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Dissertação para a obtenção do grau de mestre em Ciências da Educação (Especialização em Educação da Criança) apresentada na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto.
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Dissertao para a obteno do grau de mestre em Cincias da
Educao (Especializao em Educao da Criana) apresentada na
Faculdade de Psicologia e de Cincias da Educao da
Universidade do Porto.
Contributos para a compreenso dos crculos de estudos
por Jos Francisco de Almeida Pacheco,
sob a orientao da Professora Doutora Maria
Lusa Coelho Zuzarte Corteso Abreu.
Abril. 1995
Contributos para a compreenso dos crculos de estudos
Jos Francisco de Almeida Pacheco Abril. 1995
Para a Ftima s
Para a Lusa
4
NDICE
INTRODUO 11
CAPTULO I Condies da investigao 13 (Onde se d conta de um problema com problemas dentro, enquanto se procura caminhos de aceder sua comprenso possvel)
Para nos situarmos 15 Para que serve a formao? 18 Ainda h quem afirme que a histria no se repete 19 Algum tempo para voltar a acreditar 21 Um projecto e muitas intenes 22 I o Ciclo - um quadro de contradies 25 Para que serve investigar? 26
UMA INVESTIGAO (QUASE) MARGINAL
O assunto no traz notcia 30 Ainda a tempo 31 Dvidas e lugares de procura 32
ata uc i l i i l i OujcouVOS 3 7
Aformao contnua existe? 38
UM OBJECTO NICO-MLTIPLO
'Andaimes" metodolgicos 40 E depois... o direito ao erro e ao investigar o erro 41 A difcil construo do objecto de estudo 44
GERR A COMPLEXIDADE
Meodologia(s) Os limites impostos pelos C. E. s opes metodolgicas Um "olhar por dentro" invesigao-aco? Observao participante? Distanciamento epistemolgico e implicao
A ANLISE DE CONTEDO
Tpicos e material de estudo Documentos em anlise Consideraes Procedimentos Heresias
CAPTULO I! Condies do Exerccio da Profisso e da Formao (Como se tomou indispensvel a introduo de urn enunciado das condies do exerccio da profisso, para que se pudesse aceder a alguma compreenso das condies do exerccio da formao; como se tornou inevitvel falar de programas de formao, para se tentar compreender as condies do exerccio da profisso onde emergiram os crculos)
COMPREENDER O EXERCCIO DA PROFISSO
Condies do exerccio da profisso O 1o Cicio do Ensino Bsico no limiar da sobrevivncia Um modelo origina! de gesto Alguns exemplos Horrios de funcionamento Omisses A precaridade do exerccio da nrofisso Os professores do I o Ciclo esiaro integrados numa carreira "nica"?
6
PROGRAMAS DE FORMAO
101 Programas de formao para o I o Ciclo
(1o CASO EXEMPLAR)
O sistema de fases 104 A formao para a introduo das fases de escolaridade 108
/ o o p A C A c y c o p i / \ D \ \/L V V M V J W i _ A i _ i u i r L n i \ )
O projecto das escolas de rea-Aberta/P3 120 Como surgem em Portugal as Escoias P3? 120 "rea-Aberta" porqu? 125 Da legislao formao em 'rea-Aberta" 127
(3o CASO EXEMPLAR)
A reciclagem para os Novos Programas (de 1979/1980) 133 Programa de 1980/Gerira precaridade 134 Os CAP - percursores das reciclagens de 90 139 A reciclagem para a Reforma Curricular (1989-1991) 142 A centralidade da ideia de projecto 144 Projecto e modernidade 145 Breve cenrio da formao em nmeros 149 A componente 9 do PPSE 151 A sensibilizao para a Reforma Curricular 152 O concelho de S.Tirso foi contemplado com a experincia da introduo da Reforma Curricular 156
A quem serve esta formao de professores? 158
7
CAPTULO III O Crcuio de Estudos 161 (De como, por via do cruzamento das representaes e prticas,
deparmos com alguns insignificantes significados)
FORMAO E MUDANA
Dos modelos s modalidades de formao 163 O excesso de intervencionismo das estncias administrativas foi sempre causa de desarme cultural, tcnico e ideolgico dos pro-fessores 135 Modelos e conflito de racionalidades 169 Processos de mudana no crculo 173 Mudana pesoal no colectivo de formao 174
"APENAS LHE DEMOS UM NOME"
Porqu chamar-ine Crculo? 179 Os crculos de estudos na tradio escandinava 1S2 As comunidades de adultos em auo-formao 186 Os crculos de estudos no I o Ciclo do Ensino Bsico 189 Como surge o animador de crculo? 195 O crculo como projecto existencial 200 Algumas etapas comuns criao de crculos de estudos 202 uma metodologia de crculo? 205 O local e singular 207 A singularidade do crculo 207 introduo s caractersticas do crcuio de estudos 209
(Chegados aqui, procurmos compreender como e o que andva-mos a fazer nestes grupos a que agora chamavam "crculos". Mova-nos a memria dos anos. inventarivamos caractersticas presumindo que, neste esforo, nos seria possvel melhorar a aco)
8
CAPTULO IV inventrio de Caractersticas 214
PROJECTO
Formao em crculo e projecto educativo 216 Projecto de formao em crculo e Projecto Educativo de Escola 222 Do Joo Semana ao professor numa equipa de projecto 225
MEDIAO
O formando-mediador de formao 229 "Fazer os alunos mais felizes" 233 Esta formao a verificao das dificuldades de ensino 237
MUTUALISMO
Aprender com os outros 240 De uma formao individualista formao mutualista 253 Condies de aprendizagem na formao entre pares 258 A procura de segurana 262
r - u \ I I _O / -A IN / - \ i v_/
O valor atribudo experincia 268 Valorizao do adquirido e determinao de necessidades 273 Que necessidades? 275 Identificao de necessidades no crculo 277
9
INFORMALIDADE
A informalidade 280 Informalidade e educao informal 288
rcmviAiNCiNoiM
A permanncia no crculo 291
PRAXEOLOGLA
Integrao teoria-prtica 298 Sobre formao contnua j tudo foi dito e quase tudo continua por fazer 309
A C T I D M A f i n n i i\ivi/-v\y
10
PARTICIPAO
A Democraticidade em Democracia se aprende 356 De onde parte a iniciativa do crculo? 359 1o Ciclo do Ensino Bsico: a afirmao da possibilidade de participar 355
(Na transcrio de um dos muitos momentos de recolha participan-te se introduz concluses que so um inquieto retorno s mesmas questes de partida, sob a forma de apeios s instituies de for-mao inicial, aos formadores e a investigadores que, porventura, faam deste caos de sugestes algum aproveitamento)
Significado da aco em crculo 375 Conhecer para compreender as condies do exerccio da profisso 332
U U I N U L U O U C S
CONCLUSES (I): potencial e limites da formao em crculo 383 Os limites de uma formao contnua que passa pela formao iniciai -5CM
Qual seria o papel desejvel das instituies de formao inicial, na perspectiva dos formandos organizados para a formao em grupos mstituintes de gesto colegial? 398
CONCLUSES (li): para o perfil de um formador no crculo 403 Um sentido ambguo deformao 403 O 'formador ideai" no existe 408
CONCLUSES (III): As caractersticas do crculo 424 Propor novos estudos 430
BIBLIOGRAFIA 432
11
INTRODUO
Se possvel extrair do presente estudo uma inteno, ser a de procurar
compreender uma modalidade de formao na identificao compreensiva das
suas caractersticas.
A estrutura do estudo revela quatro componentes, que no podem ser
dissociadas, porque mutuamente se influenciaram no tempo de uma investigao
que foi tempo de aco. Estas componentes surgem sequenciadas apenas com o
fim de facilitar a sua leitura.
Transpostas a definio e a justificao de um problema, procurada a metodologia
que melhor servisse a aproximao ao objecto de estudo, tomou-se necessrio
esclarecer as condies do exerccio da profisso, para que fosse possvel aceder
compreenso das condies do exerccio da formao.
Cedo surgiu a necessidade de interpelar algumas evidncias. Seria impossvel
concretizar a anlise das condies de formao, se o crculo se furtasse ao
esclarecimento das condies do exerccio da profisso. Neste desiderato se
justificou um exerccio crtico sobre os programas de formao destinados aos
professores do 1o Ciclo e desenvolvidos ao longo das duas ltimas dcadas.
Imps-se memria colectiva uma sbita verificao: ao longo desses vinte anos,
acontecera um crculo de estudos ("agora apenas lhe demos um nome").
No inventrio das caractersticas do crculo, os textos utilizados no so apenas
os contemporneos da pesquisa. Foi necessrio reconstituir um percurso. A par
das actas de crculo, de recados ao formador, ou dos registos de avaliao dos
encontros, tambm os documentos de h dez ou quinze anos justificavam uma
anlise atenta.
12
Poder-se-ia utilizar os registos como verificao de hipteses, ou optar pela
utilizao dos segmentos analisados como suporte coerente com um determinado
enquadramento terico. No caso presente, o registo das representaes funciona
como ilustrao de enunciados. Este sublinhar de uma elaborao terica, que se
refez e se projectou no quotidiano do crculo, fez incorrer em riscos. Mais do que
traduo de uma saudvel "transgresso metodolgica", produziu algumas
fragilidades: em certos momentos, os enunciados aproximam-se de prescries
normativas; noutros, da denncia de condicionalismos; partida, visava-se a
indagao do que se passa na formao em crculo, mas chega-se quase ao
ponto de subentender a sua apologia. Mas como fugir a heresias, quando a
prudncia se submete emoo numa prtica de formao partilhada?
O enunciado das caractersticas no obedece a uma qualquer ordenao lgica.
As sucessivas fases da anlise recomendavam uma arrumao em blocos
posteriormente sujeitos a epgrafes: projecto, mediao, mutualismo, artesanato,
informalidade, praxeologia, afirmao, senso-crtico, identidade, errncia e
participao.
Na identificao destas caractersticas, o crculo revela-se como excepo
interessante, como instrumento de anlise de formao que interpela as condies
do exerccio da profisso no 1o Ciclo do Ensino Bsico.
Poder-se- falar de introduo, ou de posfcio?
A ideia e os propsitos iniciais no se coadunavam com uma atitude positivista.
Da alternativa resultou uma reconstituio de itinerrios percorridos, pois, se um
plano prvio existiu, dele no restam seno vestgios. Quando o estudo se detm
formalmente, a generosidade do material j prodigalizara uma maior extenso que
a desejada para um trabalho desta natureza.
Mas por aqui se fica, deliberadamente urgente e inacabado.
13
CAPTULO I
Condies da Investigao
OPES
Para nos situarmos
Para que serve a formao?
Ainda h quem afirme que a histria no se repete
Algum tempo para voltar a acreditar
Um projecto e muitas intenes
1o Ciclo - um quadro de contradies
Para que serve investigar?
15
Para nos situarmos
Num perodo to sensvel como o da institucionalizao de um sub-sistema de
formao contnua de professores, seria prematuro sobrevalorizar determinadas
modalidades de formao em detrimento de outras. Porm, justificar-se- uma
ateno "mais atenta" a fenmenos de generalizao de modalidades que
fomentam, ou reforam dependncias nada consentneas com metforas
tradicionalmente aceites no discurso contemporneo das Cincias da Educao. A
lgica administrativa invade espaos onde deveria predominar a pedagogia. Os
cursos colonizam os planos de formao dos centros. O modelo dito acadmico
no corresponde especificidade de projectos locais, no evidencia flexibilidade e
um bice ao efectivo desenvolvimento pessoal e profissional dos professores.
Por sua vez, o processo de constituio dos centros de formao das associaes
de escolas foi permevel influncia de prticas sedimentares que, a par com a
conflitualidade inerente ao processo e as contradies do normativos que o
regem, desembocou na institucionalizao de estruturas com escassas margens
de autonomia, sujeitas a novas e subtis formas de dominao. Por sua vez, a
herana reprodutora que se esboa condiciona, a autonomia dos projectos das
escolas.
Ressalvadas as excepes, verificamos que, em 1993, so desenvolvidos planos
de formao sem quaisquer referncias a um projecto. Os planos de formao so
concebidos sem uma referncia matricial que vincule o centro de formao a um
modelo, ou, no mnimo, a "dmarches" de autonomia que qualquer projecto
pressupe (como sabemos, os planos so apenas plataformas mediadoras de um
projecto). frequente nos planos uma referncia metfora do professor
"profissional autnomo, crtico, reflexivo..."mas a hegemonia da modalidade curso
16
(com ou sem esta designao), as metodologias perfilhadas, ou o tipo de
avaliao utilizado contrastam com os pressupostos introdutrios dos planos.
Desprovido de um projecto, o centro vulnervel a prticas massificadoras e
preponderncia de critrios industrialisantes pouco consentneos com critrios de
qualidade. Predomina nos planos um modelo dito tradicional, reformista,
transmissivo, acadmico, escolarizado, ou designado por um outro qualquer
eppeto pelos seus crticos ou detractores. Na ausncia do projecto, verifica-se,
directa ou indirectamente, um excessivo intervencionismo externo e a
socializao num modelo de formao academizado e a manuteno da formao
por catlogo1.
E escassa a interveno dos colectivos de escolas e professores na definio do
seu projecto. Na falta do Projecto de Centro, prevalece um qualquer projecto
concebido exteriormente. Quase no se poder faiar de "associaes de escolas".
Haver, quanto muito convergncias pontuais em funo de imperativos alheios
formao contnua.
Neste captulo ser oportuna a consulta legislao disponvel para se avaliar do
grau de autonomia dos futuros projectos dos centros, subentendida esta
autonomia como quesito e garantia de qualidade da formao neles desenvolvida.
No art0 35 o RJFCP estabelece como direitos dos formandos:
a) Escolher as aces de formao que mais se adequem ao seu plano de
desenvolvimento profissional e pessoal;
b) Participar na elaborao do plano de formao do Centro a que se encontra
associada a escola a que pertence;
No me surpreenderia, se o modelo mais teoricista e distanciado da realidade escolar - a
Universidade Aberta - viesse, num futuro mais ou menos prximo, a ocupar o lugar que deveria
ser preenchido pelos projectos dos Centros de Formao.
17
c) Cooperar com os outros formandos na constituio das equipas que
desenvolvam projectos ou promovam crculos de estudos.
Em contrapartida, o art0 36 estabelece os deveres:
a) Participar em aces de formao contnua que se integrem em programas
nacionais e regionais considerados prioritrios e decorrentes da necessidade de
introduo de reformas.
Sublinhe-se como significativo nesta anlise:
o direito a promover crculos de estudos;
o dever de frequentar as aces determinadas pelo centro do sistema.
Por sua vez o art 21 consagra a autonomia pedaggica dos centros de
formao. Mas, entretanto, j o artigo anterior, respeitante s competncias,
obriga os centros a "assegurar as prioridades nacionais de formao". Depois, o
decreto tolera que "na medida do possvel", os centros assegurem aces de
formao que os professores solicitem. Esta benevolncia at seria bem aceite e
compreendida, se no fossemos ns herdeiros de uma tradio napolenica.
Em suma:
E paradoxal que se desenvolva formao sem referncia a um projecto de centro.
O gigantismo de estruturas supostamente participadas, mas efectivamente
despojadas de iniciativa, poder ser pretexto para a introduo contextualizada de
novas e subtis regulaes. Resta esperar que da dependncia se passe
iniciativa e que os projectos que vierem a ser concebidos sejam geradores de
novos projectos. E que se confirme o princpio de que o professor no um mero
cliente de produtos pr-confeccionados, mas co-produtor da sua formao. A
metfora do "professor autnomo, reflexivo..." passaria a ser algo mais que uma
simples figura de retrica.
18
Para que serve a Formao?
A formao um dos pontos crticos do Sistema. O sub-sistema de formao vive
anestesiado por metforas e por tericos consensos. Os professores-formandos
vo s formaes como se vai a um supermercado de crditos. Podero os
centros de formao perguntar-lhes o que desejam mas, ao cabo do processo de
"levantamento de necessidades" o que prevalece o catlogo prvio normalmente
concebido num qualquer organismo central do ministrio, de uma agncia do
Fundo Social Europeu, uma qualquer instituio de formao inicial, ou no
escritrio do formador. Se a formao "feita" a negao da citada metfora, se a
formao no age nas prticas, se no contribui para a mudana pessoal, para
que serve?
Em formao, nas escolas ou noutros espaos, perceptvel o ressentimento dos
professores. De uns, o desagrado pela obrigao; de outros, a desiluso de dez,
vinte e mais anos de formao sem expresso ao nvel das prticas.
As aces so agora em maior quantidade. Se antes as aces eram boas e os
formadores simpticos, com as alteraes introduzidas no Regime Jurdico, sero
cada vez de maior qualidade e os formadores cada vez mais objecto de simpatia e
admirao. Mas no me imagino a fazer, dentro de mais dez anos, as mesmas
perguntas. O que mudou com a formao, de h vinte anos para c? O que
mudou nas pessoas, nas escolas, nas salas-de-aula, nos alunos?
Dir-se- que mudar sempre "alguma coisa". E, depois, difcil afirmar, com
objectividade, a inrcia empiricamente registada. Pois , muito difcil.
Na poca do triunfo do virtual, a formao transforma-se em adorno cientfico. Os
estudos nada transformaram: desligam-se da realidade estudada. Essa realidade
mostra-se, por seu turno, autista face s concluses dos estudos. Quase tudo
quanto tem sido escrito sobre formao tem sido dito de fora. Como escrever
19
sobre a morte, como investigar a Lua somente na sua face exposta e visvel?
Analisa-se o banal. Dito de outra forma, produz-se meras efabulaes e (o que
grave) corn a chancela de cientificidade.
O discurso sobre formao contnua est povoado de conceitos como o de
racionalidade crtica, de racionalidade emancipatria, capacidade de reflexo. Mas
bastar um olhar srio sobre a situao nas escolas para compreender que a
metfora do professor reflexivo, crtico, etc.. ainda no passou disso mesmo: de
uma metfora.
Estude-se o Crculo, no como uma modalidade redentora, mas como espao-
tempo potencialmente capaz de operar a prtica de uma formao consentnea
com as metforas do discurso terico. A mudana nas escolas depende mais de
uma atitude crtica activa (que a organizao em crculo, eventualmente, fomenta),
que do acumular de projeces tericas. Uma mudana talvez possvel em grupos
isolados do universo de contradies em que se transformou o sub-sistema de
formao contnua de professores. So estruturas frgeis, expostas
desagregao, mas que resistem s atribulaes normativas e s atitudes de
professores coniventes com as regras que lhe so impostas (ou que numa
ingenuidade auto-desrutiva nem sequer delas se apercebem).
Ainda h quem afirme que a histria no se repete
Em 1978, coube-me a coordenao pedaggica concelhia de um programa de
formao contnua de professores. Tratava-se de um programa ministerial com o
intuito de "reciclagem" (como ento se designava) com vista introduo dos
novos programas para o Ensino Primrio. Mais por intuio que por referncia a
um quadro terico, fiz do primeiro momento um encontro de escuta, em grupo.
20
Fora eleito pelos professores do concelho onde trabalhava e era com eles e por
eles que qualquer projecto poderia ter lugar. Passei a trabalhar, fora de tempo
lectivo com mais cinco professores. Nos fins-de-tarde do ms de Outubro de 1978,
procedemos a um levantamento de recursos. Foi ento que detectmos a
existncia de uma Biblioteca Pedaggica na arrecadao da Delegao Escolar.
Jamais havia sido utilizada pelos professores.
Retirado o p, inventariados os livros, estes passaram a circular pelas escolas. O
ritmo de requisies era intenso. Entretanto, em Novembro do mesmo ano, era
publicado o primeiro nmero do "Projecto", boletim do recm criado Centro de
Documentao Pedaggica. O texto de abertura tinha um ttulo sugestivo: "O que
foi e ser a formao contnua dos professores". Estvamos em 1978. Tudo
comeara por ser uma mera inteno ministerial de "reciclar" professores.
Os boletins seguintes davam notcias de inmeros projectos, encontros,
exposies, estudos... Inusitadamente, a Biblioteca Pedaggica Concelhia j no
conseguia satisfazer todos os pedidos de livros que nos chegavam. Entretanto,
sem um enquadramento jurdico que salvarguardasse as estruturas criadas, sem
um estatuto definido, os poderes administrativos e inspectivos tudo fizeram para
destruir algo que pressentiam fugir ao seu controlo.
A equipa em que me integrava resistiu at onde pde. Depois, pediu a demisso.
A Biblioteca foi conferida, fechada, e voltou para a arrecadao de onde viera.
Volvidos oito anos, era criado o "Programa Interministerial de Promoo do
Sucesso Educativo". A equipa eleita pelos professores em exerccio no concelho
voltava a integrar alguns dos que, no hiato entre as duas iniciativas do ministrio,
haviam resistido em grupo degradao pedaggica das escolas. Coube-me, de
novo, o papel de coordenar o programa. Fui encontrar a Biblioteca tal qual a havia
deixado em 1979. Retirado o p, verificmos que apenas faltavam os dicionrios.
E no havia qualquer registo de requisio entre 1979 e 1987.
21
Algum tempo para voltar a acreditar
Em 1992, concludo mais este programa, voltei a ser apenas o professor de
provncia que sempre fui. Mas, desta feita, a Biblioteca no voltou para a
arrecadao. Ao cabo de muitos meses de conflitos com a burocracia, a
associao de professores que resultara da aco do PiPSE e dos grupos que
haviam sobrevivido a maus-tratos de quase duas dcadas, tomava a seu cargo a
gesto dos livros e de outro material produzido na formao.
Em 1992, crimos o nosso Centro de Formao. E em 1993, fomos os primeiros a
estabelecer contactos para a criao do centro de formao da associao de
escolas.
Mas 1993, foi um ano de grandes desvarios: foram ignorados projectos
anteriormente desenvolvidos, outros foram assimilados na sua exterioridade, para
legitimao de novos poderes e os cifres usurparam o lugar da pedagogia da
solidariedade. Precisei, portanto, de algum tempo e de algum distanciamento, na
imerso total no quotidiano de uma escola e no concreto das contradies de
vrios grupos de professores em formao contnua.
Retomei o registo de reflexes, sem iluses militantes mas, apesar de tudo, com
um propsito construtivo. Vou-me estudando e estudando e isso me basta. No
sei se isto que agora comeo servir para algum, ou para algo. E s isto que
me preocupa.
22
Um Projecto e muitas intenes
Quando analisvamos as caractersticas das modalidades de formao contnua
mencionadas no regime jurdico algum comentou: "o que ns j fizemos foi isto
mesmo sem lhe darmos este nome". As palavras so apenas isso, palavras,
formas transitrias e inconsequentes, mas estas retive-as. Releio-as e, embora
opte pela redao na primeira pessoa2, evoco outros momentos de um j longo
percurso3 de formao em crculo... "ainda que o no soubssemos".
A experincia limitada, local, mas creio ser til o seu estudo, esta partilha das
imagens que as palavras consentem. Durante e aps a concluso deste registo, o
trabalho annimo manter-se-. (Espero no o perturbar inutilmente).
Provavelmente, manter-se- tambm o conflito com tutelas, hierarquias e
desvarios do sistema, que, no passado, foi uma constante. Os crculos
aprenderam a co-habitar com as crises e as contradies.
Foi nesses grupos que aprendi a recomear, aps as iniciativas com que o centro
do subsistema presenteou o primeiro ciclo (ex-ensino primrio) e que se saldaram
sempre pelo insucesso. preciso relativizar desde j qualquer hipottico
contributo deste estudo para a correco do pendor autoritrio, hierrquico e
centralizado dessas iniciativas. Quanto muito, o que se pretende ser a denncia
de alguns indivduos organizados em grupo com veleidades autonmicas que lhes
confiram menor dependncia face homogeneidade reinante...
2Significa a assuno de uma responsabilidade individual pela descrio de um trabalho
colectivo: no o plural que regista. 3Cerca de vinte anos.
23
Este trabalho parece coincidir com o fecho de mais um ciclo de vida destes
grupos. Em 1993, os crculos eram raros4. Mas arriscam-se a ser transformados
em moda pedaggica. S por esta razo j se justificaria o seu estudo, um estudo
de dissonncias, de marginalidades, que antecede a sua eventual assimilao ou
descaracterizao. So escassos os estudos de interpretao e de organizao
crtica de experincias deste tipo. Acresce que a formao contnua de
professores, se encontra intimamente ligada s prprias condies do exerccio da
profisso, e com elas pode interagir como factor de mudana.
Durante quatro anos, acompanhei5, do interior6 , processos de auto-formao e
aferi o discurso de professores pelas suas prticas. Foi-me permitido concluir ser
hoje mais difcil que h alguns anos romper uma reflexo sobre a prtica que est
cada vez mais viciada por lugares-comuns, e por uma retrica herdada da
formao de modelo clssico (transmissivo, acadmico, ou o que lhe quisermos
chamar). Pude observar, directamente, em situao de sala-de-aula, que esse
discurso no disfarava o conservadorismo da prtica. Um tipo mais subtil de
conservadorismo consistia na adopo acrtica de esteretipos e "cristalizao" de
inovaes, disseminadas por projectos da iniciativa do ME7, ou por este
perfilhados. Alguns sobreviventes de um miiitantismo tardio8 eram, ento,
incutidos a debitar, em aces tambm patrocinados pelo ME, tcnicas de
iniciao ao mtodo global da leitura ou outros paliativos avulsos jamais
4Em Abril de 1994, das cerca de 500 aces acreditadas pelo Conselho Coordenador de
Formao Continua de Professores, apenas 4 eram crculos de estudos. 5Fui coordenador concelhio do Programa Interministerial de Promoo do Sucesso Educativo entre 1987 e 1991.
6Partilhei o quotidiano de 76 escolas, 400 professores e 8000 alunos, directa e quase
permanentemente entre 1987 e 1991. 7Apenas um exemplo: "Ensinar Investigar" 8 Exemplo: "Movimento da Escola Moderna"
24
integrados na prtica pedaggica dos formandos. Seria de esperar. E ainda bem
que assim aconteceu. Finalmente, poder-se-ia identificar um grupo restrito de
professores que concretizavam uma sntese coerente entre a formao e a sua
prtica pedaggica.
Para se compreender a diferena relativamente a este ltimo grupo, ser
necessrio penetrar a realidade do primeiro cicio9 em momentos de inovao
centralmente concebida e sobejamente conhecidos. As duas ltimas dcadas
ficaram assinaladas por vrias inovaes com origem no centro do sistema, entre
as quais a "fase de escolaridade" e o projecto das escolas de "rea-aberta".
Citarei estas duas por serem, provavelmente, as mais conhecidas, embora muitas
outras jamais concretizadas, nem avaliadas, pudesse juntar-lhes nesta ilustrao.
Creio ser significativo o facto de apenas no ltimo dos grupos antes citados se
verificar, quer a desconstruo das duas propostas enunciadas, quer a sua
integrao reflectida na prtica pedaggica10.
9Quase sempre idiossincrtica para os que lhe so alheios. 10 Fica o convite explcito para estudos mais profundos sobre estes fenmenos. Os professores
e as escolas a esto para atestar as diferenas: numas manim-se a segregao em classes j
terica e legalmente irradicadas do 1 o Ciclo e os muros a separar espaos; nas outras, a
comunicao entre espaos e actores do drama educativo e a flexibilidade dos processos.
25
1o Ciclo - um quadro de contradies
Quem quer ver a luz tal como ela tem de recuar para a sombra u
Em 1991, regressado ao trabalho directo com crianas, apercebi-me melhor de
como fcil teorizar fora de situao. Disposto a enfrentar a dureza do trabalho no
I o Ciclo num grupo com um projecto, no renunciei, contudo, tentativa de
compreenso que, neste estudo, me proponho realizar.
neste quadro que ele ganha pertinncia. Um quadro de contradies, no qual h
professores que parecem pouco preocupados com a degradao da formao e
das prticas, enquanto outros se insurgem e constroem verdadeiras culturas de
resistncia.
A LBSE estabelece como factor de valorizao profissional uma formao que
privilegie uma relao intensa e permanente com a actividade educativa. Vemos,
porm, manterem-se critrios que alienaram esta dialctica, no nico dos ciclos
de ensino onde ainda no existe gesto democrtica e no qual os titulares de
cargos de gesto intermdia so designados por nomeao directa de um superior
hierrquico.
No campo da formao, as iniciativas foram tradicionalmente marcadas por uma
preocupao eminentemente tcnica. Regra geral, visavam rituais de
actualizao (designados por reciclagem) concebidos por organismos centrais ou
regionais do Ministrio da Educao, com recurso frequente a instituies de
formao inicial de professores. Os formadores reflectiam uma profunda
ignorncia relativamente a problemas especficos deste ciclo de ensino e
escudavam-se, inevitavelmente, na transmisso de contedos tericos.
Estes encontros tiveram uma virtude. Foram oportunidades no desperdiadas por
alguns professores para interpelar a prpria formao. Alguns segmentos
11Engensberger, H. (1975) Poemas polticos, Lisboa, D. Quixote, p. 135
26
conjunturais foram, deste modo, abertura para a concepo e desenvolvimento de
projectos locais. E se alguns outros projectos foram anulados pela interveno de
inspectores ou da hierarquia admnistrativa, outros houve que resistiram eroso
do tempo.
Se j no vamos a tempo de recuperar o investimento (em recursos e
expectativas) desperdiado em vinte anos de projectos falhados, poderemos,
contudo, aproveitar mais uma das aberturas consentidas. Isto : a existncia de
um regime jurdico confere ao exerccio da formao contnua regras que, podem
no ser ideais, mas que existem. E tambm no quadro do institudo que o
exerccio crtico se pode concretizar, no se confinando os espaos perifricos.
Para que serve investigar?
No campo da formao contnua no 1o Ciclo no h uma teoria, construda
porque ainda so escassos os estudos que incidam em efectivas
transformaes12.
O drama dos investigadores tem sido este. A quem vive o quotidiano da escola, a
quem investiga a todo o momento, no sobra tempo para fazer registos. Os que
lhe so alheios observam, inferem, exorbitam, captam o suprfluo e generalizam-
-no. As concluses dos estudos reflectem a origem dos investigadores, raramente
a realidade dos investigados. Mesmo quando so ex-docentes do 1o Ciclo a
conduzir os estudos so ex-docentes com experincia de um primrio dito
tradicional que investiga nas leituras que as suas representaes permitem.
O drama para os que esto "dentro" consiste em que tudo parece ter sido j dito
(pelos especialistas) sobre a formao. No irnico contraponto com o real
Ressalve-se alguns estudos com caractersticas de investigao-aco.
27
extremamente difcil assumir a humildade curiosa de quem compreende que na
formao contnua no existe ainda um edifcio terico coerente.
Muitas investigaes limitam-se recolha de experincias isoladas (ainda que
significativas) e, regra geral sem consequncias prticas, nem continuidade.
Assentam em concluses estticas, produtos de modelos explicativos construdos
" priori", ou (o que ainda pior) so meras teorizaes de teorias que,
entropicamente, se legitimam umas s outras. Se a investigao sobre (ou na)
formao no serve a transformao das prticas, para que serve?
Chegmos definio de um regime jurdico e ao lanamento macio de aces
de formao decorrentes de fundos comunitrios, dispondo de um conjunto
aprecivel de estudos, mas impotentes perante a hegemonia de um modelo de
formao que, nas modalidades, metodologias e princpios os contraria. E que se
generaliza, apesar de e sobre tais estudos. A ligeireza do legislador tem como
base de apoio um labirinto de sinais de contradio fceis de identificar:
Para muitos professores o facto de ser obrigatria a frequncia de aces de
formao parece constituir um incmodo ou castigo (e talvez lhes assista
alguma razo)
H aces que se esgotam a si mesmas, repositrios de ideias-feitas e
receitas avulsas debitadas sobre auditrios passivos.
Nestas aces os formadores so, em muitos casos, incapazes de concretizar
nos seus locais de trabalho as proposta que veiculam. Fazem apelo terico
prtica de "metodologias activas", mas a metodologia efectivamente utilizada
na formao a completa negao da teoria. Prescrevem mudanas que so
incapazes de operar na sua prpria prtica.
A dimenso tcnica no , talvez, a mais importante, mas no poder ser
alienada. inconcebvel pois, que haja quem no tenha alguma vez passado
28
por uma sala-de-aula e oriente formao de professores que so simulaes
de tcnicas de iniciao leitura, ou ao clculo, especficas do 1o Ciclo.
Os planos de formao dos Centros so quase idnticos, coleces de
modalidades escolarizadas antecedidas de introdues consignadoras das
metforas do professor "intelectual, reflexivo, etc"13.
A contiguidade geogrfica o critrio instituido para associao de escolas.
No existe uma tradio de associativismo, mas as escolas so compelidas
associao. Os centros pressupem um projecto e uma interveno dos
directamente interessados. Mas burocratizaram-se. Os directores passaram o
ano de 1994 espera de financiamentos. As comisses pedaggicas no
funcionam. E, onde funcionam, os representantes das escolas do 1o ciclo
representam-se a si mesmos.
Entretanto - e para no tornar mais longa a lista de problemas - refira-se que
(v-se l saber porqu!) os servios da Administrao Central e Regional do
Ministrio da Educao esto isentos de pedir acreditao para realizarem
formao de professores, mas os crculos de estudo at carecem de
autorizao das comisses pedaggicas dos ceniros de formao e, em ltima
anlise, at j nem ser precisa tanta artificialidade e tantas restries... Com
as alteraes introduzidas ao regime jurdico da formao, s poder, na
prtica, haver crculos onde houver um formador externo, ou crculos
constitudos por mestres e doutores.
Que espao resta aos professores auto-organizados em grupo, seno a
marginalidade face a crditos e a financiamentos? Que espao resta para a
formao?
13J vi um mesmo projecto de formao ser integrado nos planos de seis centros. Quem se
escandaliza com o facto?
29
UMA INVESTIGAO (QUASE) MARGINAL
O assunto no traz notcia
Ainda a tempo
Dvidas e lugares de procura
Para definir objectivos
A formao contnua existe?
30
O assunto no traz notcia
Manifestaes como os crculos de estudos so, regra geral, remetidas para a
periferia do sistema e assumem-se at elas-prprias como marginais.
Permanecem ignoradas, sem que delas se tome conhecimento, ou sobre elas se
reflicta. Mas, se vierem a constituir-se em objecto de pesquisa, importar ter em
considerao o seu carcter local e a sua circunstancialidade. Por outro lado, o
crculo de estudos no constitui novidade. Na gnese de grande parte dos
movimentos pedaggicos das duas ltimas dcadas em Portugal, se poder
encontrar, por exemplo, a caracterstica da auto-organizao. O crculo representa
uma oportunidade de auto-formao em grupo. No um dispositivo redentor dos
sortilgios dos modelos tradicionais de formao.
A auto-formao ultrapassa os quadros sociais de vida. Ela parece ser a
expresso de um processo de antropognese que extravasa as estratificaes
sociais e educativas tradicionais. Compreender e trabalhar este processo obriga-
-nos a apoiar a reflexo sobre a auto-formao (...) nas cincias emergentes da
autonomizao (Pineau, G.: 66)14.
Por isso a definio do objecto far-se- atravs de um esforo de sublimao de
um objecto que ficou algures, num percurso de reflexo que continua e se
aprofunda.
O estudo centra-se em processos de formao, melhor dizendo, de apropriao
de formao, no reconhecimento de que tais processos de formao no so
independentes da histria da vida dos sujeitos. Esta concepo delimita o objecto
de estudo: centrada nas pessoas e no contexto, desvaloriza a vertente mais
4Pineau, G. (1988) O mtodo auto-biogrfico e a formao, Ministrio da Sade, Lisboa
31
tecnicista da formao, isto , os instrumentos e os meios. Deciso que julgo
coerente com o princpio de que no se trata de avaliar a aco de algum sobre
um grupo para o conduzir a uma mudana do seu sistema de representaes. Os
professores so aqui considerados como agentes sociais inseridos em contextos
singulares que, embora sejam produtos destes contextos, so tambm capazes de
agir sobre eles e reflectir sobre o seu processo de transformao15.
Ainda a tempo
Este estudo apenas mais um momento de reflexo crtica, um produto
inacabado, dinmico. Ir sendo construdo ao construir, vai-se aprendendo a fazer
ao fazer.
Mero amador destas causas, limito-me a procurar compreender onde a formao
existe e como sobrevive. O tempo escasso para a redaco. (No chega sequer
para estudar o que os meus alunos redigem na escola). Fatalmente, o estudo
acaba por ser um mero registo subsidirio, ou, se quisermos, um exerccio
penitencial de quem no abdica da solidariedade perante aqueles que
anonimamente suportam maus-tratos e humilhaes dirias e que no tm
possibilidade de se manifestarem. Provavelmente apologtico e inevitavelmente
imperfeito, ser um tmido contributo (s pode ser este o termo) para o
conhecimento dos crculos e do indissocivel reconhecimento de zonas obscuras
no exerccio da profisso de professor do 1o ciclo do Ensino Bsico.
15Correia, J. (1990) "Inovao, mudana e formao: elementos para uma praxeologia de
interveno". Aprender, 12:31
32
Contribuir, testemunhar, nada para alm disto. O estudo no uma finalidade-
-em-si-prprio. Ao longo de mais de duas dcadas, assisti impotente desero
de muitos e bons companheiros que, saturados de precaridades, rumaram a
outros ciclos de ensino, ou acharam dignidade em profisses melhor
remuneradas, ou com estatuto social mais elevado que a de professor. Porque
resisti ao legtimo exlio, me obrigo a este contributo pertinente, aps o qual
continuarei a ser apenas o que sempre fui: professor do ensino primrio.
Talvez esta disposio explique um distanciamento a que, deliberadamente me
submeti, um distanciamento prudente no tempo. Deixei que decorressem alguns
meses sobre a concluso da componente curricular do mestrado, para que me
pudesse aperceber da pertinncia de o completar com uma investigao.
Dvidas e lugares de procura
Da sntese de interrogaes formuladas no projecto de investigao poder-se-
relevar uma inteno: a da aproximao compreensiva s dinmicas de formao
em Crculo de Estudos.
Sero, fundamentalmente, duas as questes pertinentes a este objectivo:
1. Compreender porqu, o que equivale, nomeadamente, a interrogarmo-nos
sobre a opo pelo crculo como espao-tempo de formao;
2. Interpretar o como, o que pressupe partir das caractersticas do crculo,
numa anlise de especificidades, sempre atenta complexidade, quer
interna, quer da rede de relaes do sub-sistema em que o crculo se integra
e onde assume significado.
Reitera-se a observao participante como eixo metodolgico do estudo, pelas
razes apontadas no projecto. Mas poder-se- acrescentar que da observao
participante caracterstica do perodo que antecedeu o actual estdio da
33
investigao se passa a uma observao-insero ou, mais propriamente, a uma
investigao-aco que se inicia na passagem para o crculo formal16.
A aco , efectivamente, reflectida, analisada criticamente j na passagem do
crculo informal para a fase de projecto colectivo. Para se concluir da presena em
investigao-aco, restar verificar se o processo de pesquisa se pautar pela
inovao, pela emancipao, pela transformao. A investigao processa-se em
colectivo, incide sobre problemas concretos do quotidiano e no prescinde de uma
participo activa de todos, em todos os momentos. A anlise de situaes
processa-se colectivamente e colectivamente se testam os problemas comuns e
as solues para estes encontradas. relevante a interdependncia entre
investigao e aco, activada por um sujeito colectivo de investigao e de
prtica, agente de mudana17. E preservada uma ligao dialctica entre teoria e
prtica que se traduz: num processo de conhecimento orientado para a
emancipao dos investigadores e dos sujeitos1S; por um objectivo e um campo
de interaco comuns a ambos; por uma comunicao simtrica dos
protagonistas, com distribuio do saber por todos os intervenientes13 atenuando
ou abolindo a relao sujeio-objecto entre investigador e pares na investigao.
Verifica-se a emergncia de um sujeito transindividual que no nem prtico
nem investigador, mas que introduz mudanas no plano da produo de
conhecimentos e no plano das prticas, que assegura a circulao entre os
dois20.
16Ver captulo "Porqu chamar-se crculo?" 17Bataille, M.(1981) Le concept de chercheur colectif dans la recherche-action, Les Ciences de
l'ducation, 2-3, texto policopiado, p.30. 18Bataille, M.(1981) op.cit., p.31 19Bataille, M.(1981) op.cit., p.32 20Bataille, M.(1981) op.cit., p.33
34
Na investigao-aco a mudana no objecto de estudo " posteriori". Gera-se
a pesquisa pela aco e a aco atravs da pesquisa, questionando-se uma
relativamente outra no prprio processo de mudana.
A actividade dos crculos foi inevitavelmente influenciada pelas contradies que
ainda afectam a institucionalizao do sub-sistema de formao contnua. Hesitei
na escolha entre trs hipteses.
1. Inicialmente, optaria por realizar a investigao no prprio crculo de estudos
em que me integro, no quotidiano vivido da escola primria.
Considerei, entretanto que quaisquer dispositivos a introduzir acabariam por
perturbar o curso do projecto de que fao parte. Para alm disso, seria
artificial procurar captar uma etapa isolada de alguns meses num percurso
de dezoito anos, sem fazer uma leitura detalhada de todos os antecedentes.
2. Se a receptividade dos professores da minha escola era total, idntica
receptividade foi detectada num outro crculo onde eu colaboro como
formador externo.
Mas tambm neste caso acabei por concluir que a investigao poderia
perturbar este grupo, seria semelhante a outras investigaes e dificilmente
beneficiaria os participantes.
3. Decidi-me por co-habitar o crculo mais informal de entre os que participei
at ao momento.
Em 1991, sob o pretexto de um projecto de formao contnua submetido ao
Concurso Nacional de Projectos do IIE, cerca de duas dezenas de
professores juntaram-se para reflectir formao, o que determinou a
constituio da PROF como associao, em meados de 1992.
A necessidade de adaptao do projecto s regras do Regime Jurdico
definido pelo Dec.249/92, se trouxe novos professores ao grupo inicial,
35
provocou, contudo, uma exagerada disperso e alguma descaracterizao
do projecto inicial.
Com o encerramento formal das aces, em Dezembro de 1993, demo-nos
conta dessa situao, agravada pelo indeferimento da acreditao do nosso
C. F. pelo Conselho Coordenador, de que tivemos conhecimento no fim de
Novembro.
Mau grado as contrariedades, alguns crculos retomaram os seus encontros,
em Janeiro de 1994. Paralelamente actividade destes crculos, desenhava-
-se a emergncia de um outro, pressentido nas reunies plenrias da
associao, nos debates da Comisso Pedaggica, ou em contactos
informais mantidos entre os meses de Janeiro e Maio de 1994.
Este crculo transcendia as preocupaes dos diversos crculos em que os
seus elementos tambm se integravam. Embora fossem evidentes
preocupaes sentidas e reflectidas nos crculos mais prximos de cada
escola (a avaliao dos alunos, por exemplo), neste o debate centrava-se
naquilo que poder designar-se, na falta de melhor denominao, por
condies do exerccio de formao que o mesmo dizer do exerccio da
profisso21.
Informalmente (como acontecera com os restantes crculos) convidei
delimitao do mbito do crculo, sua formalizao em projecto, o que
conduziria adeso e continuidade, ou, pelo contrrio, ao distanciamento e a
21 Um dado curioso: num Centro de Formao no acreditado pelo CCFCP a formao manteve-
se: ininterrupta, ao longo de 1994. Nos CF. acreditados, tanto quanto julgo saber e ressalvadas
eventuais excepes, a formao parou.
(O nosso CF. viria a ser acreditado em Junho de 1994.)
36
uma colaborao externa e pontual22. Como sempre a liberdade de opo e
iniciativa a caracterizar a gnese e a manifestao de um crculo de estudos.
E foi esta a minha opo: acompanhar, por dentro, quem reflecte problemas
particulares de cada escola enquadrado num nvel mais genrico: o do exerccio
da formao e da profisso. Um problema que, como se v, no do investigador,
mas (se quisermos) de todos os investigadores do crculo.
A preceder e a acompanhar a investigao no crculo, julguei oportuno o recurso
anlise de documentos produzidos anteriormente, nomeadamente os registos de
avaliao das aces de formao em crculo j conludas. Investigo o crculo
enquanto participo de investigaes no crculo. Para o entender, creio ser
indispensvel saber como e porque se chegou at sua formao. Conhecer o
como significa restabelecer um percurso pessoal e colectivo de difcil
reconstituio num tempo to escasso como o estabelecido para concluso do
estudo. Consciente desta condio, dispensei alguns procedimentos. No quis
parar a corrente para estudar o curso do rio. Poderia introduzir, inclusive, registos
udio ou vdeo (mais fieis que a estnografia...), mas iria retirar autenticidade,
artificializar o trabalho do crculo.
2 20s CE. passam, habitualmente, por uma fase que poderemos designar por "quase-crculo"de
que mais adiante se dar definio. A informalidade desta fase condiciona o seu posterior
desenvolvimento. Serve tambm para que cada potencia! participante se defina, aceite, ou
rejeite o tema e a parceria. Este momento precede a fase de projecto e os encontros formais.
37
Para definir objectivos
Os objectivos do estudo podero ser equacionados sob a forma de interrogaes
prvias que julgo pertinentes ao problema e ao objecto:
O que so crculos de estudos?
Quais as caractersticas que os distinguem de outras modalidades de
formao?
O que determina a opo pela formao em crculo?
A hegemonia do modelo escolar-transmissivo poder afectar o
desenvolvimento dos crculos entendidos como culturas locais de formao?
Onde tm origem os projectos de crculo? Na associao de professores? Por
iniciativa externa, inclusive a dos centros de formao?
Quem o formador do crculo? Forma para qu? Formar, ou formar-se?
Que hbitos e atitudes fomentam? De que modo a cultura institucional do
contexto influi no desenvolvimento dos projectos?
Como e por que surgem os crculos no processo de institucionalizao do sub-
sistema de formao contnua decorrente da publicao do Dec.-Lei 249/92?
Qual para os professores o significado dos encontros em que investem tanto
tempo e energias?
Como entendem e sentem a formao nesses encontros? Como se formam?
Como sobrevivem os crculos? Que vantagens apresentam? Que potencialidades, adaptaes, limites?
Todas estas interrogaes, encontradas, ou no, as respostas, servem um objectivo geral que lhes subjaz:
a formao contnua existe?
38
A formao contnua existe?
Sem a presuno de exaustivamente apurar o conceito de formao contnua23,
impe-se, todavia, delimitar operacionalmente a adjectivao "contnua", impe-
-se, nomeadamente, perguntar se a formao contnua que se processa
actualmente nos centros de formao parte dos projectos das escolas (ou se
estes existem, efectivamente, nas escolas...), se interpela as condies do
exerccio da profisso, reflectindo-a, indissocivel que so das condies do
exerccio da formao.
Poder-se- falar de formao contnua em escolas onde os professores no se
conhecem, onde voluntariamente se isolam nas suas salas (ou nos seus ghettos
disciplinares)?
Poder-se- falar de formao contnua quando as aces que a suportam insistem
no conhecimento como um fim-em-si, descurando a procura do conhecimento na
aco para a aco?
Onde est a formao que opera a sntese da teoria com a prtica?
O que acontece quando o projecto de formao decorre de projectos educativos
de escola e na escola investida na prtica pedaggica e reformulada em novas
necessidades? O objectivo de estudo ser procurar definir os contornos de uma
modalidade de formao - O Crculo de Estudos - a partir de dados de natureza
emprica analisados na perspectiva do formando. , obviamente, uma definio
provisria sujeita ao envelhecimento permanente. Tudo e no ,
alternadamente, e a tradio de trabalho em crculo ainda escassa.
2- Nesse mbito h inmeros estudos publicados. O seu enunciado levaria este trabalho para outros caminhos.
39
UM OBJECTO NICO-MLTIPLO
"Andaimes" metodolgicos
E depois... o direito ao erro e ao investigar o erro
A difcil construo do objecto de estudo
40
"Andaimes" metodolgicos
O carcter autobiogrfico e auto-
-referenciai das cincias hoje plenamente
assumido
(Sousa Santos, 1991)
A reflexo incide nos processos de formao que o projecto dos crculos procura
instituir, nos significados que os professores atribuem s suas aces, nas
estratgias que utilizam em formao, nas atitudes e comportamentos
evidenciados, nas suas leituras e descries do vivido na multiplicidade de
situaes e contextos (anteriores e contemporneos da introduo dos crculos).
Prevalece a tarefa de reconstituir o campo alargado, no apenas do facto-em-si,
mas da dispersa multiplicidade dos actores e universos no-directamente
relatados nas "evidncias" recolhidas. Trata-se de integrar o campo de
observao no campo social de que faz parte. Por sua vez, a construo das
categorias de anlise (intensamente dotadas de temporalidade) no foi
considerada passvel de preceder a investigao. Para a construo das
categorias (no decurso do processo de investigao) creio poder partir de
informao que proporciou a reconstruo das caractersticas dos fenmenos e
entre os fenmenos, numa posio metodolgica com o sentido de organizao
crtica das prticas de investigao24.
Bourdieu25, partindo de um trabalho emprico, tenta aperceber-se do sistema de
relaes do objecto, para que este no venha a ser entendido como algo
24 Almeida, J. & Pinto., J. (1982) A Investigao nas Cincias Sociais, Lisboa, Editorial
Presena, p.80. 25Bourdieu, P. (1989) O Poder Simblico, Lisboa, Difel
41
compartimentado, mas como objecto relacionado, e questiona, entre outras, a
noo de "obstculo epistemolgico", o qual tem mais pertinncia relativamente ao
estatuto que o investigador se d a si prprio. Este autor situa a interveno
epistemolgica posteriori e no a prefigura em pr-aco.
Na investigao em formao h, por vezes, a tendncia para a dicotomia entre
objecto e pesquisa. De um lado, a reflexo centra-se nas pessoas e nos
contextos. Do outro, a reflexo valoriza os intrumentos e meios de formao. Mas
os professores no se formam sozinhos, formam-se em contextos especficos,
com os intrumentos e meios de que dispem. no conjunto que o objecto ganha
inteligibilidade, na formulao de um espao de relaes objectivas. Hoje a nossa
necessidade histrica encontrar um mtodo que detecte e no oculte as
ligaes, articulaes, solidariedades, implicaes, imbricaes, interdepncias,
complexidades26.
E depois... o direito ao erro e ao investigar o erro
Quando se refere "objectivao participante", Bourdieu sublinha que s se
pode sair da srie indefinida das interpretaes que se refutam umas s outras
(...), se se construir realmente o espao das relaes objectivas (estrutura) de que
so manifestao as permutas comunicacionais directamente observadas. No
caso presente, so mltiplos os obstculos que se colocam construo de um
"espao de relaes objectivas". No se trata de um "olhar sobre uma clula de
formao". Trata-se de uma anlise realizada por algum que est totalmente
dentro, no triplo papel de director de centro, de membro de uma comisso
E. Morin , La Mthode, T.I., Le Seuil, p. 16, cit. in Bourdieu: P. (1989), op. cit., p.54
42
pedaggica e de formador interno-externo numa dezena de quase-crculos de
estudos, numa sobreposio de universos comunicacionais.
Os crculos requerem mais um trabalho compreensivo que explicativo, mas que
no poder confundir-se com uma compreenso contemplativa. A interveno
reger-se- por uma "neutralidade activa" diferente da neutralidade definida por
Durkheim. Essa "neutralidade activa" caracteriza-se peia induo de um trabalho
de interpretao realizado numa relao que no de observao, mas de escuta.
A posio do investigador no fora, mas uma posio especfica, na qual
observa a relao que os fenmenos tm com as suas interrogaes, no
reconhecimento de que o que produz cincia no o "transfer, mas o "contra-
-transfer", dado a situao de observador ser, simultaneamente a de observado.
Trabalhar marginalmente a tendncias e rotinas acadmicas arriscado, mas
tambm um prazer irrecusvel. Na investigao que pretendo realizar, confirmar-
-se-, certamente, que o que est em jogo no somente o regresso do sujeito de
investigao, mas o regressso da ideia de "aco social", em detrimento da ideia
de prtica. No se trata de uma relao cincia-prtica, mas entre aco e
prtica. Trata-se, efectivamente, de um problema de produo social da prpria
aco investigativa: h um actor que produz aco e que, na aco adquire
conscincia da dificuldade de gerir, por exemplo, as tenses entre teoricismo e
empiricismo. O que define os papis da investigao mais da ordem
institucional: investigador aquele a quem se reconhe o direito de emitir
enunciados legtimos na investigao. Pontifica a definio social dos saberes
legtimos. delicada a delimitao entre observador e observado. E torna-se
ainda mais complexa, quando entre eles existe um instrumento de mediao, se
bem que o instrumento nunca seja "de mediao", nem possua estatuto de
neutralidade. Ele ser sempre um prolongamento do observador ou do observado,
do sujeito ou do objecto.
43
De um ponto de vista radical, eu nunca observo o que tenho pretenso de
observar. Por essa razo, Bourdieu tenta, em alguns dos seus trabalhos, uma
anlise das no-respostas, para chegar compreenso dos efeitos dos
instrumentos no contexto da observao. H necessidade de reflectir as
circunstncias em que se produzem e obtm os dados, mais que a contabilidade
das transformaes operadas e a determinao do nvel de impacto da formao
nas situaes de trabalho.
O "modo de investigar" no pressupe, inevitavelmente, o engajamento a uma
escola, a um mtodo ou a uma tcnica. E os instrumentos sero aqueles que o
desenvolvimento da investigao vier a determinar. Estaro em causa a
permeabilidade a experincias subjectivas que decorrem do agir com as pessoas
e nas situaes. Mas, ainda assim, far pouco sentido relevar a oposio da
"objectivao participante" "observao participante", que Bourdieu considera
anlise de uma falsa participao num grupo estranho27. Est-me vedado o
estatuto de observador imparcial, no me possvel sair da situao para a
objectivar, sem me servir da cincia para intervir no objecto. Integro o campo da
aco e da investigao, no me transfiro para l. Por isso, mais do que a
apreenso das representaes de representaes, tratar-se- do aperceber-me
da realidade oculta que se manifesta nas interaces em que se dissimula a si
prpria28.
Os indivduos jogam-se neste jogo de dissimulaes, possuem a sua conscincia
do acto e dos seus efeitos29. Utilizam um discurso que, apenas na aparncia, pode
27Bourdieu, P.(1989) op. cit., p.51 28Bourdieu, P.(1989) op. cit., p.54 29Conta-se o caso daquele professor que criticava um colega respondente a um inqurito: "Ento tu faltas tantas vezes e dizes a que nunca ds uma falta?" Ao que o outro responde: "Ento querias que deixasse mal a nossa escola?
44
ser analisado. O espao de interaco funciona como uma situao de mercado
lingustico30 que, apesar dos limites impostos pelo reconhecimento das relaes
e das implicaes dos actores, possui "caractersticas conjunturais" que possvel
destacar, para se compreender o dito e, sobretudo, o no-dito. Torna-se, portanto,
indispensvel o conhecimento das "leis de formao do grupo" de actores em
presena. Bourdieu apela ainda transcendncia da apreenso das estruturas
objectivas, que permita explicar o que a anlise de discurso julga que pode
compreender a partir unicamente de discursos31.
A difcil construo do objecto de estudo
Questionei-me sobre qual o objecto que estaria na origem do interesse pelo
objecto que j havia definido no pr-projecto de investigao. A primeira
verificao foi a do interesse em justificar a minha opo pelos crculos, a par com
a necessidade de valorizar esta modalidade de formao. Operada (de algum
modo), uma ruptura com parte do objecto oculto, creio ter tomado como objecto a
pessoa, as pessoas-processos e contextos de formao que, sintetizados, so um
objecto nico: o crculo de estudos.
Haver ainda (e sempre) um risco de uma anlise intensiva de uma fraco desse
objecto, em detrimento da anlise em extenso, o que pode mesmo determinar
no fragmento estudado, mecanismos ou princpios que, de facto, lhe so
exteriores. necessrio, como refere este autor, construir um sistema coerente
de relaes, que deve ser posto prova como tal32.
30Bourdieu, P.(1989) op. cit., p.55 31 Bourdieu, P.(1989) op. cit., p.57 32Bourdieu, P.(1989) op. cit., p.32
45
Nesta breve reflexo, reencontrei tambm a crtica de Morin33 aos processos de
generalizao e de simplificao, bem como a definio de ideologia como
interpretao parcial do mundo, ou um "desvio de ateno". Do pensamento
simplificador resulta uma certa patologia do saber, que exprime dificuldade em
integrar a unidade na diversidade, a individualidade com a globalidade. Existe o
risco efectivo de trabalhar em Cincias Humanas ignorando o Homem. Nas
Cincias Humanas, maior a dificuldade em recolher e tratar a complexidade, pois
a realidade humana de difcil reduo aos elementos que a constituem. Da que,
tanto Bourdieu como Morin apelem a uma "metanoia" e a "meta-sistemas lgicos",
onde haja lugar para a incerteza e para uma epistemologia aberta e no-judicial.
Bordieu no releva mais que a recomendao de Bachelard da "vigilncia da
vigilncia", o sobre-mim intelectual indispensvel efectiva objectivao do
objecto. Esta vigilncia no actua sobre a cincia feita, mas sobre a cincia-a-
-fazer-se e enquanto se faz. Processa-se por rupturas e reconstrues e assenta
no reconhecimento de que no existe algo definitivamente demonstrado, e na
crtica do senso-comum, ainda que "douto" e eivado de "nominalismo verbalista".
A definio prvia do objecto sempre prvia na acepo de provisria, carente
de verificao para alm da iluso da transparncia dos fenmenos sociais. O
trabalho sempre efectuado perante um objecto formal, modelo da realidade
observvel, que no reproduz a realidade. partida apenas dispe de alguns
elementos de anlise do problema destacado. O objecto construdo e
reconstrudo no prprio processo de investigao. A produo de conhecimento
emerge de (e acompanha) a transformao da realidade social.
Morin, E. (1991) Introduo ao Pensamento Complexo, Lisboa, Instituto Piaget
GERIR A COMPLEXIDADE
Metodoiogia(s)
Os limites impostos pelos C. E. s opes metodolgicas
Um "olhar por dentro"
Investigao-aco? Observao participante?
Distanciamento epistemolgico e implicao
47
Metodologia (s)
Reconhecida a caracterstica dinmica e provisria da investigao, procurar-
-se- o reconhecimento da complexidade dos objectos e da falibilidade de dados
imediatos e conclusivos. Em muitos estudos quantitativos h apenas grficos,
cifras, esquemas; no h pessoas. Em alguns estudos qualitativos, quase no h
pessoas; h abstraces. A pessoa inseparvel do contexto em que vivncia
formao. A metodologia servir a busca de significados para essa relao. Trata-
-se de uma investigao em formao e no sobre a formao. Releva da o
predomnio do ponto de vista do formando, perspectiva quase indita no quadro
das investigaes que se conhecem. O investigador no vai ao campo interpelar
os protagonistas da aco que quer desvendar: o investigador est no campo e
protagonista da prpria aco. Consequncia provvel desta estatuto de
investigador ser a sua prpria transformao no decurso da investigao, dado
que se assume, simultaneamente, como investigador, formador e formando. Ser
tentada igualmente a integrao de teorias e prticas de investigao
tradicionalmente sectorizadas e desconexas, procurando a fuga ao que Bourdieu
designa por "monotesmo metodolgico". Visa-se a recolha de todo e qualquer
contributo pertinente compreenso dos fenmenos, numa abordagem sem
intenes normativas.
Que me seja perdoada a afronta de algumas ortodoxias e a interpelao de
redundncias tericas. Alguns estudos sobre formao contnua tendem a
refugiar-se no quadro restrito de abordagens psicolgicas. Outros estudos
alinham-se por perspectivas sociolgicas. Outros recorrem a uma qualquer cincia
e, sob a sua sbia proteco, tecem raciocnios e concluses fundamentalistas. A
formao contnua uma rea de permanente conflito antinmico de tendncias e
legitimidades onde apenas possvel compreender espaos comuns e fugazes,
48
no cruzamento do tempo com a multiplicidade das intenes, tradies e
linguagens. Apenas para dar um nome ao inominvel, falemos de observao
participante como denominador-comum dos procedimentos adoptados.
Considerada, ou no, como metodologia, a observao participante aproxima-se
da inteno deste estudo dado que:
observa do interior os indivduos e os grupos;
promove a apreenso qualitativa dos fenmenos;
consagra a participao do observador;
visa compreender/interpretar diferentes representaes simblicas e sociais;
desmitifica a neutralidade do investigador relativamente ao objecto
investigado e distancia-se da "distanciao positivista".
As prprias caractersticas dos crculos de estudos aprioristicamente descritas
requerem o recurso a uma metodologia que implique envolvimento e negociao.
E sempre, sempre o medo de lavrar em erro, de pensar que, ao cabo de muito
tempo e estudo, poderei concluir que nada foi acrescentado ao caos de prescies
que j se oferecem, que tenha incomodado pessoas e projectos e j nada possa
fazer para o corrigir. Pende sobre o investigador a vertigem da quantidade de
provas, o inebriante fluxo de teorias, mas uma nica dissonncia deve ser motivo
suficiente para questionar a validade dos processos e das concluses.
Persiste uma exacerbada lgica de explicao, uma tendncia modernista de
reduzir at os afectos a frmulas matemticas e a cifras. O modo explicativo
repousa sobre uma causalidade linear, onde as prprias permissas contm
obviamente as concluses e o tempo um sub-produto inevitavelmente incmodo.
No havendo espao para afirmao da validade das inter-subjectividades, o que
posto em evidncia o que pretensamente pr-existe.
49
Os limites impostos pelos CE. s opes metodolgicas
Os estudos incidem, como j disse, sobre iniciativas de formao concebidas ou
patrocinadas por organismos do ME34, por instituies do Ensino Superior 35, ou
por organizaes profissionais de professores. Partem de dispositivos montados
por iniciativa alheia aos professores do 1o Ciclo. Aqui reside uma diferena
substancial: os crculos de estudos partem da iniciativa dos formandos que os vm
a constituir e que deles definem o projecto com ou sem recurso a um apoio
externo (formador, ou outro).
importante estabelecer esta distino. No se trata da "adeso" dos professores
a.um projecto concebido no exterior. O Crculo de Estudos desenvolve-se num
espao-tempo de interveno transformadora de actores-autores com interesses
comuns, consubstanciada num colectivo auto-organizado. Sendo o projecto
concebido pelos directamente interessados, no ser possvel avaliar o "impacto"
nos professores, ou as suas "estratgias de adeso", questes habitualmente
presentes noutros estudos. Vulgarizou-se a unidireccionalidade das investigaes.
Elas partem, exclusivamente, de investigadores exteriores ao grupo-objecto,
semelhana dos prprios projectos de formao, estes concebidos por formadores
que, depois, os introduzem nos circuitos de oferta e procura do mercado de
formao. No o caso. Embora dependente das vicissitudes conjunturais, o
Crculo no est dependente de tutelas de centros de formao, de projectos
"oferecidos" e muito menos de financiamentos, ou mecanismos de controlo directo
do sub-sistema de formao contnua.
34V.p.ex."Ensinar Investigar" 35V.Eco/ESE de Portalegre
50
Um "olhar por dentro".
Da reaco hegemonia das prticas de pesquisa de cariz positivista, resultam
dois modelos alternativos que poderei designar por interpretativo e crtico. Creio
ser oportuno traar fronteiras, ainda que fludas, entre os modelos, de modo a
explicitar o tipo de investigao a que recorro.
No modelo positivista, a pesquisa busca a formulao de relaes explicativas de
fenmenos quase sempre externos, observveis e mensurveis, em amostragens
de grande dimenso, ostracizando o particular e o contingente. No campo da
investigao educativa, regra geral, constituem-se em investigaes sobre a
Educao, que visam aumentar o conhecimento terico por acrscimo de novas
variveis. Pr-exise uma separao evidente entre os prticos e os objectos de
conhecimento, entre teoria e prtica, entre o sujeito-investigador e o investigado,
este ltimo pressuposto desprovido do conhecimento.
Nesta assero, os investigados prescindem da interpretao das condies que
produzem os seus comportamentos, encontram-se "metodologicamente"
separados dos contextos nos quais se processa a sua extstnciar^nquanto que
os investigadores prescindem, por seu turno, da interpretao de resultados tal
como os investigados os entendem. Em caricaturadas*que se classifica e
ordena factos, num quadro de subalternidade admitida da prtica relativamente
teoria, que reflecte uma relao explcita de poder entre o "expert" e o observado.
A interpretao como prtica alternativa, no difere do anterior modelo enquanto
se apresenta como investigao ainda sobre a Educao. Como refere Angulo, o
investigador ainda tem de ir ao campo de trabalho onde vivem os protagonistas
51
da aco que se quer desvendar^. O objecto de estudo o mesmo do modelo
positivista, mas o investigador tem por preocupao compreender o significado e a
construo pessoal e social que os sujeitos tm no seu contexto educativo.
Por outro lado, se a anlise de uma cultura ou fenmenos sociais no caracteriza
uma cincia experimental em busca de leis, mas uma cincia interpretativa em
busca de significado, duas caractersticas so postas em relevo e demarcam a
investigao interpretativa da investigao de matriz positivista. A primeira
consiste na centrao em casos singulares e numa prudncia atenta face s
generalizaes. A segunda traduz-se numa atitude de iluminao e classificao
de significados, na qual o conhecimento no prescreve a aco.
reconhecido aos investigadores um papel importante na construo das
realidades sociais, centrando-se a investigao, frequentemente, quer nos modos
de construo dessas realidades, quer nas interpretaes-atribuies de sentido
dos sujeitos relativamente ao significado da aco.
No campo da investigao sobre formao contnua, a postura compreensiva
difere da positivista, permite de algum modo esbater as fronteiras de poder e de
estatuto social entre os participantes na investigao (investigador-formador-
-formando), permite substituir uma tendncia de comprovao de hipteses
prvias por processos de descoberta participados.
O contacto directo com as pessoas e situae^^ue^eserfe-da^esqftis^do
investigador no lcus de investigao no , porm, condio suficiente para
assegurar a participao efectiva e plena dos investigados no processo de
investigao. Um terceiro modelo se prefigura e que poder chamar-se de modelo
crtico de investigao. Neste, a realidade tal como construda pelos sujeitos no
quadro de um compromisso de transformao contextualiza a no-separao
36Angulo, L. (1989) Conocimiento, creencias y teorias de los professores. Alcoy Marfil: 16
52
entre os sujeitos investigados, a sua prtica educativa e o investigador: este no
vai investigar, mas est ele prprio na investigao.
Processa-se a superao dialctica da relao entre-sujeito e objecto. Processa-
-se uma investigao dialgica, conscientizadora e colaborativa transformadora da
realidade.
O modelo decorre da tentativa ensaiada nomeadamente pela Escola de Frankfurt
de desenvolver uma teoria e um modo de crtica que tm por objecto relevar e
romper estruturas de dominao capitalista. Relativamente ao modelo
interpretativo, a diferena reside fundamentalmente em que no modelo crtico o
procedimento , no apenas formalmente, mas efectivamente participativo.
A presente investigao como que um compromisso entre o modelo crtico e o
modelo interpretativo. E sensvel a impotncia na ultrapassagem do potencial
heurstico do dispositivo de investigao e dos instrumentos de recolha de dados
de que se dispe. Apesar de imerso no campo de observao, o investigador
projectar na investigao os seus prprios limites. Recorre a tcnicas no
objectivo de captar informao pertinente ao estudo dos fenmenos, mas o mais
que consegue trabalhar sobre a intersubjectividade representacional.
Compartilha da transformao, mas dificilmente poder traduzir em dados as
contradies latentes e o carcter fludo e incompleto que caracteriza qualquer
mudana social.
Sirva de lenitivo para esta verificao o reconhecimento de que uma investigao
compreensiva entre o interpretativo e o radical e sobre um caso singular inserido
no seu contexto no ser, creio, menos objectivante que uma investigao de tipo
experimental. E, porque o trabalho de transformao social no meu grupo de
pertena no se esgota neste estudo, resta a compensao de saber que a
cincia no alcanou ainda o seu limite de desenvolvimento e que os conflitos
paradigmticos iro recomeam a todo o momento.
53
Investiqao-aco? Observao participante?
Acontecer-me- tomar partido. Mas duvidarei de ter razo.
Acontecer-me- agir. Mas duvidarei dos frutos da acozl
A identificao da metodologia que predomina neste trabalho no foi tarefa fcil.
Estas questes impuseram-se com frequncia, suscitaram dvidas e geraram uma
permanente reflexo.
Poderia afirmar-se como processo de investigao-aco? Vejamos:
O crculo assume-se como grupo-sujeito empenhado na investigao; a aco
reflectida, analisada de um ponto de vista crtico; o processo de pesquisa revela-
-se potencialmente inovador e emancipatrio; venfica-se uma comunicao
simtrica entre os protagonistas, o que contribui para a unidade dialctica entre
teoria e prtica; o investigador est implicado num processo agido pelo
investigador colectivo, est profundamente imerso num processo de mudana
colectiva, no qual os problemas so sentidos e enfrentados, no qual acontece
formao e transformao.
O observador est no prprio campo de observao, atento ao descentrar-se,
predisposto auto-observao, "auto-maiutica implicacional". O tempo de
participao longo (mais de quinze anos), e tempo de uma observao mais
atenta aos fenmenos nos ltimos anos.
A investigao envolve todos que nela participam num dispositivo liberto da
artificialidade laboratorial das investigaes experimentais e o investigador
37Pawels, L. (1979) Aprendizagem da Serenidade, Lisboa, Verbo Editora: p. 86
54
distingue-se apenas pela especificidade de um interesse a mais relativamente aos
restantes. No lhe assenta perfeitamente a definio de observao participante
tal como concebida por Wittrock, Segundo este autor - e praticamente uma
definio consensual - a observao participante uma tcnica pela qual o
investigador se introduz no mundo social dos sujeitos estudados, observa e trata
de averiguar o que significa ser membro desse mundo38. O investigador, no meu
caso, no se introduziu no mundo social dos sujeitos; ele pertence ao mundo
social dos sujeitos. Apenas no momento em que age em vrios crculos de
estudos (1993) esta caracterstica da exterioridade se poder admitir.
Por essa razo, a reflexo em torno do conceito "implicao" reveste-se de
caractersticas diferentes de que operada pela investigador do modelo
tradicional de observao participante, alheio a uma cultura que observa durante
um perodo mais ou menos longo.
Estou cativo do crculo por deveres, solidariedades e compromissos. A posio
deveras incmoda de quem est sempre no grupo estudado, sobre ele (e sobre si-
-prprio) exerceu uma vigilncia crtica que no se restringe ao registo de uma
reflexo epistemolgica, de quem com o grupo partilha e sofre os produtos,
difcil de enquadrar nos esquemas conceptuais instalados em fronteiras pr-
-existentes e cientificamente policiadas.
Foi procurado, sempre, contrariar concepes instrumentais do conhecimento que
tendem a transformar o outro em objecto. O objecto indissocivel do sistema que
o comporta. Da que, prximo da fuso com o objecto, se tivessem colocado ao
investigador um conjunto inusitado de questes (relao sujeito-objecto,
exterioridade-implicao) que, ao contrrio dos efeitos de uma comunicao
38Wittrock, M. (1989) La Investigacin de la ensenanza, Barcelona, Ed. Paids Ibrica: 112
55
"autista" tpica de investigaes laboratoriais, introduziu dilemas de difcil (ou at
mesmo impossvel) resoluo comunicacional.
Compreender no algo meramente intelectual. Para o investigador envolvido na
comunicao, a compreenso de significados ultrapassa o domnio de uma
intelectualidade fragmentada e fragmentria. Quando um investigador presume
compreender, isso significar ouvir e compreender a palavra, mas nada tem a ver
com a compreenso propriamente dita. Compreender implica apreenso do
contedo semntico, mas tambm a conscincia do seu significado aplicada ao
prprio investigador. E, quando a proximidade do objecto mnima, essa
conscincia simultaneamente individual e colectiva, fugidia, dinamicamente
reformulada, ultrapassada numa corrente "em que no possvel mergulhar
duas vezes".
Imerso numa aco-investigao total, no-fragmentria, nem positivamente
distanciada, o investigador defronta-se com um novo conjunto de questes:
Porqu inventar instrumentos de mediao, se eles pr-existem na comunicao?
Como replicar situaes sem introduzir perturbao no curso normal de trabalho
em crculo? A investigao mesmo necessria e til ao crculo?
Sobre o conhecimento no pode haver acumulao. Tudo novo momento-a-
-momento. Fixar movimentos algo contraditrio. E, no momento em que os
fixamos numa frmula conclusiva, o autor das concluses ficar-lhe- insensvel,
tom-lo- como objecto inerte. Numa perspectiva radical, um investigador do
grupo no grupo opera, no uma interpretao fixista, mas uma transformao
(admitida) daquilo que "". O "dever ser" ilusrio, ideal, sem significado seno o
que lhe quiserem inculcar. Da que seja impossvel compreender apenas
intelectualmente, ou por via instrumental. A compreenso emocional, verbal e
intelectual, completa e instantnea.
56
O que se pode gerar numa investigao uma aproximao formal to intensa
quo possvel ao objecto. S pode ser compreendido completamente aquilo que
directamente experienciado. A separao positivista entre sujeito e objecto
profundamente destrutiva, mas a implicao que pressupe um outro tipo de
distncia epistmica pode gerar novas e subtis formas de autoridade conducentes
a concluses condicionadas.
Por outro lado, a descrio nunca o que descrito. O oposto faz parte do que ;
no apenas conflito com o que deveria ser. A cincia promove escolas,
sectariza, produz seguidores. ainda feita de verdades parciais no assumidas
como tal. O no-humano epistemolgico de Durkeim operou separaes
fundamentais para consolidao de concepes instrumentais do conhecimento
que transforma o outro em objecto. Chega a ser prefervel manipular as condutas
dos outros de modo inteligente, para o bem geral. Nem sequer ser necessrio
uma inteno de condicionamento exterior porque o estatuto de cientificidade
conferida a uma investigao acantonada a uma qualquer escola far do
investigador um indivduo controlado que, todavia, se sentir livre.
Compreender o "agora" um imenso problema (...) ser possvel tomar
conscincia do condicionamento de maneira to intensa que se veja a sua
realidade?39. Investigar significa estar sempre a aprender e aprender implica uma
aco constante. A aco no est separada do conhecimento. As construes
ideais provocam o envelhecimento da aco, iogo a do conhecimento. O
pensamento passa a ser uma resposta da memria. Nunca pode ser novo, gerar
algo novo, livre de condicionamentos.
Investigao-aco? Observao participante? Provavelmente, ambas. Estive
com e entre tanto quanto me seja possvel afirm-lo.
39Krishnamurti, J. (1985) O mundo somos ns, Lisboa, Livros do Horizonte: 73
57
APROFUNDAMENTO DE ALGUNS TEMAS
EVENTUAIS SADAS OUTROS CRCULOS
DISCUSSO
CATARSE INICIAL
AUTO-FORMAO -Leitura -Pesquisa -Trabalhos
/
TROCA DE EXPERINCIAS/ IDEIAS
LEVANTAMENTO DE QUESTES
uHn^ciy)
58
Distanciamento epistemolgico e implicao
Implicao e compromisso no so coincidentes. O compromisso existe como
uma parte que se toma como importante. Quando se est implicado, a aco ,
simultaneamente, interior e exterior; total. E investigar ser um processo
constante, sem acumulao, dado que o aprender no pode ser separado do agir.
No fundo, tratar-se- simplesmente de observar sem juzos definitivos, mas para
compreender. E essa compreenso (dinmica e fluda) produzir a sua aco
prpria. Compreender ser agir. Agir sobre a sua prpria vida relacionada com a
dos outros (...) propor escolhas possveis sem se deixar cair na armadilhas dos
grandes dogmatismos40. Ser a "escuta-aco" em pequeno grupo, que nos faz
compreender o sentido de amizade solidria nas redes da vida, (...) da mediao e
do desafio, bem como da improvisao na formao41.
Inevitavelmente, e porque uma investigao pressupe um recurso a dispositivos
que permitam "revelar" fenmenos, poder-se-, numa tentativa de simplificao,
falar do recurso ao "estudo de caso", anlise de contedo, observao
participante no presente trabalho. Esta investigao tem por objecto de indagao
social o Crculo de Estudos. Sobre ele e nele se desenvolve uma investigao
intensiva numa inter-consubstanciao com uma quadro terico que se elabora e
se re-elabora no decurso do prprio processo de pesquisa.
Considerado o estudo de caso adequado ao aprofundamento, concretizao do
detalhe de uma modalidade singular de formao contnua, possvel adoptar
mtodos que sirvam a tarefa de descobrir, em lugar de impor mtodos que
possam impedir a dita tarefa42. A opo inicial a de anlise documental, tendo
40Barbier, R. (1983) A investigao-aco existencial, Pour n 90, Junho/Julho.83 41Barbier, R. (1983) A investigao-aco existencial, Pour n 90, Junho/Julho.83 42vVittrock, M. (1989) La Investigacin de la ensenanza; Barcelona, Ed. Paids Ibrica S.A.: 113
59
presente que um estudo de caso no representa mais que a mnima parte de uma
totalidade e peca na "objectividade" na medida em que o investigador empreende
o estudo a partir dos seus prprios antecedentes particulares, que incluem
experincias, posturas ideolgicas e interesses por determinados temas e
conceitos.
Uma posio epistemolgica clssica ainda predominante nas Cincias Sociais
pugna pela distncia entre o investigador e o objecto de investigao. Na esteira
de Durkheim43, a regra fundamental ser a de nunca se confundir ou fundir a
pessoa com o objecto: preciso tratar os factos sociais como coisas,
exterioridade absoluta. Este posicionamento projecta marginalmente e desqualifica
a experincia pessoal e quotidiana, na presuno de que a proximidade com o
objecto o obstculo epistemolgico por excelncia. Porm, cada vez mais
frequente, no domnio das Cincias Sociais a coincidncia do investigador com o
prtico. Surgem trabalhos cujos autores reflectem uma inteno de reflexo sobre
a prpria prtica. E eis que assoma a ortodoxia investigativa com a sua panplia
de riscos: a implicao, as deformaes e enviezamentos, as perturbaes
metodolgicas.
A implicao pode assumir formas diversas: psico-afectiva, histrico-existencial,
profissional. Encontra-se associada noo de interaco considerada como
objecto de conhecimento. Ao nvel psico-afectivo Ren Barbier considera que a
implicao poder permitir ir mais longe na comunicao. E cita Max Pages44,
quando este autor refere que o prazer experimentado nas mudanas operadas
com outros condio necessria ao prprio processo de mudana. A implicao
histrico-existencial que decorre do compromisso com o grupo no hic et nunc da
43Durkheim, E. (1985) Les rgles de la mthode sociologique, Paris, P.U.F. 2oa edio (1a
edio, 1985) 44Barbier, R. (1977) La recherche-action dans l'institution ducative, Pans, Gauthier-Villars: 67
60
pesquisa est intimamente ligado ao nvel anterior. Quanto maior a ligao aos
outros e aos problemas, maior ser a disponibilidade, ser mais real e menos
superficial a relao com os outros e com os projectos, o investigador no grupo
estar mais apto a ajudar na medida em que ele prprio pode ser ajudado. Para o
investigador no grupo, a implicao histrico-existencial tambm o tomar em
considerao o ethos e o habitus da sua classe social de origem,
condicionante de perspectiva que permitir uma maior clarificao do objecto
estudado.
O homem um ser activo que se envolve num processo de transformao do
mundo do qual ele mesmo um dos elementos45. Este projecto humano um
movimento sempre inacabado dirigido para o conhecimento da realidade. Este
conhecimento um momento da praxis, mas no tem um carcter de saber
absoluto. Converte-se no motor da prtica e dela fica dependente.
Cada profisso apresenta um no-dito institucional que a sua posio no
campo das relaes de produo e do sistema de valores que lhe d coerncia
interna46. Investigar em Cincias Sociais implica o risco de interrogao sobre o
papel e a funo na sociedade, enquanto investigador. A implicao profissional
pressupe a interpelao dos sistemas de valores e de atitudes de que depende o
equilbrio da prpria personalidade. O investigador defronta contradies entre um
projecto histrico-existencial e a realidade plena de contradies e limites. A
liberdade que lhe outorgada a de agir em contradio. Os nveis de implicao
aqui inventariados no agem isolados: interpenetram-se e agem entre-si.
Implicar deriva do latim implicare, isto , envolver em. Implicao deriva do
latim implicatione, que significa acto de implicar, mas tambm admite o
45Barbier, R. (1977), op. cit.:71 46Barbier R. (1977), op.cit.: 73
61
sentido de contradio, enredo, incongruncia. A implicao um termo de vasto
espectro semntico. Mas, como conceito do campo das cincias humanas, poder
ser definido como compromisso pessoal e colectivo do investigador na e pela sua
praxis cientfica, em funo da sua histria familiar e libidinal, das suas posies
passadas e actuais nas relaes de produo e de classes, e do seu projecto
scio-poltico em acto, de tal modo que o investimento que dela necessariamente
resulta parte i