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JOSÉ RODRIGUES MIGUÉIS (1901-1980) A.A. ~ 2010-2011 Prof.ª eli Imagem ~ aqui

JOSÉ RODRIGUES MIGUÉIS, excerto de A Escola do Paraíso

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JOSÉ RODRIGUES MIGUÉIS, excerto de A Escola do Paraíso, [Viva a República] ~ leitura complementar para o 12.º ano ~ e.e. ~ António Arroio ~ Prof.ª eli

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Page 1: JOSÉ RODRIGUES MIGUÉIS, excerto de A Escola do Paraíso

JOSÉ RODRIGUES MIGUÉIS

(1901-1980)

A.A. ~ 2010-2011

Prof.ª eli

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[…]

[VIVA A REPÚBLICA]

- Vamos! – disse o pai, impaciente. – Está-se a fazer tarde.

E tocou o rebanho em direcção à Rua da Palma, à paragem dos eléctricos.

Os saloios tinham desaparecido com a galera das bilhas. No largo quieto

ouvia-se o sussurro da fonte no bebedouro.

Nisto, de longe, uma surda explosão abalou o ar tranquilo da manhã. Os

pequenos pararam, voltaram-se a olhar o pai, que ficou sério, à escuta, um

quase nada pálido. O do quiosque deitou a cabeça de fora, disse - «Temo-la

armada!» - e desapareceu. Dois, três estampidos cavos sacudiram de longe a

cidade mal desperta. Depois houve um estranho rumor que parecia de

pranchas a desabar confusamente, ou de portas de ferro ondulado a fechar-

se a toda a pressa, um eco imenso…

- É fuzilaria! – disse o pai, e apertou os filhos ao corpo. Esqueceram-se

por instantes o massacre dos índios e o banho do mar. O do quiosque tornou

a recolher à pressa a mercadoria exposta. Da Rua do Benformoso

desembocou um homem em cabelo, calças de ganga desbotada e casaco

remendado, com um embrulho debaixo do braço. Pálido como um defunto,

desgrenhado, passou por eles a correr, gritou:

- A revolução está na rua! Viva a república! – e desapareceu para o lado

da Avenida Dona Amélia.

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O largo recaiu na quietação, como se visse crescer a luz doirada da manhã

de Outubro e de insurreição. De longe continuava a rolar pelo céu a voz cava

da artilharia, passavam rajadas intermitentes de fuzilaria. O homem punha os

taipais. Muito branco, o pai abotoou o paletó:

- Voltem para casa, filhos. A vossa mãe vai ficar ralada se os não vê

aparecer. Andem, depressa. Digam-lhe que eu fui para o Hotel. Tu, Santiago,

leva os teus irmãos pela mão. Voltem pelo mesmo caminho. Travessa do

Maldonado… Direitinhos a casa! Vá, tenham juízo e adeus…

Curvou-se a beijá-los. Tinha os olhos molhados, os beiços tremiam-lhe

debaixo do bigode cor de cobre escuro. Juntou-lhes as cabeças numa carícia

comum e murmurou:

- Viva a República, filhos… Adeus!

Deitou a andar depressa e com firmeza, um quase nada cómico, e os

meninos ficaram a vê-lo ir, comovidos, depois deram meia volta. O homem

do quiosque, de boné de pano, fechou a porta à chave, gritou-lhes: «Vão para

casa, miúdos!» - e desatou a correr.

Sentiram-se sós e tristes no largo deserto. Pelo céu já invadido de sol

vinham mais vivas as rajadas de fuzilaria, como o bater de asas de mil

pombas assustadas, enchendo de ecos o côncavo da capital. Subiram de novo

as ruas por onde havia pouco tinham descido. A artilharia troava longe, lá

para a Rotunda. Na Baixa latiam metralhadoras. O frio diminuíra. Pouco a

pouco abrandaram a marcha. Afinal não iam ao banho, melhor assim.

Espreitavam por entre as folhas fechadas da novela, para lerem alguma

passagem que os excitava. Paravam, borrando de impaciência a tinta gorda

da capa, impressa a preto e roxo.

Quando chegaram a casa era dia claro. A mãe esperava-os à janela, com

as mãos ansiosamente cruzadas no peito: «Depressa, filhos! Que demora

esta!» - e tirou-se para dentro. Atravessaram a rua a correr em direcção à

porta. Pelas janelas e às esquinas havia caras estremunhadas, assustadiças.

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Circulava gente com timidez, indagando, hesitante, com medo duma bala

perdida. Subiram a escada tropeçando e rindo, falando todos ao mesmo

tempo, respondendo aos vizinhos que acudiram aos patamares:

- É a revolução! Os republicanos já estão na Rotunda!

A mãe, inquieta, indagou do pai. A Vizinha Delfina tranquilizava-a, quem é

que se mete agora com um sujeito tão pacato, tão bem parecido! A casa

cheirava a café quente e a pão fresco. Ninguém tinha sono. O Gabriel correu

ao quarto de vestir, tirou da sapateira do guarda-fato a bandeira azul e

branca, enterrou na cabeça o chapéu de feltro encarnado e pôs-se a correr a

casa dando batalha a invisíveis inimigos, agitando o estandarte estrelado da

União, e cantando a meia voz o hino belicoso. Sentia-se muito orgulhoso do

seu pai, que tinha ido para a Baixa, sem medo aos tiros.

Os irmãos, indiferentes à fuzilaria, à insurreição, aos comentários

excitados que enchiam os ares, foram-se estender no chão da sala,

absorvidos no Massacre dos mil-e-duzentos.

Durante dois dias e duas noites o ar de Lisboa andou esguedelhado de

tiros, o céu riscado de fogos vista singulares. Pairavam no ar palavras novas,

de intrigante e mágico sentido – metralha, granadas, máuseres, shrapnell,

obuses, barricadas, Maxim’s… O Santiago sabia tudo e explicava, à janela,

tomado da excitação que vinha na aragem, no sol, nos ecos de longe,

arrastando vozes e varrendo fachadas, dando-lhes um estonteamento feliz,

de grande festa. Era um espectáculo empolgante, e ao pé dele o Massacre

depressa ficou esquecido.

Na rua passavam tropas, civis armados, cães desvairados, gritos. Pela

meia-tarde, desceu a calçada uma força de polícia cívica, devia ser das

Mónicas: formados a quatro de fundo, armados de longas espingardas e

fartas bigodeiras, os «savalidades» iam lívidos nas suas fardas cor de pinhão.

Marchavam à defesa das instituições, de olhos baixos, sucumbidos, como

quem vai para o cadafalso. Havia gente pelas esquinas, de vez em quando

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subia no ar um repuxo de comentários exaltados, e todos corriam a ver o que

era. Mas quando passou a força policial, fez-se um silêncio de mau sestro.

Anoiteceu naquilo, e de vez em quando, a poente, as granadas raiavam de

fogo o veludo macio do céu, onde a estrela da tarde fulgurava num resto de

luz verdosa. Outras explodiam em pleno ar, deixando uma bola de fumo que

a aragem dissipava lentamente. Parecia um arraial. Mas não houve remédio

senão ir para a cama, deixando os outros de janela, a gozar. Adormeceu

depressa, embalado pelo vozear confuso, as exclamações de espanto, o troar

distante dos canhões.

Ao acordar, ouviu dizer que durante a noite tinha ardido de alto a baixo

um prédio na Avenida da Liberdade, e pouco lhe faltou para chorar: todos

tinham visto o incêndio, e porque é que o não tinham acordado para vir ver!

Foi então que, solícito e misterioso, o irmão explicou:

- O prédio foi incendiado com lanternetas!

Era outra palavra gostosa e nova, que lhe deu pasto à fantasia e o

recompensou transitoriamente da perda do espectáculo. Lanterneta: devia

ser uma espécie de lanterna incendiária, vermelha, que rebolava em chamas

pelos ares, entre nuvens de fumo… Tinha alguma coisa em comum com os

gritos-do-diabo, valverdes, busca-pés, pistolas, foguetes de lágrimas,

estrelinhas, fósforos de cores e outras maravilhas da pirotécnica, para não

falar já do requentado shrapnell.

Mais um dia correu, numa atmosfera de excitação nunca sonhada. Das

janelas da casa via-se tudo, O Quartel do Carmo e o Cabeço de Bola, a

Rotunda e a Penitenciária, o Campo de Sant’Ana… Só não se via o Tejo nem a

Marinha, e era pena. O cruzador Dom Carlos tinha-se revoltado. Mas de tudo

o mais bonito era sem dúvida o céu riscado de obuses e explosões, que

arrancavam brados de assombro e deslumbramento, como nas noites dos

Santos de Junho.

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Altas horas, já ele dormia mas ouviu tudo confusamente, houve grande

reboliço na escada. O sr. Mitelo do primeiro andar, lá pelas tantas da

madrugadas, soube por portas travessas que o conselheiro João Franco

estava escondido no palacete ali defronte, sempre fechado e mudo atrás das

grades do jardim, e que pertencia a uma senhora talassa, titular. Apesar do

adiantado da hora, o sr. Mitelo, honrado e laborioso pai de família com fama

de carbonário, sentiu que tinha um papel histórico a desempenhar: prender o

ex-ditador e entregá-lo às Justiças do Povo. Mas as coisas ainda estavam

fuscas, e ele sozinho!... Desarvorou de casa, das quatro para as cinco da

manhã, Charca fora, de ceroulas e em chinelos de trança, com o gabão de

Aveiro a adejar sinistramente na noite escura: ia buscar auxílio, um grupo

resoluto.

(Nunca se soube ao certo o desfecho daquela patriótica missão nocturna

em ceroulas de fitas. O conselheiro sobreviveu, e a casa, fechada havia

muito, não tinha lá dentro senão móveis cobertos de lonas empoeiradas, bafio

e recordações. Houve mais tarde quem dissesse – decerto para arreliar o sr.

Mitelo – que o João Franco tinha lá estado, sim, mas fugira dali num coupé

particular, de cortinas corridas, antes que o vigilante patriota tivesse tido

tempo de enfiar o gabão. Nem foi possível tirar nada a limpo, porque depois

do incidente-escaler, as relações tinham esfriado um tanto entre os dois

andares.)

Na manhã seguinte, era a segunda desde o Massacre, a família estava

toda à janela de sacada, menos o sr. Augusto, à espera de novas. Tinha-se

espraiado um grande silêncio, e o Gabriel, agarrado aos irmãos, metendo a

cabeça por entre a gente crescida, perguntava a cada instante:

- Já se acabou tudo? – com certa pena.

Mas ninguém lhe dava ouvidos. Era em ocasiões destas que ele sentia

mais a ausência do pai! Na vizinhança havia quem tivesse bandeiras

republicanas escondidas, umas cosidas à pressa, outras autênticas, com uma

esfera e a legenda Ordem & Trabalho. À falta de melhor, havia bandeiras

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francesas e até brasileiras. Já falavam em pedir ao pai que lhes comprasse

um mastro e uma bandeira.

Na sacada, batendo as solas de impaciência, o Santiago espiava os

horizontes com o velho binóculo que, à parte as brincadeiras, só saía do

estojo uma ou duas vezes por ano para ir aos «benefícios» da Miquelina, da

Desdémona, ou da Filomena, coitadas. O Santiago parecia um capitão

diminuto na ponte do seu navio. Não se ouviam mais tiros. Tudo calado, a

cidade desdobrava-se ao sol com a alegre preguiça dum dia feriado.

Nas janelas da vizinha do lado, o sr. Sepulcra, sempre de preto, de

lunetas azuis e beiçorra caída, com a barba por fazer, tinha um ar de

azedume doloroso e terrível. Estava ali com as senhoras da família e a

filharada: a Rita toda esgrouvinhada e já com a sua pinga àquela hora, e a

dona Mariquitas com a cabeça em papelotes, muito pálida da madrugação, e

de olheiras azuis pintadas. Do marido nem a sombra.

De repente o Santiago deu um grito:

- Mãezinha! Mãezinha! Venha cá ver! A bandeira republicana já está içada

no quartel do Carmo!

(Para alguma coisa haviam de servir as Vistas!)

Correu de boca em boca e encheu o ar da vizinhança um Ah de assombro,

surpresa, desolação e alegria. Todos quiseram ver, estenderam-se mãos para

o binóculo, todos suplicaram… Mas havia um só. O sr. Sepulcra alongou fora

da janela a beiçana formidável e o bigode mal pintado, e regougou com a voz

nasalada e desdenhosa (havia muito tempo que nem se cumprimentavam):

- O menino é parvo! Pode lá ser, a bandeira dos desordeiros!

Houve um instante de dúvida e frio. Sim, talvez o pequeno se tivesse

enganado isto crianças… Intimado, com os olhos vermelhos de insónia e uma

ponta de conjuntivite, o Santiago encolheu os beiços e não contradisse o sr.

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Sepulcra, um cavalheiro imponente, e para mais funcionário das Alfândegas

d’el-rei nosso senhor. O binóculo passou de mão em mão, até a velha Delfina

quis ver, mas não se entendeu com o objecto - «Troca-me as vistas!», disse

ela – e todos confirmaram que sim-senhor, lá estava a bandeira verde e

encarnada, que até parecia a dois passos! A mãe, arrebatada, estendeu o

aparelho ao vizinho:

- Veja, veja lá se o pequeno é parvo, ou quem é!

Entredentes chamou-lhe «caloteiro». Com certa repugnância aristocrática,

o sr. Sepulcra pegou e olhou. Logo empalideceu, até a beiçola de rabadilha

perdeu a cor: era a bandeira da canalha! A dona Mariquitas, que estava toda

inclinada para fora, com os seios de neve perfeitamente à vista no roupão

claro, deu um gritinho e desapareceu com os papelotes. Atrás dela sumiram-

se todos – um dos filhos do funcionário ainda rosnou com desprezo:

«Galegos! Republicanos!» - e fecharam as janelas em protesto, com

estrondo. Ouviu-se a Rita num grande berreiro… O binóculo voltou a circular

em mãos amigas. Até os Mitelos, reconciliados, vieram ver. A monarquia

estava acabada.

Começaram logo os vivas à República. A dizer a verdade, foram eles que

proclamaram a República naquela encruzilhada. Os Mitelos – faces sem cor,

olhos arregalados e inteligentes – puxavam para o dr. Afonso Costa. No

segundo-esquerdo era-se «almeidista»: o tribuno tinha tratado o sr. Augusto

dumas gripes, e convertera o Gabriel à república erguendo-o no ar e

chamando-lhe «meu correligionário» com a linda voz bem timbrada. Até o sr.

Sotavento, leitor de A Luta, inspector de obras públicas e pai de duas

meninas namoradeiras, com carinhas de bilhete postal ilustrado, e doente da

bexiga (a senhora tirava-lhe as águas com uma seringa, era sabido), que

perguntava por todos os lados com ar de inquietação e com os olhos cor de

água parada, sempre húmidos de lágrimas desnecessárias: «O que é que há?

Que é que há?» - até ele respondia lá do quintal, aos vivas!

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Do outro lado o prédio ficou mudo: no rés-do-chão direito morava o

capitão de infantaria, que «andava por fora» havia dias, o tal a quem a

esposa, uma oxigenada sem papas na língua, tinha obrigado a lavar a louça:

a que tinha feito calar a ópera do Gabriel. No primeiro andar do sr. Sepulcra

(mas ó criatura, quantas vezes lhe eu tenho dito que o nome dele é

Sepúlveda!), aí, reinava um silêncio justamente sepulcral. Em casa de

Mariquitas, Marido & Filhos, ia a mudez da consternação. Ela devia ter medo

de perder os «empenhos» e as «relações» da alta na Baixa.

O prédio embandeirou, mas só do lado esquerdo, numa espécie de

hemiplegia republicana. Havia sempre um resto de serpentinas do Carnaval

passado, e foi uma festa. Começavam-se a vender na rua bandeiras,

alfinetes, postais e globos de vidro colorido com cenas e retratos de homens

do regime. Era uma Vida Nova que raiava. Dir-se-ia que estava tudo

preparado para a celebração! Passavam bandos aos vivas, caminho da Baixa,

da Rotunda, do Tejo, cantando a Portuguesa. Afluíam de todos os lados os

heróis de última hora: as barricadas, até ali quase vazias, transbordavam

agora de combatentes, eriçadas de armas que não tinham chegado a dar

fogo. Tiravam-se grupos memoráveis, para depois se dizer «Eu também Lá

estive!» A República estava de antemão solidamente implantada nas almas e

nas ruas. Lisboa transfigurada!

Pela tarde, em direcção à Graça e ao Monte, subiu um numeroso grupo de

combatentes: formados a quatro de fundo, cobertos de glória, de pó e de

palha dos fardos das barricadas, espingardas ao ombro, correame,

cartucheiras, revólveres, troféus, uma bandeira improvisada… Vinham

fatigados e sujos, mas triunfantes e marciais. Estalaram palmas e vivas,

correu gente de todos os lados a vê-los. O Santiago gritou da varanda:

- Olha, lá vai o sr. Roque! Ó sr. Roque! Viva a República! Viva o sr. Roque!

O sr. Roque, da mercearia do Monte, lá ia na fileira, com a mauser às

costas, galhardo e moreno, de nariz achatado e bigode muito preto na boca

rasgada. Um filho de cada lado! Ergueu os olhos e sorriu: foi uma ovação!

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Todos os vizinhos aplaudiram aquele Roque obscuro que dava prestígio aos

moradores. Que diabo faz a gente quando vai debaixo de forma e lhe dão

palmas? Empertigou-se de orgulho e popularidade, comovido, e fez

continência!

Todas as caras dos combatentes se viraram para cima, de barba crescida,

sorrindo, felizes. Aquele olhar ficou preso à fachada, tornou o prédio

memorável.

Quanto mais ágeis e firmes aqueles paisanos, do que os tristes polícias,

dois dias antes, que marchavam como quem vai à degola! E que orgulho o

dos pequenos, ter um amigo entre os heróis! O sr. Roque, tão bom, tão feio

coitado, sempre sorridente, tão honradinho na balança e nos trocos, e que

ainda por cima lhes dava de graça um rebuçado de musgo-e-alteia. Com a

quinzena de cotim, de mangas curtas, remendada nos cotovelos, a mesma

com que fora para a Rotunda ajudar a implantar o futuro. Tinha sempre um

fogo de entusiasmo nos olhos muito negros e rasgados, tal-qual os filhos, que

ainda eram mais feios. O Roque da mercearia.

- Viva o sr. Roque!

Naquela noite, contra o costume, o sr. Augusto chegou cedo. Três dias

tinha ficado fora de casa. Vinha pálido e fatigado, nem se tinha despido, com

a barba crescida, mas radiante. Trazia uma mancheia de shrapnell, duma

granada que tinha explodido na lavandaria do Hotel, uma recordação do

Cinco-de-Outubro.

Ficou acordado até muito tarde, a contar tudo à mulher, no quarto, à

porta fechada. E pela primeira vez desde que o conheciam e amavam, os

filhos o ouviram chorar como uma criança. A dona Adélia falava-lhe com

ternura, ria-se daquela emoção…

Então compreenderam que alguma coisa de grande e sério se passava:

não era só festa, só vivas, só fogo-de-vista! E ficaram muito tempo calados,

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no escuro da noite, pensando no pai que chorava de alegria, até que o

cansaço daquele dia da Vida Nova os venceu, e adormeceram.

José Rodrigues Miguéis, A Escola do Paraíso