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João Pessoa - Paraíba - Brasil Ano 1- Nº 2 - Agosto/Setembro de 2011 Venda Proibida www.jornalamargem.com.br Opinião Perto demais da Noruega: o terrorismo “branco” e a ideologia Internacional As revoluções árabes e o relativismo cultural: quais direitos humanos? Apoio Direito & Arte “É o povo na arte, é arte no povo...” » Página 5 Cinefilia! O OITAVO DIA O ser humano está cercado de dádivas e, dentre elas, diga-se de passagem, se encontram outros (raros) seres humanos, dotados de dons únicos. Aproveite. Valorize. Tudo pode estar bem melhor do que imaginamos. Basta abrir os olhos. » Página 12 Um espaço de diálogo e intervenção social “A MÍDIA BRASILEIRA TRABALHA COM A PRESUNÇÃO DE CULPA” O professor Venício Lima, um dos maiores estudiosos do direito à comunicação no Brasil, fala, entre outros temas, sobre o escândalo do “caso Murdoch”, na Inglaterra, e a necessidade de criação de um marco regulatório para a mídia nacional. » Página 2 Especial CAMPO DE SANGUE (e lucro) » Página 11 Os recentes assassinatos de líderes camponeses na região amazônica são apenas uma peça do complexo quebra-cabeças da violência no campo: os gestos de brutalidade ajudam a traçar o perfil histórico da defesa de modelos completamente distintos de desenvolvimento econômi- co, social e ambiental. Opinião Da igualdade à liberdade: aspectos da luta feminista Ainda que pouco abordada nos debates e na pautas dos movi- mentos feministas urbanos e/ou acadêmicos, a violência estru- tural capitalista contra a mulher (acirrada pelo machismo) é uma realidade gritante. Direitos Humanos O inimigo somos nós? Entidades de direitos humanos denunciam práticas de espionagem da Agência Brasi- leira de Inteligência (ABIN) contra o Movi- mento Xingu Vivo para Sempre, que atua em defesa dos povos indígenas afetados pela usina de Belo Monte. » Página 8 » Página 9 Entrevista » Páginas 6 e 7 » Página 10

Jornal A Margem nº 2

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Edição de Agosto/Setembro do jornal A Margem (www.jornalamargem.com.br)

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Page 1: Jornal A Margem nº 2

João Pessoa - Paraíba - Brasil Ano 1- Nº 2 - Agosto/Setembro de 2011

Venda Proibida www.jornalamargem.com.br

Opinião

Perto demais da Noruega: o terrorismo “branco” e a ideologia

Internacional

As revoluções árabes e o relativismo cultural: quais direitos humanos?

Apoio Direito & Arte

“É o povo na arte, é arte no povo...” » Página 5

Cinefilia!

O OITAVO DIA

O ser humano está cercado de dádivas e, dentre elas, diga-se de passagem, se encontram outros (raros) seres humanos, dotados de dons únicos. Aproveite. Valorize. Tudo pode estar bem melhor do que imaginamos. Basta abrir os olhos.

» Página 12

Um espaço de diálogo e intervenção social

“A MÍDIA BRASILEIRA TRABALHA COM A PRESUNÇÃO DE CULPA”

O professor Venício Lima, um dos maiores estudiosos do direito à comunicação no Brasil, fala, entre outros temas, sobre o escândalo do “caso Murdoch”, na Inglaterra, e a necessidade de criação de um marco regulatório para a mídia nacional.

» Página 2

Especial

CAMPO DE SANGUE (e lucro)

» Página 11

Os recentes assassinatos de líderes camponeses na região amazônica são apenas uma peça do complexo quebra-cabeças da violência no campo: os gestos de brutalidade ajudam a traçar o perfil histórico da defesa de modelos completamente distintos de desenvolvimento econômi-co, social e ambiental.

Opinião

Da igualdade à liberdade: aspectos da luta feminista

Ainda que pouco abordada nos debates e na pautas dos movi-mentos feministas urbanos e/ou acadêmicos, a violência estru-tural capitalista contra a mulher (acirrada pelo machismo) é uma realidade gritante.

Direitos Humanos

O inimigo somos nós?

Entidades de direitos humanos denunciam práticas de espionagem da Agência Brasi-leira de Inteligência (ABIN) contra o Movi-mento Xingu Vivo para Sempre, que atua em defesa dos povos indígenas afetados pela usina de Belo Monte.

» Página 8

» Página 9

Entrevista

» Páginas 6 e 7

» Página 10

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Ano 1 ● Nº 2 ● Agosto/Setembro de 2011

Página 2

A Margem - O senhor poderia explicar rapidamente qual é a importância do direito à comunicação numa sociedade democrática e como ele se relaciona às liberdades de expressão e de imprensa? Venício - Eu considero que a principal im-portância do direito à comunicação é recu-perar o sujeito do direito, que é a pessoa, o cidadão. O que eu verifico que tem aconte-cido é que os conceitos de liberdade de expressão, direito à informação e liberdade de impressa, que estão abarcados na ideia de direito à comunicação, em geral são apropriados pelos controladores da grande mídia, da mídia tradicional, que reivindicam para si mesmos essas liberdades, esses direitos. Isso fica muito claro quando a gen-te vê a discussão sobre a liberdade de im-prensa, que foi interpretada de forma com-pletamente equivocada pelo Supremo Tri-bunal Federal no acórdão que julgou in-constitucional a Lei de Imprensa. O ministro Carlos Ayres Brito, relator da ação, estabe-leceu, inclusive, uma hierarquia de direitos, dizendo que a liberdade de imprensa está acima da liberdade individual de expressão, o que me parece totalmente absurdo.

Eu acho que o conceito de direito à co-municação contempla a necessidade de que esse seja um direito que inclua o direito de ser informado, de informar-se e o direito à informação. Assim, recupera-se a centra-lidade da pessoa, do cidadão, como sujeito do direito, o que tem sido deslocado, sobre-tudo, para as empresas que controlam a grande mídia.

A Margem - Qual a opinião do senhor sobre a decisão do STF que dispensou a exigência de diploma para o exercício da

profissão de jornalista? A liberdade de expressão ganhou com isso? Venício - Eu sou contrário à exclusividade do exercício da profissão de jornalista por aqueles que têm o diploma. Isso não signifi-ca que eu seja contrário ou que compreen-da o exercício constitucional do jornalismo como um exercício que não precise de for-mação universitária: as exigências do cam-po da comunicação cada vez mais deman-dam um profissional bem preparado. Eu acho, inclusive, que a graduação é insufici-ente. Na Inglaterra, por exemplo, é comum que profissionais que trabalham em jorna-lismo econômico façam ou tenham um mestrado nessa área, mas não necessaria-mente a graduação em jornalismo. Outra coisa é que, ao contrário da decisão do Supremo Tribunal Federal, e do próprio voto do relator – o ministro Gilmar Mendes –, que foi acompanhado pela maioria, a exigência de diploma para o exercício da profissão não traz qualquer drama para a liberdade de expressão, até porque quem não é jornalista profissional tem formas variadas de acesso à grande mídia.

O que eu acho que prejudica a liberdade de expressão é exatamente essa contradi-ção brasileira, que eu mencionei antes, dos pólos da grande mídia, dos controladores da grande mídia – seja ela impressa ou de radiodifusão – que impedem a voz da gran-de maioria dos brasileiros. Esse sim é o problema da liberdade de expressão: a liberdade de expressão, no Brasil, é só a liberdade de uns poucos grupos. Mas acho também que as novas tecnologias de co-municação estão tornando essa discussão um pouco obsoleta, porque há, hoje, formas tecnológicas de acesso, por exemplo, a

blogs e sites de informação que não neces-sariamente são administrados por jornalis-tas. É claro que surge o problema da credi-bilidade, mas acho que estamos vivendo um momento de transformação tão profun-do nesse campo, e em uma velocidade tão grande, que me parece um equívoco, inclu-sive da luta sindical, centrar as discussões exclusivamente na questão do diploma.

A Margem - O recente escândalo envol-vendo o “caso Murdoch” reascendeu os debates sobre regulação da mídia. Os grandes órgãos de imprensa do Brasil têm reiterado o discurso de que um con-trole interno, exercido pelos seus pró-prios representantes, é mais do que sufi-ciente. Quais os prós e contras de uma proposição dessa natureza para uma teoria democrática das comunicações? Venício - Acho que devemos estabelecer uma diferença básica quando se fala de regulação. Nós, no Brasil, não temos regu-lação no mercado de mídia, e isso não tem nada a ver com conteúdo. Se você obser-var a história da nossa mídia, perceberá que ela se constrói através da propriedade privada ou cruzada. Portanto, a mídia brasi-leira foi sempre concentrada, historicamen-te vinculada às oligarquias políticas regio-nais ou locais. Nós temos “um vício de ori-gem” da própria construção do espaço midi-ático. Então, quando se fala em regulação, primeiro – e acima de tudo -, a gente se refere a uma norma constitucional que im-pede os monopólios e oligopólios na área, ou que impede os monopólios e oligopólios em qualquer outra atividade econômica. Isso deveria ser cuidado pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica

Entrevista Prof. VENÍCIO LIMA

“A liberdade de expressão no Brasil é só a

liberdade de uns poucos grupos”

www.jornalamargem.com.br

twitter.com/jornalamargem

Tiragem desta edição: 1.000 exemplares

Editor-geral

Douglas Pinheiro

Revisora

Andrezza Melo

Coluna Cinefilia!

Carlos Nazareno

Coluna Em Fatos

Caroline Carvalho Tancredo Fernandes

Coluna Entre Themis & Apolo

Arthur Richardisson Liziane Correia

Editores-colaboradores

Thiago Fernandes Yure Tenno

Colaboraram para esta edição

Breno Barros Eduardo Fernandes

Renata Rolim Tatiane Oliveira

Este jornal é uma publicação bimensal produzida por estudantes do curso de

Direito da Universidade Federal da Paraí-ba e outros colaboradores. As ideias aqui expostas não necessariamente refletem

a opinião da equipe editorial.

EXPED

IEN

TE

V enício Lima é sociólogo, jornalista e professor titular (aposentado) de Ciência Política e Comunicação da UnB. Com mestrado, doutorado e pós-doutorado em Communications, Venício é uma das principais refe-rências teóricas nos debates sobre direito à comunicação no Brasil, tendo escrito diversos livros sobre o tema, além de ser colaborador permanente dos portais Carta Maior e Observatório da Imprensa. Ferrenho

defensor de um marco regulatório para a mídia nacional e de políticas públicas que garantam a efetiva pluralidade no sistema de comunicação, o professor concedeu uma entrevista, via telefone, ao Jornal A Margem, para tratar destes e outros assuntos.

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Entrevista

(CADE), do Ministério da Justiça: a questão de, primeiro, regular o mercado, de garantir que haja competição no mercado.

O segundo ponto é que existem várias previsões legais na Constituição Federal – e, aqui, eu penso, sobretudo, no art. 221 – que têm indicações para a produção de conteúdo, a exemplo da regionalização da produção cultural, artística e jornalística; da preferência por conteúdo educacional; da preferência pela produção independente... Essas coisas vão além da regulação do mercado, mas esta tem implicação direta no conteúdo, e isso não é apenas no Brasil.

Apesar de a Constituição já ter mais de 22 anos, o art. 221 ainda não foi regula-mentado e os projetos que regulamentam todos os seus incisos estão parados no Congresso Nacional. Não tenho nada con-tra a autorregulamentação: que se faça! Aliás, se se fizer a autorregulamentação de alguma coisa no Brasil, nós já estamos atrasados há quase 100 anos, mas ela não é suficiente. Há dezenas de estudos que mostram que a autorregulamentação fun-ciona como complemento da regulação do Estado. O que acontece no Brasil, de forma muito clara, é que a nossa grande mídia, além de protetora dos seus próprios inte-resses, do ponto de vista ideológico e dou-trinário, ainda toma a posição de um libera-lismo clássico que enxerga a liberdade ape-nas como uma liberdade negativa e identifi-ca a restrição de liberdade como vindo sempre de um adversário principal, que é o Estado. Então, qualquer tentativa de contro-le, por mais que esteja ligada ao liberalismo atualizado, moderno, em prática em outros estados democráticos, ainda é vista, aqui no Brasil, como forma de censura.

O que aconteceu na Inglaterra - que é o berço conceitual da ideia de liberdade de expressão e, num certo sentido, da liberda-de de imprensa - deixou muito claro que a autorregulamentação não é suficiente; é preciso que haja a interferência do Estado para a manutenção das liberdades individu-ais. A Margem - O que o senhor acha do a-vanço dos setores religiosos nos meios de comunicação? Essa pode ser uma nova face do coronelismo eletrônico? Venício - Há algum tempo, participei de uma banca de avaliação da tese de douto-rado de um aluno que depois descobri ser também pastor de uma igreja evangélica. O argumento principal dele é que a sobrevi-vência dessas novas igrejas dependente fundamentalmente do seu acesso à grande mídia. Passou a ser fundamental que elas tenham representação no Congresso Na-cional, sobretudo para garantir esse espaço na grande mídia. Ele mostra que há discor-dância dos representantes dessas igrejas em relação a vários temas, a exemplo do aborto e da união homoafetiva, mas, no que se refere à preservação de certos pontos da regulação ou da ausência de regulação no setor de mídia, eles agem em bloco por-que estão protegendo algo que faz parte da

sobrevivência da sua própria igreja. Isso representa não só o desvirtuamento do processo democrático no Congresso (porque vivemos num Estado laico), mas também um desvirtuamento doutrinário do ponto de vista religioso.

Há, aí, uma contradição interessante porque a lei das rádios comunitárias, desde 1998, impede, de forma explícita, o proseli-tismo religioso e político. No entanto, isso não se aplica à radiodifusão comercial: hoje é uma prática comum que concessionárias de serviços públicos subloquem, para igre-jas, espaços da concessão, com fins exclu-sivamente lucrativos. Eu vejo isso com mui-ta apreensão. A Margem - Somos testemunhas de um Conselho de Comunicação Social que não funciona, uma mídia sem regulação, monopólios, oligopólios, propriedades cruzadas, parlamentares proprietários de empresas de radiodifusão (tudo isso proibido pela Constituição Federal) e um processo massivo de criminalização das mídias comunitárias. Há o que se come-morar em matéria de direito à comunica-ção no Brasil? Venício - Eu estou convencido de que nós estamos avançando em relação à consciên-cia da importância da questão da comuni-cação na sociedade contemporânea. Te-mos debates sobre esse tema instalados não só em algumas Universidades; ele está também permeando o debate na agenda pública, sobretudo no que diz respeito ao grande boicote sistemático que a mídia faz quanto a essas discussões: a grande mídia não discute sobre ela mesma...

Hoje recebo convites para participar de debates nessa área, sobretudo de sindica-tos e frentes pela democratização da comu-nicação, conferências regionais de comuni-cação, etc. Eu considero que o principal resultado da 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom) foi esse de colo-car a comunicação na agenda pública dos debates. E, aos poucos, alguns resultados aparecem: várias Constituições Estaduais, quando adaptando modificações que acon-teceram na Constituição Federal, incluíram, nos seus textos, capítulos sobre comunica-ção e, a exemplo do que está na CF, a cria-ção de Conselhos Estaduais de Comunica-ção. Eu fiz uma pesquisa e constatei que dez Constituições Estaduais (mais a do Distrito Federal, que é lei orgânica) prevê-em a criação desses Conselhos. A Bahia já criou o seu, que está em processo de insta-lação. Isso é resultado de uma ampla mobi-lização da sociedade civil e dos movimen-tos sociais baianos, que fizeram uma confe-rência estadual de comunicação mesmo antes da convocação da conferência nacio-nal.

Criando um Conselho Estadual de Co-municação, mesmo que este não tenha poder deliberativo, há democratização, há avanços na participação popular; caminha-se no sentido de que mais gente participe do debate sobre essas questões e influenci-

a-se na formação das políticas estaduais de comunicação, a exemplo do plano estadual de comunicação, da distribuição de verbas públicas publicitárias para os veículos, etc. O que nós temos a comemorar é isto: o avanço da consciência acerca da importân-cia desse direito.

A Margem - O senhor acha que a popula-ção tem desenvolvido um posicionamen-to mais crítico em relação àquilo que ouve, vê e lê, ou a mídia ainda é a tutora inquestionável da opinião pública? Venício - Essas coisas estão mudando muito. A internet está provocando o deslo-camento dos formadores de opinião tradi-cionais, que estão perdendo poder. Tudo isso está sendo mais horizontalizado. O que ainda me assusta muito – e eu andei pensando nisso em relação ao caso Murdo-ch, na Inglaterra – é que a grande mídia ainda continua a ter muito poder no que se refere à vida privada. Você invade um es-paço do direito individual, principalmente a reputação, a imagem do indivíduo. O poder da mídia tradicional continua devastador. E os danos provenientes disso não têm con-serto. A nossa mídia não trabalha com a presunção de inocência (uma norma consti-tucional); a mídia brasileira trabalha com a presunção de culpa. E, muitas vezes, erra, e erra feio.●

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Ano 1 ● Nº 2 ● Agosto/Setembro de 2011

Por Douglas Pinheiro e Breno Barros. Gostaríamos de agradecer a professora Renata Rolim por ter viabilizado esta en-trevista.

Eu estou convencido de que nós estamos

avançando em relação à consciência da impor-tância da questão da

comunicação na sociedade

contemporânea”

Na teoria das comunicações, conside-ra-se cruzada a propriedade exercida por um mesmo ente privado sobre veículos de comunicação de naturezas diferentes (mídia impressa, rádio, tele-visão, etc.). Tal prática é proibida pela Constituição Federal.

Page 4: Jornal A Margem nº 2

EM FATOS

Sobre pedras e aborígenes

Segundo a ideologia desenvolvimentista do Brasil, tudo vale a pena quando a barragem não é pequena

“Você vai fazer com os indígenas o que nós fizemos com os aborígenes?”. Em “conversa” com uma jornalista australiana do programa 60 Minutes sobre as obras do complexo hidrelé-trico de Belo Monte e os danos gerados às comunidades indígenas da área (e sem saber que o áudio de sua fala estava sendo gravado), o presidente do IBAMA, Curt Trennepohl, responde rispidamente: “sim, sim...”. Segundo ele, o órgão que preside não tem a missão de cuidar do meio ambiente, mas apenas de “reduzir os impactos”. O excelentíssimo senhor presidente, porém, não pensa sozinho; não conduz, por convicções-próprias, essa política institucional. É só mais um cúmplice da ideologia desenvolvimentista que o Estado (pra não falar apenas de governo) tem adotado em relação ao nosso modelo energético, às obras da Copa do Mundo de Futebol e a tantos outros “elefantes brancos” que têm a missão de mos-trar o Brasil-potência: desenvolvimento econômico com altos custos sociais, negação de direitos de minorias e uso de estratégias oficiais de sufocamento de movimentos de resis-tência (confira artigo na página 9 desta edição).

A Anistia Internacional, que divulgou recentemente um relatório sobre a situação dos povos indígenas no continente americano, disse em alto e bom som: os índios (e outras comunida-des tradicionais) são a “pedra no sapato” dos interesses comerciais. As crescentes ativida-des da agricultura e das indústrias extrativistas, além de projetos de barragens e de estradas que cruzam as terras indígenas, são vistas como grandes ameaças a estes povos. O documento critica a construção de Belo Mon-te. Segundo Patrick Wilcken, pesquisador da Anistia em assuntos brasileiros, os “planos ambiciosos” do governo brasileiro para construir dezenas de hidrelétricas em toda a Amazônia irão causar “enormes problemas para a sobrevivência destes povos”. E não tem recomendação da OEA que freie essa realidade. Enquanto isso, para uma população que será desalojada de sua terra rumo a um futuro idealizado pelo Estado, restam os “mutirões da cidadania”, com a oferta de serviços públicos ditos básicos. Triste ironia...

Paraíba terá Comitê de Combate à Tortura

O governador Ricardo Coutinho sancionou a Lei nº 9.413, de 12 de julho de 2011, que cria o Comitê Estadu-al para a Prevenção e Combate à Tortura na Paraíba (CEPCT/PB) e o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura na Paraíba (MEPCT/PB). Tais medidas pretendem atuar com o objetivo de erradicar e prevenir a tortura e outros tratamentos ou penas desumanas ou degradantes. O Comitê terá como compe-tências: coordenar o sistema estadual de prevenção à tortura; avaliar e acompanhar as ações, programas, projetos e planos relacionados ao enfrentamento à tortura no Estado, propondo as adaptações que se fize-rem necessárias; bem como acompanhar a atuação dos mecanismos preventivos da tortura no Estado, ava-liar seu desempenho e colaborar para o aprimoramento de suas funções, zelando pelo cumprimento e cele-ridade dos procedimentos de apuração e sanção administrativa e judicial de agentes envolvidos na prática de tortura.

Depois de condenação do estado brasileiro, MP denuncia fazendeiro por assassinato de sem-terra

O Ministério Público do Paraná denunciou, no início do último mês de julho, o fazendeiro Morival Favoreto. Ele é acusado de homicídio qualificado pela morte do integrante do Movimento Sem-Terra Sétimo Garibaldi, em novembro de 1998, durante uma tentativa de desocupação forçada de uma área ocupada pelo MST na Fazen-da São Francisco, município de Querência do Norte. Segundo a denúncia, em 27 de novembro de 1988, o de-nunciado, juntamente com capangas, teria forçado a retirada de integrantes do MST da área. Sétimo Garibaldi foi atingido com um tiro quando deixava o barraco que ocupava. Mesmo constatando que o sem-terra havia sido ferido, Morival e seus homens não prestaram socorro nem deixaram que os integrantes da ocupação aten-dessem a vítima, que agonizou até a morte, por hemorragia aguda. O caso ganhou repercussão internacional pois levou à condenação do Brasil pela não apuração do crime, junto à Corte Interamericana de Direitos da OEA.

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Afasta de mim esse cálice: para o presidente do IBAMA, o órgão

não tem a obrigação de cuidar do meio ambiente

Passados cinco anos, Lei Maria da Penha representa vitória histórica para as mulheres

Dois milhões de denúncias de violência: esse é o resultado dos cinco anos da lei Maria da Penha, segundo levantamento feito pela Secretaria de Políticas para as Mulheres do governo federal. Nesse período, tam-bém foram abertos cerca de 300 mil processos judiciais. A lei foi criada em 2006 e oferece um conjunto de elementos institucionais que garantem a proteção da mulher e da família, bem como penas mais severas para os seus agressores, tendo sido, inclusive, citada pela ONU, em recente relatório, como exemplo de legislação pioneira, criada depois de censura sofrida pelo Brasil na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, por não ter tomado as medidas punitivas cabíveis contra o agressor (marido) da farma-cêutica e bioquímica Maria da Penha, no Ceará.

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Entre Themis & Apolo

O tão belo Apolo O que faço para me unir a você A tão bela Themis, não oferecerei colo Nem consolarei teu repleto viver A tão adorável Themis Rasga tuas vendas e podereis ver Que a balança está quebrada Mas não é esse meu querer Prometo ser muito mais fiel Que teus súditos alienados à pura linguagem Reprodutores de textos mal contados, cruel Assim é a inventada verdade A querido Apolo Suas obras são tão abertas à liberdade Meu maior medo, Apolo É perder minha imparcialidade Ó amada, tão admirada Tenho medo do que chama imparcial Sabes que sou livre ao diálogo E isto é uma mentira nada normal Permitas ao mínimo a nossa aproximação E aos nossos súditos e adoradores um diálogo e um debate Permitindo uma melhor compreensão Deste mundo, entre vós, não permitas ficar à parte Fundiremos nossos horizontes Na liberdade de possibilidades Histórias que desmonte O texto sem linguagem e criatividade A tenho uma paixão imensa Pela musa da memória Pertencente a outra crença Mas que constrói a nossa historia Em um constante relacionamento Na autêntica continuidade da memória No mergulho do pensamento Das decisões à nossa glória Relembrando as derrotas e erros do passado Limitando o arbitrário, estamos à disposição Com a narração do já explorado Harmonizando os interesses da nossa junção Sabendo sempre que no nosso amor quanto mais se sabe Mais abrimos os olhos que precisamos mais conhecer Não quero resistência de sabre Quero a incansável vontade de aprender Narraremos o contexto das nossas experiências Argumentaremos a versão Da nossa existência Chegaremos ao entendimento infinito da nossa visão...

Por Arthur Richardisson

É o povo na arte, é arte no povo/ E não o povo na

arte, de quem faz arte com o povo¹

Por Liziane Correia*

A imagem do homem que luta pelo direito à terra e por sua sobrevivência é editada, nos grandes jornais e revis-tas, sob a película e caneta dos defen-

sores do latifúndio e do agronegócio brasileiro. É um problema histórico que é contado pela grande mídia numa versão maniqueísta basea-da no embate Herói x Vilão. Nessas histórias, mal contadas, o herói é aquele que mais se assemelha ao autor do texto.

Quando lemos na mais respeitada revista brasileira que criminosos invadiram a proprieda-de de uma família rica, tradicional e – acima de tudo – trabalhadora, a qual produz o bastante para contribuir com o desenvolvimento econô-mico brasileiro, já esperamos um clímax com direito a tumulto, polícia, prisão e assassinatos. O final feliz seria a família com sua paz restabe-lecida, certo? É essa narrativa que costumamos encontrar. Nela, odiamos aqueles que violam o direito à propriedade privada! Arruaceiros, ba-derneiros e vagabundos!

No Brasil, 40% das terras restabelecida das propriedades privadas – não servem para nada, são improdutivas. Segundo o IBGE, 1% da população detém 50% das terras brasileiras. Aqui, existem quatro milhões de famílias sem terras, desempregadas, sem propriedade priva-da, com fome, com sede e, sobretudo, cansa-das de esperar por uma real ação do Estado.

Esse dado, absurdo, faz-nos pensar se to-das essas histórias que comumente lemos, sobre esses sem terras que se movimentam para lutar por uma vida melhor, não seriam também absurdas. Vez por outra, encontramos outros narradores, renomados, mas esqueci-dos, que se identificaram com a luta por uma vida digna e narraram – em protesto, em espe-rança e em denúncia – a história de como é conquistar uma vida digna.

Lembremos das últimas violações aos direi-tos humanos: dos recentes assassinatos de trabalhadores rurais no Pará, dos mais de 800 homens e mulheres que trabalhavam em condi-ções análogas a escravos em um latifúndio (Usina Infinity) no Mato Grosso do Sul, da per-seguição aos trabalhadores rurais (segundo dados da Comissão Pastoral da Terra, entre 1985 e 2009 foram assassinados 1.469 traba-lhadores rurais; apenas 85 casos foram julga-dos e somente 19 mandantes receberam con-denações). É por essa realidade triste que con-sideramos um absurdo todas as histórias que não têm por protagonistas e heróis os Movi-mentos Sociais – lutadores do povo.

São heróis porque combatem o agronegócio – devastador de florestas, utilizador de mão-de-obra escrava, provocador da expulsão de qui-lombolas e indígenas dependentes das flores-tas. São heróis porque erguem a bandeira da Reforma Agrária – que vai garantir a auto-subsistência dos agricultores e a soberania alimentar – 70% dos alimentos consumidos nas cidades são produzidos pela pequena agricultu-ra familiar. Graças ao Movimento Sem Terra, das terras desapropriadas, 80% foi por conta das suas pressões organizadas nas ocupações das propriedades, fazendo valer o artigo 5º da Constituição Federal de 1988, que versa sobre a função social da propriedade.

Lemos e assistimos a tantas histórias mal contadas! Mas e se procurarmos aquela ficção, com um enredo quase real, com uma trama que se confunde tanto com a realidade, que defen-de e está ao lado do povo? Como exemplo,

podemos encontrar um Patativa do Assaré, que em um Eu quero simples, exprime o desejo de quatro milhões de famílias de trocar a casa de palha por confortável guarida, de ter uma terra dividida pra quem nela trabalha; falando da Reforma Agrária e pedindo atenção ao Con-gresso para a situação do camponês e da cam-ponesa.

Há o João Cabral de Melo Neto (eternizado, também, pela interpretação de Chico Buarque do Funeral de um Lavrador), que retrata o tor-mento do trabalhador que conquistará um pe-daço da terra só com a sua morte, pois, por fim, é a conta menor que tirou em vida, é a parte que lhe coube do latifúndio, é a terra que mui-tos queriam ter visto dividida.

E no sofrimento e na luta que Os Sertões, de Euclides da Cunha, deixa nascer junto com a nossa indignação – a qual ajuda-nos a buscar por mais elementos históricos que expliquem a injusta apropriação da maioria das terras pela minoria dos homens. O livro retrata o fim da escravidão, a vida de homens sem trabalho e sem terra. Lemos o massacre de Canudos e lemos a morte de pessoas assassinadas pela aliança da República com a imprensa e com os latifundiários. Uma obra factual, escrita em 1902, que consegue nos remeter a tanto deste 2011, reforçando que o problema é histórico e que precisa ser resolvido radicalmente. Aposta-mos que a solução vem junto com a Reforma Agrária e no reconhecimento das terras indíge-nas e quilombolas.

A Constituição Federal de 1988 e a Lei A-grária Complementar, em seus textos, tratam da Reforma Agrária, da desapropriação das terras improdutivas. É uma literatura seca, obje-tiva, ainda não encenada ou transfigurada para a realidade, mas com uma capa de autoridade que está tão bem guardada e distante de quem precisa lê-la, que ninguém sabe a hora certa de utilizá-la. Será que quem a guarda está do lado dos latifundiários e da mídia? Será que são a mídia e o latifúndio que abrem e fecham quan-do querem os textos normativos?

Hoje eles nos matam / Mas já usaram nos-sos braços/ Um dia terei terra/ Mas ela já não servirá/ Estará na minha boca/ Não haverá como plantar/ Ao invés de eu ganhá-la/ Ela é quem me ganhará/ Minha nuca é o alvo /Preferido dos jagunços/Falam em reforma agr-ária/ Mas só vejo latifúndio²

Enquanto alguns escrevem grandes obras artísticas que contam o povo com o olhar do povo, enquanto outros inventam histórias do povo e para as elites, pessoas sem-terras per-manecem na luta, fazendo acontecer as próxi-mas páginas, que serão narradas ou distorci-das, mas que ficarão na história do país.

Enfrentar a fome, o desemprego, a mídia, o agronegócio – o capital – é papel protagonizado pelos movimentos de luta pelo direito à terra. É a partir desta contra-hegemonia que descreve-mos hoje, que perceberemos quem será, para nós, o grande autor das grandes mudanças no modelo agrícola, no meio ambiente e na estru-tura da própria sociedade. E então, os vilões não terão mais onde escrever. (1) Trecho da música “Etnia” de Chico Science e Nação Zumbi; (2) Trecho da música “Pontal”, da banda parai-bana Cabruêra. *Liziane é graduanda em Direito pela UFPB e integrante do Núcleo de Extensão Popular Flor de Mandacaru

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Entre a cruz e a espingarda

A responsabilidade pelos assassinatos no meio rural não é apenas de quem aperta o gatilho

Por Talles Lincoln*

E mboscada, desespero e cru-eldade. No dia 24 de maio último, foram assassinados José Cláudio Ribeiro da Silva,

mais conhecido como Zé Castanha, e Maria do Espírito Santo da Silva, no interior do estado do Pará, município de Nova Ipixuna. O casal dirigia-se ao assentamento Projeto Agroextrativista Praia Alta da Piranheira, quando fora cruelmente executado por pistoleiros. Segundo o Conselho Nacional de Po-pulações Extrativistas, as mortes foram encomendadas por madeireiros da região.

Quem se espanta hoje com a violên-cia nas disputas por terra provavel-mente deve ter um completo desco-nhecimento da formação histórica bra-sileira. O Brasil nasce estruturalmente ligado ao massacre de seres humanos em decorrência do domínio de seu território.

Com a chegada dos colonizadores portugueses e de tantos outros euro-peus, ocorreu um processo gradual de tomada do território dos povos indíge-nas, marcado por violência e explora-ção, que culminou no genocídio de diversas etnias que povoavam o litoral e o interior do país. Esse processo, entretanto, não se deu sem resistên-cia: conflitos e rebeliões foram trava-dos entre os colonizadores europeus “civilizados” e os povos das florestas e dos sertões que aqui habitavam. A historiografia positivista tratou de cha-mar o conjunto dessas batalhas de “Guerra dos Bárbaros”. A problemati-zação que devemos fazer é: quem

são, afinal, os bár-baros? A barbárie da modernidade chegou banhando de sangue estas terras e, aqui, ain-

da, está presente diuturnamente. A brutalidade continuou com a divi-

são do Brasil em capitanias e sesmari-as, entregues a um número seleto e reduzido de portugueses, agora senho-res do Brasil e potentes para aqui reali-zarem seus projetos próprios de “desenvolvimento” e exploração da terra e dos índios. Prosseguiu com o sistema de plantation e seus ciclos de monocultura que degradam a terra, com o trabalho escravo de indígenas e de africanos que, sob os grilhões da colonização mercantilista, foram trazi-dos e tratados como objetos pela sua origem geográfica e étnica.

A concentração de terras teve o Es-tado como via de legitimação e legali-dade. Promulgada em 1850, a Lei de Terras estabeleceu que as terras devo-lutas, bem como as “que são possuí-das por título de sesmaria sem preen-chimento das condições legais, bem como por simples título de posse man-sa e pacifica” devessem ser adquiridas exclusivamente por meio da compra, com preços completamente exorbitan-tes, o que impediu o acesso à terra por parte de imigrantes, trabalhadores/as livres pobres e negros/as alforriados/as. Essa lei veio posteriormente a for-çar a migração dos/as negros/as lib-ertos/as para as periferias das cidades, uma vez que na zona rural eles/as não teriam possibilidade de encontrar em-prego e, muito menos, de cultivar para sua subsistência. Se a violência física não era suficiente, a violência simbóli-ca do Direito veio para completar a discrepância da distribuição de terras e coordenar o massacre dos que ousa

(ra)m resistir. A situação fundiária brasileira é alar-

mante e condensa todo o problema histórico de distribuição e gerencia-mento da terra. Apesar de cerca de 70% do que é consumido nas mesas dos/as brasileiros/as provir da agricul-tura camponesa, esta só ocupa em torno de 8% do território agricultável brasileiro; em contrapartida, 58% des-se território corresponde a latifúndios, segundo dados do IBGE datados de 2006.

Todo o restante da área territorial agricultável majoritariamente se desti-na às monoculturas de soja e cana-de-açúcar, bem como a extensas áreas de eucaliptos e de pastagens voltados à engorda de gado bovino. Temos, portanto, uma lógica de agroexporta-ção que toma quase todo o território agricultável brasileiro e impede o cres-cimento não só da agricultura familiar, responsável pela alimentação nacio-nal, mas também do uso sustentável e consciente da terra.

A conseqüência dessa estrutura desigual e injusta de distribuição e utili-zação fundiária gera resistência e luta da sociedade civil. Movimentos sociais populares se organiza(ra)m no Brasil inteiro para enfrentar essa lógica ins-trumental e historicamente elitista de “racionalização” da terra. Esses movi-mentos denunciam a barbárie do “arcaísmo moderno e da modernização arcaica que funda o „desenvolvimento‟ capitalista agrário brasileiro”, como sugere o sociólogo Florestan Fernan-des (2009, p. 52-56).

Das Ultabs (Uniões de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil), das Frentes Agrárias e o Movimento de Educação da Base (MEB) e das Ligas Camponesas, coletivos que rei-vindicavam reforma agrária efetiva, cuja atuação nos anos 60 foi marcante

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“ Segundo dados levantados pela CPT, em 2010 ocorreram cerca de 640 conflitos diretos envolvendo

quase 50.000 famílias de camponeses”

Especial

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Casal Maria do Espírito Santo e “Zé Castanha”, assassina-do no estado do Pará

O descaso do Poder Público e a corrupção que mina a celeridade dos processos judiciais e de investigação policial fazem com que a impunidade seja a regra em relação aos conflitos

no campo”

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na história camponesa brasileira, ao Movimento dos Trabalhadores/as Ru-rais Sem-Terra (MST) e todos os ou-tros movimentos e organizações popu-lares que compõem a Via Campesina no Brasil, houve resistência e atuação desses sujeitos políticos contra a es-trutura fundiária nacional. Esses sujei-tos políticos também são responsáveis pela luta por uma reforma agrária pro-funda que reestruture a lógica campo-cidade e o produzir camponês no Bra-sil.

O MST e toda Via Campesina de-senvolvem um trabalho indubitavel-mente crucial na efetivação do direito humano à terra, na reivindicação da efetivação das normas constitucionais referentes às Ordens Social e Econômica, além de denuncia-rem as práticas de trabalho em condições análogas à escravi-dão, e qualquer outra prática de trabalho rural sem as condi-ções mínimas exigidas por lei. São responsáveis também pe-la luta histórica na reivindica-ção de educação para o/no/do campo, com conquistas como o PRONERA (Programa Nacio-nal de Educação na Reforma Agrária), bem como qualifica-ção técnica e utilização agroe-cológica da terra pelo campesi-nato. Uma das principais pau-tas do MST hoje também se refere à eliminação do uso de agrotóxicos na agricultura bra-sileira.

Os movimentos sociais popu-lares pelo direito humano à terra desenvolvem um projeto próprio, popular, de reforma agrária am-pla, estrutural e agroecológica. A resistência desses movimentos, entre-tanto, não se faz sem sangue e ódio.

A violência no campo, decorrente das disputas variadas que ocorrem, seja entre pequenos agricultores e grandes empresas agrícolas pela de-marcação das fronteiras de seus terri-tórios, seja por, e principalmente, a-ções políticas dos movimentos sociais como ocupações de latifúndios, insta-lação de acampamentos em áreas a serem desapropriadas (por desrespeito ao direito ambiental, ao direito do tra-balho e ao direito constitucional), bem como a violência nas disputas entre grandes proprietários de terra e mag-natas da pecuária e comunidades indí-genas e remanescentes quilombolas, tornam a questão agrária brasileira um problema social e de desrespeito aos direitos humanos – ou seja, ainda mais relevante.

Ano passado, segundo a Comissão

Pastoral da Terra (CPT), ocorreram 34 assassinatos de lideranças dos movi-mentos ligados à luta pela terra. Só no estado do Pará foram 18 assassinatos. As ações violentas se estendem a pis-tolagem, ameaças, destruição de ca-sas, roças e escolas dos/as trabalh-adores/as rurais ligados aos movimen-tos populares.

Ainda segundo dados levantados pela CPT, em 2010 ocorreram cerca de 640 conflitos diretos envolvendo quase 50.000 famílias de camponeses. Só na Paraíba, houve: expulsão de 60 famílias, 63 casas destruídas, 20 roça-dos destruídos e 197 atentados envol-vendo pistoleiros, sendo 32 assassina-tos.

Quanto ao trabalho escravo, a CPT

registra cerca de quase 3.000 trabalha-dores em condições análogas à escra-vidão que foram libertados no ano pas-sado. No município de Boa Vista, inte-rior da Paraíba, foram libertados 27 trabalhadores/as em condições análo-gas à escravidão, que trabalhavam na Fazenda da empresa João Arruda Mi-neração e Construção Ltda.

O descaso do Poder Público e a corrupção que mina a celeridade dos processos judiciais e de investigação policial fazem com que a impunidade seja a regra em relação aos conflitos no campo. O Estado brasileiro, estrutu-ralmente ligado às elites latifundiárias e líderes do agronegócio, torna-se cúmplice dos crimes praticados contra os/as trabalhadores/as do campo que se recusam a se submeter a essa (des)ordem voltada ao lucro e ao be-nefício de poucos em detrimento de

muitos. A criminalização dos movimentos

sociais, como o MST, a total incapaci-dade de o Judiciário absorver as de-mandas coletivas das organizações populares como lutas políticas pela efetivação de direitos, além das alian-ças de classe entre os políticos e as elites tornam a resistência organizada que reivindica a reforma agrária estru-tural difícil, dolorosa e marcada por assassinatos, ameaças e humilhações.

As mortes de Zé Castanha e de Ma-ria do Espírito Santo, por mais cruéis que possam parecer, não são, de ma-neira nenhuma, surpreendentes. O casal, assim como outros/as que ou-sam reivindicar por direitos e por uma

vida digna, já vinha sendo amea-çado continuamente, há anos, pelos madeireiros da região, e o Poder Público, mais uma vez, se mostrou incapaz de prover prote-ção a defensores de direitos hu-manos e efetivar normas consti-tucionais de proteção a esses direitos. E é nessa atmosfera de luta constante, medo, insegurança e violência que vivem os/as trab-hadores/as camponeses que plantam o que você come. Bom apetite!

*Talles é graduando em Direito pela UFPB e integrante do Núcleo de Extensão Popular NEP - Flor de Mandacaru. O autor gostaria de agradecer as professoras Mari-a de Fátima Rodrigues, do Depar-

tamento de Geociências da UFPB, e Ana Lia Almeida, do Departamen-

to de Ciências Jurídicas, pela orienta-ção, direta e indireta, na feitura deste artigo. E, principalmente, agradecer a todos/as os/as trabalhadores/as do assentamento Zumbi dos Palmares, zona rural do município de Mari, que o hospedaram e receberam tão bem nos dias 23 e 24 de julho.

Para ler: Florestan Fernandes. Capitalismo depen-dente e classes sociais na América Latina. São Paulo: Zahar, 2009. Júnia Ferreira Furtado. Cultura e socieda-de no Brasil colônia. São Paulo: Atual, 2000. João Pedro Stédile (org.). A questão agrá-ria no Brasil. V. 3. São Paulo: Expressão Popular, 2005. CPT. Caderno Conflitos no campo 2010. D i s p o n í v e l n o s i t e h t t p : / /www.cptnacional.org.br/

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Por Vitor Cordula*

S egundo Norberto Bobbio, em céle-bre classificação, sempre lembrada quando se trata do tema, os Direi-tos Humanos possuem três mo-

mentos históricos bem definidos: inicialmen-te eles eram direitos naturais e universais; posteriormente, passaram a ser direitos po-sitivos e individuais; e, finalmente, obtiveram a condição de direitos positivos e universais, sendo esta última fase possibilitada pelo desenvolvimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos.

Pois bem, em todas estas etapas, quer seja no âmbito do direito natural, quer seja no âmbito do direito positivo, o tema dos Direitos Humanos sempre esteve intimamen-te ligado à religião (ou à sua ausência) e, como não podia deixar de ser, sempre foi tremendamente influenciado por ela (ou impulsionado pela sua limitação).

Analisando esta inter-relação entre a religião e os Direitos Humanos, asseverou Jean-François Kervégan que a “reforma (protestante) confere uma grande importância à liberdade de consciência, que ocupará de fato um lugar central nas primeiras Decla-rações dos direitos...”. Ou seja, obser-vou o escrito argelino que somente através da abertura interpretativa dos textos sagrados, proporcionada pela Reforma Protestante, é que se pode falar em uma liberdade de consciên-cia, uma vez que sendo o fiel o intér-prete da escritura, caberá a ele, livre-mente, dar significado ao texto. E mais, reconhecendo a capacidade interpretativa do fiel, estar-se-á garantindo-lhe a mesma dignidade humana que é atribuída ao sacerdote. Portanto, tem-se que através da liberdade de interpretação dos textos sagrados advém a liberdade de consciência e crença, que, por sua vez, tem como conseqüência (e como premissa mesmo, em verdadeiro raciocínio tautológi-co) a igualdade de todos, pois cada um é capaz de dar o seu próprio significado ao texto, que terá o mesmo valor daquele atri-buído pelo seu semelhante.

Aceitando tais premissas como verda-deiras, é forçoso concluir que não há como alcançar a igualdade de todos onde não haja liberdade religiosa. A ausência desta facul-dade implica na valorização dos membros da crença imposta e na desvalorização dos demais. É dizer, só seriam dotados de digni-dade humana os que fizessem parte da reli-gião escolhida. Conseqüentemente, não haveria espaço para democracia ou Direitos Humanos neste universo.

Nesta toada, a superação da problemáti-ca questão da possibilidade de efetivação dos Direitos Humanos no seio das socieda-des árabes reside exatamente na superação das questões de cunho interpretativo, dando-se maior abertura à hermenêutica por parte

dos fiéis. Ou seja, garantindo-lhes o direito de interpretar as sagradas escrituras, assim como ocorreu outrora com os cristãos a par-tir da Reforma Protestante – a sociedade será planificada, pois, como já dito alhures, não há como permitir a livre interpretação do texto sagrado sem reconhecer o valor do seu hermeneuta. Noutro dizer, aqueles que puderem interpretar as palavras de Alá terão o mesmo valor e, portanto, a mesma digni-dade.

O que se quer dizer é que, sem olvidar os vários outros fatores de viés econômico e político, enquanto couber aos califas, “sucessores do profeta”, a interpretação exclusiva de significado dos textos sagrados, haverá estratificação na sociedade muçul-mana. Somente através de uma revolução interpretativa, que tenha início através dos próprios muçulmanos, é que poderemos falar em liberdade, igualdade e democracia nestas comunidades.

Uma vez planificada a sociedade, sendo reconhecido a todos os seus integrantes o mesmo status, estará satisfeita a moralidade democrática, poderá ser implantada com sucesso a democracia. E, havendo a imple-mentação de um governo democrático, tor-nar-se-á possível o respeito aos Direitos Humanos.

Isto posto, filiamo-nos à corrente que admite serem os Direitos Humanos univer-sais, devendo ser aplicados em todas as civilizações humanas. Entretanto, compreen-demos também que este posicionamento não exclui a teoria do relativismo cultural em toda sua extensão. É que, se por um lado é inegável que existem várias culturas sobre a

Terra (pelo que há um relativismo cultural), por outro, é também indiscutível que em nenhuma destas diversas formas de organi-zação social há seres humanos melhores ou piores do que outros, mais ou menos dignos, uma vez que a dignidade da pessoa humana prescinde de qualquer condição para investi-dura, ela é imanente ao ser humano.

Sendo assim, o que se vislumbra é que os Direitos Humanos, não obstante sejam universais, devem ser adequados às peculi-aridades de cada sociedade. Ressalte-se que adequar não significa abrir mão, renun-ciar, pois quem age dessa forma não adé-qua, descarta. Esta maleabilidade dos Direi-tos Humanos sempre lhe foi característica. Desta forma é que durante muito tempo dividiu-se o globo entre os defensores das liberdades civis e políticas e os provedores dos direitos sociais, econômicos e culturais. Esta divisão era resultado justamente das peculiaridades (neste caso, de ordem políti-

ca) de cada modelo de organização social. Com relação aos países árabes e do sudeste asiático de modo geral, o que se percebe é que, em decorrência da sua grande crença religiosa, estas pes-soas estão mais próximas de questões metafísicas, e esta aproximação faz com que elas questionem o porquê dos Direitos Humanos, que carecem preci-samente de uma fundamentação trans-cendental robusta. Levando isto em consideração, temos que o caminho através do qual poderão ser implanta-

dos os Direitos Humanos nestas regi-ões é exatamente através da busca de

valores como a dignidade da pessoa humana imbuídos na sua cultura. Uma

vez identificados estes valores, legitimar-se-á o rol destes direitos no âmbito destes países, respeitando a sua cultura e ao mes-mo tempo tutelando valores universais.

É precisamente nesta direção que apon-tam os recentes acontecimentos em que, em sociedades marcadas pela influência das questões espirituais na vida pública dos cidadãos, estes saíram às ruas em busca de valores supostamente ocidentais, pro-vando que a democracia, apesar de ser uma invenção grega, detém alcance global,

bem como os Direitos Humanos por ela ga-rantidos e possibilitados. Estes movimentos também reafirmam que, não obstante se reconheça nos levantes a tão propalada universalidade, as peculiaridades inerentes a cada modelo de organização social, inclusi-ve no que tange à maior ou menor influência da ideologia religiosa nos negócios públicos, podem conviver harmonicamente com os direitos do ser humano. *Vitor é graduando em Direito pela UFPB e estudante-pesquisador.

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Internacional

A liberdade religiosa nos Países Árabes: Universalismo x Relativismo Cultural

“ Não há como alcançar a igualdade de todos onde não haja liberdade religiosa. A

ausência desta faculdade im-plica na valorização dos mem-bros da crença imposta e na desvalorização dos demais”

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Direitos Humanos

ABIN versus DIREITOS HUMANOS: JUSTIÇA E MEMÓRIA NÃO SÃO NEGOCIÁVEIS

“(Os indígenas) observaram que há entre nós (europeus) gente bem alimentada, gozando as comodidades da vida, enquanto meta-de de homens emagrecidos, esfomeados, miseráveis mendigam às portas dos outros (em sua linguagem metafórica a tais infelizes chamam de „metades‟); e acham extraordinário que essas metades de homens suportem tanta injustiça sem se revoltarem e incen-

diarem as casas dos demais” (Michel de Montaigne)

Por Andressa Caldas1, Roberta Amanajás2, Manoel Moraes3, Eduardo Fernandes4, Antônio Escrivão Filho5 e Juana Kweitel6

J ustiça Global, Sociedade Paraense de Direitos Humanos, Dignitatis, Gajop, Terra de Direitos e Conectas Direitos Humanos enviaram, no dia 29 de julho

do corrente ano, à Sra. Margaret Sekaggya – Relatora Especial da ONU para a situação dos Defensores de Direitos Humanos – docu-mento referente a espionagem de Órgão de Inteligência do Governo Federal contra orga-nizações que atuam no caso da Hidrelétrica de Belo Monte (Brasil) praticada pela Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) contra o Mo-vimento Xingu Vivo Para Sempre (MXVPS), que tem atuado na denúncia das violações de direitos humanos resultantes do projeto e da construção da Usina Hidrelétrica Belo Monte (UHE Belo Monte), como por exemplo a ação que resultou na concessão de medidas caute-lares pela Comissão Interamericana de Direi-tos Humanos da Organização dos Estados Americanos (CIDH/OEA) às comunidades indígenas da bacia do Rio Xingu, nas quais recomenda-se que o Governo Brasileiro sus-penda o processo de licenciamento e realize um processo de consulta efetivo junto aos afetados. O Estado brasileiro respondeu de forma ríspida e insatisfatória acerca da deci-são da CIDH/OEA, e abriu uma frente de investigação contra as organizações atuantes no caso, conforme foi revelado no dia 19 de junho de 2011 em coluna publicada no Jornal O Globo: “COBIÇA EXTERNA. A Abin produ-ziu relatório confidencial sobre a ação das ONGs estrangeiras nos protestos contra a usina de Belo Monte. O relatório diz também que ONGs nacionais recebem financiamento de fora. O relatório - 0251/82260/Abin/GSIPR - de 9 de maio de 2011, conclui: tais campa-nhas têm disseminado, no Brasil e no exteri-or, posicionamento ideológico maniqueísta, norteado por suas sedes internacionais.”

Em 05 de julho, a íntegra do relatório foi publicada no blog do jornalista Paulo Henri-que Amorim – “ABIN identifica as ONGs es-trangeiras que boicotam Belo Monte”, o jorna-lista subscreve o entendimento expresso no relatório. Tão preo-cupante quanto a versão deturpada dos fatos apre-sentada pelo relatório da ABIN é o próprio fato de que as organiza-ções estão sendo espionadas e suas atividades sendo objeto de uma investigação

secreta por parte de órgãos de inteligência do governo brasileiro. A visão expressada nesta postura considera as organizações, movimen-tos e defensores de direitos humanos como criminosos, ao menos em potencial, que pre-cisam ser monitorados por agentes de segu-rança. Essa situação não se configura como nova, haja vista que desde o ano de 2008 a ABIN vem intimidando o MXVPS, conforme mostra relatório da SDDH: “No início de 2008, a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) foi à Fundação Viver, Produzir e Preservar, di-zendo que estava a serviço do governo brasi-leiro, e declarou publicamente que estava investigando a região na questão da UHE de Belo Monte. Voltou outras vezes e ligou na intenção de inibir e constranger a atuação do Movimento Xingu Vivo para Sempre. Em um dos telefonemas, informou que iriam dois agentes da ABIN à região para conversar com o Movimento Xingu Vivo. Por solicitação da assessora, o pedido foi formalização – por ofício – contudo, não se realizou reunião com os mesmos. Reiterou insistentemente as liga-ções com o intuito de pressionar e inibir o movimento. O movimento denunciou a atua-ção da ABIN ao Ministério Público Federal em Altamira e Brasília.”

Não são apenas as Organizações e Movi-mentos que são investigados. Em Ofício TDD nº 029/2010 enviado à Relatoria Especial para a Independência de Juízes e Advoga-dos, é relatada a intimidatória da ABIN contra o Juiz Federal e aos Procuradores da Repú-blica que atuam nos processos judiciais refe-rentes à construção da UHE Belo Monte. A postura de investigação e espionagem confi-gura medidas e procedimentos inseridos em uma lógica de criminalização dos defensores de direitos humanos do Brasil, resquício dita-torial que ainda delega ao aparato policial do Estado a tarefa de sufocar a atividade política voltada às transformações sociais, tanto que, no relatório sobre a situação de defensores de direitos humanos no Brasil – “Report sub-mitted by the Special Representative of the Secretary-Generalon the situation of human rights defenders, Hina Jilani”, A/HRC/4/37/Add.2, 19.dez.2006 – foi destacado este pro-cesso de criminalização em curso, afirmando-se que defensores se encontram sob vigilân-

cia e são vítimas de violências e abusos por parte das forças de segurança.

Não é a primeira vez que a defesa dos Direitos Humanos é equivocadamente vista como um suposto atentado em potencial con-tra a segurança nacional. As escutas telefôni-cas ilegais contra o Movimento dos Trabalha-dores Sem-Terra, que levaram à condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direi-tos Humanos – Corte IDH. Caso Escher e outros Vs. Brasil. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 6 de julho de 2009. Serie C No. 200 – é outro exemplo desta antiga prática estatal recente-mente revigorada. Em sua Trigésima Seção, o Conselho de Direitos Humanos da ONU, ressalta a preocupação com os mecanismos de inteligência dos países, como estão estru-turados legalmente e da possibilidade de servirem como violadores de direitos impedin-do o desenvolvimento do trabalho dos defen-sores de direitos humanos.

A atuação da ABIN junto aos movimentos sociais e organizações de direitos humanos vem se revelando uma ação intimidatória em vista de manifestações contrárias aos progr-amas/projetos que violam Direitos Humanos, como o caso da UHE Belo Monte. O governo e a sociedade brasileira devem compreender que, passados mais de quatro séculos de tentativas de um extermínio cognitivo coletivo e de abafamento de narrativas submersas, assim como duas décadas da ditadura militar, a luta por direitos, a efetivação da justiça social e a memória não são negociáveis en-quanto mercadorias em um capital especulati-vo, mas fazem de conquistas contra todas as formas de opressão.

(1) Mestre em Relações Internacionais e Diretora da Justiça Global; (2) Assessora da Sociedade Paraense de Direitos Humanos; (3) Mestre em Ciências Políticas e Coorde-nador do GAJOP; (4) Mestre em Ciências Jurídicas e Associado da Dignitatis – As-sessoria Técnica Popular; (5) advogado da Terra de Direitos; (6) Assessora Jurídica da Conectas Direitos Humanos.

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A atuação da ABIN junto aos movimentos sociais e organizações

de direitos humanos vem se revelando uma ação intimidatória em vista de manifestações contrárias aos

programas/projetos que violam direitos...”

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Por Juliana de Andrade Marreiros*

G enitora; responsável pelo lar; espo-sa; objeto do animalesco desejo sexual e do domínio masculinos; vítima da coisificação e mercantili-

zação de seu corpo, da desqualificação de suas capacidades de agir, pensar e desenvol-ver-se intelectualmente e da redução de sua constituição aos padrões historicamente construídos como femininos. Esses são ape-nas alguns dos atributos intrínsecos à mulher nas sociedades patriarcais liberais.

Ainda que o termo patriarcal carregue certo tom de obsolescência em seu uso, con-tinua sendo sob seu império que a contempo-raneidade se processa. As condições de sub-missão feminina só estão maquiadas, como é próprio do sistema capitalista de produção e de vida. Surge aqui a intersecção entre as duas grandes configurações políticas, cultu-rais e sociais responsáveis pelas enfáticas agressões à mulher e opressões de gênero: capitalismo e machismo. Forçoso ressaltar que, para além da compreensão de quem aparece primeiro na ordem de catástrofe, ambos são lados de uma mesma moeda para a mulher que sofre diariamente tais opres-sões, sinônimos de abuso e exploração, e convergentes entre si.

Tem-se no capitalismo a ressignificação da violência social contra as mulheres, identifica-da pelo padrão de beleza posto, pela divisão sexual do trabalho (que estabelece cruelmen-te atividades e territórios peculiares à “natureza feminina”), pelo senso comum am-plamente corroborado de mitificação do com-portamento feminino na sociedade de consu-mo e de moral machista, chegando a culminar na violência sexual e no alarmante número de vidas femininas ceifadas. Entretanto, ainda que pouco abordada nos debates e nas pau-tas dos movimentos feministas urbanos e/ou acadêmicos, a violência estrutural capitalista contra a mulher (acirrada pelo machismo) é uma realidade gritante.

Não se pode negar que os efeitos machis-tas alcançam mulheres de todas as classes. Todavia, a lógica de fomento às desigualda-des sociais inerente ao sistema capitalista tem como verdadeiros pressupostos de exis-tência as práticas e políticas de criminaliza-ção da pobreza e de desumanização das camadas populares. Nesse cerne, a mulher pobre está, fatalmente, mais exposta às o-pressões, denotando-se, assim, inquestioná-vel complementaridade entre machismo e capitalismo. O ideário neoliberal sustenta a ilusão do aumento recente da empregabilida-de feminina como forma de igualdade de oportunidade entre ambos os gêneros. Po-rém, além da remuneração inferior da força de trabalho das mulheres em relação à mas-culina quando do desempenho das mesmas funções, a mão de obra feminina tem sua

absorção mais concentrada nos serviços informais, degradantes e marginais.

Essa afirmação é facilmente ratificada pelos quadros crescentes de turismo sexual, tráfico de mulheres e pela prostituição muitas vezes precoce, bem como pelo aumento da população carcerária feminina, resultante da atuação intensa de mulheres nos negócios do tráfico de drogas. É que, uma vez mais vulne-ráveis socialmente, tornam-se fáceis alvos de cooptação no crime organizado. Não obstante todas essas formas de exploração, o acesso à educação e à possibilidade de politização é sistematicamente negado à mulher pobre, pois a ela cabe a obrigação dos cuidados do lar e dos muitos filhos e, no máximo, a com-plementação do orçamento familiar por meio de atividades informais ou autônomas, de pouca rentabilidade. Entram nessas constata-ções as empregadas domésticas, raras vezes titulares de direitos trabalhistas ensejados pela regularização da carteira de trabalho, as lavadeiras de roupa, cabeleireiras, manicures entre outras profissões “tipicamente femini-nas”. Em localidades de extrema pobreza, como a África e a América Latina, a mão de obra feminina ainda é aplicada de forma in-tensa na agricultura e no extrativismo, se mostrando indispensável fonte de sustento de milhões de famílias, sem prejuízo das obriga-ções domésticas.

Nessa conjuntura de violações flagrantes às mulheres, especialmente as pobres, há que se fazer o resgate de questões centrais para os debates de gênero atuais. É funda-mental compreender para quais rumos os movimentos, organizações e discussões femi-nistas pretendem apontar. Nesse sentido, propõe-se a construção de uma consciência feminista política de que a erradicação do machismo só será possível com a ruptura das estruturas capitalistas vigentes. E mais: é

preciso promover a formação de uma consci-ência feminista de classe, como forma de enfrentamento das opressões machistas a-centuadas pela pobreza.

Partindo da consolidação desta consciên-cia, é possível vislumbrar na militância femi-nista possibilidades frutíferas de atuação política que tenha por objetivo uma sociedade livre das amarras impostas pelo capital mate-rial, cultural e social dominantes. Não se pre-tende negar a importância irrefutável da luta das mulheres pela igualdade de direitos, tão reivindicada e necessária. Ao contrário, reco-nhece-se que a oportunização do trabalho devidamente remunerado e regularizado, a implementação de direitos que atendam às necessidades femininas, a instalação de polí-ticas públicas e meios efetivos de viabilização do pleno exercício de suas atividades, tais como as creches que abriguem seus filhos durante a jornada de trabalho fora de casa, entre outros benefícios, são medidas emer-genciais para a emancipação feminina e mini-mização das opressões e da miséria. Contu-do, avançar para a supressão das injustiças sofridas pelas mulheres e para o alcance da liberdade plena exige o entendimento de que, nas palavras de Cecília Toledo, a “opressão feminina é desemprego, é prostituição, é de-gradação, é violência, é morte por aborto sem assistência médica, é tristeza, frustração, dor. Tudo isso tem um nome: capitalismo”.

Acreditar nas mulheres politicamente orga-nizadas e identificadas, conscientes de seu lugar e papel em uma conjuntura de perpétuo aprofundamento das desigualdades e maze-las sociais (tendo em vista que correspondem à maioria expressiva da população, particular-mente da pobre), é também acreditar na transformação da realidade social pelas mãos do povo e, a partir de seu protagonismo, construir um projeto de sociedade igualitária e livre, para todos e todas.

*Juliana é graduada em Direito pela Univer-sidade Estadual do Piauí e ex-membro do Corpo de Assessoria Jurídica Estudantil - CORAJE/UESPI, núcleo de extensão popular em Direito daquela instituição.

Opinião

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Do feminismo de igualdade de direitos à luta feminina por um projeto de sociedade livre

“Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome” Clarice Lispector

A mulher pobre está, fatalmente, mais exposta às opressões, denotando-se, assim, inquestionável complementaridade en-

tre machismo e capitalis-mo”

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Opinião

Perto demais da Noruega: o terrorismo “branco” e a ideologia

Por Ana Lia Almeida*

E stava à procura de um pre-texto que ajudasse a provo-car reflexões no meio jurídi-co sobre a questão da ideo-

logia, quando o mundo todo se pôs em choque com a chacina da Norue-ga. O choque parece que aumentou ainda mais quando se tomou conheci-mento da autoria do crime: em vez do suspeito-padrão, o terrorista islâmico, surge diante do homem branco-ocidental a incômoda imagem de si mesmo, matando pessoas em nome da manutenção da ordem. Olhando de perto, embora indignados, não de-veríamos estar tão surpresos. Não é isso que a direita vem fazendo, em todo o planeta, silenciando e matando pessoas que representam qualquer ameaça à ordem? É esse o terrorismo “branco” a que estamos submetidos em todos os cantos do mundo.

Quando espancam homossexuais ou supostos homossexuais no meio da rua; quando agridem a nós, mulhe-res, das mais diversas formas; quan-do reprimem nossas manifestações por direitos básicos e ateiam fogo em barracos de sem-terras acampados em luta pela reforma agrária; ora, to-das essas formas de violência não têm o mesmo sentido dos atos terro-ristas do “louco” norueguês? Não é o mesmo desprezo pelo “outro”, o mes-mo desejo de banir o “outro” para que a forma “correta” de viver possa conti-nuar reinando em paz? Por que nos-sas instituições não dão conta de pu-nir estes crimes? Estaremos todos loucos, então? A necessidade de afir-mar a loucura desse sujeito é, certa-mente, a impossibilidade de admitir que muitos pensam como ele, que a origem dos atos que ele cometeu é o terreno da política, e não o da loucu-ra.

O que está por trás destes ataques e das diversas formas de compreen-der o seu significado é a ideologia. Há quem entenda que ideologia é um conceito ultrapassado, que caiu junto com o muro de Berlim e tudo mais que estava ligado ao universo marxis-ta. Mas o resgate dessa noção é algo que faria bem para entendermos me-

lhor os conflitos de nosso tempo. Ideologia é um conjunto de idéias

que servem para legitimar e justificar a ação política de certos grupos ou classes sociais, algo que pode ser identificado como uma “visão de mundo” ligada a atitudes políticas concretas, sejam elas tendentes à transformação da ordem social ou à sua conservação. É bom deixar claro que existem outras compreen-sões da ideologia, a propósito, muitas outras. Mas, nessa compreensão que partilhamos com Gramsci e Mészá-ros, as ideologias podem tanto ser conservadoras como transformado-ras, e assim poderíamos afirmar, por exemplo, que o machismo é tão ideológico quanto o feminismo, mas a opção por defender uma posição ou outra não é indiferente, como poderia pensar algum relativista radical. Esta-mos sempre fazendo opções ideológi-cas, ainda que não tenhamos consci-ência plena disto, e, portanto, assim como não é possível estar livre da política, também não é possível esca-par da ideologia.

Agora vamos ao direito: como apa-recem as ideologias no campo jurídi-co, e o que tudo isso tem a ver com a tragédia da Noruega?

A ideologia perpassa todos os mo-mentos do direito, desde a sua cria-ção até a sua aplicação, passando pelos discursos científicos compreen-didos como teoria do direito. A elabo-ração das leis, por exemplo, é um momento evidente da presença da ideologia, quando diversos discursos vêm à tona para legitimar determina-das condutas, e não outras, como positivadas pelo Estado. Mas não so-mente as opções pela legislação posi-tivada são político-ideológicas, o que é por demais óbvio, mas a sua inter-pretação (seja por magistrados, seja por doutrinadores) e aplicação tam-bém.

Esse processo não ocorre de forma “neutra”, como muitos afirmam, sim-plesmente em nome do “bem co-mum”, daquilo que é justo para a soci-edade. Na verdade, está implicado em compreensões contraditórias do que seja justiça, sendo que essas visões sobre o justo não são produzi-

das individualmente, e sim coletiva-mente por grupos e classes sociais. Infelizmente, como vivemos em uma sociedade marcada por profundas desigualdades sociais, os sujeitos que ocupam as funções jurídicas são he-gemonicamente comprometidos com as classes dominantes e não atuam de forma a minimizar estas desigual-dades, em prol do povo.

Diante destas reflexões, podemos concluir que estamos, enquanto soci-edade e universo jurídico, mais próxi-mos do terrorista norueguês do que pensamos. É também em nome da manutenção da ordem que o judiciário e os demais espaços jurídicos repri-mem as exigências do povo por direi-tos e democracia. Mas não devemos nos desanimar, pois depende somen-te de nós a reversão desse quadro. *Ana Lia é mestra em Ciências Jurí-dicas e doutoranda em Direitos Hu-manos e Desenvolvimento pela UFPB.

Ano 1 ● Nº 2 ● Agosto/Setembro de 2011

“ Estamos sempre fazen-do opções ideológicas,

ainda que não tenhamos consciência plena disto, e, portanto, assim como não é possível estar livre da política, também não é possível escapar da i-

deologia”

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O Oitavo Dia (Le huitième jour)

D esde “À Espera de Um Milagre” (“The Green Mile” - 1999), dirigido por Frank Darabont e baseado no livro homônimo de Stephen King, eu não via um filme que

envolvesse emotivamente o espectador, com tama-nha profundidade, como “O Oitavo Dia” (1996).

Harry (Daniel Auteuil) é um típico executivo

desse nefasto mundo moderno. Vive em uma des-gastante rotina de trabalho. Seu cotidiano é vazio, repetitivo e desprovido de maiores propósitos. A cegueira para os bons momentos que a vida pode-ria lhe proporcionar revela-se como uma de suas principais características. Tudo ia nesse norte até conhecer Georges (Pascal Duquenne), abandona-do por sua família após a morte de sua mãe (la plus belle du Monde).

Ao contrário de Harry, Georges, a despeito de

um sentimento de abandono e das dificuldades naturais que o cercavam, conseguia vislumbrar as grandiosas criações divinas e aproveitava-as, à sua maneira e com muita imaginação, da melhor forma.

De um lado, um ser frio, mecânico, ríspido e

egocêntrico. De outro, alguém sensível, especial (tocado pela mão do Criador) e com uma aparente missão a cumprir.

O filme trata os temas amizade, família, espe-

rança e aceitação de formas poética, emotiva e com uma sensibilidade inigualável. Mostra, ainda, que o ser humano está cercado de dádivas. E den-tre elas, diga-se de passagem, se encontram ou-tros (raros) seres humanos, dotados de dons úni-cos. Aproveite. Valorize. Tudo pode estar bem melhor do que imaginamos. Basta abrir os olhos.

Sob o comando do belga Jaco Van Dormael,

também diretor do excelente “Senhor Nin-guém” (“Mr. Nobody” - 2009), essa fantástica obra da sétima arte foi indicada ao Globo de Ouro (1997) de melhor filme em língua estrangeira. Teve uma maior repercussão no Festival de Cannes em 1996, premiando as fantásticas interpretações de Daniel Auteuil e Pascal Duquenne. Ressalto, ainda, a indicação à Palma de Ouro no mencionado festi-val francês.

Lançado no Brasil pela Lume Filmes

(responsável pela veiculação nacional de outras obras Cult e raras). Infelizmente, não é encontrado com facilidade em lojas ou locadoras. Busquem-no. Trata-se de uma reflexão para toda a vida!

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Ano 1 ● Nº 2 ● Agosto/Setembro de 2011

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