Jose Estevao Moreira o Que e Pode Ser Musica Simpemus 3

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José Estevao

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  • O que (pode ser) msica? Uma anlise fenomelgica das atitudes de escuta

    segundo Pierre Schaeffer.

    IntroduoAs contribuies de Pierre SCHAEFFER no campo teortico da msica so de

    grande importncia para alm mesmo de seu propsito na msica concreta. SCHAEFFER perscruta por longos caminhos e territrios do pensamento na tentativa de fundamentar e justificar seus experimentos musicais na rdio francesa bem como o seu conceito de objeto sonoro tecendo relaes com diversas disciplinas do conhecimento (semitica, fenomenologia, fsica, psico-acstica...). Deste modo, nos conduz a rigorosos questionamentos sobre conceitos e posicionamentos acerca da msica e da prpria concepo do que (pode ser) msica. Tais reflexes revelam-se muito valiosas quando tomadas como ponto de partida para a pesquisa em diversas frentes da atividade artstico-musical: desde a composio, tecnologia, filosofia, passando ainda pela sociologia e educao.

    O presente texto parte resumida de pesquisa de Iniciao Cientfica busca, justamente, subsdios para um exame das intenes e atitudes de escuta na obra de Pierre SCHAEFFER baseando-se, para tanto, no Tratado dos Objetos Musicais (1966).

    O Tratado dos Objetos MusicaisNo Tratado dos Objetos Musicais (1966) ao propor a classificao dos objetos

    sonoros em sua morfologia e sua tipologia1, a investigao de Pierre SCHAEFFER levanta questes que trespassam taxonomia de aspectos sonoros diversos, por adentrar tambm pelo campo da Semitica e Epistemologia referindo-se msica como uma nota discordante no concerto do conhecimento. Isto feito prope uma reviso do sistema dizendo: [...] para comear advertimos que os termos mais usuais de altura, durao, sensao e percepo, objetos e estruturas, que so de uso cotidiano entre uns e outros, no tem o mesmo contedo, e designam circuitos diferentes da experincia ou do uso. J no se tratam de questes de princpio: distinguir o som puro do chamado bruto, fundar um sistema musical sobre a tonalidade ou a srie, sobre uma escala de cinco, seis, sete, doze ou trinta sons, ou ainda sobre alturas em vez de timbres. Trata-se, mais do que terminologias, das prprias noes; e, mais do que noes, das atitudes do fazer musical2.

    SCHAEFFER adota tambm a perspectiva da Lingstica para abordar o problema da limitao no s da linguagem, porm tambm dos meios de expresso instrumental salientando: nenhuma liberdade maior tem o compositor ao empregar uma linguagem instrumental: os sons da orquestra so dados, da mesma forma como so dados os sons do aparelho vocal. As palavras da orquestra so as notas, e no se podem esperar outras novas a no ser em uma zona de neologismos [...]. As frases musicais esto evidentemente na dependncia das escalas, modos, regras harmnicas etc., segundo a situao de semi-liberdade da frase da linguagem em relao sintaxe. Finalmente os

  • enunciados musicais esto sujeitos observao final: h muitos esteretipos: cadncias, respostas, acompanhamento, resolues, enquanto novos esteretipos so apresentados pelas msicas contemporneas3.

    A ruptura progressiva com a tradio musical dos princpios do Sc. XX, segundo o Tratado, se deve a trs fatores: (1) de ordem esttica, (2) o aparecimento de novas tecnologias e (3) o reconhecimento e interesse de civilizaes e geografias musicais distintas ocidental4.

    Ao primeiro fator, o esttico, verifica-se uma liberdade cada vez maior na estrutura das obras que consagrou, em meio sculo, a evoluo acelerada da msica ocidental. No se trata apenas de uma ruptura progressiva das regras da harmonia e do contraponto ensinados nos conservatrios, mas de um questionamento das estruturas musicais. Falar de dissonncia e de politonalidade em relao a essa estrutura bem definida que a escala ocidental uma coisa. Outra coisa prender-se prpria estrutura, seja pelo emprego de uma escala de seis tons, como j havia feito Debussy, seja pelo emprego de uma escala de doze semitons, como fez Schoenberg, cujas disposies cannicas do dodecafonismo visam eliminar toda tonalidade. Enfim, a partir desse momento certas noes - mesmo tateantes, como aquela do Klangfarbenmelodie - so o ndice de uma curiosidade que se volta para o emprego de estruturas especficas, diferentes de uma estrutura das alturas5.

    Ao segundo fator, do aparecimento de novas tcnicas, tem-se o exemplo da msica concreta e eletrnica visto que idias musicais so prisioneiras, mais do que se possa acreditar, da aparelhagem musical6. Cita tambm as imbricaes entre sistemas e instrumentos: o fenmeno musical tem, portanto dois aspectos correlativos: tendncia abstrao, na medida em que a execuo possibilita estruturas; e aderncia ao concreto, na medida em que ele permanece vinculado s possibilidades instrumentais. Pode-se observar a esse respeito que, de acordo com o contexto instrumental e cultural, a msica produzida , sobretudo concreta, ou sobretudo abstrata, ou quase equilibrada7.

    O terceiro fator, o do interesse por culturas diferentes da ocidental, considerado como mais relevante por SCHAEFFER ao que infere: os musiclogos, confiantes no prprio sistema, empenharam-se com toda naturalidade em reduzir as linguagens primitivas e exticas s noes e aos termos da msica ocidental. E no causa surpresa alguma que a necessidade de um retorno s fontes autnticas tenha sido, precisamente, afirmada pelos msicos mais modernistas - os da msica concreta em particular - que se viram obrigados, por sua prpria experincia, a pr seriamente em dvida o valor universal daquele mesmo sistema8.

    Aps a constatao do problema cultural na msica bem como antropolgico e semitico SCHAEFFER enumera os trs impasses da musicologia, sendo o primeiro (1) o das noes musicais: j no so apenas a escala e a tonalidade que vm sendo negadas pelas msicas mais aventurosas - bem como pelas mais primitivas. Tambm a primeira dessas noes, a de nota musical, arqutipo do objeto musical, fundamento de toda notao, elemento de toda estrutura meldica ou rtmica. Desta decorrem os outros dois impasses: (2) o das fontes musicais, referindo-se limitao dos musiclogos diante de novas ou mesmo distintas sonoridades instrumentais tecnolgicas e/ou culturais e (3) o problema do comentrio esttico, que se prende abundante literatura consagrada s sonatas, quartetos e sinfonias adotando estes e outros paradigmas como premissas para a

  • produo musical9 e que podemos constatar tambm no pensamento de ADORNO nas questes referentes ao fetichismo em msica 10.

    Objetos SonorosO que um Objeto Sonoro?

    A guisa de introduzir este conceito basilar em sua obra, Pierre SCHAEFFER remete-se a Pitgoras, o qual era ouvido por seus discpulos por de trs de uma cortina, de maneira que a ateno destes era redobrada pois que, utilizando-se somente a audio, no poderiam ser distrados pela viso e ainda, teriam um aumento da curiosidade pelas causas11. A este respeito, descreve o seguinte: fora de escutar objetos sonoros cujas causas [...] esto mascaradas, somos induzidos a ouvir estes [...] e interessarmo-nos por objetos. A dissociao da vista e do ouvido favorece aqui outra maneira de escutar: a escuta das formas sonoras, sem outro propsito que de escut-las melhor, a fim de poder descrev-las atravs de uma anlise do contedo de nossas percepes12.

    A esta escuta SCHAEFFER refere-se como Acusmtica, ou seja, uma projeo sonora cuja procedncia no visvel; um claro exemplo do alto-falante, com o qual se pode ouvir qualquer som que seja (re)produzido sem ter a referncia visual do causador do som ouvido, que pode ser originado de uma fonte que no se encontra no mesmo local onde percebida - podendo proceder de alguma gravao ou transmisso.

    O Registro de grande importncia no sistema de SCHAEFFER, pois alm de fundamental para o propsito da msica concreta, e de sua escuta acusmtica, a gravao auxilia de duas maneiras: ao esgotar esta curiosidade [das causas de um som] nos impe pouco a pouco o objeto sonoro com uma percepo digna de ser observada por si mesma; por outro lado, em virtude de escutas mais atentas e refinadas, ela nos revela progressivamente a riqueza desta percepo13. O gravador permite fixar a ateno sobre um som em si mesmo, sobre sua matria e a sua forma14.

    Ainda na definio do conceito de objeto, o Tratado tambm aponta alguns equvocos quanto ao que no objeto sonoro: (a) o objeto sonoro no o instrumento que tocou; (b) no a fita magntica - ou seja, no o meio material de armazenamento; (c) os mesmos poucos centmetros de fita magntica podem conter uma quantidade de objetos sonoros diferentes - concluso decorrente da anterior; (d) o objeto sonoro no um estado de alma - ou seja, no subjetivo, particular, incomunicvel e sim objetivo, descritivo, analisvel15.

    Porm, estes dados preliminares so apenas introdutrios visto que, no desenvolvimento de seu sistema, SCHAEFFER promove uma escuta da escuta, ou seja, analisa os processos pelos quais os objetos sonoros so percebidos e, tambm, em um outro momento, pe em questo problema do julgamento das impresses obtidas no conhecimento perceptivo, que podem resultar objetivas e/ou subjetivas. Assim, fundamentar-se-, segundo SCHAEFFER, o mnimo necessrio para o entendimento do conceito de Objeto Sonoro: tendo em vista que o objeto percebido (como unidade intencional) corresponde a uma estrutura (da experincia perceptiva), temos sempre a tendncia de separar esses dois aspectos: o objeto, que estaria de um lado, e a experincia, que estaria do outro: ou ainda, a estrutura percebida e a atividade constituinte. Sabemos que

  • isso de fato j significa arruinar a noo de objeto, esquecer a autenticidade da percepo. Mas tomar conscincia de tal experincia assumir um novo objeto de pensamento, exercer um certo recuo sobre a percepo para melhor examinar o mecanismo. No mais ouvir, ouvir-se ouvindo. Por sua vez, esse mecanismo, se chego a analis-lo, em virtude de uma estrutura da conscincia reflexiva, que por sua vez me permanece oculta... E assim por diante, ao infinito16.

    As Quatro EscutasSCHAEFFER apresenta no Tratado, reflexes sobre: (1) o fazer e o ouvir, (2)

    objetos e estruturas, (3) anlise fsica do som e (4) problemas filosficos e semnticos 17. Esta seqncia relaciona-se com a segmentao proposta por SCHAEFFER aos processos da escuta, para uma anlise sistemtica do fenmeno sonoro/musical. Estas quatro escutas so partes integrantes na anlise aprofundada do conceito de objeto sonoro, no concernente percepo, tendo em vista que o prprio conceito de objeto sonoro (e/ou musical) disposto no Tratado no pode prescindir de uma escuta ativa, participativa, que se posiciona em relao ao acontecimento sonoro.

    A seguir, enumeramos os conceitos das quatro escutas18, sobre os quais SCHAEFFER erige o seu sistema analtico: (1) escutar, (2) ouvir, (3) entender e (4) compreender.

    Escutar - perceber pelo ouvido, atitude passiva. Para ilustrar, imagine-se uma paisagem sonora19 onde se escutem diversos acontecimentos, porm sem que se preste ateno a qualquer deles, de maneira que se configure um background sonoro sem qualquer objeto especfico em destaque. Pode-se pensar, em uma cidade, o barulho de diversos acontecimentos simultneos como: sons de pessoas, buzinas, motores, helicpteros, avies, sirenes, etc. Deste modo, escuta-se o que se chega percepo, sem a focalizao de qualquer elemento constituinte da cena.

    Ouvir - o direcionamento da escuta fonte de um som. A partir do exemplo dado, um determinado som pode ser buscado, focalizado - tal qual a viso, que pode mirar determinadas caractersticas de uma imagem - seja pelo desejo de ouvir-se determinado objeto ou ainda pela surpresa de seu aparecimento, caso seja repentino.

    Entender - exame dos dados obtidos pela escuta. Aps a escuta ativa, que seleciona um acontecimento, a natureza do som identificada. Prosseguindo a contextualizao anterior, um som que se apresenta na forma de um zigue-zague que vai do grave ao agudo, escorregando (utilizando termos musicais tradicionais, um glissando) e faz o caminho inverso, insistentemente repetindo este processo. Entende-se ento o som de uma sirene.

    Compreender - o campo semntico, dos significados atribudos a um objeto sonoro ou musical. Concluindo o exemplo, as informaes obtidas no Entender, acerca dos sons escutados e ouvidos, do indcios para a compreenso de que o som ouvido isto o insistente glissando do agudo para o grave e vice-versa uma sirene e que, dependendo da contexto/cultura na qual esto inseridos o ouvinte e a sirene, tem diferentes significados: pode, por exemplo, representar uma ambulncia e, por conseqncia, suscitar angstia pelo entendimento de que uma vida est em jogo; pode representar, em uma fbrica, a hora de

  • intervalo para almoo; ou ainda, um toque de recolher. Ou seja, compreender relativo aos significados agregados a determinados sons e , por conta disto, cultural.

    Com a delimitao de processos da escuta, Pierre SCHAEFFER tem a inteno de descrever os objetivos que correspondem a funes especficas da escuta20. Encontra-se no Tratado o seguinte quadro:

    Aplicando-se o esquema msica, em uma situao onde se propaga o som de uma inveno para piano de Bach, por exemplo, em uma situao de escuta acusmtica: (1) Escuta-se um som constata-se assim, uma audio, ou seja, uma no surdez fisiolgica. (2) Ao dirigir-se a ateno para este som, ouve-se o som. (3) Trs pessoas com experincias bastante distintas um tcnico de estdio, um msico e um amador esto ouvindo o mesmo som, ou seja, o mesmo objeto, e retirando cada qual, impresses diferentes que dependem de intenes de escutas diferentes: estas qualificaes variam, como a prpria escuta, em funo de cada experincia anterior e de cada curiosidade. Todavia, o objeto sonoro nico, que torna possvel essa multiplicidade de aspectos qualificados do objeto, subsiste sob a forma de uma aurola de percepes, por assim dizer, s quais as qualificaes explcitas fazem implicitamente referncia. Assim, quando eu concentro minha percepo qualificada sobre o detalhe de uma casa - janela, escultura sobre a porta - nem por isso a casa deixa de estar presente e eu vejo essa janela ou essa escultura como pertencentes a ela21.

    O tcnico atenta, por exemplo, para as qualidades fsicas do som (timbre, intensidade, reverberao), segundo seu ofcio; o msico analisa a qualidade da interpretao e do som pianstico, no necessariamente como o tcnico; o amador aprecia a msica de acordo com seu gosto. (4) Cada ouvinte levado a compreender diferentes significados, tambm de acordo com os seus referenciais: o tcnico de som pode deduzir que a sala no apropriada para gravao, ou mesmo que o instrumento no se encontra em boas condies, ou ao contrrio, ambos so timos; o msico pode ponderar acerca da qualidade do pianista, bem como o estilo de sua escola de interpretao e seu nome; o amador pode referir-se a obra como dramtica, tensa e, supondo que no o saiba de incio, realizar classificaes estilsticas - no caso, msica barroca - e ainda a obra - inveno x - e o nome do compositor - Bach.

    4Compreender

    4Compreender

    3Entender

    3Entender

    1Escutar1

    Escutar

    2Ouvir2

    Ouvir

  • Embora o quadro acima apresente seqncias, SCHAEFFER adverte no Tratado que no se deve inferir das divises e numeraes nem uma cronologia nem uma lgica, a que se devesse conformar o nosso mecanismo perceptivo22. Isso se verifica como um artifcio de exposio, que com certeza no implica nenhuma sucesso temporal, de fato, na prpria experincia perceptiva. A anlise da percepo efetua-se instantaneamente, colocando em jogo os quatro segmentos ao mesmo tempo23.

    O captulo As quatro escutas SCHAEFFER encerra discorrendo sobre as atitudes de escuta examinando dois pares opositivos de escutas: natural e cultural, banal e prtica. Brevemente, apontamos aqui algumas de suas caractersticas24:

    (a) Natural e cultural - respectivamente, representam os quadrantes 1 e 2, 3 e 4. A escuta natural a tendncia prioritria e primitiva a servir-se do som como informativo do evento [...]. A tendncia aqui visivelmente para o setor 1 como finalidade, e pode-se supor um ouvido particularmente apurado no setor 2. Encontra-se na parte concreta do esquema. A cultural, ao contrrio, uma escuta menos universal que a precedente no sentido de que ela varia de uma coletividade a outra, e encontra-se na parte abstrata do esquema. Lembrando que estes signos, no so necessariamente musicais.

    (b) Banal e prtica - respectivamente, quadrantes 1 e 4, 2 e 3. A escuta banal o contrrio da escuta prtica (especializada), pouco se utilizando dos quadrantes 2 e 3, ou seja, de uma anlise do objeto sonoro em si mesmo. Se prende, sobretudo, aos signos, aos referenciais exteriores. A escuta prtica se atm mais profundamente s caractersticas do objeto sonoro, porm, este exame , em grande parte, subjetivo por se valer das experincias especficas de cada indivduo. Se de um lado, a escuta prtica mais direcionada, a banal mais geral e no perde o carter de universalidade e de intuio global.

    Transcrevemos, a seguir, o quadro da pgina 102 do Tratado que apresenta as funes da escuta com suas respectivas descries, bem como as atitudes de escuta.

  • 4. Compreender

    - para mim sinais (signos)- diante de mim valores (sentido/linguagem)

    Em referncia a outras noes, sonoras ou no

    Emergncia de um sentido

    1. Escutar

    - para mim indcios- diante de mim acontecimentos exteriores (agente - Instrumento)

    Emisso do som

    Reconhecimento das fontes

    1 e 4Referncias Exteriores

    Escuta Banal

    3. Entender

    - para mimpercepes qualificadas- diante de mimobjeto sonoro qualificado

    Seleo de certos aspectos articulares do som

    Qualificao do Objeto

    2. Ouvir

    - para mim percepes brutas, esboos do objeto- diante de mimobjeto sonoro bruto

    Recepo do som

    Identificao do objeto

    2 e 3Experincia

    InteriorEscuta Prtica

    3 e 4:ABSTRATO

    Escuta Cultural

    1 e 2:CONCRETOEscuta Natural

    SCHAEFFER aponta que o msico muitas vezes ignora at que ponto a sua escuta prtica opera um deslocamento e uma seleo dos significados, criando um domnio reservado de objetos ditos musicais. Os no-valores, ditos rudos, ficam rejeitados ao exterior desse domnio25. Esta predisposio se vale tambm para as demais qualidades de ouvintes contribuindo para uma dificuldade de compreenso encontrada pela msica experimental, ou qualquer msica estranha a uma determinada prtica/cultura.

  • FenomenologiaNovamente, reportamo-nos ao incio do Tratado a fim de levantar noes

    introdutrias fornecidas pelo autor acerca dos objetos sonoros: na realidade, ns no percebemos os objetos, mas sim as estruturas que os incorporam [...]. Dos objetos s estruturas, e das estruturas linguagem, h, portanto, uma cadeia contnua tanto menos discernvel quanto mais nos familiar, espontnea qual estamos inteiramente condicionados26. A partir deste momento a ateno se volta para o objeto em si mesmo aps a fundamentao do processo da escuta e deste modo deparamo-nos com as questes da percepo. Assim, a noo de objeto sonoro, aparentemente to simples, obriga bem depressa a apelar para a teoria do conhecimento, e para as relaes do homem com o mundo27, visto que, no campo da percepo todo julgamento transita no limiar entre o subjetivo e o objetivo o conhecimento de um fenmeno se d pela interao destes dois planos sendo assim um profcuo campo para a Fenomenologia28.

    SCHAEFFER recorre, ento, a Edmund Husserl o qual afirma: o objeto o plo de identidade imanente s vivncias particulares e, todavia, transcendente na identidade que ultrapassa essas vivncias particulares29. Essas vivncias particulares so as mltiplas impresses visuais, auditivas, tteis, que se sucedem num fluxo incessante, atravs das quais eu tendo para certo objeto, eu o viso, e os diversos modos segundo os quais eu me relaciono com esse objeto: percepo, lembrana, desejo, imaginao etc30. Porm, o objeto transcende no apenas os diversos momentos da minha experincia individual, mas o conjunto dessa experincia individual: ele se coloca em um mundo que eu reconheo como existente para todos31. Esta transcendncia do objeto, ento, permite uma imensa possibilidade de pontos de vista distintos (subjetivo) e no o esgotam. A conscincia do mundo objetivo passa pela conscincia do outro como sujeito, a supe como prvia32.

    Ainda sustentando-se em Husserl, P. SCHAEFFER alude ao conceito de poch, quando pondera sobre a limitao dos sentidos e da percepo com relao as sensaes, visto que estas impresses subjetivas se do atravs de aparatos nervosos, componentes de um sistema nervoso que por sua vez, no obstante, faz parte deste mundo, da matria. crena da cincia nos sentidos, Husserl denomina uma f ingnua: a poch colocao entre parnteses, espanto seria justamente a tentativa de no subjugar aos ditames dos sentidos e das sensaes, a averiguao do objeto; to pouco seria uma espcie de dvida metdica cartesiana explicando que pr em dvida a existncia do mundo exterior, ainda tomar posio com relao a ele, substituir por outra tese, a tese de sua existncia. [Assim] a poch a absteno de toda tese33. Se deixo de identificar-me com a minha experincia perceptiva, que me apresenta um objeto transcendente, torno-me capaz de surpreender essa experincia, bem como o objeto que ela me fornece34.

    Este problema se constata quando, por exemplo, diferentes ouvintes ouvem o mesmo som e cada um compreende aquilo que for imanente s suas experincias particulares, fazendo com que a percepo e definio do objeto sonoro em si mesmo no seja possvel. Por exemplo, um msico e um tcnico de estdio ouvem a nota l do diapaso que pode ser classificada como uma onda de 440 Hz. Neste caso, as duas classificaes nota l e 440 Hz podem estar conjugadas; entretanto, podem estar completamente alijadas, pois que, para a msica tradicional, este som j carrega consigo o arqutipo de nota musical podendo inclusive ser ouvido em oitavas diferentes e instrumentos diferentes. J a onda 440 do diapaso, uma onda com timbre especfico

  • sendo o timbre resultado de infra-alteraes da freqncia que no ocorre em outros instrumentos e/ou outra oitava. Mas em que ele se distingue do sinal fsico? [...] Ocorre que o sinal fsico, na realidade, no sonoro, se por tal entendermos o que captado pelo ouvido. Ele o objeto da fsica dos meios elsticos. A sua definio relaciona-se com as normas e com o sistema de referncia desta, sendo tal cincia, como toda fsica, fundamentada na percepo de certas grandezas: no caso presente, deslocamentos, velocidades, presses35. Nos dois casos no h objeto sonoro, pois ambas concepes esto imbudas de significados e o mesmo acontecimento ento opera diferentes valores significantes36.

    Deste modo, [...] quanto mais hbil me tornei para interpretar ndices sonoros, tanto maior a minha dificuldade de entender objetos. Quanto mais fcil compreender uma linguagem, tanto mais difcil ouv-la [grifos nossos] [...] e antes que um novo treinamento me seja possvel e que possa ser elaborado um outro sistema de referncias, desta vez apropriado ao objeto sonoro, eu deveria libertar-me do condicionamento criado por meus hbitos anteriores, passar pela prova do poch. No se trata de forma alguma de um retorno natureza. Nada nos mais natural do que obedecer a um condicionamento. Trata-se de um esforo antinatural para perceber aquilo que antes determinava a conscincia inadvertidamente37.

    ConclusoConforme frisado na introduo pode-se constatar a polivalncia dos escritos de

    Pierre SCHAEFFER, que se apresentam de uma forma abrangente pelas searas da msica, lingstica, semitica, filosofia, sociologia, educao e antropologia. Buscou-se aqui a realizao de uma srie de apontamentos de passagens do Tratado dos Objetos Musicais de Pierre SCHAEFFER concernentes s questes da escuta onde, apesar de recortados do texto original como procede, inclusive, a prpria msica concreta tais excertos atendem a uma perspectiva animada por um esprito que alteridade38.

    Esta premissa norteou nosso olhar por dentre as reflexes de Pierre SCHAEFFER para que enfim pudssemos chegar, no a uma concluso, a uma resposta, porm sim, a outro ponto deveras complicado. Um questionamento filosfico, no qual a concluso dele extrada se faz determinante para as condutas e posturas em relao ao fazer musical e para as atitudes e intenes de escuta, atuando as primeiras sobre as ltimas, e vice-versa, numa relao de reciprocidade. Contudo, tal questionamento somente se faz possvel e legtimo, na medida em que se submeta a um exerccio intencionado de afastamento da prpria realidade, do xeque s noes mesmas, de uma audio da escuta para, ecoando em seguida, em tom de descoberta, ouvir-se: O que (pode ser) msica?.

  • Bibliografia

    ADORNO, T. 1978, O fetichismo na msica e a regresso da audio, Os pensadores. So Paulo. Abril Cultural

    ADORNO, Theodor W., 1989, Filosofia da nova msica, traduo Magda Frana, So Paulo, Perspectiva.

    ORLANDI, Luis B L, 1980, Voz do intervalo: introduo ao estado do problema da linguagem na obra de Merleau-Ponty, So Paulo: tica.

    SCHAFER, Murray, 1991, Afinao do Mundo, So Paulo, Unesp.

    SCHAEFFER Pierre, Tratado dos Objetos Musicais, EdUnB, 1993 [confrontada com a edio em espanhol]

  • 1 SCHAEFFER Pierre, Tratado dos Objetos Musicais, EdUnB, 1993, p. 19.2 Ibidem, p. 37.3 Ibidem, p. 43-44 grifos nossos.4 Ibidem, p. 27-28.5 Ibidem, p. 27-28.6 Ibidem, p. 38.7 Ibidem, p. 54.8 Ibidem, p. 29-30.9 Ibidem, p. 31.10 O conceito de Fetichismo desenvolvido por ADORNO refere-se ao problema do ouvinte que se prende a aspectos exteriores aos musicais-artsticos, como por exemplo: a qualidade de um cantor medida pela sua fama, a beleza de uma sala de concerto, a nona-de-Beethoven, os aparatos tecnolgicos de um determinado acontecimento musical, etc. Uma espcie de surdez que se atenta a pr-conceituaes e contingncias na qualificao musical, colocando obras de grande valor universal em invlucros de glamour por exemplo que ofuscam sua verdadeira importncia; ou ainda, o efeito inverso, que privilegia obras impressionantes por outras caractersticas que no musicais/artsticas. Estas so caractersticas inerentes a uma escuta passiva que no se esfora nem se interessa, portanto, a uma escuta ativa dos aspectos composicionais musicais. ADORNO, Theodor, O Fetichismo na Msica e a Regresso da Audio e tambm Filosofia da Nova Msica.11 SCHAEFFER op. cit. p, 83.12 Ibidem, p. 85.13 Ibidem, p. 85.14 Ibidem, p. 41.15 Ibidem, p. 87-88.16 Ibidem, p. 255.17 Encontramos esta organizao implcita na Apresentao do Tratado (p19-20).18 SCHAEFFER op. cit. p. 89-110.19 SCHAFER, Murray, 1991, Afinao do Mundo, So Paulo, Unesp20 SCHAEFFER 1966, p. 9721 SCHAEFFER 1966, p. 10122 SCHAEFFER 1966, p. 10123 SCHAEFFER 1966, p. 10324 SCHAEFFER 1966, p. 105-10825 SCHAEFFER 1966, p. 11026 SCHAEFFER 1966, p. 4027 SCHAEFFER 1966, p. 23728 ORLANDI, Lus, 1980, Introduo ao Estudo do Problema da Linguagem na Obra de Merleau-Ponty, So

    Paulo, Ed. tica29 HUSSERL Edmund, Lgica Formal e Lgica Transcendental, citado em SCHAEFFER 1966, p.23830 SCHAEFFER 1966, p. 23831 SCHAEFFER 1966, p. 23932 SCHAEFFER 1966, p. 24033 SCHAEFFER 1966, p. 241-24234 SCHAEFFER 1966, p. 24235 SCHAEFFER 1966, p. 24536 SCHAEFFER 1966, p. 24337 SCHAEFFER 1966, p. 24638 Encontramos em "http://pt.wikipedia.org/wiki/alteridade citao de Franois Laplantine A experincia da alteridade (e a elaborao dessa experincia) leva-nos a ver aquilo que nem teramos conseguido imaginar, dada a nossa dificuldade em fixar nossa ateno no que nos habitual, familiar, cotidiano, e que consideramos evidente. Aos poucos, notamos que o menor dos nossos comportamentos (gestos, mmicas, posturas, reaes afetivas) no tem realmente nada de natural. Comeamos, ento, a nos surpreender com aquilo que diz respeito a ns mesmos, a nos espiar. O conhecimento (antropolgico) da nossa cultura passa inevitavelmente pelo conhecimento das outras culturas; e devemos especialmente reconhecer que somos uma cultura possvel entre tantas outras, mas no a nica.