem, que caiu no chão em prantos, indagando:

- Por que faz isso? O que tem meu escapulário que não pode permanecer comigo? Diga-me vossa santidade, explique-me para que eu entenda...

Com a peça presa nas mãos, ele disse: - E um escapulário muito especial, feito exclusivamente para uns poucos

servidores da Igreja; existem apenas cinco. Retirou de dentro da batina seu próprio escapulário, e Verônica percebeu

que eram idênticos. Ele prosseguiu: - Não deveria estar nas mãos de hereges!

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- Ele pertencia à minha mãe e agora pertence a mim! - Não. Pertence a seu pai, que jamais o deveria ter dado. Entretanto, apesar

dos graves deslizes que ele cometeu, permanece fiel à Igreja. Vou devolver esta jóia ao legítimo dono.

Verônica mal podia respirar. O arcebispo ergueu-se e caminhando para a porta comentou, antes de sair: - O padre que a recebeu à porta na outra noite é o verdadeiro dono do es-

capulário. Ele saiu, deixando Verônica trêmula pela chocante revelação. Adriana apa-

receu em seguida e pediu: - Vamos, precisamos nos recolher; já é muito tarde, venha. Quase incapaz de se manter sobre as próprias pernas, Verônica andou até o

quarto e, sem pronunciar sequer uma palavra, entrou e sentou-se em sua cama, ainda chocada.

VINTE E TRÊS VERÔNICA FITAVA o NADA, enquanto sentia as lágrimas quentes descerem

pelo rosto. Deitou-se e, fechando os olhos, chorou amargurada. O que a vida lhe reservara? Somente dor e angústia. Depois pensou no pai, de quem a mãe pouco lhe falava; quando o fazia era com carinho e ternura e sempre dizia que ele fora servir a Deus em outras terras. Ela não compreendia, e a mãe não es-clarecia. Deitada sob o teto do monastério, a jovem refletia: então a mãe a en-viara ao encontro do pai, e não do primo? Seria mesmo verdade? E por que o pai não lhe dissera nada? Afinal, como poderia ser um padre da Igreja, e com o conhecimento do arcebispo? Sentia-se confusa e triste. Depois de chorar mui-to, acabou por adormecer.

Duas semanas se passaram. A rotina de Verônica era desgastan-te: levan-tava-se por volta de cinco horas da manhã e seguia direto para a capela, onde fazia suas preces junto com outras noviças e freiras. Então seguiam em absolu-to silêncio até uma grande sala de refeições; a uma mesa enorme, todas faziam o desjejum sem qualquer barulho. Logo em seguida ela começava sua jornada de trabalho, que incluía limpar o chão dos corredores, dos quartos e dos de-mais cômodos, enfim, do grande mosteiro. Antes do almoço ela se lavava e retornava à capela, para mais orações. Depois do almoço, nova rodada de tra-balho, desta vez na cozinha. E assim que começava a escurecer, jantava e ia direto para o quarto. Presa naquela rotina diária, sentia-se prestes a enlouque-cer.

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Naquela noite, em especial, quando voltou para o quarto, sentou-se na ca-ma, desalentada. Sentia que suas forças se esvaíam e estava quase desfalecen-do. Sem ânimo para se vestir para dormir, permaneceu longo tempo sentada. Então, bateram na porta.

- O que deseja, irmã Adriana? - ela disse. - Estou muito cansada e me pre-parando para dormir.

Uma voz de homem respondeu: - Sei que está cansada, minha filha, mas deixe-me entrar. Ela se levantou e

foi até a porta: - Quem é você? O homem baixou ligeiramente a voz ao dizer: - Sou padre Thomas. Abra, por favor. - O que deseja? - Preciso falar com você. Somente um instante. - Não posso falar com ninguém, padre. Estou aqui, reclusa. Não vê minha

situação? Todas as moças estão juntas num mesmo quarto, mas eu permaneço isolada.

- Eu sei, filha. Mas tenho algo que lhe pertence. Curiosa, Verônica entreabriu a porta e reconheceu de imediato o semblante

do padre que a recepcionara no dia de sua chegada. Seu coração disparou e parecia querer sair-lhe pela boca. Pela pequena fresta da porta aberta o fitava, quando ele insistiu:

- Deixe-me entrar, Verônica. Enfim ela abriu mais a porta e o padre logo entrou, fechando-a. Verônica

se afastou, sem desviar o olhar daquele homem, em quem via seus próprios olhos e a mesma cor dos seus cabelos. Padre Thomas aproximou-se um pouco mais e pediu:

- Não tenha medo, estou aqui para oferecer meu apoio. - Um pouco tarde, não acha? - Nunca é tarde, filha. - Pois para mim é. Minha vida está destruída. E tudo por quê? Porque vim

para este lugar... - Sei que está sofrendo, porém precisa aprender a acalmar seu coração e a

confiar em Deus. Ele sabe o que é melhor para nós. - Não posso aceitar a vida que estou levando. - Sua mãe a enviou para cá para protegê-la, e você sabe disso. - Proteger-me do quê? - De seu dom. - Do que está falando?

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- De sua capacidade de ver e falar com pessoas que já morreram, de prever o futuro, de saber fatos que aconteceram em locais distantes, totalmente des-conhecidos por você.

- Não me lembro de nada disso... - Você é sonâmbula e faz isso enquanto dorme, Verônica. - Como sabe? - Sua mãe me contou em diversas ocasiões. - Como, se nunca vi os dois juntos? - Eu a encontrava rapidamente quando passava pelo vilarejo, em alguma

viagem. Foram poucas as vezes, mas nos vimos e ela me contou sobre o que ocorria com você. Sua mãe se preocupava bastante com seu futuro, com sua segurança, e por isso não teve escolha, a não ser enviá-la para cá. Ela sabia que assim, mais perto, eu poderia tomar conta de você.

Baixando a cabeça, Verônica guardou silêncio. Padre Thomas deu seqüên-cia à narrativa:

- Eu e sua mãe nos conhecemos antes de eu me tornar padre e nos apaixo-namos. Minha família, constituída por nobres, planejava que eu servisse à I-greja, contudo, meu coração pertencia a Geórgia, não mais a mim mesmo. A família de sua mãe era de camponeses, gente simples e honesta. Meus pais não admitiam sequer a hipótese de nos casarmos. E quando descobriram que ela possuía capacidade semelhante à sua meu pai ameaçou entregá-la à Inquisição, caso eu insistisse em vê-la. Disse inclusive que, se decidíssemos fugir, nos ca-çaria até o fim do mundo e a entregaria à Inquisição. Geórgia via espíritos até desperta, e ficava completamente tomada pelas visões. O padre silenciou bre-vemente, e Verônica balbuciou:

- Eu sei... Presenciei o fato algumas vezes. - Eu era jovem e não sabia ao certo o que fazer. Tentando protegê-la, acei-

tei sagrar-me padre. Meu pai ficou satisfeito e acalmou-se. Antes, entretanto, decidi encontrar-me com ela uma última vez e explicar-lhe o que se passava. Foi aí que descobri que ela esperava um filho... você, Verônica.

Lágrimas desciam dos olhos do padre. Verônica o escutava com atenção e ele prosseguiu.

- Eu não podia fazer nada... Não podia casar-me com ela, como desejava, porque se o fizesse minha família a destruiria. Nós dois concordamos, então, que ela deveria ir para longe de Praga, para algum lugar distante, onde pudesse criar você. Eu lhe dei todo o dinheiro que consegui, bem como adquiri uma pequena propriedade, onde vocês passaram a residir. No dia em que ela partiu, antes ainda de você nascer, entreguei-lhe isto.

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Padre Thomas depositou o escapulário nas mãos de Verônica e fechou-as, enquanto continuava:

- Sempre que podia, passava lá para vê-la, sem jamais me aproximar mui-to, temeroso das conseqüências que isso poderia acarretar a ela e depois a vo-cê.

Ele emudeceu por longo tempo. Depois, acariciando-lhe os cabelos doura-dos, disse:

- Sinto muito, minha filha, por tudo o que você já sofreu. Sinto não lhe ter dado tudo o que eu desejava. Não foi possível... Não tive a coragem suficiente para lutar contra todos. Tive muito medo por sua mãe e por você. Eu já pre-senciei diversas ações da Inquisição e sei do que é capaz. Não poderia permitir que vocês se expusessem a qualquer risco. Consegui proteger sua mãe e você. Mesmo meu pai sabendo de tudo, fiz um acordo com ele para que nada as a-tingisse, se me mantivesse a serviço da Igreja. E aqui estou, cumprindo minha parte. Meu pai também cumpriu a dele, enquanto estava vivo. Há dois anos morreu, e o cerco começou a se fechar sobre você e sua mãe. Só aqui você poderia estar em relativa segurança. Abraçando-a com profundo carinho, pe-diu:

- Não duvide do meu amor por você, filha. Verônica fitou o pai com seus grandes olhos azuis e indagou: - Essa injustiça nunca terá fim? A Igreja seguirá abusando do poder, sem

pensar em nada e em ninguém? Onde está Deus que não faz nada? - Deus está sempre perto de nós, filha. - Mas como? - Ele envia seus mensageiros para orientar os homens. Existe um padre em

Praga que está se levantando para falar sobre os abusos da Igreja, os absurdos que são feitos em nome de Deus. Ele traz alguma esperança aos corações da-queles que, como nós, se sentem oprimidos pelo poder esmagador da Igreja.

Limpando as lágrimas, a moça indagou: - Quem é ele? - Jan Huss. - Acho que vi esse nome entre as coisas de minha mãe. - Dei a ela cópia de alguns manuscritos que ele escreveu. Geórgia desejava

ardentemente que mudanças acontecessem. Ela não sabia ler muito bem, mas esforçava-se para tentar ler os manuscritos de Huss. Onde estão eles?

Verônica abriu uma pequena caixa que pertencera à mãe e mostrou os ma-nuscritos. Ele comentou:

- Você saber ler, não é? - Um pouco.

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-Então aproveite para conhecer os escritos de Huss. Sei que lhe farão bem, filha. E lembre-se de pedir por ele em suas preces... Se prosseguir com suas declarações, precisará do apoio de todos.

Ambos se conservaram em silêncio por alguns minutos, até que o padre anunciou:

- Agora é prudente que eu vá. Não perca as esperanças. Sobretudo, não perca a fé em Deus.

Apertando o escapulário que mantinha entre as mãos, Verônica perguntou: - O arcebispo vai tirá-lo de mim outra vez? - Por ora, guarde-o em algum lugar seguro, da mesma forma que os escri-

tos de Huss. O arcebispo o aceita, mas sei que não comunga das suas idéias. Guarde o escapulário com carinho. Ele é seu, minha filha, não importa o que qualquer um diga a respeito disso.

- E o arcebispo? O que fará se souber que não tem mais a jóia? - Não se preocupe. Deixe que me entendo com ele. Verônica fitou o pai e

indagou: - Não pode ajudar-me a fugir daqui? - Eu gostaria muito... Acontece que seu primo tem forte ascendência junto

ao arcebispo e o convenceu plenamente de que seu lugar é aqui, para que possa redimir-se de seus pecados contra a Igreja.

- Isso não é verdade... - Eu sei que é um equívoco, mas Boris é influente e não sei por que motivo

cismou que você deve ser freira, para ser protegida de si mesma... - É um absurdo... - São muitos os absurdos, Verônica, ainda muito maiores do que este nos-

so drama pessoal. Dirigindo-se para a porta, ele se despediu: - Agora devo ir, filha. Boa noite. Hesitante, a jovem só respondeu depois que a pesada porta se fechou: - Boa noite... pai... Verônica pôde escutar os passos do pai que acabara de conhecer se afasta-

rem pelo longo e úmido corredor. Buscou, então, os escritos de Jan Huss e sentou-se na cama. Com a vela que iluminava o ambiente já bem pequena, mesmo assim ela começou a ler os textos. Quando a luz se apagou por comple-to, ajeitou-se entre as cobertas e pela primeira vez em muito tempo sorriu antes de pegar no sono.

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VINTE E QUATRO O DIA AMANHECERA radiante, cheio de energia; uma vibração suave e ao

mesmo tempo intensa podia ser captada pelas almas mais sensíveis. As ruas da cidade estavam repletas de flores, cujo perfume se espalhava pelo ar em todas as direções. Era primavera em Praga e naquela manhã especial as pessoas não cessavam de chegar para a missa inaugural de Jan Huss à frente da Capela de Belém. Quando, enfim, ele se dirigiu ao púlpito, o recinto estava lotado. Mui-tos fiéis acorriam para vê-lo e ouvi-lo, dentre eles padre Thomas.

Grande número de espíritos a serviço de Jesus também se fazia presente, envolvendo o ambiente em luz fulgurante e lhe conferindo igualmente forte proteção, de maneira a impedir que entidades das trevas ali penetrassem.

Antes de sair de sua sala, Jan observou o salão lotado. Sentindo o coração envolvido pelas suaves luzes que enchiam a atmosfera, respirou fundo, como a sorver aquelas vibrações e, com os olhos rasos de lágrimas, orou:

- Jesus, meu Mestre, graças te dou pela oportunidade de f alar em teu nome,

pela possibilidade de te servir por meio das palavras. Sinto em meus ombros o peso da responsabilidade por aquilo que proferirei a todas essas pessoas, que aqui procuram o alimento para suas almas. Ajuda-me, senhor, a falar o que é de tua vontade. Não me permite colocar os olhos em mim mesmo; impede-me de dizer uma só palavra que esteja em desacordo com a tua vontade e os teus desejos. Ampara-me a boca e os lábios, para que sejam instrumentos de tuas misericordiosas palavras. Amém.

Em seguida, resoluto, adentrou o salão e ocupou seu lugar ao lado do rei.

Venceslau outorgou-lhe oficialmente, diante de todo o povo, a condução da capela e o seu púlpito, e depois se sentou. A rainha Sofia presenciava, satisfei-ta, a solenidade. O arcebispo também acompanhava os mínimos movimentos do clero, da nobreza, e especialmente de Jan Huss. Ele, então, tomou o púlpito e pela primeira vez celebrou toda a missa na língua tcheca, e não em latim, como era o usual em todas as igrejas católicas, de sorte que todos o podiam compreender. Falou sobre a força da fé em Deus e a necessidade do homem de nele depositar total confiança. Depois levou o povo a meditar sobre a urgência das reformas que a Igreja precisava se comprometer a realizar, se quisesse ser-vir a Deus, auxiliando o povo a fortalecer sua fé.

Eloqüentes e persuasivas, suas palavras foram recebidas com extrema sim-patia pela quase totalidade dos presentes. Não obstante guardasse reservas

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frente à empolgada preleção de Huss a respeito dos abusos da Igreja, o clero o apoiava, na maioria, crendo que suas pregações fortaleceriam a Igreja tcheca.

Vesceslau e especialmente Sofia estavam radiantes ao deixar a capela. Sen-tiam, confiantes, como se nova etapa se iniciasse. De fato, aquele momento marcaria a oposição declarada de Praga aos abusos eclesiásticos.

A alguns quilômetros dali, em uma clareira, quatro entidades espirituais assistiam a distância a movimentação na capela. Uma delas comentou, visi-velmente contrariada:

- Não estou gostando nada do que vejo. - E... Também não me agrada o rumo que as coisas estão tomando - res-

pondeu outra. - Com esse andar a situação poderá complicar-se para nós. A terceira comentou: - Não pudemos nos aproximar... Isso não é bom... E a que se mantivera calada ergueu a voz para ordenar: - Calem-se. Não estão vendo que necessitamos de concentração? Precisa-

mos de Núbio aqui. - Por quê? Ele é capaz de nos trucidar por não termos sequer nos aproxi-

mado... - Fique quieto, se não tem nada inteligente a dizer... A grotesca figura ia se defender, quando chegou uma entidade espiritual

envolta em pesado e negro manto. Os quatro se colocaram em posição de reve-rência e cumprimentaram Núbio, que os fitou e indagou:

- O que se passa? Por que me chamaram? - Não pudemos alcançar a capela e não conseguimos saber detalhes do que

está acontecendo... Ele olhou atentamente para o local e depois comentou: - Ora, não é preciso esforço algum para saber o que se passa. E tomando com violência o rosto de um deles, mostrou a movimentação: - Estúpida criatura, o que está vendo? - Não sei... - Olhe bem, preste atenção... - Estão conversando, sorrindo... Parecem felizes... - Exatamente! Exultantes, para ser exato. - Por que não pudemos ir até lá? - Vocês são patéticos... O que acham? Os espíritos de luz nos impuseram

barreira vibratória. - Mas você não poderia tê-los impedido? - E claro que poderia, se estivesse aqui, não é mesmo? Esse era o trabalho

de vocês...

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Em busca de defesa, uma das entidades objetou: - Nós tentamos... E foi por isso que o chamamos... Bufando impaciente,

Núbio ficou longo tempo a observar e viu quando Jan Huss saiu da capela em alegre conversação, junto ao arcebispo de Praga. Depois verificou que diversos padres e bispos o cumprimentaram com sincera simpatia e, virando-se para os companheiros, declarou:

- Temos muito a fazer aqui. Esse Jan Huss parece que nos dará trabalho. Conquistou a simpatia do clero. Continua lendo aquele professor inglês?

- Tenho acompanhado seus estudos e escritos e sei não só o lê com fre-qüência, como parece inspirar-se nele para escrever os próprios textos. E evi-dente que o adotou por mentor.

- Como eu imaginava. Estamos diante de uma criatura que certamente nos criará problemas.

Calou-se por instantes, pensativo, e concluiu: - Mas nada que não possamos controlar e vencer. Vamos, temos muito tra-

balho a fazer. Esse Jan Huss precisa ser destruído. As quatro entidades, lideradas por Núbio, logo desapareceram, enquanto

comentavam: - Como faremos? - Não se preocupem. Nossa falange é grande e temos auxiliares espalhados

em todos os cantos. Não será difícil manipular os homens de acordo com nos-sos interesses.

Na porta da capela, padre Thomas cumprimentou Huss, parabenizando-o pela importante conquista. Assim que saiu, retornou para o mosteiro e foi dire-to procurar a filha. Batendo na porta do quarto, chamou:

- Verônica, você está aí? Abrindo pequena fresta, ela respondeu baixinho: - Sim, estou aqui. Thomas percebeu que a jovem escondia o rosto e estranhou: - O que está havendo, filha? Abra a porta. Hesitante, a jovem acabou por abrir, e o pai entrou. Ao ver seu rosto ma-

chucado e suas mãos em carne viva, assustou-se: - O que aconteceu com você? Ela baixou os olhos e, esforçando-se para conter a tristeza, bal-buciou: - Eu caí... Ele examinou o ferimento perto dos olhos e o das mãos, e insistiu: - Vamos, conte-me. O que está havendo? O que aconteceu? Não suportan-

do mais, ela explodiu em lágrimas:

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- Eu estava limpando a escadaria principal do mosteiro. Boris me obrigou a limpá-la quinze vezes. Cada vez que aparecia, dizia que o serviço estava mal feito, que eu precisava fazer tudo outra vez. E de novo e de novo me obrigou a limpar. Da última vez, eu já não conseguia pegar o pano, mas ele insistiu que eu deveria repetir a limpeza. Ergui-me e mostrei-lhe o estado de minhas mãos, mas ele retrucou que aquilo não era nada, que muitas penitências a que ele próprio se obrigara já o haviam ferido muito mais. Eu não suportei: avancei contra ele, que me empurrou. Caí e ele me empurrou novamente; desequili-brei-me e rolei da escada... Foi assim que feri os olhos.

- E ele, o que fez? Cheia de ódio, Verônica respondeu: - Saiu dizendo que pediria a alguém para me ajudar. - Não a acudiu? - Nem tomou conhecimento. Fiquei caída, gemendo, até que a irmã Adria-

na veio me ajudar, garantindo que a culpa fora minha por tentar agredir o pa-dre Boris. Deu-me o recado de que deveria terminar o trabalho e depois ir para a capela do mosteiro, rezar durante o resto da noite para ser perdoada por tê-lo agredido...

A jovem não conseguiu dizer mais nada. Thomas abraçou-a com profundo carinho e ela chorou convulsivamente em seu ombro. Quando conseguiu se acalmar, indagou entre suspiros e soluços:

- Por que isso tem de acontecer? O que fiz ao meu primo para que ele me odeie? O que fiz, pai?

-Não sei, filha. Às vezes parece-nos que a vida é injusta, mas sei que não é. - Claro que é, pai! Esse Deus a quem vocês tanto dizem obedecer é um ser

que não nos ama. Do contrário, por que nos faria sofrer tanto? Não consigo aceitar...

Fitando-a longamente, Thomas custou a falar. Enfim, inspirado por Angé-lica, entidade espiritual que o acompanhava, indagou:

- O que sua mãe costumava dizer sobre questões dessa natureza? Verônica limpou os olhos e fitou o pai em silêncio. Depois, baixou a cabe-

ça e respondeu: - Dizia-me que Deus sabe todas as coisas, que é bom e amoroso, mas que a

Igreja tomou o seu lugar na Terra e está abusando demais do poder que o Todo Poderoso lhe concede.

- Geórgia era uma mulher singular. Tinha uma compreensão tão clara das coisas que chegava a me assustar. Ela estava certa, filha. Entendia as verdades espirituais melhor do que a maioria dos padres. Não podemos atribuir a Deus uma culpa que é nossa.

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- Nossa culpa? - Dos homens em geral. - Não posso concordar. Então, por que ele permite que coisas como essas

aconteçam? Por que permite que homens inescrupulosos abusem do poder, destruindo vidas, como faz a Inquisição?

- E quem diz que permite? Quem diz que o Pai não está agindo para mudar as coisas?

- Não... Não posso aceitar esse Deus. Há muita injustiça na Terra. Veja o meu caso: o que fiz para ter de sofrer desta forma?

Sem saber o que responder, Thomas voltou a abraçar a filha e pediu: - Tenha calma, por favor. Ainda que não possamos compreender de imedi-

ato, deve haver uma razão; nós é que a desconhecemos Temos de confiar em Deus, Verônica, e ele haverá de nos auxiliar. Não

podemos desacreditar... - Eu não posso confiar em um Deus que permite tantas injustiças e tanta

dor... Abraçando-a mais forte, Thomas ficou calado por um bom tempo; então,

segurando o rosto belo e delicado da filha, limpou-lhe as lágrimas e pediu mais uma vez:

- Vamos confiar em Deus. Afinal, houve algo de bom em tudo isso: nós nos encontramos e estamos juntos.

Verônica esboçou leve sorriso, depois baixou a cabeça e chorou sentida. Estavam ainda juntos quando Boris bateu à porta:

- Vamos, Verônica, tenho trabalho para você. Thomas abriu e o jovem pa-dre o fitou, empertigado:

- O que faz aqui? - Estou visitando a jovem Verônica. - Sua filha, não é? -Sim. - Pois é bom que não interfira em meus métodos. Ela é minha responsabi-

lidade, e pretendo ensinar-lhe, a meu modo, como se serve à Igreja. Haverá de ser mais humilde e obediente, isso será mesmo!

- Ela está muito machucada, Boris. Apenas dê-lhe um tempo para se recu-perar.

- Venha, Verônica. Vamos limpar a capela hoje. A jovem arregalou os olhos e, mostrando as mãos, questionou: - Como poderei limpar algo, com as mãos neste estado? - Que limpe com a boca, com os pés! Vai trabalhar para a Igreja para a-

prender a ser-lhe útil. - Por favor, Boris, deixe-me descansar um pouco...

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- Venha, agora! Thomas fez menção de interferir, mas Boris antecipou-se e avisou: - Se você se intrometer, Thomas, vai piorar a situação dela. E farei com

que seja transferido para bem longe. Talvez para outro continente, quem sabe? Precisamos expandir a mensagem da Igreja por toda a parte...

Fazendo breve pausa, virou-se para Verônica, puxou-a pelo braço e ao saí-rem dizia:

- Venha, vamos trabalhar, que o seu mal é a preguiça...

VINTE E CINCO TRÊS ANOS SE PASSARAM. Verônica buscava, em vão, meios de fugir do

mosteiro. Resistia às constantes fustigadas de Boris e não se dobrava interior-mente. Ao contrário, sentia-se cada vez mais inconformada. Naquela manhã, Thomas a observou demoradamente enquanto Boris celebrava a missa. Parecia bem mais velha do que quando chegara. Seu olhar era triste, sem brilho e sem esperança. Suas mãos haviam ficado ásperas pelo trabalho incessante. Muito mais do que isso, seu coração ia endurecendo diante das reiteradas agressões que sofria do primo. A vida como prisioneira da Igreja a revoltava profunda-mente.

Quando a missa terminou, a jovem voltou para o quarto. Thomas foi vê-la: - Você parece ainda mais triste hoje, filha. Dobrando mecanicamente as roupas que tinha sobre a cama, ela comentou: - Hoje faz três anos que minha mãe morreu. - E verdade. Havia me esquecido. - Pois eu não me esqueço. Faz três anos que vivo neste inferno. E, agora,

sou uma freira! Eu, uma freira! Thomas aproximou-se, afagou-lhe o rosto com ternura e falou: - Verônica, eu e mais dez padres estamos organizando um orfanato para

cuidar de crianças órfãs. O rei Venceslau apóia a iniciativa e hoje à tarde inau-guraremos a casa onde serão abrigadas. Você não gostaria de ajudar? De dedi-car algum tempo a essas crianças?

- Eu, pai? Já não acha que trabalho bastante aqui? - Se quiser trabalhar conosco, posso interceder junto ao arcebispo para que

destine parte de seu tempo a cuidar dos pequeninos sem lar. Certamente seria um trabalho muito mais prazeroso para você. O que acha? Poderia sair, de vez em quando.

Verônica fitou o pai e a idéia da fuga lampejou em sua mente.

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- Eu poderia sair todos os dias? - Não, somente nos dias em que irá contribuir com o orfanato. Umas duas

ou três vezes por semana. As crianças precisam de cuidados de mãe... Verônica pensou um pouco, andou de um lado a outro, sentou-se novamente

na cama e afinal, fixando os olhos do pai com seus grandes olhos azuis, disse: - Eu quero. - Ótimo, filha. Sei que sua mãe aprovaria sua decisão. Vou conversar com

o arcebispo. Você está aqui há três anos e certamente se tem comportado con-dignamente. Isso será favorável ao meu pedido por você. Nunca mais andou à noite, não é?

- Não. Desde que cheguei aqui, sinto-me tão exausta e desolada... Nunca mais acordei fora de minha cama nem tive aquelas ausências prolongadas e estranhas.

- E tem sentido alguma outra coisa estranha? - O que, por exemplo? - Eu não sei. Qualquer coisa. - Não. Só sinto tristeza e... ódio. - Verônica, não fale assim. O ódio não é bom conselheiro. Ele nos prejudi-

ca e é contrário aos ensinos de Jesus. - Diz isso porque não sabe o que eu tenho passado, o que tenho sofrido... - Minha filha, deve aprender a abrandar o seu coração. É o único modo de

sermos felizes: aceitando a vontade de Deus... - Pois eu não aceito! Não posso aceitar... Deus só me tem feito sofrer... Thomas permaneceu em silêncio, até que se levantou para sair. - Preciso ir - disse. - Quero falar com o arcebispo e ver se consigo a autori-

zação para você colaborar no trabalho com as crianças. Quando ele deixou o quarto, a filha deitou-se na cama e chorou amarga-

mente. Não demorou muito e Thomas retornou: - Verônica, tenho boas notícias. A jovem abriu a porta e o pai, sem entrar no quarto, confirmou: - Consegui a autorização. Três vezes por semana você passará o dia com

as crianças. Serão três dias com os pequeninos, que certamente aliviarão o seu coração. E você ficará longe deste lugar por algum tempo. Isso certamente lhe fará bem.

- E Boris, permitiu que eu vá? - Ele acabou concordando. Neste momento, o arcebispo está mais interes-

sado nos problemas da Igreja do que nas querelas de Boris. - Que problemas? - Jan Huss.

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- O que ele fez? - Está insuflando o povo e o clero contra a Igreja. Verônica mostrou-se in-

teressada: - Insuflando como? - Bem, embora não o faça diretamente, o tempo todo aponta as falhas, as

incongruências, os desmandos da Igreja. Suas missas na Capela de Belém têm atraído milhares de pessoas. O povo de Praga o apoia e bebe suas palavras. O arcebispo está contrariado. Ele era muito próximo de Huss, mas sei que atual-mente pouco se falam. As relações entre os dois esfriaram.

Verônica ficou pensativa, depois indagou: - Ele fala na Capela de Belém em nossa própria língua e não em latim? É

isso mesmo? - Sim, e as pessoas vêm de longe para ouvi-lo. Ele tem influenciado os ou-

vintes e o povo de Praga o apoia contra os abusos da Igreja. Huss, de fato, deu voz às insatisfações do povo, da nobreza e até de alguns membros do clero que não pactuam com o que se tem feito dentro da Igreja.

- E você, pai, o que pensa? - Apesar de apreciar Jan Huss, sinto que ele se expõe demais. - E ele não teme? - Parece tão confiante como se nada o pudesse atingir. - Homem interessante. - Sim, e corajoso. - Gostaria de ouvi-lo. - Seja paciente. Deixe seu trabalho com as crianças se firmar. Depois vejo

se, com a apreciação de sua colaboração, consigo uma autorização para levá-la à capela de Belém.

Ficaram mais um pouco a conversar, e então Thomas comunicou: - Tenho de ir agora. Logo mais venho para irmos juntos. - Eu irei sempre com você? Todas as vezes? - Essa é uma das condições para que possa sair: vai e volta comigo. Aliás,

eles me advertiram: se não voltar, a responsabilidade será toda minha. E as conseqüências, funestas.

Verônica empalideceu. Segurando o braço do pai, ela perguntou: - Como assim, funestas? - Se algo der errado em seu trabalho, serei responsabilizado e punido. - Punido como? - Do modo que parecer melhor a Boris. Essa foi a condição imposta pelo

arcebispo, com a concordância de seu primo.

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- Ele me persegue! Parece que lê meus pensamentos... Olhando-a com ter-nura, Thomas considerou:

- Não é difícil adivinhar-lhe as possíveis intenções. Boris está atento a to-dos os seus movimentos.

- Por que age assim comigo? - Eu não sei, filha. De qualquer forma, prepare-se. Será um belo passeio. É

inverno e o rio está completamente congelado. Você apreciará a cidade no inverno.

Verônica não disse mais nada. Sentou-se na cama e escutou o pai se afas-tando pelo longo corredor. Logo após o almoço, cumpriu suas obrigações na cozinha, lavando os pratos e limpando o chão. Quando saía da cozinha, Boris a procurou e, aproximando-se, alertou:

- E bom que tenha juízo em suas saídas. O arcebispo aprovou sua contri-buição no orfanato, porque precisamos de mulheres lá para auxiliar as crian-ças. Contudo, eu continuo atento aos seus movimentos.

- Eu sei bem disso, Boris. - E bom que saiba mesmo. Estou observando você. Verônica silenciou.

Seus olhos faiscavam de rancor e o primo comentou: - Não adianta nutrir toda essa raiva por mim... Você está em minhas

mãos... Ela o fitou firme nos olhos, como a enfrentá-lo: - Eu nunca tive nada contra você, Boris, o que já não é o seu caso. Você,

sim, me odeia. Por quê? O que fiz para que me trate dessa maneira? Como ele fizesse menção de deixar a cozinha, ela, contrariando todas as

normas do mosteiro, segurou-lhe o braço e insistiu: - Não fuja. Diga, o que lhe fiz? Por que me odeia tanto? Desvencilhando-se

das mãos da prima, ele, sem olhá-la, disse enquanto se afastava: - Não lhe devo satisfações. Faço tudo pelo seu bem, pois você precisa se

dobrar, precisa se dobrar à Igreja... Boris se afastou e Verônica teve vontade de atacá-lo com uma faca, que es-

tava próxima, mas foi subitamente distraída pelo chegada do pai: - Está na hora de irmos. Desviando a atenção de Boris, ela respondeu: - Sim, claro, vou até o quarto pegar um agasalho e já volto. Logo os dois,

de braços dados, cruzavam os portões do mosteiro. Ao sair da construção e alcançar a rua, Verônica respirou fundo. O vento

gelado em seu rosto, o aroma da vida fora do mosteiro encheram seus olhos de

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lágrimas. Fazia três anos que não colocava os pés fora daquele prédio. Enxu-gou as lágrimas e o pai, notando sua reação, perguntou:

- O que foi, por que está chorando? Ela não respondeu de pronto. Tornou fôlego, e depois disse: - Faz três anos que não saio daquele mausoléu. Sorrindo, Thomas corrigiu: - Não fale assim do mosteiro. - E um lugar horrível, pai. Você realmente gosta de viver ali? - Eu gosto de servir a Deus, filha. E fico feliz por poder estar perto de vo-

cê. Isso me basta. Verônica pensou por alguns instantes e confessou: - Eu gostaria de ser assim... Os dois caminharam até uma casa não muito distante e, junto com outros

padres e freiras, realizaram a inauguração das atividades do orfanato. Acolhi-am já desde o início 34 crianças. A tarefa transcorreu com tranqüilidade e, ao retornarem, o pai indagou:

- E então, o que achou? - Interessante. - Como se sentiu ao cuidar das crianças? Dar-lhes banho, alimentá-las e

ensinar-lhes sobre Jesus? - Foi melhor do que esfregar o chão do mosteiro. - Não sentiu nada além disso? Não consegue ver a necessidade daquelas

crianças? Não percebe o quanto elas precisam de ajuda, de proteção e de cari-nho?

- Também preciso de tudo isso! - Não é capaz enxergar nada além de você mesma? Chocada com aquela observação, Verônica estacou. Entre a raiva e a ver-

gonha, não sabia o que responder ao pai. Thomas aguardou por alguns mo-mentos e, diante da sua mudez, tomou-a pelo braço:

- Vamos, temos horário para chegar ao mosteiro. E balançando a cabeça em desaprovação, advertiu:

- Precisa olhar um pouco para as outras pessoas, Verônica. Todos temos nossos problemas e nossas dores. Não é só você que sofre no mundo. E mais do que isso: se deixar a bondade envolver seu coração e pedir o amparo de Deus, você se sentirá feliz em ajudar os outros e isso a fará não somente uma pessoa melhor, mas agraciada pelas bênçãos divinas. Pare com essa raiva e aproveite a oportunidade de colaborar, de ser útil, de fazer algo pelos que ne-cessitam.

Como já se acercavam dos portões do mosteiro, Verônica apertou o passo, deixando o pai para trás; tão logo ele abriu o portão, a jovem entrou depressa,

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sem o esperar. Thomas não disse nada, apenas olhou a filha se afastando. Sus-pirou profundamente e, apertando o crucifixo que trazia no bolso, murmurou:

- Vou rezar por você, filha. Você precisa mudar...

VINTE E SEIS NA BIBLIOTECA DO mosteiro o arcebispo e Boris trocavam impressões, jun-

to com outras autoridades eclesiásticas. Boris comentou: - Acho que ele está indo longe demais. Deveria fazer alguma coisa, arce-

bispo. - Espero o momento adequado para agir. Além do mais, Jan tem o apoio

da nobreza. A situação é delicada. Não podemos agir impulsivamente. - Nisso devo concordar. Temos de ser astutos. O rei continua a apoiá-o

como antes? - Todos o apóiam, Boris, e muitos dentre nós têm profunda simpatia pelo

homem. Boris calou-se por longo tempo, depois indagou: - E não vamos fazer nada? O arcebispo ajeitou-se na cadeira larga e confortável e respondeu, enfada-

do: - Vou conversar com ele na primeira oportunidade e adverti-lo no sentido

de parar com as acusações para o seu próprio bem. No canto da sala, três entidades espirituais envoltas em densas energias as-

sistiam atentos à conversa. Entre eles estava Núbio, que de imediato se acer-cou de Boris e envolveu-o com facilidade, transmitindo-lhe seus pensamentos. O padre, erguendo-se, disse alterado:

- Tem de fazer isso logo! Ele precisa acabar com essas estúpidas acusa-ções. Afinal, santidade, quem ele pensa que é?

Fez premeditada pausa, em que os demais, tomados de surpresa pela atitu-de súbita, não esboçaram nenhuma reação, além da surpresa. Então, aduziu:

- Acho que ele quer o seu lugar, arcebispo. Não, quer ser o próprio papa, deve ser isso! Que patético! Esse homem precisa ser detido, não pode continu-ar a influenciar o povo dessa maneira.

O arcebispo tocou nas mãos do jovem padre e procurou tranqüilizá-lo: - Vamos tomar as providências... Acalme-se, vamos. Temos todo o con-

trole em nossas mãos. Ele não pode fazer nada a não ser falar. Vamos cuidar dele no momento certo. Precisamos esperar que a nobreza abra algum espaço para nós. Não tenho a intenção de me opor frontalmente ao rei Venceslau.

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Ainda fortemente influenciado por Núbio, Boris comentou: - Esse rei é um fraco... Precisamos de alguém que nos apoie do jeito que

merecemos. Tome cuidado, arcebispo, pois Venceslau ainda pode nos causar problemas. Fique de olhos atentos sobre ele. Não podemos deixar que se sinta desobrigado conosco.

O arcebispo o encarou e disse, erguendo-se: - Você tem razão. Temos de refrear o poder de Venceslau e, assim, enfra-

quecer Jan Huss sem nos prejudicarmos. Não se preocupe. Encontraremos uma forma de afastá-lo do nosso caminho. Sei que, com calma e astúcia, obteremos o controle total.

Satisfeito, Núbio retornou para junto das duas outras entidades, seus cúm-plices no mal, deixando em Boris a marca de suas pesadas emanações espiritu-ais. E comentou com os comparsas:

- Assim que se apresentar a ocasião, esmagaremos aqueles que se atrevem a nos fazer oposição.

Os meses corriam céleres. Para Verônica, entretanto, os dias se arrastavam. Ela se sentia presa a infindáveis tarefas sem sentido e sem valor. Passou a a-companhar o pai ao orfanato. Muito raramente se deixava atingir pela ternura das crianças que a rodeavam em busca de carinho. Naquela tarde, uma delas disse, pegando alguns fios dos seus cabelos louros entre as pequeninas mãos:

- Irmã Verônica, como são lindos os seus cabelos! Têm a cor do sol. A jovem esboçou ligeiro sorriso e disse: - Os seus cabelos também são lindos, Priscila. Sentando-se no colo de Ve-

rônica, a pequena pediu: - Conte uma história... Adoro quando você faz isso. Sua voz é tão suave... Envolvida pelo carinho das crianças, Verônica sentou-se entre elas e con-

tou-lhes algumas histórias. Esqueceu-se da hora e foi a voz do pai que a trouxe de volta:

- Acho que já chega de histórias por hoje... As crianças protestaram, mas Verônica logo ergueu-se, prometendo que da

próxima vez contaria novas histórias, e despediu-se. Ao alcançarem a porta, Thomas comentou:

- Preciso passar rapidamente na mercearia do senhor Vicente. Você me a-companha?

- Claro. Verônica e o pai logo alcançaram a venda do comerciante que a trouxera

para Praga. A jovem reconheceu o local e, ao entrar, viu Catarina no balcão. Estava mais bonita ainda e, enquanto atendia, segurava nos braços um lindo bebê. Verônica aproximou-se e cumprimentou:

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- Boa tarde. E olhando para a criança, indagou: - É seu? Catarina respondeu: - Sim, é meu filho. - E como se chama? - Seu nome é Felipe. - É um bonito nome, Catarina. A jovem fitou a freira, percebendo que já a conhecia. Enquanto Thomas e

Vicente conversavam sobre algumas encomendas para o orfanato, Catarina falou, fitando a recém-chegada nos olhos:

- Verônica? E você mesmo? Sorrindo, a freira respondeu: - Você ainda se lembra de mim? - Mas é claro! Como poderia esquecê-la? Fiquei preocupada com você to-

dos esses anos. Por onde andou? O que aconteceu? - É uma longa história. E você? Casou-se, então? - Sim. Quando nos conhecemos, já estava noiva e logo depois me casei.

Este é meu segundo filho. Tenho também uma menina, que agora está com a avó.

- E você está feliz? - Sim, muito. Já você parece triste... Baixando os olhos rasos de lágrimas, Verônica respondeu apenas: - A vida não me deu escolha. Estou presa no mosteiro e não encontro modo

de me libertar. Catarina se mostrou penalizada: - Posso ajudar de algum modo? De repente, Verônica pensou de novo em fuga. Rapidamente, a idéia cres-

ceu na sua mente, sob a forte influência de duas entidades espirituais de baixo teor vibratório, que, perto dela, buscavam perturbá-la.

- Talvez possa, Catarina. Thomas, despedindo-se de Vicente, chamou: - Vamos, Verônica. A jovem fitou Catarina e perguntou baixinho: - Pode ir me visitar no mosteiro amanhã cedo? Depois da missa, estarei

limpando o pátio principal. Não posso receber visitas, mas se você for lá tão-somente para fazer preces, ou seja lá o que for, poderemos nos falar brevemen-te. Se de fato desejar, pode me ajudar.

- Estarei lá. Despedindo-se, a freira disse disfarçadamente: - Obrigada.

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Enquanto caminhavam, de regresso ao mosteiro, Verônica estava com o pensamento distante, quase sem escutar o que Thomas falava. Ele comentou:

- Fiquei feliz ao vê-la hoje com as crianças. Elas gostam muito de você, fi-lha.

- São muito meigas. - E gostam de você. -É. Thomas se calou por longo tempo e Verônica indagou: - Você parece preocupado, pai. O que foi? - Realmente estou. E tão perceptível? - Dá para notar facilmente, basta conhecê-lo um pouco. - E que a situação aqui em Praga está ficando muito tensa. Você não per-

cebe? - Tensa como? - O clero, de modo geral, está muito irritado com o que Jan Huss anda pre-

gando e ensinando na universidade. Ele tem muitos inimigos. - Mas o rei não gosta dele? - Sim... Ainda assim, estou aflito. Tenho achado Venceslau cansado. Não

sei, Verônica, creio que o rei não está muito bem. Parece enfraquecido. - Está doente? - Não sei exatamente o que é; sinto-o fraco, como se estivesse exausto por

lutar contra algo que o consome. Thomas silenciou por um instante, depois continuou: - Não sei por quanto tempo Huss conseguirá manter a atual posição. A

pressão é muito grande. Querem que se cale, que pare de fazer anedotas contra o clero, mas ele insiste. Ridiculariza, para quem quiser escutar, o clero e os dois papas, Gregório XII e Alexandre II. Parece não ter medo...

- Acha que podem fazer alguma coisa contra ele, pai? - Sim, eu penso que sim. Se Huss não for cauteloso, poderá sofrer sérias

represálias. Os padres e grande parte de seus colegas na universidade também estão contra ele.

- E quanto ao rei? - Temo que Venceslau não consiga sustentá-lo por muito tempo. O cerco

está se fechando para nosso querido amigo Jan Huss. - E ele sabe disso? - Acredito que sim. Tivemos algumas poucas conversas nas quais ventilei

o assunto, mas ele está convicto de que deve continuar a falar das mudanças que considera fundamentais para a Igreja.

Fitando-o profundamente nos olhos, Verônica indagou:

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- E você, padre Thomas, o que pensa sobre o assunto? Sem hesitar, ele res-pondeu:

- Que ele está certo. A Igreja realmente tem de mudar. E preciso que o cle-ro respeite de fato os ensinos de Jesus, acima dos dogmas da Igreja.

Os dois entraram no mosteiro e, ao se despedirem, Thomas tomou as mãos da filha, dizendo:

- Espero que você esteja permitindo que a sua experiência com as crianças abrande seu coração, filha. Ajudar os outros é a melhor forma de lutarmos con-tra o egoísmo que insiste em controlar-nos.

- Mas eu não sou egoísta. Só o que desejo é ser feliz. - Não podemos ser verdadeiramente felizes sem ajudar a construir a felici-

dade de nossos irmãos. Verônica estava séria ao despedir-se: - Boa noite, meu pai. Sorrindo, Thomas respondeu: - Boa noite, minha filha. Ao se recolher naquela noite, Thomas ficou pensando por longo tempo em

Jan Huss e em sua situação. Sentia como se a cada dia ele corresse mais perigo. Jan fora considerado pelo povo tcheco um herói. A oposição sistemática

que fazia à Igreja, apontando seus abusos e denunciando seus desmandos, em favor dos necessitados de todas as classes sociais, fizeram-no conquistar cada vez mais a simpatia do povo e dos nobres. Já o clero pensava diferente. Tho-mas adormeceu orando pelo fiel servidor de Jesus que tanto admirava.

O rei Venceslau vinha tendo pesadelos havia algum tempo. Suas noites e-ram freqüentemente perturbadas pelas entidades espirituais subordinadas a Núbio e às inteligências a que ele servia: mentes perversas que desejavam, a todo o custo, impedir o desenvolvimento espiritual dos homens.

Explorando as fraquezas mais profundas da alma de Venceslau, relaciona-das a questões sexuais com as quais ele lutava amiúde, perturbavam-no com toda a sorte de sugestões que o levavam a conflitos incessantes entre o que sabia ser o correto e seus mais secretos desejos. Venceslau lutava; todavia, suas forças físicas estavam sendo drenadas pelos conflitos constantes e pelas sucessivas noites mal dormidas. As vulnerabilidades físicas se tornavam mais evidentes. Núbio, atento acompanhava o processo, advertia seus comparsas:

- Prossigam, o resultado será alcançado em breve. O rei não suportará nos-sos ataques por muito tempo. Logo sucumbirá.

- Ele luta muito, e aquela sua esposa também nos atrapalha... Ignorando a alusão à esposa, Núbio insistiu:

- Mas é fraco de caráter. Não conseguirá suportar. A estratégia está dando resultados; portanto, apertem o cerco. Ataquem-no ainda mais intensamente,

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dia e noite, e ele não suportará. Seu corpo físico vem dando claros sinais de desgaste e está enfraquecendo rapidamente. Vamos fazê-lo tombar em breve.

- E depois, o que pretende fazer, Núbio? Quem o substituirá? - Não se preocupem. O irmão dele, Sigismundo12, está ansioso por tomar-

lhe o lugar o quanto antes. E não titubeará em obedecer às minhas sugestões. Seus interesses pessoais não se coadunam com as questões da fé verdadeira, nem mesmo com as questões importantes de fato para o povo. Ele quer poder e o terá!

Depois de pausa calculada, ele concluiu: - Agora vão e façam bem seu trabalho. Cada noite mal dormida é um dia a

menos desse rei ridículo no poder. As duas entidades seguiram de imediato para o castelo de Praga, dirigindo-

se aos aposentos do rei. Sofia dormia no cômodo pegado e a rainha mãe ocu-pava um quarto do outro lado do corredor. Vesceslau ajeitou o travesseiro e se deitou, fatigado. Virou-se várias vezes, procurando acomodar-se na cama, que lhe parecia de pedra. Fechou os olhos e tentou relaxar, quando cenas sensuais começaram a surgir-lhe na mente. Empenhava-se em afastá-las, mas elas no-vamente se insinuavam, buscando a conexão de que precisavam para dominar-lhe os pensamentos. Ele lutou por alguns minutos, até que, cansado como esta-va, entregou-se e adormeceu envolvido por aquelas energias deletérias.

Não muito distante dali, Jan Huss também se preparava para o repouso no-turno. Depois de trocar de roupa sentou-se na cama, fechou os olhos e meditou por algum tempo sobre seu dia, suas atividades, indagando-se se havia de fato servido a Deus naquele período. Visualizou as tarefas realizadas, as conversas que tivera, os conselhos que dera, tudo o que fizera, em detalhes, procurando lembrar se aproveitara todas as oportunidades de ser útil aos seus irmãos. Em meio à reflexão, fixou alguns pontos nos quais concluiu que poderia ter feito melhor. Rogou, então:

- Deus, ajuda-me a ser melhor cristão amanhã do que fui hoje. Perdoa-me as imperfeições que ainda trago em mim, e ajuda-me e servir-te melhor. Orien-ta-me as ações e os pensamentos para que em nada, meu Deus, eu falte com meu dever de amor aos meus semelhantes. Guia-me em todos os meus deve-res, para que seja acima de tudo fiel a ti, senhor de minha alma.

Fez o sinal da cruz e, sentindo-se alentado pelas vibrações de amor que do infinito se derramavam sobre ele, deitou-se e adormeceu logo. Assim que caiu em sono profundo, seu perispírito desprendeu-se do corpo físico. Logo encon-trou Constância, Angélica e Henrique, que o aguardavam, e se cumprimenta-ram com fraternal abraço. Jan comentou, feliz: 12 Sigismundo de Luxemburgo foi rei da Hungria, rei da Boêmia e rei da Germânia.

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- Meus queridos irmãos, que bom vê-los! Sempre é um alento para minha alma a presença de vocês.

Henrique, correspondendo ao carinhoso abraço, disse: - Estamos sempre com você, a todo momento. Se não podemos estar pessoalmente, temos fiéis servidores de Jesus que o circundam, conduzindo e fortalecendo seus propósitos. - Eu sei, sinto-me amparado. Não fosse isso, não conseguiria fazer aquilo

a que me propus. - Trazer a luz sobre as trevas da ignorância nas quais a humanidade se a-

funda cada vez mais. - Exatamente. Ser um instrumento de Jesus, para avivar na mente e no co-

ração dos homens a verdadeira essência do Evangelho, que se perdeu comple-tamente ao longo dos anos.

Depois de permutarem impressões e energias, Henrique tocou o ombro do amigo e falou, mais sério:

- Estamos aqui hoje, Jan, para alertá-lo e prepará-lo. A situação poderá tor-nar-se mais difícil. Há intensa movimentação das trevas opondo-se ao trabalho do Mestre, que se realiza através de você.

- Eles sempre se opõem, não é verdade? - Sim, até quando as leis divinas o permitirem. Nós viemos preparar você

e fortalecê-lo, dando-lhe toda a segurança de nossa presença e do nosso auxílio a todo instante. Lembre-se, você jamais estará sozinho. Não importa quão difí-cil possa parecer a jornada, não se desvie de seus propósitos, que são abençoa-dos por Jesus. Não se deixe perturbar por qualquer tipo de ação contrária ao bem. Permaneça firme e constante em seus objetivos.

Após breve pausa, Henrique convidou: - Oremos. Unindo os pensamentos o grupo orou, conduzido por Henrique. Enquanto

oravam, poderosas emanações de energia desciam sobre eles. Em meio à in-tensa luz que tomou conta do ambiente, a imagem de Jesus se projetou entre eles, que, banhados em lágrimas de sublime emoção, o ouviram com atenção. O Mestre divino enviava mensagem direta de força e amparo à missão gloriosa de Jan Huss: a de despertar as almas adormecidas para as verdades luminosas do Evangelho. E enquanto sua imagem terna e amorosa desaparecia do ambi-ente, ele dizia:

- Que Deus, nosso Pai, nos abençoe. A felicidade que o grupo experimentava ante a projeção do Mestre era in-

traduzível. Aquela manifestação sublime deixou o ambiente profusamente per-fumado e iluminado.

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Chegara o momento da despedida. Jan retomou o corpo físico, sentindo-se completamente refeito e revigorado. Dormiu por mais algum tempo, desper-tando antes das quatro horas da manhã. Levantou-se, com a viva lembrança do encontro emocionante, e, limpando os olhos das lágrimas de alegria que brota-vam espontâneas, preparou-se para iniciar um novo dia de trabalho.

Jan Huss dedicava um dia por semana a atender pessoalmente os necessi-tados que o procuravam ininterruptamente. No dia anterior deixara suas ativi-dades na reitoria da faculdade bem adiantadas e avisara de sua ausência. Apro-veitando-se daquela oportunidade, o arcebispo, que há muito buscava o mo-mento oportuno para agir, realizou uma reunião na faculdade com os mais in-fluentes padres e professores, para discutir a insustentável posição de Jan Huss, declaradamente contra a Igreja. A portas fechadas, eles discutiam e o arcebispo os liderava:

- Não se pode ignorar a influência que ele exerce sobre o povo e até mes-mo sobre muitos padres. Se assim continuar, muitos serão iludidos por sua inegável capacidade de retórica e se deixarão dominar por suas idéias. Boris interveio:

- As quais, diga-se de passagem, não são propriamente dele. Ele segue as idéias de Wyclif, com certeza.

Outros concordavam: - Disso nós não temos dúvida. E Boris prosseguiu: - Pois onde é que isso vai parar? Temos de tomar medidas enérgicas. Ele

não pode continuar livremente, precisa ser detido. Não só Huss, também o rei e a rainha, bem como a nobreza, todos têm de saber que a Igreja detém a últi-ma palavra. Se não for assim, meus caros, nos enfraqueceremos. Não! Defini-tivamente, não! Isso não pode acontecer!

Conclamados e insuflados pelo arcebispo e por Boris, que por sua vez e-ram envolvidos por Núbio e seus servidores, declararam Jan Huss condenado por atos contra a Igreja e proibido de exercer suas funções eclesiásticas, redi-gindo um documento a ser encaminhado a ele. Pronto o documento, todos os presentes o assinaram e, tendo-o em mãos, o arcebispo informou ao grupo:

- Ainda hoje o entregarei pessoalmente ao senhor Huss. Vejamos como se conduzirá, então.

Boris sugeriu: - Entreguemos outro ao rei Vesceslau. Temos de agir pelos dois lados. Com a aquiescência do arcebispo, fizeram uma cópia exata do documento,

a ser levado ao rei. Ao entardecer, Jan Huss retornou ao lar, não sem antes passar brevemente

pela faculdade. Assim que chegou, um auxiliar de sua confiança informou-o da

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reunião que ocorrera pela manhã. Preparado, seguiu para casa. Ao entrar en-controu o arcebispo à sua espera. Beijando-lhe a mão, cumprimentou-o:

- Boa noite, senhor. O que o traz aqui? - Precisamos conversar. Acomodaram-se ambos e Jan, colocando-se à vontade, disse: - Estou à sua disposição. O arcebispo não teve rodeios: - Huss, já chega de agredir a Igreja. - Eu não estou agredindo a Igreja, senhor arcebispo; estou chamando a a-

tenção de todos os homens de coração puro para a necessidade de renovação em nosso meio.

- Mas já chega! Você está passando dos limites. Não pode falar abertamen-te contra a Igreja, e até contra o papa!

- E por que não? Ele não é infalível! Visivelmente irritado, o arcebispo ergueu ligeiramente a voz ao responder: - Isso é uma heresia. O papa é o representante de Deus na Terra. É a voz do

próprio Deus! - A voz de Deus está nas escrituras, arcebispo. O papa é um servo do Altís-

simo, como somos todos nós. - Huss, você tem de parar. Se não o fizer por bem, o fará... - Prossiga, por favor, senhor arcebispo. O arcebispo calou-se por alguns instantes. A seguir, levantou-se e estendeu

o comunicado a Huss: - Pois muito bem. Você acha que pode brincar de ser poderoso, não é mes-

mo? Vai ver que não é tão fácil, senhor Jan Huss. Vai parar de ofender a san-tíssima Igreja.

Entregue o documento, saiu furioso. Jan Huss leu o texto, refletiu um pou-co e saiu, levando-o consigo.

VINTE E SETE VERÔNICA REVIRAVA-SE de um lado para o outro, na vã tentativa de conci-

liar o sono. Seu coração batia descompassado, suas mãos estavam frias e ela não conseguia fechar os olhos. Pensava e repensava em tudo o que faria dentro em breve para desaparecer de vez daquela prisão em que fora confinada. Esta-va tudo acertado com Catarina. Logo estaria livre. Sentia calafrios de ansieda-de percorrerem-lhe a espinha. Já tinha quase desistido daquela idéia, mas ago-ra, com a ajuda da boa Catarina, seu sonho poderia tornar-se realidade. Ela

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planejava detalhadamente como deixar tudo para trás e fugir para uma nova vida.

Naquele mesmo início de noite, Jan Huss entrava no Castelo de Praga, à procura do rei. Um servo que o atendera não demorou a voltar e informou:

- Aguarde no salão, senhor. Sua majestade quer vê-lo imediatamente. Apenas alguns minutos se passaram e Venceslau entrou, a passos firmes, e

o saudou: - Foi bom ter vindo, Jan. Já ia mandar chamá-lo. Recebeu a ordem do ar-

cebispo? Mostrando o manuscrito com a condenação do clero e de vários colegas da

universidade, ele respondeu: - Sim, acabei de receber. - Das mãos do próprio arcebispo? - Exato. Aqui estou para saber de vossa majestade qual é o seu desejo, por-

que o meu é prosseguir com a tarefa a que me propus. Não tenho medo de ame-aças e continuarei a denunciar todos os atos abusivos e absurdos da Igreja.

O rei fitou-o e sorriu, depois disse: - Conversei também com a rainha Sofia e ela concorda comigo. Jan estava

atento ao rei, que acrescentou: - Precisávamos escutar a sua decisão, pois jamais o forçaríamos a continu-

ar com qualquer ação que pudesse colocar em risco sua vida... Calando-se por instantes, o rei logo prosseguiu. - Sabe que enfrentar a Igreja da forma como está fazendo é um ato de

grande coragem, não sabe, meu amigo? - Não poderia fazer diferente, majestade. Estou consciente dos riscos, mas

creio muito que os cristãos precisam libertar-se das pesadas amarras que lhes foram postas pela Igreja, cerceando seu pensamento e seus sentimentos, e, especialmente, bloqueando a verdadeira compreensão da missão de Cristo na Terra, assim como do papel de cada cristão verdadeiro.

O rei sorriu novamente e pegou de sobre a mesa os papéis que recebera do arcebispo com as decisões do grupo. Caminhando até grande lareira, jogou o texto sobre as labaredas e declarou:

- Neste caso, meu amigo, tem minha total aprovação. Prossiga com sua ta-refa e, enquanto estiver ao meu alcance, eu lhe darei minha proteção.

Jan, imitando a atitude do rei, também lançou nas chamas da lareira o do-cumento que lhe fora destinado. E juntos, em silêncio, observaram os papéis serem destruídos pelo fogo. Logo depois, agradecendo o permanente apoio do rei, Jan se retirou satisfeito.

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Venceslau, tendo compartilhado com a esposa o encaminhamento da situa-ção, foi para o quarto e preparou-se para dormir. Acomodando-se na cama, não conseguia parar de pensar na determinação e na fé que moviam os atos de Jan Huss. O soberano o admirava.

Na manhã seguinte, nem bem o dia havia clareado e padre Thomas e Ve-rônica se aprontavam para sair. Estavam cruzando o portão principal do mos-teiro quando um mensageiro se aproximou e informou que surgira um proble-ma com a carga destinada ao orfanato; o padre devia ir imediatamente à mer-cearia. Thomas tomou Verônica pelo braço:

- Vamos filha, apressemo-nos. Precisamos ir primeiro à mercearia e só en-tão ao orfanato...

Foi interrompido pelo forte choro de um menino aparentando seus doze anos que parecia desesperado e se dizia ferido. Thomas ajoelhou-se, pergun-tando o que se passava, e ele respondeu:

- Apanhei de alguns moleques que me fazem de escravo; preciso de ajuda. Está doendo muito.

Exibiu manchas arroxeadas na barriga e também nas pernas e nas costas. Sem saber o que fazer, desejando socorrer o garoto e ao mesmo tempo resolver a questão importante na mercearia, Thomas pediu:

- Façamos o seguinte: Verônica, leve o menino até o orfanato e peça para o médico ir vê-lo rápido; eu vou até a mercearia e resolvo logo o problema.

Solícita, Verônica assentiu: - Pode deixar, pai, que eu vou socorrê-lo. Passando a mão pelo cabelo do

garoto, indagou: - Como é seu nome, rapazinho? - Pedro. - Muito bem, Pedro, vamos. Tomou o menino pela mão e ia se afastar; de repente parou, virou-se para o

pai e, andando depressa até ele, beijou-o com ternura e disse: - Até breve, pai. Thomas sorriu e respondeu: - Não demoro... Vou apenas liberar essa carga e logo estarei por lá. Assim que o pai se afastou o suficiente, Verônica entregou ao menino al-

gumas moedas de ouro e advertiu: - Jamais conte nada a ninguém, entendeu bem? Agora ande, vá embora. O menino sumiu e a jovem correu na direção oposta àquela que levava ao

orfanato. Próximo à ponte de Judith, encontrou uma carroça com algumas pro-visões e Catarina aguardando-a. Verônica correu ao seu encontro e, ofegante, agradeceu:

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- Jamais terei como agradecer-lhe, Catarina. Mal me conhece e está sendo tão generosa, me ajudando tanto... Serei eternamente grata a você.

Séria, Catarina disse: - Espero que você encontre o que procura, Verônica. Às vezes pensamos

que nossa felicidade está em algum lugar muito longe de nós, mas sei que ela está dentro de nossos corações.

- Obrigada mais uma vez, Catarina. Encontrarei uma maneira de pagá-la pelas coisas que está me cedendo. Trata-se de um empréstimo. Prometo pagar por tudo.

- Não se preocupe. Esta carroça, como já lhe expliquei, é bem velha e meu pai pouco a utiliza; e o animal também está velho, praticamente não nos servia mais. Eram somente para uma emergência.

Já sentada na carroça, Verônica tomou as rédeas e enfatizou: - Esta é, sem dúvida, uma emergência. Segurando o braço da amiga, Cata-

rina insistiu: - Tem certeza do que está fazendo? Verônica titubeou internamente apenas por fração de segundo, e falou fir-

me: - Preciso ir logo. Não sei quanto tempo levará para meu pai perceber que

foi enganado. Adeus, Catarina. Saiu apressada, atravessando a ponte. Catarina a observou até desaparecer,

depois retornou para a mercearia do pai. Cerca de meia hora mais tarde, Thomas entrou no orfanato andando com

rapidez, mal cumprimentou as crianças e perguntou pela filha: - Onde está Verônica? A freira que diuturnamente tomava conta das crianças informou: - Ela ainda não chegou, padre. Desencontraram-se? Thomas tinha mais do

que suspeitas de que a filha tentara fugir. Insistiu: - Talvez tenha chegado sem ser vista. Vou procurá-la eu mesmo. Depois de

vasculhar o prédio, ele retornou à entrada e irmã Beatriz indagou: - E então, encontrou? - Não, ela sumiu. Escutaram uma voz, à porta: - Ela fugiu, você quer dizer. Era Boris, que, movido por estranha intuição, fora até o orfanato, o qual vi-

sitara apenas por ocasião de sua inauguração. Assustado, e sem ter tempo para refletir, Thomas redarguiu:

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- Não, deve estar no mosteiro. Apareceu um garoto machucado quando sa-íamos e ela deve tê-lo levado ao mosteiro, ao invés de trazê-lo para cá... É só isso.

Boris afirmou, resoluto: - Não seja estúpido, Thomas. Ou vocês estão juntos nessa armação, ou sua

filha o enganou e agora tenta acobertá-la. De toda forma, você sofrerá as con-seqüências. Foi alertado para tomar conta de Verônica; a responsabilidade é sua. Vou mandar gente atrás dela; aquela estúpida não irá muito longe.

Boris saiu, deixando Thomas sem forças para responder. Ele sentou-se, e colocando a cabeça entre as mãos, falou baixinho:

- Verônica, minha filha, o que foi que você fez. Naquela mesma noite, Thomas foi convocado para uma reunião presidida

pelo arcebispo e com mais alguns clérigos. Boris ardia de raiva, e a custo o arcebispo lhe controlava os ímpetos de agressão contra Thomas. Ele o acusava com veemência:

- Você é culpado pelo que está acontecendo. Sempre soube que sua filha é envolvida pelo demônio: desde pequena ouvindo vozes, falando com almas dos mortos, exatamente como a mãe. Ela precisa ficar confinada neste mostei-ro, para ser protegida de si mesma. Avisamos para ser cauteloso, mas você não nos acredita, não é, Thomas? Acho até que lhe facilitou a fuga!

Resignado frente às acusações, Thomas limitou-se a dizer: - Isso não é verdade... Fui pego de surpresa como todos vocês... Não sei

nem como foi que ela conseguiu escapar... - A moça da mercearia, como é o nome dela? - De quem está falando? - Da filha mais nova do proprietário da mercearia; ela está envolvida, não

está? Mantendo a cabeça baixa, Thomas indagou: - Por que acha isso, Boris? - Não foi ela quem deu desculpas rotas para levá-lo à mercearia? Hesitante,

o interpelado respondeu: - Foi, mas... não sei... Aproximando-se do bondoso padre, Boris o mediu de cima a baixo e disse,

provocativo: - Você nunca sabe de nada, não é? No entanto, vive maculando a santa I-

greja com os seus atos. Ainda não está suficientemente convencido de suas responsabilidades?

Calando-se por alguns instantes, caminhou até a mesa que o arcebispo o-cupava e sugeriu, enfático:

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- Pois eu o considero culpado pela fuga de Verônica. Para proteger ambos, pois ela retornará ao nosso santuário, creio que deva ser enviado ao oriente para pregar aos hereges e infiéis. Vá pregar em meio aos muçulmanos!

Profundamente afeiçoado à sua pátria e em especial às crianças do orfana-to, Thomas sentiu forte aperto no peito, mas nada respondeu. Boris aguardava a determinação do arcebispo. Pediram que Thomas se retirasse e logo em se-guida o chamaram de volta. O arcebispo sentenciou:

- Padre Thomas, vai ser transferido para o oriente, a fim de servir à Igreja entre os mouros. Partirá amanhã pela manhã.

Thomas balbuciou: - Tão depressa? Boris fez menção de responder, porém o arcebispo o atalhou: - Não queremos que você e Verônica se encontrem tão cedo. Assim que

regressar, ela deverá ser punida por fugir desse modo. Thomas ergueu a cabeça, disposto a argumentar em favor da filha, mas o

arcebispo o impediu: - Não adianta, Thomas; nada que disser fará que mudemos nossa decisão. Após breve pausa, olhou para os demais participantes e sentenciou: - A reunião está encerrada. Boris emendou: - E muito bem aproveitada...

VINTE E OITO UMA SEMANA DEPOIS, Boris saía da missa matinal quando um noviço o al-

cançou no corredor e, ofegante, informou: - Encontraram Verônica, estão com ela na carroça. Boris abriu largo sorri-

so, e satisfeito orientou: - Leve-a até o refeitório e chame os outros - freiras, padres, serviçais. Que-

ro humilhá-la diante de todos. O noviço o fitou, confuso diante do comentário, e Boris, ao notar-lhe o es-

tranhamento, replicou: - Ela é orgulhosa demais, foi por isso que fugiu. Precisa ter seu orgulho

dominado. E para o próprio bem dela, rapaz. Vá logo, obedeça. O jovem aprendiz saiu e cumpriu as determinações. Verônica chorava mui-

to quando foi levada, de mãos atadas, ao refeitório. Percebeu que o ambiente estava lotado e não ousava erguer a cabeça. O primo, do outro lado da sala, falou:

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- Meus caridosos irmãos, esta mulher está completamente perturbada. De fato é possuída, todos sabem por quem... Por isso não se submete à ajuda que lhe oferecemos. Precisamos dominar quem a domina, por isso ela deverá per-manecer por dois meses em completa clausura, alimentando-se apenas com o necessário para manter-se viva. Assim, enfraqueceremos o corpo e seremos mais capazes de controlar-lhe os instintos destrutivos. Observem bem, meus irmãos, como fica um ser humano quando se deixa tomar pelo mal. Agora, rezem muito e se afastem desta mulher, para o bem de vocês.

A jovem, acuada, chorava. Boris silenciou por instantes, depois finalizou a prazerosa opressão sobre a prima:

- Podem levá-la. Verônica indagou, sem erguer a cabeça: - Onde está meu pai? Boris orientou: - Deixem, eu mesmo vou levá-la ao seu isolamento. Quando todos deixa-

ram o refeitório, ele aproximou-se da prima e informou, com visível satisfa-ção:

- Thomas está no oriente, entre os muçulmanos. E lá ficará até que eu te-nha certeza de que você aprendeu sua lição. E, outra coisa, aquela jovem que a ajudou... Como é mesmo o nome dela? Catarina?

Verônica, quase sem conseguir respirar, escutava com o coração descom-passado, dominada pelo ódio.

- Terá a parte dela também. Todos têm de compreender que não podem a-gir contra a Igreja.

Desesperada, Verônica agarrou o primo pela batina, na altura do pescoço, com força descomunal, e insistiu:

- Ela não tem nada a ver com isso, foi tudo culpa minha, só minha. Por fa-vor, não faça nada a Catarina. Ela é uma ótima pessoa.

Afastando a moça com rispidez, ele disse: - Sei que a ajudou. Ela própria confessou... - O que foi que fez com ela, seu monstro? Monstro!... Segurando a moça

com as duas mãos, ele abriu a porta da sala escura e sem janelas, de chão bati-do, completamente vazia, e a jogou para dentro, trancando-a em seguida. O-lhou pela minúscula janela e disse:

- Vai ficar aí até apodrecer, ou aprender a me obedecer. Ouvindo Boris se afastar, Verônica permaneceu deitada no chão, onde fora jogada pelo primo, e chorou convulsivamente. Seu desespero não tinha limite, e seu ódio igualmen-te crescia. Vencida pela exaustão, adormeceu. Dois espíritos amigos, que ali estavam para ajudá-la, auxiliaram seu corpo espiritual a desprender-se. A jo-

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vem continuava chorando. Confusa, não percebia a presença dos espíritos que a circundavam. Um deles pediu:

- Acalme-se, Verônica, ou não conseguiremos ajudá-la. Ela continuava chorando, sem registrar-lhes a presença. Fizeram mais al-

gumas tentativas, e enfim uma das entidades disse: - Não adianta, ela é incapaz de nos escutar. É melhor a recolocarmos no

corpo físico. Antes que iniciassem as providências, Geórgia apareceu na sala e pediu: - Boa noite, meus amigos, deixem-me tentar. Tocando a filha com ternura, envolveu-a em carinhoso abraço. Verônica

sentiu ligeiro conforto em contato com a conhecida energia amorosa da mãe, e acalmou-se um pouco. Logo o pequeno grupo conseguiu fazer-se visível a ela. Ao ver a mãe, ela atirou-se em seus braços em pranto doloroso:

- Mãe, que saudade! É você, mesmo? Acho que estou sonhando, mas não importa... Que sonho maravilhoso este, de poder ver você!

- Acalme-se, minha filha, por favor. Precisamos conversar. Acomodando-se no chão, Geórgia sentou-se ao lado da filha;

tomou-a no colo, como uma criança, e pediu: - Acalme-se. Você precisa confiar em Deus, filha. - Como pode pedir que eu acredite em Deus, se ele só me faz sofrer? - Você é que está trazendo todo o sofrimento para sua vida. - Como, eu? Você não sabe o que Boris tem feito comigo? - E você já não sabe o que fez com ele no passado? Verônica empalideceu. De súbito, lembrou-se de Crispus e de sua existên-

cia como Fausta, ao lado de Constantino. A mãe prosseguiu: - Foi você quem pediu para viver próximo a ele, na esperança de conquis-

tar o seu perdão, através da simpatia. Ao invés disso, está atraindo sofrimento intenso para sua vida, e agravando a animosidade existente entre vocês. Tho-mas tentou de todas as formas ajudá-la; levou-a ao trabalho com as crianças para que aprendesse a pensar nos outros antes de se concentrar somente em si. Esse era um dos recursos mais eficazes para fortalecer-lhe a vontade no bem. Rebelde, você desperdiçou a chance que teve. Sua encarnação está tomando um rumo perigoso, minha filha. Precisa repensar suas atitudes, aprender a per-doar. Compreenda que Boris tem aversão à você porque inconscientemente sabe de todo o mal que a ele foi causado no passado. Pare de nutrir ódio por ele e comece a praticar aquilo que Jesus nos ensinou: o perdão. Precisa perdoá-lo, tirando toda essa mágoa do coração. Unicamente colocando dentro de seu coração os ensinos de Jesus, aprendendo suas lições, é que você obterá resul-tados positivos em sua presente existência. Por isso pediu para vir e ficar presa

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neste mosteiro, para ouvir as lições de Jesus repetidamente, para conviver com Boris na esperança de refazer o relacionamento de vocês e, assim, renovar seu coração no bem.

Verônica chorava baixinho. Geórgia acariciou-lhe os cabelos com indizível ternura, e olhando-a nos olhos, convidou:

- Faça seu melhor, filha. Estarei sempre com você, nunca ficará sozinha. Mas deve fazer sua parte, precisa abrandar seu coração.

Sem dizer nada, Verônica agarrou-se à mãe e chorou muito, acabando por adormecer em seus braços. Tomando-a no colo, a mãe amorosa reuniu o corpo espiritual daquela que fora sua filha a seu corpo físico e aplicou-lhe passes para fortalecer suas energias e também com o intuito de que ela pudesse recor-dar, ainda que vagamente, a conversa que acabavam de ter. Depois, partiu, deixando Verônica aos cuidados dos dois amigos espirituais.

Passados dois meses, a jovem saiu pela primeira vez do cubículo que ocu-pava. Tinha emagrecido muito e suas roupas estavam em farrapos. Fraca, mal conseguia sustentar-se nas pernas. Foi levada para o refeitório e recebeu refei-ção reforçada. Logo depois, Boris apareceu:

- Seu espírito já está domado? Pensou bem em seus atos? Vai dobrar-se, a-final?

Verônica ergueu a cabeça de sobre o prato em que devorava a refeição e, limpando a boca, disse:

- Vou me esforçar muito para ser outra pessoa. - Muito bem! Estou vendo que está começando a criar algum juízo, o que é

muito bom. Vai voltar às suas responsabilidades na limpeza do mosteiro, vai participar de todas as missas e vai fazer tudo o que eu disser.

Balançando a cabeça, a jovem procurou conter-se e concordou novamente: - Sim, vou me esforçar muito para melhorar. Com sorriso cínico, o padre

comentou: - E vai rezar todos os dias, durante duas horas, na capela. Precisa rezar

muito para ser perdoada de seus pecados. Ela não respondeu e ele se afastou. Os dias que se seguiram foram de ár-

duo trabalho e reclusão total. Ninguém se aproximava de Verônica e ela cum-pria suas obrigações em silêncio. Seguindo uma vaga intuição que lhe afluía do inconsciente, depois do contato com Geórgia, esforçava-se para abrandar suas emoções e sua raiva. Aos poucos se revigorava e conseguia exercer algum controle sobre si, chegando a prestar atenção às poucas lições de Jesus que, de quando em quando, eram levadas aos noviços, padres e freiras. Ela parecia, de fato, estar melhor.

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Algumas semanas se passaram. Certa manhã, enquanto limpava o pátio principal do mosteiro, agachada, ouviu um homem rezando e chorando. Ao erguer a cabeça, notou que era Vicente. Ergueu-se um pouco mais e pergun-tou:

- Senhor Vicente, o que o aflige tanto? Vicente olhou para a freira sem reconhecê-la. Contou em pranto: - Minha família está despedaçada. A pobre da minha menina perdeu o filho

mais novo, o Felipe. - O quê? - Eu considero que o perdeu. Os padres o tiraram dela. - Por quê? - Foi em represália por ela ter ajudado uma freira daqui do mosteiro. Pare-

ce que já a pegaram... Sabe de alguma coisa? Se a pegaram, quero esganá-la com minhas próprias mãos. Aquela freira só fez mal à minha filha. Catarina está doente pela culpa e pelo remorso. Não suporta a falta do filho.

- E para onde o levaram? Baixando a cabeça, ele comentou: - Ninguém sabe. Vai ser criado para ser padre em algum convento, mas

não sabemos onde está. Verônica sentia as forças sumirem-lhe do corpo. Depois de breve pausa,

Vicente ergueu-se, dizendo: - Preciso ir. Reze por mim e por minha família, irmã, por favor. Incapaz de

articular palavras, ela balançou a cabeça em sinal afirmativo. Durante mais de um ano, Verônica buscou paz de espírito no trabalho. Di-

as de intenso labor ocuparam sua mente, mas seu coração continuava oprimido e entristecido. Boris a observava continuamente, e ao constatar sinais de sub-missão deu-lhe algum descanso de suas investidas. A freira acompanhou a distância a situação de Catarina, que caíra em profunda depressão ao ser sepa-rada do filho e nunca mais se recuperou completamente.

Em segredo, Verônica escrevia para o pai, pedindo perdão pelo sofrimento que lhe impingira, e convenceu um noviço a enviar as cartas. Numa manhã ensolarada de início de primavera, sentada sob frondosa árvore no pátio prin-cipal, rezava com o terço entre as mãos. Pedia pelo pai. O noviço que levava suas cartas aproximou-se e disse:

- Irmã Verônica, tenho uma notícia triste para lhe dar. Ela se levantou de imediato, com um pressentimento:

- Fale, o que foi? - Seu pai. - Está aqui? Ele chegou? Sério, o rapaz respondeu: - Não, irmã. E outra coisa.

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Notando o semblante sério e preocupado do rapaz, ela indagou: - O que foi? Ele está doente? Baixando os olhos, o noviço respondeu: - Não, irmã, ele estava doente... Verônica fixou o olhar no rapaz, à espera, e ele prosseguiu: - Estava muito doente, e não resistiu... Sentando-se, sem forças, ela gritou,

em desespero: - O quê? O que está dizendo? O que aconteceu com ele? - Ele morreu, irmã. - Não! - ela gritou, um gemido de dor e desespero. E ajoelhando-se no chão, entregou-se a convulsivo pranto. Não conseguia

acalmar-se. O rapaz, sem saber o que fazer, ficou ao seu lado sem dizer nada. Quando ela conseguiu erguer-se ele falou, hesitante:

- Boris não deixou que suas cartas seguissem para o seu pai. Tomou-as to-das, uma a uma.

- Fazia muito tempo que ele estava doente? - Acho que algum tempo. - Como sabe? Ele tirou de dentro da batina algumas cartas e estendeu-as à jovem, escla-

recendo: - Boris me ordenou que passasse a ele todas as cartas de seu pai que che-

gassem. Obedeci, mas guardei algumas, nem sei bem por quê. Fiquei com pe-na de você, por querer tanto ter notícias de seu pai. E também porque padre Thomas era um homem muito bom. Pegue, são suas.

Limpando as lágrimas, Verônica sentou-se em um banco e começou as ler as cartas. Nelas, Thomas informava que estava doente e recomendava à filha que não se preocupasse, pois em pouco tempo deveria estar em Praga. Ele pe-dira ao arcebispo e a Boris que o autorizassem a retornar para se tratar. Sentia que sua saúde requeria cuidados que só ali poderia receber. Ao terminar de ler as quatro cartas do pai, Verônica agarro u-as em uma das mãos, jurando:

- Boris, você me paga! Não vai escapar da minha vingança! Viverei para destruir você!

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VINTE E NOVE PREOCUPADO, VENCESLAU andava de um lado a outro do grande salão. A

todo momento inquiria: - Ele já chegou? - Ainda não, majestade - respondia o guarda que permanecia à sua porta. - Quero que me avise tão logo chegue. - Sim, majestade. Então, continuava a caminhar. De súbito o serviçal apareceu, e o rei logo

perguntou: - Jan Huss chegou? - Não, senhor. Sua mãe deseja vê-lo, majestade. - Ela piorou? O médico ainda está lá? - Sim, ele ainda está, mas não disse nada sobre o estado da nossa querida

rainha mãe. Venceslau foi de imediato atender ao chamado da mãe. Ao entrar no quar-

to, na penumbra, viu o rosto querido da mãe, marcado pelo sofrimento que enfrentava nos últimos meses. Ela o chamou:

- Meu filho, venha até aqui. Ajoelhando-se aos pés da cama, beijou-lhe as mãos: - Como está, mãe? Melhor? Consciente e conformada, ela retorquiu: - Sabe que não vou melhorar, não é, filho? - Vai, mãe... A rainha colocou uma das mãos sobre os lábios do filho, impedindo-o de

falar, e disse: - Você precisa estar preparado para minha partida. A hora está chegando.

Em breve, deixarei este mundo e me unirei àqueles que nos precederam na grande jornada. Não se entristeça, estou bem. Tenho o coração em paz... Ape-nas uma coisa me inquieta.

Fez curta pausa para tomar fôlego, e Vesceslau afirmou: - Serei sempre leal aos valores de nossa família e ao nosso país. - Estou preocupada com você. Sinto que está cansado, abatido e, ultima-

mente, muito apreensivo. A situação com os dois papas está se tornando insus-tentável, não é mesmo?

- Não se preocupe com isso. Saberei resolver essa questão. Apertando-lhe a mão, ela insistiu:

- Seja forte, seja firme! Não deixe que o papado e a Igreja, com seus osten-sivos abusos, novamente o dominem. Apoie Jan Huss, haja o que houver...

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Sem conseguir responder, o jovem rei balançou a cabeça em sinal afirma-tivo. Permaneceu com a mãe por mais algum tempo, até que o médico avisou:

- Agora ela precisa descansar. Logo todos saíram, deixando-a em companhia apenas de uma serva e do

próprio médico. O rei voltava para seu gabinete quando o serviçal o encontrou e comunicou:

- O senhor Jan Huss está à sua espera, majestade. - Ótimo. Entrou na sala do trono e Jan Huss manteve-se curvado diante dele. Ves-

ceslau aproximou-se do clérigo, dizendo: - O assunto é grave... Gravíssimo, de fato. - Como está a sua mãe, majestade? - Não muito bem, espero que melhore. - Continuo pedindo a Deus que lhe dê força e paz. Sorrindo, lembrou-se da

serenidade observada nos olhos da mãe e respondeu: - Então continue a orar, porque o Todo-Poderoso o está atendendo, Jan.

Minha mãe está muito tranqüila. - Isso é ótimo. - Sabe que a situação com a Igreja aqui em Praga agravou-se muito, não é? - Sim, já fui informado de que o arcebispo acusou-me de heresia Wyclifis-

ta. Evidentemente repele minha simpatia para com a doutrina de Wyclif, esse magnífico servo de Deus que ousa, com seus escritos, falar abertamente sobre os erros que se vêm acumulando na Igreja. Eu apelei ao arcebispo, mas...

- Sei que ele apreendeu os livros de Wyclif, todos eles. Jan Huss prosse-guiu:

- Tentei convencê-lo de que estava equivocado; entretanto, ainda mais irri-tado, ele mandou queimar as obras. Já sabe de tudo isso?

- Sim, estou acompanhando os acontecimentos. Não obstante, quero que saiba que muitos membros do clero, que o admiram pela sua coragem e inte-gridade, a universidade, em sua grande maioria, o povo e eu estamos com você e vamos, portanto, ignorar sua excomunhão e as proibições que recebeu de pregar em público, assim como de exercer suas demais funções sacerdotais; tampouco levaremos a sério o interdito do papa Alexandre contra Praga. Você deve continuar seu trabalho.

Um mensageiro aproximou-se e o rei ordenou: - Pode falar. - Majestade, o povo ficou sabendo da excomunhão do senhor Jan Huss e

aglomera-se nos portões do castelo.

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Ambos foram até uma grande sacada acima da entrada do prédio e consta-taram o grande tumulto que se formara. Jan Huss estava sendo aclamado pelo povo como herói nacional. Enquanto assistiam à eloqüente manifestação popu-lar, a rainha mãe aproximou-se, amparada pelo médico e pela serviçal. Ven-ceslau correu ao seu encontro e repreendeu:

- O que faz fora da cama, minha mãe? Não pode fazer esforço... Com in-tenso brilho nos olhos, ela respondeu, ofegante:

- E acha que vou perder esse momento maravilhoso? Nosso Jan Huss reco-nhecido como herói? Jamais!

Agora ela se apoiava em Jan Huss e em Venceslau. Os três ficaram por al-gum tempo diante do povo, e então o homenageado se pronunciou:

- Querido povo de Praga, agradeço sua confiança e seu carinho, que aque-cem sobremaneira meu coração. É por vocês o meu trabalho, e peço a Deus que me guie nessa difícil tarefa de abrir os olhos daqueles que os mantêm fe-chados para os erros da Igreja. Os nossos dois papas, Gregório XII13 e Ale-xandre V14, estão preocupados demais tentando chefiar o mundo cristão, e não conseguem compreender sua missão de restaurar os verdadeiros princípios cristãos dentro da Igreja. Distanciamo-nos da verdade, meus irmãos, distanci-amo-nos demais. A Igreja Católica desfigurou os ensinos de Jesus, a quem sirvo com todo o meu coração. E a ele que sirvo, e não à Igreja e a seus tem-plos suntuosos, suas caras indulgências e seus cultos vazios.

O povo ouvia atento e de quando em quando erguia a voz - quase em unís-sono - em resposta às enfáticas afirmativas e advertências de Jan Huss. Este prosseguiu:

- Não nos percamos nos dogmas e nas regras absurdas que do Evangelho não têm nem vestígio. Voltemo-nos para os ensinos de Jesus - estes, sim, puros e verdadeiros - e os sigamos, colocando-os na prática de nossas vidas. Tal de-veria ser o papel da Igreja: ensinar as verdades que Jesus trouxe à Terra, sem interesses mesquinhos de poder. Não nos enganemos. O poder da Igreja preci-sa ser contido; não pode continuar a ser ilimitado, ferindo e matando em nome de Jesus. Mais uma vez, meus irmãos, agradeço a confiança que em mim de-positam, e prosseguirei meu trabalho, sem descanso, até que tenhamos o ver-dadeiro Evangelho dentro de nossos templos. Que Deus nos abençoe.

E fazendo o sinal da cruz sobre o povo, o fiel servo de Deus os abençoou em nome de Jesus.

13 O Papa Gregório XII, nome de batismo Ângelo Correr, nasceu em Veneza. Patriarca latino de Constantinopla, foi eleito papa em 1406. 14 Alexandre V, ou Pietro Filargi da Candia, foi um antipapa que governou a Igreja Católica no biênio 1409-1410.

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Enquanto Jan Huss falava ao povo, outro mensageiro chegou ao mosteiro, encontrando reunidos o arcebispo, o bispo e outras autoridades eclesiásticas. O arcebispo indagou:

- Então, tem notícias para nós? - Sim. Formou-se um grande tumulto diante do palácio. - Por certo alguns se opõem a que o rei nos entregue Jan Huss. Baixando a

cabeça, o mensageiro quase gaguejou: - Eles... Eles o aclamaram herói nacional... Erguendo-se e esmurrando a mesa com violência, o arcebispo gritou: - O que está dizendo? - É isso mesmo. - E Venceslau? - O rei o apóia e também ao povo. Eles ignoraram a excomunhão e o inter-

dito contra Praga. Jan Huss continuará a pregar na Capela de Belém, como se nada tivesse acontecido.

Dessa vez foi Boris quem se ergueu, pálido de raiva, comentando irado: - Vesceslau tem de parar de apoiar Jan Huss. Precisamos forçá-lo a isso... O silêncio tomou conta da sala por longos minutos. O arcebispo sentou-se

de novo, pensou muito e disse: - Vamos ter calma. - Calma? Já não esperamos o bastante? - gritou Boris. - Sossegue, Boris. Seu furor não levará a lugar algum. Vamos acabar com

esse homem, custe o que custar. Por ora, no entanto, teremos de suportá-lo. Não podemos nos opor frontalmente a Vesceslau, que está cada vez mais fraco e abatido.

Fez-se outra longa pausa. Sob a inspiração de Núbio, que com seus servi-dores participava ativamente da reunião, influenciando os pensamentos e sen-timentos do grupo, o arcebispo declarou:

- Vou escrever uma carta a Sigismundo, notificando-o sobre a difícil situa-ção em Praga.

- Acha que ele continua interessado no reino da Boêmia? - Ora, e por que não estaria? Afastou-se quando a mãe colocou Vesceslau

no comando do reino, mas sei que seu desejo é ter o trono para si. Boris caminhou até o arcebispo, tocou-lhe o ombro e aprovou, sorrindo sa-

tisfeito: - Brilhante idéia, arcebispo. Poderemos ter um aliado agindo em nosso fa-

vor.

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TRINTA FINDA A REUNIÃO, o grupo de eclesiásticos se dispersou aos poucos, fican-

do Núbio e seus servidores a conversar. Um deles perguntou: - Sigismundo é dos nossos? Núbio fitou-o e respondeu, seco: - E completamente dócil a nós; faz parte do nosso grupo. - Então, tudo segue conforme o seu planejamento, não é? - Sim. Logo calaremos Jan Huss e todos os outros que ousarem erguer-se

contra nós. Enquanto falavam, outro espírito a serviço das forças das trevas adentrou a

sala. Após breve cumprimento, dirigiu-se a Núbio: - Um de seus escravos está agitado. Creio que forças da luz lhe influenci-

am o pensamento, causando verdadeiro tumulto. Precisa vir depressa. Se não fizermos algo, ele poderá ser arrebatado contra nós. E só ele conseguir desper-tar um pouco os seus sentidos, que poderá ser levado.

Sem se alterar, Núbio orientou seus servidores: - Permaneçam aqui, atentos à situação. Vou até nossa cidade ver de perto o

que se passa com Constantino e logo retorno. O grande imperador romano, que ao deixar o corpo físico fora de imediato

subjugado por aqueles a quem entregara seu pensamento e seus sentimentos enquanto encarnado, jazia em estado penoso. Quando se percebeu presa das entidades perversas, compreendeu que desperdiçara preciosa oportunidade na Terra. Entretanto, o arrependimento durou pouco. Logo Núbio o dominou mentalmente, e desde então Constantino permaneceu como um zumbi; com a vontade controlada, era levado para onde o bando bem quisesse e obedecia a ordens do poderoso aliado de outros tempos. A consciência, ainda que amor-daçada, não estava adormecida e sua vida interior transformou-se em verdadei-ro tormento de remorso, dor, lamento, conflitos constantes, o que não lhe per-mitia entregar-se de todo ao serviço de Núbio. Este, sondando-lhe as emoções e os pensamentos mais profundos, sabia das suas fraquezas e não lhe dava grandes responsabilidades; tampouco o deixava sozinho, para que não fosse, de súbito, arrebatado pelos enviados de Deus. Queria dominar-lhe por comple-to o coração, para que pudesse fazê-lo reencarnar sob seu controle absoluto.

Ao aproximar-se, sentiu o envolvimento das energias benéficas que eram direcionadas ao escravo e, vendo-o dormindo, indagou ao que dele cuidava:

- Fê-lo dormir? - Sim, tão logo pressentimos as energias a envolvê-lo, teve ímpetos de sair.

Foi a custo que o entorpecemos. No entanto, ainda não o pudemos fazer dor-

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mir profundamente. Ele continua com sono leve, e de quando em quando des-perta, para, sob nosso influxo, voltar a adormecer.

Com a força de seu pensamento, Núbio emitiu pesada energia sobre Cons-tantino, que aos poucos, como se vencesse uma resistência interior, acalmou-se lentamente e adormeceu de modo tão profundo que parecia estar morrendo outra vez.

Depois da demorada e trabalhosa operação, o servo de Núbio indagou: - Agora vai custar a acordar? - Espero que sim. Se algo ocorrer, mande me chamar depressa. Não quero

perder esse homem de vista. Ele pode nos ser muito útil. - Mas não temos conseguido controlá-lo por completo. Já faz tanto tempo

que está conosco, e ainda reluta... Fitando Constantino, Núbio explicou: - Não somos apenas nós que o queremos. Outros também não desistem de-

le. Por isso nossa luta é grande. Mas somos pacientes e vamos insistir. Ele ain-da haverá de nos servir muito.

Enquanto isso, em Praga, dominado pelo desejo de tirar Jan Huss do cami-nho, Boris empreendia verdadeiros sacrifícios. Ausentava-se com freqüência do mosteiro, viajando e buscando recursos através de contatos com vários re-presentantes do poder político e religioso, para que pudessem eliminar a influ-ência, no seu entender perniciosa, que Jan exercia sobre o povo.

Embora o visse pouco e não tivesse oportunidade de ficar perto dele, Ve-rônica seguia cultivando planos de vingança. Depois da notícia da morte do pai, fechou seu coração para todos os sentimentos de amor e compreensão, permitindo que o ódio e a revolta tomassem posse de seu ser. Foi sem sucesso que Geórgia acercou-se da filha por diversas vezes, tentando relembrá-la do passado e de seus propósitos de reconstrução. Nos momentos em que era ad-vertida, durante o sono físico, chorava muito e não dizia nada; já quando des-pertava, mesmo que trouxesse leve impressão dos encontros com a mãe, dei-xava-se dominar pelo ódio e ligava-se mais e mais às entidades espirituais que desejavam destruí-la.

Dois anos se passaram, e os planos de Núbio eram tecidos pacientemente. Em colônia espiritual próxima ao orbe terrestre, Constância conversava com Angélica:

- Ela deve chegar a qualquer momento. - E aguardada com ansiedade. - Como sempre, sua presença entre nós é motivo de alegria, aprendizado e

muito crescimento. - Ela vem para ajudar Ernesto e os demais?

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- Sim. Por mais que nos esforcemos para ajudar nosso querido Jan Huss, sabemos que a condição energética se adensa e que Ernesto - agora vivendo como Jerônimo de Praga15 - precisará apoiar com maior empenho o importante trabalho de despertar a consciência humana e abrir caminho para a renovação tão necessária.

As duas conversavam quando sentiram agradável bálsamo que se espalhou por toda parte. Constância ergueu-se e disse:

- Ela chegou. Ambas saíram e logo encontraram Elvira e outros espíritos de elevado pa-

tamar espiritual, que acabavam de chegar de Capela. Abraçaram-se com o a-mor fraterno que os unia de longa data. Angélica exclamou:

- Como é bom vê-la, Elvira! Há pouco comentava com Constância como nos faz bem sua presença.

Sorrindo com serenidade, o esclarecido espírito comentou: - Vocês são muito generosas. Sou eu quem fica feliz em poder contribuir de alguma forma. Agora, preciso que me ponham totalmente a par da situação; acompanho todos os fatos, mas gostaria de saber mais detalhes. Percebo o ambiente asfixiante que se estende por todo o planeta.

Constância balbuciou com tristeza na voz: - A luz do verdadeiro Evangelho está apagada. - Minhas queridas irmãs, confiemos em Deus. O Pai jamais nos abandona

por um único segundo sequer. Não obstante tenhamos de sofrer as conseqüên-cias de nossos atos, ele nos açode e nos ajuda, tão logo desejemos receber am-paro e orientação.

Depois de longa e prazerosa conversa, o grupo combinou partir ao anoite-cer. Antes de se separarem, Elvira fitou Constância e comentou:

- Você me parece preocupada. Com sorriso discreto, ela respondeu: - Estou um pouco, mas não quero pensar em minhas preocupações. Temos

muito trabalho a fazer. - Fale, por favor, o que a preocupa? - a outra insistiu. - Gostaria muito de ajudar Constantino. - Ele ainda está em poder das trevas? - Sim. Mesmo que nos esforcemos, não conseguimos encontrá-lo, muito

menos fazê-lo abrir-se para receber ajuda. - E Licínio, está na terra?

15 Jerônimo de Praga foi o principal discípulo e o mais devotado amigo de Jan Huss. Em maio de 1416 foi julgado e condenado por heresia e queimado na fogueira em 30 de maio do mesmo ano.

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- Sim, e muito em breve substituirá o papa Alexandre. Entretanto, seu co-ração está completamente endurecido. Não conseguimos tocar-lhe, nem de leve, as emoções.

Com a voz embargada, ela calou-se. Vendo as lágrimas que desciam pela face de Constância, Elvira a abraçou, para fortalecer-lhe o coração. Depois, assegurou:

- Vamos empreender novos esforços para encontrar Constantino. Quem sabe a hora de resgatá-lo não está próxima? Anime-se, Constância.

No mosteiro, enquanto limpava a enorme janela que dava para o pátio prin-cipal, Verônica observava Boris, em discreta conversa com o arcebispo. Pare-ciam confabular algo importante, pois ela notava o ar grave no rosto dos dois. Ao mesmo tempo, devia ser alguma coisa que desejavam esconder, pois de quando em quando olhavam em volta para ver se estavam de fato a sós. Ela pensava: "Decerto estão tramando algo de ruim. Nada de bom pode vir desse homem indigno e mau".

Continuando a limpeza e a observação, ela recebia forte influência de enti-dades espirituais que a circundavam: "Ele não merece viver. É muito mau. Tem de pagar pelo que fez os outros sofrerem".

Verônica repetiu, sem perceber, em voz audível: - Ele tem de pagar... Uma noviça que a ajudava indagou: - O que disse, irmã? Como quem desperta repentinamente, Verônica olhou para a jovem e per-

guntou: - O que foi? - O que a irmã disse? Quem tem de pagar? - Meu tio. Ele fez uma dívida de jogo e tem de pagar, antes que acabe se

prejudicando. Calou-se um instante e procurou disfarçar melhor: - Fico muito preocupada com ele, sabe? Minha tia sempre reclama de sua

ausência, de seus excessos... - Eles vivem aqui em Praga, irmã Verônica? - Não, moram muito longe. Vez por outra minha tia me escreve e fico sa-

bendo de seus problemas. - Entendo... E tem parentes aqui em Praga? O rosto de Verônica fez-se sombrio e triste quando respondeu: - Não tenho parentes. Todos os que eu amei me foram tirados. - Que pena...

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A noviça continuou limpando e depois, virando-se para Verônica, comen-tou:

- Ainda bem que tem sua tia, não é? Pelo menos tem alguém para se dedi-car e se preocupar. Isso ajuda nos momentos difíceis. Quando estamos muito tristes, voltar a atenção para aqueles que mais do que nós precisam de ajuda nos faz esquecer um pouco nossos problemas; e sendo úteis, conseguimos ficar um pouco mais felizes. Sinto isso toda vez que estou no orfanato. Aliás, na próxima semana teremos uma missa especial em homenagem ao padre Tho-mas, pelo aniversário de sua morte. Ele foi um dos fundadores da instituição e as crianças não o esquecem. A senhora não poderia ir? Algumas das crianças lembram da senhora com muito carinho. Sua presença as alegraria.

Enquanto escutava a noviça, Verônica recordava as tardes alegres que pas-sara em companhia do pai e das crianças. Agora lhe parecia que aqueles havi-am sido os melhores momentos de sua vida. Quando os vivera, não percebera como era feliz, aprisionada pela idéia fixa de fugir, de sair daquela situação. Seus olhos ficaram turvos pelas lágrimas, que lhe corriam pela face.

Estava ainda envolvida pelas suaves lembranças quando Boris a interrom-peu:

- Irmã Verônica, perdida outra vez em sonhos juvenis? Não quero vê-la sonhando acordada por aqui.

E olhando para a noviça, concluiu: - E um péssimo exemplo para as aprendizes. Os veteranos têm de dar o

bom exemplo. Acorde! Verônica deteve o ímpeto de voar-lhe ao pescoço ali, diante de todos, e

baixando a cabeça respondeu: - Sim, santidade, tem toda a razão. Vou me recolher ao término do traba-

lho, e me penitenciar por este erro. - Isso, minha filha, reze e se penitencie, para que Deus tenha piedade de

sua alma e a perdoe. Verônica respirou fundo e disse: - Que Deus tenha piedade de minha alma, padre. Ele já se afastava quando Verônica foi ao seu encontro e indagou: - Senhor, preciso muito lhe falar. Quando poderíamos conversar, com cal-

ma? Boris, desconfiado, respondeu: - Estou viajando hoje para Pisa. O papa João XXIII16 acaba de assumir o

lugar de Alexandre V e vou, com pequena comitiva, participar da cerimônia de 16 João XXIII foi um antipapa entre 1410 e 1415. Baldassare Cossa, seu nome temporal, nas-ceu em Nápoles, Itália, perto de 1370, e morreu em Florença, em 22 de dezembro de 1419.

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posse do novo pontífice. Estarei ausente pelas próxima semanas. Quando re-gressar, verei se terei algum tempo disponível.

- Obrigada, padre Boris. Verônica viu o primo se afastar e desaparecer no corredor. Boris, envolvi-

do com o objetivo de afastar Jan Huss de suas atividades, demorou cerca de dois meses para retornar.

TRINTA E UM A TENSÃO CRESCIA em todo o reino da Boêmia, e mais intensamente em

Praga. O povo continuava a acatar as idéias de Jan Huss, tanto pelas suas pre-gações quanto pelos exemplos de abnegação e serviços ao próximo de que era exemplo. Não apenas pregava reformas eclesiásticas: ele as praticava. À medi-da que buscava auxiliar a todos os que necessitavam, irritava ainda mais as altas hierarquias do clero.

O rei Venceslau prosseguia apoiando aquele que seria o precursor da re-forma protestante, porém suas apreensões cresciam. Cada vez mais enfraque-cido, faltavam-lhe energias para agir com firmeza diante dos ataques e amea-ças dos representantes de Igreja, especialmente personalizados no arcebispo de Praga, Zbynek Zajíc17.

Alguns meses depois de assumir a posição de papa, João XXIII declarou guerra ao rei Ladislau. O novo pontífice era um nobre de família tradicional que assumira a carreira religiosa sobretudo em função do poder político que desejava obter. Certo dia, confabulava com alguns de seus auxiliares mais pró-ximos:

- Quero invadir Nápoles e tomar o poder desse rei Ladislau. Um de seus assessores objetou, titubeante:

- Os cofres da Igreja estão vazios, senhor. Guerras, sejam pequenas ou grandes, têm preço elevado.

Procurando avaliar a real situação das finanças, questionou: - Os cofres estão vazios? O que fez Alexandre V que não aumentou os re-

cursos da Igreja? Outro assessor, mais experiente, interveio:

OBS- houve mais de um papa João XXIII, não confundir com João XXIII do século XX. 17 Zbynek Zajíc foi o 5° Arcebispo de Praga, entre 1403 e 1411.

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- Nossas coletas estão se reduzindo, senhor, especialmente as que vêm de Praga. Os nobres da Boêmia não têm sido mais tão generosos com a Igreja como costumavam ser em outros tempos.

O papa caminhou pelo salão, pensativo. Ao se reacomodar em sua cadeira, arrumou os paramentos luxuosos e, fitando o interlocutor, disse:

- Iniciaremos campanha para arrecadação de dinheiro. Quero recursos ge-nerosos entrando em nossos cofres. E pretendo arregimentar homens para a guerra. Iniciaremos uma cruzada contra Ladislau, esse rei herege.

- Como faremos para arrecadar mais recursos, meu senhor? Tomando pa-pel e pena, o papa pôs-se a escrever um decreto.

Depois, chancelou-o com o anel papal e entregou-o ao assessor, es-clarecendo:

- Ofereceremos absoluta remissão de pecados a todos os que participarem da guerra e iniciaremos venda de indulgências sem precedentes nos últimos tempos para aqueles que nos apoiarem financeiramente. Quem quiser garantir seu lugar no céu, deverá pagar.

Virou-se para um dos assessores, que se mantivera calado, e in-;ou: - Temos ainda muitos prisioneiros acusados de heresia? - Sim, temos muitos. - Pois comecem com esses. - Mas já lhes tomamos todos os bens. - E daí? A família fará qualquer coisa para libertá-los. Venderão seus fi-

lhos, se preciso for. Comecem por esses, que estão mais desesperados, com medo da morte na fogueira. Se pagarem o preço estipulado, serão libertados.

- Mesmo os casos mais graves, senhor, em que são acusados de bruxaria? Pensando um pouco, o papa respondeu: - Que esses paguem o dobro e serão libertados. Depois, se persistirem em

suas práticas profanas, nós os prenderemos outra vez. O grupo permaneceu alguns instantes em silêncio. Por fim, o papa levan-

tou-se e falou, irritado: - O que estão esperando? Vamos, iniciemos imediatamente a divulgação

dessa campanha. Não quero perder tempo. Enquanto o grupo se dispersava, Constância e Angélica, em companhia de

outros amigos espirituais, observavam a situação. Angélica tocou suavemente os braços da amiga e pediu:

- Não fique triste assim. - Como não, Angélica? Por mais que me esforce, não consigo falar ao co-

ração de Licínio. Agora, então, que assumiu a posição de papa, acabará intei-ramente comprometido. Sei que são suas escolhas, que serve aos nossos ir-

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mãos que deliberadamente vivem distante do Criador; já pedi, inclusive, aos nossos irmãos que o retirem da Terra, interrompendo-lhe a encarnação para poupá-lo de afundar mais.

Fez-se breve silêncio antes de Constância prosseguir: - Ele não deverá demorar-se muito na Terra, mas sei que ao deixá-la con-

tinuará sob o domínio das trevas. Por isso estão prorrogando um pouco seu tempo, de modo a tentarmos o quanto pudermos tocar seu coração. Lamenta-velmente, todos os esforços se têm mostrado inúteis.

- Ele teve contato com a valorosa obra de Wyclif, nosso querido irmão Ario, reencarnado na Inglaterra?

- Teve, e não foi capaz de se deixar tocar por nada. Mandou que a destruís-sem, junto com qualquer outra obra do nosso irmão. Ele não quer ter a consci-ência desperta.

- Continua escolhendo conscientemente o mal. - Sim, infelizmente. - Não há muito que possamos fazer por ele. Apenas orar e aguardar que as

sucessivas experiências na Terra toquem sua alma. Baixando a cabeça, Constância comentou: - Unicamente pela dor, Angélica... Percebo que só em profundo sofrimento

meu amado Licínio terá alguma chance de despertar para a gloriosa iluminação que espera a todos nós, no caminho da união com Deus. Obtivemos autoriza-ção para acompanhar o momento de sua partida da Terra, que será abrupta e inesperada, para que os nossos irmãos que o dominam sejam pegos de surpre-sa; assim, poderemos levá-lo e recolocá-lo em nova encarnação, numa situação em que fique escondido temporariamente de seus dominadores, para que tenha alguma condição de despertar, de evoluir.

Angélica abraçou Constância, que, limpando as lágrimas, disse: - Amo Licínio profundamente. Sei que irá sofrer muito, mas é o único jeito

de poupá-lo de sofrimentos ainda maiores... As duas permaneceram longo tempo observando a movimentação dos espí-

ritos que influenciavam o papa João XXIII e seus assessores. Depois, retorna-ram à colônia espiritual, para retomar suas tarefas junto a Elvira e a outros orientadores espirituais.

Não demorou e a campanha de João XXIII oferecendo indulgência (perdão dos pecados) em troca de polpudos recursos a serem doados à Igreja alcançou ampla divulgação, chegando aos ouvidos de Jan Huss. Este, indignado com mais esse abuso, intensificou suas pregações inflamadas na Capela de Belém:

- João XXIII não está a serviço de Deus, e sim contra o Todo-Poderoso. Está usando medidas espirituais para atender seus interesses pessoais e políti-

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cos; para satisfazer seus desejos orgulhosos e egoístas de poder. Esse papa indigno, que contraria todos os preceitos bíblicos, não deve ser obedecido. Eu insisto, meus irmãos, que o perdão dos pecados só pode ser obtido por contri-ção e penitência sincera, nunca por dinheiro; e digo mais: nem o papa, nem qualquer outro sacerdote, pode levantar a espada em nome da Igreja e muito menos em nome de Deus. O papa não é infalível, meus irmãos; ele é um ser humano como todos os outros, passível de errar!

O povo, alvoroçado, apoiava Jan Huss. Quando a notícia de suas acusações diretas chegou ao ouvido do papa, este não hesitou. Excomungou novamente Jan Huss e, dessa vez, expediu ordem de que se este não fosse afastado de suas atividades, toda a Boêmia seria excomungada e verdadeira caça aos hereges seria empreendida.

Ao tomar conhecimento da determinação do papa pisano, Venceslau ficou apreensivo. Apesar de todo o respeito que dedicava a Jan Huss, precisava man-ter boas relações com João XXIII, entre outras razões porque ainda não fora completamente decidida a questão de ser ele ou seu irmão Sigismundo o impe-rador legítimo. Se a autoridade de João XXIII viesse a se impor sobre a do papa Gregório - que o apoiava -, possivelmente seria o primeiro que decidiria o impasse, especialmente agora que Sigismundo, sabendo que Venceslau esta-va adoentado, demonstrara renovado e inconfundível interesse pelo reino da Boêmia e seu trono. Além do mais, sabia que ele viria com toda a sua fúria sobre o povo inocente da Boêmia, e temia pelos seus súditos. Depois de noites em claro e de muito pensar, Venceslau mandou chamar Jan Huss e comunicou sua decisão:

- Meu amigo, a situação se agravou sobremaneira. - Sim, eu sei, majestade. - Temo pela sua segurança, meu amigo, bem como pela de nosso povo. A

partir de agora, o papa não poupará esforços para calar sua voz. Você o irritou além do limite.

Jan escutava em silêncio. O rei prosseguiu: - Acho mais prudente, por enquanto, você se afastar de Praga. Será tempo-

rário, até os ânimos esfriarem. O papa precisa sentir que não o enfrentamos, caso contrário virá sobre nós com toda a sua fúria. E muitos inocentes pagarão.

Fitando Jan, que permanecia calado, o rei jocou seu ombro e disse: - Eu sinto muito, mas será melhor que deixe Praga por algum tempo. Tomando fôlego, Jan Huss respondeu, sereno: - Compreendo sua situação

e suas preocupações, majestade. Amanhã vou preparar minha transferência para Husinic. Ficarei em minha cidade natal aguardando sua orientação para o meu regresso. Visivelmente fraco e entristecido, o rei concordou:

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- É o melhor a fazer por ora. Fitando-o com preocupação, o padre comentou: - Vossa alteza precisa descansar. - Sim, Jan, sinto-me cansado. Conversaram um pouco mais e logo se despediram.

TRINTA E DOIS Aos PRIMEIROS SONS do alvorecer, Jan despertou e deparou com esplendo-

rosa figura luminosa em seu quarto. Atônito com a beleza e a leveza daquele ser espiritual que pairava no ar, como se flutuasse diante dele, fechou os olhos e abriu-os de novo, pensando estar ainda sob o efeito de um sonho. Com voz doce, Elvira comentou:

- Não, meu querido irmão Jan Huss, você não está sonhando. Com o cora-ção repleto de grande emoção pela sublimidade do espírito que o visitava, ele balbuciou:

- É um anjo de Deus? Sorrindo, Elvira respondeu: - Não sou um anjo, mas sou enviada de Deus para fortalecê-lo em sua tarefa. Sentando-se na cama, Jan prosseguiu: - O que devo fazer? Vem me orientar a não me afastar de Praga? Devo per-

manecer e continuar lutando? - Sabemos de sua coragem e determinação na tarefa que abraçou; neste

momento, porém, cremos ser mais prudente acatar o pedido de Venceslau. A situação é muito conturbada; densas energias pairam sobre o rei e sobre toda a Igreja.

- Desejo ardentemente ver a Igreja livre das teias em que se prendeu... Ela não serve a Jesus, mas aos interesses de seus líderes.

- Sim, Jan, decerto. Foi por isso mesmo que você desceu à Terra com a no-bre missão de lutar contra a cegueira que se instalou dentro da própria Igreja. A ignorância e a dureza de coração têm mantido os homens cativos de mentes espirituais que desejam a todo custo retardar o progresso da humanidade.

Sorrindo, o servo de Deus respondeu: - Quão poucos compreendem isso... É verdadeiramente uma enviada de

Deus. - Estaremos sempre ao seu lado, dando-lhe força e amparo, bem como de

todos quantos buscam a Deus de todo o coração. Sua missão prossegue, Jan

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Huss. Mantenha a confiança. Não pense jamais que pela dificuldade que se apresenta mais intensa, pelos obstáculos que se erguem como gigantescas pa-redes à sua frente, algo há de equívoco em suas escolhas, ou mesmo que Deus está distante de você. Não deixe nenhuma dúvida ou incerteza sequer espreitar seus pensamentos. Siga confiante, pois está a serviço dos espíritos elevados que conduzem o progresso da Terra, os quais, por sua vez, estão a serviço dire-to de Jesus, a quem tanto ama. Enquanto estiver no exílio, aproveite o tempo e escreva. Prossiga com seus trabalhos escritos, pois eles continuarão, mesmo depois que não estiver mais aqui, sendo úteis à humanidade.

Após breve pausa, Elvira indagou: - Deseja fazer alguma pergunta ou dizer alguma coisa? Estou aqui para fa-

lar e também para escutar, fazendo o que me for possível para fortalecer sua alma nas tarefas que haverão de se seguir.

- Por vezes, sinto-me muito sozinho. Olho ao redor e me sinto incompre-endido e só, como se falasse em um deserto, palavras espalhadas ao vento, sem utilidade real.

- E natural que se sinta dessa forma, dadas as condições de evolução e compreensão dos homens deste tempo. No entanto, não só. Isso de fato não acontece. Tem seguidores, Jan, a quem influencia muito. E também, é claro, exerce forte impacto sobre o povo da Boêmia, mais especialmente aqui na bela cidade de Praga.

- O povo é muito carente... - Sim, e sua dedicação alimenta a alma de muitos. Além disso, alguns com-

preendem profundamente os valores que defende. Veja Jerônimo, por exem-plo.

Jan sorriu ao se lembrar do discípulo que lhe trouxera os textos de Wyclif pela primeira vez. Elvira prosseguiu:

- Ele o admira e o compreende muito bem. De fato, está pronto para auxi-liá-lo no que for necessário.

- Ele é um bom homem, fiel e verdadeiro, um servo de Deus. - Sim, Jerônimo é alguém por quem nutro imenso carinho. De fato, estarei

aqui para apoiá-los aos dois nesta tarefa árdua de acender a luz nas trevas da ignorância dos homens.

- Gostaria de entender melhor por que se fez tamanha escuridão no seio da Igreja. Ela, que deveria manter a chama do amor e da verdade na Terra, a ser-viço de Jesus, mantém os homens na mais profunda escuridão...

Elvira o observou por um tempo, depois respondeu: - Os homens preferem silenciar a consciência, abafando-a e obscurecendo

a mente, a entregar-se ao trabalho de iluminação própria, seguindo de fato o

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modelo de Jesus. Entregam-se assim, aos milhares, à pesada hipnose que man-tém suas mentes atadas a outras mentes presas ao mal, que campeiam por toda parte.

- Compreendo. Seguirei fazendo tudo o que estiver ao meu alcance para auxiliar os homens a despertar.

- Essa luz irradiará seu brilho pelo mundo. Envolvendo Jan Huss em luzes suaves, Elvira se despediu e partiu, deixan-

do-o tranqüilo e confiante. Jan dedicou o dia a preparar-se, e logo na manhã seguinte, em obediência ao rei Vesceslau, e sobretudo aos espíritos que o ori-entavam, deixou a cidade de Praga.

No mosteiro, alheia à situação ao seu redor, Verônica conservava na mente e no coração o desejo de vingar-se de Boris. Atribuía a ele todo o seu sofri-mento, fechando-se mais e mais à voz da consciência e até às advertências que vinham de sua mãe, que vez por outra a visitava durante o sono físico. Fixan-do-se em sentimentos menos elevados e deixando-os dominar-lhe o ser, Verô-nica se entregou ao controle de entidades espirituais que, agora, praticamente lhe dirigiam os pensamentos, mantendo-a sob forte hipnose.

Em uma noite muito fria, viu pela janela quando Boris chegou. Rapida-mente apossou-se de uma faca afiada na cozinha e foi para o quarto do primo, levando a chave do quarto dele, que obtivera com outra noviça. Escondeu-se no quarto esperando pela entrada do padre.

Ele abriu a porta, mas a manteve entreaberta, conversando com um clérigo que o acompanhava. Enquanto falavam, movido por inesperada intuição, sen-tiu uma presença diferente no quarto e de quando em quando olhava para o interior do aposento, incomodado e desconfiado. Notou uma silhueta escondi-da atrás da cortina e, despedindo-se do outro, fechou a porta. Verônica não demorou a saltar sobre ele, pronta a cravar a faca em seu peito. De sobreaviso, Boris foi capaz de defender-se e os ataques feriram-lhe o antebraço e também o rosto. Depois de rápida luta, ele conseguiu deter o braço de Verônica e, agar-rando-a, imobilizou-a e carregou-a corredor afora, em busca de ajuda, pois sentia que os ferimentos eram profundos. Entrou com ela no refeitório, para o desespero de freiras e padres. Logo, alguns deles seguraram Verônica firme-mente. Ela, absolutamente descontrolada, gritava todo tipo de impropérios e acusava Boris de ter assassinado seu pai.

O primo foi socorrido e levado depressa ao seu quarto. Logo um médico entrava no mosteiro, chamado às pressas para socorrer o rapaz. Verônica, por sua vez, foi levada diretamente para uma cela de clausura e trancafiada. O ar-cebispo Zbynek Zajíc chegou e, depois de certificar-se da boa condição de Boris, foi vê-la e a advertiu:

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- Será julgada pelo santo oficio. Atentou contra a vida de um padre e isso só pode ser coisa do demônio. Você, aliás, sempre esteve sob o domínio do mal, não me admiro de ter agido dessa forma. Mas seus dias de loucura terão fim. Em breve, será condenada e pagará pelo mal que intentou contra o padre Boris. Seus dias estão chegando ao fim.

Ao invés de sentir-se intimidada, Verônica continuava a gritar, desvairada. Já não temia pela própria vida. Estava completamente desnorteada e enfraque-cida. Hipnotizada por espíritos que a dominavam, não tinha mais condições de raciocinar com clareza.

Depois de algumas semanas, Boris, recuperado, participava de pequena re-união com o arcebispo, a portas fechadas, para decidir o futuro de Verônica. Zbynek argumentava:

- Não entendo por que não resolvemos logo a situação dessa moça, levan-do-a à fogueira. Queria que assim tivesse sido desde o princípio, quando ela chegou aqui. Você me impediu de fazer o que achava melhor, e agora veja: ela colocou sua vida em risco e pode fazê-lo novamente, se não tomar cuidado.

- Ela não vai conseguir fazer mais nada contra mim. E eu quero, como sempre quis, vê-la sofrendo um pouco mais antes de acabar com ela.

- Mas por quê? - Ora, não sei! Ela me causa repugnância! - Mas qual a causa desse sentimento? Ela se insinuou de alguma forma, ou

tem outros motivos? Levantando-se, Boris caminhava de um lado a outro na sala, aflito. Depois,

com o olhar distante, refletiu em voz alta: - Não sei exatamente a causa de minha aversão por Verônica, mas quero

que ela sofra, que apodreça naquela cela fétida e nojenta, sem ver a luz do sol, sem falar com ninguém. Isso, para ela, será pior do que a morte. Depois, quan-do não tiver mais nada para sofrer, terei misericórdia e desferirei o golpe final na fogueira.

Fez-se pesado silêncio na sala, até que o arcebispo, erguendo-se, disse: - Pois bem, que seja. Ela é sua prima, seu problema e sua responsabilidade.

Faça como quiser, mas tome cuidado com essa moça. Ela é perigosa Sem dizer nada, Boris despediu-se do arcebispo, beijando-lhe a mão. De-

pois dessa decisão acordada por ambos, Verônica permaneceu presa. Passaram-se quase dois anos. Exilado em Husinic, Jan Huss dedicou-se aos

textos, escrevendo uma de suas mais importantes obras: "A Eclésia". Enquanto isso, a situação já conturbada em Praga agravou-se com a doença

do rei. Venceslau foi finalmente vencido por ela e afastou-se para tentar trata-mento. Imediatamente, Sigismundo assumiu o trono da Boêmia, apoiado por

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João XXIII e pelo alto nível hierárquico da Igreja. Diversos grupos que apoia-vam as idéias de Jan Huss prosseguiam pregando contra as ações da Igreja; en-tre eles estava um fiel discípulo de Huss, conhecido como Jerônimo de Praga.

Logo depois de assenhorear-se das circunstâncias e incentivado por João XXIII, e muito especialmente por entidades espirituais que ardilosamente o dominavam, Sigismundo preparava uma sutil armadilha para Jan Huss.

TRINTA E TRÊS NA COLÔNIA ESPIRITUAL próxima à crosta, sentados em semicírculo em

ampla e iluminada sala, reuniam-se em oração Elvira, Constância, Angélica, Helena, Henrique e mais quatro espíritos. Silenciosos, pediam pela libertação de Constantino, ainda escravizado por Núbio e outras entidades que o serviam. Naquela noite realizavam vibrações especiais destinadas àquele irmão que também viera de Capela e que permanecia na escuridão do orgulho e do ego-ísmo, por não conseguir deixar a luz de Jesus brilhar em sua alma.

O grupo intercedia em favor daquele irmão, que espontaneamente se entre-gara às forças do mal e agora era por elas subjugado. Para ele rogavam a mise-ricórdia e o socorro do Mestre. Constância, enquanto orava, emocionada, dei-xava que grossas lágrimas lhe rolassem pela face. Ao final das vibrações rece-beram a manifestação de uma entidade de grande desenvolvimento moral, res-ponsável por equipes de resgate daqueles que se perdiam nas trevas. O elevado espírito lhes falou com amor.

- Venho, em resposta às suas preces, avisar-lhes que uma equipe de socor-ristas de nosso grupo descerá ao orbe da Terra para o resgate de diversos espí-ritos aprisionados pelos nossos irmãos infelizes. Constantino está entre eles. Com a graça de Deus, logo será assistido em um pronto-socorro nas regiões densas do plano espiritual do planeta.

Com muita emoção, Constância ajoelhou-se em mudo agradecimento. O elevado instrutor avisou:

- Esteja preparada, minha irmã, ele logo será resgatado. Deverá, então, ir ao seu encontro, no hospital, onde poderá colaborar com sua recuperação.

Sem hesitar, a amorosa Constância respondeu: - Estarei pronta, senhor. Depois de outros esclarecimentos, o visitante espiritual desapareceu, dei-

xando no ambiente suave perfume e intensa energia de amor. Elvira encerrou a tarefa com sentida prece de gratidão. Muito feliz, logo depois comentou, em conversa descontraída, abraçando Constância:

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- Que alegria, não é, minha querida irmã? - Sim, alegria indizível. Estou feliz demais pela possibilidade de ajudar

Constantino. Desde Capela nos conhecemos e temos vivido diversas encarna-ções como parentes próximos, estabelecendo vigoroso elo de amizade e ternu-ra. No entanto, não foi sempre assim. Quando deixamos Capela, meu ódio por ele era imenso. Ferdinando havia arquitetado o aborto de meus filhos gêmeos, e quando realizou seu intento eu não suportei e desencarnei junto com meus bebês. Eles logo foram socorridos e levados a uma colônia espiritual. Por outro lado, meu ódio era tão grande que atormentei Ferdinando sem descanso. Assim que chegamos ao plano espiritual da Terra, procurei por ele e o encontrei. A situação espiritual dele me facilitava atingi-lo com meu ódio. Por muito tempo nos perturbamos mutuamente, ora nos alternando no plano espiritual, ora am-bos encarnados, e foram experiências muito dolorosas. Finalmente, o amor de Deus me alcançou e, ainda como hebreia, comecei a me preparar para receber Jesus e servi-lo, obedecendo a seus ensinos libertadores. Por ele fui enfim li-berta dos pesados aguilhões do ódio e do orgulho. Mas com Ferdinando foi mais difícil. Quando encarnou como Constantino ele sentia que estava pronto para servir a Jesus. Sua grande evolução intelectual e seus conhecimentos o capacitavam para fazer frente à pesada tarefa que se propôs realizar em favor da humanidade: apoiar o Cristianismo primitivo, ajudando os cristãos a se for-talecerem e se estruturarem, preparando-os para crescer e tirar os homens da escuridão. Entretanto, como todos sabem, ele sucumbiu. O fato de estar prepa-rado não foi suficiente. Ele não conseguiu dominar-se a si mesmo, e fracassou.

A bela mulher fez longa pausa antes de concluir, limpando as lágrimas: - Estou muito feliz por saber que, em breve, ele será resgatado. Que Jesus o

ampare e abençoe. Alegremente apoiada pelo amoroso grupo, seguiram em animada conversa

em torno das tarefas de auxilio a que se dedicavam. Naquele mesmo instante, Núbio, que estava ao lado de Sigismundo e sentiu as emanações amorosas de Constância e do grupo que a apoiava, resmungou, irritado:

- Estão a me cercar com essas vibrações irritantes. Mas não me impedirão de destruir Huss, bem como de rechaçar qualquer tentativa de reduzir meu poder sobre os homens...

Com seus planos em andamento e a ponto de se concretizarem, Núbio, in-teressado em acompanhar cada detalhe pessoalmente, afastara-se de Constan-tino. Algumas noites mais tarde, um grupo de espíritos entrava nas dependên-cias onde estava preso aquele que fora imperador romano. Eram os socorristas, que, adensando sua forma espiritual a fim de se assemelharem aos algozes, logo o localizaram; em rápida operação o libertaram e o levaram para o pron-

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to-socorro, junto com outros espíritos recolhidos na mesma expedição, sendo todos acomodados em ampla enfermaria e recebendo medicamentos e trata-mento adequado a cada situação. Constância, que ali os aguardava, comoveu-se ao ver o estado em que se encontrava Constantino e se uniu àqueles que o haviam resgatado, para ajudá-los com ele e também com os demais. Depois de árduo trabalho, encontrou Angélica, que indagou:

- Como ele está? - Agora sedado, em profundo sono; vai precisar de bastante tempo para

recobrar a consciência. Deverá reencarnar logo. - Tão depressa? - Sim, será a melhor maneira de escondê-lo de Núbio e de auxiliá-lo a re-

cuperar a consciência. Será enviado para a Terra, em condição de demência, e esperamos que a família consiga suportá-lo. O casal está preparado para gerar a criança e creio que Constantino será levado amanhã mesmo.

- Não seria melhor deixá-lo aqui por mais algum tempo? - No seu estado atual, ainda sob forte influência de Núbio, este seria capaz

de fazê-lo fugir daqui e ir ao seu encontro, na primeira oportunidade. O melhor para ele, agora, será regressar à Terra o quanto antes. Ficará imóvel, sobre uma cama, sem poder falar ou se movimentar. Assim, aprisionado pelas condições materiais, será mais difícil de ser encontrado. Poderemos ajudá-lo, durante o sono, e prepará-lo para regressar ao nosso plano em melhores condições.

- E por quanto tempo ficará na Terra? - Creio que não mais do que dezoito anos. E uma abençoada oportunidade

que ele terá, graças a Deus. Angélica abraçou a amiga e disse: - Que Jesus dê a ele muita força! - Que assim seja.

* * * Na manhã seguinte, em Husinic, Jan Huss recebeu uma intimação de Si-

gismundo, que exigia sua presença no Concílio de Constança. O rei esclarecia que seu objetivo com esse concilio era a pacificação religiosa da Boêmia e que, pela influência que Jan exercia sobre o clero e sobre o povo, sua presença seria fundamental.

Com a permissão da espiritualidade que o assistia, Jan Huss retornou a Praga e encontrou-se com o rei. Depois de longa conversa, durante a qual pro-curou, diplomaticamente, persuadir Jan a comparecer ao concilio, Sigismundo ofereceu seu último argumento:

- Eu lhe garantirei proteção para entrar e sair de Constança em segurança.

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Erguendo-se, caminhou até a mesa; tomou a pena, escreveu uma ordem e, depois de selá-la com o anel real, entregou-a a Jan:

- Este é um salvo-conduto que lhe permitirá caminhar seguro por Constan-ça. Tem minha palavra de que não será molestado e sua vida não correrá ne-nhum risco.

Jan pegou a ordem, pensou por alguns instantes e respondeu: - Está bem, comparecerei ao concilio, dando minha contribuição para que

possamos esclarecer as questões de conflito e buscar alternativas para que a situação religiosa da Boêmia seja resolvida. Meu maior interesse é auxiliar a Igreja a retomar seu lugar na defesa dos reais interesses do Evangelho de Jesus.

O rei, que fitava o padre e o ouvia atento, afirmou ao despedir-se: - Sua presença será importante. Em breve nos veremos. Antes de retornar a

Husinic, Huss esteve com Jerônimo, seu discípulo e seguidor. Este comentou: - Não gosto da idéia de você participar desse concilia. Parece-me uma ar-

madilha ardilosa. Não confio em Sigismundo. Jan refletiu um pouco e então concordou: - Também não confio nele. Sei que suas intenções são duvidosas. No en-

tanto, sinto que preciso comparecer e defender os ideais que abraçamos. Se um pequeno grupo que seja, dos que ali estiverem, for tocado pela maneira como pensamos, teremos congregado novos defensores da reforma na Igreja. Preciso aproveitar essa oportunidade para falar aos seus altos níveis hierárquicos, sen-do tão-somente um porta-voz do alerta de Deus para que mudem o rumo dos fatos.

Tocando o ombro de seu mestre, Jerônimo opinou, preocupado: - Estará pondo a própria vida em risco... - Eu sei, meu amigo... Mas que valor tem a vida se não a colocamos a ser-

viço daquele que nos criou? Devo aproveitar a oportunidade de falar aos qua-tro cantos, em alta voz, os princípios esquecidos pelos nossos irmãos, que, como se dormissem, estão dominados por uma força estranha que os aprisiona a alma e o coração, impedindo-os de enxergar, de compreender? Ou é preferí-vel esconder-me e esperar até que me prendam e façam o que quiserem? E não tenha dúvida de que farão isso, caso decidam. Não! Minha vida terá mais valor se for empregada em algo de um significado maior e mais útil.

Depois de breve pausa, prosseguiu, inspirado por Angélica e Henrique, que o assistiam:

-Além do mais, não estarei sozinho. Temos sempre o amparo do Senhor e de seus anjos. Deus estará comigo. Lembra-se da passagem das escrituras sa-

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gradas em que Eliseu pede a Deus que abra os olhos de seu servo para que veja o exército espiritual que os acompanha?18

Jerônimo, relembrando o texto, o citou: - E Eliseu orou, e disse: Ó senhor, peço-te que lhe abras os olhos, para

que veja. E o Senhor abriu os olhos do moço, e ele viu; e eis que o monte esta-va cheio de cavalos e canos de fogo em redor de Eliseu. E uma belíssima e reconfortante passagem do Antigo Testamento.

- Pois é isso. Estarei em companhia de Deus e de seus enviados. Eles have-rão de me orientar e me guiar. Posso senti-los agora mesmo, aqui, junto de nós.

Abraçando-o fraternalmente, Jerônimo pediu: - Deixe-me ir com você. Serei seu defensor em tudo o que me for possível. Alegre pela sugestão, Huss apenas ressalvou: - Deve ter plena certeza do que está fazendo, pois ao me acompanhar pode-

rá igualmente se arriscar. - Não posso deixar de partilhar sua fé e seus ideais, que igualmente são

meus. Como acabou de dizer, que melhor maneira de defendê-los do que colo-cando a própria vida a serviço deles?

- Assim sendo, aceito sua prestimosa companhia, que me fará grande bem. - Espere apenas alguns instantes que já retorno com o necessário para a vi-

agem. Logo depois, ambos estavam a caminho de Constança.

TRINTA E QUATRO NAQUELE DIA A SALA fervia pelo burburinho dos presentes: cardeais, bis-

pos, prelados, mestres e doutores, os mais influentes da Europa, discutiam em tom acirrado. Presidiam as sessões o papa João XXIII e o rei Sigismundo. Ambos, perfeitamente sintonizados com Núbio e seus servidores, assimila-vam-lhes as emanações mentais, tomando-as como seus próprios pensamentos.

A reunião já ia avançada quando um mensageiro entrou e, falando ao ouvi-do do papa, deu-lhe importante notícia. O papa passou a informação ao rei, que de imediato interrompeu a sessão, informando a todos:

- Acaba de chegar seu mais destacado representante: Jan Huss. E ordenou ao mensageiro:

- Que entre.

18 Texto bíblico encontrado em II Reis, cap. 6, vs. 15, 16 e 17

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Sob olhares de reprovação e grande tumulto, Jan apareceu à porta, seguido de Jerônimo. O rei o convidou:

- Venha, Jan Huss, há lugar bem aqui, à frente. Jan caminhou entre os inquisidores até o lugar indicado e sentou-se. En-

quanto passava, podia ouvir os sussurros: - E muita coragem, aparecer aqui... - Ele não sabe o que o aguarda... - Ele é corajoso mesmo... - Terá o que merece... Acomodou-se na cadeira orou mentalmente, suplicando amparo e força. A

reunião daquele dia transcorreu sem surpresas. Entretanto, na manhã seguinte, tão logo Jan Huss colocou os pés no recinto onde seria conduzido mais um dia de debates e discussões, o papa ordenou:

- Jan Huss, diante da mínima possibilidade de o senhor resolver se retirar de nosso concilio, será detido no Convento dos Dominicanos, até que o cha-memos para defender suas idéias.

Sem dizer palavra Jan fitou o rei, que lhe evitava o olhar. Sob os protestos de Jerônimo, Jan foi levado para o convento e colocado em uma cela infecta. Logo que ele deixou o salão, instauraram contra ele um processo inquisidor para que esclarecesse perante aquele concilio suas idéias. De fato, tanto João XXIII como a grande maioria da audiência daquele grupo de clérigos odiavam Jan Huss pela oposição declarada que fazia à situação estabelecida pela Igreja. Jan representava-lhes ameaça à consciência, que não suportava a verdade.

Iniciou-se assim, naquele dia, um longo e cansativo julgamento, que durou mais de um ano. Jan Huss ficou sob a guarda do bispo de Constança e o trans-feriram, como medida de maior segurança, para o torreão do Castelo de Gottli-enben, onde foi preso a correntes. E assim permaneceu, dia e noite. Mais tarde foi transferido novamente para o Convento dos Franciscanos.

O concilio condenou as teorias de Wyclif e, por fim, depois de longos e cansativos dias, apresentaram a Huss o seu tratado a Eclésia, acusando-o de pregar em seu conteúdo a heresia e a insurreição. Depois de todo aquele tem-po, Jan já estava consciente do que o aguardava. Escreveu cartas aos amigos, agradecendo a amizade que lhe dedicavam e animando-os por se terem con-servado fiéis à verdade.

Quando confrontado, para que se retratasse frente ao concilio, Jan Huss sustentou seus ideais:

- Não posso dobrar-me diante de meus irmãos, os quais julgo equivocados. O Cristo é o chefe da Igreja, e não Pedro, e a minha regra básica de fé é a Bí-blia; não são os dogmas contaminados pelos interesses materiais que se imis-

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cuíram em nosso meio, como ervas daninhas, destruindo os ideais puros de amor e humildade pregados e exemplificados por Jesus. Ele é meu Mestre e somente a ele me curvo...

Sob ordem de João XXIII, prenderam-no de imediato e o levaram nova-mente ao cativeiro. O papa ordenou recesso até a manhã seguinte, quando se encontrariam no refeitório do convento.

Sob a gritaria que se instalara no recinto, o papa encarou Sigismundo e concluiu:

- Quero encerrar esse julgamento amanhã. Na manhã de 5 de julho, os membros do concilio se reuniram para julgar o

acusado. A reunião estava agitada. O julgamento começou sem a presença do réu, que chegou apenas e tão-somente para ouvir a sentença, previamente defi-nida pelos responsáveis pelo concilio. Foi João XXIII quem a leu:

- O réu é culpado de heresia. Sua sentença é a morte pela fogueira. No dia seguinte Jan Huss foi conduzido a um terreno vazio. Enquanto ca-

minhava para a execução, encontrou-se com Jerônimo, que lhe acompanhara os mínimos passos. O amigo gritou:

- Estamos com você, Jan Huss! Nenhum de seus ideais irá perecer! Jan respondeu, firme: - Estou pronto para morrer na verdade do Evangelho, que ensinei e escrevi.

Morro a serviço de Jesus e de seus ensinamentos. Ao alcançarem o local preparado para a execução, despiram-no, amarra-

ram-no a um poste, ajuntaram lenha à sua volta e lhe puseram fogo. Tão logo o amarraram, Jan Huss, viu-se circundado pelas entidades espirituais que o am-paravam. Seu olhar se deteve em Elvira, que emitia intensa luz. O grupo de espíritos envolvia o corpo físico de Jan Huss em intensa energia, anestesiando-lhe os centros nervosos e atenuando a dor do fogo em sua pele. Assim, convic-to de que tomara a melhor decisão e de que se entregava por amor ao Evange-lho, Jan não sentia medo. Ao contrário, a bela visão que tinha era o prenuncio das alegrias que o aguardavam ao transpor aquele momento, e ele elevou, em meio às chamas, melancólico canto ao Pai celestial.

Em intenso trabalho, a equipe de espíritos o desligou do corpo físico, que ardia em chamas. Seu corpo espiritual foi auxiliado e recebido por eles. Elvira o amparava e logo partiram, rumo à colônia espiritual. Assim deixava a Terra Jan Huss, o precursor da reforma protestante.

Naquela mesma tarde, no mosteiro em Praga, Verônica agonizava em sua cela. Enfraquecida, definhara dia a dia. O ódio por Boris a consumia. Em vão a mãe tentava lhe falar em sonho; ela já não a via nem a escutava. Mesmo assim,

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Geórgia continuava empreendendo todos os esforços para auxiliar a filha. Co-mentava com os outros que ali estavam para ajudá-la:

- Não vamos desistir. Enquanto ela estiver viva, temos uma centelha de es-perança.

Um dos companheiros comentou: - O estado dela é muito grave. Não nos escuta e sua vibração é refratária ao

nosso auxílio, impedindo-a de recebê-lo. Nossos recursos se esgotaram. Com os olhos rasos de lágrimas, Geórgia argumentou: - Eu sei. Mas acima de todas as circunstâncias está Deus, nosso Pai. Ela fez breve pausa, depois prosseguiu: - Foi um longo preparo para que esta encarnação pudesse acontecer. Tan-

tos envolvidos, todos os esforços que empreendemos para que ela tivesse essa oportunidade... Tanto tempo estudando e se preparando e, agora, a encarnação termina, muito antes do tempo previsto, pela sua desistência da vida.

O grupo permaneceu em silêncio. Depois, notando que a situação da moça se agravava rapidamente, um deles disse:

- Ela deve ser desligada. Sua energia vital chegou ao fim. Verônica suspi-rou fundo e com um longo gemido foi desligada em definitivo do corpo físico. Atordoada e confusa, observou seu corpo e gritou de pavor. Logo viu as enti-dades espirituais densas que lhe dominavam o pensamento e os sentimentos e, embora tentasse fugir, horrorizada, elas a seguiam, dizendo:

- Agora, você é definitivamente nossa. Não há como escapar. Acabou tudo. Você nos pertence.

Ela corria desesperada pelos corredores do mosteiro, deparando com cria-turas horrendas a cada canto em que virava; apavorada, corria ainda mais. Em vão Geórgia buscava fazer-se visível à filha. Ela não conseguia registrar a pre-sença amorosa da mãe. Geórgia orientou os amigos:

- Devem regressar agora; outros deveres os aguardam. Agradeço pelo muito que se dedicaram à minha querida Verônica. Vou acompanhá-la e cuidar dela. Em algum momento, Deus haverá de me permitir socorrê-la. Preciso fi-car e ajudá-la.

Os amigos se despediram num abraço, retornando à colônia espiritual. Passado muito tempo, Verônica, com os cabelos desalinhados, os olhos ar-

regalados de pavor e a respiração ofegante, estava sentada junto ao protetor lateral da ponte de César. Olhava para o rio que corria abaixo, sem conseguir compreender o que acontecia. Ao redor, via pessoas que caminhavam e de repente sumiam, para novamente aparecer e continuar a andar. Ouvia gritos e urros de dor dilacerante, sem saber de onde vinham. Às vezes presenciava ver-dadeiras procissões de religiosos que, em bando, seguiam imagens ou cruzes.

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Todas as pessoas pareciam indiferentes, alheias ou assustadas. Ela estranhava o que via, porém estava perturbada demais para entender sua nova situação. Observava, então, o rio. A água, que fluía abundante, de súbito tornara-se gelo. As árvores, secas, perdiam todas as folhas, para logo após receberem novas ramagens. Da mesma maneira, o rio logo se transformava em forte correnteza. Completamente atordoada, Verônica chorava. Quando percebia a aproximação das entidades que a perseguiam, corria esbaforida sem destino, para se ver ou-tra vez na ponte sobre o rio. Depois de infinitas repetições de tais cenas, ela pensou:

- Devo estar louca. E subindo no peitoril do protetor da ponte, resolveu tirar a própria vida.

Olhou em torno: o belo Castelo de Praga erguia-se majestoso e imponente; os telhados das casas eram tão belos que pareciam brinquedo de criança. Con-templou o céu e disse em voz alta:

- Não suporto mais. Só me resta morrer! Atirou-se no rio, sendo envolvida pela água fria; não demorou muito, o rio

congelou de novo e ela se sentiu aprisionada nas águas. Debateu-se até ficar totalmente exaurida. Sem forças para lutar, perdeu os sentidos. Depois do que lhe pareceu uma eternidade, percebeu que alguém lhe afagava os cabelos. A-briu os olhos e viu um rosto delicado a observá-la. A mulher com voz suave buscava acalmá-la:

- Fique calma, minha filha, tudo ficará bem. Sem reconhecer a mãe, ela indagou, encolhendo-se: - Quem é você? O que quer comigo? O que aconteceu? Estava no rio e a-

gora estou aqui? Geórgia estendeu a mão, mas Verônica retraiu-se assustada, insistindo: - O que houve? Como saí do rio? Por que não morri? Paciente, a mãe disse: - As águas congelaram e você ficou presa nelas. Passei pela ponte e a vi.

Você perdeu os sentidos, mas consegui tirá-la de lá. - Onde estou? Que lugar é este? Como vim parar aqui? - Aqui é um hospital. Eu a trouxe para receber ajuda. Todos são amigos,

não tenha medo. - Ninguém é meu amigo. Todos me odeiam, me detestam. Thomas se a-

proximou devagar, com o coração doído; a filha estava completamente transtornada e fora de si. Levando um com água on-

de haviam depositado medicamentos para que ela dormisse sono profundo e reparador, entregou o copo a Geórgia, que o ofereceu à jovem:

- Tome, você precisa de água fresca. Logo se sentirá melhor. Desconfiada, Verônica recusou:

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- Não quero. E se colocaram veneno na água? E se foi Boris quem mandou vocês aqui para me matar?

- Veja, vou tomar um pouco para você ter certeza de que é apenas água. Ela tomou metade do líquido e o ofereceu novamente à filha: - Agora é a sua vez, vamos. E apenas água... Verônica, que estava sedenta, finalmente cedeu e tomou a água com sofre-

guidáo. Assim que terminou, forte torpor a envolveu e tentou gritar: - O que fizeram comigo? Vocês me mataram... Geórgia afagou-lhe os ca-

belos e disse: - Durma, filha, descanse. Estará melhor quando acordar. Agora entregue-se

ao sono que a tranqüilizará. Verônica, embora assustada, não pôde conter a sonolência que a dominou e

dormiu profundamente.

TRINTA E CINCO DEPOIS DA MORTE de Jan Huss, foi a vez de Jerônimo de Praga, seu discípu-

lo, enfrentar destino idêntico. Seguiu defendendo os princípios de Huss, e cer-ca de um ano mais tarde foi igualmente queimado na fogueira, condenado co-mo herético. Estava fincado na história um dos importantes marcos no comba-te ao poder abusivo da Igreja Romana, que a partir daquele momento e durante quase um século enfrentaria focos de "reformadores" em diversas regiões, os quais eram emudecidos pela violência da inquisição. As fogueiras crepitavam por toda parte, tirando a vida daqueles que ousavam reagir à maneira como a Igreja conduzia as questões espirituais. Mesmo assim, crescia gradativamente o número dos oponentes.

As lutas prosseguiam, e pouco a pouco aqueles que eram chamados de re-formadores ganhavam força. Finalmente, em outubro de 1517, o monge agos-tiniano alemão Martinho Lutero publicou as suas '95 teses contra as indulgên-cias"'e o movimento da reforma protestante espalhou-se por toda a Europa como um rastilho de pólvora. Daí em diante, quanto mais a Igreja Católica tentava conter e coibir as manifestações favoráveis à reforma e ao movimento protestante que surgia, mais ele se fortalecia. Em pouco tempo instaurou-se uma guerra sem precedentes no movimento cristão, entre católicos e protestan-tes, em praticamente todo o continente europeu. Muitos grupos protestantes nasceram em vários países, dando origem a novas seitas e denominações. Es-ses cristãos - que se fragmentaram em muitas formas diferentes de crer e com-

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preender - tinham como base de fé a Bíblia e negavam, em sua grande maioria, os dogmas católicos.

Mesmo sem admitir, a Igreja Católica Romana perdia o poder absoluto, e isso deixava descontrolados os seus altos níveis hierárquicos, especialmente o papa e seus principais assessores. Não aceitavam o movimento nascente e de-sejavam calar seus adeptos a qualquer custo.

Os interesses continuavam a determinar as decisões de reis e monarcas. Muitos que detestavam o poder da Igreja logo passaram a adotar o protestan-tismo como religião oficial, fazendo nele interferências que melhor o adequas-sem às suas necessidades pessoais.

Na verdadeira guerra que se deflagrou entre os cristãos católicos e protes-tantes, (mais tarde denominada contra reforma), os últimos passaram a ser in-cansavelmente perseguidos. Sob a pressão e os ataques que sofriam, muitos perdiam a vida, levando grandes grupos a deixarem a terra natal em busca de paz. Assim, muitas caravanas de quakers, sheikers, puritanos, dentre outros, deixavam a Europa e partiam para o continente recém-descoberto.

Começava a colonização material e espiritual da nação que se tornaria os Estados Unidos da América do Norte.

Nos bastidores daquela guerra entre os cristãos estavam falanges de espíri-tos renitentes do mal, que insistiam em opor-se a Deus e a Jesus, comprometi-dos em impedir o progresso da Terra. Autênticos inimigos do bem, agiam de forma muito organizada, buscando sufocar todas as manifestações da verdade. Tinham os homens sob controle por meio dos líderes da Igreja Católica Roma-na, que, muitas vezes sem consciência, os serviam. Quando a reforma eclodiu, abalando temporariamente seu domínio, estimularam a perseguição e destrui-ção dos reformadores, como forma de impedir-lhes o avanço.

Esses espíritos, tramando contra o avanço do bem e da luz, reuniram-se em conselho para avaliar o caminho a trilhar. Extremamente organizados e agindo de modo estratégico e inteligente, discutiam sobre como recuperar o terreno perdido. Entre eles estavam Núbio e seus assessores. O primeiro participava das decisões. Depois de ponderarem a situação e os riscos que ela envolvia para seus interesses de controle sobre a humanidade, um deles comentou:

- Algumas das idéias aqui cogitadas são válidas, mas creio que terão resul-tado passageiro. Acirrar a perseguição poderá trazer reação ainda maior dos protestantes. Precisamos encontrar outro jeito.

Várias foram as sugestões. - Estudemos de perto os protestantes e suas fraquezas, que, por certo, todos

têm - propôs Núbio.

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-O orgulho dos homens prossegue sendo nosso maior trunfo - outro sen-tenciou. -Podemos atá-los aos nossos interesses, desde que os façamos mover-se por ele. Núbio argumentou:

- Vamos usá-lo, então, a nosso favor. - E como faremos isso? - questionou alguém. Depois de curto silêncio, Núbio abriu largo sorriso e falou, irônico: - Esses protestantes, no anseio de mudar o que vêem de errado na Igreja,

apegam-se à Bíblia, não é mesmo? A concordância foi geral. - Pois vamos aprisioná-los à letra, afastando-os da essência à qual muitos

se ligam com genuína devoção. Transformemo-los em escravos da letra morta da Bíblia, instaurando confusão em suas maneiras de compreendê-la. À medi-da que se agarrem ao limitado entendimento da Bíblia, em seu zelo pela ver-dade, poderemos criar entre eles a incompreensão, a desunião e seu conse-qüente enfraquecimento. Irão se perder. O orgulho fará o resto, e logo se torna-rão nossos servos outra vez.

Houve grande confusão no salão, pois muitos rejeitavam a proposta de Núbio. Queriam oposição declarada, mais violência. Ao se acalmarem, um dos líderes falou:

- A sugestão de Núbio merece atenção e estudo. Acho que podemos esta-belecer uma estratégia de enfraquecimento de seus valores e crenças, afastan-do-os, assim, do pernicioso Cristianismo. Isso é o que mais nos interessa. Va-mos usar suas fraquezas contra eles, e dominá-los. Pensarão, todos eles, que estão com a verdade, e viverão pela parte da verdade que enxergam, por ela lutarão, matarão... Por ela nos servirão.

Erguendo-se, a entidade dominadora caminhou até Núbio e disse, fitando-o: - Muito bem, Núbio. Estudaremos sua idéia, e tiraremos dela o melhor pro-

veito. Queremos ter os homens sob nosso controle. Prossiga e concretize os seus projetos em sua área de atuação. Assim que obtiver bons resultados, re-plicaremos entre os demais.

- Quero acompanhar aqueles que estão se deslocando para as Américas. - Por quê? Sua região é aqui, entre os países anglo-saxões. - Eu sei. No entanto, o novo continente oferece condições propícias à im-

plantação de mais ampla forma de domínio. Além do mais, sei que muitos de nossos servidores reencarnaram em famílias que emigraram para lá. Grande número de nossos amigos romanos estão reencarnando naquela região. As fa-cilidades econômicas que oferecem nos podem ser de grande utilidade para manipularmos suas fraquezas, acenando com o enriquecimento que todos de-

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sejam. E depois, quem sabe o que se poderá desdobrar desse processo? O outro resmungou, em resposta:

- A descoberta das Américas foi postergada o quanto pudemos. Nada que leva o homem a se transformar nos interessa. Mas não pudemos evitar.

- Então usemos essa transformação em nosso favor. Dê-me a autorização e transferirei meus domínios para aquela região. Muitos protestantes estão indo para lá, instalando-se e construindo uma estrutura de sociedade que precisa ser detida. Focam a educação no estudo da Bíblia e vêem o trabalho como forma de servir a Deus. O progresso será conseqüência certa dessa estrutura.

- E o que pensa fazer? - Interferir para que esse progresso siga os rumos que nos convém, impe-

dindo que alcance os aspectos espirituais e morais. No restante, quanto mais progredirem na direção que nos interessa, melhor.

- Comece a implantar seu plano aqui mesmo. Se obtiver resultado, poderá ir para as Américas, estender seu domínio sobre eles.

Mais algumas discussões e a grande assembléia se desfez. Núbio iniciou imediatamente vigoroso ataque contra os protestantes, do-

minando-lhes a mente o quanto podia, deturpando, através do orgulho, sua dedicação sincera ao Evangelho, fazendo-os apegar-se cegamente às palavras da Bíblia, afastando da verdade todos os que conseguia, pela limitação de seus corações.

*** Alheia ao que sucedia na crosta da Terra, após muitos anos em penosa con-

dição - acordando e adormecendo novamente, para outra vez despertar em an-gústia e sofrimento -, Verônica começou a passar mais tempo acordada. Geór-gia, Thomas e ela residiam em pequena e bela residência, que em tudo lembra-va as casas aconchegantes de Praga, conquanto sem os exageros de luxo e so-fisticação. Verônica ocupava um dos quartos, que mais parecia uma enferma-ria. Chegado o momento em que estava pronta para se levantar, Geórgia aju-dou-a a sentar-se na cama e ela indagou:

- Quem é você, afinal? Por que cuida de mim com tanto carinho...? Deixando-se envolver pela ternura da mãe, Verônica caiu em pranto con-

vulsivo. Geórgia sentou-se ao seu lado e pediu: - Procure controlar-se, filha. É importante para o seu restabelecimento. Limpando as lágrimas que lhe desciam pela face, ela, por fim, conseguiu

falar. - Mãe! Como pude não reconhecer você? Perdoe-me por não ter consegui-

do escutar seus conselhos, nem fazer o que me ensinou... Abraçando a jovem com ternura e aconchegando-a em seu colo, ela disse:

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- Minha filha, temos muito a aprender ainda. Você precisa ficar forte, para poder entender melhor tudo o que se passou.

Mais calma, a jovem olhou em volta e perguntou: - Afinal, que lugar é este? Aproveitando a boa disposição da filha, Geórgia convidou: - Quer dar um passeio? Acho que já está forte o suficiente para sair dessa

cama. - Eu gostaria muito, mas e se Boris me encontrar? Vai prender-me de novo. Sorrindo, Geórgia a tranqüilizou: - Não se preocupe, ele não pode encontrá-la por ora. - Você me escondeu... Ela parou e, fitando a mãe, falou séria: -O que está acontecendo? Você não pode estar aqui falando comigo... Vo-

cê morreu... Oferecendo o braço para que ela se erguesse, a mãe respondeu: - Venha, apóie-se em mim. Vamos caminhar pelos lindos jardins deste par-

que. O ar puro lhe fará bem, e eu explicarei tudo. Verônica obedeceu e, amparada pela mãe, colocou-se em pé pela primeira

vez em muito tempo. Saíram e encontraram Thomas, que, atento ao que se passava, as aguardava na sala. A princípio a jovem não reconheceu o pai, para logo em seguida abrir largo sorriso e atirar-se em seus braços, soluçando:

- Pai! Como senti sua falta. Perdoe-me, por favor, pelo que fiz a você... Afagando seus cabelos, o pai lamentou: - Você só prejudicou a si mesma. Todavia, graças à misericórdia de Deus,

terá possibilidade de prosseguir sua jornada, quando estiver mais fortalecida. Ladeada pelos pais, a jovem saiu apoiada nos braços dos dois até alcança-

rem lindo jardim. Verônica examinou o lugar, curiosa: - Onde estamos? A não ser por algumas casas que se assemelham às de

Praga, em nada reconheço a nossa cidade. Olhando a filha com carinho, Geórgia indagou: - Você ainda não compreendeu? - Não compreendo nada. Acho, sim, é que estou sonhando... Um lindo so-

nho, do qual logo vou despertar no mosteiro, na cela infecta em que me encon-tro, e continuar aquele sofrimento desesperador.

A mãe procurou esclarecer: - Foi naquela cela infecta, filha, que você acabou por perder sua existência

na Terra. Fitando os grandes olhos da mãe, ela perguntou: - Do que está falando?

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- Você deixou o corpo físico, Verônica, sua encarnação terminou. Habita esta colônia espiritual há mais de cem anos.

Diante da expressão perplexa da filha, prosseguiu: - Já no mundo espiritual, permaneceu longo tempo inconsciente. Demora-

mos a conseguir recolhê-la. Assustada, a jovem gritou: - Não é verdade! Quem são vocês? - Não percebe que sou sua mãe? Não sente o amor que nos une? Em ex-

trema agitação, Verônica teve de sentar-se em um banco para respirar. Depois de alguns minutos, dirigiu-se aos dois: - Não acredito. Isso só pode ser um pesadelo. Resoluta, Geórgia convidou: - Pois bem, voltemos à nossa casa. Vamos levá-la por uma viagem no tempo. - Acha que é o momento? - Thomas questionou. - Ela não pode mais fugir. É tempo de enfrentar a realidade, para não per-

der novas oportunidades. Voltaram para a acolhedora residência. Acomodaram Verônica na cama e

posicionaram à sua frente uma tela onde imagens sucessivas se faziam visí-veis. Cenas de sua última existência passavam diante dela, que logo se reco-nheceu e começou a relembrar. Ao ver Boris, pediu:

- Por favor, parem! Eu me lembro, agora me lembro. Parem... Já não su-porto!

Abraçando a jovem, Geórgia disse: - Chega de fugir, Verônica, você precisa acordar. Está perdendo tempo

precioso. Deve voltar em breve à Terra. Mas para que isso lhe seja útil, precisa aproveitar o tempo de que ainda dispõe em nosso plano para se preparar.

Verônica tremia e ameaçou desmaiar. Geórgia e Thomas a sustentaram e-nergeticamente. Thomas saiu para buscar auxílio. Um pequeno grupo de ami-gos veio dar sustentação à importante conversa dos três. Verônica continuava tremendo e confessou, entre lágrimas:

- Tenho medo. - Sei que tem. Inconscientemente sabe de tudo o que houve e teme que a

história se repita. Depois daquele dia, longas conversas foram trazendo à memória de Verô-

nica sua última experiência na Terra e ela, dolorosamente, teve de enfrentar seu fracasso. Lentamente, a mãe a conscientizava de sua situação e aconselha-va nova encarnação, para que pudesse começar a refazer seus caminhos. Aos poucos, toda a verdade foi sendo assimilada, inclusive sua existência e seus atos como Fausta. Foi então que ela, entristecida, recordou Constantino.

- Onde ele está agora?

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- Está na Terra, encarnado. - E como está? - Depois de permanecer por muito tempo desencarnado, sob o domínio das

entidades espirituais inimigas do bem, às quais se entregou durante a valiosa experiência como imperador romano, sua situação espiritual se deteriorou. Atravessou séculos nessas condições, sendo por fim resgatado, e, devido ao estado de demência em que se encontrava, foi necessário reencarnar, assumin-do um corpo totalmente comprometido. Sua primeira possibilidade de reencar-ne foi fracassada. Devido à grave situação espiritual em que se detinha, o cor-po físico - carga genética cedida pelos pais - não suportou e a mãe sofreu um aborto. Assim foram diversas tentativas, até que a gestação chegou até o final e ele permaneceu encarnado por alguns anos. Outras encarnações em situação semelhante se sucederam e atualmente ele se encontra na Terra. Ainda é prisi-oneiro de um corpo malformado, com comprometimento da inteligência. A deturpação de sua força mental, e a utilização desta para o mal de que foi ins-trumento, agora se reflete em um corpo com cérebro doente.

Com um abafado grito de horror, Verônica colocou a cabeça entre as mãos e chorou amargurada. Quando conseguiu se acalmar, ergueu o rosto e, entre lágrimas, disse à mãe:

- Gostaria de vê-lo... - Filha, tudo a seu tempo. Acredite em mim, você não está preparada para

encontrá-lo no estado atual; vê-lo assim poderia perturbá-la a tal ponto que dificultaria seu próprio restabelecimento. É preciso que você também se forta-leça e se prepare para uma futura reencarnação.

O olhar distante e entristecido de Verônica levou Geórgia a manter longo silêncio. Depois, tomando as mãos de filha, disse:

- Tenha paciência. - Muito do que você me diz é mistério para mim. Como posso retornar ao

corpo outras vezes? Por mais que tente compreender, tudo me parece compli-cado. E por que esquecer o que vivemos? Por que não conseguimos lembrar para poder acertar?

- Nosso passado é por demais delituoso. As lembranças mais nos atrapa-lhariam do que ajudariam. Não obstante, trazemos de forma inconsciente aqui-lo que devemos realmente recordar.

Geórgia fez rápida pausa e prosseguiu: - Temos um anjo da guarda ao nosso lado, para cuidar de nós e nos lembrar

de tudo o que é essencial. Mas precisamos deixar que ele o faça. Precisamos confiar em Deus e ser submissos aos seus desígnios.

Verônica deu um profundo e triste suspiro e falou:

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- É... Eu não consegui, não escutei ninguém. - Escutou aqueles que desejavam prejudicá-la, impedindo sua marcha evo-

lutiva. Deixou seus defeitos a dominarem e não o inverso, como deveria ter feito.

- E agora? O que será de mim? - Aproveite o tempo aqui na colônia... Dedique-se a aprender e a servir

seus semelhantes, trabalhando, assim, seus defeitos. Fortaleça sua fé e volte à Terra com a firme disposição de sair vitoriosa da próxima experiência.

- E se não for capaz? Se não escutar outra vez o que todos já tentaram me dizer?

- Vamos providenciar uma encarnação na qual você será portadora de os-tensiva mediunidade. Será impossível deixar de escutar a voz dos espíritos, aos quais terá a oportunidade inclusive de auxiliar, como forma de resgatar parte de seus pesados débitos com a lei divina. E será auxiliada de perto por Tho-mas, que voltará à Terra com você.

Fixando olhar triste na mãe, ela indagou: - E você? - Ficarei neste plano, amparando-os, enquanto estiver ao meu alcance. Verônica abraçou a mãe demoradamente, e então perguntou: - Quanto tempo ainda tenho aqui? - Dispõe de tempo suficiente. Aproveite e se prepare o melhor que puder.

Será importante que você e Thomas recebam Constantino como filho. Afinal, Também entre eles existe antiga ligação.

- Sim, Thomas foi o mais fiel amigo que Constantino teve. Lembro-me bem de seu rosto... Seu nome era... Marco?

- Isso. Agora, você precisa adquirir condições para acolher como filho a-quele a quem é tão ligada, para amá-lo e ampará-lo, com renúncia e abnega-ção, aprimorando os seus próprios valores morais,. Não será tarefa fácil, mas poderá contribuir muito para seu desenvolvimento espiritual.

- E ele, estará melhor do que hoje? - Possivelmente um pouco melhor. - Será que terei a capacidade de me dedicar a ele? - Terá de vencer seu egoísmo, seu orgulho e aprender a amar. Thomas esta-

rá ao seu lado, colaborando para seu êxito. Após longo tempo em silêncio, deixando-se envolver pela beleza e suavi-

dade da natureza à sua volta, ela por fim disse: - Vou tentar, mãe. Incentivando a jovem, Geórgia afirmou: - Você pode conseguir! Acredite!

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Alguns anos mais tarde, Verônica recebia novo corpo denso e retornava à Terra para outra tentativa de reparar erros e refazer seu caminho, harmonizan-do-se com a lei divina, para poder avançar rumo ao objetivo de evolução para o Criador.

TRINTA E SEIS PENSILVÂNIA, OUTONO de 1841. O vento agitava os galhos das árvores

frondosas, assobiando por entre as folhas. Grossos pingos de chuva começa-ram a cair e Lóris chamou da porta da ampla cabana, construída com pedra e madeira:

- Venha, Stephanie! A tempestade se aproxima, corra! A jovem gritou do poço de onde tirava água:

- Já estou acabando. Precisaremos da água, se a chuva demorar a passar... - Está bem, termine e venha logo! Stephanie encheu dois baldes, que veio trazendo presos a uma ripa de ma-

deira, cada um em uma das extremidades. O vento soprou ainda mais forte e a mãe insistiu, assustada:

- Vamos, Stephanie, corra! O vendaval vai pegar você! Derrubando quase metade da água que trazia, a jovem apertou

o passo e conseguiu alcançar a porta. Entrou, ajudada pela mãe, que dizia: - Meu Deus, precisa tomar mais cuidado. Esses vendavais são perigosos...

Vá trocar de roupa, está ensopada. Tirando a única peça que lhe protegia a cabeça, o pequeno chapéu comu-

mente utilizado pelas mulheres das comunidades quakers19, ela pediu: - Pode esquentar-me só um pouco de água? Estou congelando... - De que adiantou buscar, então? Vai gastar no banho... - Mãe, por favor, somente uma caneca de água, para esquentar um pouco. - Está tão frio e o inverno ainda custa a chegar... - Estamos no início do outono, eu sei; mesmo assim, está frio lá fora. Abrindo a cortina que protegia a janela, a mãe olhou pelo vidro e comen-

tou: - Este país é estranho... Aqui o tempo parece bravo. - Onde você nasceu era diferente?

19 Nome dado aos membros de um grupo religioso de tradição protestante, a Sociedade Religi-osa dos Amigos, criada em 1652 pelo inglês George Fox.

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Como se investigasse na memória fatos distantes, a mãe confirmou: - Cheguei neste país ainda criança, mas lembro bem que o vilarejo onde

morávamos na Inglaterra era um lugar mágico, maravilhoso, especial... Enxugando os cabelos com um pano, Stephanie comentou: - Fala sempre com tanto carinho de sua terra natal que sinto vontade de co-

nhecê-la. Lóris suspirou fundo, ajudando e filha a secar os longos cabelos. - Isso é um sonho impossível. Jamais poderemos voltar. Agora nosso lar é

aqui e estamos melhor do que lá, pode acreditar em mim. Vi muitos perderem os familiares pela perseguição dos padres e bispos. Nesta terra estamos segu-ros e temos liberdade para praticar nossa religião em paz, graças a Deus. Ainda mais com você assim...

Stephanie, que sorria, ficou séria e fitou a mãe já com os olhos marejados, dizendo:

- Faz tempo que não acontece, mas você não me deixa esquecer... -Temos tido muito trabalho para cuidar de você, filha, e precisa compreender que, se estivéssemos em nosso país, já poderia ter sido morta.

- Eles ainda fazem isso, mãe? Queimam as pessoas? - Fale baixo que suas irmãs estão brincando ali e podem escutar. São jo-

vens demais para ter de ouvir sobre esses fatos absurdos. Baixando a voz, ela indagou novamente: - Queimam ainda? - Parece que não, que isso já acabou... - Graças a Deus! - Sim, é horripilante... Bárbaro. E espero que nunca mais aconteça... Lóris ficou pensativa. Stephanie, que observava a mãe, após algum tempo

rompeu o silêncio: - Precisamos falar de um assunto importante. - Depois do jantar... Agora venha ajudar-me. Mais tarde, quando as filhas mais novas e o pai já dormiam, Lóris costura-

va algumas peças de roupas à luz do lampião e da grande lareira acesa. Sen-tando-se perto da mãe, Stephanie repetiu:

- Precisamos conversar. - Outra vez sobre aquele assunto? - Sim, você tem de me entender. Eu quero me casar... A mãe interrompeu,

ríspida: - Você ainda é muito jovem. - Tenho a mesma idade que você quando se casou com papai. Eric e eu nos

amamos e desejamos nos unir.

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Depois de longo silêncio, que para a jovem parecia interminável, a mãe in-dagou:

- E a família dele, o que diz? - Eles não se opõem. Erguendo-se e arrumando cuidadosamente a costura dentro de uma cesta,

ela disse: - Vou dormir, estou muito cansada. - Mãe, não fuja. Quero me casar com Eric e ter minha própria família, para

ser realmente feliz. - Pois muito bem. Embora não acredite que esteja preparada para tal res-

ponsabilidade, especialmente pelos seus problemas, não posso proibi-la. No entanto, insisto em que pense com cuidado. A vida conjugal vai desviar sua atenção da consagração a Deus, que deveria cultivar acima de tudo. Você sabe que tem muitos problemas e deveria se dedicar única e exclusivamente a Deus, para procurar redimir-se e obter a graça divina. Temo por sua sanidade, Ste-phanie.

- Você não quer que eu seja feliz, é isso? - a jovem explodiu. Virando um tapa no rosto da moça, Lóris disse em voz abafada: - Baixe esse tom comigo. Sou sua mãe e exijo respeito. Vá deitar-se agora. Está perdendo o controle outra vez. Depois conversaremos sobre essa questão.

Stephanie sentiu o sangue subir como se fosse transbordar de sua face. Fi-cou rubra de raiva. A mãe parecia não nutrir por ela afeto algum. Correu para sua cama e chorou baixinho. Sentia-se injustiçada. Era a filha mais velha e os pais não lhe davam a devida atenção. Não era tão nova quanto a mãe dizia. Já estava para completar dezesseis anos e tinha grande desejo de sair daquela casa. Quase não suportava os pais, que pareciam não a amar de verdade. Não compreendia bem o que ocorria à sua volta. Seus pais eram muito religiosos; levavam os filhos à Igreja todos os domingos, liam o livro sagrado e faziam orações constantemente. Viviam em numerosa comunidade protestante de quakers, seguindo seus ensinamentos. Mas dentro de casa não conseguia ver os pais fazerem aquilo que pregavam. Seu pai, David, era presbítero respeitado na comunidade, preparando-se para ser pastor de sua Igreja. A mãe dizia sempre que o que o impedia de ser efetivado era o problema dela. Os membros não aceitariam um pastor com problemas familiares sérios. "Será por isso que não me amam?", pensava ela, insistente.

Tais pensamentos não a deixavam conciliar o sono e já era madrugada alta quando, ainda derramando lágrimas, escutou uma voz sussurrada:

- Não confie neles. Querem acabar com você.

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Ergueu-se, certa de que uma de suas irmãs havia acordado, porém a voz não era de nenhuma delas. Olhou e viu claramente um menino sentado no can-to do quarto. Não tinha mais do que dez anos. Ela indagou, amedrontada:

- Quem é você? O que deseja em minha casa? - Não é só sua, é minha também. - Quem é você? - ela insistiu. - Não me reconhece? - Não, claro que não. - Sou seu irmão, Peter. Ela empalideceu e soltou um grito de pavor. As irmãs acordaram e logo a

mãe entrava no quarto, seguida pelo pai, perguntando: - O que foi, filha? O que houve? Stephanie apontou para o garoto, que agora ria dela, e disse: - É ele, mãe. O Peter está aqui. - Pare com isso, vamos. Acalme-se. Está tendo outra alucinação. - Não estou. Ele está ali - a moça sustentava Apontou para o canto onde via

o menino e continuou: - Está com uma calça branca, curta, e uma camisa linda, de mangas longas

com detalhes bordados nas pontas. E está segurando um carrinho de madeira. Dessa vez foi a mãe que gritou horrorizada e disse, olhando para o pai: - Não posso mais. Não suporto que ela o descreva assim. Não suporto... E em pranto deixou o quarto das filhas. O pai aproximou-se da jovem e re-

preendeu, severo: - Você está vendo o demônio em pessoa. Essa criatura que afirma ver não é

seu irmão. Os mortos não voltam, não podem comunicar-se conosco. Assim nos diz a Bíblia. O que você vê é o próprio demônio tentando enganá-la. Você é rebelde e geniosa. Precisa curvar-se diante de Deus e seguir seus ensinamen-tos. Só assim poderá ser perdoada e ficar livre de seu perseguidor.

-Pai, me ajude, por favor, estou com muito medo. Não me deixe aqui sozi-nha com ele. Peter... Esse ser é mau...

- Vamos orar. O pastor foi até seu quarto buscar a Bíblia. Peter caminhou até a jovem e

disse: - Viu o que fez? Agora ele vai voltar com aquelas orações intermináveis,

que eu detestava quando estava vivo e muito menos gosto agora, que vim para este outro lado. Afinal, por que tem tanto medo de mim? Sou seu irmão.

A jovem tremia a cada palavra ouvida e dizia baixinho para si mesma: não escute, não dê atenção a ele, é o demônio, não Peter...

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O pai retornou e, como o menino havia dito, leu vários trechos e fez com-pridas orações. Ao final, exausto, olhou para a janela. Estava amanhecendo. Stephanie agarrou-se ao pai e pediu:

- Não me deixe sozinha, ele continua aqui. David gritou: - Não é possível! Agora estou convencido de que você está vendo coisas.

Está enlouquecendo e nos levando a todos junto nessa loucura. Não pode ser! Minha filha mais velha está enlouquecendo.

- Não, pai, não é isso... Ele se levantou e, tomando a jovem pelo braço, disse: - Venha comigo. - Para onde vamos? - Vou levá-la para um lugar onde deverá permanecer até que eu decida o

que fazer com você. - Para onde está me levando? - Para o sótão. - Não, pai, por favor... Lá não. - Está tudo limpo e arrumado. Você vai ficar bem. Vou deixar o livro sa-

grado, que você já sabe ler. Leia-o dia e noite e ore pedindo que Deus a ajude. - Pai, não pode me deixar ali, como uma prisioneira. Ao abrir a porta do quarto, o pai a jogou para dentro, dizendo: - Você não pode trazer mais vergonha a esta casa. Sua mãe não consegue

encontrar as outras irmãs da nossa igreja sem ter de fugir às perguntas embara-çosas a seu respeito. Já chega o que sofreu ao perder seu irmão tão cedo e de modo tão estúpido. Ela não suporta mais. Tem as outras meninas para cuidar.

E suspirando fundo, lamentou: - Nosso varão, nosso único varão! Balançou a cabeça e fechou a porta, di-

zendo: - Há coisas que não compreendo... Stephanie sentou-se no chão. Abraçando os joelhos, chorava baixinho,

quando viu Peter no quarto. - Não vou deixar você sozinha. - Vá embora daqui! O que deseja comigo, satanás? - Sou eu, Peter, seu irmão. - Não é, não. Não pode ser. Ele chegou mais perto: - Não percebe que sou eu, Stephanie? A moça reagiu enraivecida: - O que quer comigo? Enlouquecer-me? - Quero companhia... - É mesmo o demônio. - Sou seu irmão.

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- Então por que não está no céu, que é para onde todas as crianças devem ir? - Não sei. É como se estivesse preso aqui. - Mas por quê? O menino sentou-se e ficou calado por instantes. Então olhou para a irmã e

disse: - Estou cansado. - Quantos anos tinha quando morreu? - Tinha a idade que você tem hoje. - Quinze anos? Mas aparenta menos... - Eu sempre fui doente. - Você, doente? - Sim, sempre tive o corpo menor do que a minha idade real, e não saía da

cama. - Mamãe nunca me disse isso. O menino olhou triste para o cômodo escuro: - Eles me escondiam aqui, neste sótão. Stephanie estremeceu. Ergueu a cabeça que mantinha baixa e o encarou: - Ficou aqui muito tempo? - Até morrer. - É mentira! Por que eles fariam isso com você, o único homem da casa? - Você não se lembra? -Não. - Eles tinham vergonha de mim, da mesma forma que sentem de você. - Por quê? - Porque não é perfeita como gostariam que fosse. Não percebe? Eles per-

seguem uma perfeição impossível. Não enxergam a realidade, e sim aquilo que gostariam que fosse real; que se encaixe na maneira como eles acreditam.

- Está me deixando confusa. Afinal, quem é você? - Já disse. Sou seu irmão e os odeio do mesmo modo que você. Não vou

embora porque quero me vingar pelo que me fizeram. E você vai me ajudar. - Está maluco? - Vai me ajudar ou não a deixarei em paz um único minuto sequer. Agora

que está me vendo mesmo, vai ter de me ajudar. Ninguém mais me escuta claramente. De vez em quando percebo que cap-

tam o que digo, mas com você é diferente: posso me comunicar de modo dire-to. Isso é esplêndido! Poderá ajudar-me e sairemos os dois lucrando com isso.

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TRINTA E SETE A IGREJA ESTAVA LOTADA, como era de costume nas manhãs de domingo.

Apesar do frio que fazia, prenunciando um inverno rigoroso, todos estavam presentes. Eric procurava por Stephanie com ansiedade. Já fazia quase um mês que não a via e estava preocupado. Era um rapaz alto e forte, com olhar deci-dido e firme, ao mesmo tempo em que demonstrava ternura e carinho no trato com as pessoas. Tal como ela, era o filho mais velho da família e já contava quase 28 anos. O pai tentou casá-lo três vezes com jovens da comunidade, mas Eric insistia em que se casaria com outra jovem que esperava crescer. Manti-nha em segredo a sua identidade, pois Stephanie era uma garota discriminada pela comunidade, devido ao seu comportamento diferente e especialmente por sua sensibilidade, que ninguém compreendia. Entretanto, a mãe do rapaz já havia percebido seus sentimentos e os respeitava, apesar de o ter aconselhado a buscar outra jovem.

Naquela manhã a pregação foi feita pelo presbítero David, que falou mais uma vez sobre a necessidade de a comunidade se manter unida e atenta, para não se misturar e assim ficar imune aos apelos mundanos, que eram apelos satânicos, com a intenção de destruí-los.

Deveriam manter-se sempre distantes de outras comunidades, para não se contaminar e permanecer puros. Ao final do culto, ficou à porta cumprimen-tando os fiéis. Eric aguardou que o templo esvaziasse e acercou-se do pastor.

- Bom dia, senhor. - Bom dia, meu filho. - Stephanie está bem? Sério, o pastor o fitou nos olhos antes de responder: - Está, sim. - Não a tenho visto... - Ela esteve doente, mas está quase boa... - Doente? Não soube de nada. - Somos discretos com nossos problemas, filho. E somente Deus quem

precisa saber deles. - Sim, senhor, eu entendo, mas senti a falta dela aqui na igreja. Já faz tem-

po que não a vejo. David cumprimentou outros que se aproximavam e respondeu, desviando a

atenção: - Ela está melhor, logo vai poder vir à casa do Senhor. E deixando o jovem plantado à porta, saiu em companhia de outros fiéis. O

rapaz apenas balbuciou:

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- Claro. Depois saiu e foi ao encontro dos pais. Ao chegar em casa David sentou-se à mesa, contrariado e inquieto. Lóris

percebeu, porém nada comentou. Ele, sem conseguir comer, bateu na mesa com força e extravasou a irritação:

- Como ela está? - Triste, mas está bem. As outras três filhas remexiam a comida do prato, de cabeça baixa, sem co-

ragem de encarar os pais. Ele disse: - Não podemos continuar a escondê-la desse modo. Estamos chamando a

atenção. Estão notando a falta dela. Precisamos dar um jeito nessa situação... Ou nos livramos dela, ou...

A esposa interveio, aflita: - David, o que é isso? Do que está falando? - Ora essa, você sabe. Não suporto conviver com ela! Traz vergonha sobre

nossa casa! - Ela está melhor. - Continua falando dele... - Não, não tocou mais no assunto. Fez-se breve silêncio, depois Lóris perguntou: - Quem perguntou dela? - O filho dos Stenton. - Eric? - Esse mesmo. - Só podia ser... - Por quê? - Está interessado em nossa filha. - O quê?! Eles são uma família decente. Como o filho poderia se interessar

por uma louca como nossa filha? - David, não fale assim. Ela garantiu que se gostam de verdade. Ele pegou

a mulher pelo braço, que apertou enquanto perguntava: - E o que mais disse? Estão em pecado? Desvencilhando-se com esforço da

pesada mão do marido, ela respondeu: - Acredito que não. Stephanie me disse que querem se casar. - Ela é muito jovem. - Também acho. Foi o que lhe disse. David voltou a acomodar-se na cadeira e, pensativo, colocou algumas gar-

fadas de carne na boca. Passado algum tempo declarou:

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- Quer saber? Acho que devem se casar mesmo. Mas vamos exigir que o rapaz venha morar aqui conosco, e nos ajude na propriedade. Será a nossa condição.

Lóris ficou em silêncio; depois, vendo que as filhas haviam terminado o jantar, mandou:

- Vão para o quarto. Quero conversar com seu pai. Vamos, depressa. Elas sumiram, indo direto para o quarto, e Lóris virou-se para o marido,

questionando: - Por que não deixa logo que ela se vá? Você a odeia, não é? - Não, não é isso... É claro que não a odeio... E que ela é tão problemática,

vendo e ouvindo coisas o tempo todo... Não consigo olhá-la nos olhos... Ela me incomoda.

- Então, David, deixe que se case e vá morar longe daqui. Será melhor para ela e para todos nós. Se o rapaz quer assumir esse fardo, pois que seja!

Enquanto conversavam, uma entidade espiritual, que protegia a família, envolveu o pastor David (que fora Boris em encarnação pregressa) em suaves energias e lhe disse aos ouvidos da alma:

- Deixe que ela se case, que assuma as responsabilidades que precisa ter. Continuarão perto um do outro, mas ela precisa seguir sua jornada. Não a im-peça de crescer.

As palavras da amorosa entidade espiritual ganharam força no coração do pastor e ele falou, depois de muito pensar:

- Pois bem, vá buscá-la. Quero ter uma conversa com ela agora mesmo. Não demorou muito e Stephanie apareceu na sala, visivelmente mais ma-

gra. Ficou de pé, diante do pai, tentando ocultar a raiva terrível que sentia dele. De cabeça baixa, evitava fitá-lo nos olhos. Ele disse, assim que a viu:

- Quero saber sobre as intenções desse rapaz, o Eric. - Por que, pai? - Ele perguntou por você hoje à saída do culto, e sua mãe me disse que vo-

cês têm intenção de se casar. É verdade? - Sim. Nós nos amamos e queremos nos casar. - E a família dele? Concorda? - Eric me contou que a mãe já sabe e aceita. - Emma sempre me pareceu um pouco desajuizada. E Michel? - Não sei, mas se vocês concordarem Eric vai falar com os pais que deseja

casar-se logo. Aproximando-se da filha, David segurou-a pelos ombros com as duas

mãos e, chacoalhando-a, indagou: - Por que têm pressa? Estão em pecado? Responda!

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- Não, claro que não! Eric me ama, já disse, e queremos construir nossa família. Além do mais, ele já tem 28 anos.

- Vinte e oito? Deveria ter algum juízo... David soltou a jovem e caminhou pela sala, depois se virou para ela e disse: - Pois bem, diga a ele que venha falar comigo imediatamente. Caso suas

intenções sejam sérias, e com a concordância da família, terão meu consenti-mento.

- Quer dizer que não preciso voltar para o sótão? - Por enquanto, não. O espírito de Peter acompanhava toda a conversa e disse à jovem: - Estão tramando alguma coisa. Fique atenta! Ela o ouviu, mas não demonstrou. Não falava mais com ninguém sobre a

presença constante do irmão, que não a deixava sozinha. Desejando sair da-quela casa, onde se sentia sufocar, indagou:

- Posso procurar por Eric agora mesmo? - Não. Vocês se verão no próximo domingo, no culto dominical, e então

conversarão. - Mas, pai... - Não quero filha minha correndo atrás de ninguém. Fique dentro de casa e

ajude sua mãe. No domingo peça a ele que venha me ver. Stephanie permaneceu calada a semana toda. Tinha medo de falar algo que

prejudicasse suas expectativas de casar-se com o jovem que amava, e de ver-se livre de vez daquela família que a desprezava. Aproveitou-se de uma saída do pai, que fora chamado a atender um senhor doente, para procurar Eric. Sabia exatamente de seus hábitos e foi ao seu encontro. O rapaz cortava lenha, quan-do a viu e correu para abraçá-la.

- Stephanie, quanta saudade! Ao saber da decisão de David, ele ficou satisfeito e tranquilizou-a: - Não se preocupe, vou falar hoje mesmo com meu pai. - Estou com medo. Tomando-lhe as mãos, ele indagou: - Medo por quê? - E se seu pai não permitir? Afinal, eu sou meio... - Não diga isso. - Sou mesmo louca, Eric. - Por favor - ele pediu -, não fale assim... Isso não é verdade. - Será que não, Eric? - Claro que não. - Então por que tenho visto constantemente meu irmão, Peter, que já mor-

reu? Sou amaldiçoada...

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Abraçando-a com carinho, ele garantiu: - Tenho certeza de que não se trata disso. - E o que mais pode ser? Como vejo e ouço pessoas mortas? - Eu não sei, Stephanie; só sei que louca você não é. - Será que é possível ver os espíritos dos mortos? Como, se eles não podem

comunicar-se conosco? Sabemos, pela Bíblia, que não se pode falar com os mortos...

- Será que não? - Você acha que é possível? - Tenho um primo que vive em uma comunidade shaker em Lebanon, vila-

rejo ao norte de Nova York. Ele esteve conosco há duas semanas e nos disse que espíritos de índios da região estão se manifestando há algum tempo naque-la comunidade.

- Serão mesmo espíritos? - Ele disse que sim, que são espíritos, e que seu pai tem a capacidade de

vê-los e ouvi-los. Garantiu-me que não são demônios, são apenas índios em espírito.

Stephanie fitou o rapaz com lágrimas nos olhos: - Será que é possível? Será isso o que acontece também comigo? - Não sei, mas nós vamos descobrir. Assim que nos casarmos, vamos até lá

para ver o que acontece e tentar compreender o que se passa com você. De uma coisa eu estou certo: você não é louca.

Ela abriu largo sorriso, abraçando o noivo com força: - Eu o amo demais!

TRINTA E OITO QUANDO STEPHANIE ENTROU silenciosamente em casa, a mãe dava banho

na filha menor, então com cinco anos. Apesar dos cuidados da jovem, a mãe, de ouvidos atentos, gritou do quarto das filhas:

- É você, Stephanie? - Sim, mãe. - Venha já aqui. A jovem foi até o quarto e, parada na porta, observou a mãe; agachada,

com os vestidos amarrados nas pernas e o cabelo em desalinho, lavava a meni-na. Vendo a filha mais velha, Lóris investigou:

- Onde esteve? Procurei-a para pedir ajuda com suas irmãs e não a encon-trei.

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- Fui colher maçãs. - Ainda tínhamos algumas na cesta. - Eu sei, mas queria comê-las com o sabor de recém-colhidas. Mostrando a

cesta repleta de maçãs que colhera às pressas, com a ajuda de Eric, ofereceu: - Quer uma? - - Deixe-as na cozinha e venha me ajudar. Seu pai está para chegar e preci-

so terminar logo o jantar. Sabe que ele gosta que tudo esteja pronto quando chega.

Fitando a jovem, a mãe prosseguiu: - Uma boa esposa e mãe deve desdobrar-se para cuidar do lar, do marido e

dos filhos. Você acha que está preparada para assumir tantas responsabilida-des, Stephanie?

Sem prestar atenção ao aviso da mãe, ela afirmou: - Estou mais do que preparada. Amo Eric e ele me ama, que mais posso

desejar? Envolvida por Geórgia, que em espírito, acompanhava a filha de outras en-

carnações, Lóris falou: - Precisa parar de sonhar, Stephanie, e pensar seriamente nas responsabili-

dades de uma vida de mulher casada. Terá de assumir todos os cuidados do lar, enquanto seu marido prove o sustento da família. E muito trabalho, não pode assumir esse matrimônio sem pensar bem quanto trabalho e quanta dedicação exigirá de você.

Pegando uma das mais bonitas maçãs do cesto, Stephanie limpou-a no ves-tido. Mordeu sofregamente vários pedaços antes de retrucar:

- Sei que serei feliz com meu amado Eric. A mãe pediu outra vez: - Vá buscar Alicia, que está brincando lá fora, e dê banho nela enquanto

termino de preparar o jantar. Stephanie andou devagar até a cozinha e colocou a cesta sobre a mesa. Sa-

iu e chamou a menina que brincava na horta. Ao vê-la, a irmã se surpreendeu: - Como você está suja! Venha, vou lhe dar um banho. - Não quero você, quero a mamãe. - Ela tem muitas coisas para fazer e rne pediu que ajudasse. - Não quero. Dando um leve beliscão na menina, a jovem disse entre dentes: - Fique quieta. Vou dar banho em você e não me apronte confusão. Durante o jantar, Lóris e David pouco conversaram. Quando todos saíram

da mesa, ele quis saber: - Ela se comportou direito hoje?

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- Sim, sem novidades. - Nenhum comportamento estranho? - Não. Já decidiu o que vai fazer caso o rapaz realmente a peça em casa-

mento? - Vou conversar com os pais dele para ver como a família pensa. Se estive-

rem de acordo, colocarei como condição que ele nos ajude no cuidado da terra por alguns anos, e só depois vou liberá-los para viverem suas vidas livremente. Quero ficar de olho nela.

- E acha que Eric vai aceitar? - Ou aceita, ou não vai desposar nossa filha. - Está certo. Os dias se arrastavam para Stephanie. Naquele domingo, ao contrário do

que era seu hábito, pulou da cama logo que o sol nasceu. Estava ansiosa de-mais para permanecer deitada. Sabia que Eric falaria com seu pai naquela ma-nhã. Foi até a cozinha e sentou-se perto da janela, contemplando o nascer do sol. Estava absorta em seus pensamentos, quando escutou uma voz familiar:

- Então acha que vai conseguir viver em paz, longe desta casa? Stephanie virou-se, espantada, e viu Peter bem perto. Deu um grito e falou: - Afinal, o que você quer de mim? - Quero vingança! - Mas do que está falando? - Eu odeio todos vocês pelo que me fizeram. - Eu não lhe fiz nada... - Claro que fez! Você nasceu e estragou tudo. Antes era somente eu, tudo

era para mim. Depois você chegou e tirou minha mãe! Chorando, nervosa, ela disse: - Eu não tenho culpa, não lhe fiz nada. Nem me lembrava de você... Vá em-

bora, por favor! Vá embora. Não pode continuar me assustando desse modo. - Pois saiba que a atormentarei até o fim de seus dias. E também a esse

homem que chama de pai. Vocês vão sofrer nas minhas mãos. - Por favor, pare... - O que está havendo aqui? Com quem estava falando? Ao ouvir a voz do pai, Stephanie sentiu o sangue sumir-lhe do rosto alvo.

Aquele era um dia muito importante, e não queria que nada atrapalhasse seus sonhos. Respirou fundo e falou pausadamente, enquanto limpava as lágrimas:

- Estava orando e me emocionei. Sem esboçar reação, David fitou-a e determinou:

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- Pois ore em silêncio. Não precisamos de estardalhaços para manifestar nossas necessidades a Deus. Ele sabe tudo de que precisamos. Mantenha a discrição, Stephanie.

Depois de uma pausa, considerou: - Não sei se está pronta para nos acompanhar à igreja hoje. Talvez seja me-

lhor ficar aqui mais alguns dias, antes de se expor. Tenho dúvida de que esteja bem de fato.

Enquanto Peter ameaçava avançar sobre ela, Stephanie, em pânico, embora arregalasse os olhos, mantinha-se em absoluto silêncio. David observou a filha por alguns momentos e ela falou:

- Estou muito bem, pai. Já não tenho nenhuma daquelas visões e sinto-me disposta e tranqüila. Deus está me auxiliando a ficar boa.

Sem responder, o pai foi até o quarto e voltou todo arrumado. Depois que todos fizeram o desjejum, saíram juntos para o templo. Ao término do culto, Eric, novamente esperando que todos saíssem, aproximou-se do pastor junto com os pais e saudou:

- Bom dia, senhor. - Bom dia, Eric. - Preciso conversar com o senhor, sobre assunto importante. - Diga. - Gostaria de casar-me com sua filha. David olhou para os pais do rapaz e perguntou: - Os senhores estão de acordo? Michel respondeu: - Sabemos do grande carinho que Eric nutre por Stephanie. Não há nada

que os impeça de se casarem. - Podem ir até minha casa hoje à tarde, para conversarmos melhor? - Sim, é claro. Estaremos lá. Emma, cumprimentando o pastor, disse: - Levarei aquela torta de maçã que o senhor tanto aprecia. No meio da tarde, estavam todos reunidos na sala de estar de David. Ste-

phanie, ao lado de Eric, sentia o coração descompassado. Desejava que nada interferisse naquele momento, mas tinha medo. Olhava de vez em quando para os lados para ver se Peter aparecia, mas não havia nem sinal do menino. Ao final da conversa, David apresentou sua condição:

- A única restrição que tenho se relaciona à ajuda que Stephanie nos dá, pois temos muito trabalho em casa, e também na igreja. Por isso será necessá-rio que Eric participe dos nossos serviços do campo por dois ou três anos, até que uma das outras meninas cresça um pouco mais e possa auxiliar Lóris. En-

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quanto isso, vamos precisar também da colaboração de Stephanie, de vez em quando.

Os pais do rapaz, surpresos, não sabiam o que dizer. Eric apertou as mãos de Stephanie entre as suas e sentiu-as úmidas de suor. Disse então:

- Eu concordo. Faremos uma pequena cabana depois do rio, que fica bem perto, e assim eu e Stephanie poderemos ajudar.

- Então está tudo certo. * - Podemos marcar a data? - perguntou Eric, levantando-se. - Está com pressa, rapaz? Olhando a amada com ternura, ele respondeu: - De fato, estou. - E para quando deseja marcar? - Preciso de um mês para erguer a pequena cabana. Pode ser daqui a dois

meses. Lóris se espantou: - E muito rápido. Não teremos tempo de fazer todos os preparativos... Mais do que depressa, Stephanie ergueu-se, tomou o braço do noivo e disse: - Teremos sim, mãe. Dois meses é o suficiente para as providências básicas. Tocando os cabelos da filha, Lóris controlava as lágrimas ao dizer: - Você é tão jovem, filha... Sem responder, Stephanie apertou o braço de Eric, que, voltando-se para a

futura sogra, tranquilizou-a: - Não se preocupe, vou tomar conta de sua menina. Embora tão jovem, sei

que me ama muito. Terei paciência com ela, fique sossegada. Enquanto se despediam, Eric assegurou novamente a Lóris: - Não se preocupe, vou cuidar bem dela. Tocando de leve o braço do rapaz, ela disse com leve sorriso: - Assim espero, Eric. Stephanie é uma garota delicada. Olhando nos olhos

da sogra, Eric afirmou: - Sei disso, não se preocupe. Stephanie observou a família visitante subir na carroça e desaparecer na es-

trada. Sorrindo, não conseguia conter a alegria. Muito lhe custava não gritar e dançar de contentamento. Até que enfim estaria livre daqueles que não a ama-vam...

Os dois meses passaram rápido. Stephanie não tinha tempo para nada, di-vidindo a atenção entre a ajuda nas tarefas cotidianas da família e os preparati-vos para o dia tão esperado. Sua alegria era tão grande que nem mesmo a pre-sença constante de Peter a perturbava. Certo dia, ele a observava cuidando das

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roupas das irmãs mais novas. Olhou-a longamente, sem dizer nada, depois falou:

- Você não será feliz! A garota o encarou e disse, sem se alterar: - Diga o que quiser. Serei muito feliz fora daqui. - Mas você não vai sair daqui. - Vou, sim. Terei minha pequena e linda casa, que transformarei num para-

íso, meu e de Eric. - Está enganada. Continuará dominada por eles... Stephanie sorriu e disse: - Pode falar o que quiser, Peter, não vou escutá-lo. Agora me deixe, tenho

muito a fazer. Levantando-se, foi até o quintal buscar mais roupas secas para dobrar.

TRINTA E NOVE AINDA QUE ESTIVESSE ansiosa, o grande dia chegou quase sem que Stepha-

nie se desse conta. Naquela manhã ensolarada, a pequena igreja estava enfeita-da com lindos arranjos de flores do campo e lotada pela comunidade religiosa. Ao apontar na porta da igreja, a noiva parecia reluzir de tanta felicidade. Sentia como se realizasse um sonho antigo, muito mais antigo do que ela própria. Ali, de pé, diante da porta fechada, com seu lindo vestido branco e a enorme gri-nalda que fizera questão de colocar, sentia-se plena e realizada. Não pensava em mais nada. Seu coração transbordava de satisfação. Quando as portas se abriram, caminhou como se seus pés não tocassem o chão, como se flutuasse no ar. Eric sorria para ela, igualmente feliz.

A cerimônia foi simples e curta. Enquanto David a celebrava, Peter se es-condia atrás das cortinas que cobriam o fundo do templo, como se brincasse de esconde-esconde. Stephanie se concentrava, mas não podia deixar de seguir com os olhos os movimentos rápidos e os pulos do garoto. David percebeu que algo a distraía e com o olhar chamou sua atenção; imediatamente a jovem bai-xou os olhos, buscando não deixar mais que o irmão, fora do corpo físico, a distraísse.

Ao final da singela celebração, Eric beijou-lhe a testa com doçura e falou baixinho:

- Amo você e quero fazê-la feliz. Stephanie mais uma vez sorriu satisfeita e pensou que nada, daquele dia

em diante, poderia atrapalhar a concretização dos seus sonhos. Depois, todos foram para uma grande área da comunidade, onde se realizavam as comemo-

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rações. Uma enorme mesa havia sido montada, com comida, frutas e doces. A festa se estendeu até o final da tarde, quando, finalmente, os noivos se despedi-ram dos convidados e se prepararam para partir. Entre um convidado e outro, Eric sussurrou no ouvido da esposa:

- Tenho uma surpresa para você. - O que é? - Logo saberá. Ao cumprimentar o sogro, Eric disse: - Pastor David, eu e Stephanie faremos uma breve viagem antes de nos ins-

talarmos em nossa cabana. - Você não havia dito nada... Quando pretendem partir? - Vamos agora mesmo, assim que sairmos daqui. Fitando a filha, irritado,

David indagou: - Você já sabia? Eric se antecipou, olhando a esposa com ternura: - Não, estou fazendo uma surpresa. Ela acaba de saber. Vamos voltar em

duas ou, no máximo, três semanas. Contrariado, David perguntou: - E para onde vão? - Tenho um primo que mora em Lebanon, ao norte de Nova York. Ele não

pôde comparecer ao nosso matrimônio devido aos compromissos que tem por lá, mas nos convidou para passarmos alguns dias com ele. Foi extremamente gentil, e eu gostaria de atender ao seu convite. Logo as novas responsabilida-des nos ocuparão por completo e não quero ausentar-me por muito tempo, con-forme o senhor e eu combinamos.

Sem saber o que argumentar diante do inesperado, ele disse apenas: - Espero que não falte com sua palavra, rapaz, e cumpra tudo o que combi-

namos. - Não vou decepcioná-lo, pastor David. Abraçando a esposa, ele enfatizou: - Nenhum de nós irá decepcioná-lo. David virou-se para cumprimentar outros convidados que se retiravam, e

Eric e Stephanie saíram. De mãos dadas, correram para a carroça e acomoda-ram pequena bagagem. Ele tomou as rédeas dos animais e partiram.

Sorridente ao lado do marido, a jovem exclamou, ao alcançarem a estrada: - Nem acredito que estamos fazendo esta viagem! Que surpresa maravilhosa! Sorrindo também, Eric pousou nos dela seus olhos grandes e brilhantes e

perguntou: - Está feliz?

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- Demais! Este é um dia maravilhoso. Jamais esquecerei a felicidade que sinto neste momento. É o dia mais feliz da minha vida! Não me lembro de ter sentido tamanha alegria antes!

- Quero que seja feliz, Stephanie. Por isso, combinei com meu primo esta viagem. Quero que comecemos nossa vida esclarecendo a questão de suas per-turbações.

Imediatamente a jovem ficou pensativa. Eric inquiriu: - O que foi? Falei algo que não lhe agradou? - Não, não é isso. É que eu queria esquecer esses problemas, sabe? Gosta-

ria de deixar tudo isso para trás, não ter de pensar nem falar mais nesses assun-tos que me entristecem. Quero ser igual às outras garotas. Quero apenas ser feliz.

Abraçando-a forte, o rapaz explicou: - Também quero que você deixe para trás tudo o que a perturba, mas antes

precisamos compreender a fundo o que se passa. Estamos começando uma vida nova, e para isso precisamos encarar nossas

dificuldades. Não vai adiantar fugir delas. Além do mais, percebi que durante a cerimônia você observava alguém invisível para os demais. Quem era?

- Ninguém. - Não precisa ficar assim, Stephanie. Você pode confiar em mim, contar

tudo o que se passa. Estarei sempre ao seu lado para apoiá-la. Pode dizer, quem você estava vendo?

Ela hesitou, mas enfim contou: - Peter não parava de fazer traquinagens e de chamar minha atenção. Pen-

durava-se nas cortinas e corria entre elas. Fiquei um pouco aflita. - Então, querida, é disso que estou falando. Estou certo de que meu primo

Elder conseguirá nos ajudar. É um homem bom, você vai gostar dele; e, acima de tudo, vamos compreender melhor a sua situação.

Já era noite alta quando chegaram à cidade mais próxima, onde ficariam até o dia seguinte; dali tomariam outra carruagem, que fazia o transporte de passageiros até New Hampshire.

De manhã, na hora da partida, acomodaram a bagagem e se sentaram lado a lado. Eric aconchegou a esposa nos braços.

- Ainda que a viagem seja longa, a vista é linda. Poderemos admirar as be-líssimas paisagens pelo caminho.

- Já esteve lá antes? - Sim, quando era bem jovem. Depois o trabalho começou a exigir mais e

acabamos nos distanciando um pouco. O trabalho tem sido árduo e difícil. - Mas a plantação de vocês é tão bela e abundante...

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- Trabalhamos com afinco, porém quando vamos vender a colheita os pre-ços são sempre baixos. Querem que meu pai processe o trigo que produzimos, dizem que assim o preço será maior. E o aconselharam a adquirir escravos para ajudar na lavoura.

- Que horror, Eric! - Também tenho horror a essa prática. - Estão mesmo trazendo negros para nosso país, como escravos? - Muitos, principalmente nos estados do sul. - Isso é errado, não é? - Totalmente. Pessoas não deveriam ser transformadas em escravos. Meu

pai também não concorda, e por isso trabalhamos muito. Dizem que os escra-vos são um bom investimento, pois paga-se uma única vez e eles trazem lucros por muito tempo.

- Não gosto desse assunto, Eric. - Pois falemos de outras coisas. A jovem sorriu e perguntou: - Pode começar me contando o que gosta de comer. Vou preparar pratos

deliciosos. Aprendi alguns que minha mãe ensinou. - Que tal falarmos sobre filhos? A jovem ficou séria e muda. Não pensara em filhos, nem por um único mo-

mento. Desejara casar-se e ter a própria família, estar com Eric, com quem se sentia realmente amada. Quanto a filhos, não pensara nisso. O rapaz insistiu:

- Quero ter filhos logo, e você? Sem esperar resposta, fitou-a e disse feliz: - Vamos ter vários. Quero pelo menos seis filhos. - Seis? Por que tantos? - Ora, meus pais têm cinco e seus pais quatro. Muitos de nossos irmãos na

comunidade têm seis e até oito filhos. Não acho tanto assim. Quero ter muitos filhos. Esse é meu sonho, uma família grande e feliz.

Abraçou a jovem, que continuava em silêncio. - E você, quantos filhos gostaria de ter? Stephanie hesitou. Não sabia o que responder, e disse por fim: - Não precisamos ter tantos filhos. Quero dois ou três... - Está brincando comigo. Do que tem medo? - Não sei, acho que filhos dão muito trabalho... - E muita alegria também. Vamos, três é muito pouco. Pelo menos quatro! Sem saber o que dizer e não desejando criar nenhum desconforto naquele

momento mágico que vivia, respondeu: - Deus nos dará os filhos que quiser. Ele nos abençoará e teremos uma lin-

da família.

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- Isso mesmo! Assim é que se fala! Essa é minha esposa! Abraçando-a com força, seguiu conversando sobre os mais diversos assun-

tos. No entanto, Stephanie ficou apreensiva. Não imaginara que Eric quisesse filhos tão depressa. Ela queria fruir a vida em companhia do marido, ter liber-dade para passear, namorar e ser feliz. Filhos seriam intrusos naquele momen-to...

*** A vários quilômetros dali, em Nova York, Sean negociava um grande car-

regamento de escravos. Dentro de um beco escuro, com uma arma bem visível presa na cinta, ele argumentava com o comprador:

-Terá de confiar em mim. Este é um carregamento de primeira. São apenas 23, todos de excelente qualidade. Seu investimento terá retorno em pouco tem-po.

O comprador, representante de um grande fazendeiro do estado da Virgí-nia, resmungou contrariado:

- Está muito caro, e além disso não poderei vê-los antes de pagar. Assim está ficando difícil... E são somente 23! Você disse que traria pelo menos cin-qüenta. Toda vez é a mesma coisa. Montamos uma operação arriscadíssima e complexa, e para quê? Para vinte negros?

Agarrando o outro pelo colarinho, Sean disse: - Olhe aqui, o contrabando de escravos está ficando cada vez mais difícil e

perigoso. Arrisco a própria vida para trazê-los. Portanto, o preço está é muito barato! Se não estiver interessado, tenho uma fila esperando meu aviso. Todos querem os escravos e poucos continuam com o contrabando. Sabe quantos já foram pegos pelo governo?

O outro, ainda que indignado, ouvia em silêncio. Sean prosseguiu: - Decida logo. O que vai ser? Vai ficar ou não com eles? - Preciso falar com o meu patrão. - Se sair deste beco sem pagar, perde o negócio. Entendeu bem? Soltando o

homem, ele arrumou as roupas e virou-se em retirada. - O que estou fazendo? Não preciso negociar com você. E ia saindo do lu-

gar, quando o outro correu atrás dele: - Espere. Sean virou-se e aguardou. Paul hesitou um pouco, depois concordou: - Está feito. - Sábia decisão. Já estava prestes a aumentar o preço dos escravos. O com-

prador colocou uma sacola de couro nas mãos de Sean: - Aqui está o valor que pediu. Podemos transferir os escravos agora, como

sempre fazemos?

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- E claro. Eles estão no porto, prontos para serem transferidos de embarca-ção.

- Todos homens? - Vinte homens e três mulheres. - Você disse que eram todos homens! É deles que precisamos para o traba-

lho na lavoura. - E você esquece que pode diluir o preço deles, ao se reproduzirem? Paul ficou em silêncio. Tomaram caminhos separados até o cais, onde se

encontraram outra vez. Sean declarou: - Caso deseje negociar comigo outra vez, venha sozinho. Se souber que há

mais alguém por perto, nossos negócios acabarão... E não gosto de tomar pre-juízo, está entendendo? Diga isso ao seu patrão.

Sean entregou uma chave ao outro e apontou com a cabeça: - É aquele navio preto e vermelho. Estão trancados no porão, todos amor-

daçados. Não faça barulho. Três de meus homens esperam para ajudar. Paul tomou a chave e Sean, ajeitando as duas sacolas de couro nos ombros,

andou em sentido contrário ao porto e sumiu na noite escura.

QUARENTA DEPOIS DE LONGA VIAGEM, a carruagem finalmente alcançou seu destino e

entrou na cidade de New Hampshire. Stephanie, ansiosa e atenta, não deixava escapar nenhum detalhe. Não se sentia cansada, e sim cheia de entusiasmo. Nunca antes havia saído dos restritos limites da comunidade quaker em que vivia, e aquela viagem representava liberdade.

Assim que o veículo parou, Eric pulou e ajudou-a a descer. Logo avistaram Elder20, primo de Eric, que os aguardava.

- É um grande prazer recebê-los aqui, em nossa casa. Desejo felicidade a vocês dois.

Afetuoso, abraçou Eric e depois, com um discreto gesto de cabeça, cum-primentou Stephanie:

- Muito prazer, senhora. Seja bem-vinda à nossa família. Ela sorriu e agradeceu. Acomodaram-se na carroça e seguiram para o vila-

rejo de Lebanon. A jovem examinava Elder com atenção: homem de cerca de

20 Elder Evans, membro da Comunidade dos Shakers de Lebanon.

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35 anos, estatura mediana, cabelos negros e semblante sereno c confiante; fa-lava pausadamente, sem ansiedade. Logo estavam na acolhedora residência do primo, que vivia com a família em uma das comunidades shakers que se havi-am instalado nos Estados Unidos. Era uma casa agradável, longe da vila, situ-ada bem no meio de árvores e junto a uma nascente que se transformava em riacho de águas cristalinas.

Ao descer da carroça, Stephanie sentiu a brisa fresca e o perfume das árvo-res e das flores e sorriu, observando ao longe o rio e pequenos esquilos que corriam de uma árvore a outra, através dos galhos que se tocavam.

- Que lugar lindo! - E realmente muito belo. Apreciamos viver perto da natureza. Ela nos dá

todo o sustento de que necessitamos e aqui nos sentimos mais perto de Deus. Imagino o Pai como um ser de grande beleza, para ter criado lugares tão espe-ciais.

A família os recebeu com cordialidade. Depois do almoço, Elder abordou o tema:

- E então, Stephanie? Eric comentou sobre suas experiências. Desconcerta-da, ela respondeu:

- E, parece que sou meio estranha. Vejo coisas que não existem e pessoas que já morreram.

Elder demonstrou vivaz interesse: - E há quanto tempo isso acontece? - Desde que era pequena... Com quatro anos, segundo minha mãe. Contu-

do, tenho lembrança dessas experiências desde que adquiri noção de mim mesma. No início pensava que eram pessoas vivas, tamanha a realidade delas para mim. À medida que cresci, as visões se espaçaram, mas não acabaram. Continuo sendo atormentada por elas.

- E o que faz quando isso ocorre? - Depende. Quase sempre peço para irem embora, pois meu pai insiste que

são a manifestação de satanás; que me atormentam porque sou uma pessoa cheia de pecados e meu coração é mau.

Stephanie fez uma pausa e, com os olhos rasos de lágrimas, disse: - Acho que é por causa disso que meus pais não gostam de mim... Elder falou com brandura: - Não fique triste, Stephanie. Você tem um dom e não deve se envergonhar

dele. - Que dom? - Há muitos como você em nossa comunidade, com essa mesma possibili-

dade. Na verdade, eu também os vejo.

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- O senhor? -Sim. - E por que isso acontece? Elder sorriu, tomou um pouco de refresco que a esposa colocara sobre a

mesinha da varanda, para onde foram após a refeição, e prosseguiu: - Essa é uma resposta que também estou procurando, e ainda não posso dá-

la com precisão. O que sei é que essas visões são de fato espíritos de pessoas que já morreram e que alguns podem ver, nem todos. Há espíritos que se mani-festam constantemente em nossa comunidade.

- Como sabe que não são demônios? - Entre outras coisas, pelo amor que sentimos por eles. - Amor? São pessoas que conheciam quando vivas? -Não. - Estou confusa. - É natural, você está presa aos ensinamentos que recebeu de seus pais e

de sua comunidade. A despeito de isso ser bom e necessário, precisamos acei-tar que não sabemos tudo, que há muito a ser descoberto, e se mantivermos o coração sinceramente unido a Deus poderemos receber novas e importantes revelações.

Stephanie, embora atenta, ficava cada vez mais confusa. Elder, alma sensí-vel e amorosa, percebendo as emoções contraditórias da jovem, sugeriu:

- Melhor do que falarmos sobre os fatos será você os presenciar. Hoje à noite temos um culto de evangelização que fazemos para esses irmãos. Vocês podem participar e verificar de perto o que acontece. Tenho certeza de que será de enorme benefício para você, Stephanie. Depois, conversaremos e tenta-rei esclarecer suas dúvidas.

O anfitrião fez longa pausa, observou o horizonte e propôs: - Devem estar cansados da viagem. Não gostariam de descansar durante a

tarde? Linda preparou uma cama quente onde poderão se refazer. Além do mais, o frio está ficando mais intenso.

Levantaram-se prontamente e seguiram Elder para o interior da casa. O ca-sal se recolheu, tirando toda a tarde para descansar. No início da noite, senta-ram-se à mesa para o jantar. A refeição era bem leve, apenas com frutas e mi-lho cozido. Elder explicou:

- Nossa refeição noturna, especialmente antes do culto, é sempre muito le-ve. Isso nos facilita o contato com os espíritos.

Depois do jantar seguiram direto para a reunião na igreja dos shakers21 de Lebanon. Ao entrarem, Stephanie sentiu-se muito bem naquele ambiente. Em-bora estivesse apreensiva, um pouco desconfiada, comparando cada detalhe 21 Grupo protestante fundado sobre os ensinos de Ann Lee. Ficou historicamente conhecido por tratar homens e mulheres de maneira igualitária.

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com aquilo a que estava habituada em sua própria comunidade, sentiu-se ines-peradamente confortável naquele lugar. Em quase tudo era semelhante à sua igreja: a disposição dos móveis, o tamanho do salão, os bancos, que inclusive eram mais perfeitamente elaborados. Tudo lhe parecia familiar e ela, aos pou-cos, foi se ficando mais à vontade, deixando-se envolver pela energia tranqüila do recinto.

No plano espiritual, Geórgia, satisfeita, acompanhava a filha. Endereçava-lhe suaves vibrações de amor e harmonia, e dizia aos seus ouvidos espirituais:

- Está segura neste ambiente. Poderá ter contato com o atributo da mediu-nidade, de que é portadora, tal como diversos membros desta comunidade. Tendo sua sensibilidade ampliada, começará a compreender muitas questões; não apenas aprenderá a lidar com o fenômeno da manifestação espiritual, co-mo entrará igualmente em contato consigo mesma. Que Jesus a abençoe e am-pare, minha filha, descerrando-lhe o entendimento de que tanto necessita.

Serena, Stephanie sorria a todos com cordialidade, liberta por inteiro de suas apreensões. O culto começou como de costume, muito semelhante aos que ocorriam na igreja em Pensilvânia. O pastor fez uma oração, foram entoa-dos alguns cânticos, leu-se um trecho da Bíblia, seguido de breve pregação do reverendo sobre o tema, que se encontrava em I Coríntios 13: "ainda que eu falasse a língua dos homens e dos anjos, se não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o címbalo que refine... Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três; mas o maior destes é o amor".

Sem saber por que, naquela noite o capítulo que já ouvira tantas e tantas vezes seu próprio pai pregando tocou mais fundo seu coração. Pensou que o amor era verdadeiramente importante. Avaliou a si mesma e admitiu, com sin-ceridade, que aquela definição de amor estava distante do que sentia. Ela não sabia amar como era ali descrito. Estava mergulhada em sua meditação, quan-do notou que a iluminação do salão diminuiu. Olhou ao redor, e ouviu a expli-cação de Elder:

- Não se assustem. Durante o contato com os espíritos nos sentimos mais confortáveis mantendo as luzes do salão um pouco mais suaves.

O coração de Stephanie disparou. Um medo enorme apossou-se da jovem, que segurou firme a mão do marido. O silêncio no salão se fez absoluto à me-dida que crescia a expectativa dentro dele. Subitamente, uma mulher ao fundo falou com voz grossa e estranha:

- Pedimos permissão para entrar. O pastor respondeu: - Em nome de Jesus, têm autorização para se juntar a nós. Stephanie, inca-

paz de controlar a emoção, viu o salão repleto de peles-vermelhas, todos com vestimenta indígena e alguns com belos cocares. Eram muitos, que entravam e

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formaram um grande círculo ao redor das pessoas que ali estavam. A jovem virou-se para o marido e indagou:

- De onde eles vieram? - Quem? - Eric sussurrou. - Esses índios que acabaram de entrar, são daqui? Pergunte ao Elder, por

favor. O prestimoso senhor a escutara e respondeu: - São espíritos de uma tribo de peles-vermelhas que nos visitam há vários

anos. Stephanie, muda e paralisada na cadeira, mal conseguia piscar. Então, to-

mada de forte sensação que não controlava, ergueu-se e iniciou uma dança tipicamente indígena. Na mesma hora, outras pessoas, homens e mulheres, ergueram-se e também se puseram a dançar. Cantavam uma música e falavam em idioma indígena. Eric fez menção de levantar-se, mas Linda o deteve:

- Não se preocupe, ela está bem. Todos estão bem. Ele voltou a sentar-se e observou que Elder era um dos que dançavam. Não

demorou e todos pararam, falando muito. O pastor tomou a palavra. - Irmãos peles-vermelhas, é com alegria que os recebemos entre nós esta

noite. Ouviram a mensagem sobre o amor? Alguns daqueles que estavam de pé responderam na língua indígena, afir-

mativamente. O pastor prosseguiu: - Desde que chegaram até nós, têm manifestado o ressentimento que sen-

tem por terem sido praticamente expulsos de suas terras pelos homens brancos. Somos todos irmãos e, muito embora alguns de nós tenham agido de modo totalmente contrário ao amor a que nos referimos esta noite, estamos aqui para tentar ajudá-los. Deus, em seu amor infinito, quer sempre o melhor para to-dos...

E continuou falando um pouco mais sobre o amor, diretamente para aquele grupo de espíritos. Eles permaneceram em silêncio. Ao final, dançaram nova-mente e um deles falou através de Elder:

- Agradecemos por nos receberem. Muitos outros virão depois de nós, para falar aos homens que ainda estão na Terra.

Depois se despediram e partiram. Aos poucos, um a um, todos voltaram aos seus bancos. Entoaram novo cântico e encerraram o culto. Stephanie, que retornou ao seu lugar auxiliada por Elder, sentou-se e, fitando o marido, inda-gou:

- O que aconteceu? - Não se lembra? - Foi estranho, como se visse tudo de longe.

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Já a caminho de casa, estando todos na carroça, Stephanie, muda, segurava com força o braço de Eric.

- Sente-se bem, minha filha? - perguntou Elder. - Um pouco confusa. Minha cabeça está pesada. - E natural. Trata-se de uma experiência muito intensa. Ela ficou calada

por alguns instantes, depois indagou: - O que se passou ali dentro? - Recebemos alguns irmãos nossos, espíritos de índios peles-vermelhas,

que, não sabemos como, se manifestam através de alguns de nós. Você, Ste-phanie, tem a capacidade de ver e ouvir os espíritos de homens que já morre-ram. Eles não são seres do mal, são apenas espíritos.

- E o que querem? - A princípio não sabíamos; ficamos perplexos, exatamente como você es-

tá agora. Depois, com a convivência, entendemos que eles vieram a nós para aprender e lhes estamos ensinando sobre Deus e sobre Jesus. Parece que se sentem muito bem quando lhes falamos. Você viu hoje, não foi?

- Sim... - Eles querem ouvir sobre Jesus, às vezes nos fazem perguntas típicas da-

queles que estão aprendendo. São almas carentes do Evangelho, e o recebem com alegria.

Stephanie se mostrava confusa e angustiada: - Como pode ser isso? Aprendi que não podemos nos comunicar com os

mortos... Linda, tocando o braço da jovem, respondeu: - Sei que é difícil; também recebemos ensinamentos nesse sentido. Todavi-

a, não podemos ignorar aquilo que se passa todas as semanas em nossas reuni-ões. Não contamos às outras pessoas sobre o que acontece em nosso meio, pois não aceitariam. A grande maioria hão acredita e não compreende. Seu pai, por exemplo: não adianta contar a ele; mesmo que visse, não acreditaria. Mas não podemos ignorar aquilo que vimos e ouvimos, e sobretudo o que sentimos. Esses espíritos são irmãos nossos, que nos procuram querendo aprender sobre Deus. O que fazer? Ignorá-los? Preferimos repetir o apóstolo Paulo: "não po-demos deixar de falar do que temos visto e ouvido".

Durante todo o percurso e nos dias que se seguiram, Stephanie conversou por longas horas com Elder, buscando esclarecer suas dúvidas. Na semana seguinte, participaram da reunião, vivendo aquela experiência com grande intensidade. Geórgia auxiliava a filha, fazendo baixar sua ansiedade e vibrando sobre ela confiança e serenidade.

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Ao final daquele período, quando se preparavam para partir, de regresso à Pensilvânia, Stephanie abraçou Elder e agradeceu:

- Muito obrigada por tudo o que me proporcionou. Volto para casa com mais esclarecimento sobre minhas experiências e, principalmente, sabendo que não sou uma pessoa amaldiçoada.

Elder retribuiu o cumprimento carinhoso, dizendo: - Lembre-se de que Deus tem seus propósitos em tudo o que nos acontece,

sempre. Confie nele. "Entrega teu caminho ao Senhor, confia nele e o mais ele fará."

Stephanie acomodou-se na carruagem e acenou pela janela, despedindo-se dos amigos. Quando o carro partiu, ela abraçou o marido, que comentou:

- Eu não disse que seria bom virmos? - Você já sabia de tudo o que ocorria aqui? - Quando esteve em minha casa, Elder contou que estavam recebendo visi-

tas de espíritos, sem descrever todos os pormenores. Acho que ele tinha receio da reação de meus pais. Foi a mim que falou mais detalhadamente, e ainda assim é preciso presenciar para compreender.

- E como tinha tanta certeza de que seria bom para mim? - Não sei, algo me dizia que deveríamos vir. Stephanie sorriu, encostando a

cabeça no ombro de Eric: - Devem ter sido os espíritos que lhe falaram ao coração -sugeriu. Virando-se para ela, ele disse: - Será? Não tinha pensado nisso. Depois de longa jornada, os dois finalmente chegaram à pequena cabana de

madeira, que fora toda reconstruída pelos mãos do próprio Eric, com a ajuda do pai. Não ficava muito longe da casa onde Stephanie morara com a família. Quando ela pisou no singelo alpendre, sentiu forte vertigem e quase desmaiou, sendo apoiada pelos braços fortes do esposo. Ele a acomodou em uma cadeira de balanço que colocara bem na frente da casa, voltada para a linda paisagem. Depois de alguns instantes, a moça respirou fundo e disse ao marido:

- Já me sinto melhor. Deve ser cansaço da viagem. Virou a cabeça e avistou a casa dos pais. Ao notar uma das irmãs correndo

para dentro da casa e a mãe à porta, a chamá-la, sentiu forte aperto no peito e teve vontade de chorar. Uma angústia indefinível a dominou e, sentindo medo, pediu:

- Por favor, querido, me abrace. Eric aconchegou-a ternamente, acariciando seus belos e macios cabelos.

Preocupado, perguntou: - O que foi, querida, não se sente bem?

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- Não sei o que sinto... Apenas me abrace forte. Deixando-se envolver pelo amoroso abraço, Stephanie conseguiu afastar os temores da mente, e o casal entrou, enfim, no novo lar.

QUARENTA E UM ALGUNS QUILÔMETROS ao sul dos Estados Unidos, sentada na varanda, a

nobre e elegante senhora via os netos brincarem. Ora ajudava um, ora outro; separava os dois quando se punham a brigar. De quando em quando, observa-va no horizonte o sol se pôr, derramando seu brilho intenso pela enorme plan-tação, que se fazia dourada. A propriedade espalhava-se por vasta área e ia muito além de onde os olhos alcançavam da varanda da espaçosa residência. Deborah captava cada som do entardecer, e deteve-se sorrindo ao escutar o canto lamentoso dos negros. Matthew se aproximou, resmungando.

- Os negros me incomodam com esses cânticos. - E um canto tão triste quanto belo, quase um lamento... Não se enternece

ao escutá-los? Não sei o que dizem, mas sinto como se expressassem profun-das emoções... De saudade, acima de tudo.

A nobre senhora, que aparentava perto de sessenta anos, parou por instan-tes a refletir no que acabara de dizer e então prosseguiu:

- Por certo devem sentir falta de seu lar, na África, e dos parentes e amigos dos quais foram violentamente arrancados.

Matthew encarou a esposa - a quem amava e, por isso, era incapaz de con-trariar - e ponderou:

- Não se engane, minha querida, eles não se sentem da mesma forma que nós. Não pode compará-los conosco.

Fitando o esposo com seus olhos azuis de intenso brilho, a mulher repli-cou:

- E por que não? São pessoas idênticas a nós. - Não são idênticas a nós! São negros! Erguendo-se devagar, ela tomou o chapéu que depositara sobre uma pe-

quena mesa, repleta de vasos de flores, e sustentando com tristeza o olhar do marido, falou:

- Quem não deve enganar-se é você, Matthew. Eles são pessoas idênticas a nós e haveremos de dar contas ao Criador pelo mal que lhes causamos. Você sabe bem que por mim jamais teríamos um escravo sequer. E olhe que nosso governo dá sinais claros de que também não aprova a escravidão. Proibiu a importação de escravos, e peço a Deus que muito em breve ele acabe de vez com essa situação, abolindo a escravidão e libertando todos os escravos!

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- Não sabe o que está dizendo. Toda a prosperidade de nossa cidade, de nosso estado e até de nosso país depende em grande parte do trabalho desses homens, que foram criados por Deus para nos servir!

- Você está iludido, meu esposo. Nosso país prospera nos estados do norte, quase sem escravos.

- Eles ainda têm muitas fazendas com escravos. - Sabe que o norte praticamente acabou com eles. São livres e contratados. - Porque interessa às empresas ter gente livre e assalariada para comprar os

produtos que produzem em larga escala. De fato, a indústria não para de cres-cer por lá.

Tocando com ternura e suavidade o braço do esposo, ela sugeriu: - Embora eu ame nossa terra natal, a terra de nossos pais, fico pensando se

não seria melhor irmos embora daqui. Vender tudo e ir para o norte, onde você poderia investir nossos recursos na indústria e fazê-los crescer ainda mais, sem a necessidade de nenhum escravo.

O marido fitou-a incrédulo. - Já não é feliz aqui? Ela o abraçou. - Sou feliz ao seu lado e de nossos filhos e netos... Não obstante, você sabe

o quanto sofro ao ver esses homens e mulheres, que julgo serem exatamente como nós, aprisionados e tratados de forma tão cruel, tão desumana...

- Em consideração a você, são muito bem tratados. Nunca machuco ne-nhum deles, são alimentados com dignidade e moram em casas bem confortá-veis, ao invés de viverem amontoados como em outras fazendas.

Deborah baixou os olhos marejados e balbuciou: - Não é suficiente para mim. Desejo que todos sejam livres, tendo seus di-

reitos respeitados. - Direitos?! Que direitos? São escravos... Você está exagerando, passando

de todos os limites... - É exatamente a isso que me refiro: são escravos, seres humanos escravi-

zados pela ganância daqueles que querem enriquecer a qualquer custo, e ainda justificam os seus atos escondendo-se atrás da Bíblia e do próprio Deus!

- Não é verdade! Somos abençoados por Deus, que nos dá tudo o que te-mos. Se temos muito, é porque fomos muito abençoados, apenas isso. Busca-mos fazer a vontade divina em tudo, e o Todo-Poderoso nos abençoa, fazendo-nos prosperar.

- Somos todos irmãos, Matthew, todos irmãos, filhos do mesmo Pai, e te-mos de nos amar e respeitar mutuamente...

O marido interrompeu-a, visivelmente irritado.

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- Chega, estou cansado. Não sei de onde você tira essas idéias... Continua lendo jornais que chegam lá do norte, só pode ser isso. Vêm de lá esses concei-tos libertários, abolicionistas... Não imagino que ouça tais opiniões do pastor de nossa igreja, nem nas reuniões de mulheres que freqüenta...

Deborah ficou pensativa. Matthew ia prosseguir, quando uma jovem em-pregada aproximou-se e informou:

- Senhora, o jantar está pronto. Podemos servi-lo? Deborah olhou para o marido, que, ignorando a jovem, respondeu:

- Sim, já vamos entrar. Depois, fitou a esposa. - Não concordo que tenha dado a liberdade a ela. Isso é um péssimo e-

xemplo e um precedente perigoso. - Ela é como a filha que não tive, jamais poderia deixá-la continuar escra-

va. Além do mais, prometi à sua mãe, quando morreu em meus braços, que tomaria conta da menina. Sarah é uma excelente moça, você não pode queixar-se dela.

- Não é dela que me queixo, minha esposa, e sim da senhora, que não se dobra à minha vontade. Agora vamos jantar, que essa conversa já me cansou.

Após sentarem-se à mesa, longo silêncio se seguiu. Foi Deborah quem, por fim, o rompeu:

- Quando Sean chegará de Nova York? - Não sei. Seu filho está cada vez mais ausente da fazenda. Faz essas via-

gens com freqüência, e quando retorna fica pouco e já parte novamente. A única vantagem é que tem negociado bons escravos para nós.

- Como consegue? - São fazendeiros do norte que, ao contrário do que a senhora me disse há

pouco, não libertam seus escravos e sim os vendem para o sul. Acontece todos os dias.

- Não é verdade... - E verdade, sim. Eles os vendem para o sul sabendo que continuarão sen-

do escravos. Aqueles ianques não querem perder nada... - Isso deve ocorrer muito ocasionalmente... - Sean me disse que está ganhando um bom dinheiro com a venda de es-

cravos para as fazendas do sul. A quantidade não deve ser assim tão pequena. Indignada, Deborah protestou: - Ele não deveria estar aqui, ao seu lado, ajudando-o com os nossos negó-

cios, ao invés de se meter a comercializar homens e mulheres? - Você conhece Sean melhor do que eu e sabe que ele tem um tempera-

mento inquieto e insatisfeito. Nunca está contente: quer sempre mais. Já tive-mos diversas discussões a respeito, mas nossa fortuna é pequena demais para

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ele. Eu mesmo não o compreendo. O que temos é suficiente para garantir o futuro de nossos filhos e dos filhos deles... Mas não para Sean. Ele quer mais, muito mais. Inclusive me disse que será candidato nas próximas eleições. Quer enveredar pela política.

- Sabe que não concordo, não é? - Tampouco eu, porém Sean é um homem de mais de trinta anos e não pos-

so ditar-lhe o que fazer... - Deveria ter se casado com Vivian e formado uma família. Teria sido me-

lhor para ele. Juntando-se aos pais na conversa, Andrew disse: - Hum... Ele não quer nem ouvir falar nisso. Outro dia afirmou que só se

casará se encontrar uma jovem com quem possa juntar fortuna, ou mesmo al-guém de família de políticos que possa contribuir para seus planos.

Abraçando o filho que acabara de chegar, Deborah comentou: - Não acredito que seu irmão se mostre assim tão calculista! Sinceramente

não o reconheço! Jamais lhes dei tal educação e não me conformo que ele este-ja se tornando essa pessoa cada vez mais mesquinha...

- É, mãe, vai ter de se contentar comigo... Abrindo um largo e doce sorriso, a mãe respondeu:

- Não brinque com coisa tão séria. Amo você e seu irmão e desejo a felici-dade para os dois, ainda que não creia no caminho que Sean escolheu para alcançá-la.

O pai, que se mantivera calado, convidou: - Vamos comer, o jantar já vai esfriar e detesto comida requentada... Andrew sentou-se ao lado da esposa e dos filhos. Jane estava grávida de

oito meses e logo daria à luz mais dois bebês. Distante dali, em um bar em Nova York próximo ao porto, Sean negociava

mais uma remessa de escravos. - Quero que me tragam mais escravos. Tenho compradores para tantos

quantos conseguirem. - Vamos trazer o que for possível. Temos sido fiscalizados antes de entrar

no país e já tivemos de lançar muitos deles ao mar, para evitar que fôssemos pegos.

- Malditos ianques. - Olhe como fala! - Desculpe, é força do hábito. É que esses nortistas estão prejudicando

meus negócios e de minha família. Não queremos a libertação dos escravos, e sim liberdade para comercializá-los à vontade.

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- Aproveite enquanto pode, Sean, pois a abolição virá. Todos com quem temos conversado aqui no norte estão fazendo de tudo para torná-la realidade. Se for preciso, pegarão em armas contra os sulistas, pode ter certeza. Até o próprio presidente é um abolicionista.

- Eu sei disso. - Pois então, não vejo escravos no futuro de nosso país. Buscando desviar o

rumo da conversa para algo mais produtivo, Sean informou. - Vou iniciar minha carreira política. Já está mais do que na hora. - E seu pai, vai apoiá-lo? - Não preciso do apoio de meu pai. O contrabando me deu dinheiro sufici-

ente para fazer o que bem entender da minha vida e asseguro: não descansarei enquanto não acabar com essa história de abolição.

- Não seja estúpido, Sean, essa é uma causa perdida. O progresso virá de um jeito ou de outro, e os negros serão libertados. Na maioria dos estados do norte já não há escravos nas fazendas...

- E você aceita isso? Esção espalhados por aí, andando perdidos pelas ci-dades, muitos a mendigar o pão. Estavam melhor como escravos. Vocês, aqui no norte, não têm noção do problema em que estão se metendo. E só porque têm o apoio daquele idiota do presidente, acham que podem mandar no país. Isso não é verdade. Estão plantando muita desgraça. Pois saibam que, no sul, ninguém cederá; lutaremos pelos nossos direitos!

A conversa se estendeu noite afora, e já era madrugada alta quando Sean, cambaleando e completamente alcoolizado, saiu do salão e foi para o hotel que ocupava sempre que ia a Nova York a negócios.

QUARENTA E DOIS QUASE DOIS MESES se passaram. Logo que os recém-casados voltaram para

casa, Eric assumiu suas tarefas, auxiliando o sogro no trabalho com a terra, conforme se comprometera, enquanto Stephanie buscava realizar com esmero e dedicação todo o trabalho doméstico. Pegou com a mãe as melhores receitas que conhecia e também com a sogra as que Eric mais apreciava. Esmerava-se em aprender todas e preparava jantares especiais para o marido, que amava muito; desejava ardentemente construir uma vida de felicidade em seu lar. A-pesar disso, o pai continuava a tratá-la com indiferença e a mãe não lhe dava a devida atenção, ocupada com as próprias tarefas e com as outras filhas. Ste-phanie sentia-se cada vez mais distante daquela família, e muitas vezes per-

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guntava-se, em silêncio, por que Deus a fizera nascer naquela casa, onde não era querida... Mesmo lendo a Bíblia diariamente, em companhia do marido, trazia no coração muitas dúvidas que a leitura das escrituras não conseguia esclarecer.

Ela e Eric sonhavam com um lar pleno de alegria. Em tudo procuravam obedecer às orientações que haviam aprendido desde pequeninos, e faziam suas orações pela manhã e à noite. Stephanie não entendia boa parte do que lia e, secretamente, discordava de outras tantas questões; mas jamais, em hipótese alguma, verbalizava seus mais secretos pensamentos. Não compreendia Deus e não conseguia aproximar-se dele, que lhe parecia extremamente distante e se-vero. Em conformidade com tudo o que aprendera, ela o temia profundamente. Tinha medo do inferno e da condenação eterna, e, por outro lado, não sentia alegria em servir ao Criador; não confiava nele. Eric, ao contrário, parecia en-tregar-se de coração a tudo o que aprendia, tendo sempre disposição para so-correr qualquer um que dele precisasse. Stephanie o admirava por isso, porém não desejava ser como ele.

Em uma manhã de sábado, estavam no vilarejo próximo fazendo algumas compras. Toda a família havia ido: David, Lóris, as irmãs menores, Stephanie e Eric. A jovem esposa estava no armazém comprando os suprimentos para o mês, quando viu um lindo e caro corte de seda jogado sobre um dos balcões. Foi até lá e o tocou. Sentindo a suavidade, levou-o ao rosto e apreciou a beleza do tecido. Olhou para o próprio vestido, bem ao gosto dos quakers da época: simples, austero e sem nenhum tipo de adereço. E desejou ver-se linda dentro de um vestido feito com aquela fazenda. Virou-se para o dono do armazém:

- Quanto custa este tecido, senhor? O homem ia responder, mas David, que havia entrado segundos antes sem

ser percebido pela jovem, interveio rispidamente. - Por que pergunta, Stephanie? Não está cansada de saber que uma jovem

temente a Deus deve se vestir castamente, e não como uma mulher do mundo? Sua cobiça me preocupa...

Stephanie sentiu o sangue sumir-lhe do rosto e, tomada de vergonha, dei-xou a loja em lágrimas. Eric, que do lado de fora a esperava, viu-a chorando e a abraçou.

- O que foi, querida? O que houve? Não se sente bem outra vez? Estou fi-cando preocupado... Você passa mal a toda hora...

David, que vinha logo atrás, passou por eles dizendo: - Tome conta de sua esposa, Eric, pois ela deseja o que não deve possuir...

Mantenha-a sob seus olhos, ou ela lhe fugirá ao controle e a ira do Todo-Poderoso atingirá vocês dois.

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Stephanie ia responder ao pai, quando Eric percebeu sua irritação e a dete-ve, tomando a dianteira:

- Não se preocupe, reverendo, vou conversar com minha esposa. Ela não tem se sentido muito bem.

Com desdém incomum, o pai respondeu: - Isso é normal nela. Cada hora é um problema diferente. E não venha re-

clamar comigo. Eu o avisei: ela é uma jovem problemática. Eric não esperou que o reverendo terminasse. Tomou Stephanie pelo braço

e a conduziu até a carroça. Ela dizia, rangendo os dentes, entre lágrimas: - Eu não fiz nada... Só apreciei um tecido de seda. Isso é pecado? Firme,

Eric a advertiu: - Por favor, controle-se, Stephanie. Não vamos nos indispor com sua famí-

lia, isso dificultaria tudo para nós. Tenha paciência. - E o que tenho tido toda a minha vida, mas ele me odeia... - Não é verdade. - Você não percebe? Ele tem ódio de mim... - O reverendo é um homem de Deus, extremamente zeloso de suas respon-

sabilidades como ministro... Só isso. Ela insistia, entre lágrimas: - Ele não me ama... Eric a acomodou na carroça e seguiram para casa. A jovem não disse uma

só palavra no caminho de volta. Quando se aproximavam do destino, Lóris perguntou:

- Não se sente bem, Stephanie? Não falou nada durante o caminho. Sem deixar que a filha respondesse, David contou o acontecido, e a mãe

igualmente a aconselhou: - Não deve aborrecer-se com seu pai, ele sempre quer seu bem. As mulhe-

res devem ser castas e puras, simples e honestas, sem atrair qualquer atenção sobre si mesmas, servindo a Deus e aos seus maridos com devoção.

Temendo que a esposa se irritasse novamente, Eric respondeu: - Stephanie não se aborreceu com o pai, tenho certeza. O que acontece é

que ela não tem estado bem ultimamente. Ando preocupado com ela. Virando-se para trás para olhar a filha, Lóris indagou: - E o que está sentindo? Outra vez foi Eric quem respondeu: - Stephanie sente tonturas e náuseas constantes. Ás vezes, precisa deitar-se,

pois sente que vai desmaiar. Lóris abriu largo sorriso e observou: - Tenho notado você diferente... Deus seja louvado!

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David olhou para a esposa com ar interrogativo, da mesma forma que os outros. Ela exultou:

- Não estão percebendo? Stephanie vai ter um bebê! Ajeitando-se melhor no assento, a jovem ficou mais pálida do que já estava e balbuciou:

- Não é possível! - Claro que é! Deus abençoa seu lar e sua união dando-lhe um filho! Isso é

maravilhoso! Sem saber o que dizer, Stephanie fitou o marido. Este comentou entusias-

mado: - Será que é isso, dona Lóris? Seria maravilhoso! - Observando melhor, e depois do que acabaram de me contar, não tenho

dúvida. Stephanie está esperando bebê. Ela ficou muda e Eric a abraçou mais forte, sem conter a alegria. - Se isso for verdade, serei o homem mais feliz do mundo! A jovem tremia dos pés à cabeça e sentia um medo incontro-lável, que foi

dominando todo o seu ser; vieram vozes de sua mente, ; que lhe diziam: - Agora é que as coisas vão ficar boas de fato! Você vai começar a saber o

que é sofrer... Aterrorizada, ela passou a desferir golpes com as mãos, como se socasse o

vento: - Parem, parem com isso, vão embora, por favor... Assustado com aquele

comportamento da esposa, Eric indagou: - O que foi? O que está acontecendo, querida? Stephanie não respondia, sequer escutava o marido. Tomada de assombro e

pavor, continuava agredindo o ar, como se espantasse moscas ao redor. E gri-tava:

- Chega, parem! Vão embora! Ciente da capacidade que tinha a esposa de ouvir e ver aqueles que já havi-

am cruzado os portões da morte, Eric a abraçou e orou em silêncio, suplicando que Jesus os amparasse naquela hora; aos poucos a moça se acalmou e silen-ciou. Quando a carroça parou em frente à pequena cabana, David, com as ré-deas nas mãos, advertiu o genro, que a segurava ainda trêmula:

- Cuide bem de sua esposa, rapaz; ela é muito doente e fraca de espírito. O demônio a domina com grande facilidade.

No intuito de justificar o comportamento da esposa, Eric respondeu sereno: - Ela ficará bem, não se preocupe. Está emocionada demais e se descontro-

lou, mas ficará bem. Depois, ajudou-a a entrar em casa e acomodou-a na cama. Stephanie man-

tinha os olhos arregalados e, tremendo, dizia assustada:

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- Eles estão aqui, outra vez. Posso ouvi-los. Eric sentou-se ao seu lado e indagou:

- E o que desejam? - Querem me destruir... - Por quê? - Não sei... Algo sobre nosso filho... - Nosso bebê, você quer dizer... Acha que está mesmo grávida? - Eu não queria, não agora... mas eles dizem que teremos um filho... - Um menino? Com os olhos marejados, ela acenou afirmativamente. O marido a abraçou. - Por que tanta tristeza? Será maravilhoso! Eu a amo tanto, minha querida,

que poderia dar a minha vida em troca da sua... Tocando com ternura o ventre da esposa, disse com reverência: - E já amo esse filho que você começa a gerar... Stephanie abraçou-o forte e ele percebeu que todo o seu corpo tremia. - O que foi? Por que tanto medo? - Não sei, Eric, só sei que estou muito assustada...

QUARENTA E TRÊS LOGO A GRAVIDEZ foi confirmada: Eric e Stephanie teriam um filho. Os

meses que se seguiram foram de profunda angústia para a jovem. Sofria des-maios constantes, tinha enjôos e mal podia alimentar-se. Cada vez que perce-bia a barriga maior, chorava convulsivamente por horas. Seu abatimento era evidente. Com olhos fundos e grandes olheiras, pálida e magra, no sexto mês de gestação mal se notava a barriga, que ela, por sua vez, fazia questão de es-conder em largos vestidos.

Naquela manhã ensolarada, estava particularmente indisposta Sentou-se na ponta do corredor do templo, bem no fundo, para ter facilitado o acesso à saí-da. Suspirava sem parar; quanto mais o pai falava do púlpito, mais ela se mo-vimentava na cadeira, impaciente. Ouvia gargalhadas ao seu redor e vozes que diziam:

- Você vai morrer... Por que não tira essa criança de uma vez?... Não per-cebe que vai morrer, se não a tirar?

- Tem de acabar com ela, antes que ela acabe com você... Não suportando o mal-estar, Stephanie desmaiou. Eric se preparava para

levá-la para fora, quando David pediu do púlpito:

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- Não, meu filho, deixe-me conversar com ele. Eric acomodou novamente a esposa desfalecida e calou-se. Da-vid chegou

bem perto e, com a Bíblia em uma das mãos, ordenou: - Deixe minha filha em paz! Vá embora! Nós não o queremos aqui! Em estado de sonambulismo, envolvida por entidades espirituais que traba-

lhavam para Núbio, ela agarrou o pescoço do pai e disse: - Não se meta nisso! Ela não terá este filho! Envolvido por Geórgia e outros amigos espirituais, Eric ergueu-se e, orando

em pensamento, afastou a esposa do pai e tomou-a nos braços. Saiu dizendo: - E melhor irmos agora... David permaneceu de pé, com a Bíblia nas mãos, paralisado sob o forte

impacto da energia emanada daquelas entidades. No caminho de volta, en-quanto Stephanie continuava desacordada, Geórgia falava aos ouvidos espiri-tuais de Eric:

- Não a deixe sozinha agora. Ela precisa de você. Leve sua mãe para cuidar dela dia e noite. Stephanie não pode ficar sozinha, sob risco de cometer contra si e contra essa criança um ato do qual se arrependerá profundamente. Dê a ela seu apoio.

Captando as palavras da Geórgia, ele foi direto para a casa dos pais. Quan-do estes chegaram, depois do culto, Emma indagou:

- Como ela está, meu filho? Ficamos muito preocupados... - Está deitada; desperta, mas muito nervosa, preocupada com o que possa

ter feito na frente de todos. - Foi horrível. - Eu sei. -Todos ficaram tão assustados... Até mesmo o reverendo... Meu Deus... - Mãe, preciso de sua ajuda. - O que posso fazer? - Quero ficar aqui com Stephanie, até que o bebê nasça. Ela não pode ficar

sozinha. Emma hesitou, e Eric insistiu: - Por favor, mãe. - E quanto a Lóris? - Stephanie precisa de cuidados constantes, Lóris tem as meninas peque-

nas... - E eu tenho seu irmão. - Ela precisa de ajuda, mãe. - Mas tem uma família. Fixando os olhos da mãe, Eric suplicou:

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- Por favor, mãe, precisamos de você... Emma sorriu e, comovida, abraçou o filho:

- Claro, vou cuidar dela. Afinal, é meu neto ou minha neta... Para Stephanie, os dias que se seguiram foram longos e torturantes; as noi-

tes, cheias de pesadelos e perturbação. Ao se aproximar o final dos nove me-ses, estava exausta e mal conseguia erguer-se da cama.

Certa noite, perto de três horas da madrugada, a jovem começou a gemer de dor. A sogra constatou: a hora havia chegado. Orientou o filho:

- Vá buscar Lóris e diga que o bebê vai nascer. - Precisamos de mais alguém? - Sim, vá buscar Míriam também. Foi ela quem me ajudou a trazer você e

seu irmão ao mundo. Ela poderá ajudar. Eric retornou algum tempo depois com Lóris e Míriam. A madrugada foi

longa, entrecortada de gritos e gemidos. O sol raiava com todo o esplendor quando um choro abafado de criança soou no quarto. Ansioso, Eric levantou-se e foi até a porta do aposento. A criança chorava baixinho, e ninguém abria. Ele não suportou e bateu. Não teve resposta. Bateu de novo e perguntou:

- Como estão? Após longo silêncio, Míriam abriu a porta devagar, apoiando Lóris, que

chorava copiosamente. Eric empalideceu: - O que foi? Algum problema com Stephanie? Ela não agüentou? - Sua esposa vai ficar bem. Está exausta, mas ficará bem. Ela está dormin-

do e deverá repousar até que tenha condições de... - E o que foi, então? Emma apareceu à porta; igualmente com lágrimas a lhe escorrerem pela

face alva, chamou: - Entre, meu filho, venha. - O que foi, mãe? - Seu filho... - O que foi mãe? Ele morreu? -Não. - Graças e Deus. Levando Eric até a criança sem que Stephanie os ouvisse, ela abriu, os pa-

nos que envolviam a criança no berço e disse, tentando controlar a emoção que a dominava:

- Seu filho não é perfeito. Eric fitou a criança sem braços e sem pernas, no berço. Com o imenso a-

mor que naquele momento lhe nascia do coração, tomou-o nos braços terna-mente e, levando-o de encontro ao peito, disse num sussurro, entre lágrimas:

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- Não se preocupe, meu filho, vou cuidar de você. Não importa J como vo-cê seja, eu o amo de todo o coração, meu pequeno Daniel.

Geórgia e outras entidades espirituais, que acompanhavam o processo de reencarnação daquele que fora Constantino, vibravam intensas energias sobre Eric, procurando fortalecê-lo naquela hora de prova. Depois de o pai passar longo tempo com a criança nos braços, Míriam aproximou-se e o aconselhou:

- Preparei um chá bem forte para Stephanie. Quando ela acordar, terá de saber da situação, pois logo precisará amamentar o bebê. Devo ir agora. Seu pai vai me levar, Eric, não se preocupe.

Lóris, por sua vez, sentia-se desfalecer. O que diria a David? Já não aceita-va a filha e agora o neto... Não sabia o que fazer. Ao ver Míriam saindo, levan-tou-se.

- Vou também. David precisa de notícias, deve estar inquieto. Emma lim-pou as lágrimas e disse, inconformada:

- Stephanie precisa de você, Lóris. A outra estacou na porta por alguns instantes, e então se virou para Emma: - Eu não posso - falou . Sem olhar para trás, saiu com o sogro da filha e Míriam. Eric olhou a mãe

e foi buscar o chá para colocá-lo ao lado de Stephanie. Algum tempo depois ela despertou e chamou pelo marido, que lhe tomou as mãos entre as suas:

- Estou aqui, meu amor. Afagando-lhe os cabelos, dizia: - Vai ficar tudo bem, querida, tudo bem. Tome este chá; é para ajudá-la na

recuperação. Ela bebeu, depois se recostou na cama e perguntou: -E o bebê? - Está dormindo. Mais tarde vai acordar com fome. É bom que descanse

também, para poder alimentá-lo. Ela balançou afirmativamente a cabeça e recostou-se no travesseiro. A-

dormeceu logo, sob o torpor do chá e também dos passes magnéticos que re-cebia da equipe espiritual que a auxiliava. Geórgia ajudou seu corpo espiritual a desprender-se do corpo físico e sentando-se ao seu lado na cama, envolveu-a em doces vibrações de amor.

- Quem é você? - indagou Stephanie. - Eu a conheço... De onde? O que es-tá...

- Escute-me, querida, com atenção. Sou alguém que a ama muito, infini-tamente.

Envolvida pelas doces vibrações de amor, a jovem respondeu: - Posso sentir... Geórgia... - Sim, querida, aqui estou eu, como em todos os dias, desde o seu nasci-

mento.

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Abraçando-se àquela que fora sua mãe em encarnação pregressa, ela bal-buciou:

- Como sinto sua falta... - Eu sei, mas estamos sempre juntas... Agora, filha, precisa ser muito forte.

É chegado o momento de receber Constantino em sua vida outra vez. Lembra-se?

Stephanie estremeceu e arregalou os olhos azuis. Geórgia interveio: - Não tenha medo dele. - Ele vai me matar outra vez... - Não poderá. Vai precisar muito de você, de seu amor. - Ele vai acabar comigo de novo... - Não poderá. Venha até aqui. Levando a jovem até o bebê, mostrou-lhe as imperfeições físicas do recém-

nascido e disse: - Não poderá fazer mal algum. Além das limitações físicas, sua mente está

comprometida pelo mal que causou à humanidade. Ele resgata débitos contraí-dos há muitas encarnações, e seu perispírito ainda traz profundas marcas das faltas contra a lei divina.

Ao ver a condição deplorável daquele ser, Stephanie soltou um grito de horror. Geórgia a amparou e pediu:

- Aceite com fé o desafio que tem à sua frente. E importante para ambos a interdependência que terão. Seu perdão e seu amor ajudarão Constantino a reequilibrar-se. E você, filha, terá a oportunidade de aprender a amar e a dedi-car-se a outra criatura com devoção, a servir o semelhante em nome de Deus. Não pode imaginar o quanto isso poderá contribuir para seu progresso espiri-tual, se - e somente se - o fizer sem revolta.

Assustada, ela respondeu: - Vou tentar... Não sei se conseguirei... - Estaremos aqui para apoiá-la... Daniel gritou de fome e Stephanie despertou; de imediato sentou-se na ca-

ma, assustada. Eric, ao seu lado, indagou: - Como se sente, Stephanie? Confusa com o que supunha ser um sonho, mas guardando vivaz sensação

do que acabara de viver, disse: - O bebê está chorando, precisa mamar. Enquanto Emma os contemplava em silêncio, Eric ergueu-se e trouxe a cri-

ança até a cama. Antes de colocá-lo nos braços da esposa, balbuciou: - Precisa saber de uma coisa, querida... Ele...

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Erguendo os olhos rasos de lágrimas que lhe escorriam pela face, Stepha-nie emendou:

- Ele é doente e imperfeito, não é? O marido assentiu com a cabeça. - Traga-o aqui - disse ela. Com cuidado Eric colocou o bebê nos braços da mãe. Ela abriu o cobertor

que o envolvia e, constatando seus defeitos físicos, apertou-o de encontro ao peito. E chorando convulsivamente, implorou:

- Meu Deus... Meu Deus... Ajude-me... Eric abraçou-se a ela e chorou também. Emma saiu do quarto, deixando os

três a sós. Era o momento difícil e ao mesmo tempo sublime do necessário reencontro

de almas no palco terrestre.

QUARENTA E QUATRO DEBORAH AGUARDAVA a família na porta da mansão. Vestida com ele-

gância e simplicidade, segurando o chapéu nas mãos, pediu: - Michael, por favor, chame Sean novamente, ou nos atrasaremos para o

culto. Já faz bastante tempo que não o assistimos todos juntos, e não vou dei-xá-lo para trás.

Descendo as escadas com um sorriso maroto nos lábios, Sean falou: - Não se preocupe, já estou aqui, mãe. Pode ir na frente, vou logo depois. - De modo algum. Quero você sentado ao meu lado na igreja. Por favor,

meu filho, venha. Sem poder resistir ao doce convite da mãe, Sean estendeu o braço para que

a mãe o segurasse: - Está bem, vamos. Sentada em uma das primeiras fileiras, Deborah cantava um de seus hinos

prediletos. Ao louvar os encantos do céu, sentia-se transportada para lugares de extrema beleza, como se pudesse vê-los e senti-los com perfeição. Sua ale-gria se fazia ainda maior por ter a família completa ao seu lado. A devoção a Deus e o amor ao próximo eram características marcantes de sua personalida-de. Atuava incansavelmente junto às mulheres da igreja, em trabalho incessan-te voltado para os menos favorecidos. Não podia saber de uma família carente que em seguida já a estava visitando com alimentos, remédios e roupas. Sua dedicação ao próximo não tinha limites e se estendia a qualquer um que neces-sitasse, inclusive os negros. Isso a tornava alvo de críticas das outras mulheres e até do reverendo de sua igreja, que uma vez a aconselhara:

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- Deveria ser mais cautelosa, irmã Deborah. Uma mulher em sua posição precisa preservar-se.

- O que quer que eu faça, reverendo? - retrucara a sorrir. - Que deixe de a-judar?

- Não, apenas que saiba ajudar. Faça-o através do grupo de nossa igreja, e não por sua própria iniciativa.

- Mas eu estou sempre apoiando as atividades das senhoras... - Eu sei. - Pois então... - Atenha-se a essas atividades. - Não posso deixar de atender aqueles que necessitam. - A senhora se excede... - Não me lembro de Jesus ter dito que devemos escolher a quem ajudar. Num fundo suspiro, ele dissera: - Temo que ainda venha a ter problemas com essa sua impulsi-vidade... - Estou fazendo algo de errado? Sem olhá-la nos olhos, o religioso respondera: - Não diga que não foi avisada... Deborah só não era hostilizada com agressividade pelas demais mulheres

da comunidade porque era muito rica, o que não a livrava de embaraços e des-confortos decorrentes de sua conduta.

Ao terminarem de cantar, sentaram-se. Deborah acomodou-se no banco e olhou o filho com extremado carinho. Amava seus filhos, mas tinha atenção especial para com Sean, aquele filho que lhe parecia sempre tão difícil e rebel-de. Desde pequeno fora difícil e de personalidade arredia. Ela o educara com amor e firmeza, apontando constantemente a direção do bem. Todavia, já em tenra idade Sean demonstrava sua tendência agressiva e seu caráter orgulhoso. Mesmo assim, nada alterava o comportamento de Deborah, que lhe dava amor incondicional e dedicação incomparável.

Ao longo dos anos aquele amor desprendido de alguma forma alcançou o coração do filho, que passou a respeitar a mãe, o que não fazia quando ainda menino.

Ao colocar o livrinho com os cânticos no banco Sean observou a mãe de canto de olho, percebendo sua satisfação. Ele olhava para o pastor, que fazia o sermão daquela manhã, mas sua mente estava muito distante. Pensava em sua candidatura e mentalmente tecia estratégias para atingir seus objetivos.

Amigos espirituais presentes àquele culto dominical inspiravam as pala-vras nos lábios do reverendo, com a intenção de tocar o coração de Sean. To-davia, como em tantas outras ocasiões, o esforço se fazia vão, pois ele sequer

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escutava o que era dito. Deborah, em pensamento, rogava o auxilio de Deus para seu filho, sabedora de que seu coração estava afastado das verdades divi-nas. Embora fosse assíduo membro da igreja, dando fielmente seu dízimo e outras ofertas, ela sabia que Sean não se dobrava de fato ao Criador. Olhando para o filho ela percebeu quão distante ele estava e, baixando a cabeça, pediu ainda mais ajuda à Deus para aquele amado ser. Enquanto orava, intenso halo a contornava, irradiando luminosidade. Ainda que aquela luz não pudesse ser vista com os olhos, todos dela se beneficiavam.

Após o almoço, Deborah, Sean e Michael estavam sentados na biblioteca, apreciando um chá gelado. Ao terminar, Deborah comentou:

- Estou preocupada com você, meu filho. - Que novidade, não? - Não brinque com meu coração. - Você está sempre preocupada comigo, mãe, e eu já tenho quase quarenta

anos! Deveria saber que não há razão para isso. O pai interveio: - Você conhece sua mãe, Sean. - Se conheço... Sem dar atenção aos comentários, ela prosseguiu: - Pois sua idade também me traz preocupações. Já deveria ter constituído

um lar e uma família. Ajeitando-se na poltrona confortável, Sean depositou a xícara vazia na me-

sinha próxima e disse: - Não pretendo casar-me agora; tenho outros planos. Os pais o fitavam em

silêncio. Ele prosseguiu: - Vou entrar para a carreira política. Deborah ergueu-se, alterada: - Nem pensar, Sean... Não faça isso. Michael encarou-o e considerou: - Sabe que é muito dispendioso. Embora nossa fortuna seja vultosa, não

pretendo desperdiçá-la em algo tão conturbada como uma carreira política. Foi para isso que se preparou na universidade, estudando Direito?

Com a tranqüilidade de quem tem o controle, Sean respondeu: - Exatamente, foi com essa intenção que estudei Direito. Deborah suspirou,

irrequieta. - Não acredito. - Pois acredite, mãe. - Já disse que não pretendo despender nossa fortuna para isso... - reiterou o

pai.

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- E não vai precisar. Tenho meus próprios recursos. Contanto que você me garanta os recursos de que preciso para sobreviver, o investimento na carreira política eu mesmo farei.

Espantada, a mãe indagou: - Mas de que quantia está falando? - Muito dinheiro, mãe. Eu tenho o suficiente para definir como meta a pre-

sidência do país. Sorrindo, satisfeito, o pai disfarçou: - Quer chegar bem alto, não é? - O mais alto que puder. Quero ser presidente deste país. - E pode-se saber com que interesse, meu filho? - questionou a mãe. Erguendo-se, o rapaz foi até uma estante. Pegou um livro e o abriu na pri-

meira página, onde havia a bandeira americana estampada. Virou o livro para os pais e disse:

- Quero ir muito longe, até onde eu puder chegar... Como esta águia... Ao escutar as palavras do filho, Deborah sentiu um calafrio percorrer-lhe o

corpo. Fitou-o com tristeza e mais uma vez indagou: - Como foi que conquistou tal fortuna, meu filho? - Negociando escravos do norte para o sul. - Tantos assim? - Você não imagina, mãe, como esses escravos são rentáveis. - Os proprietários do norte os libertaram, até onde eu sei. - Alguns, não todos. Muitos dizem que libertaram os escravos, quando de

fato os venderam para o sul. Falando com a esposa, Michel comentou: - Eu não lhe disse? Esses ianques sujos são mentirosos e ines-crupulosos. - São insuportáveis. Mas eles terão o que merecem, quando eu ocupar uma

cadeira no senado. Deborah, entristecida, caminhou até o filho; pousou a mão em seu ombro e

pediu: - Pense muito bem, meu filho, no que está fazendo com sua vida. Precisa

caminhar para Deus e não contra ele. - Do que está falando? Como se soubesse de todas as ações criminosas do filho, ela explicou: - De suas escolhas, Sean. Precisa aprender a colocar o seu coração no bem,

ou o bem dentro do seu coração. Amar a Deus e a seus semelhantes, controlar o orgulho e a vaidade.

Furioso, Sean retorquiu com rispidez:

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- Estou cansado de seus sermões, ouviu bem? Cansado. Hoje mesmo dei-xarei esta casa.

Dessa vez foi o pai quem pediu: - Não, meu filho, por favor... Michael foi impedido de concluir: - Não suporto mais esses sermões constantes. Vou embora. Tenho uma

propriedade ao sul e vou para lá, dirigir minha própria fazenda. Quero liberda-de para fazer o que desejo.

Sem esperar que os pais dissessem mais nada, ele saiu. Com lágrimas nos olhos, Deborah viu o filho deixar a sala e depois a casa. Michael encarou a esposa e não se conteve:

- Viu o que você fez? - acusou. - Está satisfeita agora? Ele vai embora e a culpa é sua. Esses seus sermões constantes cansam qualquer um.

- Quero o bem do meu filho, e o seu também. - Você é como ele: faz o que quer e bem entende. - O que quer dizer? - O reverendo tem me falado de seus arroubos para ajudar toda e qualquer

pessoa, sem avaliar de quem se trata. - Você parece desconhecer a parábola do bom samaritano. Devemos auxi-

liar a todos, sem distinção de qualquer tipo. E o que faço. - Você desafia nossa comunidade, nosso reverendo e até nossa família. Faz

tudo o que quer, sem se preocupar com o impacto de suas ações. - Eu socorro pessoas necessitadas, apenas isso. - Qualquer uma... Mesmo aquelas que não fazem parte de nossa comuni-

dade. - Sim. - Mesmo de outras religiões, que blasfemam contra Deus, não aceitando

seus ensinamentos. - São seres humanos como nós, nossos irmãos. - Não. São criaturas de Deus, não filhos dele. Somente nós, os cristãos,

somos filhos de Deus, e você sabe disso. - Meu querido Michael, vejo e sinto de modo diverso. No meu entendi-

mento, somos todos filhos de Deus, e por isso devemos nos ajudar mutuamen-te.

- Está blasfemando. - Todos somos iguais perante Deus, independentemente de religião, cor,

raça... Levantando-se, irritado, Michael respondeu:

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- Não, senhora minha esposa. Temos uma essência diferente, somos pre-destinados por Deus para possuirmos o céu. Somos agraciados pelo Altíssimo, que nos abençoa, confirmando nossa superioridade.

- Para mim, isso sim é que é uma blasfêmia. - Pois não sou só eu quem pensa dessa forma. Todos em nossa comunidade

comungam a mesma idéia, e você sabe bem disso. Você, Deborah, é a única que defende esses conceitos inconcebíveis, que só podem vir de satanás.

Ela conservou a serenidade: - Como, então, posso ter tanta paz no coração? Paz e confiança plena em

Deus. Michel sentenciou, antes de deixar a esposa sozinha na sala: -Você é muito

pior do que seu filho... - Deborah ficou junto à porta até ver o marido se afastar; depois retornou

para a biblioteca e sentou-se, cansada. Observou pela janela o azul intenso do céu, emoldurado pelas copas verdes das árvores; escutou com atenção o chil-reio das aves e fechou os olhos. Suspirou fundo, pensando em como Michael e Sean não conseguiam compreendê-la. Como era diferente sua maneira de ver o mundo... O que para ela se mostrava tão claro, para eles parecia inaceitável. Silenciou os pensamentos, buscando sentir a presença divina na natureza e em tudo o que a cercava.

Amava a Deus acima de tudo e aos seus semelhantes como irmãos. Entre-tanto, por mais que fosse compatível com a lei divina, o fato de tratar a todos como irmãos era incompreensível até mesmo para o reverendo da Igreja Me-nonita da qual faziam parte. Escutou ao longe o canto triste dos negros que trabalhavam em sua propriedade, e forte emoção a dominou. Não podia aceitar aquela condição de escravidão. Sabia que Deus não a aprovava e tudo faria para beneficiar aqueles homens e mulheres que sofriam tanto.

Transcorrido longo tempo, ergueu-se e caminhou pela biblioteca. Pegando a Bíblia, voltou a sentar-se, fechou os olhos e pediu que Deus amparasse seus esforços e a orientasse. Estaria no caminho certo, ainda que em oposição ao marido, ao filho e aos líderes religiosos? Abriu o livro e leu:

"Senhor, qual o maior mandamento? Amarás ao senhor teu Deus de toda a tua alma e de todo o teu entendimento. E o outro, semelhante a este, é: amarás ao teu próximo como a ti mesmo..."

Fechou o livro e levou-o até o peito; apertando-o junto ao coração e balbu-ciou, suplicante:

- Ajude-me, senhor, por favor. Forte torpor apossou-se de sua mente, suave sonolência a dominou e ela

adormeceu. Retirada por Helena e outros companheiros espirituais, contem-

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plou o ambiente ao seu redor e sorriu, logo reconhecendo os amigos. Abraçou Helena e falou:

- Meu bom anjo... - Acalme seu coração, minha querida irmã. Lembre-se de que cada ser es-

colhe seu caminho sobre a Terra. E possível incentivar, apoiar, compreender e perdoar, mas não decidir por ninguém. A escolha é individual, e cada um co-lherá sempre as conseqüências de seus atos, bons ou maus. Podemos ajudar, sem jamais interferir nas situações, especialmente nas decisões. Pode ajudar Licínio, mas não lhe cabe impedir que ele faça as próprias escolhas...

- Sean... - Sim, Constância, você vem se esforçando. Desde que ele nasceu, tem ofe-

recido o melhor de si. - Mesmo assim, ele não me compreende e está prestes a entrar em uma rota

perigosa. - São pesadas as sombras de ódio e desejo de poder que ainda o envolvem.

Ele se colocou a serviço de nossos irmãos menos felizes, que acreditam no mal, e mudar de direção implica transformação interior. Por ora Licínio não tem essa consciência. Caminha sob o domínio das trevas.

Com lágrimas nos olhos, Constância indagou: - E o que posso fazer para ajudá-lo? Abraçando a companheira, Helena a-

conselhou: - Continue a amá-lo e a orar por ele, como tem feito; apenas afaste a afli-

ção e a angústia de sua alma. Confiemos em Deus. Todos temos nosso tempo para reencontrar o Criador. Alguns demoram mais, outros retornam mais de-pressa.

- Licínio é tão resistente ao bem... Parece que todos os meus esforços na presente experiência terrena têm sido vãos.

- Nenhum esforço no bem é perdido, Constância, e você sabe disso. Todos os atos bons que praticamos são como sementes de luz que plantamos à nossa volta. Você tem plantado essas sementes, em forma de amor e paz no coração de Sean, desde o dia em que o recebeu como filho. Apesar de ser árido o terre-no daquele coração, as sementes permanecerão em estado latente; não morre-rão. Quando o solo do coração de nosso irmão estiver mais propício, essas sementes começarão a germinar. Tenhamos fé e confiança em Deus, que há milênios vem semeando em nossas almas, sem desanimar.

Ambas estavam envolvidas em suaves energias, que reconfor-taram o co-ração amoroso de Constância. Ela demorou a quebrar o silêncio:

- Há algo mais a me afligir. - Eu sei: os escravos.

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- Não consigo aceitar essa situação... O que posso fazer? - Prossiga no exemplo do amor a eles, e ajude sempre. A transformação

que você deseja não pode ser feita com a luta e a revolta. Ela precisa vir do amor e do respeito ao próximo. Essa é a nossa luta, essa é a luta do Mestre: a transformação silenciosa, mas profunda, do coração humano. Somente ela tra-rá as conquistas perenes de que a humanidade necessita.

- E a luta abolicionista, é uma causa que devo defender? - A liberdade de nossos irmãos africanos, sim, com toda a certeza. Todavi-

a, a luta pelo ideal abolicionista, da maneira como vem sendo conduzida por muitos, poderá não levar a bons resultados. Muitos defendem a abolição vi-sando aos próprios interesses econômicos, sem ser movidos pela consciência da exploração perpetrada contra as criaturas escravizadas. Sempre que nos entregamos cegamente às idéias, deixando de ver seu sentido mais amplo e suas conseqüências possíveis, podemos incorrer em graves enganos, por me-lhores que elas nos pareçam. Por isso, Constância, permaneça a serviço de nossos irmãos escravos, não a serviço daqueles que desejam usá-los ainda mais.

Constância balançou a cabeça em sinal afirmativo e abraçou a amiga: - Obrigada, Helena, por sua dedicação. E fitando os outros companheiros espirituais que ali estavam, despediu-se

deles com emoção: - Obrigada a todos pela ajuda constante. Constância retornou ao corpo físico, que permanecera adormecido, e logo

despertou. Com profundo sentimento de gratidão e de paz, ergueu-se resoluta, sabendo como deveria conduzir-se dali por diante. A caminho da cozinha, en-controu Sarah, que chorava, amparada por outra escrava.

- O que aconteceu? - indagou a patroa. - Nada, senhora, nada. Deborah insistiu: - Como, nada? O que foi, Sarah? Por favor, conte-me. Assustada, a jovem, que segurava uma das mãos junto do peito, não ousava

falar. Percebendo que protegia a mão, Deborah pegou firme em seu pulso, e de novo inquiriu:

- O que houve? O que aconteceu? Puxando o braço da jovem, viu feia queimadura, que tomava toda a palma

da mão. - Meu Deus, como ocorreu isso? Sarah a puxou com força e disse: - Não foi nada... Surpreendendo o medo nos olhos e na voz da menina, ela a olhou fixo: - Foi Sean, não foi? Por quê?

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Depois de ligeiro silêncio, a outra escrava explicou: - O senhor Sean queria levar Sarah... Queria obrigá-la a ir com ele para sua

casa, sem que a senhora soubesse. Como ela não quis, ele a queimou com bra-sas do fogão.

Num suspiro magoado, Deborah não reteve as grossas lágrimas que lhe desciam pela face. Abraçou a jovem:

- Pode deixar que eu mesma vou cuidar dela. - Não precisa, senhora... Ignorando as objeções, ela entrou com Sarah na cozinha e pediu à outra

moça que trouxesse ervas que plantava; fez curativos e ao terminar pediu: - Não odeie Sean por isso, Sarah, deixe que a providência Divina cuide dele. Concordando com a cabeça, a jovem escrava permaneceu calada. Deborah

orientou: - Agora quero que vá para o seu quarto e descanse; tratei a queimadura,

mas ela foi muito profunda e precisamos cuidar para que não se transforme em coisa pior. Você só retornará às suas atividades quando eu autorizar, entendeu bem? Não quero que aceite ordem de mais ninguém, estou sendo bem clara? Quero ser informada imediatamente de qualquer coisa que aconteça.

Por conhecerem o bastante a sua senhora, os outros escravos lhe assegura-ram obediência. Cansada, Deborah foi para seus aposentos e no caminho pas-sou pelo quarto vazio do filho. Entrou, abriu os armários e os viu vazios. Abriu o baú, também vazio. Ele levara tudo; não tinha intenção de voltar. Deborah sentou-se na cama do filho e acariciou o lençol desfeito. Tomou o travesseiro entre as mãos e levou-o ao rosto, sentindo nele o cheiro do filho. Colocou-o de volta no lugar, desamassando o tecido da fronha. Avistou sobre a cômoda um exemplar da Bíblia que presenteara ao filho, que ficara para trás, e pediu em pensamento:

- Por favor, meu Pai, cuide de meu filho... Ajude-o. O impetuoso Sean chegou em sua propriedade e, reunindo serviçais e es-

cravos, esclareceu que se mudava em definitivo e assegurou que logo traria uma governanta para assumir todos os afazeres da casa.

A partir daquele dia, passou a dedicar-se com afinco à carreira política. Ti-nha grandes influências, era um hábil estrategista, sabia empregar o poder do dinheiro para angariar apoio. Não demorou muito a ser eleito e em pouco tem-po tornou-se poderoso e influente político do estado da Virgínia. Em paralelo, prosseguiu com o contrabando de escravos, aumentando sua fortuna e seu po-der.

Deborah via o filho raramente, apenas em ocasiões especiais, como dia de ação de graças, Natal e aniversário dela e do pai, quando ele vinha para as ce-

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lebrações tradicionais da família. Nessas ocasiões, a mãe não perdia a oportu-nidade de doar-lhe amor e simpatia, compreensão e benevolência.

QUARENTA E CINCO O PEQUENO DANIEL CHORAVA. Stephanie olhou para o berço e, preparando

a comida do menino, falou alto: - Já vou, estou indo. Você come demais, Daniel. Vive com fome. Não

compreendo; não faz muito esforço com seu corpo, e sempre tem apetite. Aproximando-se do berço, olhou o pequeno ser que completara nove me-

ses. Nesse tempo todo ela não tivera coragem de levá-lo à igreja. Logo ficou sabendo das reações de todos à notícia de seu nascimento; especialmente do pai, que não veio visitar o neto. Stephanie sentia-se extremamente magoada pela família e por toda a comunidade que a vira crescer. Com um olhar demo-rado ao bebê que gritava, pensou, como pensava todos os dias desde o nasci-mento do filho: por que Deus fizera aquilo com ela? O que a levara a merecer tamanha punição? Estaria sendo penalizada por sua capacidade de ver os espí-ritos? Por mais que se esforçasse, não compreendia. Por que ela? Seus sonhos haviam sido destruídos e tornara-se escrava daquele ser que para tudo depen-dia dela, como sempre dependeria.

Todas as manhãs, depois que Eric saía, Stephanie se olhava no espelho e só via abatimento, cansaço e desalento. Por mais que o marido procurasse estimu-lá-la, sentia-se só e sem esperança. Sentia que sua vida, seus planos estavam acabados. O que poderia esperar do futuro? Lamentava-se, assim, todas as ma-nhãs. Os dias eram longos e as horas se arrastavam. Ela cuidava do menino, mas não conseguia sentir por ele nada além de repugnância. Eric, no entanto, cercava o garoto de afeto, cuidando dele com desvelado amor.

Naquela manhã, depois de alimentá-lo, ia recolocá-lo no berço quando Eric entrou. Ela estranhou:

- Já em casa? - Vendemos toda a nossa produção, e fizemos um ótimo negócio. Seu pai

ficou satisfeito. Posso tirar o dia de folga. - Até que enfim você pode ajudar-me com Daniel. - Vou levá-lo comigo até a cidade. Quero comprar alguns mantimentos e

material para construir uma cerca ao redor da casa, a fim de podermos deixar Daniel lá fora, sem tanto medo de animais.

Colocando-se diante do berço ela pediu, angustiada: - Não faça isso, por favor.

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- E por que não? Vou cuidar muito bem dele. - Eu sei disso. - Então, o que é? - E que... bem... você sabe, é... - Vamos, prepare logo o Daniel que vou levá-lo. Desse modo você passará

algum tempo tranqüila. - Não, por favor, não o leve para a vila. Todos vão zombar dele, vão ver e

depois falar por aí.... Erguendo-se e indo na direção da esposa, que protegia o berço, Eric ponde-

rou: - Eu entendo que queira escondê-lo de todos, mas não poderá fazer isso pa-

ra sempre. - Por que não? - Ora, Stephanie, precisamos assumir nosso filho como ele é. Se Deus nos

deu esse pequeno e necessitado ser para cuidarmos, devemos fazer nosso me-lhor por ele.

Stephanie caiu em pranto convulsivo, custando muito a se acalmar. Eric, que já se acostumara com as explosões de desespero da esposa, manteve-se calado. Depois abraçou-a, dizendo:

- Sei de seu sofrimento, querida, compreendo sua decepção e sua dor; con-tudo, devemos confiar em Deus.

- Deus não me ama, da mesma forma que meus pais. Só tenho da vida o pior...

- Não é verdade. E eu? E o nosso amor? Não, Stephanie, você tem saúde, tem um lar, e tem muitos problemas, como todas as pessoas. Não desanime, por favor.

Ela ficou calada, com os olhos vermelhos de chorar. Ele foi firme, pegando o bebê do berço:

- Não vamos escondê-lo para sempre. Vou levá-lo comigo, assim você po-de ficar mais tranqüila por aqui.

Quando Eric saía, ela segurou seu braço e pediu: - Quero ter outro filho. - Mas Daniel é muito pequeno ainda... - Não importa. Você não disse que quer uma família numerosa? Pois então,

quero logo ter outros filhos, por favor, Eric. O jovem sorriu e respondeu: - Conversaremos quando eu voltar. Se realmente estiver preparada para

cuidar de Daniel e ainda dar conta de outro bebê, poderemos pensar seriamente no assunto. Pense bem, Stephanie, pois suas responsabilidades serão muito

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maiores. Não pode deixar Daniel de lado, para cuidar de outros filhos. Ele pre-cisa muito de você. Caso se sinta realmente pronta para isso, poderemos tentar outra vez.

Ela deu ligeiro sorriso e recebeu um beijo no rosto. - E assim que gosto de ver minha esposa - brincou Eric. Despediu-se, bei-

jando-a suavemente nos lábios, e saiu com o filho na cesta que utilizavam para transportá-lo. Stephanie os observou da va-

randa até desaparecerem. Tinha vontade de gritar que o marido não levasse aquele bebê disforme para a vila, pois sabia que não somente o pequenino se-ria tratado com desprezo, como também ela própria seria considerada uma mulher amaldiçoada por Deus. Queria sair correndo atrás da carroça, porém faltavam-lhe forças; sabia que Eric estava certo: por mais que ela desejasse, não poderiam ocultar a criança para sempre. Em algum momento as pessoas, que já estavam cheias de curiosidade, o veriam e comprovariam a desgraça de sua vida.

Quando sumiram na estrada, a jovem sentou-se no chão e pôs-se a chorar, cheia de angústia e revolta. Por que aquilo havia acontecido? O que seria dela agora? Até o final da vida teria de enfrentar o escárnio e o desprezo da comu-nidade na qual nascera, bem como de seus pais e de toda a sua família. Sentia-se sem forças e chorou por muito tempo. De súbito, uma idéia começou a insi-nuar-se em sua mente: melhor seria morrer. Sim, de fato, sua vida já estava acabada... Como poderia passar daquele jeito o resto de seus dias? Não, ela não agüentaria. A morte seria a única saída para escapar da sensação insu-portável de ser desprezada e olhada com desdém. Só assim não teria de enfren-tar sua realidade.

Sem oferecer nenhuma resistência mental àquela idéia que era contrária a tudo o que aprendera em seu lar e em sua igreja, Stephanie deu espaço livre para que os inimigos de Constantino, e também dela própria, dominassem seus pensamentos e, logo, suas emoções. A influência constante que exerciam sobre ela se tornou em idéia fixa, e, como se transformada em zumbi, começou a obedecer-lhes às ordens.

- "Levante-se e vá até o celeiro. Lá, sem que ninguém a impeça, você po-derá pôr fim à sua miserável existência. Não há mais nada a ser feito. É melhor morrer."

Stephanie tomava aqueles pensamentos como se fossem dela própria, e o-bedecia. Levantou-se e foi para o celeiro. Entrou e trancou a porta, para que ninguém pudesse entrar.

- "Todos se sentirão culpados por sua morte. Eles são responsáveis por isso que você está fazendo. Eles. Ninguém se dispôs a ajudá-la, todos a hostilizam,

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inclusive seus pais. Especialmente David. Esse, mais do que ninguém, será corroído pelo remorso."

A essas palavras, Stephanie sentiu inesperada satisfação. Pensou que seri-am punidos pelo que haviam feito a ela. Sem titubear, pegou uma corda e, su-bindo em uma cadeira, amarrou-a na viga principal do telhado. Depois, se-guindo as orientações mentais que os espíritos infelizes lhe transmitiam, fez um laço com nó móvel, que ajustaria em torno do pescoço.

Assim que tudo estava preparado ela subiu na cadeira, respirou fundo e, tomando o laço nas mãos, ia levá-lo à cabeça quando viu uma luz fulgurante surgir dentro do celeiro. Do centro da luz surgiu uma figura de mulher, que Stephanie sentiu que conhecia. No instante em que Geórgia se fez presente no ambiente e visível aos olhos de Stephanie, as forças que dominavam mental-mente a jovem se enfraqueceram e logo de desfizeram. Antes que Geórgia dissesse qualquer palavra, Stephanie sentou-se na cadeira e se pôs a chorar:

- Meu Deus, o que eu vou fazer... o que estou fazendo... Geórgia aproxi-mou-se e, envolvendo-a ainda mais em suaves energias de amor e compreen-são, disse:

- Sei que o fardo que carrega neste momento de sua existência é pesado, mas não o está carregando sozinha, querida. Eu, sua mãe em outras experiên-cias terrenas, e outros amigos que desejam seu bem estamos aqui para ajudá-la com a autorização de Jesus. Não se desespere nem se revolte. Confie e perse-vere. Não desista novamente, minha filha. Você já desistiu muitas vezes antes, e isso a fez sofrer muito. Persevere. Mesmo que os dias sejam de muito esfor-ço, durante a noite estaremos com você, revitalizando suas energias e ajudan-do-a a permanecer no caminho que, efetivamente, a ajudará nesta vida.

- Por que isso foi acontecer comigo? - Daniel foi alguém que você prejudicou, tal como seu pai. - Como assim? - Vivemos muitas vidas, Stephanie, aqui na Terra. - Do que você está falando? - De nossas várias encarnações. Você nunca se questionou sobre de onde

viemos, o que estamos fazendo na Terra e para onde iremos ao morrer? Limpando as lágrimas abundantes que banhavam sua face, a jovem comen-

tou: - De vez em quando penso nisso, mas logo acho uma questão difícil de-

mais de compreender. Aprendi que viemos do Céu, quando Deus nos criou, e estamos aqui para fazer a vontade dele. Iremos para o Céu se aceitarmos Jesus, e para o Inferno se não fizermos o que manda o Criador.

Sorrindo com carinho, Geórgia comentou:

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- De certa forma, tudo isso que você disse é verdade. Só que é uma parte superficial da verdade mais ampla e profunda. Todos fomos criados por Deus, porém muito antes do momento em que nascemos na Terra. Antes de vir para cá, vivemos no plano espiritual, que não é bem o céu, e sim um lugar onde podemos encontrar entes queridos, que nos precederam na vida além do túmu-lo. A existência na Terra representa para nós, realmente, a busca da harmonia com as leis divinas, que desrespeitamos e ofendemos com nossas ações em outras encarnações. Por isso sofremos.

Stephanie, atenta, percebia sentido em cada palavra que escutava. Geórgia continuou:

- A estada aqui na Terra é para aprendermos a fazer a vontade de Deus, que nos ama infinitamente e deseja o nosso bem. Foi por saber da nossa capa-cidade de discernir que o Pai nos concedeu o livre-arbítrio, ou seja, o poder de escolher entre o bem e o mal, o amor e o ódio, o egoísmo e a renúncia, o orgu-lho e a humildade. Cabe a nós decidir se nos harmonizamos com o Criador, reconhecendo-o como o senhor do Universo e de todas as coisas, ou se cami-nhamos por nossa conta, cometendo erros e sofrendo as conseqüências naturais de nossas escolhas.

Geórgia fez breve pausa, depois prosseguiu, acariciando os cabelos de Ste-phanie.

Quando morremos, o lugar para onde vamos e a forma como nos sentimos dependem da natureza das escolhas que fizemos na Terra. Se caminhamos no bem, naturalmente iremos para a companhia daqueles que também caminha-ram no bem. Se fomos rebeldes a Deus, encontraremos aqueles que se asseme-lham a nós em rebeldia, orgulho e ódio, e certamente sentiremos como se esti-véssemos no inferno de que temos referência no íntimo. A despeito disso, Deus é absolutamente justo e bom; segundo as palavras de Jesus, é amor. A-mor que, como Paulo descreveu na primeira carta aos Coríntios, capítulo 13, tudo espera, tudo suporta, tudo crê... Com esse sentimento sublime, que ainda não compreendemos, Deus nos espera e nos dá outras oportunidades, permi-tindo-nos voltar à Terra para consertar antigos desatinos e, ao mesmo tempo, trabalhar para o progresso da humanidade.

Mais serena, Stephanie estava completamente envolvida pelas energias de amor e renovação que Geórgia e os demais espíritos bons que ali agrupados vibravam sobre a jovem. Ela balbuciou:

- O que posso fazer? - Seguir sem desânimo, minha querida. Mesmo que você viva cem anos na

Terra, seu espírito é eterno e é ele que precisa aprender e crescer. Tudo aqui é

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passageiro. Somos peregrinos, e nossa verdadeira morada é o mundo espiritu-al, onde somos o que nossas conquistas espirituais nos permitem ser.

- Não encontro forças... Tenho vergonha, sinto-me culpada... - Ame, Stephanie. Ame a Deus, a seu filho, a seu marido e a si mesma.

Não se importe tanto com o que outros dizem ou pensem. Ame. Aprenda com a existência terrena, para poder deixar a Terra em melhores condições espiritu-ais do que quando chegou. Vimos nascendo e morrendo neste planeta há muito tempo... De fato, há milênios. Chegou a hora de nos conscientizarmos da ne-cessidade de fazer nossa parte e mudar. Precisamos atender ao convite que Jesus nos fez quase dois mil anos atrás, e deixar que o amor seja o centro de nossas vidas. Esta é a essência de todo o ensino do Mestre: o amor.

Stephanie mantinha os olhos fixos em Geórgia, que acrescentou: - Se Deus me permitir, farei o possível para me tornar visível a você em

outras ocasiões, lembrando-a de suas responsabilidades. - Responsabilidades? - Sim, aquelas com as quais se comprometeu antes de vir para a Terra.

Concordou em receber Constantino como filho e ajudá-lo, como forma de re-parar seus erros do passado e, principalmente, de aprender sobre amor e re-núncia.

- Meu peito dói muito. Geórgia abraçou-a novamente, transferindo-lhe energias salutares. - Eu sei, minha filha, essa dor está dentro do meu próprio coração. Sei co-

mo se sente, porque posso sentir seu sofrimento. Saiba, entretanto, que será através dele que você renascerá para Deus, por sua própria decisão, forte e firme, de seguir sua jornada evolutiva.

Stephanie já não chorava. Seus olhos permaneciam fixos na figura lumino-sa de Geórgia, e seu coração sentia paz. Aquele enlevo foi repentinamente quebrado pelo som da carruagem e a voz de Eric, falando com o filho. O tem-po havia passado e a moça não se dera conta. Olhou para a porta, desejando ir ao encontro do filho e do marido. Geórgia aconselhou:

- Vá, querida, vá ao encontro daqueles que Deus lhe concedeu por família. Stephanie ia em direção à porta quando se deteve e virou-se para Geórgia: - Gostaria de ter outros filhos, será possível? - Abriria mão desse desejo, se fosse o melhor, por você e por seu filho? Captando o que Geórgia desejava transmitir, ela respondeu: - Ficaria frustrada, sem dúvida, mas acho que sou capaz de aceitar... - Então vá, minha filha, e confie em Deus. Ele quer sempre o melhor para

nós. Vá, que nos veremos outras vezes.

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Gradualmente, a imagem de Geórgia foi desaparecendo diante dos olhos de Stephanie. A jovem tirou a corda do teto e lançou-a longe, depois abriu a porta e saiu, em busca do filho e do marido. Eric já estava no interior da casa, a pro-curá-la. Ela entrou e o marido, que, de costas, colocava o bebê no berço, inda-gou:

- Onde estava? Daniel está com fome... Virou-se e deparou com a esposa. - O que foi, Stephanie? O que aconteceu com você? Ela sorriu e respon-

deu: - Não sei ao certo, Eric, mas creio que recebi a visita de um anjo de Deus.

Ele me impediu de cometer um ato terrível e me trouxe paz e esperança. Stephanie abraçou o marido e disse, suspirando profundamente: - Eu amo você, querido. Surpreso com aquela demonstração espontânea que não era freqüente, a-

braçou-a. - Também a amo, querida. Depois ela caminhou até o berço. Tomando o bebê no colo, disse com voz

suave e meiga, esforçando-se ao máximo para manifestar apenas bons senti-mentos:

- Está com fome? Venha, meu colo será seu lugar, de agora em diante. Levou o pequeno para a cozinha e, virando-se para Eric, pediu: - Amarre-o em meu peito, Eric. - Como assim? Ela respondeu com os olhos rasos de lágrimas: - Quero traze-lo perto do coração o mais que puder, para aprender a amá-lo. Comovido, Eric não discutiu. Tomou algumas fraldas do filho e rasgou-as,

emendando-as, e prendendo mãe e filho apenas indagou: - Tem certeza de que consegue fazer o que precisa, sem machucá-lo? - Vou tentar, vou aprender. Sob o olhar feliz de Geórgia, a partir daquele dia Stephanie lutou para afas-

tar do coração a revolta e o desespero. Não raro eles retornavam. Muitas e muitas vezes, no curso dos anos que se seguiram, ela desanimou e teve vonta-de de abandonar tudo. Nas ocasiões extremas, sentia a presença de Geórgia, reavivando o propósito firmado naquele dia no celeiro, que nunca mais pôde esquecer. Aquele momento fora gravado para sempre em seu coração.

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QUARENTA E SEIS STEPHANIE PREPARAVA o almoço. O correr dos anos e as diversas difi-

culdades pelas quais passara já haviam embranquecido a maior parte dos seus cabelos. Escutou o chamado do filho. Era a única pessoa capaz de conversar com ele e entender o que dizia. Nem mesmo Eric tinha condição de se comu-nicar a tal ponto com o filho. Ela se aproximou e indagou:

- O que foi, Daniel? Tentou traduzir a fala quase incompreensível: - Quer saber o que está acontecendo, não é? Enxugou as mãos, puxou uma cadeira e sentou-se ao lado do filho, para

explicar. - Nosso país está em guerra. Uma guerra estúpida entre os estados do norte

e alguns outros que se rebelaram no sul. - Pr por caqua? - Por quê? - procurou confirmar o que ele dizia. Ele aquiesceu com a cabeça e ela prosseguiu, com o olhar cansado, soltan-

do um fundo suspiro: - Não entendo muito bem, mas parece que o principal são os escravos. Os

sulistas querem continuar tendo escravos, e nós, aqui do norte, não. Após tentativa frustrada de expressar o que pensava e sentia, Daniel rugiu

irritado. Ela ergueu-se e falou, olhando firme para o filho: - Se vai começar a urrar de novo, volto para o que estava fazendo. Sabe

que nós dois precisamos ter paciência; do contrário, não conseguimos nos en-tender.

Daniel esforçou-se por se acalmar e ela, ao vê-lo mais controlado, disse: - Sei que também não gosta dos negros. Já percebi o modo como olha para

eles quando vêm auxiliar seu pai na lavoura. Levantando-se e voltando para a mesa onde preparava a refeição, continuou: - Temos de aprender a respeitá-los. No norte a maioria é livre, mas muitos

conseguem fugir do sul e vêm parar aqui, quase mortos. Era o início do mês de maio de 1861 e a situação no país estava tensa.

Abraham Lincoln22 acabara de ser eleito presidente do país, o que desagradara sobremaneira os estados do sul, que então se rebelaram e declararam-se desli-gados da União. Os mais atentos pressentiam que algo estava por acontecer.

22 Abraham Lincoln foi o 16° presidente dos Estados Unidos. Liderou o país de forma bem-sucedida durante sua maior crise interna, a Guerra Civil Americana, preservando a União e abolindo a escravidão.

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Stephanie silenciou e concentrava-se no preparo da refeição, quando Eric en-trou ofegante. A esposa virou-se e o fitou.

- O que houve? Que tumulto é esse lá fora? E apontando o filho com a cabeça, prosseguiu: - Daniel está aflito, querendo entender o que se passa. Eric, que agora já respirava com mais calma, respondeu: - Os confederados atacaram o forte Sumter e o presidente está convocando

todos os homens saudáveis de menos de cinqüenta anos para engrossar as filei-ras do exército, com o objetivo de conter e acabar com essa guerra o mais rá-pido possível.

Stephanie sentiu o chão escapar-lhe. Sentou-se atordoada e indagou, incré-dula:

- Então... estamos em guerra? - É uma guerra civil23, Stephanie. Faltou-lhe o fôlego e ela tentou inutilmente manter o controle. Diante do

pranto a que se entregou, o marido abraçou-a com força e pediu: - Precisa ficar firme, meu amor, para poder tranqüilizar Daniel... Olhe co-

mo já está agitado. Ele depende muito de você para ficar bem. Depois de ligeira pausa, ele aduziu: - Vamos, confie. Logo estarei de volta. - E por que você deve ir? Já tem praticamente cinqüenta anos. - Tenho 48, o que me coloca dentro da convocação do presidente. Não pos-

so me negar; outros até mais velhos do que eu estão indo, em favor da demo-cracia, como diz o presidente.

Sentindo forte aperto no peito e tomada de repentino pavor, ela abraçou o marido e pediu veemente:

- Não vá, Eric, por favor. Nós precisamos de você aqui. Eu preciso de vo-cê! Não nos deixe, por favor.

Eric abraçou a esposa, procurando acalmá-la, quando bateram à porta. Ela agarrou-se ainda mais ao marido e implorou:

- Não abra! Não importa quem seja, não abra. As batidas tornaram-se mais fortes e Eric afastou a esposa com gentileza.

Abriu a porta para encarar um soldado armado. - Senhor, partiremos ao anoitecer. Aqui está o uniforme que deverá usar. Tomando a indumentária das mãos do soldado, ele respondeu:

23 A guerra civil ocorreu nos Estados Unidos da América entre 1861 e 1865. Foi o con-

flito que causou mais mortes de norte-americanos, num total estimado de 970 mil pessoas.

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- Obrigado, estarei pronto antes do anoitecer. O soldado retirou-se e Eric dirigiu-se à esposa:

- Não há nada que eu possa fazer. Estamos convocados. Stephanie sentou-se e, debruçando a cabeça sobre os braços, chorou amargurada; sentia as forças esvaírem-se de seu corpo. O marido abraçou-a e guardou silêncio. Depois, ajoelhou-se e, erguendo seu rosto, falou gentil, inspirado por Geórgia:

- Confio em você na minha ausência. Sei que saberá tomar as decisões cer-tas, as melhores atitudes. Você cresceu muito ao longo desses dezenove anos, minha querida. Veja como se transformou em uma esposa, dona de casa e mãe dedicada. Superou dificuldades, preconceitos, medos. Aprendeu a lidar com sua faculdade de ver e falar com os espíritos e tornou-se uma mulher mais ma-dura. Está fazendo excelente trabalho com Daniel. Não foi fácil passar por tudo o que enfrentou.

- Tem sido assim porque você está comigo... - ela rebateu entre lágrimas. - Só com você posso fazer o que tenho feito. Você é minha força, Eric. Sem você, não saberei...

Ele colocou o dedo nos lábios da esposa: - Não diga isso. Você vai continuar tudo o que está fazendo. Eu estarei

sempre com vocês, em pensamento, mesmo que longe fisicamente. Vamos nos unir em nossas orações e Deus haverá de nos manter ligados. Por favor, Ste-phanie, prometa que não vai desanimar, um dia sequer. Só com essa promessa poderei ir em paz.

Envolvida por Geórgia e por outros espíritos amigos que amparavam a fa-mília, ela, num esforço imenso, respondeu:

- Eu prometo. Com um abraço demorado, Eric reafirmou: - Somente assim poderei ir em paz. Em seguida abraçou o filho e pediu, fitando-o bem nos olhos: - Daniel, enquanto eu não estiver aqui, quero que se esforce ainda mais e

faça o que puder para colaborar com sua mãe. Mantenha-se calmo, por favor, meu filho. Ela precisa de você. Enquanto eu estiver fora, vocês terão um ao outro. Por favor, ajudem-se.

Demonstrando que compreendia o pai, Daniel, com os olhos rasos de lá-grimas, moveu a cabeça afirmativamente. Eric abraçou-o de novo e falou, re-freando a emoção que o dominava:

- Isso mesmo, meu filho. Eu conto com você! E logo foi para o quarto, buscando ficar um pouco a sós. Stephanie conti-

nuou por longo tempo sentada à mesa, sem ânimo para sair dali. Escoada qua-se uma hora, Eric voltou para a sala e estranhou:

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- Não vamos almoçar? Preciso sair daqui bem forte... Stephanie, que tinha o olhar perdido, parecia não ouvir o marido. Ele insistiu.

- O almoço está pronto? Estou com fome. Como se despertasse daquele pesadelo, Stephanie levantou-se e respondeu: - Está tudo pronto, claro. Pode sentar-se para almoçar. - Vou auxiliá-la com a mesa. Durante a refeição, Eric fez o possível para comer normalmente, enquanto

Stephanie, depois de alimentar o filho, ergueu-se e foi para a pia. O marido indagou:

- Não vai comer nada? - Mais tarde. Eric ficou em silêncio. Sabia que, como ele, Stephanie se empenhava o

mais que podia para evitar o desespero. Cada segundo que passava era como uma lança penetrando o coração dela. Como nunca em toda a sua vida, desejou que o tempo parasse naquele momento. Não suportava pensar que dentro em pouco veria seu marido sair, partindo para uma guerra, em algum lugar distan-te de casa. Os dois juntos prepararam uma pequena mochila com os pertences essenciais que deveria levar e ele colocou ali também a Bíblia. Sentindo a hora se aproximar, Stephanie não conseguia conter o pranto incessante que rolava silencioso pelo seu rosto. Sua dor era profunda. Eric despediu-se do filho com um longo abraço. Depois, ela o acompanhou até a varanda e o abraçou com extremado carinho. Beijou-lhe a face, depois a testa, depois os lábios e pediu:

- Cuide-se, meu amor. E lembre-se de que eu o amo mais do que tudo. Vo-cê é a luz da minha vida.

Ele limpou as lágrimas que desciam pela face da esposa e insistiu: - Seja forte, Stephanie. Confie em Deus. - Vou tentar, Eric. Não posso compreender por que essa guerra estúpida es-

tá acontecendo... Mas vou tentar... - Lembre-se de que Deus nada tem a ver com o desatino dos homens. Essa

guerra é estúpida, concordo, e é uma guerra feita pelos homens. - Só que Deus permite. - Ele nos deu a liberdade, que nos é tão preciosa. Faça bom uso dela, Ste-

phanie. Buscando no íntimo todo o vigor possível, ela afirmou: - Eu farei, querido. Eric beijou-a e se despediu. Enquanto a carroça transportando os recém-

recrutados partia, Stephanie fixou o olhar no marido, até sua imagem se tornar invisível. Sentindo a dor mais profunda que jamais experimentara, olhou para o céu, depois ajoelhou-se na varanda e pediu:

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- Por favor, meu Deus, dê-me forças... Geórgia sustentava a filha do coração com intensas energias, para que não

desfalecesse. Então, os seis espíritos amigos e protetores que ali se encontra-vam uniram as mãos, formando um círculo em torno de Stephanie, e rogaram as bênçãos de Deus para aquela mulher e seu lar. À medida que oravam com fervor, fluidos suaves se derramavam sobre eles e atingiam os centros de força de Stephanie, que aos poucos conseguiu absorvê-los. Com isso, ela pôde enfim levantar-se e entrar, tentando concentrar a atenção em seus afazeres.

Dia e noite Geórgia a acompanhava, transmitindo-lhe energias e influenci-ando-lhe os pensamentos e sentimentos para que não se entregasse ao desâni-mo nem se deixasse abater, como era de sua tendência habitual. Stephanie, apoiada naquelas vibrações e sob a inspiração de Geórgia, orava três vezes ao dia: às nove horas da manhã, ao meio-dia e às seis da tarde. Assim se fortaleci-a, bem como permitia que fossem mantidos a distância os espíritos que deseja-vam perturbá-la e ao filho. Entretanto, tão logo Eric partiu, Núbio orientou seus servos a tudo fazerem para destruir aquele lar, com o objetivo de resgatar o domínio sobre Constantino. Também eles notavam as sutis transformações que ocorriam com Stephanie; percebiam mudanças reais acontecendo em seu campo espiritual e isso lhes desagradava muito. Núbio bateu com violência na mesa e gritou:

- Quero que a destruam. Não admitimos ninguém despertando por lá. É fundamental mantermos o controle sobre eles. Faremos dos Estados Unidos a maior nação do planeta e através deles dominaremos o mundo inteiro.

Incapaz de seguir o raciocínio de Núbio, um de seus comandados indagou: - Essa guerra se alastrará pelo mundo todo? - Não, nosso domínio se firmará de maneira muito mais sutil. Os homens

progridem com lentidão e para deter esse progresso, daqui para a frente, não usaremos apenas a força bruta; atuaremos sobre suas mentes de forma hábil e ardilosa. Vamos criar, através dos americanos, uma cultura que haverá de apri-sionar as mentes humanas ao nosso controle. Nenhuma religião nos fará recu-ar. Nem mesmo Deus poderá nos impedir.

Um dos colaboradores, que desejava maior destaque no meio do bando, in-terveio do fundo da sala:

- E a tal atividade incansável dos espíritos do bem que se percebe em toda a Europa? Você já foi informado do novo movimento, chamado Espiritismo, que apareceu por lá? Sabe se ele oferece algum perigo para nós?

Núbio fechou o cenho, irado:

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- Por enquanto não podemos fazer absolutamente nada. Estão protegidos por poderosas falanges de espíritos de luz, que não nos permitem maior apro-ximação daqueles a quem orientam.

- E o tal Denizard Rivail24? Não podemos atingi-lo? Ele deve ter pontos fracos... Já sabemos como é isso. Podemos derrubá-lo.

- Você é muito burro mesmo. Não ouviu o que eu disse? Todos eles estão sob forte proteção, especialmente Rivail.

- Até esse deve ter um ponto fraco. - Recebi detalhada ficha dele. E um espírito do bem há muito tempo. Será

difícil afetá-lo neste momento. Mas não se preocupem tanto. Nós vamos detê-los logo que nos derem a primeira oportunidade. Essa elevada falange que se mobilizou sobre a Terra não poderá defendê-los para sempre. Derrubaremos os seguidores desse movimento e o enfraqueceremos, deturparemos e destruire-mos, exatamente como fizemos nos primórdios do Cristianismo e, depois, com a reforma protestante. Não se preocupem. Vamos primeiro nos dedicar a forta-lecer o império americano, transformando-o no que queremos e na referência para o mundo inteiro. Não haverá religião que seja capaz de nos conter. Agora vão, acabem com Stephanie e com o filho.

- E como faremos? Ela não nos dá ouvidos. Está sob proteção cerrada. Fitando-os com olhos flamejantes, Núbio sugeriu: - Destruam Eric; será muito mais fácil do que imaginam. Ele está vulnerá-

vel no meio da guerra. Diante da visível dúvida de seus comandados, ele orientou: - Façam Eric participar da linha de frente do pelotão, no campo de batalha,

e coloquem a divisão de Licínio contra ele. O restante acontecerá por si só, entenderam?

- Licínio está na Virginia e o esquadrão de Eric não deve chegar até lá. - Pois tratem de colocá-los frente a frente. E insuflem a memória de Licí-

nio para reavivar o ódio que ainda traz daquele que o assassinou um dia. Ele saberá encontrar Marco em meio à multidão de soldados.

24 Hyppolyte-Léon-Denizart Rivail, conhecido como Allan Kardec, foi o educador francês nascido em Lyon, cujas observações, estudos e pesquisas sobre os fenômenos espirituais de-ram origem à Doutrina Espírita.

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QUARENTA E SETE ALGUMAS SEMANAS DEPOIS, do alto da colina, um oficial do exército con-

federado observava a movimentação no vale. Sabiam que os ianques estavam chegando e se preparavam. Sean, que se tornara um dos principais líderes dos confederados - tendo participado inclusive da decisão da invasão do forte Sam-ter -, aproximou-se do oficial:

- Algum sinal daqueles ianques asquerosos? - indagou - Não, senhor. Por enquanto nenhum sinal. - Não se iluda, soldado, eles estão chegando. Portanto, fique atento; não

quero que o batalhão seja pego de surpresa. Afastou-se e voltou para sua tenda, onde aguardou em prontidão. Alguns

minutos depois o oficial foi até lá e informou, ansioso: - Eu os avistei, senhor. Com certeza passarão pelo vale. Levantando-se rá-

pido, Sean procurou o comandante do batalhão e avisou: - Quero comandar pessoalmente esta batalha. O outro argumentou, receoso: - Você é importante demais para pôr sua vida em risco. E um dos princi-

pais líderes deste movimento. Se algo lhe acontecer, todos ficaremos mais fra-cos. Acho melhor que permaneça aqui. Além do mais, não tem treinamento de guerra.

Sean o ignorou. Montou e, apertando nas mãos a rédea do cavalo, respon-deu:

- Comandante, não me pergunte como nem porque, mas sinto que tenho mais experiência em batalhas do que você! Sinto-me totalmente à vontade, como se tivesse me preparado por toda a vida para este momento. Não se pre-ocupe, vou liderá-los pessoalmente.

E o exército todo se pôs a caminho, sob o vigoroso comando de Sean. No momento em que cruzava o vale próximo ao rio, o pelotão de Eric foi cercado pelos soldados confederados e travou-se uma das primeiras batalhas daquela guerra, que se estenderia por quatro anos, incendiando uma nação. Na luta corpo a corpo, muitos homens de ambos os lados foram abatidos, e uma signi-ficativa superioridade dos soldados do norte já podia ser notada. Entretanto, Sean lutava com uma agressividade desconhecida pelos seus próprios solda-dos. De repente, avistou ao longe um soldado que, com visível inexperiência, lutava timidamente com um de seus homens. Magneticamente atraído para Eric - embora este não conseguisse ferir o outro, desarmando-o -, Sean ergueu sua arma e sem pensar um só instante, movido por um ódio que não sabia de onde vinha, desferiu tiro certeiro contra o seu peito. Eric de imediato tombou ao chão, gravemente ferido.

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Sean caminhou, derrubando outros soldados do norte, até chegar perto de Eric. Fitando-o nos olhos, disse:

- Tem o que merece! Morra, ianque inútil! E disparou outra vez, tirando a vida do antigo inimigo. Apesar das densas e

pesadas energias que dominavam o vale, onde irmãos da mesma nação mata-vam uns aos outros, muitos espíritos servidores de Jesus ali se encontravam socorrendo aqueles que lhes ofereciam sintonia apropriada. Um deles aproxi-mou-se do corpo inerte de Eric e, desprendendo seu corpo espiritual, retirou-o para longe da batalha. O perispírito de Eric vertia sangue e foi transportado em uma maça para longe do vale. Ele gemia de dor, quando um enfermeiro apli-cou passes sobre a região atingida e deu-lhe sedativo para beber. Adormecido, foi levado para a colônia espiritual de onde viera. Logo Geórgia estava ao lado daquele a quem muito amava, auxiliando no trabalho de revitalização de seu corpo espiritual.

Dadas as condições de evolução de Eric, não demorou para que o ferimen-to cicatrizasse e ele despertasse do sono, razoavelmente refeito. Sentou-se na cama, observando a sala clara e a cama limpa em que se encontrava. Uma jo-vem entrou no quarto e perguntou:

- Sente-se melhor? - Onde estou? A última coisa de que me lembro é que estava no meio de

uma batalha... - Fique calmo, vou avisar a Geórgia que você despertou. Em seguida apareceu no agradável aposento a figura suave e amorosa de

Geórgia, que sorria ao recém-chegado. Ela o cumprimentou: - Seja bem-vindo de volta ao lar, Eric. Cumpriu bem sua missão. - Estou em casa? Colocando as mãos sobre a cabeça, continuou. - Estou confuso. Minha cabeça rodopia, sinto-me desfalecer. Ele voltou a

focar a atenção no ambiente. - Este não é o meu lar - declarou. - E de que missão está falando? Vence-

mos a guerra? Carinhosa, Geórgia sentou-se ao lado dele, tomando-lhe as mãos com ter-

nura. - Você venceu sua batalha pessoal, Eric, resgatando débitos do passado.

Está pronto para seguir em seu caminho de iluminação espiritual. Enquanto falava, Geórgia envolvia Eric em radiosas vibrações de amor.

Pouco a pouco ele se acalmou; encostando-se na cabeceira da cama, falou: - Estou com fome. Geórgia sorriu e convidou:

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- Venha, vamos dar um pequeno passeio e você poderá alimentar-se no re-feitório. Uma curta caminhada lhe fará bem.

Saíram. Ao observar as ruas e construções, Eric percebeu que estava em um lugar diferente de sua cidade; ao mesmo tempo, tudo lhe parecia familiar.

- Onde estamos? - Em uma colônia espiritual logo acima da Terra. - O quê? - Estamos no plano espiritual. - No Céu? - Bem, não é propriamente o Céu... Mas em comparação com as densas re-

giões onde permanece a maioria de nossos irmãos que deixaram o corpo físico, até se poderia dizer que você está no paraíso.

- Então... morri? Logo tudo retornou-lhe à mente. A batalha, a luta, os tiros que o fizeram

tombar. O rosto de Sean e seus olhos, antes de desferir-lhe o último tiro. Sentiu forte vertigem e precisou apoiar-se em Geórgia, que apontou um banco próxi-mo.

- Sente-se um pouco. Ele se acomodou, respirou profundamente e disse, confuso e angustiado: - Eu morri, não foi? - Sim, Eric, você deixou o corpo físico; porém, como vê, não está morto. A

morte é uma transformação, e este é, de fato, um novo começo. - E o que será de Stephanie e de Daniel agora? - Assim que se recuperar e estiver preparado, poderá auxiliar-nos no apoio

que temos dado a ela. Stephanie está cumprindo a promessa que lhe fez. Mes-mo depois que soube de sua morte, ela vem lutando, com nossa ajuda, para não desistir de sua tarefa na Terra.

- Então ela já soube... Há quanto tempo estou aqui? - Quase seis meses. - Seis meses? Dormi todo esse tempo? - Teve breves intervalos de semi consciência, mas somente agora despertou. Eric sentiu as forças se esvaírem e Geórgia, tomando-lhe novamente as

mãos, aconselhou: - Tenha calma. Muitas lembranças retornarão aos poucos e você acabará

por recordar tudo o que aconteceu antes que voltasse à Terra e assumisse a vida como Eric.

- Lembrar? Outras vidas? - Muitas outras. Aos poucos tudo ficará mais claro e você compreenderá

melhor sua nova vida, suas possibilidades e seus desafios. Stephanie igualmen-

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te não tardará a retornar. Não pode vir ainda porque não completou sua tarefa. Portanto, quanto mais depressa você se recuperar, mais rápido poderá contri-buir para que ela o faça. No entanto, não se angustie, ela não está sozinha. Te-nho estado a seu lado constantemente e mesmo neste momento ela conta com o amparo de dois irmãos de nossa colônia.

- Estou muito confuso. Pensei que ao morrer iria para o céu... agora você me diz que estou em uma colônia, que posso voltar à Terra, que você estava por lá... Você é um anjo, ou o quê?

- Não, querido, sou exatamente como você. Temos nos esforçado para crescer e auxiliar nossos queridos irmãos que se encontram um pouco atrás.

- Não foi nada disso que aprendi... - Eu sei, mas logo vai se lembrar deste lugar e de suas pretéritas experiên-

cias na Terra... Quando estiver pronto. E tudo ficará mais claro. Fez breve pausa e indagou: - Podemos prosseguir? Ainda está com fome, não está? - Sim, estou... Geórgia sorriu, oferecendo-lhe o braço. - Então venha, apoie-se em mim e vamos devagar. Seguiram para o refeitó-

rio do hospital. A partir daí, Eric foi gradativamente se adaptando à nova condição e tendo

relances de episódios das encarnações pregressas. O rosto de Sean não lhe saía da memória e o torturava.

Vários meses mais tarde, em uma ensolarada manhã, Geórgia chegou da crosta para visitá-lo; caminhavam juntos quando ele comentou:

- Estou muito bem, mas a lembrança daquele homem que me tirou a vida é muito forte em minha mente. Sinto um misto de medo, raiva e ... não sei mais o quê. Sabe quem é ele?

- Sim, eu sei, e você também sabe. - Não, eu não sei. - Aquele homem foi assassinado por você em outra encarnação, há muitos

séculos. Você precisa perdoá-lo e ajudá-lo o quanto puder. -Ajudá-lo? - Sim, Eric, toda a humanidade necessita de socorro. Teremos hoje, em

nossa colônia, uma presença muito importante. Ernesto virá nos visitar, tra-zendo orientações e ajuda.

- Ernesto? - Sim, junto com outros espíritos mais elevados, que estão comprometidos

com o progresso da humanidade. Já sabemos que em poucos anos a Terra pas-sará por um processo de transformação muito grande, e precisamos preparar-

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nos para contribuir e, ao mesmo tempo, tratar da nossa própria transformação pessoal.

- Não compreendo... - Ainda é cedo para que se lembre. Quando estiver pronto as lembranças

virão à tona. E então compreenderá cada vez mais. Baixando a cabeça, ele lamentou: - Sinto tanta falta de Stephanie e de Daniel... Geórgia pensou por instantes

antes de responder. - Acho que podemos trazer Stephanie até aqui durante o sono, para que se

encontrem. Tomado de entusiasmo, ele exultou: - Pode mesmo fazer isso? Seria maravilhoso falar com ela! - Vamos fazer o possível para que isso aconteça. E como vão os estudos? - Tenho feito algumas visitas à França e participado de reuniões em que

acontecem intercâmbios entre nós e os homens que ainda estão por lá. São... como é mesmo?... São médiuns. Exatamente como Stephanie.

- Sim, são médiuns, como Stephanie. Esse intercâmbio é não apenas pos-sível, como necessário para o progresso da humanidade. Os conhecimentos espirituais estão sendo revelados na Terra sob a tutela de espíritos muito ele-vados, comandados pelo próprio Mestre Jesus.

- Sim, nessas reuniões de que participei pude constatar a sublimidade do ambiente em que nos encontrávamos... De uma beleza que eu desconhecia até então.

- Eu sei. Tem sido uma grande oportunidade para nós, que habitamos esta colônia e outras de idêntico grau de elevação, podermos acompanhar de perto esse momento, maravilhoso para a Terra, do desabrochar das verdades espiri-tuais que tanto foram desvirtuadas e deturpadas pelos interesses dos homens. Os esclarecimentos que ora descem à crosta têm como principal objetivo rea-vivar as verdades puras do Evangelho de Jesus.

- Espero ansioso para poder participar de novas reuniões. - Sim, todos nós desejamos aproveitar essa divina oportunidade. Algumas noites mais tarde, Geórgia bateu na porta do quarto de Eric, que

abriu feliz. - Boa noite, Geórgia. - Boa noite, Eric. Como está? - Estou bem. - Ótimo, porque trouxe alguém para vê-lo. Vibrante de contentamento, Eric abriu largo sorriso, e Geórgia convidou

dois companheiros que traziam Stephanie:

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- Venham. Apesar da dificuldade com que controlava a emoção, Eric sabia que isso

era essencial para que pudesse estar com a esposa sem prejuízo para ela. Ste-phanie entrou, visivelmente abatida. Seu corpo espiritual trazia chagas profun-das, especialmente na área do coração.

- Venha, Stephanie, sente-se - chamou Geórgia. Stephanie estava confusa e parecia alheia ao que acontecia. Eric

aproximou-se e, tocando-lhe os cabelos com ternura, disse: - Meu amor, sinto tanto a sua falta! Ajoelhou-se em frente a ela, segurou-lhe as mãos feridas e beijou-as com

extremo carinho. Ao seu toque, Stephanie começou a chorar. Olhando para ele, surpreendeu-se:

- Eric, é você mesmo? Como pode ser isso? Abraçando-a, ele respondeu: - Não pense em nada, minha querida, sou eu mesmo! Aproveitemos este

momento ao máximo... Ela abraçou-o ainda mais forte, em pranto dolorido. Após se acalmar ligei-

ramente, falou entre soluços: - Eu não posso mais, sem... você... Não consigo... Sinto demais a sua fal-

ta... Olhando-a com amor, ele afagava-lhe os cabelos desalinhados. - Eu sei que é difícil, querida, imagino o quanto deve estar sofrendo... Fitou Geórgia, como a pedir socorro, e ela interveio de imediato: - Tudo isso é transitório... Logo passará e você regressará ao seu verdadei-

ro lar. A Terra é nossa abençoada escola, onde podemos aprender o caminho da iluminação espiritual; não é nosso lugar definitivo. Tudo passará, Stephani-e. O que vai ficar dentro de você são as lições que consiga de fato assimilar: o amadurecimento que obtiver, o amor que expandir em seu coração, as virtudes que fixar na alma. Apenas aquilo que desenvolver em seu interior poderá tra-zer para o verdadeiro lar, quando retornar. Tudo o mais fica na Terra, onde nos é oferecido como ferramenta de aprendizado.

Geórgia fez longa pausa e Stephanie, que a escutava com respeito, acal-mou-se um pouco mais. Eric limpou-lhe as lágrimas.

- Também sinto sua falta, mas sei que o que Geórgia nos disse é a mais pu-ra verdade. Aqui estou eu, desfrutando tão-somente aquilo que pude aprender enquanto estive na Terra. Apesar disso, meu coração ainda fica muito triste sem sua companhia. Assim que for possível, estarei mais perto de você e de Daniel, para ajudá-los.

Stephanie baixou a cabeça, lamentosa:

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- Daniel não está bem. Depois que você nos deixou tornou-se mais e mais agressivo. Por mais que me esforce para ampará-lo, parece que já não nos en-tendemos...

Geórgia interferiu: - Não desista dele, Stephanie. Ajude-o a aceitar sua condição. Essa é a úni-

ca maneira de Constantino vir a libertar-se dos pesados liames que o prendem ao passado de débitos contra a humanidade. Uma única gota de amor que você lhe doa a cada dia pode mudar o destino daquela alma. E uma tarefa árdua, bem sei, porém de profundo significado. Persevere, por favor.

- Sinto-me fraca e muito sozinha; se não fosse por você, Geórgia, acho que já teria desistido de tudo...

- Deus não nos abandona jamais. Você nunca estará sozinha. Sempre irá contar com o amparo do Pai e de Jesus, através de mil modos diferentes. Basta estar atenta para perceber.

Eric e Stephanie conversaram por várias horas, permutando emoções posi-tivas. Por fim, Geórgia aproximou-se e informou:

- Precisamos levar Stephanie de volta, já é quase o momento do amanhecer. Os três se despediram envolvidos em suaves energias e bons sentimentos.

QUARENTA E OITO NA CROSTA, Sean continuava ativo em seu posto de comando. Ainda que

não participasse de todas as batalhas, acompanhava de perto as manobras, os sucessos e insucessos de seus comandados. Seu objetivo era presidir o novo país, que nasceria de um sul liberto e independente. Não obstante seus desejos, esse sonho se distanciava cada vez mais. Os soldados confederados perdiam sucessivas batalhas. Os oponentes do norte eram mais coesos, melhor apare-lhados em munições e outros equipamentos; sua superioridade econômica e numérica era inegável. A cada derrota, mais débil se tornava a esperança da vitória do sul. Sean se amargurava mais a cada dia, antevendo que seu anseio de vencer o norte não se concretizaria. Nem foi preciso que a guerra acabasse, quatro anos depois de deflagrada, para ele saber que não venceriam. Desconta-va a raiva e a frustração nos escravos, maltratando-os até tirar a vida de muitos deles.

Naquele dia, antes mesmo do café da manhã, chamou dois de seus homens. - Quero que vão buscar Sarah. Quero-a aqui, comigo. Os dois se entreolharam e um deles argumentou:

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- Senhor, seu pai não vai permitir. Sarah permanece sob a proteção de sua mãe.

- Não quero saber! Tragam-na para mim... Sem conseguir completar a ordem, desmaiou sobre a mesa central de sala,

derrubando o copo e a garrafa que tinha nas mãos. Os dois o levaram até o quarto e o colocaram na cama. Mais tarde, Sean despertou com forte enxaque-ca. Levantou-se e abriu a janela. Já era noite. O céu estava coalhado de estrelas e um ar fresco e perfumado invadia o ambiente. Ele olhou para cima e res-mungou, fechando a janela:

- Para que tantas estrelas se não podemos alcançá-las? Desperdício... Sentou-se de novo na cama e segurou a cabeça com as duas mãos; apertava

os ouvidos com força, tentando conter a dor. Depois falou alto consigo pró-prio:

- Esta guerra está perdida! Desceu e encontrou a casa toda em silêncio. Constatou então que já era

madrugada. Comeu e voltou para o quarto, dormindo até o amanhecer. Com os primeiros raios do sol, levantou-se e preparava-se para sair quando os mesmos subordinados chegaram, trazendo notícias:

- Os últimos batalhões se entregaram... O general Lee25 assinou a rendi-ção... Nós perdemos, afinal...

Desolado, Sean sentou-se pensativo. Em vão empregara todos os seus co-nhecimentos e teorias. Não obtivera sucesso... Um dos homens prosseguiu:

- Com a declaração de abolição da escravatura que Lincoln assinou, e ago-ra com a rendição, teremos de deixar todos os escravos livres... Será humilhan-te...

Sean disse entredentes: - Vamos acabar com esse homem. Os dois se entreolharam, mudos. Sean insistiu: - Vamos acabar com esse Lincoln. Ele jamais deveria ter sido eleito, só nos

trouxe desgraças. Não entendem? Vamos eliminá-lo. Um dos homens perguntou, incrédulo, imaginando que Sean ainda estives-

se bêbado: - E como pretende fazer isso? - Ainda não sei, mas vou descobrir. Tem de haver um modo de acabar com

ele. - O que deseja que façamos? - indagou o outro soldado. - Por enquanto nada. Quero que fiquem atentos a tudo o que acontecer.

25 Robert Edward Lee, militar e general do Exército dos Estados Confederados, durante a Guerra Civil Americana.

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- E quanto aos escravos? Vamos libertá-los? - Só os libertarei quando não restar um único escravo... - Eles poderão rebelar-se, agora que já sabem que são livres... - Ao mínimo sinal de insurreição de algum deles, sabem o que fazer... E

qualquer desobediência deverá ser punida com maior dureza. Mais do que nunca, eu os quero dominados pelo medo.

Sean não manteve seus escravos por muito tempo. Sem demora milícias do norte iniciaram a vistoria das propriedades, assegurando-se de que a lei fosse cumprida. Todos os escravos foram libertados, passando a depender da boa vontade de seus antigos proprietários e de outros para sobreviver.

Inconformado, Sean buscava um jeito de agredir os negros que via em seu caminho, escapando à severa repressão dos soldados. Uma noite, em um bar, encontrou John Wilkes, ator que atuava em teatros de todo o país. Naquela semana ele visitava amigos na cidade, e dizia-se revoltado com a situação em que se encontravam. Depois de trocarem muitas impressões a respeito, Wilkes sussurrou:

- Estamos formando um grupo, em Nashville, que pretende colocar os ne-gros no devido lugar. Você poderia juntar-se a nós...

- Apesar de odiar os negros, odeio ainda mais esse Lincoln. Quero acabar primeiro com ele. E não apenas eu: muitos de meus amigos fariam qualquer coisa para conseguir esse objetivo.

Wilkes, convicto, renovou o convite: - Junte-se a nós; falaremos sobre isso em uma de nossas reuniões. Decerto

poderemos pensar em algo... Sean passou a fazer parte daquela sociedade secreta, que dois anos mais

tarde seria conhecida como Ku-Klux-Klan26: organização racista e terrorista cuja principal finalidade era impedir a integração dos negros como homens livres, com direitos adquiridos e garantidos por lei depois de abolida a escravi-dão. Além disso, tramavam a eliminação do presidente do país.

Na noite de 14 de abril de 1865, uma sexta-feira santa, Abraham Lincoln foi assassinado no Teatro Ford, em Washington, enquanto assistia a uma peça encenada por John Wilkes, autor dos disparos que tiraram a vida do presidente americano. Ao receber a notícia do êxito da trama, Sean exultou. Perdera a

26 Ku Klux Klan é o nome de várias organizações racistas dos Estados Unidos que apoiam a supremacia branca e o protestantismo em detrimento de outras religiões. A KKK, em seu perí-odo mais forte, localizou-se principalmente em estados sulinos como Texas e Mississipi. Ao ser fundada por um grupo de amigos no Tennessee, em 1865 (após o término da Guerra Civil Americana), seu objetivo era impedir a integração social dos negros recém-libertados.

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guerra, porém não deixara impune aquele que acreditava ser o grande respon-sável pela derrota dos estados confederados.

Algum tempo depois, Sean comandava as atividades da sociedade em sua própria região. Em uma noite enluarada, o grupo de encapuzados se preparava para atacar alguns negros que viviam próximo das terras de Michael e Debo-rah, e com os quais morava Sarah. A casa foi invadida e os três negros, mais duas crianças, foram levados para o lado de fora, para serem executados. Sean, que liderava o grupo, permanecia a distância, não notando a presença de Sarah entre eles. Todos foram amarrados e colocados no centro de um círculo ilumi-nado por fogo. Ao escutar os gritos de pavor dos negros, Sean pensou ter reco-nhecido uma voz. Era Sarah, efetivamente. Deborah, que vinha buscar a jo-vem, de longe viu o que ocorria e logo identificou a voz de sua protegida. Cor-reu na direção dos homens encapuzados e, entre lágrimas, rogava:

- Parem com isso, por favor, não façam isso... Um deles empurrou-a com violência e avisou:

- Afaste-se daqui, se não quiser ter destino igual ao deles. Deborah insistia: - Parem, por favor! Eles não fazem mal a ninguém... Tendo uma tocha nas mãos, o homem aproximou-a dos cabelos de Debo-

rah e gritou, irritado: - Cale-se, ou ateio fogo aos seus cabelos agora mesmo. Sarah gritava: - Vá embora, dona Deborah, é muito perigoso ficar aqui... Movida por pro-

funda indignação, Deborah não desistia: -Tenham respeito por Deus, meus irmãos, parem com isso... Outro, ainda mais agressivo, gritou:

- É em nome dele mesmo que fazemos isto! Esses negros trouxeram magia negra para perto de nossos lares, de nossas famílias. Precisam compreender qual é seu lugar. Estes aqui servirão de exemplo.

Os encapuzados, influenciados por espíritos ainda presos ao mal, ficaram incontroláveis. Parecia que os rogos de Deborah por piedade mais os insufla-vam. De súbito, Sean, que os comandava, reconheceu a voz da mãe e a viu no meio da turba. Foi então tomado por um repentino sentimento de afeto, prove-niente do âmago de seu ser. Vendo a mãe exposta e frágil diante daqueles ho-mens embrutecidos sob seu comando, sentiu-se um monstro. Correu para ela na intenção de ajudá-la, mas já era tarde. Antes que pudesse fazer qualquer coisa para impedir, Deborah foi colocada junto com os negros, e em seguida lançaram querosene sobre eles e lhes atearam fogo. Sean gritava que parassem, sem que ninguém o escutasse. Quando conseguiu passar pelos próprios co-mandados, agora ensandecidos, e pelo círculo de fogo, chegando ao centro, a mãe já estava muito queimada. Ele a afastou dos demais e, arrancando as rou-

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pas, procurou abafar o fogo que a consumia. Um dos homens, ao ver a atitude de Sean, justificava:

- Ela pediu isso... Quis tirar nossas máscaras, tentou nos impedir... Ajoelhado sobre a mãe, Sean gritava: - Ela é minha mãe, estão entendendo? Minha mãe! Vão procurar ajuda!!! Quando se deu conta do que fizera, o grupo logo se dispersou, ao invés de

obedecer. Sean, também queimado, carregou a mãe nos braços em direção à casa. No caminho, ouviu-a balbuciar:

- Obrigada, meu filho. Sean foi dominado pelo remorso, que se originara na profunda ternura com

que sempre fora tratado por Deborah. Assomavam-lhe à mente todos os mo-mentos de amor, ternura e carinho que a mãe lhe dedicara. Sem conseguir con-ter as lágrimas, repetia:

- Você vai ficar boa, mãe, vai ficar... Deborah não podia mais ouvi-lo. Seu espírito fora retirado do corpo físico

e ela era transportada, em sono profundo, para a colônia espiritual de onde viera. Ao notar o corpo inerte da mãe, Sean gritou:

- Mãe! Mãe, por favor, responda! Temendo ter acontecido o pior, colocou-a com cuidado no chão e buscou

auscultar-lhe o coração, constatando que não batia mais. Debruçado sobre o corpo sem vida, gritava em desespero:

- Não! Por favor, não! Você não pode morrer! Servos de Núbio acompanhavam todos os fatos e um deles comentou, com

sorriso cínico: - Acho que ele está mesmo sofrendo... - E, parece que ela conseguiu tocar fundo em Licínio. - respondeu outro. -

O que fará agora? - Nada! Ficará completamente sob o nosso domínio, de novo. Ele nos per-

tence e ela quase o amoleceu. - Mas veja como está... Será que poderemos utilizá-lo assim? - Se não nos for útil, acabaremos com ele e pronto... Todavia, alguns espí-

ritos que trabalhavam pela transformação de Sean, protegendo e auxiliando a família, também presenciavam os fatos.

Entre eles estava Helena, que antes mesmo de receber o espírito de Constân-cia, para reencaminhá-la à colônia espiritual, comentou com Ana:

- Atingido pelo remorso, Sean mostra sinais de arrependimento. - Esse sen-timento poderá auxiliar-nos a encaminhá-lo a uma nova e mais promissora encarnação?

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- E uma mudança marcante em suas emoções. Que Deus nos ajude a utili-zar essa semente para o bem... Dessa forma, o sacrifício e a dedicação de Constância não terão sido em vão...

Acolheram nos braços a querida trabalhadora do bem e a conduziram de volta ao lar, para o necessário período de descanso e recomposição. Sean per-maneceu, transtornado, sobre o corpo inerte da mãe, enquanto ao longe a fu-maça ainda subia aos céus. Por outro lado, à medida que Helena, Ana e mais doze companheiros espirituais se afastavam, levando Deborah, deixavam no céu um rastro de luz na escuridão.

Os anos que se seguiram foram de incessante conflito para Sean. Fazia questão de abafar a dor que sentia, pela forma como perdera a mãe, lutando ativamente na sociedade secreta, que não abandonou. Muitos outros escravos perderam a vida através de suas atitudes violentas. O vício da bebida o cegava, e continuava a beber cada vez mais. Depois de alguns anos começou a escutar os espíritos que o acompanhavam e, mesmo com a perfeita sintonia que manti-nham, ele os temia. A lembrança da mãe preservava o único fio de lucidez que restava naquela alma adoecida pelo mal.

Stephanie e Daniel passaram juntos mais alguns anos, com sérias dificul-dades de convivência e aceitação. Foi Daniel quem primeiro deixou o corpo físico, nos braços da mãe, que cerrou-lhe os olhos com carinho e por ele der-ramou longo e sentido pranto. Apesar do convívio atribulado, o filho lhe faria muita falta.

Ao fechar os olhos, Daniel viu-se liberto do corpo físico, mas tal era seu condicionamento ao desencarnar que não conseguiu retomar logo a normalida-de de sua forma espiritual. Sentia-se confuso e angustiado, como um prisionei-ro recém-liberto que, tomado de assalto pela nova situação, não sabia o que fazer com ela. Entretanto, não demorou para que vislumbrasse tenebrosas enti-dades ao seu redor. Por mais que quisesse correr, sentia-se paralisado.

Assim Daniel atravessou longos anos, ora imobilizado pelo medo, ora ar-rastando-se desesperado. Embora alguns momentos de lucidez surgissem de quando em quando, eram insuficientes para que ele pudesse conscientizar-se de sua condição real e buscar ajuda.

Transcorrido muito tempo, sentiu-se arrebatado daquele lugar e voou por sobre a Terra, vendo-se depois em um ambiente de muita paz, cercado por bela natureza. Sem a capacidade de compreender o que lhe acontecia, ficou mais uma vez paralisado. Foi então que ouviu uma voz, que sua memória reconhe-cia, a cumprimentá-lo.

- Seja bem-vindo, meu irmão. Que Jesus o ampare e abençoe. Virando-se, viu Eric, que lhe tocou o ombro com carinho.

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- Pai, é você? Onde estou? - Acalme-se, filho, agora você está entre amigos. Deixou seu corpo físico

na Terra, e começa nova vida aqui. - Tantas coisas passam por minha mente... Estou confuso... Eric procurou

tranquiliza-lo: - Todos ficamos confusos depois de deixar o corpo físico. E assim mesmo:

até que nos habituemos à mudança de condição, achamos tudo impreciso. Te-nha paciência, tudo isso vai passar, e as lembranças logo virão. Até lá, descan-se. Estarei ao seu lado.

Tomando o rapaz pelo braço, convidou: - Venha, vamos para casa. Demorou um pouco até que Daniel começasse a se recordar com clareza

do que vivera na recente encarnação. Depois, outras lembranças mais antigas foram aflorando, devagar, em sua mente.

Estava sentado em um banco, contemplando o luar, quando recebeu a notí-cia da chegada de Stephanie. Triste e abatido, não teve pressa de encontrá-la. Lamentava ter feito de suas experiências anteriores grande desperdício de tempo e energia. Aos poucos, a brilhante inteligência emergia, embora apenas com Eric ele conseguisse entabular conversas mais agradáveis.

- Vou recebê-la. - Eric anunciou. - Quer vir comigo? - Não sinto vontade. - Está bem, mas precisa lutar contra essa apatia. - Acho que estou doente. - De fato está. Contudo, deve saber que as bênçãos divinas não nos aban-

donam. Fitando o amigo, Daniel, já ciente de sua última encarnaçáo em Capela,

onde fora Ferdinando, comentou: - Gostaria imensamente de retornar a Capela. Tudo o que desejo para mim

ficou lá... - Capela é hoje um planeta de regeneração, em que predominam a paz e o

amor. Seus atuais habitantes estão alinhados com as leis divinas. Para o regres-so, será necessário elevarmos muito nossa vibração; não conseguiremos viver em Capela da maneira como nos encontramos agora. É imprescindível que nos esforcemos mais, que voltemos para a Terra e conscientemente trabalhemos pela nossa transformação interior, buscando a elevação espiritual sem a qual não poderemos retornar ao nosso orbe de origem.

O outro baixou a cabeça, com tristeza crescente. - Entendo...

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Stephanie foi recebida e acolhida por Geórgia e Eric, além de outros espíri-tos amigos da família. Sua recuperação foi lenta e progressiva. Ainda que seu estado íntimo não revelasse grande alteração, havia efetuado alguns progressos em relação às romagens terrenas anteriores. Conseguira perseverar sem desis-tir, o que a fortalecera interiormente, dando-lhe subsídios morais que lhe per-mitiam traçar planos mais efetivos para uma próxima encarnação.

QUARENTA E NOVE VARIAS DÉCADAS SE PASSARAM. Stephanie, Eric, Geórgia, Daniel e outros

componentes daquele grupo espiritual estudavam e se preparavam para uma nova experiência - alguns com disposição e dedicação notáveis, outros enfren-tando muitas dificuldades para persistir na vontade de mudança. Faziam visitas freqüentes à Crosta, visando a estudar as transformações pelas quais passava o planeta, para que pudessem melhor se adequar. Esporadicamente visitavam outras colônias de padrões espirituais diversos, próximas à Terra, onde convi-viam com almas em diferentes graus de adiantamento moral, sempre com o objetivo de aprendizagem. Certa ocasião, fizeram breve visita à cidade espiri-tual "Nosso Lar", onde, por breve tempo, experimentaram a elevada vibração ambiente. Ao retornar, Stephanie permaneceu em prolongado silêncio, e por fim indagou a Eli, o instrutor que os acompanhava:

- Como atingir tamanha evolução? "Nosso Lar" é tudo o que qualquer ser humano pode desejar por morada... Como merecer tal oportunidade? O que poderia fazer para obter essa bênção?

- Você tem observado a atuação do movimento espírita? - Tenho estudado os princípios da Doutrina Espírita, porém os acho difí-

ceis... - Difíceis? O que lhe parece difícil de compreender? - De compreender nem tanto, mas de viver... - Entendo... E você, Eric? O que tem sentido? Eric, que também participara da expedição, comentou: - Os ensinamentos espíritas têm me esclarecido muito. Gostaria de poder

tornar-me espírita ao reencarnar. - Seria ótimo. Temos muito trabalho a ser feito na Terra, e precisamos de

todos aqueles que possam somar esforços, aproveitando a encarnação para se aprimorar e desenvolver. De fato, os princípios espíritas nos permitem apren-der rapidamente verdades que são fundamentais para nosso aprimoramento moral. Sem esses conhecimentos, muitos atos de renúncia e desapego nos pa-

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receriam absurdos. Graças à compreensão espiritual que a Doutrina Espírita nos proporciona, percebemos a importância da renúncia, do amor e do trabalho para nosso trabalho de renovação interior.

Tocando de leve o ombro de Eric, Eli acrescentou: - Vejo que já está bem preparado. Isso é excelente, pois o momento de re-

tornarem à Terra se aproxima. Stephanie nada disse. Percebendo sua insegurança, Geórgia aconselhou: - Precisa fortalecer a fé em Deus, minha filha. Ela procurou explicar-se: - A luta na Terra é muito grande. Temo não conseguir fazer aquilo de que

necessito. Tenho medo de não ser capaz... de falhar. É assustador pensar em retomar o corpo físico e esquecer tudo o que aprendi até agora... Gostaria mui-to de não ter de voltar...

Todos ficaram calados. Aquele já havia sido tema de estudos e muitas pa-lestras. A necessidade de sucessivas encarnações para realizar o trabalho de iluminação interior e conquistar o progresso moral já era compreendida por eles. Depois de longo silêncio, Stephanie reiterou:

- Mesmo sabendo que preciso retornar, tenho medo. Eric sorriu e disse: - Todos temos receio, Stephanie, mas temos de vencer isso e confiar em

Deus. Ele estará sempre a nos guiar. Temos testemunhado a atuação dos espí-ritos sobre os homens de boa vontade e empenhados em caminhar no bem. Eles nunca estão sozinhos, por mais difíceis que sejam os momentos que atra-vessam. Você tem visto quanta proteção recebem a todo instante. Conosco não será diferente.

- É o esquecimento que me apavora. Sinto verdadeiro pânico ao pensar que esquecerei de tudo e terei de recomeçar...

Dessa vez foi Geórgia quem abraçou a jovem e ressaltou: - Estaremos juntos, uns apoiando os outros. - Até você, que já tem tanto conhecimento, Geórgia? Também precisa re-

encarnar? - Sim, estou apenas iniciando minha trajetória de crescimento espiritual.

Muito precisa ser feito, e estou pronta para submeter-me às leis divinas em busca de nova oportunidade de aprendizado e crescimento.

Eli tomou a palavra para esclarecer: - O receio de Stephanie é compreensível e demonstra que ela tem consci-

ência de si própria e também da situação da Terra, que não podemos esquecer. O planeta passa por um momento gravíssimo de transformação. Com_efeito, há cerca de dez anos iniciou-se o processo de expurgo de almas recalcitrantes no mal, que estão sendo levadas para mundos mais primitivos. O momento de transição da Terra se aproxima e vocês viverão dentro desse turbilhão de mu-

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danças. Pelas experiências que já viveram e pela consciência que adquiriram, têm condições de trabalhar pela própria renovação, além de colaborar com outros que ainda dormem, totalmente inconscientes.

Prosseguiram por largo tempo em elevada troca de informações e impres-sões, que a todos engrandeceu. Naquela noite estavam reunidos em amplo sa-lão, onde aguardavam uma palestra preparatória, pois em breve muitos deles regressariam à Terra pelas portas da reencarnação.

A tribuna era ocupada por seis espíritos que trabalhavam com afinco pelo adiantamento humano. Ernesto se encontrava entre eles. Depois de linda e ins-piradora melodia entoada por um coral de quase cem vozes, Eli fez a abertura das atividades da noite e em seguida apresentou:

- Sei que muitos não conhecem nosso irmão Ernesto, que tem trabalhado incansavelmente pelo despertar da humanidade terrena. Ele traz importante mensagem para nos transmitir nesta noite. Venha, Ernesto, a palavra é sua.

Levantando-se, Ernesto se aproximou de Eli e agradeceu: - Obrigado por suas belas palavras, às quais cabe uma correção. Ao invés de trabalhador incansável, sou mesmo um devedor consciente.

Sei o quanto Jesus fez e faz por mim, e por isso busco incessantemente uma forma de lhe ser útil.

Fez curta pausa, até que Eli se sentasse. Então, virando-se para o público presente, falou envolvido em suave luz que lhe aureolava o corpo inteiro:

- Meus queridos irmãos, estou aqui para incentivá-los a seguirem com de-terminação as decisões que tomaram e as responsabilidades que assumiram. Como muitos de vocês sabem, sou um exilado de Capela que vive na Terra há milênios. Vivi a separação e a distância de seres amados, os quais, por enquan-to, só encontro esporadicamente. Experimentei a ascensão intelectual sem a devida elevação moral, e hoje compreendo o quanto estava afastado do Cria-dor. Na minha última encarnação em Capela, deixei que o orgulho me cegasse e fracassei em meus objetivos. Tinha condições interiores de perseverar no esforço de renovação e permanecer no orbe que se encontrava em transição, tal qual a Terra na atualidade. Descuidado, deixei que o orgulho me dominasse e, entregue à cegueira espiritual, acreditei que era auto suficiente e que a justiça divina não me alcançaria. Qual não foi minha surpresa quando despertei, sécu-los mais tarde, preso em um orbe primitivo, apartado de tudo o que já tinha conquistado e de meus afetos mais queridos! Jesus, no entanto, apesar do mal que persistia dentro de mim, aceitou-me em seu planeta e trabalhou pela minha regeneração. É por isso que, não obstante os momentos de desespero e saudade - tantos que quase me abateram e destruíram a possibilidade da encarnação -, com a proteção de Jesus e o apoio de seus mensageiros abnegados aqui estou,

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nesta noite, servindo ao Mestre e podendo compartilhar com vocês minhas experiências.

Por um instante Ernesto interrompeu-se, como a serenar as próprias emo-ções, e então continuou:

- É possível vencer o mal. Vocês reencarnarão em breve, em uma fase de grande prova para a humanidade. É a hora da renovação, da mudança vibra-cional do planeta, que de mundo de expiação e provas se transformará gradati-vamente em mundo de regeneração. Todas as religiões têm falado sobre essa transição, de uma ou de outra maneira, mas em um ponto há unanimidade: este é um momento de dor e sofrimento para a Terra, que colhe os frutos de sua relutância em seguir os ensinos de Jesus. A tarefa que os aguarda é árdua, bem sabemos, até porque a partir de agora muitos irmãos que estão situados em abismos espirituais, fugindo da luz, negando-se à reencarnação, serão compul-soriamente levados à vida física como derradeira oportunidade. O mal, portan-to, espalhará ainda mais sua influência sobre o orbe. Mesmo assim, vocês têm todas as condições de ser vitoriosos, porque grande número de falanges do bem vindas de outras dimensões espirituais se movimenta para auxiliar aqueles que mantêm o firme propósito de trabalhar para o bem de si próprios e dos que os rodeiam. Essas falanges darão sustentação aos espíritos encarnados e tam-bém àqueles que permanecem no plano espiritual da Terra, trabalhando para o progresso do planeta.

Mais um pequeno intervalo se fez, para em seguida Ernesto dar seqüência à mensagem:

- Por outro lado, como vocês não ignoram, muitos espíritos que não con-seguiram aceitar a supremacia do Criador, insistindo em permanecer no mal, ainda se iludem acreditando poder frustrar o desígnio de Deus para regenera-ção dos homens. Eles tudo fazem para atrasar o progresso e, se possível fosse, o impediriam. Mas é chegado o momento assinalado pela justiça divina para a renovação planetária. Muitos estão sendo beneficiados com a reencarnação que representa sua última oportunidade de permanência na Terra. Muitos ou-tros já_ foram retirados e enviados para mundos em estágio primitivo de evo-lução, para reiniciar o percurso de todas as etapas de lutas, pois não valoriza-ram as possibilidades que tiveram. Por isso, meus queridos irmãos, aproveitem sua encarnação. Aproveitem o tempo, a consciência que começa a despertar, e mantenham-se acordados. A Doutrina Espírita, que se fortalece no Brasil, é um eloqüente chamado à conscientização de todos aqueles que já estão preparados para compreendê-la e aceitá-la. Vençam o medo, meus irmãos, porque terão todos os recursos necessários para o êxito.

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Ernesto voltou a fazer breve pausa e depois, respirando profundamente, fi-nalizou:

- Estarei com vocês por mais dois dias, e ficarei completamente disponível para esclarecer dúvidas e ajudar em tudo o que me for possível. Uma impor-tante jornada começará, a mais decisiva encarnação que vocês já tiveram. Será nela, provavelmente, que terão melhores condições para as realizações indivi-duais de que necessitam. Que Jesus nos envolva a todos com seu amor, ilumi-nando nossas mentes e nossos corações para que sigamos firmes em seu cami-nho de luz.

Quando a preleção terminou, a emoção dominava a todos. Ele estava en-volvido em intensa luz azul e do céu desciam pequenas gotas de energia sobre os presentes, fortalecendo, curando e auxiliando. Foi a muito custo que o salão por fim se esvaziou. Todos queriam passar o maior tempo que pudessem na companhia daquela alma que os inspirava com simplicidade e sabedoria.

Alguns meses mais tarde, muitos dos que haviam participado daquela reu-nião retomavam um corpo na Terra e iniciavam uma de suas mais importantes reencarnações.

A resistência contra o bem se intensificava, e muitas falanges de espíritos infelizes e recalcitrantes no mal espalhavam sua entre todos os povos. Pressen-tiam, ainda que inconscientemente, que era chegado o momento da transição da Terra. A Doutrina Espírita - descortinando a essência das verdades espiritu-ais ensinadas por Jesus - tornava-se alvo primordial dos ataques das trevas. Para seus agentes, era imperioso calar os seguidores da doutrina que trazia no bojo a possibilidade de despertar a consciência dos homens, tal como Jesus fizera aos primeiros cristãos e, depois, alguns reformadores haviam tentado.

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Aqueles espíritos recalcitrantes no mal tinham urgência de ampliar sua á-

rea de ação. Deviam r is suas consciências, para que não

TERCEIRA PARTE

"Homens, por que lamentais as calamidades que vós mesmos amontoastes sobre a vossa cabeça? Desprezastes a santa e divina moral do Cristo; não vos admireis de que a taça

da iniqüidade tenha transbordado por toda a parte." Evangelho Segundo o Espiritismo

Toda reforma terá de nascer no interior. Da iluminação do coração vem a verdadeira cristianização do lar, e do aperfeiçoamento das

coletividades surgirá o novo e glorioso dia da Humanidade.

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NOME DAS PERSONAGENS NAS DIVERSAS ENCARNAÇÕES

CINQUENTA NOVA YORK, DEZEMBRO de 1997. Sentada no centro da igreja imensa, Isa-

bela observava a perfeição da arquitetura e a preciosidade das pinturas estam-padas nos vitrais. A luz entrava pelas janelas enormes e valorizava ainda mais as obras de arte espalhadas por todo o templo. Depois de examinar com aten-ção os pormenores, percebeu que na parte superior da nave a luz era intensa-mente azul. Levantou a cabeça e viu os amplos vitrais que permitiam a entrada da magnífica luminosidade, a qual, contrastando com o mármore claro, acen-tuava o brilho no alto da famosa catedral de Saint Patrick. Isabela esqueceu as horas, fascinada por aquele templo encantador. Esqueceu o barulho do trânsito que vinha de fora, o corre-corre das centenas de americanos e turistas que an-davam apressados, subindo e descendo dos automóveis, entrando e saindo das luxuosas e apinhadas lojas de departamentos. Sentia-se transportada para longe daquela realidade, muito longe; embevecida, pensou em Deus, o ser supremo que lhe parecia distante e ocupado.

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Sem saber quanto tempo passara ali, ela se ergueu devagar, sem vontade de ir embora, e caminhou até alguns nichos com lindas esculturas, estudando cada detalhe. Ainda apreciava as obras quando ouviu uma voz conhecida sussurrar:

- Isa, vamos, você está aqui há mais de duas horas... Já fiz compras, já al-mocei, e você não aparece...

A jovem se virou, como se voltasse de um lugar distante: - Estou encantada com esta catedral, Rafael. Nunca vi uma igreja tão lin-

da... - Você nunca esteve aqui antes? - Não, na primeira viagem a Nova York não conseguimos vir à catedral... Rafael concordou, relembrando: - É, não sobrou tempo. Olhando em torno mais uma vez, ela comentou enquanto saíam: - É muito bonita, estou impressionada... - E uma construção belíssima e, certamente, uma das mais importantes dos

Estados Unidos. - O que me chamou a atenção é que fica encravada em um lugar movi-

mentado assim... Bem no meio de tantas lojas e atrações turísticas... Contudo, quando se está lá dentro, é tão calmo...

- Gostaria de vir à missa de Natal? É muito bonita... - Você já assistiu? - Sim, algumas vezes. Acho que você gostaria. Ela suspirou fundo e, pensando um pouco, respondeu: - Não sei... O pai e a mãe não vão querer... - Por que acha que não? - Conhece o papai, ele não gosta de igrejas... Muito menos de cultos... E

em seu estado, acho que não teria mesmo condições para vir... - É uma pena, pois é um evento especial: um grande coral entoa algumas

canções, a igreja fica lotada, é emocionante... Ao alcançarem a rua, ele indagou: - E agora? O que quer fazer? Já terminou as compras? - Ainda faltam alguns presentinhos, mas o dinheiro que destinei para isso

está acabando Ao atravessarem a esquina, um homem precipitou-se sobre Isabela; parou

diante dela e mendigou, ríspido: - Algum dinheiro, preciso de algum dinheiro. Rafael tentou rechaçá-lo, porém o homem, hirto, insistiu: - Dinheiro, preciso de dinheiro para minha família.

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Isabela olhava para aquele estranho e sentia-se inexplicavelmente atraída. Ficou paralisada, de olhos fixos no homem loiro, de olhos muito azuis, en-quanto Rafael insistia para que ele se afastasse. Sem conseguir desviar os o-lhos, Isabela enfiou a mão na bolsa, tirou uma nota de 10 dólares e colocou-a nas mãos dele.

- Compre algo para comer, você está precisando. O estranho olhou para o dinheiro e resmungou, amassando a nota entre as

mãos. Ao sair, olhava para Isabela por sobre os ombros. Assim, distraído, pi-sou no meio-fio e foi atingido por um carro que desviava de pedestres. Caiu sem sentidos. Isabela, que lhe acompanhava os movimentos, gritou:

- Meu Deus, ele foi atropelado! Virou-se, pronta para correr na direção do acidente, quando Rafael a segu-

rou pelo braço. - Isa, o que você vai fazer? - Vou ver se ele precisa de ajuda. - Está louca? Nem conhece aquele homem... - Ele me pareceu tão familiar... É como se já o conhecesse de algum lu-

gar... - Você está delirando, Isabela. Desvencilhando-se do irmão, ela teimou: - Quero ver se posso ajudá-lo. Rafael caminhou ao lado da irmã, tentando dissuadi-la. Ela foi até a beira

da calçada, onde já se formara um aglomerado de pessoas. O homem continu-ava inconsciente, estirado no chão, e a jovem, passando por entre as pessoas, dizia:

- Deixem-me passar, sou médica... Com esforço alcançou o homem estendido na rua. Ajoelhou-se e auscul-

tou-lhe o coração. Os batimentos estavam fracos. Tomou o pulso e verificou o ritmo cardíaco: também fraco. A respiração estava sumindo. Ela, então, pediu que todos se afastassem e fez de imediato uma massagem no coração. Auscul-tou novamente e não constatou alteração. Repetiu a tentativa, e viu que ele enfraquecia mais. Tomada de súbita angústia, debruçou-se sobre o homem, massageando o coração com ansiedade; os batimentos ficaram cada vez mais débeis, até pararem por completo. Antes que terminasse o socorro que tentava prestar, Rafael estava ajoelhado ao seu lado. Quando percebeu que o homem estava morto, Isabela ergueu-se, entristecida. Dois paramédicos se aproxima-ram com uma maça e ela informou em inglês fluente:

- Não adianta, acabou de morrer. Fiz o que pude, mas não reagiu. Vendo a expressão interrogativa dos dois, ela explicou, mostrando o do-

cumento:

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- Sou médica e faço residência no Brasil. Procurei reanimá-lo com os pro-cedimentos básicos, e não adiantou.

Um dos paramédicos perguntou: - Algum ferimento aparente? Como Isabela falava e compreendia perfeitamente o idioma, respondeu de

pronto: - Não, deve ter alguma lesão interna... Isabela esperou enquanto os paramédicos examinavam o homem e, frus-

trada, virou-se para sair, quando escutou: - Não fique triste, ainda não chegou a minha hora... Voltou-se assustada, ao

reconhecer a voz daquele que a abordara minutos antes. Estarrecida, viu a figura do homem, de pé, ao lado de seu

corpo físico, que estava sendo colocado na maça. Muda, sem compreender, ouviu-o de novo:

- Não se assuste, sou eu mesmo. Paralisada, Isabela observou quando o homem subiu na ambulância, sem

ser visto, junto da maça que levava seu corpo. Antes de fecharem a porta, ele disse:

- Obrigado pela ajuda e pelo dinheiro. Minha família precisa muito dele... Logo que a ambulância saiu com a sirene ligada, Rafael indagou: - O que foi? Você está pálida... Como ela não respondia, ele insistiu: - O que foi, doutora, está passando bem? Isabela! A médica o encarou. - O que você tem? - perguntou o rapaz. - Eu vi o espírito daquele homem. - O quê?! - Ele estava perto do corpo, exatamente do mesmo jeito, com a roupa igual,

como se fosse uma cópia fiel. - Isabela, acho que ficou impressionada demais... Deve ser por causa do es-

tado do pai. Você está mais sensível por causa disso. - Não, Rafael, eu sei perfeitamente o que vi. O homem estava ao lado de

seu corpo e falou comigo. Até me agradeceu pela ajuda. - Ele foi embora? - Entrou na ambulância, acompanhando o próprio corpo. Após breve pau-

sa, ela fixou ao irmão: - Estou apavorada... Olhando-a com desconfiança, o cético irmão tomou-a pela mão. - Vamos comer alguma coisa. Você está sem almoço até agora? Suspiran-

do, ela confirmou: - E sem café da manhã também. Não consegui comer nada hoje cedo.

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- Então venha, tem de se alimentar. Entraram em um restaurante e pediram um lanche. Isabela não parava de

pensar na imagem etérea do homem que vira ao lado do próprio corpo. Tomou alguns goles de café e retomou a questão:

- Preciso saber quem é aquele homem e o que aconteceu com ele. - Por favor, Isa, você precisa comer e depois descansar. Está sob muita

pressão. Ela engoliu o resto do lanche e levantou-se decidida: - Vamos, Rafael, você tem de me ajudar. Para onde acha que levaram o

homem? - Ele estava morto, não é? - Estava... Quer dizer, não sei mais. - Estava ou não estava, Isabela? Pegando o pesado casaco, ela o vestiu, enrolou o cachecol no pescoço, co-

locou as luvas e falou, dirigindo-se para a porta: - Temos de saber para onde o levaram. Rafael pagou a conta e seguiu a irmã; alcançou-a na calçada. - Isabela, estou ficando preocupado. Você está estranha e distraída há di-

as... E agora essa reação descontrolada e inexplicável. O que está havendo? - É que acabo de viver uma experiência inexplicável, mas absolutamente

real. Vi um homem morrer na minha frente, para logo em seguida ouvi-lo falar comigo. E espantoso, mas aconteceu. Quero saber quem é ele.

Enquanto andavam em busca de um táxi, Rafael tentava dissuadi-la. Como se não o escutasse, ela falou:

- Não sei por que, tenho a nítida sensação de que conheço aquele ho-mem... Quando ele se afastou, foi como se eu soubesse que algo lhe acontece-ria... Como se já tivesse vivido aquilo tudo... Foi uma sensação muito esquisi-ta. Devo conhecê-lo de algum lugar. Pode ser um amigo... Preciso achá-lo...

- Você já tinha passado por isso, Isabela? Ouvi dizer que muitas pessoas são capazes de conversar com os espíritos. Será que você tem essa capacidade?

Ela fitou o irmão e relembrou: - Já estive em um centro espírita, antes de entrar na faculdade, a convite de

uma amiga. - E por que foi? - Eu tinha muitos pesadelos, e às vezes parecia que escutava vozes... - Como assim? Você nunca me disse isso. - Não gosto de falar no assunto. Quando era mais jovem tinha dificuldade

para dormir; de vez em quando, estava deitada e era como se muitas pessoas

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falassem simultaneamente ao meu redor. Comentei isso com uma amiga e ela disse que poderia ser mediunidade...

Isabela silenciou por instantes. Encarou o irmão, também calado, e inda-gou:

- O que será isso, Rafael? - Não conheço nada desse assunto. E se quer saber a verdade, não me inte-

resso muito. - O que devo fazer? Rafael abriu largo sorriso e, prático como sempre fora, sugeriu: - Quer minha opinião? Esqueça isso de uma vez e vamos embora. O pai e a

mãe devem estar preocupados. - Vou ligar para eles e ver como estão. Ela tirou o celular da bolsa e telefonou para os pais. A mãe atendeu, con-

versaram e logo desligou. - Está tudo bem. - Como está papai? - Muito ansioso. - É natural. - E, amanhã saberemos o parecer dos especialistas daqui... O que você a-

cha, sinceramente? - Penso que o caso dele é grave. Os olhos de Isabela se encheram de lágrimas. - Acha que ele não vai conseguir... Procurando acalmar a irmã, Rafael a-

menizou: - Eu não disse isso, Isa, apenas temos de ser realistas. O caso dele é difícil;

ainda assim, existem relatos de casos semelhantes em que houve sobrevida de muitos anos. Eu pesquisei.

- Em que condições? - Diversas. - Mas você não acredita em tratamentos alternativos, não é? Ouvi sua con-

versa com o papai quando chegamos. - Não acredito mesmo. Temos estudos sérios sinalizando as melhores me-

didas a serem adotadas... - Só os estudos que interessam são realizados, você sabe disso. Muitas des-

cobertas efetivamente importantes ficam sem comprovação por falta de inte-resse financeiro dos laboratórios.

- Olhe, não vamos discutir, está bem? Temos pontos de vista diametral-mente opostos sobre essas questões.

- De fato, temos.

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Isabela não hesitou em retornar ao que a intrigava: - Depois falaremos sobre isso. Agora temos de achar aquele homem. - Por que, Isa? - Não me peça que explique, só sei que precisamos achá-lo. - Para quê? Ele está morto, o que quer saber? - Não sei, mas preciso vê-lo de novo. - Você e seus impulsos... É a mesma Isabela de sempre... Ela agarrou o ir-

mão pelo braço: - Venha, vamos logo.

CINQUENTA E UM ATRAVÉS DE TELEFONEMA a um amigo que era paramédico, Rafael conse-

guiu localizar o hospital para onde o homem fora levado. Chegando à recep-ção, Isabela perguntou à atendente:

- Ele está no necrotério? - Não, senhora; está na unidade de terapia intensiva. Isabela olhou para Ra-

fael, surpresa, e indagou: - Por que na UTI? - Olhe, moça, não posso dar maiores informações. A senhora é parente de-

le? - É meu... primo. Estava com ele quando ocorreu o acidente. - Os paramédicos não reportaram... - Houve muito tumulto na hora... - Ele está no leito 12. O médico responsável é o doutor Robert Anderson. Os dois agradeceram e procuraram pelo médico, que esclareceu: - Ele sofreu uma parada cardíaca e estava tecnicamente morto. De súbito,

na ambulância, voltou a respirar e o coração recomeçou a bater. Embora muito fraco, está vivo. Agora está sedado.

- Posso vê-lo? Percebendo a interrogação no rosto do médico, logo justificou: - Sou prima dele; os meus tios são de longe e quero mandar notícias... - Ele está ali. Isabela aproximou-se temerosa do vidro de onde podia ver o homem deita-

do, ligado a vários aparelhos. Notou o corpo espiritual que estava na cama, sentado ao lado do corpo físico. Soltou um grito abafado e Rafael se espantou:

- O que foi? -Nada... Dirigiu-se ao médico: - Podemos ficar aqui um pouco?

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- Apenas alguns minutos. - Tudo bem. Assim que o médico se afastou, Rafael questionou: - O que deu em você? Ela respondeu cochichando: - Ele está lá dentro. - E lógico que está. - Não, você não entendeu... Estou vendo o espírito dele outra vez. Isabela continuou a observar pelo vidro por mais algum tempo, e então disse: - Preciso falar com ele. - Não pode entrar na UTI sem autorização! Aqui não é o Brasil. - Não importa, vou entrar. Abriu a porta e entrou. Aproximou-se da cama e fitou as duas imagens do

mesmo homem que tinha diante de si, adormecido e desperto. Logo que a viu ele disse:

- Você veio atrás de mim... - Quem é você? - Sou Petter O'Neil. Mais uma vez, obrigado pela sua ajuda. Poderia avisar minha família? Minha mãe deve estar aflita com minha de-

mora. Além do mais, ela está doente e precisa de remédios, por isso eu pedia dinheiro. Estou sem trabalho...

- Vou avisar sua mãe. Com os olhos marejados, Peter agradeceu: - Quando estiver recuperado, agradecerei como se deve. - Qual é o endereço? Peter explicou como chegar em sua casa, informou o nome dos remédios

que a mãe tomava e concluiu: - Estou cansado, com sono... - acomodou-se sobre o corpo físico. - Você

volta para me ver? Hesitante, frente aos corpos idênticos, ligeiramente dissociados, Isabela

respondeu: - Sim, volto. O homem logo adormeceu diante do olhar confuso da jovem. Uma enfer-

meira entrou e a advertiu: - Não pode entrar aqui... Fortemente impressionada, Isabela guardou o papel com o endereço e o

nome dos remédios; depois mostrou seu documento à enfermeira, explicando: - Sou médica. - A ordem vale para todos.

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- Sou prima dele e precisava ver como estava. - Saia já, ou chamarei os seguranças. Isabela saiu depressa, e puxou Rafael pelo braço. - Venha, vamos falar com a mãe dele. - Como assim? - Ele me deu o endereço da família; a mãe precisa de ajuda. - Isabela... - Sei que parece loucura, mas eu o vi, falei com ele. Isso é real... - Você está ficando maluca e eu também... - Vamos, Rafael, logo saberemos se estou louca ou não. Se encontrarmos o

endereço e tudo for como ele disse, você será testemunha de que não estou tendo alucinações... Se for verdade, estará provado que o espírito existe... Já pensou nisso?

Dirigiram-se a Nova Jersey, passando bem próximo à casa de Rafael, onde a família estava hospedada.

O rapaz, que se formara administrador de empresas e fazia um curso de es-pecialização em negócios, era ambicioso e desejava, acima de tudo e a qual-quer custo, alcançar sucesso profissional.

Depois seguiram pela avenida até chegarem a uma região mais afastada. Identificando o nome pela anotação que fizera, Isa-bela avisou:

- Esta é a rua. Andaram até o final, sem encontrar o número informado pelo homem. Vol-

taram e procuraram na rua toda mais duas vezes, sem sucesso. Estavam prestes a desistir quando avistaram uma mulher passeando com dois cachorros. Rafael se aproximou e, abrindo o vidro, indagou:

- Senhora, por favor, sabe se existe este número nesta rua? Estamos procu-rando a casa de Peter O'Neil, mas não achamos o número 723.

A mulher apontou: - É aquele trailer lá no fundo. A placa com o número está quase apagada. Ele agradeceu, fechou o vidro e logo parou perto de uma caixa de correio

meio despedaçada pelo tempo. Lá, quase invisível, estava o número 723. O coração de Isabela batia descompassado. Caminhou até o pequeno trailer e bateu. Escutou uma voz abafada:

- E você, Peter? A jovem respondeu: - Sou Isabela. Trago notícias de seu filho... A porta se abriu e uma senhora

idosa a examinou de cima a baixo. - Onde está Peter? - Ele... Bem... Sofreu um acidente...

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Atordoada e trêmula, a mulher sentou-se. - Ele está morto? - Não, está vivo e muito preocupado com a senhora... Rafael apertou o bra-

ço da moça, que o ignorou: - Podemos entrar? Abrindo a porta da pequena moradia, a mulher respondeu: - Entrem. Afastando algumas almofadas de um velho sofá, ela ofereceu o lugar para

que se sentassem e se apresentou, estendendo a mão: - Sou Dorothy O'Neil. O que houve com meu filho? - Ele sofreu um acidente, foi atingido por um carro... - Está muito machucado? - De fato, ainda não sabemos. Teve uma parada cardíaca, mas foi ressusci-

tado pelos paramédicos. Fechando os olhos, a mulher exclamou: - Meu Deus! - Calma, senhora, ele está no hospital. - Está acordado? Isabela pensou um pouco, depois respondeu: - Às vezes sim, às vezes não. - O que quer dizer? - Ele acorda e adormece, e está sendo mantido sedado a maior parte do

tempo. - Graças a Deus conseguiu avisar você... Aliás, quem... - Sou uma amiga dele, meu nome é Isabela. Com um fundo suspiro, a mulher - que aparentava imenso cansaço - aco-

modou-se na poltrona e falou, limpando as lágrimas: - Meu filho me ajuda muito. Ele é bom para mim, apesar de ter tantos pro-

blemas... Apontou para o fundo do trailer, onde dormia uma menina de cerca de dois

anos. - A esposa o abandonou com a filha pequena. Sumiu sem deixar sequer um

recado. Uma tristeza. Peter tem de cuidar de mim e filha... E desde que a mu-lher o deixou, não arranja emprego. Tenho problemas de coração e tomo re-médio que ele, não sei como, consegue para mim.

- É este? - Isabela colocou-o nas mãos dela. - Esse mesmo. - Ele pediu que o trouxéssemos.

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A mulher tomou o medicamento e agradeceu, querendo mais informações para ir ver o filho. Não demorou e eles saíram da pequena residência a cami-nho de casa. Ambos seguiam calados. Pouco antes da chegada, Rafael falou:

- Isabela, você não vai contar a ninguém o que aconteceu hoje, não é? A jovem negou com a cabeça. - Antes vou precisar compreender melhor o que houve. Ao entrar depara-

ram com a mãe, Ana Lídia, muito agitada. - Ainda bem que chegaram. Como demoraram! - O que foi, mãe? - Seu pai não passa bem. Está angustiado... Isabela, procurando acalmá-la,

comentou: - É normal, mãe. Vai fazer muitos exames amanhã e deve estar com receio. - Não, filha, ele está abatido mesmo, parece cansado. Dessa vez foi Rafael

quem comentou: - Também tenho notado o abatimento dele. - Por onde andaram? - Ana indagou. Isabela mostrou as sacolas colocadas

no hall: - Fizemos umas comprinhas... - Por isso demoraram tanto? Fiquei preocupada. Afinal, estamos em um

país estrangeiro, com seu pai nesse estado, e vocês nos deixam sozinhos o dia todo?

Abraçando-a, a filha respondeu: - Pronto, já estamos aqui e está tudo certo. Ele está deitado? - Está. Isabela beijou a face da mãe e disse: - Vou subir para vê-lo. - Faça isso. Ana virou-se para Rafael: - Vocês jantaram? A comida está pronta, é só esquentar.. Erguendo-se rá-

pido, Rafael respondeu: - Que bom! Estou morrendo de fome...

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CINQUENTA E DOIS POR ORIENTAÇÃO DO médico que coordenava os exames, Márcio permane-

cia imóvel deitado sobre uma maça, em um equipamento de última geração (que realizaria os exames de tomografia computadorizada). A máquina se mo-vimentava e ele, tenso e preocupado, prendia a respiração sem perceber. Escu-tava a filha pelo aparelho de som da sala:

- Respire, pai, respire normalmente. Para Márcio, os exames duraram uma eternidade. Quando finalmente o

médico o recomendou que se vestisse e esperasse na sala contígua, ergueu-se devagar, exaurido. Aguardou sentado na ante-sala, já com Ana Lídia, que o acompanhava em todas as peregrinações que precisara fazer desde a descober-ta de um tumor no pulmão. Ela permanecia otimista, apoiando-o em todos os momentos. Agora, recorriam a um dos grandes especialistas em Nova York, na expectativa de um diagnóstico preciso e do melhor tratamento disponível. De-tentor de boa situação financeira, Márcio dispunha de seus recursos em busca de alternativas para recuperar a saúde.

Pouco depois, Isabela entrou na sala conversando com o médico que efetu-ara os exames. O doente encarou a filha, ansioso. Ela acomodou-se ao seu lado e disse:

- Pai, o médico está avaliando os exames cuidadosamente, e pede que re-tornemos amanhã.

Ana Lídia antecipou-se, perguntando ao médico que estava com a filha: - Não podem adiantar nada agora? Você acompanhou os exames, o que a-

cha? - Acompanhei por boa vontade do médico e pela indicação do doutor Fer-

raz, porém não tenho muita experiência. - Mas escutou o que eles conversavam, não foi? Deve saber alguma coisa. Abraçando a mãe, Isabela pediu: - Acalme-se, dona Lídia, por favor. Precisamos de sua serenidade e confi-

ança para nos fortalecer. Ana Lídia deixou-se acolher nos braços da filha por instantes, e então lim-

pou as lágrimas: - Eu não sou de ferro... Estou preocupada também. Por mais que confie e

saiba que sairemos desta situação, às vezes sinto-me angustiada, como todos... - Eu sei, mãe, você tem todo o direito de expressar sua dor... No entanto, o

fato é que eles querem analisar os exames com todo o cuidado. Não há outro jeito, teremos de retornar amanhã.

Tocou as mãos de Márcio:

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- E você, pai, como se sente? - Atordoado. - E natural. A jovem médica pegou o pesado casaco e os outros agasalhos. - Vamos? Tenho uma sugestão a fazer. Vocês pouco vieram a Nova York,

ficando a maior parte do tempo em Nova Jersey. Podemos ir até o Rockefeller Center ver a decoração de Natal... A gigantesca árvore já está montada. Que tal nos distrairmos um pouco?

Lentamente, Márcio juntou suas coisas enquanto pensava; depois olhou a filha dizendo:

- Não me sinto animado para andar por aí, muito menos para ver árvore de Natal gigante.

Isabela abriu largo sorriso e sugeriu: - E que tal uma peça na Broadway? Um musical? O pai fitou a filha e a es-

posa, refletindo: -Não sei... - Vamos, pai, é bom que você se distraia, veja coisas bonitas... - Não consigo parar de pensar na doença, Isabela. Como pode pedir-me pa-

ra ir ao teatro, se não sinto ânimo para nada? - E por isso mesmo que você precisa se esforçar. Lembre-se: atitude posi-

tiva é parte do tratamento de qualquer doença. Ana Lídia foi irônica: - Aprendeu isso na faculdade? Isabela deu ligeiro sorriso. - Na verdade li em alguns livros... Não propriamente da faculdade... - Aquelas baboseiras espíritas de que gosta? - Pai, não fale assim. Sabe que gosto do Espiritismo; apesar de não o co-

nhecer muito, o pouco que leio acho interessante. Tencionando mudar de assunto, o pai indagou: - Acha que encontraremos ingressos ainda para hoje? - Claro. Vou ligar para o Rafael e pedir que providencie algo bem agradável. - E acha que seu irmão virá conosco? - Por que não? Ele adora divertir-se e ama o teatro. Isabela saiu falando ao

celular e logo retornou: - Pronto, vamos para casa descansar um pouco. Mais tarde, encontraremos

Rafael para jantar e, em seguida, iremos ao teatro. Entre as ofuscantes luzes de neon da Broadway, Isabela e Rafael consegui-

ram proporcionar aos pais uma noite divertida. Mais tarde, ao deitar-se, ela mergulhou num sono agitado no qual via o pai, que lhe parecia outra pessoa, com quem não conseguia relacionar-se. Depois se afastava dele e via Peter no

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hospital, como se tivesse de escolher entre os dois. Acordava e adormecia vá-rias vezes, revirando-se na cama. Sentia-se perturbada, como se buscasse al-guma coisa escondida dentro de si própria.

Despertou cansada e não demorou a se dirigir ao hospital, com os pais, pa-ra as avaliações da situação de Márcio. O médico informou, direta e objetiva-mente:

- Seu caso é grave: o tumor tomou um terço do pulmão direito. O teste do laboratório confirmou que se trata de um tumor maligno, de difícil tratamento.

Ana Lídia recebia com os olhos arregalados o diagnóstico do especialista, sentindo como se o chão lhe fugisse aos pés. Apertava a mão da filha, à medi-da que escutava. À primeira pausa do médico, indagou:

- É aconselhável uma cirurgia? - Sim, quando ele estiver mais forte. Por ora, prescreveremos a quimiote-

rapia, para conter o avanço do tumor. - Ele se espalhou para outros órgãos? - Não, felizmente. O senhor tem sorte, pois em geral esse tipo de tumor se

espalha com rapidez. No seu caso, ele está restrito; o único órgão afetado foi o pulmão direito. O outro, por enquanto, está limpo.

Dessa vez foi Isabela quem interpelou o médico: - No Brasil nos disseram que poderia haver outro, pequeno, no pulmão es-

querdo... - Sim, vi nas observações do médico que cuida seu pai lá, mas não é o ca-

so; não confio muito no exame anterior, e o atual mostra que o pulmão esquer-do está limpo.

Isabela ajeitou-se na poltrona e balbuciou: - Menos mal. Ana Lídia ponderou: - Quer dizer que a situação não é tão ruim... O médico procurou esclarecer: - O problema é o tipo de tumor, muito invasivo. Pode espalhar-se de um

momento para outro, por isso deve ser controlado e extirpado. Embora haja o risco de progredir em uma ou duas semanas, de modo a dificultar o controle, é possível que se mantenha da forma como está. Seu caso precisa ser tratado com muita atenção, o que poderá ser feito no Brasil mesmo; não há necessida-de de ficarem aqui, onde os recursos utilizados serão os mesmos de lá. Por outro lado, quando o momento se apresentar, a cirurgia poderá ser realizada conosco. Além do mais, o tratamento aqui é bastante dispendioso.

Voltando para o médico os olhos cheios de lágrimas, Lídia questionou, com a voz trêmula de emoção:

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- Por que, doutor? Por que meu marido contraiu uma doença como essa? Qual é a causa?

- Não há uma resposta simples e única para a sua pergunta. De fato, há di-versas possibilidades.

Descontrolada, ela desabafou: - Não sabem dizer, é isso? Tanta ciência, tantos equipamentos, tantos co-

nhecimentos e não sabem dizer o que originou a doença. - E que as possibilidades são muitas... - Isso é uma evasiva. Vocês não sabem... Tentando controlar a mãe, Isabela fitou o pai, que guardava silêncio: - Pai, você tem alguma dúvida? Quer saber alguma outra coisa? - Não, quero ir embora. De nada me adiantou vir até este hospital. Mesmo

que seja mais preciso, o diagnóstico não é diferente do que tive no Brasil. A jovem argumentou: - Só que agora temos maior clareza da situação, pai, e poderemos decidir o

melhor tratamento. Precisávamos ter certeza; eu não sossegaria enquanto você não viesse fazer esta avaliação.

Levantando-se, Márcio aduziu: - Não há mais nada a ser feito aqui. Quero ir para o Brasil; sinto falta de

minha casa, de meus cachorros... Enfim, quero voltar. O médico assentiu com a cabeça, dirigindo-se a Isabela: - E verdade. Pelo menos por enquanto, nada há a ser feito aqui. Ele deve

iniciar o tratamento no Brasil o mais breve possível. Isabela despediu-se do médico, indicado por seu professor, e voltaram para

a casa em Nova Jersey. Isabela acomodou os pais e quis saber: - Está certo de que não quer passar o Natal aqui? Faltam tão poucos dias...

E Rafael? Ficará sozinho outra vez... - Quero ir para casa; não tenho ânimo algum para celebrar essas baboseiras

de Natal. Se ainda estivesse com saúde me animaria a fazer compras, mas no estado em que me encontro nada me entusiasma. Quero ir agora mesmo. Se Rafael de fato se importar, virá conosco.

Sentando-se ao lado do pai, Isabela acariciou-lhe as mãos: - Não é assim, pai. Sabe que Rafael tem seu trabalho, seus compromissos,

não pode sair de uma hora para outra. O pai permaneceu calado e Isabela ergueu-se: - Está bem, vou providenciar nossas passagens. A jovem ligou para o irmão e o informou da situação. - Pode deixar que providencio as passagens e as levo hoje à noite.

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Quando os pais se recolheram para descansar, Isabela sentou-se diante da lareira acesa. Ainda que estivesse muito apreensiva com a situação do pai, a imagem de Peter não lhe saía da cabeça. Precisava revê-lo. Escreveu um bilhe-te para a mãe, explicando sua saída, e foi até o hospital. Aproximou-se do vi-dro que dava para a UTI e viu que ele não estava mais lá. Correu até a enfer-meira de plantão, aflita.

- Onde está Peter O'Neil, que ocupava o leito 12? Sou prima dele... A enfermeira procurou o registro no computador: - Deixe-me ver... Aqui. Foi transferido para o quarto. - Está melhor, então... - Ele apresentou rápida melhora e pôde ser transferido para o quarto de a-

companhamento semi-intensivo. Isabela mostrou seu documento e indagou, tentando controlar sua ansiedade: - Posso vê-lo? De posse do número do quarto, logo ela estava diante da porta. Respirou

fundo e pensou: o que fazia ali, que lógica havia em visitar uma pessoa que não conhecia? Mas algo dentro dela era mais forte e a impulsionou; bateu e entrou. Encontrou Peter acordado. Ele sorriu ao vê-la, e Isabela sentiu o corpo estremecer. Aquele sorriso lhe parecia tão familiar como se os dois se conhe-cessem de longa data. Seu coração disparou e suas mãos ficaram úmidas. A-proximou-se devagar e ele falou, em seu inglês nítido:

- A moça dos meus sonhos... Isabela respondeu com uma pergunta: - O que está dizendo? - Tenho sonhado com você, desde o acidente... Ou foi antes? Agora não me

lembro. Isabela olhou para ele sem saber o que dizer. - Esteve com minha mãe? - Peter indagou. - Você a ajudou... - Como sabe? - Não posso explicar, apenas sei. - Eu estive com sua mãe e vi sua filha. Ambas estão bem. Levei os medi-

camentos para ela. Houve breve silêncio, quebrado por ela: - O que lhe falaram sobre o seu estado de saúde? - Disseram que vou ficar bem e logo poderei ir para casa. Um médico entrou para a visita diária. Verificou as anotações do prontuá-

rio, depois olhou Isabela de cima a baixo. - Quem é você? Antes que ela pudesse responder, Peter falou: - É minha noiva, doutor. Não é bonita? O médico limitou-se a sorrir.

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Isabela sentiu-se paralisada por alguns instantes, sem saber se desmentia ou ficava quieta. Fitou Peter, depois o médico.

- Como ele está, doutor? - Vem melhorando a cada hora que passa. O fato é que sua recuperação é

incrível. - Quais foram os exames? - Estou dizendo que ele está bem. - Gostaria que me informasse que exames realizaram. - Quer avaliar nossa conduta, senhora? Tirando da bolsa seus documentos, ela mostrou um deles ao médico. - Eu sou médica também, e estou acompanhando de perto a situação de...

meu noivo. O médico, meio a contragosto, passou a relatar em detalhes os procedimen-

tos adotados. Ao final, Isabela se tranqüilizou e disse a Peter, depois que o médico saiu:

- Você está surpreendentemente bem. Não há explicação lógica. - Você o sabatinou bastante... - Queria ter certeza de que você está bem. Peter fixou nela seus olhos de

intenso azul: - Por que se interessa? - Não sei, mas aqui estou movida por uma força maior do que minha com-

preensão... Isabela retornou ao hospital na manhã seguinte; era o dia em que voltaria

para o Brasil com os pais. Peter, sentado, tomava o desje-jum. Surpreendeu-se ao vê-la tão cedo.

- Bom dia, Isabela. O que faz aqui a esta hora? - Estou deixando o país hoje, Peter. Meu pai, como já lhe disse, está doente

e vai continuar a se tratar no Brasil, assim que chegarmos. Peter emudeceu por um momento, depois fitou a jovem e disse: - Se pudesse, eu viajaria com você para seu país. - Você nem me conhece... Ele tomou as mãos de Isabela, com suavidade. - Nem você me conhece... No entanto, está aqui. Apertando-lhe as mãos

entre as suas, prosseguiu: - Vamos nos falar por telefone, e quem sabe por um milagre consigamos

nos ver outra vez... - Peter, isso tudo é loucura; nós não sabemos nada um do outro...

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- Eu sei o que sinto por você e percebo o que sente por mim. O que impor-tam as convenções? É o coração que fala mais alto, Isabela, e ele não pode ser controlado... Melhor é nos entregarmos...

Conversaram durante todo o horário de visitas. Ao se despedir e deixar o quarto, Isabela percorreu os corredores do hospital pensando que tudo aquilo era uma loucura... Sua mente dizia que ela não poderia continuar em contato com Peter. Seu coração, ao contrário, sentia-se mais e mais atraído por aquele homem, um completo estranho.

CINQUENTA E TRÊS

Do OUTRO LADO de Manhattan, Susan entrou na cobertura trazendo nas mãos felpuda toalha. Vestia elegante tailleur preto que lhe realçava ainda mais os cabelos ruivos e alongava sua fina silhueta. O barulho de seus saltos pontia-gudos soava ritmado no piso de madeira que circundava a piscina coberta, e-moldurada por enorme vidraça que proporcionava belíssima vista da Estátua da Liberdade. Aproximou-se da borda, agachou-se e aguardou que Lawrence tirasse a cabeça da água para dar-lhe um recado:

- Tem compromisso em uma hora; precisa se apressar. Ele nadou mais duas voltas na piscinas, depois saiu calmamente; enxugou-

se, vestiu o roupão e sentou-se. - Vou tomar o café da manhã aqui. Peça para trazerem. - Vai se atrasar. - Você está muito preocupada. Afinal, que compromisso é esse que a faz

tão tensa? - Não vá dizer que esqueceu. Mordendo uma maçã e apreciando o sabor, ele respondeu, depois de engolir: - Ainda preocupada com o pessoal da FDA27? - Sabe o que eles querem, não sabe? - Ora, e daí? - Não estão dispostos a ceder outra vez. Depois de sorver uma xícara de café quente, ele disse, levantando-se:

27 A FDA (sigla que significa Foods and Drugs Administration) é uma agência do De-partamento de Saúde dos Estados Unidos que tem por finalidade cuidar da saúde pública, garantindo a segurança e eficácia de medicamentos de uso humano e veterinário, produtos biológicos, dispositivos médicos, alimentos, cosméticos, produtos que emitem radiação e pro-dutos do tabaco.

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- Está bem, você ganhou; vou me vestir. E, por favor, peça para servirem o meu café completo na sala de jantar. Em seguida, vamos para a reunião.

Susan, mais do que depressa, providenciou o que o executivo solicitara. Enquanto arrumava a mesa com cuidado, pensava que trabalhava como assis-tente pessoal de Lawrence há cinco anos. Sua reflexão foi logo interrompida pela ruidosa entrada dele, seguido de um rastro de sofisticada fragrância. Su-san indagou, interessada:

- Perfume novo? - Gostou? - É bom, porém acho um pouco forte. - E o terno que escolhi, que tal? Combina com a gravata? Essa foi você

quem me deu. - Está elegante, mas o perfume chama muito a atenção. Ele sorriu e res-

pondeu: - Você é sempre muito discreta, Susan, aprecio isso. - Não poderia ser diferente, ou você não suportaria conviver comigo... Lawrence sentou-se e convidou: - Vai me acompanhar? - Já tomei café, obrigada. Voltou a consultar o relógio e Lawrence a repreendeu: - Susan, pare com isso. Já é a quinta vez que olha para o relógio. Isso co-

meça a me deixar ansioso. Está tudo certo, relaxe. - O assunto é delicado; deveríamos ser os primeiros a chegar... Lawrence,

confiante, ergueu-se e corrigiu, enquanto limpava os lábios com um guardanapo: - Está enganada. É uma situação simples e já resolvida. - Como pode ter tanta certeza? Os pesquisadores da FDA confirmaram que

os principais elementos utilizados nos adoçantes comuns causam danos reais à saúde, especialmente a mental. Eu mesma li alguns dos estudos. Por isso, não coloco na boca mais uma gota desses venenos. A publicação desses estudos terá impacto imediato em todas as empresas que trabalham com alimentos die-téticos. Muitos deles, seus clientes, vão ficar furiosos. Como pretende solucio-nar essa difícil questão? Afinal, você aumenta sua fortuna fazendo lobby para eles junto aos órgãos públicos e ao governo.

- Já disse que não se preocupe, tenho tudo sob controle. Foram até a cober-tura do edifício e subiram no helicóptero que os levaria até Maryland, sede da FDA. Enquanto se dirigiam para a reunião, Lawrence dava concisas respostas à assistente, que por fim calou-se, já cansada de tanto pensar no assunto.

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Fora da sala, ela esperou que a reunião terminasse. Não conseguiu contro-lar-se e roeu as unhas. Quando o chefe finalmente apareceu na porta, tendo ao lado um dos integrantes do grupo, observou com atenção que conversavam em tom mais baixo; não obstante, pôde escutar algumas frases.

- Com essa quantia, por quanto tempo pode assegurar que o assunto ficará esquecido aqui dentro?

- Olhe, mesmo com a soma vultosa que me oferece, mais os benefícios concedidos pelos seus clientes, não posso garantir nada por muito tempo. A pressão dos pesquisadores é enorme.

- Mas eles estão atendendo aos interesses de quem? Vamos, diga! - Não sei... - Ora, ora, Philip, não me venha com essa. Eles sempre defendem os inte-

resses de alguém... Abra logo o jogo: de quem? Baixando ainda mais a voz, Philip respondeu: - Um grande grupo fabricante de alimentos descobriu uma substância ca-

paz de substituir os atuais princípios dos adoçantes, causando menos danos à saúde, de acordo com os estudos efetuados. Num processo que você conhece bem, os dirigentes desse grupo estão determinados a tornar o novo produto uma fonte lucrativa no menor tempo possível. Já abriram o capital da empresa na bolsa de valores de Nova York e aguardam a confirmação e publicação dos estudos pelo FDA para verem suas ações explodirem.

- Eu sabia! É claro. Mas o produto está aprovado? - Sim, está. Eles estão pressionando, pagando pesquisadores particulares,

promovendo outros estudos, para nos confrontar. Se insistirmos por muito tempo, seremos desmoralizados perante a opinião pública.

Com sorriso irônico, Lawrence comentou: - E quem disse que a tal opinião pública tem alguma opinião própria? Você

sabe tão bem quanto eu que eles pensam e acreditam naquilo que a mídia lhes exibe; em outras palavras, naquilo que outros, como nós, desejam que vejam e escutem. Olhe, Philip, tem de ser enérgico e impedir a divulgação das pesqui-sas oficiais. Dê a eles a quantia necessária. Pagaremos o triplo do que esse concorrente oferece... O quádruplo, mas quero que prorrogue pelo tempo que for preciso a omissão da publicação dos estudos.

O outro falou, quase num sussurro: - Vou fazer tudo o estiver ao meu alcance. Dessa vez, Lawrence apoiou as mãos sobre os ombros de Philip e disse: - Para seu próprio bem, faça além do seu alcance. Passou pela assistente e foi direto para o elevador. Susan ergueu-se e cor-

reu atrás dele, curiosa.

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- O que foi? - Negócios. Qual é o meu próximo compromisso? -Você tem a inauguração de uma organização não-governamental no Bro-

oklin. Fará um pequeno discurso de apoio, apenas uma página. Já dentro do helicóptero, ele quis saber: - Quanto tempo temos? - Trinta minutos entre o transporte aéreo e o terrestre. - Dê-me o texto e fale-me da instituição. E religiosa? Procurando entre os

papéis, ela leu algumas anotações e in- formou: - São espíritas. - Espíritas? - Isso mesmo. - Isso é uma religião? - Mais ou menos. Uma filosofia e uma religião. - São perigosos? - Não creio. Estão fazendo um trabalho com a comunidade carente do bairro. - Aqueles encrenqueiros asquerosos, sempre me dando trabalho. - Foi por isso mesmo que pensei em levá-lo até eles, para ver se fortalece

sua imagem junto à comunidade. Além do mais, são consumidores de seus principais clientes. Conhecê-los de perto é importante.

- Eu os conheço bem de perto, Susan, perto demais... - Do que está falando? - Sabe que cresci no Brooklin... - Sei, você já me contou, mas não nesse distrito. - Conheço todos eles... São todos iguais: vagabundos e sem-vergonha. A assistente ofereceu-lhe água fresca. - O que aconteceu com você? Estava tão bem-humorado, e agora todo esse

azedume... Lawrence fechou mais o semblante. - Philip me deu más notícias. - Eu sei, um novo concorrente de seus clientes. - Susan, esse assunto é delicado e não pode tornar-se público, nem de longe. - Fique tranqüilo. Sabe que sou discretíssima, especialmente com questões

desse porte. - Se continuar a se esforçar, quem sabe não a tornarei minha sócia? - Não faria isso... Sempre disse que trabalha sozinho. - Você está a ponto de me fazer repensar esse paradigma.

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Desceram no heliponto mais próximo do lugar em que participariam do evento e entraram em um carro que os aguardava. Logo em seguida, o motoris-ta estacionou. Susan olhou atenta para fora, confirmando a localização.

- Chegamos. Lawrence examinou o local, simples e pequeno, e ficou em dúvida. - Há algo que eu não deva falar? - Fale apenas o indispensável e seja simpático. Pergunte o que achar ade-

quado e fale pouco. No final, ofereça o cheque que preparei; está atrás de seu discurso.

Ele ia saindo do carro, quando a assistente o segurou: - Só mais uma coisa. Voltou a sentar-se ao lado dela, impaciente. - Emocione-se ao final do discurso, quando for elogiar a instituição. - Emocionar-me? - Sim, às lágrimas. - Ora, Susan, não é para tanto... - Haverá jornalistas no evento. - Sem importância, estou certo. - Muitos deles são de veículos de comunicação expressivos. Você sabe

como as notícias correm... Emocione-se, até sutis mas bem visíveis lágrimas, e deixe o resto comigo - apontou a câmara fotográfica que trazia.

Lawrence fitou-a, hesitante, e ela empurrou-o para fora do carro, dizendo: - Você é um verdadeiro artista. Use seu talento e represente.

CINQUENTA E QUATRO Isabela saiu da sala de desembarque empurrando o carrinho cheio de ma-

las. Dispensou o auxílio que a mãe ofereceu: - Pode deixar, mãe, acompanhe o pai. E tocando o ombro do pai, olhou-o com carinho e perguntou: - Como está se sentindo? Quer que eu peça uma cadeira de rodas? - Nem pensar! Posso muito bem andar com minhas próprias pernas. - Está bem, não precisa ficar bravo. Só quero ter certeza de que está con-

fortável. Chegaram finalmente em casa, no Alto de Pinheiros, bairro localizado na

zona oeste de São Paulo. Isabela ajudou a mãe com a bagagem e saiu logo após o almoço, enquanto os pais descansavam. Foi direto procurar pelo seu orientador na residência médica, levando todos os exames que o pai realizara.

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Depois de observar demoradamente cada um deles, o experiente professor co-locou-os sobre a mesa.

- É, Isabela, a situação é delicada e as orientações são corretas. Ele deve i-niciar o tratamento o mais depressa possível.

- Não consigo aceitar, doutor Ferraz. - Sei que é doloroso... - Além da quimioterapia, deve haver alternativas, algo que possa aliar a es-

se tratamento e que o ajude a superar a situação. - Talvez a psicoterapia ajude. Ela pensou um pouco antes de responder: - Sem dúvida, porém deve haver algo mais... Tem de haver... O médico nada

disse e ela, olhando-o fixamente nos olhos afirmou, tentando justificar-se: - Não posso ficar de braços cruzados; preciso fazer algo para ajudar... E sem conseguir controlar a angústia, começou a chorar. Hélio Ferraz man-

teve-se calado até que ela se acalmasse; então disse, compreensivo: - Sei que é muito difícil, mas precisa aceitar a situação. Limpando as lá-

grimas que insistiam em descer-lhe pela face, ela comentou: - Preciso acreditar em algo além da medicina, doutor Ferraz, eu preciso. Os

recursos de que dispomos são pobres diante das moléstias que enfrentamos. Não posso simplesmente observar uma doença devorar meu pai... Preciso en-tender, fazer alguma coisa...

Em seguida ergueu-se, e desculpou-se. - Preciso ir agora. Obrigada por seu tempo e sua atenção, e perdoe-me pe-

lo descontrole. Amanhã retomo o trabalho no hospital. - Fique tranqüila, eu compreendo. Despediu-se e saiu. Ao chegar ao piso térreo, olhou para o estacionamento

onde deixara o carro, mas resolveu caminhar um pouco. Andou sem rumo, pensando no que deveria fazer. Seu celular tocou. Era a mãe, preocupada com sua ausência. Isabela conversou rapidamente e pediu que não a esperassem para jantar. Queria ficar um pouco sozinha. Quando desligou o aparelho, olhou para o outro lado da rua e viu pequena construção com uma placa na porta: Centro Espírita Bezerra de Menezes. Havia muitas pessoas entrando e ela a-proximou-se, hesitante. Observou o lugar, depois se deteve nas pessoas que entravam; quando deu por si, estava dentro da instituição, diante de uma se-nhora simpática, que lhe perguntou:

- E a primeira vez que nos visita? - Sim... É a primeira vez. - Seja bem-vinda. Já conhece alguma coisa sobre a Doutrina Espírita?

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De imediato veio à mente de Isabela a experiência que vivera dias atrás com Peter.

- Muito pouco - respondeu -, mas vivi uma experiência extraordinária ou-tro dia.

Com interesse, a senhora indagou: - È mesmo? Gostaria de partilhar comigo? - Não sei... - Não tem problema. Vou explicar como funcionam nossas atividades e, se

quiser, pode assistir ao estudo do Evangelho que realizamos hoje. É aberto ao público.

- Evangelho? - Isso mesmo. Hoje é um dos dias em que nossa casa permanece aberta, re-

cebendo todos que precisam de socorro. E nada melhor do que o Evangelho de Jesus para nos confortar, orientar e fortalecer em nossos desafios, não é mes-mo?

Isabela sentia-se desconfortável, ansiosa, com forte desejo de sair e voltar para casa. Ao mesmo tempo, o olhar daquela senhora a cativava. Ela sentia como se já se conhecessem de longa data. Sentiu imediata afinidade com aque-la desconhecida, de maneira semelhante ao que acontecera com Peter. Olhando para ela, sentia vontade de compartilhar toda a sua vida, como se aquela mu-lher pudesse compreendê-la sem precisar dizer nada. E a anfitriã delicadamen-te insistiu:

- Gostaria de participar de nosso Evangelho desta noite? - Sim. - Venha comigo, vou levá-la ao salão principal. Isabela acomodou-se na cadeira indicada. Assim que a mulher se afastou,

pensou: "O que é que estou fazendo aqui? Quero ir embora.". Já ia se levantando, quando várias pessoas ocuparam uma mesa na frente

do salão e logo as atividades começaram. Envolvida pela suave atmosfera do ambiente, Isabela esqueceu o tempo, os problemas, as angústias. Sentiu-se embalada por delicadas energias que lhe revigoravam as forças e, principal-mente, a esperança. Alguns dos comentários pareciam dirigidos a ela em parti-cular. Seu coração tornou-se sereno e leve. Ao final, reencontrou a senhora que a recepcionara, sorriu e agradeceu:

- Muito obrigada pela acolhida. - O que você achou? - Eu gostei. Agora me sinto muito melhor do que quando cheguei. Voltarei

outras vezes. - Quando quiser.

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- Então até a próxima. À medida que a jovem se afastava, Helena sentiu o coração bater mais for-

te e não teve dúvida de que aquela jovem fazia parte de sua vida. Certamente a conhecia de outras encarnações, pois sentiu imenso carinho e afinidade por ela.

No dia seguinte, Márcio iniciou o tratamento de quimioterapia. Isabela passou a freqüentar a casa espírita regularmente. Lá, além de receber energias renovadoras, buscava respostas para o difícil momento pelo qual passava. A doença do pai era sua principal preocupação, mas buscava respostas para mui-tas outras questões importantes em sua vida.

Logo depois que o tratamento começou, escreveu para Peter contando suas recentes experiências. Quando comentou com a mãe que estava enviando uma carta para ele, Ana Lídia não apoiou a atitude:

- Ora, Isabela, o que você tem a ver com esse homem, praticamente um mendigo, cheio de dificuldades? Minha filha, acho que os nossos problemas a estão deixando confusa. Por favor, pense bem. Você mal conhece esse rapaz, ele é um estranho. Não faça isso. Escute sua mãe; jogue essa carta no lixo e esqueça tudo. Já chega essa história de freqüentar aquele lugar. Você sabe que eu e seu pai sempre a incentivamos a fazer suas próprias escolhas, o que não significa que a apoiemos em tudo. Considero seu súbito interesse pelo Espiri-tismo uma circunstância eventual, ligada à situação de seu pai. Entendo que deseje encontrar uma solução e sei que está fazendo tudo o que pode. Quanto a escrever para esse estranho... Isso é inadequado, filha.

Isabela sorveu a xícara de café e, colocando a carta dentro da agenda, bei-jou a mãe e disse:

- Preciso ir. Venho buscar o pai e almoço com vocês. Acho melhor ele co-mer alimentos leves, pois da última vez a reação foi rápida e intensa.

Com o semblante profundamente entristecido, Ana Lídia respondeu: - Ele não tem passado nada bem, está mesmo piorando. Será que esse tra-

tamento faz mal a ele, ao invés de ajudá-lo? - Ele está no começo, precisa persistir um pouco mais. Por outro lado, mãe,

seria muito importante que ele viesse comigo ao centro espírita. Totalmente contrária àquela sugestão, Ana Lídia refutou imediatamente: - Nem adianta falar nisso de novo. Ele não quer, não acredita e não vai. - Está bem, agora preciso ir. Isabela seguiu para suas funções como residente de pediatria do Hospital

das Clínicas em São Paulo. Dedicada, esquecia de si mesma ao atender as cri-anças. Antes de sair para buscar o pai, olhou a agenda sobre a mesa e viu a ponta do envelope. Puxou a carta e lembrou-se do que a mãe lhe dissera. Reco-locou o envelope na agenda e pensou que ela podia ter razão. Embora sonhasse

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com Peter quase todas as noites, talvez devesse esforçar-se por não pensar mais naquele incidente.

Estava quase no elevador quando, num impulso incontrolável, voltou, tirou a carta da agenda e a entregou à assistente administrativa do seu setor.

- Você coloca esta carta no correio para mim, por favor? Olhando o ende-reço do envelope, a jovem assentiu:

- Deixe comigo. Tenho outras correspondências a enviar. - Obrigada. Isabela contava com a companhia de dois amigos espirituais. Um deles

comentou: - Ela teve grande receptividade à sua sugestão, Thomas. - De fato. Sua sensibilidade está a ponto de se expressar efetivamente. De-

vemos intensificar nosso trabalho. Ela precisa estar preparada para lidar com a eclosão da mediunidade.

Duas semanas depois, Isabela se aprontava para sair em companhia do pai, quando o carteiro entregou a correspondência. Ansiosa, vasculhou as cartas e logo viu entre elas uma com selo diferente. Pegou-a e constatou: era de Peter. Os dois passaram a se corresponder freqüentemente. Como ele não tinha com-putador em casa, trocavam cartas, que eram mais baratas do que as ligações telefônicas, e seu interesse mútuo se intensificou.

Ao mesmo tempo, quanto mais ouvia as palestras na casa espírita e se inte-ressava pelos livros, mais familiar lhe soava tudo o que aprendia, como se já trouxesse no próprio íntimo aqueles conhecimentos. Entrou em contato com as obras de André Luiz e logo identificou nelas não somente orientações relativas a inúmeros aspectos da vida espiritual, como também importantes esclareci-mentos referentes à saúde do corpo. Devorou todos os livros do autor, reco-nhecendo seu conteúdo elucidações que poderiam auxiliar na questão da doen-ça do pai.

Tudo o que aprendia partilhava com Peter, que, alimentado por aquela inu-sitada amizade, experimentava gradual transformação em sua vida. A esperan-ça retornava-lhe aos poucos. Logo enviou à amiga a notícia de que encontrara emprego em uma redação, já que era jornalista. Com a volta ao trabalho, dei-xou para trás a profunda depressão em que caíra depois que a esposa o aban-donara.

Isabela ainda tentava levar Márcio à casa espírita, mas ele resistia. A jo-vem, então, procurou por outros recursos: medicina natural, medicina chinesa, acupuntura e mudanças radicais na alimentação. Em todas essas alternativas buscava o fortalecimento do corpo do pai para que enfrentasse com êxito as

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sessões de quimioterapia. Mesmo assim, seu estado de saúde deteriorava gra-dativamente.

Naquela tarde, Isabela chegou ao centro espírita em profundo desânimo. Acomodou-se na cadeira, sem conseguia captar o que o palestrante dizia. Sua mente estava distante, preocupada com o pai, e seu coração, triste e angustia-do, não sentia as energias leves e curativas que se espalhavam pelo ambiente. Helena logo percebeu a angústia da moça e, como se já conhecesse os seus problemas, sentou-se ao seu lado, vibrando intenso amor por ela. Aos poucos Isabela se acalmou, e de repente viu ao seu lado um homem alto, trajando tú-nica como se fosse um padre. Confundiu-o com um ser encarnado e pensou "Não vi esse homem entrar aqui. O que será que faz de pé ao meu lado? Está atrapalhando os outros, distraindo a atenção dos presentes.". Em seguida, Thomas respondeu, também através do pensamento: "Não estou atrapalhando, pois apenas alguns podem ver-me.".

Assustada com o diálogo mental, Isabela arregalou os olhos. Veio-lhe a i-déia: "Como sabe o que estou pensando?". Obteve nova resposta telepática: "Posso ler alguns de seus pensamentos. Fique calma, sou um amigo e estou aqui para ajudar você, seu pai, enfim, sua família.". Ela indagou: "Vai curar meu pai?". Mais uma vez o espírito respondeu: "Isso eu não posso afirmar".

Isabela esticou-se na cadeira. Seu coração batia descompassado como se fosse saltar-lhe pela boca. As mãos estavam úmidas de suor gelado. Ela come-çou a tremer e sentiu violenta vertigem. Helena percebeu-lhe o estado e imedi-atamente segurou-a pelo braço:

- Venha comigo, precisa tomar um pouco de ar. Foram para uma pequena sala onde Helena realizava atendimentos. As du-

as se acomodaram e a senhora serviu um pouco de água a Isabela. - Fique calma - aconselhou -, está tudo bem. A moça constatou, com espanto, que o homem as acompanhara até aquela

sala. Retrucou, então: - Não está tudo bem. Há um homem aqui conosco... - Parece um padre franciscano. - Como sabe? - Eu o estou vendo também. - Você o vê? - Desde que você começou a freqüentar o centro, tem vindo em sua com-

panhia. Já nos conhecemos, e ele me disse que é um amigo e está sempre perto para ajudá-la. Não precisa ter medo, Isabela.

- Como posso não ter medo? Estou vendo um homem morto...

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- Não, você está vendo o espírito de um homem que já esteve na Terra, em condição idêntica à nossa, e que agora habita o mundo espiritual, uma outra dimensão de nosso planeta.

Temerosa de encarar aquele homem, Isabela pediu: - Pergunte, por favor, quem é e o que quer. Antes mesmo que ela terminasse, Thomas procurou esclarecer: - Sou seu amigo, Isabela, e estou ao seu lado desde que nasceu, para apoiá-

la. Deve preparar-se depressa para assumir as responsabilidades com as quais se comprometeu antes de reencarnar. Helena orientará, mas deve começar o trabalho de auxílio ao próximo o mais breve possível, para fortalecer-se no bem. O tempo é curto e há muito o que fazer. Seu trabalho deve principiar já.

Isabela fitou aquele homem, dominada por profunda emoção, e balbuciou: - Eu o conheço de algum lugar. Sei que o conheço... - Sim, minha filha, somos companheiros de longa data. Estou aqui para

ampará-la na execução de suas tarefas. Todavia, nosso trabalho não se limita a nós dois. Também eu recebo a colaboração de espíritos mais elevados para cumprir meus compromissos com Jesus. E assim sucessivamente, em ações conjuntas. Dependemos sempre uns dos outros para a construção do bem, a começar dentro de nós. Igualmente precisamos de todos os que estão encarna-dos na Terra para que, através desse intercâmbio salutar, possamos progredir e nos ajudar mutuamente, sob as bênçãos de Jesus.

Helena ouvia aquela mensagem com o coração cheio de emoção. O espíri-to, então, lhe falou diretamente:

- Querida irmã, deve continuar com suas tarefas de auxílio ao próximo. Prossiga, destemidamente. Você e Eliana devem ampliar o trabalho de atendi-mento. Ambas sabem disso. Disseminem os serviços da instituição entre os necessitados, nas regiões de maior penúria, nas periferias. Não importa que muitos se mostrem resistentes, a pretexto de que a ajuda aos carentes de toda sorte caracteriza assistencialismo. Apenas seguimos o exemplo de Jesus, que foi o maior assistencialista de todos os tempos. Levem o socorro material e o conforto espiritual. E, acima de tudo, levem o Evangelho de Jesus em seus atos.

Ele silenciou por instantes e, como se recebesse comunicado a distância, disse:

- Agora tenho deveres me aguardando. Logo nos veremos de novo. Thomas se despediu e saiu, deixando Helena e Isabela envolvidas em sua-

ves energias.

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CINQUENTA E CINCO DURANTE BASTANTE TEMPO as duas permaneceram caladas, como se dese-

jassem reter aquelas doces emoções para sempre. Estavam ainda absortas, re-lembrando a experiência, quando Eliana, a presidente da casa espírita, abriu a porta. Vendo-as, indagou:

- Está tudo bem? Como se despertasse de um sonho, Helena respondeu: - Sim... Claro, Eliana, está tudo bem. - Fiquei preocupada com vocês. Saíram subitamente e, como não retorna-

ram, pensei ter havido algum problema. Todos já foram embora. - Nossa! O tempo passou e nem notei. De fato, Isabela não se sentia bem. - Sensibilidade aflorando? - Sim, abertura mediúnica. O mentor dela se apresentou e tivemos uma

conversa instrutiva e proveitosa. - Eu o vi enquanto ela estava sentada na platéia. Isabela ficou surpresa: - A senhora também o vê? - Sim, minha filha; ele usava uma batina e tinha a aparência de padre fran-

ciscano. - Foi assim mesmo que o vi - a jovem concordou. E Eliana prosseguiu: - Ele tem estado conosco há algum tempo. - E muito interessante - Helena comentou. - Sinto como se o conhecesse

há muito tempo; e o mesmo acontece com relação a Isabela. Eliana sorriu e considerou: - E possível que estejamos juntas há muitas encarnações, e agora mais uma

vez reunidas no plano físico. Façamos bom uso de nosso tempo, nesta hora abençoada em que a Terra passa por estágio decisivo no seu desenvolvimento; é fundamental que aproveitemos esta oportunidade com sabedoria.

Interessada, Isabela inquiriu: - Do que a senhora está falando? - Da transição da Terra. Nosso planeta atravessará largo período de turbu-

lências e dificuldades extremas, que se traduzirão em calamidades, catástrofes, sofrimentos os mais diversos; isso porque está alcançando o ápice de sua fase de planeta de expiações e provas para, ascendendo na escala dos mundos, tor-nar-se um planeta de regeneração. Neste processo de transformação, é impera-tivo nos esforçarmos ao máximo para permanecer na Terra, pois aqueles que não despertarem para o bem, para a luz - para Deus, enfim -, terão de deixar o planeta, que mudará seu teor vibratório. Vemos que, nesse aspecto, o orbe ter-restre está passando por intensa modificação, que culminará em uma sintonia

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mais elevada, de amor, de harmonia, de paz. Entretanto, somente aqueles que puderem vibrar na mesma sintonia aqui ficarão, para trabalhar pelo bem maior: a implantação do reino divino sobre a Terra. Aqueles outros, que insistirem em viver longe do Pai e de seu amor, serão enviados então para mundos mais atra-sados, onde seguirão, em condição mais penosa, sua trajetória de evolução. Devemos valorizar cada momento de nossa vida servindo a Deus e a Jesus e, acima de tudo, trabalhando em nós mesmos pela transformação interior para o bem.

Isabela, que ouvia atenta, valeu-se de breve interrupção para indagar: - E como promover essa transformação interior? Como se faz isso: - Deixando que o amor de Jesus nos envolva e pautando pelo Evangelho

nossos atos, nossa vida. Jesus nos trouxe, sobretudo pelo exemplo, todos os ensinamentos de que necessitamos. Cabe-nos, agora, colocá-los em prática. Não basta declarar que professamos determinada religião. É preciso que viva-mos seus ensinos, seus princípios, deixando que iluminem nosso ser e nos transformem de fato. Como alertou Jesus, "nem todo aquele que me diz se-nhor, senhor, entrará nos reino dos céus, mas sim aquele que faz a vontade de meu pai que está nos céus". E hora de acordarmos para essa verdade, de avali-armos se não estamos louvando o Mestre com os lábios e negando-o com nos-sa vida, com nossos atos.

Profundamente sensibilizada pelas palavras de Eliana, Isabela lembrou: - Aquele padre disse que preciso honrar responsabilidades que assumi an-

tes de nascer... Que responsabilidades são essas? - Ainda que não possa afirmar de pronto, é possível que estejam relaciona-

das à sua mediunidade. Essa faculdade normalmente está associada a muito trabalho pelos semelhantes...

- Sim, ele disse também que eu deveria começar a trabalhar pelos outros. O que poderia fazer aqui na instituição? Há algo em que meus conhecimentos médicos possam ajudar?

- Qual é sua especialidade? - indagou Eliana. - Pediatria. A dirigente da casa sorriu. - Como você já deve ter ouvido falarem, estamos prestes a concluir as o-

bras de uma creche, que deverá receber muitas crianças menos favorecidas da região. Finalizada a construção, iniciaremos o processo de seleção dos profis-sionais remunerados e voluntários que farão a creche funcionar de fato. Seria muito bom termos um médico para acompanhar o desenvolvimento e as neces-sidades de saúde das crianças. Se desejar, temos trabalho para você. Na reali-dade, estávamos aguardando que esse profissional aparecesse... Já fizemos

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diversas entrevistas e temos quase todos os demais profissionais especializados definidos. Porém há alguns - como é o caso de médicos, dentistas, psicólogos - que por enquanto não temos recursos para pagar... Isabela abriu largo sorriso e asseverou, decidida:

- Pode contar comigo. Em seis meses terminarei minha residência e estarei totalmente apta para ajudar. Inclusive nesse meio-tempo posso colaborar, sem assumir o papel de pediatra responsável da instituição.

- Vamos precisar de mais alguns meses até termos tudo em ordem para a inauguração e o início das atividades. Será o tempo necessário para que você esteja pronta. Enquanto isso, prepare-se também espiritualmente. Seria impor-tante passar por um tratamento espiritual e, depois, esperar a orientação da espiritualidade que nos conduz, para principiar alguma outra tarefa, de caráter doutrinário. Como você vê, Isabela, se quiser trabalhar mesmo, não faltará oportunidade... Trabalho temos de sobra; o que nos falta são pessoas à disposi-ção para servir. Muitos querem assumir cargos e funções; poucos são aqueles que se dispõem a servir seus semelhantes, atuando onde é melhor e da maneira mais adequada para o trabalho como um todo.

Eliana parecia feliz, no momento em que encerrou a conversa. - Precisa-mos ir agora. Poderemos contar com você, Isabela? Ou quer um tempo para refletir sobre o que ouviu hoje?

- Podem contar comigo, quero trabalhar. Helena sorria, sentindo o coração pleno de alegria. As três saíram, e Eliana

fechou o núcleo espírita. Isabela seguiu para casa rememorando os detalhes do que acabara de viver. Sentia profundo bem-estar brotar-lhe no íntimo. Assim que entrou no carro, seu celular tocou. Era a mãe, desesperada:

- Onde você está? Seu pai está passando muito mal, filha. Por favor, venha logo...

- Em um minuto estarei aí. Ao chegou encontrou o pai em estado lastimável. Levou-o para o hospital,

onde foi imediatamente internado. Seu organismo estava reagindo de forma violenta ao tratamento. Entrou no hospital desacordado. Depois que ele foi medicado e apresentou pequena melhora, Lídia interpelou a filha:

- Disseram-lhe alguma coisa sobre a situação real? - O mesmo que você já sabe, mãe. O organismo dele está fraco e o trata-

mento é muito forte. - E o que será dele e de nós, agora? - Não sei... Temos de confiar em Deus.

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- Muito me espanta uma médica como você, mulher independente e escla-recida, acreditar em ensinos místicos, achando que isso poderá resolver sua vida...

- Mãe, pelo pouco que conheço, sei que a Doutrina Espírita não tem nada de mística. Ela é científica, sim, e muito lógica.

- É ridícula... - Você mal conhece... - Nem preciso. Não me interesso por religião alguma. São todas anestesi-

antes e alienantes. - Não a Doutrina Espírita, mãe. Ela é diferente, não aliena e sim conscien-

tiza. Antes de tudo nos faz pensar. Seus postulados são de um bom-senso ex-cepcional. Você devia conhecer um pouco, como professora de sociologia e filosofia...

- Não, Isabela, chega. Não quero saber nada sobre isso... A jovem emudeceu, respeitando a dor que percebia dominar a mãe naquele

momento. Acima de qualquer raciocínio, ela sabia exatamente a experiência incrível que vivera. Vira Peter fora do corpo físico; portanto, não precisava ler ou ouvir alguém dizendo para acreditar. Sabia que existia um corpo etéreo semelhante ao corpo físico, e que esse ser tinha plena consciência de si mes-mo. Ela podia ver o mundo espiritual, e a Doutrina Espírita lhe trouxera enten-dimento sobre essa faculdade.

Depois de dois dias de acompanhamento intensivo, Márcio voltou para ca-sa. Isabela, não obstante a oposição dos pais, seguia estudando os livros espíri-tas com afinco, e passou a freqüentar os estudos noturnos, nos quais as obras de André Luiz eram esmiuçadas.

Transcorridos quase seis meses, a moça estava prestes a finalizar sua resi-dência e poderia atuar como pediatra formada. Esperava por isso com ansieda-de e dedicava-se também ao trabalho da creche na companhia de Helena, da qual se tornara o braço direito. As duas fortaleciam-se reciprocamente e ali-mentavam profunda e sincera amizade. No entanto, o estado de saúde do pai continuava a preocupá-la. Ele não apresentava melhora significativa; a doença parecia estabilizada no patamar grave de seis meses antes.

Aquela fora uma noite de estudo intenso, e as atividades no centro haviam terminado um pouco mais tarde do que o habitual. Isabela chegou em casa em silêncio, supondo que os pais já estivessem recolhidos. Ao abrir a porta, apre-ensiva, viu as luzes da casa acesas e escutou conversa na sala. Entrou e ficou surpresa: a mãe e o pai conversavam com um elegante homem loiro. Ela pen-sou ter reconhecido a voz, e quando ele se virou para cumprimentá-la teve a certeza:

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- Boa noite, Isabela. Espantada, olhava para aquele homem cujos lindos e profundos olhos azuis

mais pareciam um mar sereno. Sentiu o coração bater acelerado. Suas pernas amoleceram, e ela apoiou-se no braço do sofá para não desfalecer.

- Peter, é você mesmo? - balbuciou. - Sim, sou eu - falou com seu inglês nítido e fácil de ser compreendido. Dominada pela emoção e pela atração inexplicável que sentia por aquele

homem, ela abriu largo sorriso. - O que está fazendo aqui? - Estou no Brasil a trabalho, mas não posso enganá-la. O trabalho foi ape-

nas um pretexto que encontrei para poder vir até aqui. Eu precisava vê-la no-vamente. Espero que não se ofenda, nem se sinta invadida pela minha iniciati-va. Caso minha presença a incomode, por favor, quero que me diga.

- De maneira alguma! Estou surpresa, muito surpresa! Você não disse nada em suas cartas... Aliás, faz algum tempo que não escreve.

- Eu sei. É que estava muito ocupado com o novo trabalho e também com os preparativos para a viagem. Quis fazer esta surpresa.

- Estou feliz que esteja aqui. Quanto tempo vai ficar? -Três dias. Tenho uma cobertura esportiva para fazer e logo vou retornar. - Esportes? - Embora não seja exatamente minha especialidade, foi a forma que encon-

trei de ganhar dinheiro. Além disso, trouxe um de meus livros para uma edito-ra brasileira avaliar. Eles trabalham com biografias e tenho uma obra singela para editar.

- Você escreveu um livro? - Trata-se da biografia de um atleta conhecido nos Estados Unidos. Isabela sorriu e ficou a admirar o belo rosto de Peter, seus traços ao mesmo

tempo suaves e masculinos, seus cabelos dourados muito brilhantes. Ela con-teve o ímpeto de lançar-se em seus braços ali mesmo, diante do olhar dos pais. Conversaram bastante, até que Márcio se retirou com a esposa. Isabela e Peter ficaram a sós, em longo e agradável diálogo. Já era madrugada quando ele disse:

- Infelizmente preciso ir. Não demora a amanhecer e tenho de estar às sete horas no estádio, para a cobertura do evento.

Segurando com ternura as mãos de Isabela, indagou: - A que horas podemos nos ver de novo? - Normalmente fico no hospital até as cinco da tarde, mas vou tentar trocar

meus horários para termos mais tempo juntos. Quero aproveitar cada minuto em sua companhia...

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Isabela conduziu Peter até a porta. Com ternura no olhar, ele afagou seu rosto, seus cabelos, seus lábios, e então beijou-a com ardor. Ela se deixou en-volver pelo seu carinho e entregou-se ao longo e apaixonado beijo que troca-ram. Quando Peter saiu, Isabela fechou a porta e encostou-se nela sentindo como se vivesse um sonho. Aquele homem, quase mendigo, que a abordara acabava de sair de sua casa, irreconhecível, lindo e elegante. Que transforma-ção inacreditável!

A jovem se deitou e dormiu algumas horas. De manhã fez algumas liga-ções, procurando por amigos que a substituíssem em dois dias de suas obriga-ções no hospital. Conseguiu, afinal, acertar a troca com dois amigos diferentes. Ficou satisfeita. Teria dois dias inteiros para estar com Peter. Logo se lembrou de suas atividades na casa espírita e desejou que ele fosse junto.

À noite, os dois assistiram a uma palestra sentados lado a lado. Assim que Helena avistou a amiga, soube quem a acompanhava. Isabela estava radiante. Depois, os dois saíram para jantar e falaram sobre muitos assuntos. Quanto mais ficava perto de Peter, mais Isabela se convencia de que ele era o homem com quem queria passar o resto de sua vida. De igual modo, era irresistível a atração que Peter sentia por ela. Chegado o dia da partida dele para os Estados Unidos, prometeram um ao outro que não tardariam a achar um jeito de se reverem. Ao observá-lo cruzando o portão de embarque e a alfândega, envol-vida em profunda emoção, Isabela não teve dúvida: estava apaixonada.

Naquela noite foi para casa dirigindo bem devagar, a relembrar com entu-siasmo cada momento que vivera ao lado de Peter. Tinha vontade de sorrir e de chorar, alternadamente. A esperança lhe envolvia o coração. Parecia que seus mais profundos sonhos se tornariam realidade. Ansiara tanto por encon-trar um amor verdadeiro para compartilhar a vida, construir um lar e ter fi-lhos... Gostaria de ter muitos, embora soubesse que seria difícil satisfazer ple-namente tal aspiração. Se lhe fosse possível teria cinco, seis filhos... Sua casa estaria sempre repleta de crianças correndo de um lado para outro.

Fora o carinho pelas crianças que a fizera optar pela especialização em pe-diatria. Já a medicina a atraía desde que começara a estudar. Sempre dizia que desejava cuidar dos outros. Ao crescer escolhera a medicina. Ela pouco namo-rara, pois, de algum modo, sabia haver alguém à sua espera, em algum lugar.

Quando encostou o carro na garagem e desligou o motor, sentiu como se caísse de grande altura ou despertasse de um sonho bom. Seu coração ficou angustiado ao lembrar-se do pai e de seu problema de saúde agravado. Quando entrou em casa, silenciosamente, a mãe a aguardava acordada. Assim que a viu reclamou, chorando:

- Não se importa com ninguém além de você, não é?

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- Calma, mãe, o que foi? - Seu pai passou muito mal. Ela fez menção de ir até o quarto e a mãe a deteve. - Agora não adianta, ele já está melhor. Isabela soltou o corpo na poltrona e fechou os olhos, suspirando. - Ele passou muito mal no fim da tarde, mas não quis que eu a chamasse. - E por que não? - Você está com a cabeça nas nuvens! Não entendo como pode ligar-se a

alguém que sequer conhece... Seu pai não simpatizou nem um pouco com o tal Peter.

- Pois saiba que é uma ótima pessoa. - Como pode saber, em dois, três dias de convivência? Não vê o que está

fazendo com sua vida? Esse homem não serve para você! - O que está acontecendo com vocês? Como podem julgar alguém que não

conhecem? Não sou tola, estou procurando conhecê-lo com muita cautela. Seja como for, sinto por ele grande afinidade, como se convivêssemos há muitos anos.

A jovem parou por instantes e olhou a mãe. - Não foi assim com você e meu pai? Você sempre me diz que foi amor à

primeira vista... - É diferente. - Por quê? - Porque estudávamos juntos, nos víamos todos os dias, e tivemos muito

tempo para nos conhecermos bem antes de começarmos a namorar... - Mãe, quando temos esse sentimento de afinidade profunda com alguém,

não é preciso muito tempo para percebermos que é a pessoa que procuráva-mos... Não quer que eu seja feliz?

- É claro que quero - ela sorriu ao responder. - Então me apoie. Ana Lídia baixou a cabeça. Limpando as lágrimas que lhe desciam pela fa-

ce, murmurou: - Estou com tanto medo... assim como seu pai. Isabela abraçou-a. - Eu sei, mãe, também sinto medo... Amo vocês e desejo muito que todo

esse pesadelo termine... O que mais quero é ver meu pai curado, voltando às suas atividades... Mas o que podemos fazer? Vocês precisam encontrar alguma esperança...

- Uma religião, você quer dizer? - Sim, mãe, uma religião, uma fé, algo maior do que nós. Qual é o proble-

ma?

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- Isso tudo é bobagem. Não creio em religião alguma... Não há nada depois da morte...

- Mãe, isso é terrível! Acreditar nisso é que a faz sofrer tanto... Se deixasse que Jesus...

Ana Lídia não lhe permitiu concluir. - Pare, por favor, filha. Não quero mais conversar sobre esse assunto. Fico

feliz que você tenha encontrado uma forma de anestesiar suas dores... - Não, mãe, não estou anestesiando nada... Sinto dor, exatamente como

antes, só que agora posso compreender por que sofremos... Se você ao menos me deixasse falar, se me escutasse... Você, uma mulher tão inteligente, deveria ler alguns dos livros espíritas eu já li. Eles são elucidativos demais... E nos trazem reflexões que satisfazem ao mesmo tempo nossas necessidades emo-cionais e intelectuais - racionais, enfim.

Tocando o braço da filha, Ana Lídia respondeu: - Eu gostaria de acreditar, filha, porém não consigo... Ficaram ambas em silêncio, e pouco depois a mãe avisou: - Vou me deitar, estou muito cansada. Boa noite. Observando-a afastar-se,

Isabela falou baixinho: - Boa noite, mãe.

CINQUENTA E SEIS DEPOIS DA PARTIDA de Peter, os dois passaram a conversar diariamente pe-

lo computador, estreitando aquele laço amoroso. Ao mesmo tempo em que fortalecia o relacionamento com ele, Isabela desenvolvia-se interiormente me-diante o estudo da Doutrina Espírita. Amparada por Thomas, sentia despertar seu potencial mediúnico. Queria trabalhar para auxiliar seus irmãos, mas ainda não compreendia exatamente como poderia fazer isso.

Em uma noite, encerradas as atividades de estudo do Evangelho, Eliana a-proximou-se dela:

- Isabela, nossos orientadores espirituais pediram para convidá-la a fazer parte de uma tarefa de especial relevância dentro da casa espírita: o trabalho de doutrinação. Disseram-me que você está pronta para iniciar. Gostaria que vies-se na próxima terça-feira conhecer de perto a natureza dessa atividade.

A jovem aceitou prontamente. - Eu virei, é claro. Estou consciente de que tenho deveres a cumprir e me

sinto apta. Além do mais, tenho visto com freqüência o padre franciscano - seu

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nome é Thomas - e ele me disse que devo começar a utilizar minhas aptidões mediúnicas em benefício das pessoas.

- Ótimo, então espero você na próxima terça-feira. Isabela compareceu no dia combinado e iniciou sua contribuição através da

mediunidade de psicofonia, dando oportunidade a espíritos fora do corpo físico de se expressarem.

Quando a tarefa terminou, Helena estava curiosa e perguntou: - E então, como foi a experiência? - Fiquei um pouco assustada no começo; então vi Thomas e fiquei mais

confiante. Aos poucos entreguei-me, e estou muito feliz. Sinto tanta paz como nunca havia experimentado...

- É porque está no caminho que traçou para sua própria vida. Fico muito contente por você.

Com os olhos rasos de lágrimas, Isabela confidenciou: - Helena, você tem sido mais do que amiga... E minha orientadora, a pes-

soa para quem corro sempre que tenho dúvidas ou que as dificuldades ficam maiores... Sua amizade fortalece meu coração. Você é muito mais do que uma amiga... Minha ligação com você é mais forte do que a que tenho com minha mãe... Não é estranho? Acha que estou com algum problema?

- Não, Isabela, essa afinidade que nos une é real e também a sinto. Você sabe que tenho três filhos, todos homens, e para mim você é a filha que não tive... Esse sentimento que você percebe é recíproco.

- No entanto, às vezes é um pouco estranho... Não consigo entender bem minhas emoções e sensações...

- Nessas horas, devemos usar os conhecimentos que já possuímos. A Dou-trina Espírita nos esclarece quanto a tais simpatias espontâneas, e também so-bre as antipatias. Nosso passado está conosco, dentro de nós, a todo instante. Apesar do abençoado esquecimento das experiências pregressas, que nos per-mite reconstruir a vida através das novas oportunidades do presente, aquilo que fomos ainda permanece em nosso inconsciente, e não raro determina as escolhas que fazemos, as decisões que tomamos e o destino que construímos. Por isso é tão essencial o despertar da consciência. Temos de caminhar desper-tos, percebendo-nos e percebendo o que se passa ao nosso redor. Isabela sorriu e abraçou a amiga.

- Ficaria aqui a noite toda ouvindo você... - Eu também, mas preciso ir. Meu filho está lá fora à minha espera. Depois de alguns meses participando daquela tarefa, Isabela começou a re-

ceber mensagens de diversos espíritos endereçadas a familiares. Assumia, as-sim, a tarefa árdua de levar consolo e esperança aos corações desalentados.

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Logo estaria terminando o período de residência e poderia integrar-se a outras frentes de trabalho na saúde, junto das crianças.

Outros tantos meses se passaram e a creche estava prestes a ser inaugurada. A alegria e a expectativa tomava conta dos trabalhadores empenhados em co-locar aquela bela tarefa em pleno funcionamento. Eliana tinha muitos planos para as crianças que ali seriam acolhidas. A instituição e a creche se localiza-vam na periferia de São Paulo, em região muito carente de recursos. Na maio-ria as crianças ficavam pelas ruas ou trancadas em casa, enquanto os pais bus-cavam o sustento em condições igualmente precárias. A creche era aguardada com ansiedade pela comunidade do bairro.

Naquela tarde de sábado, os dirigentes da instituição realizavam importan-te reunião com o objetivo de definir os últimos detalhes para a abertura da cre-che. Em contraste com o entusiasmo geral, Mateus como sempre acontecia, opunha-se veladamente aos propósitos enobrecedores da instituição. Helena captou a contrariedade e até certa animosidade do companheiro de tarefas; fitou Eliana e, notando que a dirigente também percebera a situação e se cala-ra, adotou idêntica conduta. Ao final da reunião, quando todos já haviam saí-do, interpelou-a:

- Você notou a contrariedade gratuita em Mateus? - Sim, Helena, mas devemos ter paciência com ele. Mateus necessita muito

do trabalho e das possibilidades que tem aqui conosco. - Alguma razão específica? - Tenho conversado constantemente com meu orientador espiritual a res-

peito dele. Sempre traz problemas e insinuações descabidas são jogadas com sutileza durante nossas reuniões e, no mais das vezes, depois delas. Ainda as-sim, a recomendação é para que eu seja paciente e firme com ele. Por isso, não dou grandes oportunidades para que expanda sua atuação na casa. Por outro lado, é minha obrigação mantê-lo conosco. Ele precisa da luz que o conheci-mento espírita pode proporcionar-lhe.

Diante do sorriso de Helena, ela indagou: - O que foi? - Você sempre fala dele com carinho, como se fosse um filho... É interes-

sante. - Dá para notar? - Sim, sempre. - De fato, sinto por ele um carinho maternal, que não sei de onde provém. - Provavelmente do nosso passado... Houve entre elas longo silêncio, até que Eliana disse, séria:

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- Nosso tempo está acabando, Helena. As oportunidades de renascer na Terra estão findando para os que não se deixarem envolver pela luz divina. Sinto grande preocupação da espiritualidade que nos ampara com aqueles que aqui estão, quem sabe, em sua última reencarnação no planeta. Temos de nos unir cada vez mais e nos fortalecer mutuamente, caminhando no bem, sempre e a todo o custo.

As duas amigas conversaram mais um pouco e depois se despediram. En-quanto isso, Mateus, que levava para casa outros dois membros da instituição, comentava malicioso:

- Eu acho que estamos tomando rumo equivocado. Interpretando a mudez dos companheiros como autorização

para continuar, aumentou a dose de veneno: - Aliás, nossa instituição está mesmo muito ultrapassada, precisando de re-

novação! Afinal, tudo se modifica, evolui, não é mesmo? É um princípio básico da nossa doutrina. Tudo está em constante transfor-

mação. Após premeditada pausa, prosseguiu, em tom mais baixo: - Estou muito preocupado com nossa casa e com a Eliana. Vejo-a muito

cansada, estressada com tantas atividades. Não sei, não, mas me parece que está sob influência espiritual negativa... Acho que ela deveria ser encaminhada com urgência para um tratamento espiritual, pois sinto que não anda bem... Vocês não vêem como está exausta?

- É, tenho percebido que ela não está muito bem... - concordou um deles. - Pois é... É natural, não? Com tanto trabalho... Acho que ela precisa des-

cansar, tirar umas férias e se refazer. Além do mais, tenho lido muito sobre as mudanças feitas nos centros espíritas por todo o país. Deveríamos adotar essas alterações em nossas tarefas, para adequá-las aos tempos modernos... Torná-las mais atraentes, para que mais pessoas venham e permaneçam conosco. So-nho ver nossa casa com o dobro, o triplo de pessoas que a freqüentam atual-mente; imaginem todas essas pessoas contribuindo com a creche e as outras atividades... Ouçam o que estou dizendo: precisamos de renovação, de mudan-ças, de atualização. E, infelizmente, acho que a Eliana não está conseguindo compreender o que acontece...

O acompanhante que já falara mantinha a concordância com Mateus, en-quanto a outra se limitava a escutar.

Eliana administrava com tolerância as constantes investidas de-sequilibradas de Mateus, que nascera em um lar católico e, ao atingir a idade adulta, começara a freqüentar casas espíritas, onde invariavelmente criava con-fusões e dificuldades para os dirigentes e trabalhadores sinceros. Na verdade,

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ele sempre se voltava contra os dirigentes das instituições pelas quais passara, acusando-os de autoritários e retrógrados, porque suas idéias que não eram acatadas. Passou, então, a fomentar tais idéias em surdina, ao invés de apresen-tá-las nas reuniões destinadas a essa finalidade.

Ele deixou os dois companheiros em uma estação do metrô e foi para casa. Entrou no apartamento onde morava sozinho e preparou um prato de comida. Depois sentou-se diante da televisão, percorreu vários canais e, por fim, desli-gou o aparelho e foi para a cama. Tão logo adormeceu, desligou-se do corpo físico e foi recebido por dois espíritos que usavam pesado capuz negro. Um deles falou:

- Seu trabalho precisa ser concluído. Tem de impedir que abram a creche. Faça o que for necessário, mas impeça a mulher de abrir a creche e aproveite para destruir aquela instituição, cujas atividades têm muitos beneficiários. Nossos maiores não estão nada satisfeitos; querem que você destrua a institui-ção, e depressa. Ela tem atrapalhado muitos da nossa equipe e retardando nos-sos planos. Você está lá para destruí-la. Faça isso.

- Estou fazendo a minha parte, são vocês que não cuidam da sua! Tudo o que tento dá errado! Onde estão que não me ajudam? Não conseguirei sozi-nho...

- Cale a boca! Nós estamos fazendo tudo o que podemos! - E eu também! - Pensa que não percebemos que você se enfraquece na presença da Elia-

na? - E claro que não! - É claro que sim! Parece um tonto perto dela... Ela domina você, idiota! Agarrando-o com violência, Mateus o atirou no chão. Nesse instante o ou-

tro espírito o segurou: - Parem os dois com isso! Temos de planejar melhor o que faremos... O primeiro se levantou e, ajeitando a pesada túnica, disse: - Se o nosso general aqui não se compenetrar do que deve fazer e passar

para a próxima instituição a ser destruída, não caminharemos... É essa Eliana que nos atrapalha... Você deve atentar é contra a vida dela... Acabe com essa mulher de uma vez! O que o impede?

- Ora, não banque você o idiota! Ela não está sozinha! Está sempre prote-gida.

- Deve ter algum ponto vulnerável que não estamos vendo... Sentando-se na cama ao lado de seu próprio corpo físico adormecido Mateus declarou:

- Eu não encontro... Ela é uma mulher de caráter impecável! Totalmente dedicada a... Vocês sabem...

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Os três se calaram, sentindo nítida alteração na energia do ambiente. Um deles disse:

- E melhor sairmos daqui... Parece que há luz se aproximando... E você, Mateus, é bom acordar para não ser pego por eles...

Saíram, e quando Mateus deitou-se sobre seu corpo físico, no intuito de despertar, foi impedido por intensa luminosidade que envolveu o ambiente. Do interior da luz surgiu a imagem de uma bela mulher que ele reconheceu, sem, no entanto, saber quem era.

- Licínio, sei o que está tentando fazer - ela falou. - Apesar de suas inten-ções, o divino senhor Jesus o ama. Ele quer o seu bem e permitiu que você viesse para o centro do Evangelho redivivo, na esperança de que a luz da Dou-trina Espírita pudesse despertar seu coração endurecido por milênios de esco-lhas desastrosas.

Mateus, que fora Licínio, tremia sem resposta. A presença amorosa de Constância - que presentemente, também encarnada, ocupava a presidência da instituição espírita que ele freqüentava -manifestava-se adotando a forma espi-ritual que tivera como Deborah, pois sabia que assim despertava nele senti-mentos de remorso e dúvida. Ela prosseguiu:

- Volte-se para Jesus. Não deixe escapar esta oportunidade. Jesus conhece seu coração, sabe de seus propósitos destrutivos, mas o ama incondicional-mente, tal como eu. Embora você não o recorde agora, nós dois viemos do sistema de Capela, onde nossa ligação afetiva era muito grande. Viemos para a Terra a fim de aprender a amar e aceitar nossa gloriosa destinação. E você, meu querido, ainda se nega a deixar os erros do passado, a mudar seu coração, a admitir que os ensinos de Jesus sejam o centro de sua vida... Onde quer pa-rar? Em outro planeta primitivo? Sabe que a operação de exílio da Terra já começou, já falamos no assunto algumas vezes. Além do mais, tem escutado isso reiteradamente na casa espírita. Não está cansado dessa caminhada sem sentido que empreende? Escolha Jesus, escolha o bem, a paz, o amor. Escolha o caminho da regeneração! Licínio, para você, como para milhões de irmãos nossos, esta é a última chance de reencarnar no planeta. Legiões de almas es-tão sendo transferidas do orbe da Terra para expiar seus débitos e aprender a viver pelo amor. Não desperdice esta sagrada oportunidade. O momento é por demais importante. Vamos fazer nosso trabalho de regeneração, e não tardará nosso regresso a Capela...

Num esforço enorme, Mateus gritou: - Vá embora! Afaste-se de mim! Despertou, então, com seu próprio grito e sentou-se na cama, trêmulo. Le-

vantou-se e foi até a cozinha tomar um copo de água. Abriu a janela da sala,

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observando o tráfego incessante dos carros madrugada adentro. Acendeu um cigarro, depois outro e mais outro. Com o coração descompassado e interior-mente abalado, decidiu tomar um copo de uísque. Tomou vários e, exausto, voltou para a cama; nem com isso conseguir dormir. Constância, que se man-tivera ao lado dele, orava com fervor e devoção por aquela criatura amada.

Finalmente, quando o dia amanheceu, Eliana acordou conservando vivas na memória as imagens de Mateus. Sabia que estivera em sua companhia du-rante a noite e lamentou a dureza do coração daquele irmão tão querido.

CINQUENTA E SETE LAWRENCE BALANÇAVA o copo para misturar o gelo e a bebida. Sentado

em cadeira confortável, escutava a conversa do grupo. Susan apareceu à porta e Bernard o olhou, indagando:

- Aquela não é sua assistente? Lawrence esticou ligeiramente o pescoço, procurando identificar a pessoa

de quem Bernard falava, e surpreendeu-se com a beleza da jovem num elegan-te traje preto, salpicado de pedras e strass que cintilavam. Ele ergueu o braço e a moça, que também o procurava, saudou-o a distância. Depois, entregando o casaco e a bolsa ao serviçal que a recebera à porta, entrou e foi direto ao en-contro do chefe, que confirmou:

- E minha assistente, sim. Essa jovem tem futuro... E competente. Com olhar malicioso, Bernard comentou: - Gostaria que prestasse alguns favores a mim... - Ela está interessada em uma carreira, Bernard, acima de qualquer outra

coisa. - Por isso mesmo. Posso ajudá-la a crescer rapidamente. Os dois silenciaram quando ela se aproximou. Lawrence levantou-se para

recebê-la. - Boa noite, Susan. - Boa noite, Lawrence Num relance de olhos sobre o grupo, ela emendou: - Senhores, boa noite. - Deixe-me apresentá-la a algumas das pessoas mais poderosas dos Estados

Unidos. Susan sorriu, satisfeita. Pós-graduada por Harvard em relações internacio-

nais, adorava aquele ambiente de poder e competição. Foi cumprimentando um a um à medida que Lawrence os apresentava.

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- Doutor Simon, presidente da Saxo Farmacêutica. - Muito prazer, doutor, tenho ouvido muito a seu respeito desde os tempos

da faculdade. Sem dúvida é uma honra trabalhar para o senhor. Fitando a jovem de alto a baixo, Simon limitou-se a responder: - Obrigado. Lawrence prosseguiu: - Senador Duncan, senador Oswald, senador Bryan, senadora Julian e juíza

Elizabeth Brengen. A jovem, cheia de contentamento, tecia comentários pessoais a cada um

que cumprimentava; demonstrava extraordinária memória sobre fatos relevan-tes da vida deles, o que lhe garantiu, de imediato, uma boa acolhida do seleto grupo. Por fim, Lawrence apresentou:

- E este é Bernard Nutting, presidente da FDA. - Como vai? - Muito bem. Lawrence comentou baixinho com a jovem, enquanto se sentavam: - Você está especialmente atraente hoje. - Obrigada, chefe. - ela sorria ao agradecer. - Você pediu que eu caprichasse. - E você não me desapontou. Quanto custou esse vestido? - Uma fortuna. Mas não se preocupe, coloquei na conta do escritório. Fitando-a sério, Lawrence não teve tempo de responder. Simon deu se-

qüência ao assunto que conversavam antes da chegada de Susan: - O que você acha, Lawrence? - Se temos de realizar os testes em humanos, por que não nos países po-

bres? Assim, a miserável vida deles terá algum sentido. As gargalhadas foram quase em uníssono. Depois, Simon comentou, sor-

vendo dois goles de sua bebida: - Por isso não abro mão de trabalhar com você, Lawrence. E objetivo, di-

reto e prático. Não usa meias palavras. - Eu não conheço meias palavras. - Desculpem se é estupidez - falou Susan -, mas os governos desses países

pobres permitiram esse tipo de ação? Dessa vez foi o senador Duncan quem respondeu: - Os governos dos países pobres estão muito mais preocupados com a ree-

leição e com suas polpudas contas estrangeiras. Aceitam boas negociações - entenda-se altas somas - e autorizam nossas atividades sem maiores constran-gimentos. Acresce que temos filiais em muitos desses países, o que nos facilita ainda mais o trabalho.

Susan estava fascinada.

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- Gosto disso! Agora, e se a mídia desses países descobrir... Digo, se al-gum repórter bisbilhoteiro descobrir e tornar públicas nossas atividades?

A juíza Elizabeth interveio: - Minha cara, você não está falando sério. - Por quê? - A mídia está a nosso serviço praticamente no mundo inteiro. - É verdade, até mesmo aqui, em nosso país. O senador Bryan concordou: - A mídia é nossa aliada mais ferrenha, levando ao povo apenas aquilo que

nos interessa mostrar. Ela, mais do que todos, está interessada na audiência, ou seja, no dinheiro.

- Vejo que os senhores controlam tudo. - Exatamente, Susan - afirmou Lawrence. - Não exagerei ao dizer que você

está diante de um dos grupos mais poderosos do mundo... Desejando apimentar ainda mais a conversa, por simples prazer e deleite

próprio, Susan continuou: - E se aparecer algum idealista, no meio dos profissionais da imprensa,

que se interesse realmente pelas pessoas? - Minha cara, todos têm seu preço. As emissoras estão à venda, da mesma

forma que as pessoas. - E se alguém fincar pé e não ceder? - ela insistiu. - Isso não acontece. - E se acontecer? Parecendo um tanto entediada, Julian falou: - Ora, dando dois ou três telefonemas, ou mesmo dois cliques no computa-

dor, armamos um belo circo, derrubando nosso opositor do picadeiro sem rede para segurá-lo. É muito simples...

Pedindo mais bebida ao garçom, a jovem exibiu largo sorriso: - Apesar de trabalhar com Lawrence há algum tempo e ouvir falar de vocês

diversas vezes, estou fascinada por conhecê-los pessoalmente. A conversa estendeu-se noite adentro. Mais tarde, falavam sobre a fabulosa

e lucrativa indústria da doença. Simon garantia: - Tenho certeza de que nossas ações continuarão crescendo. Vocês podem

continuar comprando... Sei que todos já têm ações da Saxo... Comprem mais, pois vamos crescer muito e rapidamente.

- Novos medicamentos? - Isso mesmo. Depois de muitos copos de bebida e do consumo de outros tipos de drogas,

o grupo - que participava de uma festa privada e exclusiva da altíssima socie-dade de Washington - estava completamente descontraído. Susan perguntou:

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- E todos esses medicamentos novos a que se refere têm os maravilhosos efeitos colaterais?

- Sem dúvida, todos eles. Manteremos nossos pacientes doentes, porém vi-vos, por muito tempo...

- E quanto ao aparecimento de novas doenças? - indagou Julian. - Temos uma série delas em nosso portfolio, preparadas para serem lança-

das ao público, seguindo cuidadoso planejamento. Por exemplo, a maravilhosa síndrome do pânico. O que acham?

Depois de uma gargalhada geral, Simon comentou: - Essa já nos rende milhões, e vai render ainda mais. - Como fazem para induzir as pessoas com tanta facilidade? - a pergunta

foi de Susan. - Ora, o povo está adormecido, em profundo torpor. Caminha como gado,

ora para um lado, ora para outro... e ora para o matadouro. Damos-lhe as cele-bridades e a televisão para que se distraia e continue a dormir. Oferecemos-lhe o sonho da riqueza e do poder, do sucesso a todo custo, e ele o abraça como se fosse próprio. Não é complicado.

Depois de curta pausa, o senador Oswald tomou a palavra. - O povo deve ter tão-só o necessário para que possa ser-nos útil. Deve tra-

balhar muito, sem ter tempo para mais nada. Pensar, jamais! A televisão ajuda a manter a mente do povo sob nosso controle. Assim também a alimentação. Enquanto as pessoas estiverem à procura do ouro, como da cenoura amarrada diante do burro, estarão sob nosso controle. Consumirão o que dissermos que devem consumir, vestirão o que dissermos que devem vestir, comerão o que dissermos que devem comer. E nos trarão os impostos, o dinheiro que quere-mos.

Até mesmo para Susan, que apreciava os jogos de poder e o ambiente de riqueza e ostentação, aquela conversa se tornara opressiva. Ficou totalmente chocada pela absoluta falta de consideração com que aqueles homens falavam sobre os seres humanos em geral. Sabia que eles realmente pensavam daquela forma, e ainda assim os admirava. Ao final, quando se despediu do grupo e foi levada por Lawrence até o elevador, ele quis saber:

- Aproveitou bem a noite? - O melhor que pude. Olhando a jovem da cabeça aos pés, o executivo comentou, desapontado: - Pensei que fosse ficar mais entusiasmada. Afinal, era tudo o que você

queria, não era?

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- Sem dúvida, Lawrence. Só posso agradecer-lhe por me proporcionar esse verdadeiro prazer... É que, tenho de confessar, fiquei espantada com o modo descarado como manipulam as pessoas. É impressionante.

- Ora, você já sabia disso, não há novidade... - Eu sei, mas ouvi-los falar declaradamente e com entusiasmo aquilo que

eu já sabia foi, digamos... chocante. - Ora, senhorita, o que esperava? Madre Tereza? Sorrindo insinuante, Su-

san respondeu: - Não seja bobo! Você me conhece... Abraçando-o e beijando-o no pesco-

ço, ela perguntou: - Vem comigo para meu apartamento? - Hoje não, querida. Vou levar a senadora Julian para casa. - E o marido? Lawrence apontou o marido da senadora estirado em um sofá, num canto

isolado da sala, inconsciente, entre os braços de duas mulheres seminuas. - Está muito ocupado. - Então, espero por você mais tarde. - Não, hoje não. Amanhã nos vemos no escritório. - Então, até amanhã. Em um canto da sala, três entidades espirituais, que prestavam auxílio na

casa espírita que Lawrence visitara, observavam o ambiente degradante e pe-sado. Em agradecimento ao apoio financeiro que ele vinha dando à instituição, aquelas entidades estavam a serviço de Jesus e acompanhavam o jovem que, antes de reencarnar, estivera por séculos subordinado a Núbio. Um deles co-mentou:

- Como é possível que homens como esses tenham tamanho poder e influ-ência sobre os demais? Por que Deus permite tal situação?

- Todas as pessoas têm o livre-arbítrio e o direito de fazer suas escolhas. Dormem e se deixam dominar porque é mais fácil. Despertar é sempre penoso, trabalhoso e cansativo. Enganam-se e deixam-se enganar.

- Quem são essas entidades perversas? - Estão sob as ordens de entidades espirituais que desejam deter o progres-

so da humanidade, impedir o homem de progredir. - E conseguem seu intento. - Atrasam, porém não impedem. - No entanto, causam tremendos entraves. - Sim, sem dúvida. São espíritos perversos que assim se portavam no plano

espiritual e agora o fazem na Terra.

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- E por que Deus permite que retornem ao planeta, prejudicando tantas vi-das?

- Se não for pelo amor, será pela dor. Se o homem preferir despertar por meio do sofrimento, será respeitado, já que este faz parte de sua evolução. O Pai sempre nos convida pelo amor, mas seu chamado doce e suave raramente é atendido. Então vem a dor, que representa simplesmente a reação do Universo às ações contrárias à legislação divina. Sofremos porque transgredimos as leis de Deus. É imperioso o reajuste; enquanto não nos alinhamos ao Criador, so-fremos.

- E essas entidades? O que fazem na Terra? - Simon, Oswald e Julian não reencarnavam há muitos séculos. Por todo

esse tempo fugiram do corpo físico, atuando espiritualmente sobre os homens para tê-los sob controle. Entretanto, tendo em vista o momento de transição planetária, foram constrangidos à reencarnação, como sua última oportunidade na Terra.

- Eles não permanecerão no orbe terrestre? - É provável que não. Somente se conseguirem mudar; e, pelo que presen-

ciamos hoje aqui, isso será muito difícil. O outro deplorou, num suspiro. - Realmente, só por milagre. - Os milagres são trazidos, muitas vezes, pelos braços do sofrimento. Ob-

serve com atenção o corpo de Simon. Depois de cuidadosa varredura, o companheiro disse: - Percebe-se a deterioração em seu cérebro. - Em breve deixará a Terra, para não mais voltar. - Nunca mais? - Um dia regressará. Quando, dependerá apenas dele.

CINQUENTA E OITO ERA SÁBADO DE manhã e, no Brasil, Isabela almoçava. A empregada veio

com uma caixa do correio nas mãos e avisou: - Dona Isabela, encomenda para a senhora. Erguendo-se em um salto, ela

pegou a caixa. - Deixe-me ver. É de Peter! Curiosa, chacoalhou o embrulho suavemente e indagou para si mesma: - O que será isso? Terminou de almoçar rapidamente e foi até a sala de estar com o pacote

nas mãos. Sentou-se, degustou uma xícara de café fresco e tirou o invólucro da

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embalagem. Havia um bilhete: "Querida, não abra até estarmos frente a frente no computador, hoje à noite. Por favor, é uma surpresa. Amo você, Peter".

Embora a curiosidade a fustigasse, Isabela aguardou até a noite. Nunca um entardecer lhe parecera tão demorado. Mais tarde, mal pôde engolir o jantar e correu até o seu notebook, para conectar-se ao namorado. Assim que conse-guiu, lá estava ele. A jovem foi logo dizendo:

- Recebi sua encomenda. O que está aprontado? Quase me matou de curio-sidade. Isso não se faz. Nunca se pede a uma mulher para não abrir um presen-te que acaba de receber...

- Vai valer o esforço. Pensei em muitas maneiras, e essa foi a melhor que encontrei...

- Posso abrir agora? - Pode. Abra de um jeito que eu possa ver daqui. Isabela sentou-se bem diante da câmera digital e abriu a embalagem. Den-

tro dela havia uma pequena caixa azul com um lindo laço. O coração da moça começou a bater descompassado, pois ela conhecia a tradição de se pedir al-guém em casamento oferecendo um anel de brilhantes.

- O que é isso? - Não consegui pensar em outra forma de pedir. Ela abriu a pequena caixa e lá estava o anel de brilhantes mais lindo que já

vira. Um bilhetinho acompanhava o pacote: "Encontrei a mulher da minha vida. Aceita casar comigo?"

Ela tirou o anel da caixa e exclamou: - Você me surpreendeu demais! Não podia imaginar... - E qual é sua resposta? Ela pensou por alguns instantes, hesitou um pouco, e finalmente, cedendo

à emoção que a invadia, colocou o anel no dedo lentamente e mostrou-o ao noivo:

- Aceito! Peter abriu um imenso sorriso e Isabela indagou: - O que tem em mente? - Vou para o Brasil levando minha família e nos casamos aí, do jeito que

você quiser. Você dirá como quer cada detalhe, e nós o faremos. Pensando no alto custo de uma festa de casamento, Isabela silenciou. Peter,

adivinhando-lhe os pensamentos, disse: - Acabei de receber uma promoção. Passo a ter uma coluna mensal no jor-

nal e fui convidado a assinar outra em uma revista. E quando conseguir editar meu livro, sei que poderei construir uma reserva financeira adequada a uma nova família.

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- Li o livro. Você escreve muito bem. - Tudo isso me aconteceu depois de ter encontrado você, Isabe-la, e não

quero perdê-la. Não quero perder mais nada em minha vida. - E como imagina nossa vida depois do casamento? - Minha sugestão é que você venha para cá, para morarmos em Nova York.

Pode começar sua carreira médica aqui. Falta pouco para terminar a residência, não é?

- Sim, mas essa é uma decisão muito séria. Não tinha pensado em viver fo-ra do Brasil, pelo menos agora.

- Você nunca morou fora de seu país. Será uma experiência interessante. - Preciso de alguns dias para pensar como seriam essas mudanças, enfim,

para refletir sobre tudo o que envolveria essa vida nova. - É claro, não quero pressionar. O melhor é pensar agora para tomar a deci-

são mais correta. Sentindo-se aliviada com a atitude de Peter, e muito feliz pela surpresa que

ele lhe fizera, ela assegurou: - Tenha a certeza de que vou pensar com muito carinho, e muita vontade

de estar ao seu lado. Conversaram até altas horas, e Isabela adormeceu com o anel no dedo. Na

manhã seguinte contou aos pais o inusitado pedido de casamento de Peter. A mãe olhou o anel e comentou:

- Nossa! Agora o rapaz me surpreendeu. Não é que ele sabe fazer as coi-sas? Por essa eu não esperava...

- Nem eu, mãe. - Ele deve estar ganhando bem, então. - Foi promovido. - Mas faz menos de um ano que arrumou o trabalho. - Ele é ótimo jornalista. Estava perdido, precisando reencontrar o rumo de

sua vida. Márcio sorriu da felicidade da filha e brincou: - E parece que o rumo dele é você, não é mesmo? - Você está muito feliz, não é? - comentou Ana Lídia. - Estou mãe... Depois, fitando o pai, segurou suas mãos e emendou: - Embora minha felicidade não seja completa. Seria se você já estivesse cu-

rado. Márcio sorriu ligeiramente. - Você deve seguir com sua vida, procurar a felicidade e a realização, in-

dependentemente de mim...

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- Obrigada, pai, mas eu só vou ficar completamente feliz quando você esti-ver melhorando...

A conversa continuou até o fim daquela manhã de domingo. Nos dias que se seguiram, Isabela pensava sem parar em seu futuro, na decisão que deveria tomar. Muitas vezes sua cabeça rodopiava e ela até sentia vertigens. Desejava, de coração, tomar a melhor decisão e fazer as escolhas mais adequadas para sua vida. Sabia de sua responsabilidade no tocante à mediunidade e já havia compartilhado suas descobertas com Peter, que também passara a estudar a Doutrina Espírita. Ela orava e pedia que Jesus a orientasse sobre o que fazer, porém a decisão lhe parecia muito difícil. Sentia-se confusa e perdida, e não encontrava na mãe a amiga que lhe compreendesse as angústias. Resolveu en-tão falar com sua melhor amiga.

- Preciso conversar com você, Helena. Tenho de tomar algumas decisões e preciso de seu apoio, de sua lucidez.

Com seu sorriso afetuoso, Helena respondeu: - Você sempre poderá contar comigo. Estamos aqui para nos ajudar uns

aos outros. É árdua a tarefa de elevação espiritual que todos devemos abraçar na existência, mais cedo ou mais tarde. Precisamos nos apoiar mutuamente, para que consigamos caminhar... Mas diga, qual é o motivo da sua ansiedade?

- Daqui a duas semanas termino minha residência; estou fazendo os exa-mes finais.

- Isso é muito bom. - Meu pai, não obstante todos os esforços que temos feito, precisa fazer

uma cirurgia delicada e prosseguir com o tratamento, pois seu estado de saúde é gravíssimo. Por outro lado, meu romance com Peter está cada vez mais sério.

- Vocês se encontraram novamente? - Não, mas nos comunicamos diariamente, desde sua última estada aqui.

Conversamos até mais de uma vez ao dia, e falamos por horas pelo computa-dor.

- Vejo que a tecnologia está dando um empurrãozinho nesse namoro... - É muito mais do que namoro. Mostrando o anel à amiga, Isabela disse: - Na verdade, ele me pediu em casamento. Foi completamente inesperado.

E agora, Helena, estou confusa, sem saber o que fazer. Será esse o melhor ca-minho para minha vida? Deixar o Brasil e ir viver em Nova York?

Helena fitou a jovem nos olhos com extremada ternura, depois ergueu-se e andou pela sala. Enquanto isso, orava: que Jesus a ajudasse a ser útil à amiga, aconselhando-a conforme a vontade divina. Depois, voltou a sentar-se.

- Você vem desenvolvendo um trabalho importante em nossa casa, e é ób-vio que contamos com você. No entanto, temos de pensar na sua vida de modo

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mais amplo. Você foi chamada a servir a Jesus através da mediunidade, e esse é um elemento fundamental em sua existência terrena. Além disso, tem seus desafios pessoais, suas provas a vencer, no caminho da evolução; com relação a esses aspectos, no meu entender, o mais importante é manter-se firme em seu propósito de renovação espiritual a que os postulados espíritas nos convidam. Se o fará aqui ou em outro país, cabe a você conversar com Thomas e verificar qual a visão dele a respeito. O que ele lhe disse?

- Não lhe perguntei ainda. - E por que não? - Não sei, é como se ele não fosse aprovar... - Então, quer pedir a opinião, mas tem medo de ouvir algo diferente de sua

vontade? Isso mostra que no fundo já tomou sua decisão. Isabela assentiu com um movimento da cabeça e disse: - Acho que, como sempre, você está certa. No fundo, já tomei minha deci-

são; só tenho receio de ela ser errada, de eu estar abandonado minhas respon-sabilidades espirituais em favor do desejo de constituir meu lar, minha própria família.

- Nossa verdadeira família, Isabela, é toda a humanidade, e onde quer que estejamos podemos servir a Jesus, através dos nossos irmãos em humanidade. A paixão que nos atrai ao sexo oposto está a serviço do Universo, à medida que cumpre o papel de nos aproximar daqueles com quem, na maioria das ve-zes, já estávamos comprometidos. Agora, permita-me dar-lhe um conselho: não tenha medo de seu mentor espiritual, e nunca deixe de escutá-lo. Ele está ao seu lado para ajudá-la. Quer o melhor para você e, a despeito das limitações da posição em que se situa, como espírito, enxerga mais claro do que nós. Ou-vir-lhe os conselhos e orientações apenas a auxiliará.

Emocionada, Isabela abraçou a amiga que tanto amava: - Acho que, mais do que tudo, sinto deixar você, que é para mim como

uma segunda mãe... - E você é como a filha que não tive. -Ah, Helena, sinto-me tão dividida... - Peça ajuda a Thomas; ele a orientará, estou certa. - Podemos fazer isso agora mesmo? Você me ajuda? Após pensar por ins-

tantes, a amiga propôs: - Posso ficar em oração, enquanto você busca sintonia com ele. Helena bai-

xou a cabeça e permaneceu em prece. Isabela orou a Jesus para que iluminasse sua decisão e, a seguir, pediu a Thomas que se

possível a ajudasse. Mantiveram-se em silêncio, mas ele não se manifestou. Decepcionada, I-

sabela ergueu os olhos rasos de lágrimas.

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- Acho que ele está bravo comigo. Por que não aparece? - Ele tem estado ausente? - Ultimamente, mais do que antes. - Deve estar envolvido em tarefas que não podem prescindir de sua presen-

ça. Tenha paciência. Peça e espere. Nem sempre eles podem nos atender no momento exato em que pedimos.

- Está bem, vou aguardar - falou, já alegre e confiante. Perdida em refle-xões, Isabela fez longa pausa; depois, voltando a

prestar atenção em Helena, indagou: - Como está a creche? - Prestes a ser inaugurada. - Quando? - Em duas semanas. Você poderá fazer a avaliação das crianças? - Claro. Estou apta para isso. As duas escutaram a movimentação e as conversas abafadas indicando que

as atividades da noite estavam para começar. Mais tarde, ao se deitar, Isabela refletiu bastante sobre a conversa que tive-

ra com Helena e, por fim, orou a Deus pedindo que Thomas a ajudasse a fazer a melhor escolha. Logo que a jovem entrou em sono profundo, Thomas auxili-ou seu corpo sutil a desprender-se do veículo denso. Isabela fitou-o um pouco atordoada e saudou, quase num lamento:

- Querido amigo, há quanto tempo não o vejo... Abraçando-a com carinho, ele disse, emocionado:

- Estou aqui, pronto para auxiliá-la no que me for possível. - Esteve ausente... - Não totalmente, querida. Tenho estado diariamente com você; no entanto,

a situação de Eliana vem requerendo nossa presença. Essa dedicada trabalha-dora de Jesus encontra-se na linha de ataque de muitos espíritos das trevas, que não querem o avanço do bem sobre a Terra. Visto que é uma trabalhadora do bem, da luz, ela se tornou alvo constante das forças do mal. Em nosso plano, tivemos de mobilizar grande contingente de trabalhadores para assisti-la.

Fazendo breve pausa, Thomas afagou com extrema ternura os cabelos de Isabela; depois continuou:

- Sei que deseja minha opinião nas decisões que precisa tomar. - Estou muito angustiada. O que devo fazer? - O que diz seu coração? Isabela fitou os olhos do amigo e protetor e, como se olhasse para dentro

de si mesma, falou:

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- Desejo casar-me com Peter e viver com ele, seja no Brasil ou nos Estados Unidos.

- E seus pais? - Meu pai precisa de tratamento e poderá fazê-lo com melhores chances

por lá. - Quer levá-los? - Eles querem ir também. - Então, qual é o problema? Que dúvida ainda lhe resta? - Essa é a coisa certa a fazer? E o meu trabalho na casa espírita? - Minha querida menina, já percebeu sua notável fluência no idioma in-

glês? - Sim, desde que tomei contato com o idioma, tenho a maior facilidade...

Meus pais também... - Pois, de fato, sua tarefa está lá e não aqui. Revelando espanto, Isabela olhou interessada para Thomas, que prosse-

guiu: - Sua última romagem terrena foi nos Estados Unidos, por isso a língua e a

cultura lhe são tão familiares. Com o objetivo de se aprimorar e, acima de tu-do, para bem desempenhar a tarefa de auxílio aos irmãos americanos, esse grupo reencarnou no Brasil, onde teve contato com a Doutrina Espírita, a fim de compreender melhor os ensinos do Mestre Jesus. Fique tranqüila, Isabela. Você pode aceitar com alegria o que seu coração lhe diz. Pode viver com Peter nos Estados Unidos, porque aquela pátria necessita demais do conhecimento real de Jesus e de seus ensinos fraternos. Os norte-americanos, de modo geral, afastaram-se dos princípios cristãos, deixando que o orgulho e o egoísmo os dominassem. O apego às riquezas e aos interesses materiais foi tomando conta da cultura americana e se fez senhor absoluto da nação. Atualmente, eles espa-lham materialismo, egoísmo e individualismo pelo mundo, acarretando res-ponsabilidades e débitos cujo ressarcimento lhes será muito penoso. Precisam entender o sentido do amor e da fraternidade, bem como aceitar a realidade do espírito e sua supremacia sobre a matéria.

- Como foi que essa nação, nascida sob a égide dos protestantes fugidos da Europa - que basearam a própria colonização do país em seu amor ao Evange-lho -, distanciou-se tanto de seus verdadeiros princípios?

- Esse é o grande perigo do culto exterior. Se não cultuamos a Deus com o coração e a razão, se aceitamos viver de aparências, se nos contentamos em repetir hábitos que nos são impingidos pelos superiores religiosos, sem viver a genuína ligação com o Pai e com Jesus, aos poucos nos distanciamos da ver-dade. Quando nos damos conta, já criamos novos paradigmas, muito diferentes

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daqueles que Jesus nos transmitiu, mas que nos satisfazem o orgulho e a vai-dade, servindo muito bem aos interesses imediatistas que tanto nos preenchem os sentidos quanto deixam um buraco em nossa alma,

-É triste... - Sim, e os espíritos superiores estão preocupados com esse povo que, tão

rico de recursos, progressivamente se distancia da verdade. - Muitos estudiosos admitem a existência dos espíritos. Tenho lido interes-

santes trabalhos de pesquisa, inclusive realizados com médiuns... - Sem dúvida, eles utilizam médiuns em diversas atividades -por exemplo,

para subsidiar ações de órgãos do governo. Cientistas efetuam muitas pesqui-sas e descobertas, mas aqueles que estão no poder mantêm essas questões o-cultas da população comum. Sabem que o contato com a verdade liberta as consciências e não desejam que o povo seja livre e enxergue com clareza o quanto é dominado pelos interesses econômicos que governam a nação ameri-cana e, por conseguinte, exercem notável influência sobre o mundo todo.

Isabela baixou os olhos cheios de lágrimas. Thomas ergueu seu rosto sua-vemente e disse:

- Eles precisam de almas corajosas que, mais do que falar dos ensinos de Jesus, estejam dispostas a vivê-los na prática. Precisam, do amor, da fraterni-dade e da realidade que os conhecimentos espíritas nos descortinam. Você pode ajudá-los, se conservar o firme propósito de pôr sua mediunidade a servi-ço do próximo, com Jesus.

O companheiro espiritual abraçou a jovem com extrema ternura, ao reco-mendar:

- Vá, querida, assuma as tarefas que se propôs antes de voltar à Terra. E não tenha medo, estarei sempre ao seu lado.

Isabela fixou os olhos nos de Thomas e disse: - Eu sei quem você é... Quero dizer, sei que vivemos juntos experiências

anteriores. Às vezes, quando temos essas conversas durante o sono, ao desper-tar me vêm à mente muitas imagens nas quais vejo você. Surge de maneiras diversas, com várias aparências; contudo, são os seus olhos que encontro nes-ses homens diferentes de outras épocas. Já estivemos juntos, não é?

- Somos um grupo de espíritos ligados por laços afetivos e por débitos do passado.

Ele silenciou e Isabela agradeceu: - Muito obrigada pelo seu carinho, por me ouvir e cuidar de mim em todos

os momentos. Thomas a abraçou outra vez, em eloqüente expressão afeto. - Tenho só um pedido a fazer - disse.

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- Farei qualquer coisa que me pedir. - Eliana e Helena vão precisar de muito apoio, ao iniciarem as atividades

da creche. Você poderia ficar ao menos mais alguns meses no Brasil? Sem necessidade de pensar, Isabela respondeu: - E claro. Quanto tempo acha que seria adequado? - O ideal seria ao menos quatro meses. - Vou utilizar esse tempo para fazer com calma todos os preparativos da

minha mudança. A única preocupação é meu pai. Thomas escolheu bem as palavras com que procurou esclarecer: - O caso de seu pai é bastante delicado. Como disse, somos um grupo de

espíritos que vêm trabalhando, encarnação após encarnação, no sentido de se libertar de débitos e defeitos, para ascender espiritualmente, rumo à perfeição. Nossas almas anseiam pelo progresso e pelo amadurecimento, pela elevação e pela pureza, porém ainda estamos presos a dívidas contraídas perante a lei di-vina. Esse é, também, o caso de Márcio. Ele enfrenta grande luta para perdo-ar...

- É a mim que ele não consegue perdoar, não é? Eu sei... Sinto que tenho um débito com ele, mesmo sem ter feito nada que o agredisse na presente en-carnação. Sempre me senti assim com referência ao meu pai...

- Ele não consegue perdoar a você nem a... Peter. - Peter? - Sim. Acho que a dificuldade maior ainda é com Peter; a você ele já não

odeia, ao passo que em relação a Peter persiste muito ressentimento. Essa é uma das razões da doença que lhe corrói o corpo físico. Ele traz mágoas pro-fundas, arraigadas em seu perispírito. Márcio precisa perdoar, mas reluta em conhecer o caminho que poderá conduzir à libertação definitiva de suas maze-las interiores. Esconde-se atrás da máscara do materialismo, para não ter de lidar com seus problemas espirituais.

- E por que existe esse ressentimento todo? O que fizemos a ele? - O esquecimento do passado é uma grande bênção. É somente quando es-

tamos prontos para enfrentar os erros que cometemos, sem nos afundar na cul-pa e no remorso, que ele se ergue de nosso subconsciente. Por ora, é suficiente saber que vocês três já viveram juntos em Roma e ocuparam altas posições. Perderam-se na ambição pelo poder, e você e Peter acabaram por adquirir dé-bitos com Márcio. Ele, por sua vez, endurecido no orgulho ferido de quem perdeu o poder tão desejado, não consegue perdoar...

- Por isso ele tem tanta dificuldade para aceitar o Peter... Voltando para Thomas os olhos úmidos, ela indagou:

- E ele poderá ficar curado?

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- A doença é o emissário divino que o alerta quanto à necessidade de fazer mudanças em seu interior. Infelizmente, ele continua relutando...

- Então o tratamento será inútil? - Lutar pela vida nunca é inútil, Isabela. Leve-o para tratar-se, sem se preo-

cupar se esses três ou quatro meses a mais aqui no Brasil seriam determinantes para sua cura; isso posso assegurar que não.

Com incontida tristeza, Isabela balbuciou: - Estou cansada... - Agora precisa repousar. Thomas auxiliou a jovem a recolocar-se sobre seu corpo denso e logo ela

adormeceu mais profundamente. Ao despertar, na manhã seguinte, trazia vivas na memória as impressões de seu encontro. Lembrava-se de trechos do diálogo e das emoções que sentira. Procurou fixar o máximo que pôde daquela experi-ência, consciente de que não se tratara de simples sonho. Depois, levantou-se com calma e se preparou para anunciar à família a sua decisão.

Apesar de não aprovar de todo a deliberação da filha, Márcio sentia-se en-fraquecido pela doença, e o que desejava de fato era buscar a cura naquele país mais desenvolvido. Além disso, a idéia de estabelecer residência definitiva nos Estados Unidos lhe agradava sobremaneira. Pouco depois, Isabela comunicou a decisão ao noivo, que recebeu a notícia com grande entusiasmo.

Começaram os preparativos para o casamento e para a mudança de resi-dência de Isabela e da família. Logo informaram Rafael, que contribuiu com a sua parte para que os planos se concretizassem. Márcio prosseguiu no trata-mento, mas nada o fazia melhorar.

CINQUENTA E NOVE ELIANA ATENDIA a uma mãe, no espaço iluminado da creche que se prepa-

rava para receber os bebês e as crianças. Explicava, amorosa: - É preciso que você esteja trabalhando, minha filha. A creche destina-se,

fundamentalmente, àquelas mães que precisam trabalhar e não têm com quem deixar os pequenos.

- É que eu preciso arrumar emprego, dona - insistia a mulher, visivelmente contrariada. - Ainda não tenho, mas vou procurar trabalho.

- Vamos fazer o seguinte: seu nome ficará em nossa lista de espera; assim que atendermos as mães já empregadas, se tivermos vaga, vamos procurar você.

Iracema ergueu-se indignada:

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- Vão se arrepender... Eu sou da comunidade, e quero deixar meu filho a-qui. Vocês vão ver só! Não podem fazer isso comigo. O pai deles vai dar uma lição em vocês... Garantiram que eu encontraria vaga para meus três filhos, principalmente o bebê... E agora você vem dizendo que não posso? Você é que não deve ter ido com a minha cara e não quer receber meus filhos.

Sem pausa, e aos gritos, a mulher prosseguiu: - Qual é o problema? Acham que as outras crianças são melhores do que as

minhas? É isso? Fale logo! Calma, porém firme, Eliana pediu: - Por favor, acalme-se. Não é nada disso. Você não está compreendendo. - Claro que estou. Iracema, fortemente influenciada por espíritos das trevas que desejavam

destruir Eliana, perguntou: - Está me chamando de burra também? No instante em que ia responder, Eliana sentiu a influência sob a qual se

encontrava a jovem mãe e, seguindo orientação espiritual que lhe brotava no âmago, através da intuição, disse:

- Olhe, Iracema, acho melhor você retornar em outro dia, quando estiver mais calma. Nossas portas estão abertas para você e seus filhos. Traga-os quando quiser...

A jovem não a deixou concluir. Ergueu-se, furiosa, e gritou ainda mais alto: - Meus filhos são bons demais para vocês, porcos imundos! Eles não vão

colocar os pés no lixo que é esta instituição miserável. Levantou-se, pôs a bolsa no ombros e, já perto da porta, virou-se para Eli-

ana e ameaçou, entre dentes: - Vocês me enganaram... Vocês me pagam... Aquele Mateus também vai

se ver comigo. Saiu gritando ofensas e palavrões pelo corredor, até alcançar o pequeno

saguão da recepção. Helena entrava naquele instante e cruzou com a mulher que saía esbravejando. Observou-a e entrou, preocupada com Eliana. Esta permanecia sentada, tentando compreender o que se passara. Ao ouvir a men-ção do nome de Mateus, sentiu de imediato que havia algo mais naquela in-formação. Algo deplorável. Assim que a viu, Helena indagou:

- Você está bem? - Acho que estou. - O que foi que aconteceu? Na entrada vi uma moça que não parava de

gritar... Quem era? O que ela queria? - Era Iracema, moradora da comunidade. Teve essa reação quando infor-

mei que estamos dando preferência, neste momento, às mães que já trabalham.

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- Ela não tem serviço fora de casa? - Não. Disse que vai arranjar, mas queria que os filhos ficassem aqui desde já. - Que reação agressiva, meu Deus! Já presenciei atitudes hostis de outros

moradores da comunidade, que saíram daqui ofendidos, mas tal extremo nunca tinha visto.

- Nem eu. Estou surpresa e intrigada. - Intrigada? - Sim. A moça mencionou o nome de Mateus e disse que alguém aqui lhe

garantiu que poderia trazer os filhos; que a instituição os receberia, por terem o perfil adequado.

- Quer dizer que Mateus deu falsas esperanças à moça? - Não sei se foi ele. - Ora, se ela mencionou seu nome... Quem mais seria? As duas ficaram a

refletir, até que Helena questionou: - Mateus costuma visitar a comunidade, Eliana? Ele participa da sopa ou

de alguma outra atividade assistencial? - No início participava, depois parou. Tem comparecido apenas às tarefas

doutrinárias; há muito deixou de lado as beneficentes. - Será que ele conhece alguém da redondeza? - Não faço a menor idéia, Helena. - Essa história está soando muito estranha. Sinto um mal-estar, não sei por

quê... - Eu também. Basta mencionar o nome de nosso irmão para que um sinis-

tro arrepio percorra meu corpo. Precisamos ter cautela, Helena. Essa jovem me pegou meio despreparada para esse tipo de problema.

- Você está certa. Redobremos a oração e a vigilância. Há algo esquisito no ar. As duas se calaram e retomaram as respectivas tarefas. Helena foi até a re-

cepção para chamar a próxima mãe a ser atendida e encontrou o espaço vazio. As duas mães que à sua chegada esperavam haviam ido embora. Ela retornou e ambas deram continuidade às providências para a inauguração da instituição, que aconteceria dali a duas semanas.

Na manhã seguinte, ao chegar à instituição, Eliana deparou com a porta da frente arrombada. Entrou, preocupada, e verificou que tudo se mantinha em ordem. Seu coração, entretanto, estava pesaroso. Captava formas-pensamento e energias densas endereçadas a ela como raios a cortar o céu. Orava incessan-temente, pedindo a proteção do Mestre.

Prosseguiu com o trabalho de atendimento às mães, notando que a procura caíra drasticamente. Ao partilhar sua inquietação com Helena, a companheira e amiga estimulou-a a fazer um boletim de ocorrência sobre o arrombamento.

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- Acha mesmo que é necessário? - Para mim, é o melhor a fazer. Você não pode deixar passar assim... Afi-

nal, não sabemos o que de fato está ocorrendo, não é? - Não gostaria de fazer isso... - Eu sei, mas é preciso, Eliana. Devemos ir agora, no horário do almoço. As duas foram até a delegacia, onde o delegado as recebeu pessoalmente.

Mirando Eliana de alto a baixo, indagou com frio desdém: - O que querem? Eliana comunicou a questão da porta arrombada, sem obter do delegado a

mínima atenção. Ao contrário, antes que finalizasse, ele a interrompeu: - Esse arrombamento deve ser tramóia sua mesmo! Eliana ficou muda diante da acusação. Helena levantou-se e interveio, in-

dignada: - O quê?! Que absurdo é esse? - Está querendo também o dinheiro do seguro, não é? Essa tal creche não

tem seguro? - Tem, e daí? - Nem crianças existem lá, e já tem seguro. - Senhor, está havendo algum engano. A nossa instituição atua no bairro há

mais de quinze anos, prestando serviços à comunidade. Nunca houve qualquer problema, o senhor deve saber do histórico.

- Não conheço o bairro. Assumi a delegacia há pouco mais de um ano e te-nho ouvido muitas histórias sobre vocês. Especialmente você, dona Eliana, sua macumbeira desvairada. Para que quer crianças agora? O que pretende fazer com elas?

Helena ia intervir novamente, quando Eliana a impediu. Sem perder a se-renidade nem desviar os olhos dos do delegado, falou com firme autoridade moral:

- Desculpe-me, senhor, mas pode registrar a ocorrência? Incapaz de susten-tar-lhe o olhar, o delegado respondeu:

- Vou chamar um escrevente. Ele fará o boletim. Eliana continuou a fitá-lo, destemida. O celular do delegado tocou e, quan-

do ele se afastou para atendê-lo, Helena comentou: - Eliana, esse homem a ofendeu... - Deixe, Helena, não nos detenhamos nas sombras. Há muita sombra aqui.

Se temos de fazer o documento, façamos. Eu não quero mais distrações. Como o escrivão não apareceu, Eliana ergueu-se e foi até ele: - Por favor, meu filho, estou muito cansada. Pode me atender? Com visível

má vontade, o rapaz preencheu o documento.

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Quando estavam saindo, o delegado disse em tom de ameaça: - Vou até a instituição. Quero fazer uma vistoria por lá. Helena olhou para

Eliana e esta disse: - Fique à vontade. - Não preciso de sua autorização. Tenho um mandado - informou, tirando

um papel do bolso. Incrédula, Helena questionou: - Por quê? - Saberá quando acharmos o que estamos procurando. Junto com um policial, ele efetuou minuciosa busca na instituição e nada

foi encontrado. Preparavam-se para sair quando o delegado olhou para a área externa e perguntou:

- O que há lá em cima? - Nada, essa escada leva ao teto, onde há um alçapão para o telhado. Te-

mos intenção de continuar nossa construção no futuro, e deixamos a escada pronta. Lá em cima, por enquanto, há apenas a caixa d'água.

Fortemente intuído por entidades espirituais enfermiças, ligadas ao mal, ele resolveu:

- Vou subir. Helena ia falar, porém Eliana e impediu: - Deixe, Helena. Não demorou para que o delegado gritasse lá do alto: - Everaldo, ajude aqui. As amigas se entreolharam, espantadas. - O que pode ser? - disse Helena - Não sei. Eliana, tomada de repentina angústia, orava insistentemente pela proteção

de Jesus. Logo o policial desceu, trazendo duas sacolas de feira cheias de pro-dutos eletrônicos e outros objetos. Em seguida vinha o delegado, com outras duas sacolas. Jogou tudo aos pés de Eliana e indagou:

- O que é isso? - Eu não sei. - Sabe, sim senhora. E uma carga de produtos eletrônicos que foi roubada

anteontem aqui mesmo, no bairro. - Senhor, eu nunca vi essas sacolas. Isso não pertence a mim nem a nin-

guém de nossa instituição. - E o que veremos. Virando-se para o policial, o delegado ordenou: - Prenda.

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- As duas? - Não, somente a dona. - Se vai levá-la, terá de me levar também... - declarou Helena. Eliana cor-

tou a discussão: - Helena, preciso de sua ajuda; procure o Roberto ou o André. Ambos são

advogados e poderão ajudar. - Mas... - Não faça nada, por favor. Deixe que me levem... Por favor, vá agora. Helena respeitou a orientação e saiu. Em pé, na calçada, três entidades es-

pirituais se divertiam ao ver Eliana, algemada, ser levada para a delegacia. Uma delas disse:

- Agora eu quero ver onde vai ficar a fé dessa mulher... Ela vai passar a noite no xilindró....

E gargalhavam prazerosamente. Eliana escutava a conversa dos três, graças à permissão de seu orientador espiritual. Este, sentado ao seu lado no carro, tranqüilizou-a:

- Não tenha medo. André vai ajudá-la e nada acontecerá. Mentalmente ela argumentou:

- E as sacolas? São prova irrefutável. - Apresentaremos os verdadeiros culpados, mantenha-se firme. Amparada pelas energias revigorantes de seu mentor espiritual, Eliana per-

maneceu serena e confiante. Ao adentrar a delegacia, havia um tumulto instalado. Dois jovens gritavam,

acusando-se mutuamente. O delegado foi saber do que se tratava e os levou para sua sala. Lá ficaram por longo tempo, enquanto Eliana, sentada, aguarda-va. Depois de quase duas horas, ele voltou sério e disse:

- Pode ir embora. No momento em que ela se levantou, fitando-o para confirmar a liberação,

André entrava na delegacia com Helena. Foi até Eliana e orientou: - Não diga nada. O delegado, adivinhando nele o advogado, disse: - Ela pode ir. Não há mais qualquer acusação. Helena não se conteve: - Como assim? E as sacolas? O delegado apontou os dois jovens algemados e bêbados: - São dois estúpidos. Foram eles que colocaram lá as sacolas a mando de

Clayson, um traficante perigoso, que comanda o crime na comunidade. - Mas por quê? Eliana logo disse: - Iracema... O delegado cocou a cabeça e disse:

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- Eles são ajudantes do Clayson e muito perigosos. Nunca os vi bêbados e tão sem lucidez como agora. Parece que foram hipnotizados...

- Posso ir, doutor? - Eliana perguntou. Evitando seu olhar, o delegado deu a autorização. Ela deixou a delegacia

em companhia dos amigos. - Muito obrigada por vir me socorrer, André. - O que é isso? Como poderia ter feito outra coisa? Que arapuca armaram

para você, minha irmã?! Estou impressionado... - É, André, por isso temos de orar e vigiar o tempo todo... Helena comen-

tou, já dentro do carro: - O que não compreendo é o porquê disso. Eliana calou-se e meditou por todo o trajeto de volta. Naquela noite, assim

que entrou na casa espírita, procurou por Mateus. Ele não aparecera. Chegou finalmente o dia da inauguração da creche. Com singela solenida-

de, o subprefeito da região deu por inaugurada a casa que receberia as crianças da comunidade. Os desafios eram grandes e Eliana se dedicava por inteiro, atendendo as crianças pessoalmente. Desejava conhecer cada uma delas.

Decorridos dois meses, Eliana conversava com Isabela sobre as atividades, quando uma senhora entrou com três crianças, uma delas um bebê de colo, pedindo ajuda.

- O que houve? -indagou a dirigente. Chorando, aflita, a mulher explicou: - Houve um tiroteio lá em cima e balearam o pai deles. A mãe ficou total-

mente descontrolada. Poderiam ajudar as crianças? Tomando imediatamente nos braços a criança menor, Eliana respondeu: - Claro. E logo conduziu as outras duas, assustadas, a um grupo de crianças que

brincava no pátio interno, retornando em seguida: - Agora sente-se e me explique: quem são os pais das crianças? A mulher

baixou a cabeça e suspirou, sem responder. Eliana insistiu: - Preciso saber quem são as crianças. Fale, por favor. A outra hesitou um

pouco, depois lamentou: - Quando souber quem são os pais, a senhora não vai mais querer cuidar

deles... Eliana procurou acalmá-la, garantindo: - Não se preocupe, isso não vai acontecer, até porque as crianças não têm

culpa das imprudências dos pais. Pode dizer. - A mãe deles é a Iracema e o pai... bem... é o Clayson, que controla o trá-

fico de drogas no bairro...

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Eliana encostou-se na cadeira e exclamou: - Meu Deus! - Viu só? Não disse que a senhora não ia mais querer saber deles?... - Não é isso, minha filha, fique tranqüila. As crianças podem ficar, vamos

cuidar delas, sim. Estou impressionada é com a forma como os acontecimentos vão se desdobrando...

Eliana emudeceu por alguns instantes, depois indagou: - Onde está Iracema? - Está na casa dela, totalmente bêbada. Assim que o marido foi baleado e

levado pela polícia, ela começou a quebrar tudo o que tinha dentro de casa; jogou a televisão porta afora, se descontrolou, coitada... As crianças ficaram apavoradas; a gente escutava a gritaria e o choro delas. Depois, a mãe saiu como louca a gritar pelas ruas, querendo ir atrás da viatura que levou o Clay-son. Eu e mais três vizinhas ficamos cuidando das crianças; quando ela voltou, estava completamente bêbada e... acho que drogada também. Nem notou que as crianças estavam lá, vendo a mãe daquele jeito. Então, achei melhor traze-las para cá.

- Quer dizer que Iracema nem sabe que estão aqui? - Não. Ela está dormindo. - Acho melhor avisarmos ao conselho tutelar o que está havendo. - Não, não pode fazer isso. Ela vai ficar furiosa com a gente! - Entenda a nossa situação. Se não avisarmos o conselho, ela poderá vir

aqui e nos acusar de ter raptado as crianças. Sabe que já tivemos problemas por causa dela...

- E, eu sei. - Pois então. Vou ligar para a vara da infância e informar o que está ocor-

rendo. Podemos ficar com as crianças aqui, desde que eles saibam. Depois de algumas horas, uma assistente social entrava na instituição e E-

liana a colocava a par de todo o caso. A moça foi até a casa de Iracema, que ainda dormia, totalmente dopada. Voltando à instituição, a assistente disse:

- Seria melhor levarmos as crianças para um abrigo, pois aqui não terão onde passar a noite.

Eliana refletiu um pouco e perguntou: - E se eu as levasse para dormir em minha casa e as trouxesse para a insti-

tuição durante o dia? - Não sei, acho o procedimento fora dos padrões... - A mãe está perturbada, ignorando a situação do pai das crianças. Talvez

com isso consiga se acalmar e se reequilibrar. Tendo as crianças por perto, seria mais fácil.

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- A senhora está disposta a levá-las para sua casa? - Poderiam passar algumas noites lá. Tenho bastante espaço... A moça sen-

tou-se ao lado de Eliana e disse: - Aprecio sua dedicação, porém não me parece a melhor solução. Vou pro-

videnciar-lhes um abrigo para a noite. Durante o dia, se a senhora tiver como mandar buscá-las, poderão ficar na creche, mais perto da mãe.

- Está certo. Você é quem sabe. - Creia-me, será melhor assim. Eliana não insistiu. A assistente social levou as crianças, garantindo que as

traria novamente no dia seguinte. Ao final do dia de trabalho, depois que todas as crianças deixaram a creche, ela foi, em companhia de Helena, até a casa de Iracema. Bateram na porta, sem obter resposta. Helena fitou a amiga e pergun-tou:

- Tem certeza de que quer fazer isso? - Quero ajudá-la. Eliana bateu e chamou, sem sucesso. Abriu a porta, que estava destranca-

da, e entrou; encontrou Iracema deitada na cama, ainda dormindo. Após to-mar-lhe a pulsação, foi até o fogão. Havia trazido legumes frescos e preparou um sopa suculenta e substanciosa para quando a jovem despertasse. Queria contar-lhe sobre a crianças pessoalmente. Quando a sopa estava quase pronta, Iracema apareceu na cozinha, cambaleante. Deparou com as duas estranhas em casa e, olhando-as com desprezo, indagou aos berros:

- O que estão fazendo aqui? Calma, Eliana procurou explicar: - Sente-se. Preparamos uma sopa para você, venha. Precisa se alimentar. - Quem pensa que é? Minha mãe? Não quero nada seu... Não quis fazer

nada quando eu pedi... Aí ficou prejudicada, não foi? Caiu em copioso pranto, para logo em seguida dar sonoras gargalhadas.

Helena e Eliana se entreolharam e esta falou: - Bem, já vamos indo. Se precisar de alguma coisa, Iracema, sabe onde me

encontrar. Quero ajudá-la. As duas saíram, e logo Iracema assomou à porta, gritando: - Não preciso de vocês! Sei que não valem nada... São umas interesseiras.

O Mateus me contou tudo. Vocês só querem usar as pessoas pobres daqui para tirar dinheiro do governo... Não quero nada com vocês...

Ao entrarem no carro, Helena falou, enquanto atava o cinto de segurança: - Então Mateus andou espalhando calúnias a nosso respeito. - Tem o telefone dele? - Eliana falou num suspiro. - Tenho, está aqui na minha agenda. - Depois de levá-la em casa, vou ver Mateus.

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- Quer que eu vá com você? Sorrindo, Eliana respondeu: - Não precisa, Helena, já são quase dez horas. Você tem sua família. - Prefiro ir com você. Eliana calou-se, aceitando, com prudência, a oferta da amiga. Foram direto

para a casa de Mateus. Ela estacionou o carro e ligou. - Mateus, como está? - disse quando ele atendeu. - Oi, Eliana. - Pode falar, ou está ocupado? - Estou meio ocupado... Aliás, de saída. - Não vou demorar. Diante do silêncio do outro lado da linha, ela prosseguiu: - Podemos conversar um pouco agora? - Fale. - Não por telefone. Estou aqui em frente ao seu prédio. Posso subir? Ele hesitou e Eliana afirmou, já atravessando a rua com Helena em direção

à portaria: - Estou subindo. É bem rápido. Em alguns instantes, ela tocou a campainha e a porta foi aberta. - Boa noite, Mateus. - Boa noite, Eliana; boa noite, Helena. Entrem. - E uma visita curta. Indicando-lhes o sofá, ele perguntou: - O que aconteceu? Eliana, séria, disse: - Estou preocupada com você. Há mais de dois meses não aparece no cen-

tro, ficamos todos preocupados. - Tenho trabalhado muito. Estou prestes a ser promovido; além do mais,

vou fazer uma viagem de negócios, visitando alguns clientes no sul do Brasil. Está difícil conciliar tudo.

- Entendo. E quando voltará? - A viagem vai durar umas duas semanas. Influenciada por seu protetor e por outros amigos espirituais que a apoia-

vam, ela esclareceu: - Não, Mateus. Quero saber quando vai retornar dessa viagem que empre-

endeu para se afastar cada vez mais do Criador. Helena, em oração, mantinha a cabeça baixa. De imediato Mateus ficou

sem cor e sentiu as pernas tremerem. Estranho sentimento apossou-se dele, que resmungou:

- Do que está falando? Parece maluca. Agora completamente envolvida pelo protetor, ela redarguiu:

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- Você sabe do que estou falando. Ainda há tempo de voltar atrás em suas ações, mas em breve ele se esgotará. Por que adiar mais?

Atemorizado, Mateus disfarçou: - Já disse que não sei do que está falando. E agora preciso sair, tenho um

compromisso importante... Um jantar de negócios. Pousando no rapaz seus profundos olhos negros, Eliana ergueu-se e, com

extremada ternura, tocou-lhe as mãos: - Até quando vai fugir do bem? - O que quer dizer com isso? - Sei que nos tem caluniado. - Isso é mentira. - Não estou aqui para acusá-lo, Mateus, e sim para pedir que reflita sobre o

que tem aprendido, pelos preciosos ensinos de Jesus. Eles são vida para nossa alma doente. Precisamos desse alimento espiritual para ser curados.

Mateus desconversou: - Preciso ir. As duas se levantaram e Eliana falou: - Está bem, já vamos embora. Mas prometa que vai ao menos pensar no

que lhe pedi. Ele apenas balançou a cabeça afirmativamente, enquanto as acompanhava

até a porta. Assim que elas saíram, sentou-se no sofá sentindo o coração acele-rado. Estava confuso. Aquela mulher tinha o poder de mexer com suas emo-ções mais secretas e fazia despertar o melhor que havia dentro dele. Identifi-cando o conflito interior de Mateus, as duas entidades espirituais que o assedi-avam sugeriram:

- Você não vai dar ouvidos a essa beata, não é? Não percebe que é uma louca? E doida varrida. Esqueça essa mulher de uma vez por todas.

E sentando-se na poltrona ao lado de Mateus, que registrava aquelas pala-vras como se fossem seus próprios pensamentos, comentou com o outro espíri-to, que se mantinha em pé:

- Ele foi incapaz de acabar com ela. Era para fazer algo que a comprome-tesse, que realmente a exterminasse... Não conseguiu, não teve coragem. Esse é um frouxo mesmo. E melhor que não volte àquele lugar. Nunca mais.

- E isso mesmo. Lá ele não pisa mais. - Se voltar, é bem capaz de bandear-se para o outro lado, tal a fraqueza que

demonstrou aqui. - Será? - Não duvido, não. - Eles não são tão poderosos... Licínio é dos nossos há muitos milênios.

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- Só que aquela mulher também não desiste dele... - É, isso é verdade. - Apesar de concordar que eles não têm tanto poder assim, de qualquer

modo acho bom que ele não vá mais lá, para garantir. Vamos providenciar a promoção e a transferência dele para outra cidade. Poderá ser útil em outro centro espírita; afinal, já desestruturou uns três ou quatro, não foi?

- Um deles fechou as portas de vez. - Então, ele ainda pode ser de grande utilidade para nós. Aqui não conse-

guiu porque ela é a dirigente. Certamente em outra parte fará bons estragos. - Então vamos. Temos muito trabalho a fazer. Deixando Mateus pensativo e exausto, saíram as duas entidades a tramar

como fariam para que ele, de novo a serviço dos seus propósitos, fosse bem-sucedido.

SESSENTA ERA o INÍCIO DA primavera de 1999. A doce fragrância que se desprendia

das flores invadia todos os ambientes. A linda chácara alugada por Isabela e Peter estava enfeitada de flores por todos os lados. Bem nos moldes america-nos, tinha sido preparado para a cerimônia um palanque de madeira, envolto por dois círculos do mesmo material e treliças de bambu cobertas de rosas, copos-de-leite e lírios. Os lírios exalavam perfume suave e envolvente. O pe-queno palanque ficava na parte central do pátio gramado dos jardins da casa, onde cadeiras dispostas sobre a grama acomodariam os convidados. Entre as cadeiras, rosas e lírios embelezavam o trajeto que os noivos fariam até o altar, lindamente decorado. A curta distância estavam as mesas sob guarda-sóis que após a celebração receberiam os convidados para o almoço.

Eram pouco mais de nove horas e as fileiras de cadeiras estavam totalmen-te ocupadas. Alegre expectativa pairava no ar. Perto das 9hl5 o juiz de paz tomou seu lugar no altar. Depois, Jennifer, a filha de Peter, apareceu vestida de dama de honra, tendo nas mãos uma pequena caixa com as alianças; ao som de música clássica, foi até o altar. Logo em seguida, Peter surgiu ao lado da mãe, caminhando também para o altar. Fez-se silêncio. Dentro da casa, Isabela se olhava no espelho pela última vez. Ajeitou o cabelo, arrumou o batom no can-to da boca e, fitando o pai, convidou:

- Vamos? - Sim. Márcio sentia-se incapaz de participar do contentamento de Isabela. Ape-

sar de reconhecer que era uma boa filha e que merecia ser feliz, não conseguia

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alegrar-se com ela. Já Ana Lídia, emocionada, contemplava pai e filha prontos para seguirem até o altar, satisfeita pela presença de Márcio naquela ocasião importante, ainda que em condições de saúde tão lastimáveis. Quanto a Isabe-la, não obstante entristecida por ver o pai naquela situação, estava profunda-mente feliz. Mesmo sem ter alimentado durante a adolescência o projeto de casamento, como muitas de suas amigas, naquele momento sentia como se fosse o que mais desejava na vida. Sentia como se realizasse antigo sonho e acalentava, no fundo do coração, o desejo de ter filhos assim que fosse possí-vel.

Segurando com força o braço do pai, pediu que abrissem a porta e, bela e radiante, caminhou pelo corredor entre as cadeiras na direção de Peter. Seu coração batia descompassado, e a custo continha a emoção. Lágrimas brota-vam de seus olhos e desciam pela face, enquanto ela sorria feliz. Não podia tirar os olhos de Peter. Estava lindo e, ao aproximar-se dele, pensou que seu coração fosse explodir. O noivo tomou-lhe a mão e beijou-a com carinho. De-pois cumprimentou o sogro, que não mostrava nenhuma empolgação, e condu-ziu-a ao altar. Amigos mais próximos, entre eles Helena e o marido, foram os padrinhos. A cerimônia, rápida e simples, foi abrilhantada pela presença de oito músicos que interpretaram com esmero e perfeição as obras selecionadas. Eram sete instrumentistas - com flauta, dois violinos, harpa, trompete, violon-celo e piano -, além de uma cantora. De tão bonita, a singela celebração arran-cou suspiros dos convidados mais emotivos.

Durante o almoço, Isabela cumprimentou um a um e apresentou o marido àqueles que ainda não o conheciam. Mais tarde, sentou-se à mesa ocupada pelos amigos da casa espírita, onde também estavam Eliana e Helena. Esta, ao receber da noiva um terno e emocionado abraço, comentou:

- Não me lembro de ter visto uma noiva tão alegre! Estou muito contente por você, querida, e rogo a Deus que abençoe esta união.

Isabela deixou-se envolver pelo abraço afetuoso, sentindo-se inteiramente feliz. Depois de breve silêncio, Helena indagou:

- Seu irmão conseguiu vir para o casamento? Isabela sorriu desconsertada: - Não, ele acabou não vindo. Disse que tinha compromissos inadiáveis,

mas eu não acredito. - Por que não? Vocês são amigos, não são? - Rafael e eu sempre fomos amigos, mesmo tendo nossas diferenças. No

entanto, depois que ele se mudou para os Estados Unidos ficou mais fechado, mais individualista, até mais egoísta. Não se sacrifica por ninguém e, da ma-neira como venera aquele país, vir para o Brasil, ainda que fosse para o meu casamento, certamente seria um sacrifício para ele.

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Helena, quase arrependida por ter feito a pergunta, disse: - Perdoe-me, Isabela, não devia ter tocado nesse assunto... - Não se preocupe. Eu lhe falei tanto do meu desejo de que ele viesse, e do

meu receio de que não pudesse estar aqui, que é natural você querer saber. Minha amiga, jamais me ofenderia ou magoaria, mesmo que quisesse.

Depois disso, reafirmou seu imenso carinho: - Sabe que a amo como minha mãe, Helena. - E você também sabe que eu a amo como a uma filha. Findo rápido silên-

cio em que acalmaram a comoção, Helena perguntou: - E quando partem? - Em duas semanas. - Como se sente? - Ansiosa e assustada, porém entusiasmada. Isabela continuava a trocar impressões e falar sobre seus planos com ami-

gos, quando Peter a interrompeu, convidando a esposa para a dança dos noi-vos. A festa estendeu-se até a noite.

Na semana seguinte, ao término das atividades da casa espírita, Isabela sa-iu com alguns dos companheiros para um jantar de despedida. Peter a acompa-nhava, atencioso. Ela confidenciou a Helena e Eliana:

- Agora que o momento de partir se aproxima, estou ficando apreensiva. E se não me adaptar na casa espírita em Nova York, o que farei?

- Você está com os dados daqueles amigos que lhe indiquei? -perguntou Eliana.

À resposta positiva, ela sorriu e assegurou: - Não se preocupe, são pessoas sérias e dedicadas ao estudo da Doutrina

Espírita. Estão desenvolvendo um trabalho muito bom, inclusive no atendi-mento às pessoas mais necessitadas. São fiéis aos ensinos espíritas codificados por Allan Kardec; além do mais, imprimiram às suas atividades características similares às da nossa instituição. Não tenho dúvida de que se sentirá em casa.

Ansiosa, Isabela quis confirmação: - Tem certeza mesmo, Eliana? - Absoluta. Fique tranqüila, tudo correrá bem. Já lhes falei sobre você e e-

les a aguardam, com tarefa reservada e tudo o mais. Seu trabalho continuará por lá, onde será muito útil.

Isabela sorriu, enfim serena. Solicitada por outros companheiros, Eliana levantou-se. Isabela acompanhou-a com os olhos, depois dirigiu-se a Helena:

- Ela é uma pessoa muito especial. - Sim, de fato é.

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- E continua visitando aquela moça, mãe das crianças? - Continua. - E a moça? Como é mesmo o nome dela? - Iracema. Está cedendo, aos poucos. Já não nos expulsa da casa... - Eliana nunca desistiu dela... Que perseverança admirável! - Desde as primeiras visitas, nossa amiga disse que não desistiria; que veria

Iracema assumir seu papel de mãe, cuidando das crianças; que acreditava na sua condição de se tornar uma pessoa melhor. Confesso que nas duas primeiras semanas até eu duvidei das possibilidades da moça, mas agora, depois de mais de um mês de visitas, constato que Eliana tinha razão. Ela estava indo além do que nós conseguimos ver... E ainda bem que não desistiu.

Prosseguiram em animada conversa. Mais tarde, ao despedir-se dos ami-gos, Isabela abraçou um por um carinhosamente e agradeceu pela dedicação com que fora tratada no núcleo espírita. Na vez de Helena, desatou o pranto, com grande dificuldade de separar-se dela. Por fim, acalmou-se e disse:

- Vou sentir muito, muito a sua falta. Limpando as lágrimas e arrumando-lhe os cabelos desalinhados, a amiga

assegurou: - Estaremos próximas pelo coração; nossas almas se encontrarão durante o

sono e... bem, seu eu puder, pretendo visitá-la também com o corpo físico. - Quando? - Isso ainda não sei, mas garanto que vou perturbá-la... - Será sempre bem-vinda, Helena. Na semana seguinte, Isabela acomodou-se na poltrona do avião, ao lado de

Peter, partindo para a nova vida. Enquanto olhava as casas se afastarem de seu campo de visão, diminuindo de tamanho à medida que a aeronave subia, sen-tia-se apreensiva, porém feliz. Seu coração estava cheio de esperanças e ela sabia que não deixava nada para trás. Suas responsabilidades a esperavam no país que a receberia como cidadã americana.

Ao chegar à casa que Peter e ela haviam escolhido juntos pela internet, ela ficou satisfeita. Era maravilhosa e em pouco tempo estavam perfeitamente instalados. Isabela, apesar de ter nascido no Brasil, não precisou de mais de duas semanas para se adaptar à rotina e às maneiras do povo americano, quan-to aos hábitos mais básicos. Era como se tivesse passado a vida inteira naquele país.

Logo que chegaram, Márcio começou a se tratar, e dois meses depois pas-sou por delicada cirurgia, na esperança de cura da doença. Como os pais mo-ravam na mesma rua, duas casas abaixo da sua, Isabela acompanhava diaria-

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mente o tratamento de Márcio. Com desvelo buscava minimizar, em tudo o que podia, a dor e o desconforto do pai.

Um mês após sua chegada ela iniciou o trabalho em uma clínica pediátrica, apresentada pelo seu professor e orientador da residência, e não teve dificulda-de em adaptar-se. Isabela era excelente profissional e médica humana e dedi-cada. Visitou a casa espírita indicada por Eliana e, tal qual a amiga lhe falara, sentiu-se plenamente acolhida. Recebida com muito carinho por Regina e Os-mar, logo se integrou nas tarefas mediúnicas e também no atendimento às cri-anças menos favorecidas do bairro.

Em seis meses, Isabela havia assumido por completo a nova vida, satisfeita com os resultados que obtinha tão depressa. Peter estava igualmente surpreen-dido com a rápida adaptação da esposa. O relacionamento entre eles era amo-roso e sincero; quanto mais conviviam, mais sentiam o amor crescer. Em uma noite, sentado ao lado da esposa diante da lareira acesa, Peter comentou:

- Você está indo muito bem. Excedeu em muito as minhas expectativas. Sorrindo, Isabela aninhou-se em seus braços e admitiu: - Acho que até eu estou surpresa, sabe? Sinto como se tivesse nascido e

crescido neste país. Tudo me é tão familiar... Os costumes, a alimentação, tu-do, enfim.

Ficaram algum tempo calados, e então ela disse: - Sinto falta apenas de uma pessoa. - Helena. - Ela mesma. Peter, como sinto a falta dela... - Vocês têm conversado regularmente? - Sim, ao menos duas vezes por semana nos falamos. Só que para mim não

é suficiente... Sinto falta de vê-la pessoalmente, de nossas longas conversas... - Quando virá nos visitar? - Não sabe ainda, depende das férias do marido. Acho que no final do pró-

ximo ano. Até lá... Peter abraçou a esposa e disse: - Até lá, use o telefone o quanto quiser... - Não posso, é muito caro... - Pode e deve. Nós podemos pagar. - Mas, Peter... - Isabela, tenho uma novidade para você. Ajeitando-se na poltrona, ela o-

lhou ansiosa para o marido: - Fale logo! - A terceira edição do meu livro já está esgotada. - Verdade? E quantos exemplares fizeram dessa vez?

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- Duzentos mil. - Você já vendeu duzentos mil exemplares do relato da sua experiência -

como você diz, sobrenatural - de sair do fundo do poço? Peter! - Agora querem que eu escreva outro. - Outro? Sobre o quê? - Eles acham que tenho habilidade para desenvolver livros de auto ajuda, já

que esse vendeu tão bem... - Acontece, Peter, que uma coisa é contar sua experiência, verídica, e com-

partilhar com as pessoas a maneira como superou seus obstáculos; outra, bem diferente, é falar sobre algo que você não domina.

Peter ficou em silêncio, e Isabela indagou: - Você aceitou? - Estou pensando. Isabela também se calou. Então viu Thomas no canto da sala e ele aconse-

lhou: - Diga a Peter que, antes de escrever qualquer outro livro, estude a fundo a

Doutrina Espírita; encontrando nela os tesouros libertadores das consciências, que conte ao povo americano suas experiências à luz dos princípios espíritas.

Isabela repetiu o conselho para o marido. Como não teve resposta, antes de se deitar naquela noite ela pediu:

- Por favor, pense com muito carinho no conselho de Thomas. Ele nos quer muito bem, e se assim recomenda é porque isso deve ser o melhor para você, querido, mesmo que por ora não compreendamos.

- E que já tinha aventado algumas possibilidades... Imperceptivelmente en-volvida pelo pensamento do amigo espiritual, Isabela ponderou:

- Peter, sem dúvida os livros de auto ajuda podem ser úteis; entretanto, ti-vemos uma experiência contundente, que se esclareceu através do conheci-mento espírita. Não podemos negar isso, é parte de nossa história. Não tenha pressa, querido, espere para escrever. Estou certa de que encontrará, à luz do Espiritismo, o melhor caminho a percorrer com seus livros. Além do mais, e se você tiver mediunidade de psicografia?

- O quê? - E isso mesmo. Pode ser que tenha alguma tarefa com a psicografia, es-

crevendo livros ditados pelos espíritos. - Não tinha pensado nisso. Acomodando-se na cama, Isabela disse, sonolenta, ainda influenciada por

Thomas:

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- Nada acontece por acaso. Existem propósitos superiores que regem nosso destino na Terra. Tenha calma e ouvidos de ouvir. Seus desejos, à luz dos pro-pósitos superiores, serão bem encaminhados...

Peter ficou pensativo, sem conseguir conciliar o sono, ao passo que Isabela logo adormeceu, serena e feliz.

SESSENTA E UM EM NOVA YORK , Isabela e Peter passaram a freqüentar o núcleo espírita no

bairro do Brooklin. À medida que se aprofundavam no estudo e nas tarefas de auxílio material e espiritual aos necessitados, ampliavam sua experiência e desenvolviam maior compreensão do conteúdo da Doutrina Espírita. Isabela colocou sua mediunidade a serviço de Jesus, como veículo dos espíritos que precisavam de esclarecimento e também daqueles que orientavam a institui-ção. Entregou igualmente suas mãos e sua capacidade profissional à difusão do bem, atendendo gratuitamente crianças e adolescentes como médica pediatra. Peter também estudava; contudo, não conseguia dedicar-se aos semelhantes com o mesmo desprendimento da esposa. Trazia questionamentos e dúvidas veladas que ainda o atormentavam.

Naquele sábado fazia dois anos que haviam estabelecido residência no pa-ís. Isabela estava bastante cansada e se arrumava para levar Márcio ao trata-mento, quando telefonaram da instituição pedindo sua presença: um bebê re-queria auxilio urgente. Ao desligar, sentou-se no sofá, recostou a cabeça e pen-sou por alguns segundos; depois chamou o irmão pelo telefone:

- Rafael, estou precisando de sua ajuda. - Pode falar. - Preciso que hoje leve o pai para o tratamento. Tenho uma emergência. - Na clinica? Eles não têm médico de plantão? - Não é na clínica, é no núcleo. - Ora, Isabela, tenha dó! Vai deixar de levar o pai para atender uns pobres

fedidos? Isabela respirou fundo e questionou: - Rafael, o que está acontecendo com você? - Nada, por quê? - A cada dia eu o reconheço menos. - Não sei por que motivo. - O pai se trata há quase dois anos, e você não o acompanhou uma única

vez. - Não gosto de hospitais, você sabe. Faço outras coisas...

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- Que coisas? Você não colabora em nada. - Eles não precisam de nada, têm tudo... - Precisam de sua presença, de seu carinho, de sua atenção. É incapaz de

enxergar? - Isabela, eu tenho pouco tempo... Trabalho muito, estudo, tenho vários

compromissos. Minha vida é ocupada demais. - Só não tem tempo para seus pais, para sua família... Não me importo em

levá-lo para se tratar; a bem da verdade, faço questão de acompanhar isso pes-soalmente.

- Eu sei, por isso mesmo não interfiro. - Só que hoje estou pedindo sua ajuda; não posso levá-lo e ele tem de estar

lá em 45 minutos. Por favor, Rafael, preciso de você. Após breve silêncio do outro lado da linha, o irmão respondeu: - Não posso, Isabela. Contrate uma enfermeira; assim, quando você não

puder ir, ele terá a assistência necessária. Dessa vez a pausa foi de Isabela, que por fim perguntou: - Por que está tão distante, Rafael, deixando a vida passar sem aproveitá-la? - Mas é justamente isso que estou tentando fazer: aproveitar a vida ao má-

ximo. Isabela escutou ao fundo a voz de Paola, a namorada do irmão. Ele inter-

rompeu a conversa e depois retornou: - Preciso desligar. Tenho um compromisso importante agora. - Tudo bem, Rafael, em outra hora nos falamos. Ela bateu o fone, sentindo o impulso de raiva sufocá-la. O que fazer? Sen-

tou-se, respirou lentamente e por algum tempo buscou o reequilíbrio; ligou então para o hospital, conversando com o responsável pela área em que Márcio era assistido. Logo depois lhe telefonou e informou:

- Pai, o seu horário de hoje foi remarcado para o final do dia. Passo por aí cerca de 4h30, está bem?

Sem maiores problemas, alcançou o ambulatório da instituição e recebeu o bebê que lhe requisitava atendimento.

Transcorridas duas semanas, ao levantar-se de manhã, sentiu súbita verti-gem e quase desmaiou. Peter a acudiu, preocupado, sentando-a de volta na cama.

- Você está bem? O que foi? Isabela murmurou, ainda atordoada: - Quase perdi os sentidos. - Você tem trabalhado demais, querida, deve descansar. Recostada nos tra-

vesseiros, ela suspirou e respondeu: - Já passou, foi só um mal-estar.

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- Quero que procure um colega e faça um check-up. - Não há necessidade, querido, estou bem. Peter insistiu, sério, fitando-a

nos olhos: - Prometa que vai falar com um clínico geral. Isabela conhecia bem aquele olhar: quando queria muito alguma coisa, a

seriedade e o ar compenetrado que o marido adotava significavam que nada o demoveria de sua intenção. Sem alternativa, aquiesceu:

- Está certo, eu vou. - Ótimo. Satisfeito com a resposta, ele se aprontou e saiu para o trabalho; Isabela fi-

cou um pouco mais na cama, refletindo a respeito do que sentira e do pedido de Peter. Procuraria um médico; afinal, já fazia tempo que não se consultava.

Na semana seguinte Isabela chegou mais cedo do trabalho e preparou para o companheiro um jantar especial, com suas iguarias favoritas. Quando ele chegou, ficou surpreso e feliz. Ao final da refeição, saboreada à luz de velas, Isabela aninhou-se em seu ombro e ouviu o elogio:

- O jantar estava maravilhoso, adorei. - Que bom! Fez-se aquele silêncio típico da intimidade, até que Peter perguntou: - Você foi ver o médico, Isabela? Fitando o rosto do marido iluminado pelas velas, a jovem sentiu que já vi-

vera aquele momento. Acariciou o rosto de Peter e disse: - Tenho a nítida sensação de que já vivemos isto antes, eu e você assim

sentados, com a luz bruxuleante da vela iluminando seus olhos... Seus lindos olhos, Peter. Que coisa estranha...

Ele sorriu, sem dizer nada. Isabela pegou um papel dobrado que estava sob a toalha da mesa e entregou-o ao marido:

- A família vai crescer... Peter pegou o papel e leu o resultado positivo do teste de gravidez. Levan-

tou-se, pegou a esposa no colo e girou-a duas vezes, beijando-lhe o rosto. Ela pediu:

- Cuidado, agora não estou mais sozinha! Peter a acomodou na cadeira e ajoelhou-se, dizendo: - Desculpe, é que você me fez tão feliz... De repente Isabela ficou séria, Peter indagou: - O que foi? Qual o problema? - Estou preocupada com Jennifer. Será que ela vai aceitar o bebê? - Por que não, querida, se a recebeu tão bem?

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- Eu sei, ela é uma jovenzinha meiga e somos muito amigas. Mas será que não vai ter ciúme do irmão?

Peter pensou por alguns segundos. -Talvez um pouco, no início, porém vai acabar feliz por ter um irmão ou

uma irmã. Comemoraram com muita alegria e logo partilharam a novidade com toda

a família. Entretanto, nas semanas que se seguiram, um temor crescente apos-sou-se de Isabela. Ela receava pela saúde da criança, com a idéia fixa de que o bebê poderia ter problemas. Certa noite, acordou gritando e suando frio. Peter a socorreu:

- Calma, querida, está tudo bem. Foi só um sonho. - Um sonho terrível e tão real... Abraçando-a, o marido a confortava, repe-

tindo: - Calma, não passou de um sonho. - Foi horrível, Peter. Eu via um bebê deformado em meus braços, que de-

pois era uma criança e por fim um jovem. Peter sentiu forte arrepio percorrer-lhe o corpo, como se também já tivesse

visto aquela cena que a esposa descrevia. A muito custo conseguiu serená-la e, depois que finalmente a viu adormecer, ele não conseguia conciliar o sono, pensando: Será que teriam um bebê doente, mesmo? Seria aquilo um aviso?

O sonho se repetiu por várias noites, até que Isabela pediu auxílio a Regi-na. Após três semanas de tratamento espiritual realizado no núcleo espírita, o temor começou a diminuir, aquele sonho foi rareando até desaparecer e houve sensível melhora em seu estado geral. O restante da gestação transcorreu com tranqüilidade e o bebê, uma menina, nasceu forte e saudável, enchendo toda a família de satisfação. Ana Lídia, normalmente abatida com a luta pela vida que ela e Márcio empreendiam, sorriu contente como não fazia há anos. Ver aquele bebê no berçário do hospital, cheio de vida e saúde, trazia-lhe tanta esperança, tanta fé que sentiu o coração leve pela primeira vez, desde que soubera da do-ença do marido. Já Márcio, embora sentisse carinho pela neta, não conseguia alívio para uma só das dores que suportava na alma. Seu coração era como um baú carregado de pedras. Seus olhos estavam cada vez mais opacos, e ele pio-rava dia a dia.

Ao tomar Juliana nos braços, Isabela chorou de alegria. Com profundo sen-timento de realização, orou agradecendo a Deus pela oportunidade de ser mãe de uma criança linda e sã. Estava emocionada e feliz como nunca.

Os meses se sucediam rápidos. Isabela dedicava-se à filha e aos poucos re-tornava às suas responsabilidades. Peter publicou mais um livro, dessa vez a biografia de um atleta. Como jornalista esportivo, continuava trabalhando e

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crescendo no campo profissional. A situação financeira e social do casal não parava de melhorar.

A pequena Juliana ensaiava os primeiros passos pelo jardim, quando Peter apareceu à porta com o telefone nas mãos e o semblante preocupado. Isabela sorria, acompanhando o andar titubeante da filha, e não notou o olhar do mari-do, que informou:

- É sua mãe, Isabela. Fascinada pelos progressos da menina, respondeu distraída: -Já vou... - É melhor atender logo. - o marido insistiu. - Seu pai não está bem. Isabela empalideceu e de imediato sentiu as pernas bambas. Levantou-se

da grama e correu até o telefone. - Oi, mãe, o que houve? Ana Lídia chorava, quase impossibilitada de falar: - Ele está péssimo... - Vou para aí agora mesmo. - Não, vá direto para o hospital. Já estamos na ambulância, indo para lá.

Seu pai está inconsciente, Isa... - Fique calma, estou indo já. Isabela desligou o telefone e consultou o marido: - Acha que sua mãe poderia ficar com Juliana? - Claro, vou falar com ela. A jovem subiu as escadas correndo e em poucos minutos estava pronta, re-

comendando à sogra: - Ela deve tomar banho às seis e jantar às sete. Dorothy sorriu: - Pode ficar tranqüila, Isa, sei da rotina de Juliana; vou fazer tudo como

ela está habituada. Aproximou-se com a neta no colo e beijou a testa da nora. - Vá em paz, minha filha, vá cuidar de seu pai. Nós ficaremos bem. Isabela acariciou a cabeça da filha, agradecendo à sogra, e o casal saiu. Ela

ia com o coração apertado. Sabia que o pai não resistiria por muito tempo na condição em que se encontrava. Unicamente um milagre poderia salvá-lo. Pe-dia a Deus que o ajudasse. Seu coração estava amargurado, pois passara mais de quatro anos lutando com a doença e orando por ele, sem ver qualquer me-lhora. Desejava ajudá-lo de todas as maneiras possíveis, sentia-se quase na obrigação de curá-lo, como se fosse responsável por sua doença.

Chegaram ao hospital e logo encontraram Ana Lídia na sala de espera da UTI. Ela disse, abraçando a filha:

- Seu pai está desacordado. Foi entubado e sedado. Dizem que o remédio evitará que sinta dores...

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Finda breve pausa, entregou-se a pranto convulsivo nos ombros da filha, que lhe acariciava os cabelos, já embranquecidos, e pedia:

- Calma, mãe... Venha, sente-se. Acomodando-a no sofá, pediu a Peter que trouxesse um remédio para a-

calmá-la. Ana Lídia impediu-o: - Não precisa, Peter, eles já me deram. Isabela abraçou a mãe e ali permaneceram até o amanhecer, quando o mé-

dico veio com informações. - Ele está um pouco melhor. Conseguimos estancar a hemorragia interna e

agora a situação é estável. No entanto, é muito grave. - Fizeram os exames todos, doutor? - Isabela indagou. - Sim, e infelizmente as notícias não são boas. Está completamente alas-

trado. Ele tem pouco tempo... Ana Lídia chorava baixinho. Quando o médico terminou, Isabela quis sa-

ber: - Ele poderá ir para casa? - Por enquanto não. Vamos tentar alguns medicamentos. Faremos tudo o

que for possível. Isabela e a mãe permaneceram abraçadas, em silêncio. Depois de algum

tempo, Ana Lídia pediu: - Quero vê-lo, ficar perto dele. Será que posso, filha? Isabela olhou para o

marido, que imediatamente anunciou: - Vou ver. Depois de algumas negociações de Peter com a administração do hospital,

colocaram Márcio em um quarto de UTI onde poderia ficar parcialmente a-companhado. Ana sentou-se ao lado do marido e disse à filha:

- Quero ficar aqui com ele. Paciente e dedicada, Isabela respondeu: - Vou providenciar tudo de que precisa para ficar bem acomodada... Pode

ser uma longa espera... Ana Lídia falou com os olhos distantes: - Não faz mal, ficarei o tempo que for necessário... No plano espiritual, Márcio permanecia em repouso, acima de seu corpo

denso, sob forte torpor. Thomas e uma equipe de espíritos que atuavam na área da saúde aplicavam-lhe passes em todo o corpo perispiritual. Uma senhora comentou:

- Ele não apresenta nenhuma alteração vibracional. E como se não absor-vesse nossa transfusão de energia...

- Sim, está rejeitando toda a ajuda, e isso há bastante tempo. Não consegue perdoar. O sentimento de autocomiseração está cristalizado em suas mais pro-

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fundas camadas mentais, e tem sido incapaz de desvencilhar-se delas. Tem ao lado o pai e a madrasta de outrora, que a seu ver lhe tiraram a oportunidade iminente de tornar-se um grande imperador. O rancor o acompanha e, embora tenha aceitado ajuda, sua alma continua fechada. Na presente encarnação, o conhecimento da Doutrina Espírita o teria auxiliado na compreensão de seus sentimentos, de suas dificuldades, enfim, de si próprio e da vida. Entretanto, ele não quis contato algum com essas verdades espirituais. Mesmo assim, vem recebendo nosso amparo a distância. A doença, engendrada por ele em sua recusa de perdão, o corrói.

- Nem toda a dedicação de Isabela o pode levar a nutrir carinho por ela? - A filha conseguiu cativar-lhe alguns bons sentimentos, porém ainda são

incipientes... - É uma pena... Ele poderia ter aproveitado muito esta experiência na Terra... - Sim, poderia estar em condições muito melhores do que as que apresenta. - Nem a doença ele teria? - Devido ao enraizamento das mágoas, talvez não ficasse livre da doença,

mas certamente sua evolução teria sido diferente. - Poderia até estar curado? - Provavelmente... O grupo espiritual prosseguiu com o atendimento a Márcio, bem como a

todos os familiares.

SESSENTA E DOIS No HOSPITAL, Simon caminhava de um lado para outro, irritado pela demo-

ra. O assistente pedia: - Por favor, acalme-se, senhor. O presidente da poderosa empresa farmacêutica berrou sem dó: - Cale-se! Não está ajudando em nada. - É que pode piorar seu estado... - gaguejou o outro, assustado. - Ficar aqui esperando é que pode piorar meu estado... Vá chamar o médi-

co já. - Fiz isso umas quinze vezes... Ele está finalizando um atendimento de e-

mergência e logo virá. - Pois vá chamá-lo de novo. Quero ser atendido imediatamente... Simon foi interrompido pela entrada do médico. O homem de mais de ses-

senta anos tinha o ar cansado, apesar de extremamente bem cuidado. Estava abatido. Entrou, fechou a porta e disse:

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- Estou com todos os exames e infelizmente não tenho boas notícias, se-nhor Simon.

- O que quer dizer? Fale logo. - Vou ser muito direto: há uma doença degenerativa atacando seu cérebro e

seu sistema nervoso central. Ela está destruindo seus neurônios, como se os devorasse.

Sério, Simon o fitou. - Quais os tratamentos disponíveis? - O senhor produz muitos medicamentos para essa doença; entretanto, to-

dos são paliativos, não interromperão o avanço da doença. - Como pode saber? - Não posso, a não ser pelos muitos casos que tenho acompanhado... - Ora, doutor, não me compare com seus outros pacientes. Tenho recursos

suficientes para investir em tudo o que for viável para reverter o quadro. - Podemos tentar diversas medicações, mas, ao que sei, todas serão palia-

tivas. A doença não pode ser detida, não há tratamento disponível... - Não há para você. Para mim, haverá. Vou acionar todos os cientistas de

minhas empresas para que se dediquem a experiências nesta área. Não é possí-vel que com todos os recursos que possuo não consiga algo que me ajude.

O médico encarou o poderoso empresário e respondeu: - Espero que tenha êxito na busca da cura. E, se obtiver progressos, por fa-

vor nos deixe saber, porque temos diversos pacientes que aceitarão fazer testes gratuitamente.

- Mais alguma coisa, doutor? - Aqui está o medicamento que precisa tomar de imediato, para aliviar as

dores de cabeça. E estes outros são para tentar impedir o avanço da doença; contêm a melhor substância disponível até agora.

- Disse bem, doutor, até agora. Algo mais? - Precisa retornar em duas semanas, para novos exames. Simon se vestiu e

despediu-se do médico, exigindo: - Quero os exames, doutor. Pretendo levá-los a outro especialista. - Não posso entregá-los em suas mãos, mas terei prazer em enviá-los ao

seu novo médico, tão logo o senhor me comunique seu nome. - Pois muito bem. Logo terá notícias minhas. Três dias depois, Simon estava sentado diante de um especialista que, de-

pois de verificar todos os exames - que tinham sido refeitos -, informou: - É, não há dúvida, Simon, é Alzheimer. - Não, doutor, não pode ser. - Infelizmente é.

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- Tem de repetir os exames outra vez... Tem de haver algum modo de re-verter a doença.

- Não existe forma de parar a degeneração celular. O que se pode fazer é atrasar-lhe os avanços, retardar um pouco seus efeitos. Você pode desenvolver uma rotina de exercícios diários para ajudar seu cérebro a funcionar melhor e, assim, contribuir para deter o avanço - acelerado no seu caso - dessa doença impiedosa.

O outro pensou por alguns instantes, depois indagou: - Qual é a possível evolução da doença? Quais suas fases? Ou seja, passa-

rei pelo quê? - O final pode ser a demência completa. - Demência? - Sim, a perda total da capacidade de discernimento. Fez-se demorado si-

lêncio, quebrado por Simon: - Quanto tempo? - É difícil precisar. O certo é que logo precisará de alguém para acompa-

nhá-lo, em todas as situações. E vamos monitorar a evolução bem de perto. Simon deixou o consultório do maior especialista do país naquela doença e

foi direto para casa. Fechou-se em seu quarto e, sentado em uma poltrona con-fortável, pensava em como poderia impedir que a doença o devorasse. Depois, apavorado com a perspectiva de perder o controle de si mesmo e de sua vida, pôs-se a quebrar vasos, peças de decoração, móveis e até quadros. Em um cri-se de desespero, lançou várias estátuas na piscina, assustando os serviçais e a esposa - vinte anos mais jovem -, que, entrando no quarto, indagou sem muito interesse:

- O que foi, Simon? - Saia, Anne, vá para o shopping e me deixe em paz. - Calma, querido, você vai ficar bem. Ele se pôs a gritar, descontrolado: - Fique quieta, você não sabe de nada! Saia daqui! Afastando-se da porta, a

jovem disse: - Tudo bem, se prefere ficar sozinho... Tudo bem. Assim que ela saiu, ele arremessou uma pesada estatueta, que amassou a

porta e a maçaneta. Mirou seu reflexo no espelho, que quebrou com um cinzei-ro maciço, gritando:

- Não quero enlouquecer! Quero ter total controle sobre mim... Sobre mi-nha vida, sobre meus negócios.

Seus brados eram ouvidos por todos os cantos da mansão. Logo a notícia se espalhou e os acionistas deliberaram afastá-lo da presidência de sua própria empresa, temendo que a destruísse. Não demorou e ele já não conseguia agen-

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dar compromissos com os influentes políticos e personalidades com quem cos-tumava conviver e engendrar planos e ações. Ficou só, com seus empregados e sua doença, que o consumia rapidamente. A loucura o dominou em pouco tempo. Quando os paramédicos foram buscá-lo para a internação, a pedido do assistente, o médico que o acompanhava comentou:

- Não me lembro de ter presenciado uma evolução tão acelerada dessa do-ença. Normalmente ela vai corroendo a pessoa aos poucos; no caso do senhor Simon, em menos de seis meses o levou à completa loucura. Ele deverá per-manecer na instituição até o fim da vida.

- Não há nada mais a ser feito? - Vamos assegurar que tenha o melhor atendimento, a melhor qualidade de

vida possível. Ele fará todos os tipos de exercícios disponíveis, devendo per-manecer sob cuidados ininterruptos, para garantir sua integridade e a daqueles que o cercam. É um paciente potencialmente perigoso.

Deitado na cama da instituição que o abrigava, com os olhos arregalados, Simon fitava as figuras que transitavam ao redor de sua cama. Podia ver os espíritos que ali se encontravam. Um deles sentou-se em sua cama e falou:

- Ei, chefe, pegaram você! Ainda com os olhos imóveis e arregalados, Simon, sem compreender o que

ouvia, prestava atenção na figura assustadora sentada à sua frente. A entidade prosseguia:

- Precisamos de suas orientações. O que vamos fazer agora? Seria melhor você retornar logo... Precisa fazer algo, Núbio; desse jeito não poderá dar con-tinuidade ao seu trabalho.

Apesar de saber que conhecia aquelas pessoas, Simon não tinha condição de reagir. Não conseguia falar nem dormir. Ao contrário, sentia-se prisioneiro do medo. Mais tarde, quando enfim adormeceu, seu corpo espiritual despren-deu-se do corpo físico e ele, atordoado, sentou-se na cama. Olhando em torno, comentou:

- Não entendo o que se passa... - Olá, Núbio, não nos reconhece? - Não sei direito. - O que está havendo com você? Essa porcaria de corpo está atrapalhando

sua mente... - Estou entorpecido demais, são os remédios que me dão... - Deve ser isso mesmo. Nunca o vimos fragilizado assim. - São os remédios, os remédios... - Como foi que fizeram isso? Destruíram sua máquina, chefe. São aqueles

que andam na luz...

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Outro espírito interferiu: - Eles não sossegam... E nós também não. Ainda mais agora, que a Terra

está entregue a nós... Vamos dominá-la por completo... Depois virou-se para Simon e comentou: - E aí, o que iremos fazer? Você precisa sair logo desse corpo inútil. Va-

mos acabar com isso agora mesmo. - E como pretendem fazer isso? - Simon perguntou, ainda entorpecido. - Neste lugar, vai ser fácil achar um doido que faça uma besteira. Daremos

um jeito. Você não pode continuar preso como um louco a um corpo inútil. É melhor retornar logo para cá.

Dois dias depois, um dos internos, envolvido pelos comparsas de Núbio, roubou uma ampola de um medicamento para o coração que, em combinação com os remédios que Simon tomava, provocaria reação fatal. Não foi difícil para o interno aplicá-lo no paciente, durante o período em que tomavam sol no pátio. Simon entrou em coma e ficou poucas horas no hospital, logo deixando o corpo denso.

Ao livrar-se do envoltório físico, Núbio disse, atordoado: - Finalmente livre. Um dos companheiros o cumprimentou: - Parabéns! Apesar de retornar antes do tempo, cumpriu nossos objetivos,

criando doentes e doenças, enfraquecendo muitas pessoas e entorpecendo ou-tras. Os seres humanos estão cada vez mais débeis, desprovidos da energia necessária para lutar contra as nossas investidas. A Terra padecerá em nossas mãos... Agora, vamos depressa.

- Calma, preciso refazer-me. Quero ficar um pouco mais por aqui, antes de voltar.

- Não é seguro, Núbio. Soltando uma gargalhada estrondosa, Núbio indagou: - Do que está falando? Como, não é seguro? - Temos informações de que muitos vêm sendo aprisionados e levados da

Terra. Temos de nos esconder, venha. - Aprisionados? - Seres de luz têm capturado boa parte dos nossos... Muitos estão desapa-

recendo... Simplesmente, estão sumindo. Agora vamos, devemos ir. Sem responder, Núbio aquiesceu e partiram depressa para as profundezas

espirituais do planeta. Esgueiravam-se pela escuridão, quando, de súbito, depa-raram com grande tumulto e espíritos correndo para todos os lados. Viram ao longe uma figura enorme que paralisava os fugitivos e depois os prendia em

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braceletes que os mantinham imobilizados. Antes que o grupo pudesse esca-par, o espírito de luz aproximou-se e disse:

- Núbio, é chegada a hora da partida. Ele gritou desesperado: - O que está fazendo? Quem é você? - Seu tempo no planeta Terra terminou. - Não pode fazer isso! Não tem poder para me manter prisioneiro. - O tempo de vocês também acabou, meus irmãos. Agora, pela misericór-

dia de Deus, serão transferidos para um planeta primitivo. - Não tem autoridade para nos prender! Eles gritavam, já imobilizados e com os braceletes nos pulsos. Impedido de

se mover, Núbio gritava: - Que Deus perverso é esse, que nos condena? - Deus é imensamente bom, pois concederá nova oportunidade a todos. - Não quero outra oportunidade... Não! - Resistir é inútil. É chegado o momento em que devem deixar o planeta

Terra e seguir seu caminho de expiação. Não podem mais criar obstáculos ao progresso.

- Não é justo! Deus não é justo! - A justiça divina é tão compassiva que foi permitido a todos vocês descer

para a encarnação com a última e valiosa chance de transformação. Mesmo em face da quase impossibilidade de a aproveitarem, e consideradas as inúmeras dificuldades que poderiam criar, receberam essa chance. Agora, o prazo expi-rou. E hora de partir.

Logo um enorme grupo de espíritos foi conduzido por outros trabalhadores da luz, que cumpriam determinações de Jesus em conjunto com elevadas inte-ligências do Universo. Aquelas almas, recalci-trantes no mal, partiriam da Ter-ra para um planeta menos evoluído, que seria para eles como uma prisão, pelos problemas e rudes impedimentos que enfrentariam. Dores, sofrimentos e lutas aguardavam essas almas, para que através deles pudessem harmonizar-se com as leis divinas, construindo para si próprias um novo destino.

SESSENTA E TRÊS

ISABELA CHEGOU EM casa cabisbaixa e logo encontrou Dorothy descendo

as escadas. - Como estão as coisas por aqui? - perguntou com ligeiro sorriso. A sogra alcançou o piso térreo. - Foi tudo tranqüilo, querida. E seu pai, como está?

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- Mal, muito mal. Tocando o ombro da jovem, Dorothy disse: - Você precisa descansar. Onde está Peter? - Já está entrando. - Vá repousar, filha. - Logo mais. Hoje é dia de nosso Evangelho no Lar e não quero atrasar-

me. Vem conosco? - É claro. Isabela foi até a cozinha, de onde trouxe uma jarra de água que depositou

na mesa de centro da sala. Depois pegou um exemplar de O Evangelho segun-do o Espiritismo e colocou-o ao lado da jarra. Sentou-se e respirou fundo. Desde que conseguira persuadir Peter a acompanhá-la ao núcleo espírita, tam-bém implantara em seu lar a rotina semanal de estudo do Evangelho. Vez por outra a sogra participava das orações, e quase sempre Peter também estava presente. Como ele demorou a entrar e a hora avançava, ela se levantou e foi até a garagem.

- Peter, vamos? Encontrou o marido sentado em seu escritório, que ficava ao fundo da ga-

ragem. - O que está fazendo? - Revendo algumas anotações. - Anotações? - Isso mesmo. - Está na hora, Peter. - Do quê? - De nosso culto do Evangelho. - Faça sem mim, por favor; estou querendo terminar isto... Sorrindo com

calma, ela pediu: - Estou muito triste hoje, Peter... Por favor, fique ao meu lado. Ele olhou

para a esposa, ainda remexendo em seus papéis; depois fechou tudo e se levan-tou.

- Está bem, vamos lá. Entraram. Ao final, Isabela, de cabeça baixa, pôde sentir a presença de

Thomas na sala. Ele chegou perto dela e orientou: "Deve permanecer firme em suas atividades e redobrar suas orações diariamente. Não desanime, mesmo que muitos obstáculos apareçam em seu caminho. Persevere. Haverá momen-tos difíceis".

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Isabela mantinha-se cabisbaixa, escutando o espírito amigo com os ouvi-dos da alma. Ela indagou, em pensamento: "E meu pai?". Ouviu a temida res-posta: "Prepare-se, pois logo ele deixará o corpo físico".

O coração da jovem disparou, e grossas lágrimas logo lhe desciam pela fa-ce. Sentia angústia e tristeza, quando Thomas aconselhou: "Sua tarefa em rela-ção a Márcio está terminada.

Ainda em pensamento, ela respondeu: "Sinto que falhei com ele, sinto-me culpada de algum modo". De novo o companheiro espiritual esclareceu: "Sim, eu sei; são os resquícios do passado cuja cobrança ainda persiste. Mas tenha a certeza de que sua dedicação sincera e fiel teve papel significativo na vida de seu pai. Estaremos ao seu lado e ao lado dele".

Com o coração suavemente confortado, ela limpou as lágrimas e ergueu a cabeça. Peter a fitava.

- O que foi? - indagou. - Thomas está aqui, dando algumas orientações. - Que orientações? No instante em que Isabela ia responder, o telefone tocou. Antes que Peter

atendesse, ela disse: - Meu pai se foi. - O quê? - falou a sogra, assustada. Peter colocou o fone na base e virou-se; quase não conseguia olhar para a

esposa. - Ele se foi, não é? Peter, sem poder falar, balançou a cabeça afirmativamente. Isabela segurou

a cabeça entre as mãos e chorou muito. O marido sentou-se junto dela e, abra-çando-a forte, ficou em solidário silêncio.

- Quem ligou, minha mãe? - ela perguntou um pouco mais calma. - Não, foi Rafael. Ligaram para ele, supondo que ainda não tivéssemos

chegado. Até agora sua mãe não sabe. Isabela ergueu-se a custo e disse: - Vamos para lá. Peter olhou para a mãe e ia falar, quando ela se antecipou. - Vá, filho. Cuidarei de Juliana e de Jennifer, não se preocupe. As duas es-

tão dormindo tranqüilas. - Obrigado, mãe. - Peter beijou-lhe a testa ao agradecer. Os dias subsequentes foram longos e dolorosos. Diversas questões tinham

de ser resolvidas, havia muitas providências a serem tomadas. Duas semanas depois, Isabela tomava café da manhã com a mãe, quando esta comunicou:

- Isa, vou voltar para o Brasil.

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- O quê? - Vou regressar, não tenho mais nada para fazer neste país... - Mãe, eu e Rafael estamos aqui... Sua neta está aqui. - Sinto falta das minhas irmãs, das minhas amigas, da minha vida. Esta ca-

sa e este lugar não me trazem boas lembranças... Não quero ficar. Embora Isabela tentasse argumentar, a mãe foi firme: - Estou decidida. Voltarei assim que resolvermos as questões legais e bu-

rocráticas deixadas por Márcio. Além do mais, seu pai me pediu que levasse suas cinzas e as jogasse no mar, perto de nossa casa na praia.

Ainda inconformada, Isabela indagou: - O que posso fazer para que mude de idéia, mãe? - Nada. Virei visitá-la, eu prometo. Não quero que fique triste com minha

decisão, ou que me ache egoísta. Sei que você também está sofrendo, que se dedicou muito ao seu pai e a mim; contudo, sinto-me sufocada neste lugar, neste momento. Talvez no futuro eu consiga viver aqui novamente; agora, po-rém, preciso voltar para casa.

- Está bem, mãe, se quer assim. Dois meses depois, Ana Lídia regressou ao Brasil, deixando em Isabela

uma forte sensação de solidão. Ao despedir-se da mãe, vendo-a sumir no cor-redor do aeroporto, sentiu-se abandonada e fraca.

Daí para a frente, apesar da tristeza que não podia evitar, lembrava-se da advertência de Thomas e buscava ânimo na oração, não se descuidando de suas tarefas e responsabilidades.

Nas semanas que se seguiram, Isabela notou Peter distraído e ausente. No início atribuiu o seu aparente desligamento às solicitações do trabalho, mas depois veio a preocupação. Naquela noite, quando ficaram a sós após o jantar, sentou-se ao lado do marido e perguntou:

- O que está acontecendo com você, querido? - Como assim? - Está distante há semanas. O que há? - Nada. - Conheço você e sei que algo está ocorrendo. O que é? Baixando a cabeça,

ele considerou: - Não consigo esconder nada de você, não é? - Não, nada. Então Peter ajeitou-se na poltrona e contou: - Estou terminando de escrever outro livro e a editora já está à espera para

publicá-lo. - Sobre o quê?

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- Sobre a depressão. Havia tempo que eu desejava escrever mais sobre esse assunto, você sabe.

- Sim, eu sei. - Pois preparei um manuscrito com as idéias principais e o encaminhei ao

meu editor. Ele gostou e me pediu que desenvolvesse o texto. Está quase pronto. - Sei que sua intenção é ajudar outras pessoas que passam pela mesma si-

tuação. Ainda assim, não acha que está se precipitando, querido? - Por quê? - Você recebeu uma orientação bem clara no sentido de que precisava pre-

parar-se e depois escreveria. - Olhe, Isabela, eu sabia que me diria isso. Disseram-me isso há muito

tempo e até agora nada aconteceu. Enviei o manuscrito, sem ter grande expec-tativa, e eles logo se interessaram pelo meu livro. Acho que isso é um bom sinal, mostra que devo editá-lo, que estou no caminho certo. Além do mais, Isa, não vejo mal algum no que estou fazendo. Como você mesma disse, esse livro tem o objetivo de ajudar as pessoas, nada mais que isso.

Isabela refletiu por instantes e, intuída por Thomas, que acompanhava a conversa, reiterou:

- Querido, deveria esperar um pouco. Você tem uma tarefa a cumprir e precisa primeiro preparar-se, para que possa exercê-la com sucesso.

- Isso é bobagem, Isa. Vou publicar o livro. Aliás, já mandei metade do texto para a editora; estão até trabalhando na capa.

Isabela ficou preocupada. Séria, pediu outra vez: - Peter, espere um pouco mais... Ele se levantou e foi peremptório: - Vou publicar o livro. Não há nada de mal nisso. Já estou decidido. - Acho que está cometendo um equívoco. Quando o marido ia responder, Juliana chorou alto no quarto e Isabela su-

biu para atender a filha. Acercou-se do berço e pegou a menina no colo, ten-tando acalmá-la. Juliana não parava de chorar, parecia assustada.

- O que foi, filha? Calma, está tudo bem. Não adiantou, a menina continuou chorando. Só quando Isabela a acon-

chegou ao peito, cantando baixinho canções de ninar, foi que a pequena se acalmou e, por fim, voltou a adormecer. No momento em que reacomodava a filha no berço, Dorothy apareceu na porta.

- Quer ajuda? - Acho que teve um pesadelo. Obrigada, volte para a cama; ela já sossegou. Isabela foi para seu quarto e encontrou o marido já dormindo a sono solto.

Olhou-o com ternura e falou baixinho: - Peter, Peter, por que tanta pressa?

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Três meses depois, o livro foi lançado e o sucesso foi imediato. Em oito meses, estava no ranking dos vinte mais vendidos nas livrarias. Peter passou a receber inúmeros convites para noites de autógrafos e palestras, para falar do livro e de suas experiências. Diversos compromissos o solicitavam após o tra-balho na redação, e já não lhe sobrava tempo para nada. Não demorou muito a deixar de freqüentar o núcleo espírita. Isabela o acompanhava em vários even-tos, nos quais fazia questão de ter a esposa a seu lado. De fato, ela era perso-nagem importante de seu best-seller, onde mais uma vez apontava a esposa como a responsável por sua recuperação e melhora, mostrando o amor que os unia como alavanca de cura.

Quanto a Isabela, tinha de se desdobrar para continuar cumprindo todos os próprios compromissos: as responsabilidades do lar, o trabalho no consultório, o atendimento gratuito e também as tarefas na casa espírita. Em poucos meses, estava esgotada.

Logo Peter foi convidado pela editora a escrever um novo livro. Dessa vez o orientaram sobre o conteúdo da obra, muito impressionados com sua habili-dade no uso das palavras, seus conhecimentos de história e seu carisma perante os leitores e a mídia em geral. O sucesso de Peter era crescente.

Certa noite, quando Isabela o chamou para o Evangelho no Lar, ele se des-culpou, pronto para dormir:

- Hoje não vou acompanhá-la, querida. Tenho de começar a escrever ama-nhã bem cedo, e estou exausto. Faça por nós dois, está bem?

Dali em diante, Isabela passou a fazer o estudo do Evangelho sozinha, sem contar com o marido, que sempre alegava estar cansado ou ocupado. Ainda que carente da sua presença, ela se esforçava por manter firme dentro de sua casa essa atividade relevante.

Peter lançou o terceiro livro, que conquistou sucesso similar ao dos de-mais. As vendagens progressivas trouxeram para a vida do casal situação fi-nanceira muito confortável, e ele resolveu mudar-se com a família para uma casa melhor, em bairro mais sofisticado. Continuava creditando tudo o que obtinha ao apoio da esposa, e o fazia publicamente. Isabela, requisitada pelo marido, passou a acompanhá-lo com maior freqüência. Aos poucos, pressiona-da pelo acúmulo desses deveres sociais, ausentava-se mais e mais das tarefas na instituição que auxiliava. A avalanche de compromissos em que se via en-volvida a consumia e sentia-se exaurida.

Foi nesse ponto que em determinada noite acordou gritando, apavorada. Sentou-se na cama e viu Peter, que procurava acalmá-la:

- Foi somente um sonho, querida. - Peter, foi horrível. Não parecia um sonho, era real. Estou muito angustiada.

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- Foi um sonho, só isso - ele insistia. - Não, Peter; algo muito ruim está para acontecer. Sei disso. Visto que se

afastara por completo dos princípios espíritas, fixando-se em estudos científi-cos, ele refutou:

- Isabela, você está apenas cansada. Afaste essas impressões do pensamen-to, está tudo certo.

Isabela deitou-se, murmurando: - Alguma coisa terrível está para acontecer... Na manhã seguinte, nem bem o sol raiara e Isabela estava acordada. Des-

ceu e preparou um café, sentando-se na poltrona da sala, que dava para o jar-dim da frente da casa. Observou o céu, ainda escuro, e atenta ouviu o canto dos primeiros pássaros que despertavam junto com o dia. Gradativamente, o céu ia adquirindo uma tonalidade azul intensa. Era início de outono e as folhas começavam a desprender-se das árvores. Isabela contemplou a linda árvore que ficava na entrada da casa, e suas folhas avermelhadas que mudavam o ce-nário da rua. Olhou para o alto num misto de angústia e humildade, sentindo-se fraca e assustada. Sentia como se suas forças se esvaíssem lentamente. A imagem que vira em sonho assaltava-lhe a mente, a todo instante, e ela a afas-tava com insistência. Não queria pensar naquilo. Terminou o café e voltou à cozinha para preparar o desjejum da família. A empregada que a ajudava, vin-da do Brasil, apareceu na cozinha e surpreendeu-se.

- Dona Isabela, a senhora está bem? - Estou, sim - respondeu com ligeiro sorriso. - Acordada assim tão cedo... - Perdi o sono. - Volte para a cama, dona Isabela, eu preparo o café... - Tenho de fazer alguma coisa para me distrair até que eles acordem... Dei-

xe que eu ajudo. Todos despertaram quase ao mesmo tempo. Dorothy desceu de mãos dadas

com Juliana, que queria a mãe. Depois foi a vez de Jennifer, já com o material da escola, pronta para sair. Logo em seguida veio Peter, todo arrumado.

- Vai sair tão cedo? - indagou a esposa. - Esqueci de falar com você, mas temos uma entrevista em um programa

de rádio. Isabela, que preparava a mamadeira da filha, respondeu depois de refletir

por instantes: - Acho que hoje você irá sozinho. Estou indisposta... Nem para a clínica

vou agora de manhã. - O que você tem, filha? - perguntou a sogra.

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- Nada, apenas me sinto indisposta. Vou trabalhar somente na parte da tarde. Peter levantou-se e beijou-a na testa. - Então paciência, vou sozinho; não me esperem para o almoço. - Onde é a entrevista? - Isabela perguntou quando ele já estava saindo. - Em um estúdio. - Onde fica? - No World Trade Center. Imediatamente Isabela se ergueu e transferiu a filha para os braços da sogra. - Espere, vou com você - falou decidida. - Está bem, mas não demore. Patrick estará aguardando para definirmos o

tom a ser dado a essa entrevista. Subindo a escada, Isabela disse: - Fique tranqüilo, serei rápida. Peter ligou para o editor e avisou que logo estariam no prédio. Assim que chegou ao quarto, Isabela teve violenta tontura e desmaiou, ca-

indo no chão. Quando despertou, estava deitada em sua cama, com forte dor na cabeça. Ainda atordoada, olhou para o marido, que em pé falava ao telefone.

- O que houve? - balbuciou. Peter desligou o telefone e sentou-se ao seu lado na cama, perguntando: - Como se sente? - Um pouco tonta. O que houve? - Não sei. Você demorou a descer e não respondia aos meus chamados.

Subi para ver o que acontecia e a encontrei deitada no chão, machucada. Acho que bateu a cabeça na fivela de seu sapato ou em algum canto...

Segurou a mão da esposa e acrescentou: - Ficamos assustados. - Perdeu seu compromisso? Peter olhou para a mãe e ficou calado. Isabela indagou: - O que foi? Ele a encarava sem saber como lhe contar o que se passava. Ela, notando o

temor em seu olhar, insistiu: - O que foi, Peter? Visivelmente transtornado, sentou-se ao lado da esposa: - O que foi mesmo que sonhou essa noite? - Não quero falar sobre isso agora. Por que pergunta? Peter pegou o controle remoto e, sem palavras, ligou a televisão, que trans-

mitia notícias do avião que se chocara contra uma das torres do World Trade Center. Isabela, tentando compreender, encolheu-se na cama, assustada.

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- O que é isso? Um avião bateu nas torres gêmeas?! Peter, você já tentou falar com Rafael? Ele trabalha lá...

- Eu sei, querida... Tentei falar, porém o celular dele não responde. Sentindo nova tontura a turvar-lhe a vista, Isabela respirou fundo. - Não foi um acidente, não é? - Parece que não... Isabela olhava, incrédula, o prédio em chamas. Depois fitou o marido e

disse, entre lágrimas: - Rafael estava lá, eu sei, eu sinto... - Talvez não; pelo horário, o prédio ainda estava meio vazio... Muitas pes-

soas não haviam chegado para trabalhar... - Rafael chega cedo, muito cedo... Ele estava no prédio. Isabela tremia, an-

gustiada. Peter ponderou: - Não podemos tirar conclusões, temos de esperar... Enquanto conversa-

vam, outro avião atingiu a segunda torre do WTC e os dois prédios desabaram. Assombrada, Isabela contou: - Peter, eu sonhei com as torres em chamas... - Então, sonhou com o atentado - seu olhar era de desespero. - Atentado? - Só pode ser um atentado terrorista. Dois aviões não erram dessa forma. - Meu Deus! Meu Deus! - era o máximo que Isabela conseguia dizer. Dorothy olhava para a televisão e para a nora, com espanto. Depois, virou-

se para o filho: - Se não fosse o providencial desmaio de Isa, vocês também estariam lá... Foi então que Isabela se compenetrou do que acontecera: - Quanto tempo fiquei desacordada? - Quase uma hora. - Não é possível! Acompanhando os fatos pela televisão, ela repetia: - Não é possível! Que coisa horrível! O telefone tocou e Peter atendeu. Conversou rapidamente e desligou, in-

formando: - Era Patrick, que acabou não indo também. Ligou, emocionado, para a-

gradecer. Isabela assistia horrorizada as cenas chocantes que repisavam a todo ins-

tante o momento do impacto das aeronaves nos prédios. E tentava contato com o irmão. Tentou o dia inteiro, sem sucesso. Somente no final da tarde Paola, a namorada de Rafael, ligou para confirmar suas mais dolorosas expectativas. Falara com o namorado no início do dia, pouco antes de os aviões destruírem

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os prédios, e ele estava lá, em seu escritório, no topo de uma das torres. Ao desligar o telefone, Isabela chorava copiosamente. Peter buscou serená-la:

- Devemos ter calma, esperar. Pode ser que ele tenha saído por alguma ra-zão... Enquanto não tivermos certeza...

- Eu tenho certeza, Peter. Meu irmão estava lá, sei disso. Nos braços do marido, ela chorou desconsolada.

Os dias se passaram e a cidade, transtornada, precisou de muito tempo para retomar seu cotidiano. Rafael nunca foi encontrado, sendo dado como um dos desaparecidos no terrível ataque. Isabela sofreu muito a perda do irmão e via-jou para o Brasil, junto com a filha, para ficar algum tempo perto da mãe. Ana Lídia, profundamente abalada, lamentava, em depressão:

- Nada disso é justo. Não é. Deus não existe, Isabela. - Mãe, não diga isso. - É verdade. Se existisse, como permitiria tanto sofrimento? Fale! Isabela, muito triste, baixou a cabeça e só respondeu depois de alguns ins-

tantes: - Há muitas coisas que não compreendo, mãe, mas sei que Deus é amor e

perfeição. Se houve erro, não foi de Deus, e sim nosso. - Ora, Isabela, pare com esse fanatismo. Não vê que isso a está destruindo?

Você parece lunática! Perdeu seu pai, agora o seu irmão num atentado terroris-ta e quase perdeu a própria vida! Não percebe?! Não é possível que ainda ve-nha falar de Deus...

- Mãe, se eu perder a fé em Deus, não me sobrará mais nada na vida. Ele é minha única esperança.

- Esperança de quê? - De dias melhores, mãe. - Como esperar dias melhores? - Talvez em outro plano, ou quem sabe aqui mesmo na Terra, quando ela

finalmente modificar sua vibração e for um planeta onde reine o amor... - Lá vem você com suas fantasias... Eu não quero escutar. Isabela calou-se,

em respeito ao sofrimento da mãe.

SESSENTA E QUATRO DEPOIS DE VÁRIOS DIAS de atenção exclusiva à mãe, Isabela foi ao núcleo

espírita que freqüentara até se mudar para os Estados Unidos. Helena a aguar-dava, ansiosa, sabedora dos momentos difíceis pelos quais passava. Ao vê-la chegar, abraçou-a com carinho por longo tempo. Isabela chorou como criança

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no ombro daquela que considerava como mãe. Helena afagava-lhe os cabelos, dizendo:

- Chore, Isabela, coloque para fora tudo o que sente. Isabela não conseguia falar. Era imensa a dor que lhe invadia o ser. Igual-

mente em silêncio, a amiga a amparava com ternura e mentalmente orava para que Deus confortasse e fortalecesse aquela a quem, por seu lado, via como filha. Quando percebeu que ela se acalmara, lembrou:

- Deus não nos desampara, Isabela. - Eu sei, mas tem sido muito difícil... Minha vida está um caos... Eu queria

que tudo fosse diferente. Esforcei-me para trilhar o caminho do bem, e agora me sinto sem ânimo para prosseguir.

Abraçando-a novamente, Helena aconselhou: - Você precisa descansar um pouco, para poder restabelecer suas energias. Isabela admitiu, limpando as lágrimas: - Eu gostaria, se tivesse tempo. As situações parecem engolir-me e não

consigo me equilibrar. - A fase que estamos vivendo é mesmo complexa. Além de nossos proble-

mas pessoais, a Terra passa por um grave momento. - E, eu sei. - Mais do que nunca, precisamos perseverar naquilo que aprendemos. - Estou sem forças. Sem dizer nada, Helena fitou-a nos olhos e tornou a abraçá-la. As duas per-

maneceram por muito tempo conversando e depois, juntas, participaram das atividades da noite. Ao final, foi Eliana quem abraçou Isabela, comovida.

- Estava com saudade de você, Isabela. Em seguida, ciente das perdas que a família sofrerá, indagou, séria: - Como está sua mãe? - Muito mal. - Eu imagino. - Ela não tem nenhuma crença a que possa apegar-se. Meus pais jamais

quiseram aceitar religião alguma. Agora, minha mãe está profundamente de-primida, sem forças para reagir. Estou muito preocupada.

Eliana, cheia de compaixão, comentou: - Posso imaginar o sofrimento pelo qual ela passa. Seria bom se ao menos

se apoiasse em um tratamento com um psicólogo de confiança, já que não a-ceita o amparo religioso.

- Ela está fazendo terapia, porém não vejo melhora. - Às vezes isso demora, realmente. Desejando mudar o assunto em foco, Isabela quis saber da instituição:

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- E por aqui, tudo bem? Como vai a creche? - Continuamos lutando muito. A situação de pobreza da comunidade está

bastante agravada. Temos nos empenhado em atender as necessidades das fa-mílias, mas é comum depararmos com problemas que vão muito além de nos-sas possibilidades. Nesses casos, oramos mais e prosseguimos fazendo o nosso melhor, que para eles é tão pouco...

- Você se esforça tanto, Eliana... Deve ter ao menos algum resultado posi-tivo.

- A assistência às crianças representa um laborioso cultivo; semeamos na-queles corações todo o bem que podemos para que um dia, com as bênçãos de Deus, essas sementes germinem. É um trabalho de longo prazo. Já com as fa-mílias, junto às quais é fundamental atuar, buscamos colaborar na solução dos problemas mais graves, porém sem lograr muito êxito. As situações são de extrema carência e deplorável violência.

- Que tristeza... Se não existisse tanta corrupção, certamente haveria mais recursos para o povo.

- Sem dúvida. - Nosso povo sofre demais... Mantendo fixos em Isabela seus profundos olhos negros, Eliana falou com

ternura e compreensão: - No entanto, não podemos ignorar que todos nós colhemos os frutos do

que plantamos no passado. Muitos de nossos irmãos que hoje sofrem sérias privações já usufruíram largo poderio e também usurparam aquilo que não lhes pertencia. Por isso procuramos, acima de tudo, semear o bem e os conheci-mentos espirituais, para que cada um possa agir na vida valorizando o que tem e a posição em que está como bênção de Deus para a necessária renovação. É preciso compreendermos que nós colhemos o que plantamos, sempre.

Pensando em sua vida e na etapa que atravessava, Isabela considerou, com os olhos marejados:

- Só que é tão difícil compreender, quando estamos em meio à dor e ao so-frimento...

Eliana abraçou-a com carinho. - Deus está sempre conosco, ajudando-nos a vencer cada obstáculo. Isabela permaneceu mais alguns dias na companhia dos amigos e da mãe,

que por fim convenceu a voltar com ela os Estados Unidos. Ao argumento de que precisavam uma da outra, Ana Lídia acabou cedendo.

De regresso, encontrou Peter ainda mais envolvido com a literatura, pronto para editar outra obra. Seu carisma logo o tornou um palestrante requisitado, e ele terminou por dedicar-se unicamente aos livros e à sua divulgação.

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No primeiro livro narrara as dificuldades com que se defrontara e a forma como o amor o ajudara a reerguer-se. Nele, partilhara suas experiências legíti-mas e, de fato, dera sua contribuição aos leitores que porventura tivessem pro-blemas semelhantes. Entretanto, nas obras seguintes, sem profundidade, recor-rera a pensadores que não conhecia tão bem e começara a sofrer a influência de espíritos que o assediavam, há muito tempo, desejando seu fracasso.

Agora, envolvido pelo êxito e ignorando os sinais de alerta recebidos atra-vés dos estudos que realizara, Peter dava ensejo a maior interferência desses adversários espirituais, e sutilmente o conteúdo de seus livros ia ficando sujei-to à ingerência mental de tais entidades. Não obstante, o novo lançamento, mais uma vez, teve excelente acolhida do público e logo figurava na lista dos mais vendidos.

Desse modo, Peter distanciava-se mais e mais de suas responsabilidades e dos compromissos que assumira antes de retornar ao corpo físico.

Já Isabela, pela necessidade de atender aos afazeres domésticos, à profis-são e aos cuidados com a mãe, decidiu que se afastaria momentaneamente do núcleo espírita e das tarefas de auxílio aos carentes. Voltaria quando conse-guisse reorganizar a vida. Todavia, à medida que o tempo corria, ela sentia maior dificuldade para conciliar todas as suas atividades. Sentia-se cansada e fraca e, embora se esforçasse ao máximo para dar o melhor de si, começava a sentir-se fracassada em muitas de suas iniciativas. A mãe não melhorava, e Peter mais se afastava dela e da família.

Em uma das freqüentes noites em que ficava sozinha até tarde, Isabela a-guardava ansiosa o regresso do marido, que viajara para a Pensilvânia a fim de divulgar seu livro mais recente. Já estava deitada quando o telefone tocou:

- Peter? Onde está? Pensei que estivesse chegando... - Isa, vou ficar por aqui mais um dia. - Por quê? - Patrick agendou mais uma entrevista, num programa de TV local, e vou

aproveitar minha estadia. - Havíamos combinado de ir juntos à apresentação da Juliana na escola.

Ela está contando com você. - Puxa, Isa, eu me esqueci! Agora não dá mais tempo, você terá de ir só. Quando se despediram e desligou o telefone, Isabela chorou amargurada.

Sentia que estava perdendo o homem que amava. Ele se afastava e se tornava indiferente, não lembrando nem de longe o marido terno e atencioso de outro-ra. Ela abraçou os joelhos e, encostando neles a cabeça, reconheceu:

- Está tudo errado! Tudo!

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Adormeceu chorando. Thomas tocou-a com carinho e despertou seu corpo espiritual.

- Isabela, precisamos conversar. Ela sentou-se ao lado de seu corpo físico e, atordoada, disse: - Não me sinto bem. - Eu sei, você está carregando muito peso inútil. - Não entendo. - Entenderá. - Thomas, você precisa me ajudar. Por onde tem andado, que quase não o

vejo? - Trabalhando, Isabela, mas sempre por perto. Há muito trabalho na Terra e

poucos trabalhadores. Tenho estado no núcleo espírita auxiliando em diversas tarefas.

- E eu, não mereço sua ajuda? - Estou sempre ligado a você, mas há de concordar que também deveria es-

tar lá. - Não estou conseguindo. Minha vida tornou-se complicada demais. Não

posso entender a razão de tanta dor, de tanto sofrimento... Estendendo a mão para ela, Thomas fez um convite: - Venha comigo. Vou mostrar-lhe algumas situações que poderão clarear

um pouco sua mente e ajudá-la a compreender o momento. Apoiada em Thomas, foi até o núcleo espírita e surpreendeu-se com a

quantidade de espíritos em condições lastimáveis. O ambiente estava repleto de almas sendo socorridas.

- Meu Deus, quanta gente! De onde vêm todos eles? - De toda parte. - Acabaram de desencarnar? - Alguns sim, outros não. Estão agora recebendo socorro que lhes permita

a transferência, posteriormente, para algum ponto onde possam prosseguir sua recuperação.

Depois de caminhar pelas dependências do núcleo, ele a levou a caminhar pela cidade. Assustada, Isabela apertou o braço do amigo e perguntou:

- Thomas, que está acontecendo? Que substância viscosa e malcheirosa é essa que permeia tudo? Quem são esses seres horripilantes? Eles estão em todo lugar...

- Sim, Isabela, esses espíritos que não querem entregar-se a Deus e a Je-sus, que não querem render-se ao bem, atuam de todas as formas ao seu alcan-ce para destruir os homens e dominar-lhes a consciência. Apesar de já contro-larem grande parte dos seres encarnados, não estão satisfeitos. Querem mais.

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- Meu Deus! E por que andam livremente na Terra, influenciando as pes-soas dessa maneira?

Thomas pegou-a pelo braço e viajaram pelo espaço, enquanto ele esclare-cia:

- Cada ser humano tem seu livre-arbítrio e estabelece sintonia com aquilo que deseja. Esses espíritos nunca dominam aqueles que não lhes dão guarida mental. Ainda que exerçam influência sobre todos, só conseguem manipular os que lhes abrem espaço mental.

Isabela notou que se afastavam da Crosta e alcançavam uma colônia de so-corro próxima, onde a movimentação era intensa. Uma legião de trabalhadores se preparava para descer à Terra. Thomas cumprimentou vários deles, que também saudaram Isabela como se a conhecessem.

- Sinto como se essas pessoas fossem conhecidas. - E são mesmo. Você já esteve aqui. - Tudo é familiar... Entraram num grande salão, já lotado, e acomodaram-se em duas cadeiras

bem ao centro. Logo um senhor de cabelos brancos levantou-se e orou, dando início ao encontro. Depois, mais dois espíritos falaram aos membros do nume-roso grupo, preparando-os para as atividades de resgate e ajuda que estavam prestes a realizar no orbe da Terra. Em seguida, o simpático senhor voltou e proferiu sentida oração, que elevou ainda mais o teor vibratório do ambiente. Então, pediu a todos que se mantivessem em oração para receber a visita de ilustres convidados. Ernesto e Elvira se materializaram no salão. Tomando a palavra, Ernesto procurou ser esclarecedor.

- Queridos irmãos e companheiros de luta e de trabalho, estamos felizes por contar com um grupo tão grande e com a dedicação de vocês. O momento na Terra é de extrema gravidade. O orbe se prepara, já há tempo, para evoluir na escala dos mundos. Como vocês sabem, deixará de ser um planeta de expi-ações e provas para se tornar um planeta de regeneração, cujos habitantes des-frutarão uma vida mais pacífica e harmoniosa, alinhando-se aos ensinos de Jesus.

Todavia, parte considerável dos irmãos da Terra não compreende a serie-dade deste momento. São muitos os que querem que os outros mudem, en-quanto se recusam a mudar a si mesmos. É então que Deus, o Pai misericordi-oso, bondoso e sábio, permite as colheitas de sofrimento para que as almas despertem de seu torpor e se decidam pela renovação interior. Infelizmente, só pela dor a grande maioria será tocada; por isso tanto sofrimento se espalha pela Terra nesta hora de transição.

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Com ligeira pausa, Ernesto facilitou ao grupo a assimilação dessas infor-mações, antes de prosseguir:

- Estamos aqui com o objetivo de ajudar nossos irmãos a passarem por esse doloroso processo. Embora o sofrimento seja necessário, nenhum irmão estará desamparado. Outros espíritos estão chegando, procedentes das esferas superi-ores da Terra e também de outros orbes, para apoiar Jesus, que preside a trans-formação planetária. Sei que têm o coração opresso pelo que presenciam; en-tretanto, contamos com a fé de cada um de vocês, com a sua certeza de que Deus está no comando de tudo e sempre quer o melhor para seus filhos. Ar-mem-se de energia, esperança e alegria, pois uma nova era está prestes a se abrir para este mundo. Embora o mal nele esteja amplamente presente, esses espíritos que permaneceram por longo tempo nas regiões abissais estão, i-gualmente, tendo sua oportunidade decisiva. O mal que parece dominar o pla-neta não durará para sempre. O reino de Deus, amorosamente divulgado por Jesus e rejeitado pelos homens, será finalmente estabelecido. Portanto, espe-rança e paciência devem revestir nossos corações neste momento extremo. A Terra será sacudida pelas intensas vibrações que a reprimem, para o bem de seus habitantes. Para a grande maioria, é a derradeira chance de permanecerem na Terra. Como vocês sabem, há alguns anos a transferência de almas já co-meçou; agora o processo de expurgo se acelera, e muitos serão levados.

Ernesto fez nova interrupção em sua mensagem, para depois finalizar: - Portanto, eu os convoco: marchem com coragem e determinação, meus

irmãos, que Jesus, do mais alto, multiplicará os resultados de nossos esforços no bem.

O salão estava em absoluto silêncio e a atenta platéia foi envolvida pela luz que irradiava de Ernesto e Elvira. O casal entrelaçou as mãos, e ele convidou:

- Vamos, irmãos, marchemos sem temor. A seguir as duas figuras se desvaneceram diante de todos. Isabela estava profundamente impressionada com o que ouvira. Enquanto

retornavam, indagou, vendo a pesada nuvem de energia deletéria que cobria o planeta:

- O que é essa névoa escura, Thomas? - A Terra está envolta pela energia densa que decorre da emissão dos pen-

samentos dos homens, encarnados e desencarnados. A atmosfera espiritual do planeta está pesada, influindo ainda mais na atração de todos os tipos de cala-midade, violência, desentendimento e desordem.

Isabela refletiu um pouco, e então disse: - É inacreditável. Somos nós os responsáveis por tudo o que está aconte-

cendo?

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- Infelizmente sim. Por isso, quanto mais difíceis estão as coisas, mais te-mos de trabalhar no bem, pelo bem e para o bem. Esse é o único meio de con-tribuirmos para que a realidade da Terra mude.

- Não imaginava que tantos espíritos elevados se dedicassem dessa forma à humanidade terrena. E pensar que às vezes nos sentimos sozinhos e desam-parados...

- Você não tem idéia da quantidade de seres esclarecidos que estão por to-da parte, trabalhando incansavelmente por todos nós.

- Sinto-me envergonhada. - Não sinta vergonha, Isabela; fortaleça sua vontade de trabalhar no bem e

ajude. É isto que os emissários da luz esperam: pessoas que sejam seus braços e pernas para auxiliar a quem precisa. E assim, como somos também necessi-tados, recebemos mais do que podemos imaginar.

Thomas e Isabela aproximavam-se da casa dela, e ao entrarem, ele pergun-tou:

- Agora compreende a importância dos compromissos que você e Peter as-sumiram?

- Sim... Mas estou muito preocupada com ele. Peter afastou-se totalmente de seus reais deveres...

- Eu sei, e está momentaneamente inacessível à minha influência. Só que isso não importa por ora. Faça a sua parte e não esmoreça. Nós contamos com você, Isabela.

Ela se acomodou sobre seu corpo físico e não conteve a curiosidade: - Onde está Rafael? - Durma e descanse. - sugeriu Thomas, acariciando-lhe os cabelos. Isabela olhou-o nos olhos e perguntou mais: - Ele não está mais na Terra? Foi exilado?! O amigo espiritual insistiu: - Descanse, Isabela. Um dia poderá ajudá-lo. Entendendo a resposta com

tristeza, acatou-a e adormeceu. Ao despertar, horas depois, trazia lembranças da experiência que vivera. Levan-

tou-se, resoluta, organizou as tarefas da casa e comunicou à mãe, já de saída: - Chegarei mais tarde hoje. Depois do trabalho, irei ao núcleo espírita. - Pretende afastar-se do lar, em um momento como este? Ela pensou por instantes, lembrando-se da orientação de Thomas. - E nesses momentos que mais precisamos trabalhar. Vou voltar às minhas

responsabilidades espirituais.

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SESSENTA E CINCO O ENCONTRO COM o amigo e a experiência que presenciara no plano espiri-

tual exerceram forte influência sobre a vontade de Isabela, que a partir daquele dia retomou com redobrada dedicação as atividades mediúnicas e também o serviço assistencial que mantinha no núcleo. Passou a enfrentar clara oposição em seu trabalho, uma vez que a mediunidade remunerada é muito comum na-quele país e que ela se empenhava em disseminar a compreensão do papel des-sa faculdade para os encarnados.

Por outro lado, sofria a pressão de Peter, que a solicitava para festas e ou-tros compromissos, aos quais ela atendia quando podia, desde que não interfe-rissem em suas responsabilidades espirituais, reassumidas com toda a serieda-de. Nas ocasiões em que o acompanhava, o marido lhe pedia sempre que não falasse de suas atividades espirituais; nos círculos em que agora transitava, sentia vergonha do trabalho singelo que ela exercia. Isabela, por sua parte, calava-se sem constrangimento, já que sabia, mais do que nunca, que suas ati-tudes teriam maior importância do que suas palavras.

Houve uma noite em que Isabela permaneceu até tarde na instituição, aten-dendo a crianças e adultos. Enquanto apagava a luz de seu consultório, ao lado de sua assistente, escutou barulho na porta da frente. Logo um jovem ofegante, com os olhos arregalados, apareceu diante delas tendo na mão uma faca. En-volvida por Thomas, a médica disse:

- Entre com calma, está tudo bem. Sem responder, o rapaz fitava as duas como se não as visse: - Eles vêm atrás de mim... Atrás de mim... Lentamente, Isabela aproximou-se e tocando seu braço, que ele puxou em

reação imediata, convidou com sincero carinho: - Venha, entre, estamos sozinhos aqui. A muito custo, o jovem acabou por ceder à suave energia de Isabela e se-

renou um pouco seu agitado coração. Baixou a faca, sem largá-la, e entrou no consultório. Isabela ofereceu-lhe uma cadeira onde se sentou com a respiração ainda ofegante. Ela também se sentou e indagou:

- O que podemos fazer para ajudá-lo? O rapaz olhava temeroso para a porta, depois para as duas, e por fim fixou

os olhos em Isabela. - O que eu preciso você não pode dar, e agora não posso sair às ruas para

pegar. Isabela baixou os olhos e ao tornar e erguê-los perguntou: - De quem está fugindo? De traficantes?

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- Não, muito pior do que isso. - Da Máfia, então? - Também não. O rapaz fez breve pausa, notando a interrogação no olhar de Isabela, e fa-

lou entre lágrimas: - Meu Deus, eu preciso confiar em alguém... Isabela o incentivou, enquanto Selena, sua assistente, permanecia paralisa-

da pelo medo. - É isso mesmo. Precisa de ajuda, e para ter isso terá de confiar em alguém.

Conte-me, o que está havendo? Quem o está assustando dessa maneira. O rapaz começou a falar. - Moro neste bairro há mais de vinte anos, com minha família. Há alguns

anos, aqui, neste lugar, conheci uma pessoa... Isabela permaneceu em silenciosa atenção, incentivando-o. E ele prosse-

guiu: - E um homem poderoso e prometeu-me dinheiro e o que mais eu quisesse,

se o ajudasse sem fazer perguntas. Assim, tenho feito tudo o que ele manda, só que desta vez foi demais. Não quero mais trabalhar para ele, mas estou apavo-rado. Sei do que é capaz. Ele e aquela assistente doida...

- E o que lhe pediu para fazer? - Ele pede para eu me livrar de lixo farmacêutico. Já fiz várias viagens à

América do Sul e à África, para testar novos medicamentos, já destruí evidên-cias de problemas com esses medicamentos e... bem... não quero mais. Ele ficou totalmente maluco...

Isabela fitou o rapaz, que ficou longo tempo calado; depois explodiu, cho-rando de novo:

- Ele quer que eu... eu... roube crianças daqui da comunidade para alguns testes...

Isabela ergueu-se, chocada. - O que está dizendo? - E isso, falei. Agora está tão encrencada quanto eu... Também não pode

contar isso para ninguém, ou ele acaba com a senhora. E tão poderoso que controla até a polícia.

Isabela voltou a sentar-se novamente, respirando fundo. - Contou alguma coisa para seus familiares? - Ainda não, mas vou ter de fazer isso logo. Eles também correm risco. Es-

se homem é louco e perigoso. Trabalha para gente ainda mais poderosa. Eu fugi de alguns de seus capangas, que queriam saber se já tinha começado a trabalhar no que me pediu...

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- E o que ele quer com as crianças? - Não sei, deve ser algum tipo de experiência. Eles vivem fazendo isso...

Por isso somem tantas crianças pobres... Isabela estava horrorizada. - Meu Deus, não é possível! Quem é esse homem? Apontando a fotografia

da inauguração da instituição, que ficava na parede do corredor, ele mostrou Lawrence.

- Aquele ali. - Lawrence, não! Deve haver algum engano. Ele é um dos colaboradores

da nossa instituição. O rapaz foi categórico: - É ele mesmo, dona, eu não tenho nenhuma dúvida. Foi aqui, no dia em

que tiraram a fotografia, que eu o conheci. Fortemente impressionada, Isabela retornou ao consultório, sentou-se em

sua cadeira e ficou a meditar, até que o rapaz, aflito, indagou: - E agora, o que eu faço? - Você acredita mesmo que ele vai machucá-lo ao se recusar a atendê-lo? - Não, ele vai é me matar. - Então você precisa desaparecer por algum tempo. - E minha família? - Também deve sair por uns tempos. - Como, se não temos para onde ir? Thomas lhe sugeria que ajudasse o rapaz. Embora sem registrar-lhe a pre-

sença com clareza, Isabela sentia a inspiração e seguia seu coração. -Tive uma idéia, mas antes vou ter de falar com algumas pessoas. Entregou papel e caneta ao jovem. - Escreva aqui seu endereço, vou conversar com sua família. Eles sabem

no que você está envolvido? - Minha mãe sabe. Meu pai nos abandonou há muito tempo. - Vou colocá-la a par da situação. Depois, se o que estou planejando for

possível, tirarei todos daqui. Olhando a mulher desconhecida que se preocupava com ele, o rapaz teve

dúvida. - Por que está fazendo isso? - Porque você precisa de ajuda. Agora fique aqui e espere minha volta. Não

abra a porta para ninguém. Vamos, Selena, deixo-a em casa. Enquanto dirigia para a casa do rapaz, Isabela fazia contato com alguns

amigos pelo telefone. Conversando com Glória Esteves, a mãe do jovem fora-gido, esclareceu todo o caso. A mulher chorava, apavorada.

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- Eu avisei que não se envolvesse com aquele homem, não gostei da cara dele. Agora, o que vamos fazer?

Isabela explicou a Glória como imaginava auxiliá-los e, sem alternativa, a mulher acabou aceitando. Ela conseguiu acomodar mãe e filho na instituição de amigos, na costa oeste do país.

Mais tarde, em casa, ligou para Eliana e lhe confidenciou sua experiência, receosa de ter agido de modo equivocado. Sentiu-se melhor quando a amiga assegurou que teria adotado a mesma conduta.

Ao desligar, Eliana sentiu-se particularmente cansada. Preparou um chá e sentou-se para tomá-lo. Então a lembrança de Mateus aflorou nítida em sua mente. Desde o episódio em que tentara incriminá-la junto à polícia e à comu-nidade, ele desaparecera; nunca mais o encontrara. Ao se deitar, estranha in-quietação a dominava. Tão logo adormeceu, seu corpo espiritual desprendeu-se do corpo físico, e ela encontrou diversos trabalhadores espirituais que lhe apoiavam as tarefas. Essa ocorrência era habitual durante seu sono físico, fosse para participar da execução de diversos trabalhos, fosse para receber orien-tações sobre a condução da instituição que estava temporariamente sob sua responsabilidade. Naquela noite, entretanto, estranhou o número de amigos presentes.

- Boa noite, Eliana - cumprimentou seu orientador. - Não estranhe a mo-vimentação, há muito trabalho acontecendo no orbe terrestre nestes dias, e seu lar tem sido um ponto de apoio para muitos de nós, que estamos em serviço. Hoje, vamos procurar Licínio. Ele comprometeu sua encarnação e lamenta-velmente, por ora, não vemos mais nenhuma possibilidade de renovação.

Com o semblante entristecido, Eliana disse: - Gostaria de falar com ele uma última vez. - É nosso objetivo nesta noite: acompanhá-la até sua casa, para que possam

conversar. Está pronta? - Sim. Em um grupo de oito espíritos, Eliana e os demais seguiram para o sul do

Brasil, onde Mateus - que outrora fora Licínio - fixara residência. Ali chegan-do, antes mesmo de entrarem no apartamento, Eliana sentiu as pesadas vibra-ções que emanavam do ambiente. As condições espirituais do lar eram lasti-máveis. Sofredores desencarnados eram mantidos cativos por grupos de espíri-tos raivosos que, por sua vez, pareciam submeter-se a um pequeno grupo de entidades espirituais mergulhadas nas trevas. Estas exerciam forte influência sobre Mateus. Ele assistia a um filme pela televisão, quando repentinamente foi intuído a deixar o lar. Vestiu-se e saiu, sem pensar. Um daqueles espíritos que com ele dividiam o ambiente propôs:

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- Vamos atrás dele? Sem que ninguém percebesse a presença do pequeno grupo recém-

chegado, outro respondeu: - Ele não vai demorar, está cansado e bêbado. Voltará logo. Eliana e mais

cinco companheiros seguiram Mateus; outros dois permaneceram na residência. Ao alcançar o meio-fio, Mateus foi atin-

gido por uma motocicleta que o atirou longe. Semi consciente, desmaiou nos braços de Eliana. Ao despertar no hospital, viu-se com uma perna e um braço enfaixados. Uma enfermeira, que verificava seu estado, informou-o do acidente.

- Quanto tempo terei de ficar no hospital? - Não sei... Creio que alguns dias. Irritado, Mateus foi áspero: - Compromissos importantes me aguardam. Vou viajar para a Europa em

duas semanas, e até lá preciso estar recuperado. - Como o senhor não teve nenhuma fratura, apenas escoriações, deverá fi-

car em observação por poucos dias. - Quem pode me dar essa informação? - O médico logo estará aqui. De fato, mais tarde o médico confirmou que ele batera a cabeça, onde se

formara um edema. O local precisava desinchar para que pudesse sair do hos-pital; se tudo corresse como o esperado, em alguns dias teria alta e, quem sabe, até poderia viajar. Depois que o médico saiu, Mateus resmungou, aborrecido:

- Só me faltava essa... Ficar preso em uma cama de hospital... Ao adorme-cer, auxiliado pelo grupo de amigos espirituais, seu

corpo fluídico foi logo desprendido e ele sentou-se na cama, atordoado. E-liana, que emitia suave luminosidade a irradiar-se de seu coração e envolvê-la por inteiro, podia ser tomada por um anjo. Assim que a viu, assustou-se:

- Eliana, o que faz aqui? Com sublime ternura, ela respondeu com outra pergunta: - Não me reconhece, Licínio? - Licínio? - Sim, somos conhecidos muito antigos... - Por que me chama de Licínio, se meu nome é Mateus? Ela sentou-se ao lado daquele que muito amava, tomou-lhe as mãos e, irra-

diando luzes azuladas e rosadas, falou: - Estou aqui para fazer-lhe um apelo. - O que quer? - Você precisa aproveitar sua permanência na Terra; não está fazendo bom

uso desta encarnação, que é das mais preciosas. - Faço o que quero com minha vida, e ninguém vai me dizer como vivê-la.

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Paciente, ela concordou: - Tem toda a razão. A forma como vive só diz respeito a você. No entanto,

pelo grande carinho que nutro por você desde muitas encarnações, venho pe-dir-lhe que repense sua vida. Embora conheça os princípios cristãos que deve-riam nortear sua existência, vem fazendo escolhas contrárias à lei divina. Essa sua semeadura não lhe trará uma boa colheita.

Mateus sorriu com cinismo. - Lá vem você com sermões. É só isso que sabe fazer? Sermões e mais ser-

mões? Vocês todos são enfadonhos, falando e falando sem parar. - Mais uma vez, devo concordar com você. Falamos demais e agimos de

menos. Mas é nossa tentativa de acertar. E você, meu querido, o que está fa-zendo com sua vida?

- Sei que estou aqui para conquistar o mundo. Meus negócios estão flores-cendo como nunca; eles me levarão à Europa e depois aos Estados Unidos, onde também pretendo atuar como consultor. Não haverá barreiras ou limites para o meu crescimento.

Fez breve silêncio, depois afirmou, convicto: - Eu quero o mundo em minhas mãos! Eliana permanecia calma e serena. - E o que será de sua alma imortal, essa que agora conversa comigo? Ele se mostrou confuso e Eliana aproveitou sua ligeira hesitação para pros-

seguir. - Quais foram as conquistas de sua alma na presente encarnação? E veja

que oportunidades não lhe faltaram: teve chance de conhecer o Evangelho re-divivo pelos princípios espíritas, e me surpreendeu com a sua notável inteli-gência. Contudo, você está usando de maneira deturpada a inteligência bri-lhante que o trouxe do sistema de Capela para cá, milênios atrás.

- Do que está falando? - De nosso mundo de origem. - Que conversa é essa, agora? - Você não se lembra, mas fomos exilados quando Capela passou por uma

transformação semelhante a esta, que a Terra experimenta hoje. A rebeldia perante as leis divinas nos tornou um entrave ao progresso de nosso mundo. Na Terra, contribuímos para a evolução das almas primitivas que aqui se en-contravam e, com muita dor e sofrimento, fomos tecendo dias melhores para nós mesmos. Agora, estamos mais uma vez diante da transformação. A Terra está a caminho de tornar-se um planeta onde reinarão o bem e o amor. Com estrondosa gargalhada, ele a interrompeu:

- Sei de todas essas histórias. - Eu tenho certeza de que sabe.

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- Estudei uma porção de religiões, li, freqüentei cultos aqui e ali, porém nada me convenceu. Eu não acredito...

Envolvendo-o em intensa vibração amorosa, ela disse: - Não quer aceitar a verdade que está diante de você. Não é por acaso que

está neste quarto de hospital. Está aqui para pensar em sua vida e, se Deus permitir, fazer melhores escolhas enquanto há tempo.

- O que quer dizer? Está me ameaçando? Não aceito ameaças... - Não se trata de ameaça, e sim da constatação de que a justiça divina nos

alcança a todos. Ainda há tempo; pouco, mas há. Reveja suas opções, mude seu coração, renove seus pensamentos e sentimentos no bem e no amor. Re-comece hoje, aqui, neste quarto de hospital, aproveitando a sagrada oportuni-dade que Deus lhe oferece. O Criador nos ama, e Jesus, igualmente com amor, espera pelo nosso despertar. E nosso orbe em Capela, já em adiantada fase de regeneração, está mais lindo do que nunca, à espera do nosso regresso. Desper-te enquanto há tempo. Logo as trevas se adensarão e será muito mais difícil encontrar a luz.

A uma pausa de Eliana, um dos amigos que a acompanhavam tocou de le-ve em seu ombro, alertando-a da chegada, em breve, das entidades das trevas que procuravam por Mateus. Entendendo de pronto, ela e os demais recoloca-ram-no sobre seu corpo físico e o fizeram adormecer profundamente. Eliana ergueu os olhos úmidos ao céu, em súplica.

- Senhor, sabemos que ainda não nos fizemos merecedores de seu amor e de sua misericórdia. Mesmo assim, Pai amado, rogamos por este nosso irmão que não consegue enxergar e compreender seu amor. Tenha compaixão de nós, que com escolhas errôneas semeamos a dor e o sofrimento em nossos destinos, atraindo dolorosos flagelos. Não nos abandone, Senhor, tenha mise-ricórdia de nossa pequenez...

Ela não pôde prosseguir. Pesadas lágrimas lhe desciam pela face. A oração cheia de amor encheu o quarto de luz, elevando o teor vibratório do ambiente e impedindo a entrada dos espíritos arraigados ao mal, comparsas de Licínio no mundo espiritual. Eles resmungavam do lado de fora:

- Aqueles seres repugnantes estão aí... Não nos deixam entrar. Mas somos persistentes... Uma hora eles vão ter de sair.

No intuito de consolar Eliana, um dos companheiros comentou, quando já deixavam o hospital de volta à casa dela:

- Ao menos ele terá algum tempo para refletir sem a influência direta dos comparsas. E uma ótima oportunidade.

Ela olhou com tristeza o prédio do hospital, que sumia a distância. - Que Jesus nos ajude.

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Duas semanas depois, à tarde, Isabela atendia uma criança quando Selena apareceu, lívida, em seu consultório. A médica estranhou.

- O que foi, Selena? Ainda não terminei a consulta. - Um homem está aí fora querendo falar com a senhora. - Um homem? - Muito agressivo... - sua voz era um sussurro. - Acho que é daqueles que

estavam atrás do Mário. Ele quer vê-la agora. Antes que a jovem acabasse, o homem entrou no consultório. Isabela falou,

tentando manter a calma: - Senhor, poderia aguardar alguns instantes? Estou terminando a consulta e

já vou atendê-lo. O homem recuou, olhou para a criança, depois para a mãe, observou toda a

sala e saiu dizendo: - Não demore. Depois de concluir o atendimento, Isabela pediu ao homem que entrasse.

Sem saber o que fazer, Selena chamou Regina, presidente da instituição, te-mendo o que pudesse acontecer com Isabela. O homem foi objetivo:

- Queremos saber onde está Mário. - O que foi que ele fez? - Não interessa. Queremos falar com ele, só isso. - Não sei onde ele está. - Achamos que a senhora sabe, sim, e deve falar, pois Mário é um jovem

viciado e perigoso. - O que foi que ele fez? - ela insistiu. - Ele nos deve dinheiro e desertou de seu trabalho com alguns documentos

que nos pertencem. Queremos os documentos de volta, apenas isso. Diga-lhe que tem 24 horas para aparecer.

- E se ele não aparecer? O homem respondeu, deixando o consultório: - Somos persuasivos e persistentes. Saberemos encontrá-lo. Assim que ele

saiu, Isabela segurou-se na cadeira e falou baixinho: - E agora? Foi quando Regina chegou. Já ciente de todo o ocorrido, tendo apoiado o

auxílio prestado por Isabela ao rapaz, a dirigente disse: - Não sei o que fazer. Eles não desistirão até que o encontrem. - Como descobriram que os ajudamos? - Sempre alguém acaba falando com alguém que sabe ou viu alguma coisa. Desolada, Isabela falou:

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-Acho que me precipitei em ajudá-los. Deveria ter feito o rapaz se entregar à polícia.

Enquanto ambas conversavam, Selena entrou dizendo: - Aconteceu um acidente horrível com um helicóptero há pouco mais de

uma hora. Está na televisão. As duas concentraram a atenção na auxiliar, que continuou: - Foi com o helicóptero do senhor Lawrence. Regina e Isabela se entreolharam, incrédulas. Saíram da sala e foram até o

refeitório, onde estava a televisão, para saber os detalhes do acidente que ceifara a vida de Lawrence e de Susan, bem como a dos pilotos que os conduziam.

Sem se dar conta de seu estado espiritual, Lawrence e Susan pe-rambularam por Nova York e depois retornaram ao escritório, onde permane-ceram por longo tempo, sem consciência clara da situação; até que receberam a visita de entidades espirituais das trevas, que os arrebataram e levaram con-sigo para as regiões infernais. Todavia, no caminho, o grupo, que seguia com extrema cautela, foi interceptado pelos espíritos que recolhiam as almas desti-nadas a deixar a Terra. Foram todos imobilizados e transportados para longe do orbe terrestre, em meio a gritos de pânico, horror e revolta.

Lawrence e Susan, ainda sob forte perturbação, não conseguiam compre-ender o que acontecia e, aos gritos, exigindo esclarecimento. O grupo foi leva-do junto com outros, provenientes de diversas regiões do planeta. Entre eles estava Licínio, que desencarnara em um acidente de avião. Ele também deixa-va o orbe, assim como as demais almas rebeldes que eram retiradas do plano espiritual da Terra.

SESSENTA E SEIS ISABELA FECHOU o consultório e pensativa dirigiu-se para casa. Já poderia

dizer a Mario que retornasse, pois, apesar de solucionar-se tragicamente, o pior da situação do rapaz havia passado. Chegou em casa em silêncio e subiu para ver a filha. Fitou o rosto sereno da menina, que dormia, e murmurou cheia de ternura, enquanto ajeitava a coberta com delicadeza sobre o corpo da pequeni-na:

- Parece um anjo... Quanta doçura... Depois foi para o quarto esperando encontrar o marido. Ele não estava. Ao

invés dele, encontrou sobre sua mesa um recado que a sogra lhe escrevera: "Peter dormirá na Califórnia. Virá somente amanhã".

Sem ânimo para jantar, desceu, tomou um copo de leite, voltou para o quarto e se deitou. Acomodou-se na cama vazia e não pôde reter as lágrimas

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que lhe corriam pela face. Lembrou-se com ternura dos primeiros tempos de seu relacionamento com Peter, do namoro a distância, do início do casamento, quando passavam juntos todo o tempo livre, trocando carinho, longas e recon-fortantes conversas... Suspirou com tristeza sentiu saudade daqueles momentos inesquecíveis, mas tão breves, que vivera ao lado do homem amado. Agora, seu lar estava enfraquecido, ela sabia disso.

Aquela atitude de Peter, de permanecer fora de casa mais tempo do que o planejado, já era quase uma constante. Ele se distanciava cada vez mais dela e da família, enredado em uma vida de notoriedade que o estava transformando em um homem leviano, orgulhoso e egoísta. Dava crédito a tudo que os baju-ladores ao seu redor diziam. Muito especialmente seu editor, se que tornara seu conselheiro, satisfeito com os lucrativos resultados que os livros de Peter rendiam.

Suas palestras e sua enorme capacidade, recém-descoberta, de envolver os espectadores com seu carisma pessoal faziam dele uma figura continuamente procurada por famosos entrevistadores dos programas de rádio e televisão. E Peter perdia-se, mais e mais fascinado pelas sensações que experimentava, diante das novas possibilidades que a vida lhe oferecia.

Isabela virou-se na cama, buscando afastar da mente aqueles pensamentos tristes. Em sentida oração, pediu amparo e proteção para o esposo e a família, e finalmente adormeceu. Era madrugada alta quando se sentou na cama, gri-tando apavorada. A sogra entrou, acendeu a luz.

- O que foi? Sentando-se na cama ao seu lado, ela examinou o quarto e viu que tudo es-

tava em ordem; então indagou: - Mais um pesadelo? - Outro terrível... A sogra foi até a cozinha e voltou com um copo de água. Depois de bebê-

la, Isabela agradeceu: - Obrigada por estar aqui. Sorrindo com carinho, Dorothy tomou-lhe as mãos. - Estarei aqui para o que precisar. Quer me contar o que sonhou? Isabela ainda tremia. Tomou o último gole de água e narrou, ao depositar o

copo na mesa de cabeceira: - Foi muito confuso... Pessoas corriam para todos os lados, eram de dife-

rentes nacionalidades. Depois de muitos gritos de pavor, vi água inundando tudo... Fiquei paralisada, e ela me engoliu.

Ela fez uma pausa, limpando as lágrimas: - Espero que seja somente um sonho...

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- Não terá ficado impressionada com as cenas do último documentário so-bre o tsunami? O seu relato é parecido.

- Parece, só que é como se estivesse acontecendo em diversos lugares do mundo, e não somente como foi na Indonésia. Eu via pessoas de diferentes partes do globo, correndo ao mesmo tempo.

- Teme que seja outro aviso? A nora não ousou responder e as duas guardaram silêncio por algum tem-

po. Depois, Isabela pediu: - Vá dormir; já estou melhor, obrigada. - Tem certeza de que não quer que eu fique mais um pouco? Quer que

chame sua mãe? - Não é preciso, estou bem. Depois que ela saiu, Isabela ficou sentada na cama. Tinha medo de ador-

mecer e continuar sonhando. Meditou sobre o que significaria aquele sonho. Sentia um peso enorme no coração. O que estaria acontecendo que tanto a o-primia? Por certo, era a repetida ausência de Peter que a entristecia. Finalmen-te foi vencida pelo cansaço e adormeceu.

Algumas semanas depois sonhou com explosões e tanques invadindo sua rua. Via as pessoas atingidas pelos projéteis. Alarmada, ligou para Helena e contou sobre os sonhos que vinha tendo. A amiga ouviu com atenção, antes de comentar:

- Talvez não seja um sonho premonitório. Nem todos os seus sonhos se re-alizaram exatamente como os viu.

- Sim, você tem razão. Nem todos se concretizaram. Ainda assim, eu fico me questionando: por que tanta dor, Helena? Em todos os meus sonhos vejo muita dor, muito sofrimento. Por que temos de sofrer assim? Violência, de-samparo, fome, doenças de todos os tipos, e muitas catástrofes naturais... Uma atrás da outra...Onde tudo isso vai parar?

Deixando que Isabela desabafasse, Helena a escutou sem interromper. Quando ela silenciou, a amiga explicou:

- Infelizmente somos nós mesmos, seres humanos, que cultivamos a dor e o sofrimento ao nosso redor. Observe o comportamento da grande maioria de seus conhecidos. Quantos estão preocupados de fato em ajudar os seus seme-lhantes, ou então em melhorar-se, em mudar? Quantos meditam sobre os ensi-nos de Jesus e buscam segui-los? Ao invés disso, recitamos versículos decora-dos, que saem tão-só de nossos lábios, e não de nossos corações. A taça da iniqüidade está cheia... E natural que derrame, espalhando dor por toda parte. Enquanto cada ser humano não fizer real e verdadeiro esforço por transformar o próprio interior, resgatando os preciosos valores transmitidos por Jesus para

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se aproximar de Deus, não conquistaremos melhora expressiva em nossas vi-das, em nosso planeta. É preciso verdadeiro esforço no bem. Sem isso, a dor persistirá como professora para nos ensinar a refletir sobre nossas atitudes. O orgulho e o egoísmo dominam nossa sociedade hedonista. Enquanto não com-batermos com seriedade essas graves doenças da alma, elas continuarão a nos corroer por dentro, extravasando para tudo o que estiver à nossa volta. Claro que há muita gente trabalhando pelo bem, e sofrendo, como você, a oposição sistemática, que se apresenta das mais diversas formas.

Helena se calou. Depois, aconselhou com humildade: - Confiemos em Deus. Ele conhece todas as coisas e seus desígnios são

justos e perfeitos. Fortaleça sua fé pelo trabalho incessante. Esse é o conselho que os orientadores espirituais nos têm dado, profundamente preocupados que estão não só com a situação atual da Terra, mas sobretudo com a condição espiritual de todos nós. Eles estão ao nosso redor para nos sustentar, porém precisamos confiar em sua proteção e na direção divina sobre o planeta.

Conversaram ainda por algum tempo, e então Isabela finalizou a ligação, agradecida.

- Mais uma vez, obrigada por me escutar... - Ligue sempre que desejar. E dê um beijo bem carinhoso na minha neta... Sorrindo, Isabela respondeu: - Sua neta... Pode deixar... Num esforço para se reaproximar do marido, Isabela organizou uma pe-

quena viagem para que os dois pudessem ficar algum tempo a sós. Entretanto, Peter já acalentava o desejo do divórcio, ressentido com o fato de ela ter dei-xado de acompanhá-lo em seus compromissos e viagens. Achava inadmissível que tantas belas mulheres ansiassem por sua companhia e a esposa o trocasse por um punhado de pobres do Brooklin. Contudo, ao mesmo tempo em que cobrava sua presença, quando a tinha ele receava que Isabela dissesse algo sobre suas experiências psíquicas e sobre o Espiritismo, aparecendo como fa-nática aos olhos daqueles que o admiravam e podendo, assim, prejudicar-lhe a imagem e o prestígio.

Ciente dos planos de Peter - que fora Constantino há quase 2 mil anos -, Thomas solicitou às esferas mais elevadas que cuidavam do planeta permissão para reencarnar e ficar ao lado de Isabela, na tentativa de manter os dois uni-dos. Recebeu a autorização e, como não tinha tempo a perder, aproveitou-se daquela viagem romântica do casal para retomar o corpo físico, agora como filho de Isabela e Peter. Planejaram ficar juntos por quatro dias, mas já no se-gundo Peter começou a fazer telefonemas, dando sinais de que não conseguia concentrar-se na esposa. Acabaram por regressar na manhã do terceiro dia.

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Isabela vinha quieta e pensativa, enquanto Peter dirigia. Já perto de casa, ele falou:

- O que você tem? Veio calada o caminho inteiro. Sinto termos de voltar antes, mas realmente fiquei um pouco inquieto, pois preciso dedicar-me ao próximo livro.

Fitando o marido, Isabela indagou: - E o livro de sua vida, Peter, como o está escrevendo? De acordo com o

que planejou antes de tomar esse corpo, ou fugindo de suas responsabilidades? - Lá vem você outra vez... Isso está ficando desagradável e cansativo. Não

sabe falar de outra coisa? Está fanática pelo... por esse Espiritismo... - Não é pelo Espiritismo que estou envolvida, e sim pelas verdades eternas

que ele nos ensina... Isabela não pôde prosseguir, porque Peter estacionara o carro e Juliana vi-

nha gritando com alegria: - Mamãe chegou! Semanas depois, Isabela constatou, entre apreensiva e feliz, que estava es-

perando outra criança. Já Peter recebeu a notícia com profunda inquietação; não queria mais um filho. Envolviam-no entidades espirituais afinadas com as trevas, antigos companheiros do passado - que anos antes o haviam ajudado a afundar-se em uma depressão -, aos quais agora Peter dava larga guarida. Ago-ra utilizavam uma tática diferente: hipnotizavam-no com o sucesso e a fama, para que se sentisse encantado por si mesmo e pelo êxito alcançado.

Depois que Isabela deu-lhe a notícia da gravidez, Peter não teve mais tran-qüilidade. Sentia-se compelido a esquecer os planos de separação, permane-cendo junto da esposa e da família. Por outro lado, perdia-se em sentimentos contraditórios, desejando plena liberdade para fruir a vida como bem entendes-se. Passou algumas semanas em ardente conflito. Finalmente, vencido pelo orgulho e pela vaidade, resolveu ter uma conversa definitiva com a compa-nheira.

Naquela manhã, quando ele desceu, Isabela perguntou: - Na sexta-feira tenho consulta para fazer um ultrassom. Vem comigo? Ele não respondeu. Quando terminou de tomar o café, pediu: - Venha comigo até o escritório, precisamos conversar. Isabela o seguiu

com o coração opresso. Já imaginava o teor da conversa. Peter fechou a porta e disse: - Esta não é uma conversa fácil para mim, principalmente com você nesse

estado. Isabela, antevendo o triste desenrolar do assunto, não conseguiu conter as

lágrimas que lhe brotavam nos olhos. Imediatamente, foi amparada por espíri-

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tos amigos e pelo protetor espiritual que substituíra Thomas. Eles a fortaleci-am, enchendo-a de carinho a amor.

Peter, então, comunicou: - Isabela, quero o divórcio. - Assim, de repente? - Nos últimos tempos tenho pensado muito em obter minha liberdade. E

claro que a chegada de mais um filho abalou-me no mais íntimo; no entanto, não seria justo comigo nem com você, nem mesmo com ele, escolhermos ficar juntos apenas por causa dele.

- E o amor que sentíamos um pelo outro, Peter? Quase comovido, ele afagou os cabelos da esposa; depois disse, afastando-se: - Tenho imenso carinho por você, Isa, mas quero voar o mais alto que pu-

der. Quero ter liberdade total para realizar o que desejo. Ela baixou a cabeça e ele continuou: - É claro que nada haverá de faltar para vocês. Deixarei a casa em seu no-

me e lhe darei uma grande quantia em dinheiro. Terão tudo, do melhor possí-vel. Vou pagar os estudos das crianças, as viagens que você fizer, sozinha ou com eles - enfim, tudo o que quiserem ou de que precisarem. Dinheiro não será problema.

Erguendo a cabeça, com os olhos úmidos e brilhantes, Isabela questionou: - Acha mesmo que estou preocupada com o dinheiro? Ele fitou a esposa

com certo desdém. - Claro, você é superior, uma mulher acima das banalidades da vida... Não

se preocupa com o dinheiro... - Não é isso... - Não precisa explicar, Isa. De qualquer modo, importando-se você ou não,

vou cobrir todas as despesas de minha família. Ela emudeceu e ele também. Depois de longo silêncio, Peter foi duro: - Podemos fazer isso da maneira mais fácil ou da mais difícil. Dadas as

suas condições, acho melhor simplificarmos ao máximo. Vou para um hotel agora mesmo. Você descansa, se refaz, e mais tarde conversamos sobre as questões burocráticas.

Ela se levantou, abraçou forte o marido, que permaneceu imóvel, e pergun-tou com delicadeza:

- Se fiz algo de que não gostou, eu posso mudar. Afastando a esposa, ele respondeu:

- Não é você, querida, sou eu. Sentindo a decisão inabalável do marido, Isabela disse, com enorme triste-

za:

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- Não há nada que eu possa fazer ou dizer que vá fazê-lo mudar de idéia, não é?

- Não, nada. - Então está certo. Faça como desejar, não vou dificultar em nada sua de-

cisão. Sorrindo pela primeira vez desde que haviam começado aquele difícil diá-

logo, Peter falou aliviado: - Acho uma sábia decisão. Depois de comunicar à família a decisão do casal, Peter instalou-se em um

hotel ainda naquele dia. Nos meses que se seguiram, durante todo o período de gestação, Isabela

buscou amparo no trabalho incessante. Sempre que sentia o desânimo rondar-lhe o coração, ligava para Helena e conversavam. Ao desligar, a jovem se sen-tia fortalecida em seus valores e ideais e, atendendo aos conselhos da amiga, dedicava-se ao próximo, esquecida de si e de seus problemas.

Os pesadelos continuavam, cada vez mais freqüentes. Noite após noite, I-sabela via grandes calamidades abatendo-se sobre a Terra. Ao despertar, recor-ria ao melhor meio de acalmar-se: orava por si, por seus familiares e por todo o planeta. No final da gestação, o médico a aconselhou a diminuir um pouco o ritmo, pois a água em sua placenta diminuíra além do normal, o que podia ser reflexo do estresse emocional pelo qual passava. Isabela acatou-lhe as orienta-ções e manteve-se mais em casa.

Naquele dia estava particularmente cansada. Entrou no lindo quarto que decorava com extremado carinho e acrescentou alguns detalhes. Depois, abriu uma das gavetas da cômoda e pegou algumas peças do enxoval que preparava para o filho; beijando-as, falou baixinho, enquanto afagava a barriga:

- Como queria que seu pai estivesse conosco agora, filho. Mas não se preo-cupe com nada, vamos pedir muito a Deus que o proteja e ajude. Quem sabe... Afinal, nada é impossível para o Criador.

Preparava-se para descer para o jantar, quando notou o sangue a escorrer-lhe pelas pernas. Assustada, gritou pela mãe, que logo apareceu no quarto:

- Minha filha! Vou ligar já para o seu médico. Venha, eu a ajudo a se dei-tar.

Ana Lídia acomodou a filha na cama, apreensiva: - Você devia ter se aquietado antes.Trabalhou em demasia, e para quê? Às

vezes sou obrigada a concordar com Peter. Gemendo de dor, Isabela pediu: - Por favor, mãe, agora não. Chame o médico.

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Horas depois, ainda aos oito meses de gestação, ela estava no centro cirúr-gico sendo preparada para uma cesariana. O obstetra esclarecia, procurando acalmá-la:

- A placenta descolou e a bolsa se rompeu, por isso o sangra-mento. Preci-samos tirar o bebê.

- E interromper a gestação não fará mal à criança? - Com o rompimento da bolsa, você pode acabar com uma infecção, bem

como o bebê. - Sou pediatra, doutor, e sei bem que o bebê pode não estar com o pulmão

pronto... - Embora não desconheça sua experiência profissional, peço que confie

em mim. Temos condição de cuidar dele, que é muito saudável... Agora, rela-xe. Quem vai assistir ao parto?

Isabela respondeu, disfarçando a frustração: - Nem minha mãe nem minha sogra têm coragem; portanto, não terei a-

companhante desta vez. O médico, que fizera o parto de Juliana e já sabia da situação entre Isabela

e Peter, não disse nada; apenas acomodou-a na posição, esperando o efeito da anestesia.

O procedimento correu com tranqüilidade e prestimoso amparo espiritual. Uma equipe de médicos do plano etéreo acompanhava aquele momento, auxi-liando Thomas no retorno ao planeta. O bebê nasceu saudável e chorando mui-to. Foi levado para a UTI neonatal por questões de segurança, mas três horas depois já estava nos braços da mãe. Ao fitar aqueles olhos serenos e amorosos, Isabela tinha a nítida sensação de que já o conhecia. "Certamente, profundos laços de amor nos unem", pensava.

De fato, a adaptação entre mãe e filho correu com naturalidade; Marcos veio preencher o interior de Isabela com plena realização materna. A felicida-de que sentia na companhia dos filhos atenuava a amargura pela ausência de Peter. Ela não demorou a reassumir as suas responsabilidades.

Marcos crescia saudável e feliz. Peter aparecia esporadicamente para ficar algum tempo com os filhos, apesar de estar sempre com pressa, aproveitando pouco do convívio com as crianças. Dois anos se passaram. Não obstante as dificuldades e os desafios, Isabela se aprofundava mais e mais no autoconhe-cimento e no aprendizado da Doutrina Espírita, buscando aproveitar as lições que a vida colocava em seu caminho. No íntimo, aguardava a volta do esposo, ainda que não admitisse isso nem a si mesma.

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SESSENTA E SETE ERA NOITE ALTA. Isabela se remexia na cama, com sono agitado, até que

sentou-se assustada, chorando. Quando se acalmou, respirou fundo e pensou: mais um pesadelo. E depois de se reequilibrar tomou nas mãos O Evangelho segundo o Espiritismo, fez uma leitura e começou a orar a Jesus pedindo so-corro para os homens e para o planeta. Não conseguiu mais conciliar o sono.

No dia seguinte, em seu consultório, após a saída do último paciente, ela consultou o relógio e, verificando que era um bom horário para falar com o Brasil, ligou para Helena. Feita uma pequena introdução, em que se cumpri-mentaram e colocaram as novidades em dia, Helena, que conhecia a amiga muito bem, indagou:

- O que a está preocupando, Isabela? - E surpreendente como você me conhece. - Conheço-a muito bem, de fato. O que há? - Os sonhos. - Eles continuam? - Sim, e muitos deles acontecem... Você sabe: o ataque às torres gêmeas, o

tsunami na Polinésia, desastres de avião, de trem e de carro... guerras... o ter-remoto no Haiti...

Angustiada, Isabela fez longa pausa antes de prosseguir: - Sonho e fico só esperando as notícias... É desesperador. Por que tenho

esses sonhos, Helena, se não posso fazer nada para ajudar? Que sentido há em sonhar coisas assim terríveis? Em vê-las por antecipação, sem ter objetivo al-gum com isso?

- Isa, as aptidões mediúnicas beneficiam primeiro o próprio médium, que, como você bem sabe, é um ser com grandes dívidas para com as leis divinas.

- Sim, eu sei. - Pois então, esses sonhos têm um papel importante, primeiramente para

você mesma. - Não entendo para quê. Helena pensou um pouco e, fortemente envolvida por seu mentor espiritu-

al, respondeu: - Para que jamais se afaste do caminho do bem. A frase provocou forte impacto emocional em Isabela. Não pôde conter as

lágrimas que lhe vinham aos olhos e lhe escorriam pelo rosto alvo. Ela sentia que Helena tocara em um ponto fundamental. Aqueles sonhos eram para ela própria...

- Ainda há muitas coisas que não compreendo...

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- Por isso precisamos da fé em Deus acesa e firme em nosso coração. Con-fiar em Deus é, acima de tudo, saber que ele sempre nos dará o melhor, em todas as circunstâncias.

A conversa das amigas se prolongou bastante, até que desligaram. Isabela seguiu pensativa o caminho de volta para casa. Depois de ficar algum tempo com os filhos, acomodou-os para dormir e também se recolheu. Sentia-se aba-tida e entristecida. O peso que carregava no coração era enorme.

Antes de se deitar, ela fez algumas anotações na agenda e, ao fechá-la, pensou em como o tempo vinha passando ainda mais depressa nos dois últi-mos anos. Depois de ler um trecho do romance Há Dois Mil Anos, colocou-o na mesa de canto da cama e, de olhos cerrados, fez suas orações.

Logo que adormeceu, viu-se no alto de um morro de onde podia contem-plar o mar. Algo chamou sua atenção e ela avistou, muito longe no horizonte, que a praia já não existia, coberta pelas águas, e percebeu que a água iria ocu-par toda a cidade. Quis correr, porém não podia mover-se. Então viu a água se aproximando e milhares de pessoas correndo por todos os lados. O mar inva-diu toda a cidade, cobrindo o morro onde ela estava. Pessoas, casas, carros, tudo fora tragado, enquanto Isabela apenas observava.

Depois, viu-se em um campo ressequido, sem vegetação, quase um deser-to. O sol escaldante parecia queimar à menor exposição, pois muitas pessoas cobriam todo o corpo, não deixando nada à vista. Pensou estar em um deserto no Oriente, porém ouviu palavras em português, em espanhol, em inglês, e notou que por ela passavam pessoas de diversas regiões do mundo devastadas pela seca. Então viu-se em meio à multidão, que perambulava à procura de alimento e abrigo. À frente, um tumulto se estabeleceu; com grande violência as pessoas se agrediam mutuamente, em descontrolado frenesi. Todos pareci-am enlouquecidos. Desesperada, Isabela queria gritar por socorro, pedindo para sair daquele terrível pesadelo. Foi aí que se viu transportada ao plano es-piritual em companhia de pessoas que sabia conhecer. Bem perto estava um jovem que irradiava luz.

- Por favor, tire-me deste pesadelo. - Este pesadelo poderá tornar-se realidade, para a infelicidade de nosso orbe. - Não há nada que possamos fazer para impedir? Deve haver algo... - Jesus vem tentando ajudar seus irmãos há mais de 2 mil anos, e nós não

lhe demos ouvidos... Transformamos a Terra no palco do orgulho, da vaidade, de ilusões e egoísmo. É natural que a iniqüidade se tenha espalhado sobre o planeta. Agora, esse mal que parte da mente dos homens encarnados, e tam-bém dos desencarnados, atinge o ápice de seu magnetismo deletério. Observe.

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Ele mostrou a atmosfera, onde ela divisou figuras horripilantes, como monstros devoradores, contorcendo-se na forma de dragões que enchiam o espaço. Outras imagens deprimentes e repugnantes vagavam ao redor do escu-ro orbe. Isabela indagou:

- Por que está tão escuro? Não vejo o mar, não vejo nada. - Por certo os satélites não registrarão as imagens que você pode constatar,

mas o orbe da Terra está tomado por essa espessa e densa vibração negra, re-flexo dos pensamentos e sentimentos da humanidade. Isabela exclamou, ajoe-lhando-se no chão:

- Meu Deus, que coisa horrível! Nós fizemos isso? - Sim, estamos fazendo isso. - E esses monstros? - Alguns são pensamentos humanos transfigurando-se em terríveis animais,

outros são espíritos animalizados que sintonizam com essas emanações e as apreciam, fazendo uso delas.

- E essas imagens horrorosas, de assassinatos e todos os tipos de ações hor-ripilantes...

- Ações que estão sendo planejadas, realizadas ou relembradas por seres encarnados e desencarnados.

- Nunca assisti a nada tão assustador! Então Isabela prostrou-se no chão, em pranto dolorido. - Meu Deus, ajude-nos! O que será de nós? Estamos destruindo tudo... Uma falange de espíritos com pesadas túnicas negras passou por eles, sem

os notar. Fitando o amigo, ela interrogou com o olhar, e ele respondeu: - São hostes de seres arraigados ao mal, dirigindo-se para a Terra, a fim de

efetivar seu intento: toda sorte de destruição possível. - E ninguém os impede? Tomando-a pelo braço, ele convidou: - Venha. Foram até um ponto mais elevado e ele aplicou-lhe passes na área do cór-

tex cerebral, expandindo-lhe a capacidade de visão espiritual; assim, Isabela pôde visualizar milhares de luzes que se movimentavam para todos os lado. Ele explicou:

- São espíritos do bem, outros companheiros da luz, que se movimentam pelo orbe da Terra auxiliando a todos aqueles que lhes dão sintonia.

Em seguida ele apontou novamente para a Terra. - Olhe bem. Consegue ver os pontos de luz em meio à escuridão? - Sim, é como se o mundo fosse um céu escuro, iluminado por minúsculos

pontos que chegam até onde estamos.

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- Esses são lares ou instituições onde o bem e sua vibração se sobrepõem ao mal e seu magnetismo destrutivo. E especialmente aí, junto a esses corações voltados para Deus e o amor, e continuamente fortalecidos, que trabalhamos para expandir a luz sobre a Terra.

- E essas pessoas fazem parte de alguma religião específica? - Estão vinculadas às mais diversas escolas religiosas, mas têm em comum

o amor a Deus e o esforço para praticar o bem com sinceridade. Trazem a ver-dadeira religião no coração.

- Mas são tão poucos... Dessa vez, sem maiores explicações, ele a levou para uma sala onde havia

um telão. Outros já se encontravam acomodados. Então, vários espíritos eleva-dos se aproximaram, emitindo intensa luz. Entre eles estava Ernesto, que to-mou a palavra.

- Somos chamados a ajudar. Muitos de vocês, aqui reunidos nesta noite, estão na Terra e viverão o verdadeiro Armagedom que se deflagra sobre a hu-manidade. E iminente o tempo em que muitas catástrofes naturais abalarão o planeta, convulsionando-o -resultado, em parte substancial, de ataques das trevas, que se valem dos pensamentos deletérios de nossos irmãos dos dois planos. Deus o permitirá para que a Terra seja purificada. Como cegos, esses espíritos recalci-trantes no mal, que se acreditam maiores do que o Criador, terão seus últimos momentos no planeta.

O orador fez curta interrupção e acrescentou: - Estão aqui nesta noite, queridos companheiros, para se revigorar interi-

ormente e seguir com firmeza no bem, motivando igualmente aqueles que, ainda em grande conflito espiritual, não conseguem definir-se. Estão esperan-do que algo lhes aconteça. Precisam ser alertados de que o tempo acabou, de que não haverá outra oportunidade. Eles têm de fazer sua opção agora. Em futuro não muito distante, Jesus, que é o comandante do nosso planeta, gover-nará espiritualmente a Terra sem a oposição do mal. Será o início de urna nova ordem mundial; não haverá mais lugar para o mal, nem para a indecisão. Le-vem aos nossos irmãos esse alerta inadiável: é hora de despertar e escolher a luz, o bem, o amor. E devem fazer isso imediatamente. Não há mais tempo.

Ao observar a angústia e a dúvida no rosto de muitos, Ernesto, conhecen-do-lhes as indagações, esclareceu:

-A Terra vive um momento de transição em seu nível evolutivo. O expurgo das criaturas recalcitrantes no mal começou há muitas décadas e vem se inten-sificando. Logo, muitas almas deixarão o planeta, exiladas para mundos em fase primitiva de desenvolvimento. Ali permanecerão para que, através da dor e do sofrimento, despertem para as realidades da vida e se dobrem diante das

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leis divinas, regressando ao Criador com humildade. Vocês podem estar se perguntando: quando tudo isso acontecerá? No curso de alguns anos. A transi-ção está no ápice, e gradualmente ocorrerá a purificação.

Ele fez longa pausa, limpando algumas lágrimas que lhe escapavam dos olhos. Depois continuou.

- Essa é a minha própria história, meus irmãos, e sei o quanto é dolorosa. Que Deus nos ajude e que cada um de vocês seja um soldado do bem, ponto de luz a brilhar sobre o planeta, alicerçando a reconstrução para a nova era.

A reunião terminou e todos se dispersaram. Isabela e o amigo que a trouxe-ra retornaram em absoluto silêncio. Ao chegar em casa, ela o encarou e disse:

- Estamos em meio a uma verdadeira guerra entre o bem e o mal. - Sim, e essa guerra é travada, antes de mais nada, dentro do coração de

cada ser humano. Agora me despeço, você precisa descansar. Isabela se acomodou sobre seu corpo físico e adormeceu. Não demorou a

amanhecer. Ao despertar, ela trazia as sensações da experiência vivida e era dominada por um sentimento de urgência e de compromisso com as realiza-ções no bem.

Lançou-se ao trabalho incansavelmente, lutando a cada dia, com afinco e determinação, pela renovação interior. Via todas as dificuldades como oportu-nidades de crescimento e aprendizagem. Sentia-se em paz e com força sempre recomposta, vencendo os desafios e obstáculos com otimismo e fé, convicta de que Deus estava no comando de tudo. Em todas as situações, passou a utilizar a visão espiritual da vida para ampliar seu entendimento e adequar suas rea-ções, direcionando-as em favor de todos. Cessaram os conflitos, o bem final-mente fincava raízes em seu íntimo.

SESSENTA E OITO Os DIAS SE SUCEDIAM CÉLERES. Isabela dedicava-se aos seus compromissos

profissionais e espirituais, bem como aos filhos, com extremo empenho. No decorrer do tempo constatava, com pesar, que seus pesadelos, um a um, se tornavam reais, presenciando os dias de angústia, tormento e desespero que se abatiam sobre o planeta.

Eram dez horas da noite de um sábado, quando o telefone tocou. Do outro lado da linha, a voz conhecida c querida de Helena evidenciava tristeza; assim que a escutou, Isabela ficou séria e indagou:

- O que houve? Sem rodeios, a amiga comunicou: - Eliana desencarnou ontem à noite.

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- Mas o que aconteceu? - estava surpresa e inconformada. - Você acompanhou a situação das últimas chuvas por aqui? Os desmoro-

namentos ? - Sim, tenho visto pela internet. - Ela estava ajudando algumas famílias da comunidade a deixarem suas

casas e o morro desabou. Várias habitações foram arrastadas pela encosta, e muitas pessoas não conseguiram escapar. Entre elas estava Eliana, que, como sempre, se dedicava ao próximo sem descanso.

Isabela permaneceu por longo tempo em silêncio; depois suspirou, com profunda tristeza.

- O que fazer? Perdemos uma grande líder! Certamente ela está agora nos braços de Jesus, a quem serviu com amor e renúncia.

Helena falou com a voz embargada pela emoção: - Sim, é verdade. Aqui, estamos todos de coração partido; ainda assim, não

vamos esmorecer. Queremos prosseguir com todas as atividades da instituição, tal e qual ela nos orientou. Estamos tristes, porém confiantes de que ela mes-ma, no futuro, se unirá ao grupo em espírito, para nos instruir e conduzir.

Limpando as lágrimas abundantes que lhe corriam pela face, Isabela desli-gou o telefone. Sentou-se ao lado da mãe, que brincava com os netos. Obser-vou-os por algum tempo.

- Mãe, pode colocá-los na cama hoje? Não me sento muito bem. Subiu e deitou-se, entregando-se a dolorido pranto, com o coração aperta-

do. Cada vez que via um noticiário sentia a grande opressão que se abatia so-bre a Terra, e suplicava forças a Deus para poder suportar aqueles dias aterra-dores.

Eliana, por sua vez, rapidamente se refez no plano espiritual, e caminhava pela colônia em conversa com alguns companheiros, entre eles seu orientador.

- Estamos felizes com seu retorno, Constância, especialmente pelo êxito alcançado. Sua ajuda agora, aqui no plano espiritual, será muito importante. Necessitamos de todos os companheiros abnegados com os quais possamos contar. O momento é muito grave. Estamos sobremaneira preocupados com nossos irmãos terrenos.

- Estou pronta a servi-los em tudo o que puder. Entretanto, preciso solici-tar o apoio de vocês em uma questão que toca fundo meu coração...

Adivinhando-lhe de pronto a preocupação, Macedo sorriu e disse: - Está falando de Licínio. - Sim, isso mesmo. - O que deseja fazer, Constância? - Ele já foi transferido para outro orbe, não é?

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- Sim, encontra-se no plano espiritual de um planeta primitivo, sendo pre-parado para futuro reencarne.

- Se Jesus me permitir, serei feliz em contribuir o mais possível com meus irmãos na Terra. Mas, depois, gostaria imensamente de reencontrar Licínio.

Olhando-a com profundo respeito, Macedo considerou: - Você está prestes a seguir para Capela. Cumpriu seu trabalho na Terra, e

pode regressar ao seu verdadeiro lar. Ao invés disso, deseja dirigir-se a um planeta primitivo, para permanecer ao lado de nosso irmão?

- Embora deseje ardentemente voltar ao lar em Capela, onde me aguardam afetos preciosos, não poderia fazê-lo deixando Licínio para trás. Estou ligada a ele por laços indissolúveis.

Seus olhos cintilavam, e lágrimas desciam-lhe pela face. - Quero pedir autorização para acompanhá-lo, ainda que seja para assisti-

lo do plano espiritual. Macedo fitou-a com o carinho de um pai. - Sem dúvida tem méritos acumulados e que pesarão a seu favor na decisão

dos espíritos superiores que administram o Universo. Vamos levar sua solici-tação.

Com humildade ela agradeceu: - Obrigada, meus irmãos. Enquanto isso, estou pronta para contribuir em

tudo o que estiver ao meu alcance. - De fato, temos muito trabalho a fazer. Um enorme grupo de almas deixa-

rá o planeta esta noite; algumas delas serão recolhidas à nossa colônia, porém a grande maioria será exilada da Terra, tão logo se separe do corpo físico.

Uma vez encerrado aquele encontro, verdadeiro exército formado por espí-ritos da colônia partiu em direção à Terra, para o socorro necessário. Algumas horas mais tarde o imenso grupo retornou, trazendo consigo inúmeros espíri-tos, muitos desacordados, que acabavam de deixar o corpo físico.

Assim, Constança prosseguia em serviço com os grupos de resgate distri-buídos por todo o orbe terrestre. Semanas depois, Macedo procurou-a para comunicar:

- Você tem a autorização para seguir em companhia de Licínio. Todavia, deve estar bem consciente dos riscos, caso decida reencarnar naquele planeta.

- Eu sei. Não pretendo fazê-lo, por ora, mas somente quando ele puder a-proveitar de fato a minha presença física.

- Quando desejar, pode partir. - Agradeço por sua intercessão. Ficarei aqui o tempo que puder ser útil.

Quando a situação estiver melhor, partirei. - Que Jesus a abençoe e ampare, minha dedicada irmã.

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Em silêncio, ela sorriu feliz e aliviada. Estava decidida a permanecer ao lado daquele ser a quem tanto amava.

Peter, que agora vivia em companhia da mãe e da filha Jenni-fer, continua-va maravilhado com o sucesso. Vez por outra, nas raras ocasiões em que esta-va sozinho, lembrava-se com saudade de Isabela e dos filhos. Porém, antes que pudesse ter qualquer idéia ou iniciativa no sentido de repensar suas atitudes, sua atenção era atraída por algum compromisso prazeroso que de imediato lhe vinha à mente, em geral sugerido por entidades espirituais recalcitrantes no mal; estas o mantinham em estado de hipnose mental, dominando-lhe a vonta-de e manipulando sua vida de acordo com seus inconfessáveis interesses.

Envolvido pelas densas energias que partiam de sua própria mente, acres-cidas daquelas que emitiam os espíritos das sombras, Peter sentia-se mais can-sado do que o habitual. Por insistência da filha e da mãe, resolveu tirar alguns dias de folga e ir para uma pequena cabana que possuíam nas montanhas.

Em frente à casa havia um lindo lago circundado de exuberante natureza, criando um cenário magnífico. Peter sentou-se perto da cabana, onde acende-ram uma fogueira, e ali ficou, naquela noite fria, observando o céu e as estre-las, aconchegado pelo calor do fogo e das cobertas que o protegiam. Mais tar-de, ao recolher-se, já na cama, foi tomado por súbita nostalgia. Naquele lugar tranqüilo conseguia perceber melhor suas emoções e sentia-se sozinho e vazio. Leu um pouco e, depois de arrumar a lenha na lareira, ajeitou-se no leito e a-dormeceu. Assim que seu corpo físico caiu em sono profundo, seu corpo sutil foi recebido por um grupo de antigos amigos. Ao vê-los, com emoção incon-trolável, fitou-os um a um e indagou:

- Quem são vocês? Sei que os conheço, mas não me recordo. Enquanto Henrique e Elvira irradiavam energia sobre seu cór-

tex cerebral, Ernesto plasmou diante dele uma projeção de sua própria tela mental, com as lembranças derradeiras da última encarnação que tivera em Capela. As imagens mostraram a Peter um homem arquitetando o envenena-mento de outro. Depois, viu o homem lançar Ernesto do alto de um prédio e, em seguida, identificou a si mesmo ocupando a mesa e o escritório daquele a quem tirara a vida. Então, observou-se morrendo também, sob a influência espiritual de Ernesto, e ambos perdendo-se na noite dos séculos, em duelo de ódio. Por fim, viu-se sozinho, vagando sob forte nevoeiro, em região que mais se assemelhava ao inferno.

Quando a projeção terminou, Peter caiu de joelhos, em choro convulsivo. Ernesto aproximou-se, ajoelhou-se à sua frente e falou, tocando-lhe o ombro:

- Ferdinando, acorde, meu irmão! Erguendo o rosto, Peter o fitou e inda-gou:

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- Aquele homem sou eu? - Você se recorda? Peter respondeu, entre lágrimas, olhando para Elvira: - Sim, eu me lembro, me lembro de tudo. Agachou-se e chorou, com a cabeça colada aos joelhos. Elvira acercou-se

daquele que fora seu primo há muitos milênios, em Capela, e com amor e do-çura esclareceu:

- Viemos aqui hoje, Ferdinando, para nos despedir de você e convidá-lo a repensar suas atitudes.

- Despedir? - Não vai demorar para que regressemos ao sistema de Capela. Logo com-

pletaremos nossa tarefa na Terra e pretendemos retornar. - Você também, Ernesto? - Sim, meu irmão, o momento se aproxima. Ernesto fez pequena pausa an-

tes de prosseguir: - A Terra passa por importante fase de transição. Prepara-se para ascender

na escala dos mundos e tornar-se um planeta de regeneração, onde as leis de Deus governarão os homens e, finalmente, os ensinos deixados por Jesus serão aceitos e vividos. No entanto, o planeta vive neste momento o Armagedom profetizado por João, no Apocalipse: a luta entre o bem e o mal se trava por toda parte. Essa luta, que muitos julgam ser entre as nações e Deus, de fato já acontece, envolvendo os poderosos da Terra e todos aqueles que insistem em violar as leis divinas que comandam o Universo. Os homens são influenciados por inteligências infernais apegadas ao mal, que, pelo orgulho que alimenta-ram ao longo dos milênios, acreditam ser possível opor-se indefinidamente ao bem e ao Criador. Ao término dessa luta, até ingênua, todos os que insistirem em permanecer longe de Deus e de seus ensinamentos - independentemente da crença religiosa que abracem - serão exilados da Terra e levados para planetas primitivos, para ali encetarem a trajetória de regresso ao Criador. Repete-se, dessa forma, aquilo que ocorreu em nosso orbe.

Ernesto fez outra pausa, e depois continuou: - Centenas de almas estão deixando o planeta todos os dias, conduzidas

para mundos primitivos. Infelizmente, muitos de nossos irmãos de Capela ain-da não conseguiram alinhar-se com as leis de Deus e são novamente banidos, para mais uma vez recomeçar em mundos em início de evolução.

Ernesto fitou Peter com imenso carinho e prosseguiu: - Partiremos em breve, Ferdinando, mas antes queríamos ter uma última

conversa com você. Ernesto calou-se, emocionado. Elvira aproximou-se e disse:

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- Estamos muito preocupados. Desejamos que consiga fazer seu trabalho de renovação interior para o bem e que continue na Terra. Ser enviado outra vez para um planeta primitivo significará estacionar em suas possibilidades e acrescentar dor e sofrimento à sua alma. Já não foi suficiente, Ferdinando? Por que rebelar-se ainda? Você dispõe de todos os recursos de que precisava: o conhecimento espiritual, uma companheira que está trabalhando arduamente para renovar-se, a saúde e a inteligência. Enfim, tem tudo para cumprir os compromissos assumidos antes de seu regresso ao plano físico, e a grande o-portunidade de alinhar-se com as leis universais.

Ernesto, Elvira e Henrique, pelo intenso amor que dedicavam a Ferdinan-do, estavam envoltos em intensa luz. O outro, por sua vez, não conseguia er-guer a cabeça e a segurava entre as mãos. Lembrara-se de tudo: dos erros e sofrimentos, dos compromissos firmados no plano espiritual antes de reencar-nar, das recomendações e do preparo que tinha para enfrentar o momento de transição da Terra; sobretudo, estava consciente de se haver comprometido a contribuir nessa passagem decisiva. Quanto mais as lembranças afloravam em sua mente, mais ele chorava, desolado.

Elvira e Ernesto se mantiveram calados, até que Ferdinando ergueu a cabe-ça. Incapaz de fitar os benfeitores, apenas gaguejou, entre soluços:

- Falhei novamente... Ernesto tomou-lhe o braço, enérgico: - Erga-se e siga em frente! Não chore o passado, construa o futuro. Você

está aqui e ainda pode refazer sua história mudando suas decisões. Tem o des-tino nas mãos. Basta que se reerga e decida retornar aos seus deveres, traba-lhando com afinco e determinação pela sua própria renovação e para o bem de todos. Elvira abraçou o primo.

- Gostaríamos de regressar em sua companhia; já que isso ainda não é pos-sível, vamos aguardá-lo e sustentá-lo com nossas orações e vibrações de amor.

Ferdinando, que não conseguia enfrentar o olhar de Elvira, questionou: - Acha mesmo que ainda tenho a possibilidade de fazer algo de verdadei-

ramente útil? - Certamente, se assim quiser. Como encarnado, está diante da mais incrí-

vel oportunidade que Deus lhe deu. Aproveite a sua encarnação para o bem. Permaneça na Terra e siga, junto com o planeta, em sua espiral de ascensão e progresso.

Após curta interrupção, ela falou, contundente: - Não desperdice essa oportunidade, que é a última... Para isso, precisa pôr

as ilusões de lado e buscar a verdade acima de tudo, principalmente a verdade a respeito de si próprio.

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Elvira calou-se. Ernesto aproximou-se e abraçou-o com imensa ternura, di-zendo:

- Decerto no futuro nos encontraremos em Capela. Cabe a você decidir quanto tempo isso levará. Volto a repetir: o destino está em suas mãos.

Todos permaneceram quietos, embalados pelo silêncio da noite. Depois, os três se despediram de Ferdinando, com forte e emocionado abraço, e partiram de mãos dadas.

O corpo físico de Peter estremeceu na cama, pelo impacto das sensações que ele vivia em espírito. Despertou assustado e angustiado, com o rosto ba-nhado em lágrimas. Sentou-se na cama, tentando compreender o que acontece-ra; sobretudo, em meio às emoções e imagens conturbadas do recente encon-tro, buscava manter vivas as lembranças.

Ainda que sua mente estivesse turva pelo distanciamento que experimenta-ra das realidades espirituais, ele sabia da urgência de promover mudanças em sua vida, tomar outros rumos, ter a humildade de recomeçar, por mais que isso representasse esforço, vergonha e abandono das ilusões.

Enquanto caminhava até a janela, necessitado de ar fresco, ele pensava que aquele havia sido um encontro real. A despeito de não recordar todos os deta-lhes da conversa, trazia nítida impressão das emoções que vivenciara. Depois de aspirar o ar gelado da noite, fitou o céu por longo tempo, procurando intui-tivamente o sistema de Capela. Então fechou a janela e deitou-se. Entretanto, não conseguiu mais dormir.

Durante os dois dias seguintes Peter descansou, mas permaneceu ensimes-mado. Decidiu, por fim, voltar com a família para casa, antes da data prevista. No caminho, ia pensativo e distante, atento às próprias emoções, sentindo como se despertasse de profundo sono. Em casa, logo após o jantar, foi para o quarto e andou de um lado a outro, parecendo indeciso. Decorridos alguns momentos de hesitação, sentou-se na cama, pegou o celular e ligou para Isabela:

- Boa noite, Isabela. Surpresa, ela o cumprimentou: - Olá, Peter, tudo bem? - Tudo. E como estão as coisas aí? - Estamos todos bem. Peter silenciou e ela, percebendo a modulação de voz diferente, insistiu: - Está mesmo tudo bem? - Claro, está tudo ótimo. Seguiu-se novo silêncio, porém dessa vez Isabela manteve-se em expecta-

tiva. Por fim, Peter falou:

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- Isa - fazia muito tempo que não a chamava pelo apelido -, eu gostaria muito de ver as crianças no sábado. Sei que não é meu dia de visita... E que estou com saudade...

- Tudo bem, Peter. Vou trabalhar no centro espírita no sábado, mas náo há problema; minha mãe estará aqui, você pode vir.

- Vai trabalhar no sábado? - Sim, assumi mais uma tarefa na casa. É uma noite de Evangelho. Senti-

mos que estamos precisando muito dele neste momento que o nosso planeta vive, e resolvermos ampliar essa luz, implantando aos sábados um novo traba-lho aberto ao público.

- Você não se cansa? - Sim, bastante; mas minhas energias se renovam ao sentir a atuação lumi-

nosa de nossos orientadores espirituais. - E claro... Então... vou ver as crianças no sábado. - Está certo. Vou deixar minha mãe avisada. Despediram-se. Ao desligar, Isabela teve certeza de que algo estava acon-

tecendo com o ex-marido. No sábado, estava sentada à mesa, iniciando o co-mentário da lição do Evangelho que fora lida, quando viu Peter entrar no salão. Ele evitou fitá-la diretamente; procurou um lugar no fundo e acomodou-se. Embora à entrada dele o coração de Isabela batesse descompassado, ela pros-seguiu em sua atividade. No final, procurou por Peter e ao vê-lo disse:

- Que surpresa, não o esperava aqui. Ele beijou-a na face e respondeu, sorrindo: - Foi um lindo comentário, Isa. - Agradeço, em nome daqueles que o fizeram. Não foi meu, só colaborei

no que me foi possível. Temos muitos amigos espirituais trabalhando conosco. Eles tecem lindos comentários em todas as nossas tarefas dedicadas ao Evan-gelho de Jesus.

Peter não respondeu, apenas sorriu. Enquanto caminhavam pelo corredor, em direção ao estacionamento, indagou:

- Como andam as atividades da instituição? - Temos muito trabalho. Há inúmeras pessoas necessitadas de tudo... Você

sabe, Peter, as pessoas estão muito carentes de orientação e auxílio. Precisam encontrar algo em que acreditar, para fortalecer sua fé em Deus. A abençoada Doutrina Espírita tem ajudado centenas e centenas de pessoas a obter respostas para as dúvidas fundamentais que atormentam todos os homens; com isso, traz paz aos seus corações, consolo e uma fé cada vez mais vigorosa, porque base-ada na razão e não apenas em emoções instáveis.

Ele a ouviu atento e, ao chegarem aos automóveis, perguntou:

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- Acha mesmo que o momento pelo qual passamos é o da grande transição da Terra?

- Estou convencida disso. Continuo tendo aqueles sonhos premonitórios e, infelizmente, eles sempre se realizam. Você sabe o quanto isso me perturbou, a princípio. Agora, depois de tantas experiências que tive, procuro contribuir como posso, orando e fazendo tudo o que está ao meu alcance para colaborar com o Mestre, na árdua tarefa de despertar a consciência humana.

Ele afastou alguns fios de cabelo que, com o vento, cobriam o rosto de Isa-bela e disse, carinhoso:

- Você está diferente, mais madura. Está linda, Isabela. Ela sorriu, procu-rando desviar a conversa para outro rumo:

- Esteve com as crianças? - Ainda não. Se não se importar, irei com você e... quem sabe, podemos

jantar juntos... - Será um prazer. O jantar foi tranqüilo. Juliana e Marcos estavam felizes com a presença do

pai e o menino não se cansava de abraçá-lo. Brincaram muito, e Peter comen-tou com Isabela:

- São crianças amorosas e educadas. Você está fazendo um excelente tra-balho, Isa. Meus parabéns.

Não deixando escapar o ensejo, ela comentou: - Seria ainda melhor se você passasse mais tempo com eles. Ele a encarou,

sério. - É o que desejo. Aliás, acho que preciso mudar muitas coisas... Fez-se si-

lêncio entre os dois, até que ele prosseguiu: - Isa, tenho pensado bastante em minha vida, nos últimos dias. Estou an-

gustiado e acho que tenho de fazer muitas mudanças. Por outro lado, mudar parece algo tão difícil, tão penoso, que sinto como se tivesse uma montanha enorme sobre mim e devesse removê-la com minhas próprias forças. A monta-nha é gigantesca... Parece que não vou conseguir.

Ele baixou a cabeça pensativo; depois, olhando-a, disse: - Acho que fiz algumas escolhas equivocadas, e me sinto sem forças para

procurar o caminho de volta... Fixando os lindos olhos azuis do homem que amava, Isabela falou, inspi-

rada por amigos espirituais que ali se encontravam: - Nada é impossível se você for perseverante. Deus nos concede aquilo que

pedimos. Peça e ele lhe dará as forças que lhe faltam para obter êxito no que sente que deve fazer.

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- Não sei nem por onde devo começar... Isabela pensou por instantes e en-tão sugeriu:

- Por que não faz uma visita a Uberaba, no Triângulo Mineiro, para viver um pouco da atmosfera daqueles que conviveram com Chico Xavier, e que até hoje laboram no Espiritismo?

- Por que ir até Uberaba? - ele questionou. - Ali ainda jorra uma fonte cristalina do Cristianismo primitivo, vertendo

como água pura da nascente para todos aqueles que desejarem dela beber e que se dispuserem ao esforço efetivo pela própria renovação interior. Só essa reno-vação poderá ajudar o homem no momento de transição do planeta, esteja ele encarnado ou fora do corpo denso.

Ele refletiu e depois perguntou, hesitante: - Você viria comigo? - Poderia ir, se levarmos toda a família. Não agüentaria ficar longe das

crianças por muito tempo. - Então vou levar minha mãe, para ajudar com as crianças. - Por mim, tudo bem. - Sua mãe não se importará? - Acho que não, isso lhe dará algum tempo para descansar. Combinaram os

detalhes da viagem, que definiram para dali a duas semanas. Depois de vários preparativos, viajaram para o Brasil. Isabe-

la trazia o coração cheio de esperanças, enquanto Peter, inseguro e receoso, sentia culpa e remorso. Sabia que precisava consolidar, de fato, o desejo de conquistar a força e a humildade imprescindíveis para a renovação interior; só assim reencontraria o caminho para o verdadeiro sucesso: o amadurecimento espiritual.

* ***** Algum tempo depois, Elvira, Ernesto e Henrique participaram de linda fes-

ta de despedida a um grupo de espíritos que se preparava para regressar ao sistema de Capela. Estavam reunidos em sublime cerimônia presidida por Je-sus. Nela, o grande mensageiro de Deus alegrava-se com aqueles irmãos que haviam colaborado em sua luta pelo progresso planetário.

Mais tarde, naquela mesma noite, numeroso grupo de capelinos deixava o orbe da Terra. Para Ernesto também, logo estaria encerrado o exílio. Então, viveriam de fato juntos para sempre, prosseguindo no caminho ascendente de crescimento espiritual, para Deus, no mundo abençoado que já atingira a fase de regeneração na qual o amor e a fraternidade regiam as almas e os corações.

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Felizes, Elvira, Ernesto e Henrique observavam seus irmãos partirem. De repente o semblante de Ernesto ficou sério, e Henrique comentou:

- Está preocupado com Ferdinando. - Sim, Henrique, eu me sentiria mais feliz se ele pudesse retornar conos-

co... Infelizmente, suas escolhas, até agora, o levaram a caminho diferente. Henrique indagou: - O que acha, Elvira? Ele vai conseguir ficar na Terra? Ou sucumbirá de

novo e acabará por ser exilado outra vez, como tantos de nossos irmãos de Capela que, junto com irmãos da Terra, estão sendo transferidos compulsoria-mente para mundos primitivos?

Elvira se manifestou prontamente: - Só Deus tem a resposta, não é Henrique? O certo é que Ferdinando tem

todas as condições para o pleno êxito de sua encarnação. Tudo lhe foi dado para que triunfasse sobre si mesmo. Ele está despertando

do torpor em que mergulhou, mas ainda pode fazer o esforço pela renovação e mudar, permanecendo na Terra, essa morada luminosa preparada por Jesus para os seus irmãos muito amados. A escolha é e será sempre dele próprio. Por isso, nós não podemos ter certeza; isso compete somente ao Criador. Vamos continuar orando por ele e enviando-lhe nossos pensamentos de afeto e desejos de sucesso.

Os três se uniram, enlaçando os braços, e contemplaram o planeta com ex-tremado carinho. Naquele instante de alegria, oraram a Deus, pedindo que a-bençoasse o lindo orbe azul em seu momento de transição, bem como os seus habitantes. Depois, observaram o grupo de capelinos que partia. À medida que se afastavam, deixavam atrás de si, no imenso negro dos céus, rastros lumino-sos que se confundiam com o cintilar das estrelas. Regressando à constelação de Capela, enfim reunidos pelo amor e com o coração transbordante de grati-dão a Jesus, sentiam-se igualmente unidos a ele para sempre.

FIM

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É NECESSÁRIO ACORDAR Grande número de adventícios ou não aos círculos do Cristianismo acusa

fortes dificuldades na compreensão e aplicação dos ensinamentos de Jesus. Alguns encontram obscuridades nos textos, outros perseveram nas questiúncu-las literárias, inquietam-se, protestam e rejeitam o pão divino pelo envoltório humano de que necessitou para preservar-se na Terra.

Esses amigos, entretanto, não percebem que isso ocorre, porque permane-cem dormindo, vítimas de paralisia das faculdades superiores.

Na maioria das ocasiões, os convites divinos passam por elas, sugestivos e santificantes; todavia, os companheiros distraídos interpretam-nos por cenas sagradas, dignas de louvor, mas depressa relegadas ao esquecimento. O cora-ção não adere, dormitando amortecido, incapaz de analisar e compreender.

A criatura necessita indagar de si mesma o que faz, o que deseja, a que propósitos atende e a que finalidades se destina. Faz-se indispensável exami-nar-se, emergir da animalidade e erguer-se para senhorear o próprio caminho.

Grandes massas, supostamente religiosas, vão sendo conduzidas, através das circunstâncias de cada dia, quais fileiras de sonâmbulos inconscientes. Fala-se em Deus, em fé e em espiritualidade, qual se respirassem na estranha atmosfera de escuro pesadelo. Sacudidas pela corrente incessante do rio da vida, rolam no turbilhão dos acontecimentos, enceguecidas, dormentes e se-mimortas até que despertem e se levantem, através do esforço pessoal, a fim de que o Cristo as esclareça.

Emmanuel / Francisco Cândido Xavier "Pão Nosso"