José Dias Sobrinho

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  • Avaliao, Campinas; Sorocaba, SP, v. 18, n. 1, p. 107-126, mar. 2013 107

    EDUCAO SUPERIOR: BEM PBLICO, EQUIDADE E DEMOCRATIZAO

    EDUCAO SUPERIOR: BEM PBLICO, EQUIDADE E DEMOCRATIZAO

    Jos Dias sobrinho*

    *Doutor em Educao pela Universidade Estadual de Campinas. Professor titular do programa de Ps-graduao em Educao da Universidade de Sorocaba, SP, Brasil. E-mail: [email protected]

    Resumo: A educao um bem pblico, imprescindvel e insubstituvel, direito de todos e dever do Estado. dever do Estado criar e oferecer condies efetivas para que isto se realize com a amplitude, a qualidade e a sustentabilidade necessrias e adequadas. Sendo bem pblico, a educao deve ser de qualidade. Esta a base da discusso sobre democratizao e polticas afirmativas. Por sua vez, a democratizao e as polticas afirmativas da educao superior, como partes de um movimento muito mais amplo, impem discutir um conceito de qualidade social, vinculado pertinncia, em contraposio a conceitos cientificistas e definies comprometidas com o mercado. Uma instituio educativa tem compromisso com o fortalecimento da democracia e deve ela mesma exercitar em seu cotidiano os contedos e formas da vida democrtica. No so muito precisos os limites do pblico e do privado, nem h consensos firmados sobre suas consequncias na educao superior. Por isso necessrio discuti-los. De modo especial, importa examinar os limites e impactos da incluso na educao superior de grupos tradicionalmente excludos, em razo das escassas possibilidades de escolha de cursos de alto valor social e econmico, assim como as condies de permanncia e de concluso com qualidade e boas perspectivas de empregos. A incluso desses grupos sociais vem acompanhada de sentimentos de ganhos e perdas. Cumpre uma essencial funo social de incluir contingentes de indivduos tradicionalmente excludos, mas tambm pode estar contaminada por um fenmeno que pode ser chamado de excluso por dentro do sistema educativo. Algumas das principais concluses deste texto consistem em afirmar que a democratizao da educao superior deve fazer parte da democratizao da sociedade e da promoo da justia social; no se restringe ampliao do acesso, mas tem a ver com qualidade, pertinncia e relevncia social; alm disso, a melhora da qualidade da educao superior est vinculada ampliao e elevao qualitativa de todo o sistema educativo e, mais amplamente, de transformaes estruturais da sociedade. Portanto, de responsabilidade coletiva.

    Palavras-chave: Educao superior. Democratizao. Pertinncia. Incluso/excluso

    HIGHER EDUCATION: PUBLIC GOOD, EQUITY AND DEMOCRATIZATION Abstract: Education is a public good, indispensable and irreplaceable, a right of everyone and a duty of the

    State. It is the duty of the State to create and offer effective conditions to achieve this, with the essential and appropriate amplitude, quality and sustainability. As a public good, education must be of quality. This is the basis of discussion about democratization and affirmative policies. In turn, democratization and affirmative policies of higher education, as part of a much wider move-ment, impose the discussion of a concept of social quality, related to relevance, in opposition to scientific concepts and definitions committed to market. An educational institution is committed to the strengthening of democracy and must practice daily the contents and forms of democratic life. The limits of the public and private realms are not very precise and there is no established consensus about their consequences in higher education. Therefore it is necessary that they be discussed. In a special way, it is important to examine the limits and impacts of inclusion in higher education of traditionally excluded groups, due to very few possibilities of choice of programs with high social and economic value, as well as conditions of permanence, conclusion with quality and good employment prospects. The inclusion of these groups is accompanied by feelings of gains and losses. It serves an essential social function of including contingents of people traditionally excluded, but also it can be contaminated by a phenomenon that can be named exclusion into the education system. Some of the main conclusion of this text is to affirm that democratization

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    of higher education must be part of the democratization of society and the promotion of social justice; it is not restricted to the increase of access, but it also relates to quality, pertinence and social relevance; in addiction, quality improvement of higher education is linked to qualitative increase of the education system as a whole and, more widely, to the structural transformation of society. It is, therefore, a collective responsibility.

    Key words: Higher education. Democratization. Relevance. Inclusion/exclusion.

    INTRODUOA democratizao da educao adquiriu centralidade na agenda das polti-

    cas pblicas dos Estados, nos programas dos organismos multilaterais e nos movimentos sociais de diferentes matizes e de distintas partes do mundo. A meta mais relevante dessa agenda a expanso da escolaridade da populao em geral. Desde meados do sculo passado, a teoria do capital humano e a teoria residual do desenvolvimento postulavam a importncia da educao como fator decisivo do desenvolvimento econmico. As vises atuais da de-mocratizao da educao em termos da expanso da escolarizao, desde a superao do analfabetismo at o acesso aos mais elevados nveis superiores de ensino e pesquisa, tambm conferem educao a importante funo de motorizar a economia.

    Estado e mercado tendem atualmente a se identificar no essencial a respeito das demandas e indues da funcionalizao econmica da educao e impem um conceito instrumental democratizao. Se levado s ltimas conseqn-cias, o mercado que busca a qualquer preo impor sua primazia sociedade global no se peja em descartar, por inteis e imperfeitos, os indivduos com baixa capacidade de produzir e de consumir. Para o mercado, quanto mais gente escolarizada, resguardados os limites e graus coerentes com a organizao do mundo econmico, melhor para a produo e para o consumo.

    A economia capitalista globalizada, ao organizar a sociedade mundial, de-termina a distribuio da quantidade e da qualidade da escolarizao, de acordo com as necessidades e especificidades dos empregos, dos servios, da produo, da circulao e consumo dos produtos. Determinadas pela economia, as escolas deveriam funcionar, em grandes traos, da seguinte maneira: para setores mais exigentes da economia transnacional, formao de elites intelectuais e profis-sionais capazes de estar em dia com as inovaes da tecnologia; para postos de trabalho menos exigentes e que fazem parte da vida cotidiana da grande maioria dos membros de uma sociedade, bastaria capacitao quantitativa e qualitativamente suficiente e ajustada ao exerccio profissional.

    O que este texto vai defender com primazia que a educao no pode reduzir-se a servio do mercado e tampouco a democratizao h de se limitar

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    a expandir quantitativamente a escolarizao to somente para impulsionar o desenvolvimento econmico. bvio que a educao essencial para o desenvolvimento da economia e esta fundamental para a construo de uma sociedade forte e evoluda. Mas as finalidades da educao vo muito alm da economia. O essencial neste aspecto que a educao contribua para que o desenvolvimento da economia e da prpria sociedade se proceda respeitando o princpio democrtico do bem comum. Costuma haver muita distncia entre princpio e realidade. foroso reconhecer que o valor moral de um princpio frequentemente se choca com variados e contraditrios interesses em disputa nos grupos humanos e dificilmente se realiza nas tramas do cotidiano social. De todo modo, no se pode esquecer que a educao busca a construo do presente e do futuro, e outra coisa no pode ser que a construo de um presente e de um futuro melhores para todos.

    BEM PBLICO E DIREITO SOCIAL: PRINCPIO E REALIDADEEducao um bem pblico e direito social, pois tem como finalidade

    essencial a formao de sujeitos e, por consequncia, o aprofundamento da cidadania e da democratizao da sociedade. O conceito de bem pblico aqui entendido como um princpio, isto , como um imperativo moral que sobrepe a dignidade humana aos interesses, inclinaes e circunstncias individuais. O individualismo corresponde ao entendimento de que os outros so meros meios para os interesses prprios. Diferentemente, o respeito dignidade humana corresponde ao princpio que concebe o outro (e a humanidade) como fim, no meramente um meio. O respeito dignidade humana justifica a prevalncia do bem comum sobre as convenincias individuais. O pblico corresponde a uma concepo moral do bem comum. Trata-se de um valor moral, que mais comumente se situa nos planos dos ideais, mas muito escassamente realizado na vida dos indivduos e das sociedades, como tantos outros princpios. Embora pouco efetivamente praticado como valor moral, o princpio da prevalncia do bem pblico sobre os interesses privados no deve perder sua centralidade nos projetos e estratgias de sociedades que buscam construir futuros mais felizes e mais justos.

    Educao como bem pblico essencial para a formao de cidados cons cientes e, correlativa e inseparavelmente, de profissionais qualificados. Formao cidad e capacitao profissional so aspectos co-essenciais, mutua-mente referenciados e solidariamente constitutivos do sujeito social. Cidados-profissionais tica e tecnicamente responsveis e qualificados so os principais

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    atores do fortalecimento econmico e, inseparavelmente, do desenvolvimento da nao. Nessa concepo, a economia uma dimenso essencial da vida humana, mas no a razo de ser da sociedade. Ao contrrio, a sociedade, guiada pelo valor moral do bem comum, que a deve determinar.

    Discutir a educao como bem pblico e, ento, como direito social, faz parte do reconhecimento da grande responsabilidade que as Instituies de Educao Superior (IES) tm relativamente formao tica, cientfica e tcnica dos indivduos no marco da construo da sociedade. Os fins da educao com sentido pblico esto referidos formao de indivduos sociais, cuja construo pessoal integral se insere no plano mais amplo da construo da sociedade e, em termos universais, da dignificao da humanidade.

    Entre princpio e realidade pode ser grande a distncia. A ideia, ou ideal, de edificao da humanidade como escopo da educao no se coaduna com a lgica da mercantilizao da vida humana, em geral, nem da mercadorizao da educao, em particular. preciso refletir um pouco mais sobre esse tema, pois os sistemas de educao superior esto se tornando cada vez mais privatizados, e isso poderia produzir uma crescente mercadorizao da formao e dos con-hecimentos. Entretanto, cumpre alertar que mercadorizao e privatizao no so necessria e exatamente a mesma coisa. Condenvel a mercadorizao da educao, isto , a transformao da educao, assim como de muitas out-ras atividades humanas, em meros produtos comerciais, commodities sujeitas s leis e normas dos mercados. Instituies educativas privadas, nos termos amparados e exigidos pela Constituio nacional, so legtimas e necessrias, desde que, sob a autoridade superior do Estado, cumpram com qualidade os objetivos pblicos que so da essncia da educao.

    Lamentavelmente, para muitas instituies privadas, sobretudo as mais recentemente criadas, a educao primordial e quase exclusivamente um em-preendimento em funo de uma progressiva e ilimitada acumulao de capital econmico. Como tendncia geral e ressalvadas poucas e boas excees, alm dos ganhos financeiros de seus proprietrios, essas instituies contribuem quase exclusivamente para a intensificao do individualismo possessivo, pouco ou nada se lhes dando o respeito ao princpio da dignidade humana. Nesse caso, a educao mercadoria, e no patrimnio pblico. O outro visto quase somente como concorrente a ser vencido, e o conhecimento e a formao fazem parte somente dos processos de maximizao dos lucros privados e da ideologia que confere primazia ao individual em detrimento do social.

    Mas nem toda instituio educativa privada mercantilista e trata o conhe-cimento como mera mercadoria. Afortunadamente, h muitas instituies no

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    estatais, especialmente as que se incluem no que hoje se convencionou chamar de terceiro setor do pblico no estatal, que cumprem bem os propsitos de socializao dos fins educativos e prestam importante colaborao ao Estado e sociedade civil. Natureza jurdica, enquadramento administrativo, origem do financiamento, gratuidade ou no da matrcula so elementos importantes para se fazer as distines entre pblico e privado, mas no do conta da complexidade desse fenmeno. As concepes de pblico ou de privado tm muito mais a ver com as finalidades estabelecidas pela instituio educativa, explicitadas ou no, se predominantemente dotadas dos valores do bem coletivo ou primordialmente orientadas aos interesses individuais, e, coerentemente, com os processos que se instauram visando ao cumprimento desses objetivos.

    Embora isso no seja uma exclusividade delas, nas instituies mais iden-tificadas com o sentido do bem comum que se produzem e se socializam partes significativas dos conhecimentos potencialmente capazes de dar respostas a muitos problemas contextuais, e nelas que se forma importante parcela dos atores que tero grandes responsabilidades na construo da vida pblica de uma nao. Isto j justifica insistir na tomada de posio inicial, reiteradamente afirmada ao longo das presentes argumentaes: segundo o princpio do bem pblico, a educao no pode ser entendida como mercadoria, nem tampouco o sistema educativo poderia acolher as prticas exclusivamente mercantilis-tas e de acumulao de lucros. Esta afirmao de princpio, na contramo da crescente mercantilizao, implica todas as instituies. Sejam propriedades privadas ou mantidas pelo poder pblico, as instituies educativas tm funes e finalidades pblicas que no deveriam ser negligenciadas.

    A defesa da educao superior como bem pblico vem sofrendo severos gol-pes desde as ltimas dcadas do sculo passado. O neoliberalismo se consolidou globalmente como cosmoviso que determina a racionalidade da sociedade. Com apoio ideolgico e financeiro de organismos multilaterais foram formula-das e postas em prtica vrias estratgias de reforma da educao superior com o objetivo principal de aliviar a responsabilidade e a participao do financia-mento pblico e alimentar a expanso das empresas privadas mercantilistas. Os argumentos mais comumente esgrimidos pelos defensores da privatizao e da mercantilizao, com a anuncia dos governos, so bastante conhecidos em vrias partes do mundo: as universidades so inoperantes, corporativistas, demasiadamente onerosas, resistem a prestar contas sociedade, so avessas accountability, no atendem s necessidades da indstria e da populao em geral etc. Mesmo admitindo que nem tudo so flores nas instituies de educao superior e que mais e melhor elas poderiam fazer, como em todos os

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    demais setores da vida social, no se pode deixar de reconhecer o lugar central que elas ocupam nas sociedades mais evoludas.

    Instituies privadas existem h muito tempo, no Brasil. Mas nos ltimos decnios prolifera um tipo novo, com objetivos explcitos de mercado. A priva-tizao de cunho mercantilista o fenmeno mais robusto das transformaes que vm ocorrendo na educao superior brasileira. Ela acarreta mudanas conceituais importantes que no s alteram as formas organizacionais; tocam a essncia mesma da educao, que se refere s misses e finalidades. Na linha da mercantilizao da sociedade e da educao superior, a formao do sujeito autnomo e consciente de suas responsabilidades na construo da sociedade j no o escopo mais amplamente reconhecido. O cidado a cedeu lugar ao consumidor, a solidariedade e a responsabilidade social perderam valor para a competitividade.

    Na cosmoviso neoliberal, educar e formar tendem a ser, principalmente, prover aos consumidores da educao maior capacidade competitiva e maio-res possibilidades de sucesso individual. Para isso, j no servem a pedagogia tradicional, nem as antigas formas organizativas; agora so requeridas lgicas de mercado para maximizar a produtividade e assegurar a sustentabilidade das instituies educativas transformadas em empresas, por meio da proliferao de mecanismos de venda de servios, diversificao de provedores, critrios de custo-benefcio, instncias de captao de recursos externos, ampliao dos mecanismos de relao com as empresas etc.

    O conhecimento efetivamente cria novas possibilidades de desenvolvim-ento para os indivduos e para os pases. Mas no se h de esquecer que, na vigente cosmoviso da sociedade da economia global, a produo, a aquisio, a distribuio e o uso dos conhecimentos esto predominantemente associados a interesses da maximizao da competitividade das empresas, comumente su-pranacionais, e ao egocentrismo possessivo. Se assim , no contribuem para a equidade, a isonomia e a qualidade de vida de todos os membros da sociedade.

    Segundo as atuais tendncias hegemnicas, a educao deve estar a servio da produo e do consumo dos conhecimentos e das competncias como estrat-gia de aumento da competitividade mercadolgica, em detrimento da formao humana integral e da construo de sociedades democrticas. O educando se transforma em consumidor de um servio educacional e de um produto - o conhecimento - e o cidado tratado como um recurso humano enredado na relao produo-consumo.

    inovao tecnocientfica, concebida como fora motora do pro-gresso, dado lugar de destaque no mundo da produo intelectual e

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    econmica. Para universidades, indstrias e governos, a inovao cient-fica e tecnolgica a mola propulsora do desenvolvimento sustentvel, do progresso e da insero internacional dos pases. Mas nem toda inovao que vige atualmente nas universidades e outras instituies de pesquisa se orienta por valores do bem viver pblico, solidrio e tico. Em graus variveis e em grande parte, a inovao, tal como praticada nessas instituies, costuma estar mais comprometida com a competitividade da economia de mercado que com o desenvolvimento igualitrio da socie-dade. Ela tem sido dominada por lgicas comerciais e financeiras e no pelos interesses do mundo do trabalho e da sociedade civil (PETRELLA, 2005, p. 95). mais propriamente mecanismo de competitividade que ferramenta social.

    Aumentar a competitividade corresponde a ter sempre mais e mostrar-se melhor que os outros, em detrimento dos valores da coletividade social. Essa inovao qual hoje pensada e praticada em algumas insti-tuies acadmicas de grande prestgio funciona, ento, como motor da competitividade, tanto na relao capital-capital (capitalista contra seus concorrentes), como na engrenagem capital-trabalho (relao entre patro e empregados). Por isso bastante valorizada por empresrios e por universitrios simpticos ideologia que impe educao superior o papel essencial de contribuir para o aumento da competitividade do setor produtivo e da insero ativa das empresas no mundo da econo-mia globalizada. Em casos extremos, pouco valem os ideais da coeso social e da dignidade humana de todas as pessoas, mas muito valem o desenvolvimento das empresas e o aumento dos indicadores do produto interno bruto do pas.

    RESPONSABILIDADE DO ESTADO E DA SOCIEDADE Um bem pblico da esfera da solidariedade e da responsabilidade de to-

    dos, conformando o capital comum e imprescindvel para a existncia humana individual e coletiva. Sendo a educao e o conhecimento direitos humanos e sociais insubstituveis e primordiais para a vida humana, somente os poderes pblicos podem ser responsveis por eles, em termos de regulamentao, legis-lao, superviso, controle, proteo, avaliao etc. (PETRELLA 2005, p. 158). Mas a responsabilidade do Estado deve se dar em um contexto de solidarie-dade. Implica a participao da cidadania, isto , de atores que assumem suas responsabilidades no somente por si, mas tambm pelo conjunto da sociedade.

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    Lembra Petrella que a palavra solidariedade provm do latim solidus, princpio jurdico que indica que os membros de um grupo so responsveis em conjunto pelas aes dos outros membros.

    Um bem privado comercial da esfera da competitividade e da exclu-sividade. Para que o privado seja assegurado como propriedade particular, preciso excluir os possveis concorrentes. A sociedade impregnada pela ideo-logia da competitividade tem em alto valor expresses como produtividade, eficincia, efetividade, controle, previsibilidade, gesto, empreendedorismo e outras da esfera da economia. A ideologia expressa por essas palavras-chave se extravasa das empresas e invade todas as dimenses da sociedade. Nas instituies educativas comprometidas com a ideologia da competitividade segundo os moldes empresariais, a formao passa a ter como valor central a produo do indivduo-competidor e como horizonte a derrota dos demais concorrentes.

    Os bens pblicos, por serem parte essencial do direito que todos tm vida digna e saudvel, precisam ser universalmente acessveis e no podem ser tomados como mercadoria. Ao Estado cumpre, entre outras responsabili-dades, proteger e promover a educao e o conhecimento como bens pblicos. Isto no exclui a legtima possibilidade de existir instituies educativas no estatais, e muitas delas prestam excelente colaborao para a construo de uma sociedade educada e de um sistema de conhecimentos importantes para a cidadania em geral. O importante a que essas instituies no privatizem o que por natureza pblico, caso em que a formao e o conhecimento sejam oferecidos como produto de carter privado e comercial e no como um direito humano e social imprescindvel ao bem comum.

    Enquanto os bens privados implicam competitividade e excluso, os bens p-blicos se baseiam nos princpios de equidade, solidariedade e incluso. Quando alguns indivduos so proprietrios de algum produto comercial, isso implica necessariamente que outros no o sejam; a apropriao de um bem privado se faz em contexto de competio. O acesso de algum a um bem pblico no exclui o direito de outros; pelo contrrio, uma sociedade se enriquece medida que mais cidados tm acesso aos bens pblicos de qualidade. Sociedade bem constituda a que conformada por cidados cultos, capacitados e cnscios de suas responsabilidades sociais. A educao (incluindo os conceitos de formao humana integral e conhecimento) essencial, por isso mesmo, primordial e insubstituvel para a elevao do esprito humano e para o desenvolvimento da economia, esta enquanto estrutura e organizao das condies materiais da sociedade.

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    H, ento, uma distino fundamental entre a educao-bem pblico e educao- mercadoria. Enquanto a primeira tem como referncia central o aprofundamento do bem comum segundo valores da equidade e da igualdade democrtica e social, a segunda tem seu foco no lucro do empresrio e no de-senvolvimento de uma sociedade competitiva e dominada pelo individualismo possessivo. Sociedade constituda por indivduos que competem entre si pela posse de bens particulares sociedade partida, injusta e violenta. Sociedade cimentada pela valorizao dos valores sociais e pelo ideal do bem comum tende a ser mais coesa e fortalecida, embora jamais isenta de contradies e conflitos. Pensar a educao, o conhecimento, a formao humana integral como essenciais ao contexto do viver bem em sociedade, ou, ao menos do viver menos confli-tuoso, implica, ento, reconhecer o importante papel das instituies educativas relativamente formao dos jovens para a participao ativa na construo e na prtica da imprescindvel democracia e, inseparavelmente, da difcil paz.

    Educao democrtica implica expanso da cobertura, justia social, quali-dade cientfica e relevncia social para todos. So exigncias ticas e polticas que se requerem da educao pblica, alm de tcnicas e cientficas, pois so essenciais construo de sujeitos sociais, consolidao da sociedade democrtica e dos processos de incluso socioeconmica.

    O Estado, com a colaborao da sociedade, tem o dever inescapvel de prover a educao de qualidade para todos. Esta uma condio importante para que a sociedade no seja to partida e autofgica, ainda que se deva entender que muitos dos problemas estruturais da humanidade no podem ser solucionados pelas instituies e sistemas educativos. Muitos deles sequer foram criados pela educao, mais provvel tenham sido maximizados pela falta de educao. Mas sem educao pblica de qualidade, certamente os problemas humanos seriam muito mais graves.

    Decorre do princpio da responsabilidade coletiva a importncia da valori-zao social daqueles atores que tm grande centralidade na edificao de uma sociedade na qual todos tenham possibilidade de acesso ao conhecimento de valor pblico. De um modo especial, merecem reconhecimento e melhoria em seus processos de formao e de trabalho os professores de todos os nveis do sistema educativo e os pesquisadores vinculados s universidades e outras instituies do complexo de cincia e tecnologia. Um sistema educativo de qualidade, essencial para a construo de uma sociedade evoluda econmica, intelectual e eticamente, s pode existir se os atores responsveis por sua consolidao tiverem boas condies de formao pedaggico-cientfica e de exerccio profissional.

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    A pesquisa bsica da rea de cincias duras, bem como os conhecimentos produzidos nas humanidades, que no possuem muitas vezes um valor imediato de mercado, mas certamente tm interesse pblico, precisam merecer ateno especial dos Estados com relao a financiamentos. No o que ocorre mais comumente. Prestgio e financiamento se vinculam s pesquisas que esto conectadas com a indstria e com o comrcio, de acordo com a perspectiva de que os conhecimentos teis e aplicveis so os motores do desenvolvimento. Mas, lamentavelmente, essa conexo linear entre conhecimento e progresso vem descartando os objetivos humansticos e culturais da sociedade e dos indivduos (ALTBACH, 2008, p. 13).

    A trajetria de escolarizao fornece bases de conhecimentos, de valores e de organizao dos processos formativos da construo jamais acabada dos sujeitos ao longo da vida. Isso carrega dois significados importantes. Primeiro, a educao deve ser entendida e realizada como um sistema; a melhoria quan-titativa e qualitativa de um nvel educacional est estreitamente vinculada melhoria dos demais e do conjunto. Segundo, a excluso escolar uma das formas mais perversas de injustia, pois priva os indivduos e, por extenso, a sociedade dos fundamentos e ferramentas cognitivos, axiolgicos e prticos essenciais para a edificao de uma vida digna e construtiva.

    As instituies educativas, especialmente as universidades, so referncias e centros fundamentais para a produo, o avano e a elevao da vida intelectual da nao e da sociedade. Elas contribuem efetivamente com os esforos cole-tivos de construo dos bens pblicos e comuns, por meio de conhecimentos. Por natureza, so instituies para o bem comum, embora claramente se possa perceber que muitas delas j perderam, em grande parte, esse sentido. Baseadas no princpio da equidade, as instituies educativas deveriam ter no marco de suas finalidades essenciais e de acordo com as condies e possibilidades de seu campo de atuao, o objetivo de contribuir para a minorao (idealmente, a erradicao) de desequilbrios vigentes na cidadania. Em outras palavras, contribuir para o reconhecimento de que a dignidade humana socialmente construda deve sempre e em todas as circunstncias prevalecer sobre os inter-esses privados das empresas.

    EQUIDADE E DEMOCRATIZAO DA EDUCAO SUPERIORO princpio da equidade, que est na base de uma sociedade democrtica,

    um valor a ser realizado tambm nos processos ditos de democratizao da educao superior. Mas a ampliao de matrculas e a expanso das condies

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    de oferta so apenas uma face da chamada democratizao da educao supe-rior. A outra face essencial a qualidade. Mais ainda: a educao precisa ter qualidade pblica e social. No suficiente que seja boa e correta nos termos das exigncias burocrticas, tcnicas e cientficas. tambm imprescindvel que contribua para a construo de um mundo melhor, isto , um mundo mais educado, mais evoludo culturalmente e socialmente mais justo.

    A crescente demanda por educao superior tem resultado num grande in-cremento de matrculas e, obviamente, de tipos diversificados de instituies. De um lado, esse fenmeno da expanso dos sistemas superiores, especialmente no que se refere ao acolhimento de importantes segmentos da populao tradi-cionalmente excluda, corresponde a um legtimo projeto que busca diminuir, ainda que de forma muito restrita, as desigualdades sociais. Com isso ganham os indivduos includos, que se beneficiam da educao para seu crescimento pessoal e uma insero mais favorvel no mundo do trabalho; e ganha a socie-dade, que passa a incorporar mais gente com maior capacidade de participar construtivamente nas esferas pblicas da vida social e poltica e nos mbitos profissionais e econmicos da produo e do consumo.

    Porm, no h s ganhos na ampliao da educao superior, embora os aspectos positivos superem em muito os negativos. Mais gente na educao superior importante para a democratizao, a coeso e a elevao intelectual e econmica de uma sociedade. Mas preciso entender alguns limites desse fenmeno, no para justificar a inrcia, porm, sim, para melhor fundamentar e coerir as aes propositivas. Os sistemas de educao superior e suas insti-tuies se tornaram muito mais complexos, com a ampliao das matrculas, com a incorporao de novos contingentes de estudantes e professores e com a exploso dos conhecimentos e formas de produzi-los e dissemin-los. Essa complexificao traz novos problemas de ensino, organizao e gesto, mas, longe de ser um empobrecimento, representa um enriquecimento do sistema e um aumento da qualidade social da educao superior em vista de seus com-promissos com a democracia e equidade.

    O fenmeno da massificao tem trazido inevitavelmente muitos problemas que as diferentes instncias da educao superior, em nveis mundiais, nacionais e institucionais, no esto conseguindo resolver a contento, tanto em termos estruturais como de qualidade pedaggico-cientfica. As instituies e os siste-mas de educao superior esto se tornando crescentemente mais complexos e diversificados. A populao estudantil de educao superior se compe de indivduos provenientes de grupos sociais muito diferenciados, incorporando crescentemente jovens de famlias de baixa renda e portadores de escasso

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    capital cultural e familiar. Em consequncia, suas trajetrias acadmicas so constantemente ameaadas por riscos de insucesso, de interrupo e de evaso. Esse novo cenrio da educao superior impe a necessidade de as instituies compreenderem os impactos que os novos contingentes de estudantes produzem no cotidiano universitrio. Necessrio que as instituies repensem seus novos papis frente ao conjunto de demandas que a sociedade lhes determina cumprir.

    Do ponto de vista dos estudantes, muitas so as dificuldades. Para alcanar alguma mobilidade social ascendente por meio da educao, os jovens com maiores carncias econmicas e sociais, geralmente os primeiros da famlia a chegar a um curso superior, precisam esforar-se muito para superar a quanti-dade e a qualidade dos conhecimentos escolares adquiridos por seus pais. Caso contrrio, no conseguiro competir com os jovens mais ricos nas duras disputas por empregos que sejam compatveis com seus estudos e com suas aspiraes. As dificuldades so maiores em pases pobres e em vias de desenvolvimento. Eles esto desenvolvendo vrias estratgias para aumentar o acesso, mas ainda no alcanaram satisfatoriamente os objetivos de plena cobertura, qualidade e igualdade. Por sua vez, os pases mais ricos no apresentam problemas de acesso, mas tambm no resolveram a questo da igualdade (ALTBACH, 2008, p. 7).

    Importante dificuldade advm do despreparo institucional, notadamente da precria formao didtico-pedaggica dos professores. A forada improvisao de professores, de currculos e de infraestrutura fsica tem comprometido o sentido pblico da educao superior em ao menos dois aspectos fundamen-tais. Em primeiro lugar, o carter pblico da educao requer necessariamente a realizao efetiva do princpio da equidade com elevada qualidade para todos e isto est muito longe de ser atingido no Brasil. Segundo, a oferta de uma educao de escassa qualidade, ainda que alcanando contingentes mais amplos, tambm pode estar contribuindo para a permanncia e at mesmo pelo aumento da segmentao dos diferentes estratos sociais.

    Embora se reconhea haver srios limites na ampliao do acesso edu-cao superior, muito mais injusto e pernicioso o elitismo que marginalizou a esmagadora maioria dos jovens ao longo da histria brasileira. verdade que a escolarizao no garantia plena de indivduos e sociedades mais bem realizados. Mas a falta de escolarizao produz mais pobreza. Os jovens que, driblando seu histrico pessoal de vulnerabilidade econmica, e, ainda que apresentando baixos repertrios culturais, conseguem frequentar um curso de nvel superior podero se beneficiar de maiores ganhos salariais, melhores condies de vida, mobilidade social e elevao da autoestima.

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    EDUCAO SUPERIOR: BEM PBLICO, EQUIDADE E DEMOCRATIZAO

    So de mtuas implicaes as relaes entre o econmico e o simblico, ou seja, entre economia e a cultura, os conhecimentos, as ideologias. Resultam dessas relaes as hierarquias profissionais e as correspondentes atribuio e distribuio de poderes e prestgios que vigem nas divises sociais. Dada a importncia da educao superior nessas relaes entre o econmico e o simblico, j que hoje o conhecimento criado e distribudo principalmente para alavancar o progresso das empresas e os ganhos do sistema financeiro, ela desempenha destacados papis na configurao de uma sociedade. Tais papis no so unvocos e unidirecionais. So contraditrios e complexos. Reforam determinados valores, certas ideologias e alguns interesses em detrimento de outros contraditrios, opostos ou diferentes. Tudo isso de enorme relevncia para os homens de hoje e de amanh, pois so escolhas entre elevar as condies e estruturas de humanizao da sociedade ou aderir antitica mercantilizao da vida que vem sendo produzida pela economia de mercado.

    Todos os esforos de ampliar o acesso educao superior so importantes passos na direo da isonomia social, mas, isoladamente, no conseguem su-perar por completo as brechas e oposies de uma sociedade historicamente hierarquizada. Isto porque a educao, e o mesmo se diga do conhecimento, est estruturalmente ligada ao complexo econmico e simblico que constitui uma sociedade concreta. Se o conhecimento e a formao no se constituem rigorosamente como patrimnio social e, ao contrrio, se submetem aos padres de produo e distribuio destinados expanso das capacidades de aes com-petitivas, a sociedade que eles ajudam a conformar continuar essencialmente dividida, em distintos e mutveis nveis, entre excludos e includos

    Junto com a multissecular excluso econmica e social se vai constituindo no imaginrio das famlias e dos jovens de baixa renda e escassos capitais cul-turais a ideologia da naturalizao da excluso, que, por sua vez, produz em termos prticos a autoexcluso. Como a sociedade e o Estado capitalistas erigem como referncias centrais para toda a populao os valores e, notadamente, os interesses dos crculos mais ricos, se naturalizam as desigualdades e os espa-os que a cada um caberia ocupar nas estruturas hierarquizadas. A excluso se completa pela autoexcluso, isto , pela internalizao da ideologia segundo a qual a excluso no histrica e socialmente produzida e que, para muitos, natural ser excludo. Mas ainda necessrio acrescentar que a excluso e a percepo da excluso tm vrias causas, distintos matizes, diversos nveis e diferentes consequncias. Compem esse fenmeno diferentes e interligadas coisas, como carncias econmicas e culturais, analfabetismo em diferentes graus, escassas condies de escolarizao, distanciamento entre escola e em-

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    prego, currculos inadequados, falta de motivao e de perspectivas de futuro, repetncia, evaso etc.

    Assim se vai criando no imaginrio coletivo e na percepo individual de muitos jovens das camadas mais pobres a ideia de que so naturais suas baixas capacidades competitivas e que os cursos mais exigentes e de maior prestgio econmico e social se reservam aos mais ricos. Aos mais pobres est quanto muito facultado o acesso a cursos escassamente considerados nas hierarquias acadmicas e que levariam a empregos de menor prestgio econmico e social. Essa forma de excluso, a excluso por dentro do sistema escolar, que muitas vezes ocorre como uma autoexcluso, no transparece nas estatsticas e nos discursos polticos dos ganhos da democratizao educativa. So questes que se colocam educao, mas que fazem parte de todo um histrico de injustias sociais.

    A democratizao da educao, entendida como induo da expanso do acesso e aumento da matrcula estudantil, apresenta um grande valor como poltica de incluso de grupos historicamente marginalizados. Porm, a democ-ratizao no deveria limitar-se expanso do acesso a cursos de graduao, sem preocupar-se efetivamente com a qualidade da formao e dos conhecimentos. Se a oferta educativa de baixa qualidade e as condies de permanncia so precrias, ocorre uma democratizao excludente. Essa expresso, provoca-dora e paradoxal, serve para recuperar o argumento de que todos, independente de sua condio social e econmica, tm direito no a qualquer educao, mas sim a uma educao de qualidade.

    Uma educao de baixa qualidade para as camadas populacionais mais po-bres e culturalmente mais carentes, ainda que com ampla cobertura, no cumpre totalmente o princpio da equidade e, portanto, no contribui plenamente para a construo de uma sociedade justa e evoluda. Certamente uma educao de baixa qualidade melhor que nenhuma educao, uma vez que, ainda que escas-samente, contribui para melhorar um pouco as condies de vida dos indivduos e para aumentar o cabedal de conhecimentos e de competncias profissionais teis ao desenvolvimento da nao. Em outras palavras: se bem que melhora alguns indicadores sociais, uma educao de baixa qualidade tambm contribui com baixa qualidade para a construo da justia social e para a diminuio dos desequilbrios entre pobres e ricos, includos e excludos.

    Estudantes pertencentes a estratos sociais mais baixos, em geral, receberam uma insatisfatria formao escolar nos nveis precedentes; por isso, quando chegam educao superior se encontram em desvantagem em relao aos jo-vens que puderam construir um percurso formativo mais ajustado s exigncias e dinmicas da sociedade de economia global.

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    EDUCAO SUPERIOR: BEM PBLICO, EQUIDADE E DEMOCRATIZAO

    DESIGUALDADE E EDUCAO PBLICAH uma forte correlao entre pobreza e baixa escolaridade. Os pre-

    crios indicadores de escolarizao so um dos aspectos do grave quadro de desigualdades e de falta de equidade ainda vigentes na sociedade brasileira. justo reconhecer que importantes segmentos sociais vm alcanando uma certa ascenso social, nos ltimos anos, mas ainda remanescem grandes as-simetrias acumuladas ao longo da histria brasileira. A Pesquisa Nacional por Amostragem Domiciliar (PNAD/2008) informa que os 10% mais ricos so proprietrios de 43% da riqueza do pas, enquanto que os 50% mais pobres detm apenas 18% dessa riqueza. Essa assimetria social e econmica uma das maiores do mundo todo.

    Por conseguinte, o desequilbrio tambm acontece na escolarizao, tanto em aspectos quantitativos como qualitativos. Em termos gerais, os indicadores no so nada bons. Em mdia, os brasileiros no chegam a completar sete anos de escolaridade, isto , no concluem a educao bsica. Quando esmiuados, esses nmeros podem pr de manifesto alguns outros dados dos desequilbrios sociais. Os segmentos sociais mais ricos tm o dobro do tempo de estudos dos mais pobres: respectivamente, mais de 10 anos contra cinco anos. No nordeste, regio que apresenta altos ndices de pobreza, somente 1/5 das crianas completa a educao bsica.

    No ensino superior, o aumento de matrculas que vem ocorrendo mais nota-damente nos ltimos quinze anos ainda est muito abaixo da meta estabelecida pelo Plano Nacional de Educao (PNE) para o final da dcada passada. A meta era atingir, at 2010, a taxa de matrcula em educao superior de 30% dos jovens entre 18 e 24 anos. Apenas a metade dessa meta foi alcanada. Houve, nesse perodo, grande expanso de instituies, algumas pblicas e a maio-ria, privadas, foram criados vrios programas de aes afirmativas visando a acolher e/ou beneficiar contingentes de jovens pertencentes a grupos sociais tradicionalmente desfavorecidos, mas, por vrias razes, sobretudo econmi-cas, ainda esto fora da educao superior cerca de 85% dos jovens da faixa etria adequada.

    A pobreza uma das causas mais importantes da excluso educacional e dos limites dos projetos e programas que objetivam ampliar a escolarizao. Segun-do o IBGE, por pobres, 25% dos jovens da coorte entre 18 e 24 anos no teriam condies de frequentar um curso superior mesmo que esse fosse totalmente gratuito. No deve causar surpresa o dado revelado pela PNAD/IBGE/2007 e que mostra ser o passivo educacional ainda maior que o econmico: enquanto 30,2% das famlias brasileiras pertenciam, nesse ano, ao quintil mais pobre,

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    apenas 3% dos jovens desse mesmo estrato estavam matriculados em educao superior. So os afrodescendentes, pobres em sua maioria, as grandes vtimas dessa perversidade. Embora esse grupo constitua aproximadamente a metade da populao brasileira, considerados os pretos e pardos, segundo designao do IBGE, apenas 25,4% dos estudantes de cursos superiores so negros (menos de 3%) ou pardos.

    Ainda h no pas 14 milhes de adultos analfabetos, sem contar o anal-fabetismo funcional e o digital. A propsito, pouco mais de 1/3 das famlias tm computador em casa, mas a tambm se constata uma distribuio muito desigual: possuem algum tipo de computador mais de 92% das residncias cujos moradores acumulam acima de 20 salrios mnimos, contra pouco mais de 1/4 das casas cujos residentes ganham menos de 10 salrios mnimos. Eis a outro tipo de excluso, com forte impacto nas competies por empregos e no campo social. Essa desigualdade tem nome: inforricos e infopobres, valendo isso para pases e para indivduos.

    Por incapacidade de prover seus estudos com recursos prprios, pela baixa atratividade do mundo do trabalho em termos de oferta de bons empregos, por desmotivao e baixa qualidade nos processos de ensino-aprendizagem gerados nos anos precedentes, ou por muitos outros motivos, o fato que existe, no sistema superior brasileiro, uma enorme quantidade de vagas no preenchidas, beirando quase 1 milho e meio, 98% delas no setor privado. Dizendo de outra maneira: do ponto de vista linear e quantitativo, h mais oferta nos cursos supe-riores que demanda por parte de concluintes do ensino mdio, mesmo por que somente 30% deles ingressam em alguma IES. Alm disso, com esmagadora predominncia nas instituies privadas, 25% dos estudantes no concluem seus cursos superiores.

    H ainda um outro fator que deve ser levado em conta nas discusses sobre a democratizao da educao superior e a ampliao do acesso a seus cur-sos. No Brasil, atualmente, quase 90% das instituies superiores pertencem ao segmento privado. Mais importante ainda considerar que 48% dessas instituies tm fins de lucro, isto , so instituies particulares de natureza comercial e sujeitas legislao mercantil. Dessa maneira, nelas, o valor din-heiro provavelmente afasta outras expectativas de carter social e de interesse pblico. E embora o setor pblico tenha crescido, nas IES particulares e com finalidade lucrativa que est ocorrendo a maior expanso.

    O efeito da educao superior sobre as perspectivas econmicas e sociais, especialmente na questo da renda dos trabalhadores e na expectativa de ob-teno de emprego, amplamente reconhecido. Um diploma universitrio, no

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    Brasil, pode aumentar a renda em 150% ou mesmo, em casos excepcionais, em at 164%, em comparao com empregados que tenham somente o en-sino mdio, segundo estudo da OCDE divulgado no relatrio Education at a Glance em setembro de 2011. Enquanto 77,4% dos empregados completaram o ensino mdio, a taxa de empregos de quem tem nvel superior de 85,6%, segundo a OCDE.

    Esses dados sugerem que h motivaes importantes, mas, tambm, srios limites nos intentos de democratizao da educao superior. Indicam, alm disso, que as questes a concernidas no so apenas quantitativas, mas tam-bm qualitativas. H questes relacionadas economia e, ento, ao social e ao ideolgico. No cabe apenas educao super-las. Tampouco possvel, somente pela via escolar, resolver os mais graves problemas estruturais de uma sociedade hierarquizada e partida pelas desigualdades. bem verdade que a educao escolar pode ser um fundamental instrumento de democra-tizao e, portanto, de incluso e diminuio de desequilbrios sociais. Por outro lado, ela tambm pode contribuir para a preservao e fortalecimento dos interesses dos segmentos mais poderosos e, ento, aprofundamento das assimetrias sociais.

    As limitaes relativas ao financiamento da educao no se restringem aos indivduos e famlias de baixo poder aquisitivo. Tambm o Estado tem severas restries oramentrias para oferecer educao gratuita e pblica em todos os nveis e de boa qualidade a todos que a demandam. Por mais que crie programas de expanso da cobertura, eles sero sempre insuficientes. o caso dos programas de aes afirmativas em que o Estado financia, em instituies privadas, total ou parcialmente, os custos das mensalidades de estudantes po-bres. De um lado, so importantes aes polticas para o Estado que as formula e as pratica. Por outro lado, so bem-vindas para as instituies privadas que cumprem as exigncias, pois, aumentam seu faturamento por meio de men-salidades de estudantes que no teriam recursos prprios para frequentar um curso superior. So importantes porque ajudam a democratizao da educao superior, incluindo milhares de indivduos econmica e socialmente vulnerveis, mas, isoladas e pontuais, ainda so incapazes de atacar com a fora e a sustent-abilidade necessrias os problemas centrais e estruturais da sociedade brasileira historicamente desigual.

    Do ponto de vista da equidade, uma sociedade que no atende as necessi-dades educacionais, em quantidade e qualidade, de toda a populao injusta e democraticamente pouco desenvolvida. A educao de elite e para uma elite cumpre seu papel com relao ao mercado global e preservao das classes

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    ricas e poderosas, mas no contribui para a edificao de uma nao justa, tica e culturalmente evoluda.

    Educao pertence esfera da responsabilidade coletiva. Estado e sociedade no podem abdicar dessa responsabilidade. Se o Estado no tem recursos sufi-cientes para atender a toda a demanda educacional, em quantidade e qualidade, setores da sociedade deveriam assumir essa responsabilidade com os devidos compromissos de cumpri-la segundo a tica do bem comum. Portanto, com os valores que fundamentam a formao humana integral e a consolidao de naes democrticas e econmica e culturalmente desenvolvidas. Muitos dos grandes empresrios brasileiros se beneficiaram de uma formao tcnico-profissional em instituies de educao superior pblicas e bem fariam se contribussem, agora, para o fortalecimento dessas instituies, com recursos financeiros, experincia e conhecimentos. Isso ajudaria as instituies a cumprir melhor suas responsabilidades pblicas; dentre outras coisas, a dedicar-se mais intensamente s aes afirmativas no tocante ao acesso de grupos socialmente vulnerveis, formao de professores, melhoria qualitativa dos nveis prec-edentes e ao desenvolvimento de tecnologias sociais de interesse dos pequenos produtores e das camadas de baixa renda, em geral.

    Na contramo das tendncias atuais no sistema de educao superior brasilei-ra, preciso que a expanso da educao superior se d prioritariamente pela via pblica, especialmente num pas cuja populao ainda apresenta altas taxas de pobreza. Educao como bem pblico e direito social um princpio cuja efetivao encontra srias limitaes de carter econmico e poltico-ideolgico, mas isso no desculpa para no buscar realiz-lo, com todas as foras e por diversos meios. Mas a sociedade tambm presta uma grande contribuio por meio daquelas instituies educativas privadas que cumprem as exigncias de qualidade e pertinncia social estabelecidas pelo Estado e requeridas pela prpria sociedade.

    O importante que a educao superior oferecida pelas instituies de educao superior pblicas e privadas no seja um instrumento a mais a refor-ar a invasiva mentalidade mercantilista que grassa na sociedade atual, nem tampouco seja um servio e um produto que beneficiam apenas aqueles que podem compr-los, para uso prprio.

    CONSIDERAES FINAIS O princpio da equidade determina o imperativo tico de diminuir ao mximo

    as desigualdades sociais. A progressiva diminuio das assimetrias na sociedade

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    EDUCAO SUPERIOR: BEM PBLICO, EQUIDADE E DEMOCRATIZAO

    toda em boa parte depende da democratizao da educao. Por isso, todo in-divduo tem direito a uma educao de qualidade e o Estado democrtico tem o dever de assegurar que seja efetivada a educao de qualidade amplamente disponvel. Esse princpio se insere na esfera dos direitos pblicos e sociais e diz respeito ao desenvolvimento do processo de construo da autonomia pessoal, da cidadania, da profissionalizao e, por extenso, da sociedade democrtica. O conhecimento mais que nunca a principal matria prima do desenvolvi-mento econmico. Tambm a partir desse pressuposto nenhum Estado poder escapar das necessidades de estender a toda a populao os meios de adquirir mais conhecimentos e participar dos benefcios dos bens culturais em geral. Esse um imperativo poltico e tambm econmico.

    Da mesma forma que no se pode aceitar a crena do progresso infinito pro-duzido pela cincia, tambm no se h de crer que se vai resolver a problemtica da pobreza e das injustias sociais somente pela ampliao das matrculas em educao superior. Mas o argumento das mudanas estruturais de largo alcance e longo prazo no pode servir de desculpas para nada fazer de imediato, mesmo que as aes sejam limitadas e insuficientes.

    Ampliar a massa de conhecimentos da populao um imperativo que vale tanto para os indivduos em termos da formao pessoal e cidad, como no que se refere capacitao profissional, pois tudo isso fundamental para elevar os nveis de qualidade de vida das pessoas, fortalecer a economia e aprofundar os valores da democracia, na sociedade e na nao. Uma sociedade que no consegue, ou no quer, estender os benefcios da escolarizao de boa qualidade a todos, alm de estar condenada ao empobrecimento crescente no sistema mundial de alta competitividade, tambm uma sociedade perversa. A falta de conhecimentos produz rejeitos. Quem no consegue produzir e con-sumir, por ignorncia ou pobreza, descartado, igual a um produto imperfeito, indesejvel, intil, incmodo.

    REFERNCIAS

    ALTBACH, Philip G. Funciones complejas de las universidades en la era de la globalizacin. In: LA EDUCACIN superior en el mundo 3. Educacin Superior: Nuevos Retos y Roles Emergentes para el Desarrollo Humano y Social. Madrid: GUNI (Global University Network for Innovatin, Ediciones Mundi-Prensa, 2008.

  • Avaliao, Campinas; Sorocaba, SP, v. 18, n. 1, p. 107-126 mar. 2013126

    Jos Dias sobrinho

    BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE). Pesquisa nacional por amostragem domiciliar. Braslia, 2008.

    PETRELLA, Ricardo. El derecho a soar. Propuestas para una sociedad ms humana. Barcelona: Intermn Oxfam, 2005.