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Jornalismo: da origem folhetinesca à folhetinização da

informação1

Sonia Maria Lanza (PUC – SP e FAAP)**

RESUMO: O jornalismo como fenômeno de massa está associado ao folhetim. Esta estrutura que tanto

sucesso fez na metade do século XIX, na França e também no Brasil, foi inventada pelo jornal e para o

jornal e tornou-se fator condicionante para a mídia impressa. Legitimado, então, pelo público, o folhetim

mutiplicou-se e migrou para outras mídias. Eficiente no jornalismo impresso, atingiu seu ápice em

fotonovelas e no rádio. Na TV também tem sido paradigma a vários tipos de programação. Nos

programas jornalísticos, a folhetinização da notícia foi amplamente incorporada. O jornalismo, portanto,

resgata a sua origem e transcodifica os fatos em códigos estruturados a partir da folhetinização da

informação.

Palavras-chave: jornalismo, folhetim, folhetinização da notícia.

1 Trabalho apresentado ao III Encontro Nacional da História das Mídias, da Rede Alfredo de Carvalho, GT1 – História do Jornalismo, sob a coordenação da Prof. Dra. Marialva Barbosa da UFF.

** Doutoranda do Programa em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), mestre pela mesma instituição e programa. Bolsista da Capes. Professora-colaboradora no curso de Comunicação Social, da Fundação Armando Álvares Penteado .E-mail: [email protected]

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Já houve tempos em que contávamos nossas lendas ao redor de fogueiras, mas

hoje recontextualizamo-las e, com as tecnologias avançando cada vez mais, as

narrativas permanecem na nossa memória cultural.

Todas as culturas têm uma forma de explicar suas origens e, à medida que são

continuamente transmitidas às novas gerações, tornamo-nos produtores e construtores

da história cultural.

Cultura é, portanto, informações que a sociedade humana acumula, conserva e

transmite. (LOTMAN:1979) É “a totalidade dos sistemas de significação através dos

quais o ser humano, ou um grupo humano particular, mantém a sua coesão (seus

valores e identidade e sua interação com o mundo).”2 O termo possui uma conotação

ampla e abrangente, como afirma Santaella (1996:29), mas é possível associá-lo a todo

tipo de texto, linguagem, códigos que organizam a sociedade humana.

Todo texto cultural constitui a junção de diversos sistemas, ou seja, incorpora e

assimila elementos de outras culturas e envolve uma troca cultural.

As mídias informam, comunicam, recontam lendas, histórias, ressignificam

outras, compartilham fatos do cotidiano e, com isso, preenchem necessidades humanas

antigas: narrativas que outros meios – livros, rádio, cinema, jornais – já fizeram sonhar.

E, embora as narrativas estejam aí, como a própria vida, Walter Benjamin, ao

refletir sobre o tema, alertou que a arte de narra poderia se extinguir. Isto porque “são

cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente”(1985:191). É uma

afirmação radical que propõe uma reflexão importante: O ser humano não sabe mais

contar histórias? A falta da valorização da experiência humana transmitida, o hibridismo

da cultura ou ainda a cultura midiática, a priorização do icônico, a ausência do narrar

por meio da oralidade, realmente, estes e outros fatores podem dificultar a arte de

narrar. Benjamin enfatiza ainda que “entre as narrativas escritas, as melhores são as que

menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos”

(idem: p.198).

Neste contexto, ele afirma que, com a veiculação da notícia, acontece “a morte”

da narrativa oral. Mas se o ocaso desta se acentua, outros modelos narrativos surgem

2 A. Shukman apud SANTAELLA 1996:28

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com o aparecimento da imprensa, que vai registrar e, de certa forma, eternizar aquelas

originárias da oralidade e publicar folhetins, histórias de ficção, que fizeram do jornal

tornar-se um veículo de massa.

A origem do folhetim: o melodrama

“Hoje, vivemos num mundo em que as histórias reais parecem mais com as

novelas que com a própria vida cotidiana” É muito comum ouvir este tipo de frase por

pessoas que não se dedicam, necessariamente, a estudar nenhum tipo de narrativa, são

pessoas anônimas que gostam de ler histórias em jornais diários. Isso nos leva à

reflexão: por que as narrativas factuais, de testemunho têm fascinado tanto e conseguido

atrair mais leitores numa época em que a mídia eletrônica, e a internet, principalmente,

conseguem, em tempo real, veicular a informação?

É o melodrama da vida real. Cotidianamente, parece que as pessoas não vivem

sem este gênero. Nos jornais, elas passam a ser personagens da trama que vai sendo

escrita por meio do tempo vivido por elas e as subtramas se ligam àquela geradora, ao

fato em si.

O melodrama é um estilo antigo, mas “umas das criações estéticas mais

importantes do século XIX” (Huppes:2000:10). A autora acrescenta que o melodrama

seria o sucessor da tragédia, que não fica restrito ao romantismo, ultrapassa-o e, no

século XX, ele acaba recuperando espaço em outras formas de expressão artística, ou de

entretenimento popular como é o caso do cinema e a televisão e até mesmo do jornal

impresso.

O melodrama é a referência de identificação imediata entre as narrativas e o

leitor, é a catarse necessária, ao processo que Silvia Oroz (1999) chama de ‘educação

sentimental das massas’.Ela acrescenta,

“Assim, as lágrimas aparecem como veículo mais apropriado para ‘limpar os erro’. As lágrimas redimem. As lágrimas purificam. Esta colocação moral das lágrimas é característica da produção da cultura de massas e foi competentemente desenvolvida pela indústria cinematográfica da América Latina nas décadas de 30, 40 e 50” (OROZ, 1999:13)

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Esta catarse, por meio das lágrimas, tem migrado para outras linguagens e

mídias. O jornal, com menor intensidade que o cinema, também utiliza este gênero,

embora diluído, e na televisão por meio das telenovelas e dos telejornais.

O melodramático está na cultura do homem contemporâneo, que, apesar de uma

vida fragmentada e frenética, busca, em suas raízes, uma maneira de ler o mundo

cotidiano, de forma a transformar a realidade em quase ficção.

Este gênero, originalmente3, possui uma estrutura simples. Prioriza os enredos

sentimentais, tem como temas freqüentes a reparação da injustiça e a busca da

realização amorosa, as personagens se opõem quanto a valores em vício e virtude. Um

aspecto que também faz parte da estrutura melodramática aparece na forma de

impedimentos, como oposições de famílias, moral, segredos, etc, o que acabam por

gerar o conflito na trama. Além destes há as situações limites: as provas, o inesperado, o

suspense, o pólo negativo, o herói tem opção, não conta com o destino. Tudo isso para

causar múltiplas emoções e sensações no receptor.

Estes paradigmas vão servir a outro gênero que começou no jornal impresso: o

romance-folhetim.

A hibridização: melodrama e folhetim

O período áureo do melodrama, na Europa, é 1800. Sua gênese distancia-se do

melodrama atual, mas mantém a relação com o público por meio do sentimentalismo.

Com o surgimento do romance-folhetim, ocorreu uma evolução do melodrama.

Aquele não significa a substituição deste, mas uma ressignificação do gênero. Eles são

tão confundidos que, nos países latino-americanos, tanto um quanto outro possuem, por

vezes, o mesmo significado. “A novela de folhetim é destinada a um público tão

heterogêneo e tão recentemente formado assim como o melodrama ou o vaudeville4,

nela predominam os mesmo princípios formais e os mesmos critérios de gosto da cena

popular contemporânea”5.

3 Conforme Ivete Huppes, em Melodrama: o gênero e sua permanência, 2000, que se refere à origem do teatro romântico, mas que no século XX é recuperado em outras formas dramáticas. “Os meios de comunicação de massa, em especial o cinema e a televisão, propiciam-lhe um habitat estimulante” (p.10).

4 Comédia que possui enredo fértil em intrigas em que há também dança e canções.5 Silvia Oroz citando Arnold Hauser, 2000:p.23

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O romance-folhetim, veiculado nos jornais, tinha um custo baixo e era

consumido de forma mais rápida e mais prática, isso representava uma competição

comercial para o melodrama.

Os folhetins fizeram do jornal um veículo de massa. Este publicava histórias

trágicas, mortes, desgraças, crimes passionais, romances de vítimas, adultérios,

loucuras, e também notícia. Os donos de jornais, para que a tiragem aumentasse e

trouxesse lucros, tentavam atrair a massa de leitores publicando seções editoriais,

notícias sensacionalistas.

Os Diários foram surgindo, lentamente no século XVII6, mas foi somente em

1836, que Émile de Girardin, na França, conseguiu torná-lo veículo de massa ao lançar

os jornais: Le Siècle e La Presse. Ele barateou o jornal com publicidades inglesas e as

matérias eram redigidas com uma linguagem mais simples. Além disso, criou o

romance-folhetim, ficção em pedaços, que se tornou uma das grandes atrações do jornal

e contribui muito para o seu sucesso.

O folhetim foi inventado pelo jornal e para o jornal e acabou sendo fator

condicionante dessa mídia.Ele tratava de assuntos mais leves, que podiam ser

dramático, crítico, e cada vez mais recreativo. Aparecia na seção de variedades

destinada a contos e novelas curtas.

O primeiro folhetim foi Lazarillo De Tormes, em 1836, primeira novela

picaresca que tem muita aceitação do povo. Depois La vielle fille, de Balzac. (MEYER,

1996) Com isso, surge a estrutura do folhetim: o corte sistemático que deveria criar

suspense; textos e diálogos simples que prendiam o leitor; simplificação na

caracterização das personagens, geralmente maniqueístas (herói e vilão); o herói

vingador ou purificador; a jovem deflorada e pura; os homens do mal.

Vejamos esta definição caricatural do folhetim feita na época:

O senhor tome por exemplo uma mocinha infeliz e perseguida. Acrescente um tirano sanguinário e brutal, um pajem sensível e virtuoso, um confidente dissimulado e pérfido. Quando tiver em mãos esses personagens, misture todos rapidamente em sete, oito, dez folhetins e

6 Em 1621, Théophraste Renaudot lançava sua Gazette, semanário de quatro páginas e tiragem de 1200 exemplares que fez história e permaneceu nas mãos dos sucessores até 1749, sendo anexada ao Ministério do Exterior, com o nome Gazette de France. Outros dois jornais importantes da época foram o Journal des Savants e o Mercure. (ALBERT, P. e F. TERROU. História da Imprensa. São Paulo, Martins Fontes, 1990.)

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sirva quente. É principalmente no corte que se reconhece o verdadeiro folhetinista, meu senhor. É preciso que cada número cais bem, que esteja amarrado ao seguinte por uma espécie de cordão umbilical, que peças, desperte o desejo, a impaciência de se ler a continuação. Falava-se em arte ainda há pouco; esta é a arte. É a arte de fazer deseja, de se fazer esperar. E se o senhor puder colocar esse leitor entre uma assinatura e outra, ameaçando os pagadores atrasados de deixarem de saber o que acontece com o herói favorito, acontecerá então o mais belo sucesso da arte.(Louis Reybaud, apud Meyer:1996:49)

Com esta estrutura e algumas mudanças, o jornal conquistou o público e vendeu

muito. Em 1848, praticamente desaparecem os folhetins, por ordem de Napoleão

Bonaparte, mas ressurge em 1956. Volta renovado, com a concorrência do outro modo

de ficção, o fait divers.

O fait divers, que tem origem na oralidade, é a página que nunca envelhece, causa

espanto mesmo depois de muito tempo. Entretanto, à época das primeiras publicações,

tanto este quanto o folhetim mantém preso o leitor aos jornais. O fait divers é a vida

romanceada e o folhetim é o romance da vida. Estes dois gêneros tão próximos

ofereciam às classes populares mortes, desgraças, catástrofes, sofrimentos e notícias. “É

chegada a hora em que melodrama, fait divers, folhetim se entrelaçam numa

‘democratização’ do crime e dos criminosos” (MEYER, 1996:264).

No Brasil, não foi muito diferente o percurso dos folhetins. Ele aparece em 1838,

com a publicação de O capitão Paulo, de Alexandre Dumas. Entre 1839 e 1842, a

publicação de folhetins é, praticamente, diária. Com quatro meses de diferença, é

publicada, no Jornal do Comércio, a tradução de Os mistérios de Paris,de Eugène Sue,

tamanho é o sucesso desse gênero. Este fenômeno se estende a todos os jornais. Com

algumas modificações, posteriormente, favoreciam as vocações literárias.

A ressignificação do gênero e a folhetinização da informação.

Em meados do século XX, no Brasil, começam a predominar, nas estruturas

narrativas jornalísticas, a estrutura norte-americana, em que era priorizada o lead e a

maior objetividade possível na redação dos fatos.

Assim, o jornalista devia redigir a notícia com uma linguagem clara, objetiva,

conciliar o registro formal e o coloquial; evitar adjetivos e aferições subjetivas, ser

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impessoal, busca de enunciados mais referenciais, procurar responder ao lead, etc.

(LAGE,1985)

O jornal moderno vai tentar combinar esta estrutura norte-americana à fórmula folhetinesca e cria a “folhetinização da informação”. Esta forma de apresentar a notícia tornou muito tênue a fronteira entre a imprensa marrom e os jornais “sérios”. Uma informação que apazigua e suscita a curiosidade de um público que gosta do excesso melodramático, além das técnicas do folhetim: fragmentação/corte que mantém a expectativa no leitor e faz desse processo uma técnica mercadológica.

A folhetinização da notícia tem relação muito próxima ao fait divers. Segundo

Marlyse Meyer, “o fait divers é uma notícia extraordinária, transmitida de forma

romanceada, num registro melodramático, que vai fazer concorrência ao folhetim e

muitas vezes suplanta-lo nas tiragens.” (1996:98). Ela acrescenta,

“O conceito de fait divers tem dois sentidos: um jornalístico, de categoria de informação, o outro, costumeiro e público, que visa os próprios fatos, na sua realidade. A expressão fait divers não designa portanto somente uma atividade de distribuição das notícias de um jornal, ou um tipo de informação, mas também, com uma conotação explicitamente pejorativa, uma categoria particular de acontecimentos.” (Meyer:1996:98)

Este tipo de narrativa jornalística refere-se às mais diferentes notícias que

correm pelo mundo: pequenos escândalos, acidentes de carro, crimes hediondos,

suicídios de amor, naufrágios, incêndios, inundações, etc.

A página do fait divers nunca envelhece, porque relatos de crimes e outras

tragédias são narrativas da causalidade, do inesperado, construídas para provocar

espanto no leitor, basta reler algumas matérias como O crime da Mala (set/1908)7 ou

do Maníaco do Parque8 .

Essa estrutura modernizada é o que tem sido veiculada nos diferentes “notícias

populares”, em “cotidianos” dos jornais “sérios”. A repetição , a seqüencialidade, os

7 Notícia veiculada em 02 de setembro de 1908, no jornal O Estado de São Paulo. Fonte: Nosso Século, V. I, Editora abril, p. 63. O jornalista narra o fato do ponto de vista de Miguel Traad, ou seja, em primeira pessoa. É a história desse imigrante árabe de Beirute que, aos 23 anos, enforcou e esquartejou o corpo de seu antigo patrão Elias Farhad. Ele alegou vingança, mas confessou posteriormente que o antigo patrão atrapalhava sua relação com a esposa da vítima. 8 Fato veiculado em fevereiro de 1998 e meses seguintes. As notícias relatavam os crimes do motoboy, Francisco de Assis Pereira, considerado um serial killer paulista, que violentava e matava mulheres no parque do Estado, região sul de São Paulo. Fonte: Folha de São Paulo.

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dados ou informações não comprovadas ainda são ganchos que mantém o leitor preso à

notícia.

Outros pontos em comum, segundo Marlyse, “são o patético das situações e dos

personagens, o gosto pelo excesso melodramático, os contrastes.” Até o leitor culto lê

meio escondido no ônibus, no metrô, por cima do ombro do vizinho.

“A narrativa do fait divers visa essencialmente provocar reações subjetivas e passionais no leitor-ouvinte. Tende a abolir a distância que o separa do acontecimento e dar-lhe a ilusão de que participa ele próprio da ação. Funcionando como um romance, o relato desse tipo de acontecimento convida o leitor a participar por meio da imaginação (grifo meu) das situações descritas e a se identificar com os personagens cujas aventuras acompanha (...) ele estabelece com nosso inconsciente relações que refletem nossa própria ambivalência (...) é um lugar de exercício do imaginário.” (Meyer:1996:100)

A narrativa, seja ela ficcional, factual, escrita ou oral, está presente no cotidiano.

O estudo deste gênero nos leva a refletir como seus padrões evoluíram e hoje se pode

fazer uma analogia entre narrativas ficcionais e as não ficcionais. Especificamente, as

narrativas jornalísticas.

Os jornais, além das reportagens, comentários, ensaios, têm como unidade

primordial veicular informações por meio das notícias, que possuem uma estrutura

similar à ficção, à medida que, através do lead, respondem às perguntas básicas deste

tipo de construção informativa. Ao respondê-las, temos uma narração objetiva que não

foge ao paradigma ficcional, observando as diferenças. Assim, a prática jornalística

privilegia a chamada atualidade, que, ritmada pelo tempo, acaba por se tornar

fragmentos de histórias reais. Outro aspecto essencial nesta atividade é o factual, que

juntamente com a atualidade têm sido a “razão de viver”9 nas redações. Essas

“ferramentas” são a base da atividade jornalística.

Entretanto, na última década do século passado, houve um segmento na

produção jornalística que têm se pautado na tentativa de explicar a realidade, ou seja,

procura ocorrências fora do fato em si. Não há somente uma preocupação em transmitir

9 Edvaldo Pereira Lima refere-se a este termo, ao argumentar sobre as transformações que o jornalismo, no final do século, tem apresentado. Em “O Jornal-laboratório Revelação e a humanização da narrativa jornalística”, ABMES Cadernos 4, Universidade de Uberaba, Minas Gerais.

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o acontecimento, mas construí-lo, muitas vezes, de maneira a transformar a notícia em

espetáculo para atrair a atenção do leitor. Esta escrita jornalística que vende pelas suas

manchetes “atraentes” e, por vezes, metafóricas, agrada uma parte do público que vê

nesta narrativa uma tomada de posição, justiceira talvez, por parte do profissional ou da

empresa jornalística.

Alguns fatos da vida real confundem o receptor quanto à informação jornalística.

A morte da Princesa Diana10 é um exemplo, outros como de um motoboy ou “o maníaco

do parque”11, que após ser preso recebe cartas de amor de algumas mulheres; do

jornalista Pimenta Neves12 que matou sua namorada, também jornalista, Sandra F.

Gomide; e até mesmo o episódio de a atriz Regina Duarte13 ter se posicionado, em rede

nacional, contra Luís Inácio Lula da Silva, candidato à Presidência da República, numa

fala comovida pela TV e até fatos internacionais, verdadeiras tragédias que chocaram o

mundo como o atentado a Nova York14 , ocorrido em 11 de setembro de 2001, a

tragédia que surpreendeu e matou milhares de pessoas na Àsia15, em 26 de dezembro de

2004, entre tantos outros fatos que fizeram e fazem das notícias relatos dramatizados e

narrados (quase?) como ficção.

O tema do melodrama e a forma de relatar as notícias, como em folhetins16 é

apresentada em jornais que não possuíam a característica de folhetinizar a notícia.

10 Separada do Príncipe Charles, ela morreu dia 31 de agosto de 1997, em Paris.

11 Já mencionado anteriormente, o caso foi veiculado, por todas as mídias, em fevereiro de 1998 e meses seguintes. (vide nota de rodapé 86).

12 Fato ocorrido em 20 de agosto de 2000, veiculado por várias mídias. Pimenta Neves, 63 anos, diretor de redação de O Estado de São Paulo, tem seu relacionamento amoroso rompido por sua namorada Sandra Gomide, 32 anos, também jornalista da mesma empresa. Ele não aceita o afastamento da companheira e em um Haras localizado em Ibiúna, São Paulo, depois de discutir com a jovem, matou-a com dois tiros.

13 Fato veiculado no Jornal da Tarde, em 20 de outubro de 2002, em forma de fotonovela.

14 Fato ocorrido em 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos da América. Dois aviões são desviados por terroristas e se chocam contra a Torre Sul e a Torre norte do World Trade Center, respectivamente.

15 Fato ocorrido em 26 de dezembro de 2004, domingo. Um tremor foi registrado na Ilha de Sumatra, na costa da Indonésia e que se estendeu também a outros países do sudeste da Ásia e leste da África. O fenômeno ficou conhecido por tsunami que gera ondas gigantes e provocou milhares de mortes.

16 José Ramos Tinhorão, “os romances-folhetim, ou de folhetim, como passariam a ser chamados a partir da década de 1840, vinham representar no Brasil – repetindo o que acontecera na França – uma abertura dos jornais no sentido da conquista de novas camadas de público, principalmente feminino...” (1994:13)

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Jornais que possuem credibilidade junto ao público, mas que, ao veicular o fato, vêem

uma possibilidade de concorrência com as mídias eletrônica e digital, pois estas são

mais rápidas e objetivas e não há tempo para elaboração de mensagens mais

aprofundadas, até porque não é este o objetivo desses veículos.

A folhetinização da informação parece anunciar praticamente a tônica da informação de hoje, que já não separa o público do privado e tornou muito tênues as fronteiras entre imprensa marrom e imprensa ‘séria’. Uma informação que apazigua e suscita a curiosidade de um público para quem o ‘excesso’ visceral do melodrama sempre foi natural (Meyer: 1996:225-226)

O folhetim é a grande matriz do pejorativo e é um recurso indispensável da

grande narrativa de massa. Esse amálgama delirante entre o relato melodramático do

cotidiano e a ficção faz aguçar o imaginário popular e conecta o público à metáfora da

oralidade cultural com a escrita jornalística.

Esse reencontro faz a “fórmula consagrada outrora” se multiplicar e migrar para

outras mídias, sempre utilizando o modelinho: “desgraça pouca é bobagem”. Eficiente

no jornalismo impresso, fez sucesso também nas fotonovelas, e no rádio.

As radionovelas, tardiamente introduzidas no Brasil (Ortiz: 1989), tiveram

grande audiência, pois além do paradigma impresso, soube aproveitar o suporte da

sonoridade. Vozes que fizeram o público parar diante do aparelho. Mas a fórmula do

“desgraça pouca é bobagem” atinge seu paroxismo na televisão. A telenovela também

tem como fundamento o folhetim. Associando a experiência do rádio, a telenovela,

paulatinamente, conseguiu desenvolver e aprimorar o trabalho de expressão corporal

associado às vozes dramatizadas.

A TV parece aquietar as angústias e acalmar nossas ansiedades. Os dramas, as

notícias que nela são veiculados aguçam o imaginário social.

“Ninguém espera encontrar informação de grande profundidade nem alta cultura na TV. Contudo, a TV é um mosaico tão incrível que obriga as pessoas a perceber que existem muito mais relações no mundo do que elas poderiam imaginar. Com isso, ela acrescenta lucidez ao telespectador.Sempre.” (Pignatari, 1995:216)

Ainda citando Pignatari:

A televisão é, antes de mais nada, um veículo de cultura. Fascinante, porque soma duas coisas de maneira poderosa: informação e

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entretenimento. Ela é um olho que faz a leitura do mundo, acompanha a vida a toda hora. Basta ligar o botão para ter a leitura do mundo que ela está fazendo. E isso para milhões de pessoas. Por isso ela quantifica, atualiza, estabelece uma média e influencia o comportamento de milhões de pessoas.” (1995:212)

A televisão é mediatizada pelas narrativas. Quase tudo em TV é narrativizado: é

um contar o jogo, os fatos cotidianos, por meio do telejornal, é o relatar os dramas, nas

telenovelas, nas publicidades, etc., ou seja, a televisão possui uma linguagem narrativa

na sua essência.

Este narrar tem origem no folhetim. Muito utilizado em telenovelas, atualmente

tem sido paradigma de vários tipos de programação e tem feito muitos receptores.

Também nos programas jornalísticos, em que a regra é veicular o fato com a maior

objetividade possível, a a folhetinização da notícia, tem sido amplamente incorporada.

Essa vertente das dramatizações podem ser comprovadas em programas como

Globo Repórter, veiculado pela Rede Globo, ao transmitir casos que chocam o país.

Algumas fatalidades são narradas de forma folhetinesca. É o fait-divers televisual.

Um exemplo marcante foi a morte da atriz Daniela Perez, ocorrida em dezembro

de 1992, em que o apresentador Celso Freitas, intercala fatos da vida real da atriz a

cenas de Yasmin, personagem de Daniela Perez na novela De corpo e Alma, de Glória

Perez, veiculada em 1992 e início de 1993.

Este fato também foi veiculado de forma dramática pelos jornais impressos.

Como a atriz estava atuando na telenovela e seu par romântico fora acusado de sua

morte, o jornal Folha de São Paulo noticiou o crime de forma a unir fato e ficção, “um

drama da vida real”.

O programa televisual e também o jornal impresso, para relatar a morte da atriz,

utilizaram toda a estrutura do fait divers, relatava os fatos de forma melodramática e

conseguiram uma audiência alta, ou no caso da imprensa escrita, uma vendagem maior.

A manchete estampada no Caderno Cotidiano da Folha de São Paulo de 30 de

dezembro de 1992, por exemplo, confirma a audiência:

Crime passional bate renúncia de CollorNas ruas de São Paulo, assassinato da atriz Daniela Perez é mais comentado que a

mudança de presidente.

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Outro programa marcante17 foi a morte de Ayrton Senna, fato ocorrido em 1° de

maio de 1994. Todas as mídias noticiaram o ocorrido de forma dramatizada. Com isso,

reescreveram a história, conservando a idealização do herói romântico. A audiência foi

inevitável, não só pela morte trágica do piloto, mas pela transformação do homem em

herói.

Linha Direta, também veiculado pela Rede Globo, é outra produção que

combina o fato jornalístico, entrevistas, simulações apresentadas por atores, ficção

portanto, e o drama cotidiano. A produção do programa deixa claro, por meio de

créditos, que o que se vê pela tela é a simulação do fato, mas acontecimentos cotidianos,

recentes ou não, tornam-se relatos convertidos em dramatizações com a voz do

apresentador.

Sem entrar no mérito de uma análise sob o ponto de vista ético, e até mesmo do

sensacionalismo e o espetáculo da notícia, que não é o objetivo aqui, alguns programas,

transmitidos ao vivo diariamente, como o Cidade Alerta, da Record, Repórter Cidadão,

da Rede TV!, Brasil Urgente, da Rede Bandeirantes, veiculam fatos do cotidiano e

procuram vencer a guerra da audiência no horário dramatizando as informações.

Apresentá-los desta forma é um resgate da narrativa do fait-divers,

evidentemente com os exageros da linguagem verbal e os excessos gestuais dos

apresentadores, que para “prenderem” ainda mais a atenção do público contam ainda

com as pesquisas que atestam a sensibilidade do telespectador em relação ao fato que

está sendo veiculado.

A folhetinização da informação é espetacular: as grandes catástrofes se tornam

quase cinematográficas, o crime é romanceado, o processo é teatral, novelesco. A

analogia com sua origem folhetinesca é tamanha e o espetáculo da notícia é tanto que já

não se sabe mais se “a vida imita a arte” ou a arte imita a vida”.

Narrativizar a vida de algumas celebridades e mesmo de pessoas comuns tem

sido a tônica do jornalismo contemporâneo, que processa códigos que desencadeiam

uma proximidade com estas celebridades a ponto de as pessoas vivenciarem seus

dramas.

17 Programa Globo Repórter, veiculado em 06 de maio de 1994, pela Rede Globo de Televisão.

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O Jornalismo, aproveitando a emoção que fatos dramáticos causam nos leitores,

produz matérias durante alguns dias. Evidentemente, esta técnica de sedução pelas

histórias cotidianas não é recente, conforme já o dissemos. O jornalismo contemporâneo

recodifica, portanto, códigos que já foram muito utilizados no início de sua história. A

folhetinização da informação é um elemento resgatado da cultura, porque, mais que

veicular os fatos, compartilha com seus leitores histórias da vida em fatias, em

fascículos.

Referências Bibliográficas:

ALBERT, P. e F. TERROU. História da Imprensa. Trad. De Edison Darci Heldt. São

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