55
"7 y JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES M. Macedo Biblioteca Parti 0"1®1 INTRODUÇÃO AO DIREITO FINANCEIRO À iLrina Limonad 1

José Souto Maior Borges - Introdução Ao Direito Financeiro

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Introducao ao direito financeiro

Citation preview

Page 1: José Souto Maior Borges - Introdução Ao Direito Financeiro

"7y

JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES

M. MacedoBiblioteca Parti0"1®1

INTRODUÇÃOAO

DIREITO FINANCEIRO

ÀiLrina

Limonad

1

Page 2: José Souto Maior Borges - Introdução Ao Direito Financeiro

CAPÍTULO 1

CONCEITO DA ATIVIDADE FINANCEIRA

1 — O Estado,1 considerado como uma comunidade jurídica total ou nacional2 e uma organização preordenada à

I. “La defínición del “Estado" resulta muy difícil, dada la multiplicidad de los objectos que el término comúnmente designa” (HANS KELSEN, Teoria General del Derecho y del Estado, trad. de EDUARDO GARCIA MAYNEZ, Imprenta Universitária, México, 1949, pág. 191).Para o chefe da Escola de Viena não a escassez de significados, mas a superabun­dância de sentidos, toma quase impossível o uso da palavra Estado: “Si la situación de la teoria científica del Estado dista mucho de ser satisfactoria débese, sin duda, entre otras razones, a la multiplicidad de significaciones que ofrece dicho substantivo, pues lo de menos es contraponer, como se hace frecuentemente, la formación científica de conceptos a una noción insegura, vacilante y vulgar com ánimo de superaria. Lo que hace tan problemática toda Teoria del Estado és más bien la inaudita discordancia intima de la própria terminologia científica” (Teoría General del Estado , trad. de LUIS LEGAZ Y LACAMBRA, Editorial Labor, S. A., Barcelona, 1934, § 1°, pág. 3).A equivocidade terminológica ou plurivalência significativa do termo Estado (e. g., Estado Unitário e Estado Federal, Estado Brasileiro e Estado de Pernambuco) é denunciada entre nós, com invulgar rigor científico, pelo professor LOUR1VAL VILANOVA: “A confluência de vários conceitos para um só termo (plurivoci■ dade) é freqüente no domínio das ciências sociais. Sua causa (omissis) é a com­plexidade do objeto de conhecimento e a interferência da equação pessoal valora- tiva do sujeito do conhecimento.. Na Teoria Geral do Estado, por exemplo, falta conotação rigorosa em termos básicos como Estado, política, poder, Constituição” {O Problema do Objeto da Teoria Geral do Estado, Imprensa Oficial, Recife,1953, pág. 20).O pluralismo constitucional do objeto do Estado contribui para essa imprecisão terminoiógico-conceitual: “A dificuldade, para a Teoria Geral do Estado, provém

Page 3: José Souto Maior Borges - Introdução Ao Direito Financeiro

10 JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES

realização de certos fins,3 no exercício de suas atribuições4 desenvolve, através de seus agentes e órgãos, atividades de

do objeto, do pluralismo constitucional desse objeto, que permite considerá-lo sob vários pontos de vista” (Ob. cit., pág. 63).Esse fenômeno se observa, com maior nitidez, no Estado Federal em que sc pro­duz uma repartição de competências entre o Estado centra! e os Estados federa­dos. No Brasil, um dos aspectos mais sugestivos dessa repartição dc competências é a partilha tributária entre as unidades da Federação (União, Estados-membros e Municípios), disciplinada, rigidamente, no próprio texto constitucional.2. “El orden jurídico central que constituye a la comunidad jurídica central, forma con los ordenes jurídicos locales que constituyen a Ias autoridades jurídicas locales, el orden jurídico total o nacional, que constituye al Estado o comunidad jurídica total” (KELSEN, T eoria General del D erecho v del Estado cit., pág. 320).Nesse mesmo sentido, escreve ilustre jurista mexicano: “La comunidad jurídica total compreende a la Federación, o comunidad jurídica central y las comunidades locales, cada una de ellas com su proprio orden normativo e su própria jerarquía. Hay qiie distinguir cuidadosamente el sistema jurídico total del Estado Federal y el orden parcial compuesto por las normas federales” (EDUARDO GARCIA MAYNEZ, Introducción a la Lógica Jurídica, Ia ed., 1951, Fondo de Cultura Económica, México, pág. 61).3. “È essenziale a ogni organizzazione sociale — e quindi a maggior ragione aíl Stato che è 1’organizzazione suprema — Tesser preordinara alia realizzazione di fíni. Una organizzazione priva di fini e cioè senza alcuna funzione, non avrebbe raggione d ’essere” (ALDO M. SANDULLI, Manuale di D iritto Amm im straiim , 6a ed., Casa Editrice Dott. Eugenio Jovene, Nápoles, 1960, n. 2, pág. 3).4. “El concepto de atribuciones comprende el contenido de la actividad del Estado; es lo que el Estado debe hacer. El concepto de función se refiere a la forma y a los medios de la actividad del Estado. Las funciones constituyen la forma de ejercicio de las atribuciones". (GABINO FRAGA. Dcrccho Administrativo, 7U ed., Editorial Porrua. México, 1958, n. 14, pág. 15: n. 67. pág. 87).Para o professor mexicano, o conceito de atribuições do Estado substituí, com vantagem, o de serviços públicos . FRAGA critica, ainda, outras denominações propostas para designar o conteúdo da atividade estatal: "En unos casos y de acuerdo con determinada doctrina, se habla de “derechos deí Estado". En otros, de “faculdades”, “prerrogativas” o aun de “funciones del Estado“. Sin embargo, por necesidades técnicas ineludibles es indispensable fijar una terminología invariable que, además, no se preste a interpretaciones ambiguas como sucede con las expresiones señaladas, sino que, por el contrario, tenga una connotación precisa. Nos parece que la expresión “atribuciones del Estado”, que ya ha sido admitida, por la doctrina (v. BONNARD, Précis Elémentaire de Dr. Adut. , 1926 e

Page 4: José Souto Maior Borges - Introdução Ao Direito Financeiro

INTRODUÇÃO AO DIREITO FINANCEIRO 11

natureza diversa (políticas, sociais, administrativas, econômi­cas, financeiras, etc.).5

SEÇÃO I

Introdução

2 — A complexidade das atribuições do Estado é um dado empírico constatado por todos. Corolário dessa comple­xidade e é exigência metodológica de critérios científicos de classificação das atividades estatais, sem o que tornar-se-ia impossível o seu estudo, porquanto toda Ciência Social reconstitui apenas parcialmente a realidade concreta.

A atividade estatal apresenta, assim, uma variedade empírica tão complexa que os estudiosos não poderiam inter­pretá-la sem o instrumental de conceitos, critérios e princí­pios fornecidos por esquemas científicos prévios: “Uma Ciência Social decompõe o real: seleciona fatos, quantidades, dando-lhes certa qualificação. É uma abstração que serve para aprender a realidade a partir de determinados termos de refe­rência, segundo certo esquema de interpretação. Propõe uma teoria que serve para organizar fatos isolados ou verificações esparsas, e constitui um fio de Ariadne na complexidade desalentadora da realidade”.6

1935) satisface plenamente esos requisitos ya que, en efecto, se tracta de designar genericamente cualquiera tarea atribuida al Estado para que éste pueda realizar sus finalidades'’ (Ob. cit., n. 3, pág. 5).5. “Assim, atividade do Estado corresponde ao conjunto de atos praticados em seu nome e segundo seus fins, por seus agentes ou órgãos" (JOÃO JOSÉ DE QUEIROZ, in Repertório Enciclopédico do Direito Brasileiro, Editor Borsoi, Rio, s/d., verbete Aüvidade do Estado, vol. IV, pág. 397).6. RAYMOND BARRE, Manual de Economia Política, trad. de PIERRE SAN­TOS, Editora Fundo de Cultura, Rio, 1962, vol. I, pág. 16.

3

Page 5: José Souto Maior Borges - Introdução Ao Direito Financeiro

JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES

3 — Considerando como objeto de estudo o Estado no exercício de suas atribuições, vale dizer, o ordenamento jurídico-positivo na sua dinâmica e nas suas formas de mani­festação, temos as funções estatais — modos pelos quais o Estado exerce as suas atribuições — que se diversificam ins- titucionalmenfe, embora de maneira não absoluta: podem ser exercidas subsidiária ou excepcionalmente por outro, funções inerentes a um determinado poder.

4 — Há vários critérios para o exame da diversifica­ção das funções do Estado.

O critério material ou objetivo prescinde do órgão ao qual estão essas funções atribuídas e despreza a forma pela qual se manifestam; atende à natureza ou aos efeitos da ativi­dade (funções materialmente legislativas, executivas e judi­ciárias).

O critério formal, subjetivo ou orgânico, considera a forma externa de que se reveste a atividade estatal e o órgão do qual emana (funções formalmente legislativas, adminis­trativas e judiciárias).

5 — As manifestações da atividade interna dos agen­tes e órgãos do Estado se revestem da forma de lei, de ato administrativo ou de sentença: ‘'O Estado, uma vez consti­tuído. realiza os seus fins através das três funções em que se reparte a sua atividade: legislação, administração e juris­dição”.7

As funções legislativa, executiva e jurisdicional, se exercem pelos diversos órgãos dos três poderes da União: o Legislativo, o.Executivo e o Judiciário (Const. Fed., art. 36,

7. SEABRA FAGUNDES, O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judi­ciário. 3a ed., Revista Forense, Rio, 1957, n. 2, pág. 17).

Page 6: José Souto Maior Borges - Introdução Ao Direito Financeiro

INTRODUÇÃO AO DIREITO FINANCEIRO 13

caput), mediante essas formas específicas que distinguem o Estado dos demais agrupamentos societários.

Cada um desses poderes tem a sua estrutura interna

6 — As atividades do Estado materialmente conside­radas, isto é, tendo-se em vista a matéria objeto de disciplina- ção pelo ordenamento jurídico de um determinado país, estão subordinadas a instáveis critérios de seleção pelos gover­nantes: “No existiendo una línea de separación entre las necesidades que deban satisfacerse por los individuos, por las asociaciones libremente constituidas, o por la atividad del Estado, se comprende que la esfera de acción estatal no permanezca siempre idéntica en la historia y que tienda cada vez más a extenderse en el presente por la influencia de diversas fuerzas, tales como la mayor influencia política e social del pueblo, el desarollo de la riqueza y de la población y la transformación de la organización económica”.8

7 — As atividades do Estado são, também, considera­das passíveis de classificação sob um duplo aspecto: a) ativi­dades internas e h) atividades externas. Sem descer, por ora, à análise crítica desse critério distinto, pode-se dizer que, enquanto as atividades internas se desenvolvem dentro do ter­ritório do Estado, as atividades externas se exercem além- fronteiras (infra, capítulo 3).

8 — Variáveis motivos políticos e que não podem ser determinados a priori comandam a atuação do Estado no

8. BENVENUTO GRIZÍOTTI, Principios de Política, Derecho y Ciencia de la Hacienda, trad, de HENRIQUE R. MATA, Instituto Editorial Reus, Madri, T ed., § 2°, pág. 50 \ idem, Principios de Ciencia de las Finanzas, trad, de DIÑO JARACH, Roque Depalma, Editor, Buenos Aires, 1959, pág. 22.

adaptada às funções que exerce.

Page 7: José Souto Maior Borges - Introdução Ao Direito Financeiro

14 JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES

sentido de promover a satisfação de certas necessidades cole­tivas, exercendo os governos uma série constante de opções das necessidades sociais a serem satisfeitas pela rede de ser­viços públicos.9 ALIOMAR BALEEIRO chega a afirmar que uma necessidade se toma pública por uma decisão de órgãos políticos: “Necessidade pública é toda aquela de interesse geral, satisfeita pelo processo do serviço público. É a inter­venção do Estado para provê-la, segundo aquele regime jurí­dico, o que lhe dá colorido inconfundível. A despeito dos fugidios contornos econômicos, a necessidade torna-se pública por uma decisão de órgãos políticos”.’0

São escolhas políticas, por conseqüência, que delimi­tam o raio de atuação do Estado; escolhas que traduzem pre­ferências eventuais dos detentores do poder político ou das maiorias congressuais, inexistindo, no estádio atual do conhecimento científico, um critério válido, universalmente aceito, para revelar quais as necessidades a serem providas pelo Estado e quais as que deverão ser satisfeitas pelos parti­culares.11

Os fins colimados pela atividade estatal são variáveis no tempo e no espaço e nisto consiste, precisamente, a sua relatividade histórica: “Para determinar el contenido de la actividad del Estado, es necesario tener presente que,

9. Ensina LUCIEN MEHL que a eleição dos principais elementos integrantes de um sistema fiscal é o resultado de opções em que intervêm considerações de ordem econômico-social e psicológica. A eleição do sistema fiscal tem, pois, um caráter essencialmente político (Science et Teclmique Fiscale, Paris, Presses Universitaires de France, vol. I. pág. 101).10. Uma Introdução à Ciência das Finanças, Revista Forense, 21 ed., Rio, 1958, vol. I. n. 3. pág. 13; idem, Clinica Fiscal, Livraria Progresso Editora, Salvador, 5 958. pág. 163; cf. GR1ZIOTTI, Principios de Política , Derecho y Ciencia de ia Hacienda cit.. § 1°, págs. 16 e 17.1 1. GR.IZ10TTI, Principios de Política, Derecho y Ciencia de la Hacienda cit., § 1 pigs. 15 e 16, e § 2°, pág. 54; idem. Principios de Ciencia de las Finanzas cit., pág. 25.

Page 8: José Souto Maior Borges - Introdução Ao Direito Financeiro

INTRODUÇÃO AO DIREITO FINANCEIRO 15

de acuerdo con - el desarollo de la civilización y concomí tan temente con el cambio de las necesidades sociales que exigen una satisfacción adecuada, se van asinando al Estado determinados fines que varían también en el espacio y el tiempo”.12

9 — O exercício das atividades do Estado pode se dar em caráter supletivo ou complementar, concorrente ou mono­polizador de setores da vida econóuica e social.

A ampliação do intervencionismo do Estado na vida económica e social acarreta uma redução no âmbito de atua­ção da atividade particular. Por esse motivo, ensina GABINO FRAGA que o problema de determinar quais são as atri­buições correspondentes a um determinado Estado se encon­tra intimamente vinculado com o das relações que numa soci­edade política guardem este e os particulares.13 A tendência para o intervencionismo estatal, geralmente designada como “paternalismo ou providencialismo governamental”, provoca uma reação de grupos e interesses econômicos que se obje­tiva através de maior participação na vida pública e nas deci­sões políticas, procurando influir sobre o ser do Estado —• fenómeno constatado e analisado, entre outros, por RAYMOND BARRE: “É hoje lugar-comum falar-se em poder económico. Unidades económicas poderosas, exercem sobre a vida econômica um efeito dé dominação irreversível: em muitos setores, a atividade econômica implica o confronto de poderes contratuais desiguais. Mais ainda, os centros de

12. GABINO FRAGA, 'ob. cit., n. 3, pág. 4. Esta relatividade histórica das estru­turas sociais é posta em relevo pelo prof. BARRE: “Segundo a idade das estrutu­ras, seu grau de solidez je de plasticidade, a intervenção do Estado variará em suas possibilidades (quantum de ação) e em seus meios” (Ob. e vol. cits., pág. 203).13. Ob. cit., n. 4, págs. 5 e 6.

■ O

Page 9: José Souto Maior Borges - Introdução Ao Direito Financeiro

16 JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES

poder econômico se dirigem contra o poder político, tentando influenciá-lo ou dominá-lo”.14

Assinala, ainda, o professor da Faculdade de Direito de Caen: “No domínio político, enfim, as grandes empresas e os grupos econômicos exercem influência crescente sobre a soberania estatal”.15

À livre concorrência opõe-se o monopólio estatal para constituir um sistema de economia centralizada tendo o Estado como centro de convergência: “Se o Estado (União, Estado-membro ou Município), exerce a atividade, com exclusão de toda a concorrência privada, há o monopólio estatal. Se o exerce com outra entidade, não-estatal, há o monopólio misto. Se dois Estados é que o exercem, há o oligopólio pluriestatal. Se o exercem duas unidades, ou mais, diferentes, do mesmo Estado, há o monopólio estatal misto, ou o oligopólio estatal misto”.16

No presente trabalho, selecionaremos, dentro desse complexo e multiforme universo das atividades estatais, um tipo específico: as atividades financeiras, objeto de regulação jurídica autônoma— o Direito Financeiro.

Estudaremos, portanto:

- neste capítulo 1: O conceito da atividade financeira;- no capítulo 2: Os fins da atividade financeira;- no capítulo 3: A extensão do poder financeiro;- no capítulo 4: A estrutura do fenômeno financeiro;- no capítulo 5: O conceito do Direito Financeiro.

14. Ob. cit., vol. U, pág. 95.15. Ob. e vol. cits., pág. 97.16. PONTES DE MIRANDA, Comentários à Constituição de 1946, T ed., 1953, Max Limonad, São Paulo, vol. I, pág. 282.

Page 10: José Souto Maior Borges - Introdução Ao Direito Financeiro

INTRODUÇÃO AO DIREITO FINANCEIRO 17

SEÇÃO II

A atividade financeira no quadro geral das atividades do Estado

10 — Princípios constitucionais expressos e implíci­tos regulam e delimitam a capacidade financeira das unidades políticas e fixam a competência dos poderes na formação e aplicação das normas jurídico-financeiras em geral e,. espe­cialmente, nas normas tributárias.

Assim, é constitucionalmente cometido ao Legislativo o estabelecimento das normas fiscais, cabendo a sua regula­mentação e execução à Administração Pública e a declaração do Direito ao Poder Jurisdicional (Const. Fed., art. 141, § 4o).

O rol desses princípios, de inegável inspiração polí­tica, pode ser encontrado na importante monografia de ALIOMAR BALEEIRO: Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar, 2a ed., Forense, Rio, 1960, págs. 13 usque 15). j

A discriminação das fontes da receita tributária está rigidamente disciplinada no ordenamento constitucional do país (Const. Fed., arts. 15, 19, 29, etc., Emenda Constitu­cional n° 5).

A despesa (art. 73), o orçamento (arts. 73 usque 76, 141, § 34) e o crédito público (arts. 33, 63, inc. H, 7o, inc. VI e 9o) são também objeto de regulação constitucional.17

17. “Nos países de constituição rígida e de controle judicial da constitucionali- dade e legalidade dos atos dos governantes, como o Brasil, Estados Unidos e Argentina, a sujeição da atividade financeira aos moldes jurídicos é mais enérgica do que nos demais” (ALIOMAR BALEEIRO, Uma Introdução à Ciência das Finanças cit., vol. I, n. 33, págs. 52 e 53).

Page 11: José Souto Maior Borges - Introdução Ao Direito Financeiro

18 JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES

11 — A divisão dos poderes acarreta como conse­qüência, entre outras, a submissão do Executivo à Legislação Financeira, o que sucede em duas hipóteses diferentes: 1) O Poder Legislativo edita normas delimitando as esferas jurídi­cas subjetivas da Administração Pública (p. ex., a partilha tri­butária), ou disciplinando os fatos geradores, alíquotas, bases de cálculo e processos da tributação, etc. (v. g. a decretação de normas gerais de direito financeiro, Const. Fed., art. 5o, inc. XV, alinea “b”); 2) O Poder Legislativo autoriza, pre­viamente, os gastos necessários à execução dos serviços públicos no decorrer do exercício financeiro (Const. Fed., art. 141, § 34).'®

12 — Salienta FERNANDO SAINZ DE BUJANDA, de acordo com a generalidade da doutrina moderna, que a lei é a fonte primária e quase exclusiva do Direito Financeiro19 e que o princípio da legalidade fiscal aparece consagrado em quase todas as constituições européias do segundo post­guerra,20 como um dos princípios fundamentais do ordena­mento jurídico21 e uma garantia contra o puro “decisionismo administrativo”, que ameaça fundamentalmente os direitos da pessoa humana, entre os quais figura o de possuir e desfrutar os bens próprios para a satisfação de fins individuais: “Ahora bien, es evidente que esa fe en los atributos esenciales de la personalidad, proclamada en el campo filosófico y en el Derecho positivo, se converteria en ideal utópico carente de toda efetividad si la administración pública no tuviera que

18. Cf. FERNANDO SAINZ DE BUJANDA, Hacienda y Derecho — Introducción al Derecho Financiero de Nuestro Tiempo, Instituía de Estudios Políticos. Madri, 1962, vol. II, págs. 154 e 155).19. Ob. cit., vol. I, pág. 133.20. /bidem, vol. I, pág. 429.21. ¡bidem, vol. II, pág. 147.

Page 12: José Souto Maior Borges - Introdução Ao Direito Financeiro

INTRODUÇÃO AO DIREITO FINANCEIRO 19

ajustar sus actos a un esquema abstracto, elaborado por órganos a los que especificamente corresponda la función legislativa con arreglo a la constitución de cada grupo político”.22

Nesta ordem de idéias, ensina ERNST BLUMENSTEIN que rege a atividade financeira o principio fundamental do moderno Estado de Direito, pelo qual toda manifestação do poder público se submete a um ordenamento jurídico (princípio da administração legal).23

O Estatuto Supremo do país erigiu em garantia cons­titucional genérica o principio da legalidade: “Ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (art. 141, § 2o).

O Estado cria o ordenamento jurídico-positivo pela legislação (constitucional ou ordinária) e, no exercício das funções administrativas e jurisdicional, submete-se ao seu império.24 As suas atividades em geral, e as atividades finan­ceiras em particular, estão submetidas ao princípio da legali­dade (Const. Fed., art. 141, §§ 2o e 34, combinados).

O princípio da legalidade da tributação pode ser enun­ciado do seguinte modo: não há tributo sem lei expressa que o determine (nullum iributum sine lege).

Sobre ele, escreve PONTES DE MIRANDA:25 “O princípio que está à base do art. 141, § 34, Ia parte, da Cons­tituição de 1946, é ;o princípio da legalidade, também dito princípio da legaritariedade

22. Ibidem, vol. II, pág. 163.23. [■'! orden jurídico de la economia de Ias fuianzas, in Tratado de Finanzas, de GERLOFF-NEUMARK, trad. do Handbuch der Finanzwissenschaß, Libreria “El Ateneo" Editorial, Buenos Aires, 1961, vol. I, pág. 111.24. Sobre a subordinação do Estado às regras jurídicas que edita e a divisão do poder, consultc-se ALFREDO AUGUSTO BECKER, Teoria Gera! do Direito Tributário, Saraiva, São Paulo, 1963, n. 60, págs. 190 e 191.25. Questões Forenses, Editor Borsoi, Rio, 1962, t. VI, pág. 370.

Page 13: José Souto Maior Borges - Introdução Ao Direito Financeiro

20 JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES

Sem lei, portanto, não há atividade financeira, termos em que se traduz o chamado principio da reserva da lei (Vorbealtdes Gesetzes).

13 — A atividade administrativa é espécie, e a finan­ceira, que se desenvolve, basicamente, no campo da receita e despesa, ou seja, de gestão do patrimônio estatal, é conside­rada por alguns —- particularmente ou administrativas — mera subespécie de atividade do Estado>26

Setor destacado da atividade administrativa, atribui-se hoje, por exigências científicas, práticas ou meramente didá­ticas, uma certa autonomia ao estudo da. atividade financeira. Esta distingue-se, segundo alguns autores, das outras mani­festações administrativas carentes de conteúdo econômico para constituir a chamada administração financeira}1

Pode-se dizer, entretanto, com maior rigor científico, que a atividade financeira é predominantemente administra­tiva: O Estado-legislador decreta; o Estado-administrador arrecada os tributos

26. “Desde un punto de vista estrictamente jurídico, la gestión abarca tanto las operaciones encaminadas a la obtención de recursos, como las que $e dirigen a la transformación de los recursos obtenidos en servicios públicos. Estas últimas operaciones varían en el ordenamento positivo de los diferentes Estados, pero normalmente requieren la realización de dos actos jurídicos fundamentales: 1°) La ordenación del gasto; 2V‘) La ordenación del pago (SAINZ DE BUJANDA, ob. cit., vol. 1. pág. 32).Por seu turno escreve GUSTAVO INGROSSO: “Entrala e spesa sono le due forme cardinal i deÜ'attiyitá finanziaria" (Diritto Finanziario, 2 a ed., Nápoles, Casa Editrice Dote. Eugenio Jovene, 1956, pág. 3).27. SAINZ DE BUJANDA, ob. cit., vol. I, pág. 12.28. INGROSSO (ob. cit., pág. 10): “Attivitá finanziaria è attività prevalentemente dell'amminisirazione; conseguentemente si vale di atti e di procedimenti propri di quesr ultima. che sono dominio cientifico del diritto amministrativo”; cf. GUIDO ZANOBINI, Corso d i D iritto Amministrativo, 5a ed., Dott. A. Giuffrè-Edito re, 1958, vol. 4 1’, pág. 334, in fine

Page 14: José Souto Maior Borges - Introdução Ao Direito Financeiro

INTRpDUÇÃO AO DIREITO FINANCEIRO 21

14 — Essa distinção conceituai do Estado como autor do mandato e o Estado como titular de um dos interesses em conflito e, pois, como destinatário daquele mesmo mandato, é aceita pela doutrinâ moderna mais autorizada e tem plano de aplicação no regime constitucional vigorante em nosso país.

BERNARDO RIBEIRO DE MORAIS, em básica monografia, ensiná que é necessário distinguir a dupla fisio­nomia do Poder Público: a ação do Estado como autor e ação do Estado como sujeito do ordenamento jurídico.29

Procedentemente, esse autor acrescenta às judiciosas considerações anteriores as seguintes observações: “O Estado possui dupla fisionomia: em primeiro lugar, apresenta-se como criador do direito, como elaborador e tutelador da norma jurídica no interesse da coletividade; em segundo lugar, apresenta-se como sujeito de direitos e obrigações, submetendo-se à ordem j urídica por ele criada.

Em virtude dessas duas faces, temos duas relações diferentes. Quando o Estado, detentor da competência tributá­ria, com seu poder impositivo, elabora a norma juridico-fis­cal, temos a relação de soberania. No momento em que o Estado acaba de fixar em forma de lei a norma tributária, temos o aparecimento de um Direito que o próprio Estado deverá obedecer. No exercício da pretensão tributária, a submissão do Estado-Fisco à. lei é completa. A partir da existência da norma legal tributária, temos uma relação de direito”?0

A relação jurídico tributária é, pois, uma relação obri- gacional ex lege e não relação de poder.

Também para GIANNINI, enquanto o Estado-Ie- gislador “nella esplicazione del suo potere finanziàrio,

29. Doutrina e Prática do Imposto de Indústrias e Profissões, Max Limonad, São Paulo, 1964 ,1 .1, pág. 139.30. Ibidem, pág. 140.

Page 15: José Souto Maior Borges - Introdução Ao Direito Financeiro

22 JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES

sovranamente determina le varie imposte e le persone tenute a soddisfarle”; o Estado-admiriistrador “realiza il suo diritto ai tributo in conformità alia legge,le cui norme vincolono lo St ato stesso non meno ché il cohtnbüenie”.31

Sobre a distinção entre o Estado como criador e o Estado como sujeito do ordenamento jurídico, obtempera EZIO VANONI que, naquela dualidade, a qual não representa um contraste de termos opostos, mas dòis. diferentes aspectos da mesma realidade, encontra-se a chave da definição da natureza do Estado de Direito: “A natureza daquela dualidade revela-se èvidente a quem considera a natureza da atividade financeira. O Estado, que para realizár os seus fins tem neces­sidade de bens econômicos, pqe em ação uma atividade ori­entada no sentido da obtenção de tais bens; e o ordenamento jurídico, ou seja, o Estado em sua função legiferante, garante o exercício de tal atividade”.32

De acordo com esta lição de VANONI está a doutrina italiana atual, destacando-se CARNELUTTI, para quem a palavra Estado, como tantas outras, tem dois significados distintos que se devem diferenciar para não cair no perigo de constantes equívocos: “Una cós.à es el Estado como expresión subjetiva del Derecho (objetivo) y. otra diferente el Estado como sujeito de una relación jkrídica. Èn el primero sentido el Estado es soberano, en el Sègiindò es súbdito, es decir, queda vinculado por el Derecho; en el. primer sentido, el Estado está super partes (es eF cómponedor del conflito); en

31. / Conceui Fondamsntali del Diritto, Tributário, Utet. Turim , 1956, n. 1,

P*S- 1- • J •• •. ... ;32. Nátureza e Interpretação das I^eis Tributárias, trad. de RUBENS GOMES; DE SOUSA, Edições Financèiras, Riò, s/d. págC 115. .

Page 16: José Souto Maior Borges - Introdução Ao Direito Financeiro

INTRODUÇÃO AO DIREITO FINANCEIRO 23

el segundo; iiitér partes (es una de las partes cuyo conflito de intereses compone; el derecho)”33

Sç£undó;o insigne processualista italiano existem dois caminhos.'para superar a dificuldade de conceituação do. Estado como, titular de interesse eventualmente em conflitó: “Los cartiinós pàrá superaría son dos: o se admite la identidad entre el Estado como fuente del mandato jurídico y el Estado como destinatario de el, en cuanto sujeto de uno de los intereses., en coiiflito, y se : recurre al concepto, de la autolimiíacióh; o se niega esa identidad contraponiendo el Estado-lègisladòr y el Estado-juez al Estado-administrador, y volviendo áisí a encontrar los elementos lógicos del fenómeno jurídico”.34 , I

Da coordenação do principio do Estado de Direito com a distinção de atividades tendo idêntico valor formal —• ensina;ilustre adrtiinistrativista italiano — resultam especifi- cadas no modo mais evidente as características da atividade de administração com respeito às de legislação e jurisdição. Enquanto. que com estas últimas, cuidando de instaurar e garantir o direito, se põe superpartes, em função objetiva, com a . administração o Estado, submisso, como todos os outros sujeitos jurídicos, ao ordenamento e à sua atuação concreta--^ isto é à lei e aos juizesJ—,*$tje*se''ele próprio,. ao teriáèf; pàrá; bs seus escopos concretos,'como parte em igualdade com òs outros sujeitos. Tanto que parece justei reter q u e a qualificação de sujeito, jurídico seja reconhecida ao Estado apenas enquanto opera em função administrativa

33. Sistem adeDere'cho Procesal Civil, trad. de NICETO ALCALA-ZAMOR A y CASTILLO;? SANTfÁGO.SENTIS MELENDO, Uteha Argentina,. Buenos Aires. 1944, volv ían. 12; págs. 36 e 37.. .34. CARNÉLÜTTíf ://zr/ od¿<cc-ió/j ál estudio del derecho procesal tributario. ' in E studios;dé'iD etecho Procesal, trad. de SANTIAGO SENTIS MELENDÖ, Ediciones JÙrfdiôas Europa-America, Buenos Aires, 1952; vol. 1, pág. 254, nota 4.

Page 17: José Souto Maior Borges - Introdução Ao Direito Financeiro

24 JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES

(Estado-pessoa), ou seja, somente enquanto subditus juris, e não também enquanto fons juris e servatur juris (Estado-or- denamento).35

Conclui-se, portanto, que o Estado, como instituição, se sujeita às normas de direito por ele instauradas enquanto ordenamento jurídico. Há que distinguir, deste modo, entre o momento da criação e o momento da atuação da regra jurí­dica.

15 — O Estado paga ordinariamente em dinheiro os bens e trabalhos necessários à execução dos serviçòs públi­cos. Aspecto característico da finança do Estado Moderno é o seu conteúdo pecuniário — ensina-o INGROSSO. A maior parcela do dinheiro necessário ao desempenho das funções estatais é pela tributação coativãmente subtraída do patrimô­nio das pessoas físicas e jurídicas, ao lado das receitas prove­nientes da exploração do patrimônio público. A requisição de coisas e serviços de particulares, ou a sua colaboração gra­tuita em funções de governo (e. g.} júri, serviço militar, com­posição de mesas eleitorais, etc.), tem, hodiemamente, caráter excepcional: “A regra, hoje, é o pagamento em moeda e, por isso, constitui atividade financeira a que o Estado, as provín­cias e municípios exercem para obter dinheiro e aplicá-lo ao pagamento de indivíduos e coisas utilizados na criação e manutenção de vários serviços públicos”.36

35. ALDO M. SANDULLI, Manuale di Diritto Amministrativo. 6U ed., Casa Editrice Dott. Eugênio Jovene, Nápoles, 1960, n. 6, pág. 11.36. ALIOMAR BALEEIRO, Uma Introdução à Ciência das Finanças cit., vol. I, n. 2; cf. também INGROSSO: D iritto Finanziario, 2a ed., Casa Editrice Dott. Eugênio Jovene, Nápoles, 1956, n. 2, pág. 2.

Page 18: José Souto Maior Borges - Introdução Ao Direito Financeiro

INTRODUÇÃO AO DIREITO FINANCEIRO 25

Recentemente, ALFREDO AUGUSTO BECKER37 procura demonstrar a expansão de tributos in natura38 e in labore.19 '

Na doutrina, contudo, não há unanimidade sobre a aceitação ou recusà de natureza tributária às prestações in natura ou in labore.

Alguns autores mostram-se favoráveis ao reconheci­mento de natureza tributária às prestações in natura.40

As prestações in labore são também consideradas como de natureza tributária.41 Finalmente, outros são contrá­rios ao reconhecimento de natureza tributária quer às presta­ções in natura, quer às prestações in labore.42

São recebidos sob reserva, por alguns autores, os argumentos com os quais se procura demonstrar a expansão,

37. Ob. cit., n. 165, pág. 562 e segs.38. Exemplos: entrega coativa, sem contraprestação, de cereais, alimentos, gado, lã, etc., desapropriação (entrega coativa mediante contraprestação) de bens móveis ou imóveis; empréstimo compulsório, gratuito ou não, de bens fungíveis ou infungíveis e a requisição de bens móveis ou imóveis, gratuita ou não (BECKER, ob. cit., n. 165, pág. 563).39. Exemplos: requisição de mão-de-obra civil, masculina e feminina, para servi­ços de natureza militar ou civil (construções de estradas, combate às secas, às inundações, auxílio à colheita de cereais, etc.), a obrigação de votar, para eleição de presidente do Estado, membros do Congresso; participar e julgar, como mem­bro do corpo de jurados, no Tribunal do Júri; etc. (BECKER, ob. cit., ibidem).40. BECKER, ob. cit., ibidem : GÍULÍANI FONROUGE, Derecho Financiero. Edíciones Depalma. Buenos Aires, 1962. vol. I, n. 115, pág. 201; GILBERTO DE ULHOA CANTO, in Curso de Direito Financeiro. Edições Financeiras, Rio, 195S. pág. 104; GIORGIO TESORO, Principio de Diritto Tributário, Bari, Do ct. Luigi Macri-Editore, 1938, págs. 153 usque 155.4L BECKER, ob. cit., ibidem , com farta indicação bibliográfica.42. AMILCAR DE ARAÚJO FALCÃO, Introdução ao Direito Tributário, Edi­ções Financeiras, Rio, 1919, n. 42, pág. 35; GIANNIN1, / Concetti Fondamentali di Diritto Tributário c it., n. 28, págs.. 76 e 77: BLUMENSTEIN, Sistema di Diritto delle bnposiey Dott. A. Giuffrè. Milão, 1954, trad. de FRANCISCO FORTE do System des Steuerrechts.. T ed., Polygraphischer Verlag A-G,. Zurique, 1951, pág. 4; ZANOBINI, Corso di Diritto Amminisirativo, 5a ed., Dott. A. Giuffrè, Milão, 1958, vol. IV, pág. 352.

Page 19: José Souto Maior Borges - Introdução Ao Direito Financeiro

26 JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES

na época atual, dos tributos in natura e in labore. Assim é que ensina ALIOMAR BALEEIRO “houve e aínda há, em poucos países, prestações em natureza e em trabalho, mas em casos tão reduzidos e em quantidade tão ínfima, que podem ser desprezadas, para afirmar-se que, no mundo cóntempo- ráneo, o imposto é uma contribuição em dinheiro”.43

16 — Entende também RUBENS GOMES DE SOUSA que a evolução do Direito Tributário se processou no sentido indicado por BALEEIRO, isto é, pela diminuição gradativa da importância atribuída às prestações tributárias de conteúdo não pecuniário, sendo o pagamento em dinheiro o modo usual de extinção da obrigação tributária: “Pagamento em dinheiro é a forma comum. No direito antigo, era correnteo pagamento de tributos in natura, isto é, a entrega ao fisco de uma parte dos próprios bens sujeitos ao tributo, p. ex., tantos quilos de trigo por tonelada na ocasião da colheita; ao ttmpo do Brasil colônia havia o imposto do quinto, por força do qual a quinta parte (20%) do ouro produzido pelas minas era entregue diretamente ao fisco português. Hoje em dia, em regime de economia monetária, não existem mais tributos pagos in natura, são todos pagos em dinheiro; mesmo no executivo fiscal, quando o fisco penhora os bens do devedor,o pagamento é feito em dinheiro: o fisco vende em leilão os bens penhorados, ou seja, transforma-os em dinheiro, embol­sando a sua parte e restituindo ao contribuinte o excesso, se houver”.44

Ultrapassa, todavia, as dimensões do presente estudo a análise dos argumentos em prol de uma ou outra orientação teórica. Um resumo dos debates em torno desse assunto tor-

43. Uma ¡ni&odução à Ciência das Finanças cit., vol. í, n. 262. pág. 397.44. Compêndio de Legislação Tributária , 2J ed., Edições Financeiras, Rio. s/d, 4 31, pág. 81.

Page 20: José Souto Maior Borges - Introdução Ao Direito Financeiro

INTRODUÇÃO AO DIREITO FINANCEIRO 27

mentos o no âmbitò doutrinário pode ser iido na obra já refe­rida de ALFREDO AUGUSTO BEÇKER.

17 — A atividade financeira, nela incluída como parte ; integrante a atividade tributária, é atividade orientada no sen­tido de obter os meios necessários para suprir as necessidades públicas.45 Atividade que se desenvolve no âmbito de orde­namentos políticos-de natureza coercitiva.46 • ' ' •:

A atividade financeira — ensina-o MORSELLI — é algo orgânico, sujeito a leis, princípios e regras próprias e nisto consiste a sua especificidade.47

RUBENS GOMES DE SOUSA traça um roteiro seguro para a separação científico-metodológica da atividade financeira das outras atividades do Estado e para fixar sua posição no quadro geral das atividades estatais: “Simulta­neamente com as atividades políticas, sociais, econômicas, administrativas, educacionais, policiais, etc., que constituem a sua finalidade própria, o Estado exerce também uma ativi­dade financeira, visando a obtenção, a administração e o emprego de meios patrimoniais que lhe possibilitem o desempenho daquelas outras atividades que se referem à rea­lização dos seus fins. A atividade financeira do Estado desenvolve-se fundamentalmente em três campos: a receita, isto é, a obtenção de recursos patrimoniais; a gestão, que é a administração e conservação do patrimônio público; e final-

45. Cf. VANO.NI, ob. cit., págs. 125 e 126.46. Cf. CESARE COSCIANI, Principios de Ciencia de la Hacienda, trad. de FERNANDO VJCENTE-ARCHE DOMINGO e JAIME GARCIA AÑOVEROS. Madri. Editorial de Derecho Financiero, 1960, págs. 8 e 9.47. Cf. MORSELLI, Curso de Ciência das Finanças Públicas — Introdução ePrincípios Gerais, trad. de ELZA MESCHICK, Edições Financeiras, Rio, 1959, n. 1, pág.s. 11 e 12. ,

Page 21: José Souto Maior Borges - Introdução Ao Direito Financeiro

28 JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES

1 mente a despesa, ou seja, o emprego de recursos patrimoniais ¡ para a realização dos fins visados pelo Estado”.48

O fenômeno econômico do setor público ou “econo­mia pública” distingue-se da economia privada porque tem como aspecto predominante a sua coação, ou seja, caracte­riza-se como uma “economia de aquisição compulsória”.49

Acentuamos a predominância e não a exclusividade do elemento coerção porque, como adverte ALIOMAR BALEEIRO, esse elemento coativo não se percebe nas explo­rações dominiais e nos empréstimos voluntários.50

18 — A finança pública se individualiza, em face da finança privada, porque esta tem por objeto a obtenção de lucro, enquanto que o Estado exercita as suas atividades financeiras visando a realização d & fins políticos?'

O prof. EMANUELE MORSELLI agrega os seguintes fatores determinantes da atividade financeira:I - O governo (e a constituição política);II - A riqueza (e a constituição econômica).

Além desses, dever-se-ia falar dum certo fator — o fator moral, mas este integra os outros dois fatores.52

48. Ob. cit., § 2°, págs. 4 e 5.49. HANYA ITO. Essays in Public Finance, Science Council ofJapan, Tóquio,1954. pág. 3 e segs., apud BALEEIRO, ob. e vol. cits., n. 2.50. Ibidem. ^51. Cf. 1NGROSSO, ob. ca., págs. 4 c 5.52. "O fato financeiro é. necessariamente, também faio moral, tanto pelo governo que o estabelece e o cumpre quanto pelos agentes econômicos que por isso se tor­nam contribuintes e o consideram fato da vida cm comum. Antes de tude, o corpo político é um agregado de princípios, crenças, sentimentos e aspirações. A ação financeira governamental nasce da deliberação humana e a vontade se completa e traz tanto maior força de decisão e resultado quanto mais os atos e as operações do próprio governo souberem procurar o bem e afastar o mal como sentidos pela moral social. E isso significa também que aqueles atos e aquelas operações dos quais é meio a riqueza social, formam a consciência moral coletiva” (MORSELLI, ob. cit., n. 6, pág. 23).

Page 22: José Souto Maior Borges - Introdução Ao Direito Financeiro

INTRODUÇÃO AO DIREITO FINANCEIRO 2 9

A atividade financeira apresenta-se com característi­cas de instabilidade, em função de diretrizes mutáveis como conseqüência daquelas variedades de condições da vida social a que nos referimos anteriormente.

19 — A atividade financeira é objeto material de estudo por diversas disciplinas de caráter científico.

A Ciência das Finanças estuda os princípios e leis reguladoras do exercício da atividade financeira do Estado, sistematizando os fatos financeiros.

Outras disciplinas que se preocupam com a atividade financeira do Estado são a Economia Financeira, a Política Financeira, a Técnica Financeira e o Direito Financeiro.53

O Direito Financeiro, regulação jurídica das ativida­des financeiras do; Estado, estuda as normas financeiras, coordenando-as na reciprocidade de relações em que estão agrupados os institutos financeiros.54

SEÇÃO III

Tipos e modos de obtenção de receitas públicas

20 -— A doutrina mostra-se vacilante na caracteriza­ção do direito do Estado aos tributos.

Ainda influenciado pela vetusta concepção da sobera­nia absoluta, una, indivisível, inalienável e imprescritível, GIORGIO TESORO vê no fenômeno tributário uma mani­festação da soberania geral do Estado. Assim como a sobera-

53. Sobre esse assunto, consultar RUBENS GOMES DE SOUSA, Compêndio de Legislação Tributária cit., ns. 2 e 3, págs. 5, 6 e l .54. Cf. MORSELLI, ob. cit., n. 7, págs. 23 e 24.

Page 23: José Souto Maior Borges - Introdução Ao Direito Financeiro

3 0 JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES

nia estatal não tem limites, também a soberania tributária, espécie daquela, nâo os conhece.55

A doutrina germânica considera ordinariamente o direito à tributação com fundamento na soberania territorial do Estado.

A soberania financeira do Estado, ou, especifica­mente, a soberania tributária, se exerceria nos limites do ter­ritório sujeito à soberania estatal, genericamente considerada.

Também para FE.WANDO SAINZ DE BUJANDA a soberania tributária representa um aspecto ou manifestação da soberania financeira e esta, por seu turno, constitui uma parcela da soberania do Estado.56 O conceito da soberania financeira constitui o fundamento político da Finança Pública Moderna.57

Para RAFAEL BIELSA o conceito de soberania é político-jurídico e não estritamente jurídico.58

Filia-se ainda ? esta corrente doutrinária ERNST BLUMENSTEIN, para quem os tributos são prestações em dinheiro que o Estado exige em virtude de sua soberania territorial às pessoas que lhe estão economicamente subme­tidas.59

55. Principii di D iritto Tributario eh., n. 5, pág. 13, in fine.56. Ob. cit., vol. I, págs. 253 e 260, nota 132, in fine.57. Ibidem, pág. 258.58 “La soberanía es concepto político y no estrictamente jurídico (en todo caso político-jurídico), si bien el derecho fundamental se asienta en la soberanía. La soberanía — dice IHERING — está por encima de todo (supra, supranus, sovrano). El Estado posee la auctoridad y ordena (subditus, sujeción)", (BIELSA, Estudios de Derecho Público, II, Derecho Fiscal, Editorial Depalma, Buenos Aires, 1951, pág. 64; cf. Compendio de Derecho Público Constitucional, Administrativo y Fiscal, III, Derecho Fiscal, Editorial Depatma, Buenos Aires, 1952, pág. 17).59. El Orden Jurídico de la Economía de las Finanzas cit., ibidem, 1.1, págs. 124 e 125.

Page 24: José Souto Maior Borges - Introdução Ao Direito Financeiro

INTRODUÇÃO AO DIREITO FINANCEIRO 31

21 — A velha doutrina da soberania, contudo, vem recebendo constante revisão crítica. O enfoque do problema da tributação sob o prisma da soberania, longe de representar um progresso valioso para a construção da teoria jurídico-fi- nanceira, introduz nesta matéria todas as dificuldades que revestem a elaboração do conceito da soberania — como acentuou, com inteira procedência, SOARES MARTINEZ.

O conceito da soberania é complexo e variável no tempo e no espaço.

O dogma da soberania estatal absoluta é hoje sujeito a contínuo desgaste, concebida a soberania como um poder limitado pelo ordenamento jurídico internacional (soberania relativa).

22 — A doutrina divide a soberania estatal em sobe­rania interna e soberania externa, como duas faces de uma mesma moeda.

A soberania externa excluiria a idéia de subordina­ção, de dependência face a Estados estrangeiros, enquanto que, sob o plano internacional, & soberania interna implicaria na predominância do Estado no interior do seu território, i. é., no âmbito espacial de validez das normas jurídicas estatais.

Sofre, entretanto, essa concepção, dura critica de JEAN DABIN: “En realité, les concepts son distincts: la souveraineté, comme: pouvoir supérieur, ne se comprend qu’a l’égard d*inférieurs, non d’egaux. En l’état actuel de la communauté internationale, les Etats, dans leurs relations mutuelles, sont sur un pied d ’égalité; et la prétendue souveraineté de chacun n’est qu’ indépendence, autonomie,

Í Ò

Page 25: José Souto Maior Borges - Introdução Ao Direito Financeiro

32 JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES

chaque Etat étant libre de s’organizer lui-même et de IM gouvemer ses sujets sans ingérence de rexterieur”.60 .

Além disso, a soberania não pode ser considerada uma característica essencial do poder do Estado, porque há 11 Estados que não são soberanos, como os Estados-membros de t | | um Estado Federal.61 I I

A criação de coletividades,estatais com personificação f de direito das gentes, dotadas de competência tributária m supranacional, como a Organização das Nações Unidas | j(ONU), por seu turno, suscita problemas teóricos insuspeita- S|dos pela doutrina tradicional da soberania.

A transformação gradativa desses organismos interna­cionais em uma espécie de superEstado internacional, como acentua PINTO FERREIRA, condicionará mais ainda esta limitação objetiva de soberania.62

Com a eclosão de novas teorias federalistas e o desenvolvimento desses organismos internacionais, o con­ceito de soberania teve que sofrer uma profunda revisão na Teoria Geral do Estado.

23 — Para superar as dificuldades que oferece o con­ceito de soberania, os autores procuram invocar o poder de império do Estado, no âmbito do seu território, como funda­mentação do seu poder financeiro. Nesse sentido, deve ser entendido o ensinamento de MANUEL ANDREOZZI: “El derecho tributário está cimentado en una potestad fiscal, es

60. L ’État ou le Politique — Essai de Définition, Dalloz, Paris, 1957, n. 128, pág. 241.61. Cf. PINTO FERREIRA, Teoria Geral do Estado, 2a ed., José Konfino-Editor, Rio, 1957, tomo I, n. 37, pág. 108.62. Ob. e vol. cits., n. 39, pág. 115.

Page 26: José Souto Maior Borges - Introdução Ao Direito Financeiro

INTRODUÇÃO AO DIREITO FINANCEIRO 33

verdad, pero ésta no pude tener fundamentos extra o super Constitucionales”.63

GIULIANIFONROUGE, após definir o poder tributá­rio como a faculdade ou possibilidade jurídica de exigir o Estado contribuições das pessoas ou bens que se encontram sob sua jurisdição, adverte; “Este concepto, tan generica­mente considerado, ha dado lugar a interpretaciones diver­gentes, que comienzan con Ia terminologia. Hay quienes hablan de potestad tributaria (Berliri), de poder fiscal (Bielsa), de poder de imposición (Ingrosso; Blumenstein), de poder tributário concebido como “el poder general del Estado aplicado a determinado setor da actividad estatal, la imposición” (Hensel), pero son variantes de la idea expuesta”.64

Uma escola de financistas alemães (SCHAFFLE E HECKEF), buscando a superação das dificuldades provoca­das pela tese da soberania, chegou a considerar o tributo como emanação da supremacia de fato do Estado. Segundo esta teoria, vinculada à doutrina clássica do direito público alemão, o Estado exerce um poder ilimitado sobre as pessoas que se encontram em seu território, constrangendo-as, desta forma, ao pagamento de tributos.65

Da soberania financeira originar-se-ia, então, uma relação de poder (Gèwaltverhãltniss) e não uma relação de direito (Rechtsverhaltniss).

DINO JARACH oferece reparos irretorquíveis a esta teoria germânica: “El tributo es, como dije — y sobre esto no existe discusión posible alguna — un recurso que el Estado obtiene por medio de Ia coerción que nace de su podér de

63. Derecho Tributario Argentino, Tipográfica Editora Argentina, Buenos Aires, 1951, vol. I, pág. 33.64. Derecho Financiero cit., 1962, vol. I, n. 149, págs. 266 e 267.65. VANONI, ob. cit., n. 19, pág. 93.

Page 27: José Souto Maior Borges - Introdução Ao Direito Financeiro

34 JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES

VfJí/4?

império; pero esta coerción y este poder, de acuerdo con un |Jprincipio histórico-constitucional, puede ejercerse sólo de una pmanera, es decir, a través de la ley. Este es el principio básico €de todo el Derecho Tributário, sobre el cual se funda histori- |camente su nacimiento como Derecho. Si el Estado reclamara §tributos, tasas y impuestos, en virtud de su poder de império, •v. éste se ejerciera a través de la fuerza, estaríamos delante de un fenómeno que seria todo lo opuesto del Derecho y ya no , hablaríamos del Derecho Tributário, sino de la fuerza esta­tal” 66

Autores italianos, como ORLANDO, negam igual­mente à relação tributária o caráter de relação jurídica, atri­buindo-lhe características de simples relação de soberania ou de poder, porque estabelecida em favor do Estado por uma lei emanada do próprio Estado. O Estado, parte na relação tri­butária, impõe obrigação em seu próprio benefício ao exigir do particular a prestação do tributo.

Entretanto, como salienta com razão GOMES DE SOUSA,67 essa objeção está refutada por NAWIASKY: “O Estado utiliza-se da sua soberania tão-somente para fazer a lei; até esse ponto, trata-se efetivamente de uma relação de soberania, porque somente o Estado tem o poder de fazer lei; mas uma vez promulgada a lei, cessam os efeitos da sobera­nia, porque o Estado democrático, justamente por não ser autoritário, fica ele próprio submetido às leis que promulga. Portanto, se a lei se aplica por igual ao particular e ao próprio Estado, as relações dela decorrentes são relações jurídicas: por outras palavras, o particular fica obrigado a pagar o tri­buto na forma da lei, mas por sua vez também o Estado só pode cobrá-lo exatamente na forma da lei”.

66. Cioso Superior de Derecho Tributario, Liceu Profesional Cima, Buenos Aires, 1957, tomo I, pág. 14.67. Compêndio de Legislação Tributária cit., n. 19, pág. 49.

Page 28: José Souto Maior Borges - Introdução Ao Direito Financeiro

INTRODUÇÃO AO DIREITO FINANCEIRO 35

Estas observações do jurista alemão demonstram que a distinção entre a atividade estatal de produção de normas jurídico-tributárias, na qual o Estado exerce o seu poder financeiro, e a atividade do Estado enquanto detentor do cré­dito do tributo, esboçada anteriormente (supra, no 14), tem irrecusável validez teórica para a caracterização do fenômeno tributário. ■ -

Pode-se concluir que, no Estado Constitucional Moderno, o poder financeiro está sujeito ao ordenamento jurídico e o seu exercício não é arbitrário, mas limita-se ao âmbito do direito positivo.

24 — Entretanto, no exercício de atos de gestão financeira, o Estado pode se desprovir do seu poder de impé­rio. ;

Para assegurar o funcionamento dos serviços públi­cos, o Estado obtém os recursos necessários ora coativa- mente, através de prestações pecuniárias decorrentes da sub­missão dos particulares (pessoas físicas e jurídicas) ao seu jus imperii, ora se despindo desse poder, através da exploração de seu patrimônio, da prática de atividades comerciais ou industriais, ou de operações de crédito, das quais são exem­plos os empréstimos públicos.

Adotando diferentes processos técnicos, o Estado adquire os recursos indispensáveis ao exercício das suas fun­ções. O certo é que, na lição de GIANNINI, o Estado (como também os outros entes públicos) não poderia atingir os seus fins, provendo às múltiplas exigências que, segundo o seu próprio ordenamento é chamado a satisfazer, se não dispu­sesse de uma massa adequada de meios econômicos.68

68. Istituzioni d i Diritto Tributario, 8a ed., Giuffrè, Milão, 1960, n. 1, pág. 1.

Page 29: José Souto Maior Borges - Introdução Ao Direito Financeiro

3 6 JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES

25 —- Sob o prisma da dupla modalidade supra-refe- j rida de exercício da atividade financeira estatal, as receitas públicas podem se classificar, genericamente, em entradas ou ̂ingressos de direito privado, ou patrimoniais, ou, ainda, ̂comutativas (receitas originárias) e entradas ou ingressos de direito público, ou distributivas, ou tributos (receitas deriva­das). Esta é a chamada classificação “alemã”, ou “clássica”.

A receita originária (patrimonial ou industrial) é obtida pelo Estado através da administração dos seus recursos e bens patrimoniais (jus gestionis). Esses ingressos decorrem do exercício de uma atividade estatal equiparável à atividade dos particulares.

A receita derivada ou tributária é obtida pela arreca­dação de impostos, taxas e contribuições e resulta do exercí­cio por parte do Estado do seu poder de império (jus imperii).

2 6 — A classificação dos ingressos públicos em entradas a título comutativo e entradas a título distributivo, deve-se a GUIDO ZANOBINI,69 que critica a identificação, pela doutrina, dos ingressos de direito privado e de direito público aos originários e derivados, respectivamente. Para ele, todas as entradas de direito privado são ingressos originá­rios, porque decorrentes da exploração pelo Estado dos seus próprios bens patrimoniais. Todavia, nem todas as entradas de direito público são a título derivado, ou seja, extraídas da riqueza dos particulares, os contribuintes. São igualmente ingressos originários os lucros obtidos pelo Estado do uso especial e excepcional dos bens dominicais, como também as taxas pagas pelo exercício de algumas funções, tais como a administração da justiça e a prestação de todos os serviços públicos. Também estas, como as entradas de direito privado,

69. Corso d i Diritto Amministrativo cit., vol. IV, pág. 335.

Page 30: José Souto Maior Borges - Introdução Ao Direito Financeiro

INTRODUÇÃO AO DIREITO FINANCEIRO 3 7

não se podem considerar efeito de uma subtração da riqueza dos cidadãos, porque as somas a elas relativas encontram uma correspondência na utilidade que estes recebem do gozo dos bens dominicais, da prestação das funções e dos serviços públicos. A consideração da taxa como forma da correspon­dência não é infirmada peja desproporção entre esta e o custo econômico do serviço; as taxas não deixam de ser uma con­traprestação, mesmo que para cobrir o seu custo a administração tenha que recorrer paicialmente a outras en­tradas.

A doutrina costuma unificar todas as entradas de direito público sob a denominação de “tributos”, o que não se justifica porque uma diferença profunda distingue as entradas que têm função de correspondência, daquelas às quais não corresponde nenhuma contraprestação específica. Por isso, pode-se dizer que as entradas originárias compreendem não só as receitas de direito privado, como também parte dos ingressos de direito público. Reservada a denominação de entradas originárias às tradicionalmente assim qualificadas, pode-se usar como termò mais geral a expressão entradas a título comutativo pará designar todas as receitas — quer de direito privado, quer de direito público — que derivam de uma troca de utilidade entre o cidadão e o Estado. As restan­tes são entradas Obtidas pelo Estado ao impor prestações obrigatórias aos seus cidadãos, sem que lhes corresponda nenhuma utilidade particular e reservando o produto unica­mente aos fins gerais de organização, defesa e progresso doseu ordenamento. !'!;

Apenas estas entradas se podem denominar, no sen­tido próprio, “tributos”. Estes pertencem ao direito público e se identificam com as várias espécies de impostos. Em vir­tude deles, os cidadãos não obtêm a satisfação de nenhuma necessidade particular, mas cumprem o dever cívico de con-

Page 31: José Souto Maior Borges - Introdução Ao Direito Financeiro

38 JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES

tribuir para a formação de um fundo comum, com o qual o ' Estado provê às necessidades fundamentais da sua existência" e da sua atividade de interesse geral. Em contraposição à s ; entradas a título comutativo, os impostos podem denominar­se entradas a título contributivo.70

Também RUBENS GOMES DE SOUSA71 objeta contra a classificação das receitas públicas em originárias e derivadas porque “se encararmos o assunto sob um ponto de vista estritamente financeiro, veremos que os recursos mone­tários que constituem materialmente as receitas públicas são sempre provenientes do patrimônio particular, inclusive quando se trata de receita originária. Assim, no arrendamento de bens dominicais, ou na venda de produtos monopolizados pelo Estado, o dinheiro que entra para o cofre do Tesouro é sempre dinheiro do particular arrendatário ou comprador”.

70. ZANOBINI, ob. e vols, cits., ibidem.71. Compêndio de Legislação Tributária cit., § 4o, pág. 9.

Page 32: José Souto Maior Borges - Introdução Ao Direito Financeiro

CAPÍTULO 2

FINS DA ATIVIDADE FINANCEIRA

f 27 — A atividade financeira consistente, em síntese, na criação, obtenção, gestão e dispêndio do dinheiro público

' para a execução de serviços afetos ao Estado, é considerada por alguns como o exercício de uma função meramente ins- trumental, ou natureza adjetiva (atividade-meio), distinta das atividades substantivas do Estado, que visam diretamente a satisfação de certas necessidades sociais, tais como educação,

■ saúde, construção de obras públicas, estradas, etc. (ativida-l des-fins).

As atividades instrumentais ou. adjetivas atuam como um instrumento pu meio para a execução dessas outras ativi­dades através das quàis se realizam diretamente as políticas executivas dos governos. A existência de meios financeiros é condição sine qua non para o exercício regular das atribui­ções específicas do Estado (adequação dos meios aos fins estatais). Entre atividade financeira e prestação de serviços públicos, constata-se uma relação de meios para fins.

A maioria dos autores, entretanto, ao lado da função meramente fiscal da atividade financeira, estuda os efeitos da intervenção governamental na sociedade através das finanças públicas. É o que se denomina extrafiscalida.de. Esta função extrafiscal da atividade financeira distingue-se da simples fis-

Page 33: José Souto Maior Borges - Introdução Ao Direito Financeiro

4 0 JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES1

:■ calidade porque não se limita a retirar do patrimônio dos par- jl / ticulares recursos pecuniários para a satisfação de necessi- A

dades públicas: é função tipicamente intervencionista e redistribuidora.

28 — A doutrina económico-impositiva tradicional da finança clássica sustenta que o ato financeiro é, predominan­temente, ato de financiamento da despesa pública; limita o exercício da atividade financeira à utilização dos meios idô­neos para satisfazer as necessidades públicas.

Representativa dessa corrente é a opinião de WELLS» para quem um tributo que não tenha objetivo exclusivamente fiscal não constitui um imposvo, mas um exercício inconstitu­cional do poder de tributar.72

Segundo GIANNINI, a atividade financeira distingue- se de qualquer outra porque não é um fim em si mesma, isto é, não visa, diretamente, a satisfação de uma necessidade coletiva, mas exerce uma função instrumental de fundamental importância, sendo o seu regular funcionamento condição indispensável para a explicação das outras atividades.73

Esta orientação doutrinária, produto de uma “aversão sentimental-política contra as intervenções do Efctado”, criti­cada, entre outros, por DIÑO JARACH (El Hecho Imponible) e EMANUELE MORSELLI (Curso de Ciência das Finanças Públicas), consiste, substancialmente, na negação das fun-

SEÇAOI

As finanças fiscais

72' Apud BILAC PINTO, Contribuição de Melhoria, Revista Forense, Rio, s/d, n. 197, pág. 1.73. Ob. cit., n. 1, pág. 1.

Page 34: José Souto Maior Borges - Introdução Ao Direito Financeiro

INTRODUÇÃO AO DIREITO FINANCEIRO 41

çoes político-econômicas ou político-sociais dos impostos, sendo compartilhada por eminentes financistas como EMILIO SAX (Grundlegung der Theoretischen Staatswirtschaft, Viena, 1887 — traduzido para o italiano na Biblioteca degli Economist, série V, vol. XV), que opõe a Wagner a recusa da finalidade político-social do tributo, ALBERTO SCHAFFLE (Die Steum, 2 tomos, 1895-97), e INGROSSO, para quem a atividade financeira é meramente instrumental com relàção aos fins do Estado.74

29 — A doutrina puramente neutral da finança pública decorre, em teoria política, de uma concepção não intervencionista das funções do Estado. A despesa pública, deste modo, é limitada pela esfera de atuação restrita do Estado adepto do liberalismo econômico e político (laisser faire) que não se aventura a explorar empresas públicas. Na economia capitalista, a empresa, que é o seu organismo cen­tral, está entregue, preponderantemente, à iniciativa particu­lar, com excepcionais excursões do Estado nesse campo.75

74. “Or bene, se è vero che 1’attività finanziaria è attività amministrativa non è meno vero che la prima ha rispetto alie altre specie e forme di attività amministrativa un particolare carattere che ne la distingua. Queste ultime si propongono, ci ascuna per sè, di soddisfare pubblici bisogni o, in altri termini, di prestare servizi che attuano direitamente i fini dello Stato, hanno insomma una funzione che di remo, per intendersi, di scopo. L’attività finanziaria ha invece, como si è detto, funzione esclusi vãmente strumentale, in quanto presta agli organi delia P. A ., che hano attività di scopo, i mezzi economici per esercitarla e in questa funzione esaurisce tutta la sua portata”. (INGROSSO, ob, cit., n. 8, pág. 11.) !75. “A empresa é a unidade econômica de produção que assegura a ligação entre os mercados de bens e de serviços (procura de consumo final) e os mercados de fatores de produção (trabalho e capital). Além da combinação de quantidades e fatores, o empresário promove as combinações de preço e é guiado por uma com­paração de preços (preço de custo e preço de venda)” (RAYMOND BARRE, ob. cit., vol. I, pág. 192). FRANÇOIS PERROUX, por sua vez, fornece a seguinte definição da empresa capitalista: “A empresa é uma forma de produção pela qual, no seio do mesmo patrimônio, se combinam os preços dos diversos'fatores de

Page 35: José Souto Maior Borges - Introdução Ao Direito Financeiro

4 2 JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES

Segue-se, em conseqüência dessa limitação das fun­ções do Estado, que os meios ou instrumentos empregados para o exercício das suas atividades se restringiriam à simples obtenção de recursos destinados a satisfazer necessidades fundamentais, ou, como sintetiza o prof. BARRE com admi­rável concisão: “Com o individualismo, desenvolve-se o libe­ralismo: este tende a reduzir ao mínimo a interferência do Estado nas atividades econômicas individuais. Não se nega o Estado, porque o liberalismo não significa anarquismo; ape­nas são afastadas as suas intromissões inúteis nos domínios dos indivíduos”76 Fixados certos limites para a atividade estatal, em conseqüência das limitações das suas funções, a finança não deverá ser utilizada para fins extrafiscais: “Cuando se comparte de acuerdo con las teorias económicas clásicas y neoclásicas el critério de que, en el caso de absoluta liberdad de conjipetencia, ilLe monde va de lui- même”\ en otras palabras, que por el mismo automatismo del mercado, libre de las trabas de intervenciones fiscales, se llega a una distribución a la vez económicamentp “acertada” y socialmente “justa” de los recursos, entonces resulta obvio como ideal de la política financiera la “neutralidad”77

Reduzindo-se, portanto, os fins do Estado à manuten­ção e proteção de sua soberania e à conservação de seu orde­namento jurídico, as suas atividades financeiras devem ser limitadas por fins exclusivamente fiscais.

produção fornecidos por agentes distintos do proprietário da empresa, com o fim de vender no mercado um bem ou serviço e obter uma renda monetária resultante da diferença entre as duas séries de preços” (Cours d'Economie Poliiique, Apud BARRE, ob. cit., vol. 11, pág. 71).76. Ob. cit., vol. I, pág. 140.77. FR1TZ NEUMARK, Princípios y clases de política fiscal y financiera, in Tratado de Finanzas cit., de GERLOFF-NEUMARK, vol. 1, pág. 342).

Page 36: José Souto Maior Borges - Introdução Ao Direito Financeiro

INTRODUÇÃO AO DIREITO FINANCEIRO 43

30 “— Também para FONROUGE78 a querela entre neutralismo (fiscalismo) e intervencionismo (extrafiscalismo) das finanças públicas tem sua origem na missão que se atribui ao Estado: “Se éste debe ser un mero espectador de los problemas que se plantean en materia económica y social, la actividad financiera necesariamente adoptará caracter pasivo y estático', por el contrario, si se establece que debe actuai* positivamente en ellos con el fin predeterminado de encauzarlos en determinado sentido, entonces aquelle actividad adoptará una modalidad activa y dinámica”.

A esta lição, correta, há que opor apenas um reparo: a expressão atividade estática envolve uma contradictio in adjeto de que não sé apercebeu o ilustre jurista. O adjetivo estático refere-se ao repouso, ao equilibrio, por conseqüência considera as coisas num estado determinado sem nelas supor mudanças.79 Abstenção do intervencionismo, pois, não signi­fica passividade ou inércia, mas, apenas, limitação nas atri­buições estatais.

31 — Os adeptos do individualismo afirmam, contra as doutrinas estatizantes, que as atividades do Estado devem se limitar às atribuições fundamentais de segurança externa, proteção interna e administração da justiça. A partir do século XIX — observa FONROUGE,80 sofreram variações os con­ceitos sobre a missão que cumpre ao Estado, esboçando-se primeiro e afirmando depois, cada vez com maior intensi­dade, uma política , intervencionista nas atividades econô­micas e sociais cuja evolução precisou MARCHAL em três

78. Ob. e vol. cits., n. 8, pág. 16.79. ANDRÉ LALANDE, Vocabulaire Technique et Critique de la Philosophie, 6“ éd., Presses Universitaires de France, Paris, 1951, verbete Statique, págs. 1.026 e 1.027.80. Ob. e vol. cits., n. 7, pág. 15; n. 8, págs. 18 e 19.

Page 37: José Souto Maior Borges - Introdução Ao Direito Financeiro

4 4 JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES

sistemas ou etapas: o Estado-gendarme (economia liberal), o Estado-providencia (liberalismo social com economia inter­vencionista) e o Estado-fáustico (dirigismo na economia).

32 — A concepção de uma limitação geral das fun­ções do Estado, como ensina MORSELLI, com aguda pene­tração critica, pode, também, “justificar um pretenso caráter de imposto neutrú, segundo a concepção econômica da rela­ção indivíduo-Estado, com expressão, porém, de um do ut des ou de um fast ut facías que nega a função redistributiva do imposto simplesmente fiscal. Desde então, fala-se, hoje em dia, do imposto neutro no modo característico com que se diz finança neutra quando ela se contrapõe à extrafiscal”81

33 — Examinando, todavia, as conseqüências da extensão das atribuições do Estado no setor financeiro da Economia, o prof. ALAIN BARRERE, da Faculdade de Direito e Ciências Econômicas de Paris, assinala: “L’impôt n’est plus considère sous un seul aspect, celui l’instrument de prélèvement des richesses mais aussi avec son caractère de procédé de financement d’une activité productrice. L’imprunt n’este plus un palliatif destiné a combler un déficit; il devient le moyen de mobiliser une épargne pour l’engager dans la production. Les recettes publiques deviennent ainsi un élement actif’.82

A intervenção crescente do Estado na vida económica e social é, portanto, fenômeno cuja intensificação repercute sobre a concepção do papel a ser exercido pela finança pública na sociedade.

81. Ob. cit., n. 5, pâg. 19, nota 13.82. Politique Financière, Librairie Dalloz, Paris, 1958, pâg. 440.

Page 38: José Souto Maior Borges - Introdução Ao Direito Financeiro

INTRODUÇÃO AO DIREITO FINANCEIRO 45

34 — A neutralidade financeira, para alguns autores, não passa de uma utopia: “As finanças neutras” ou que pre­tendem deixar a estrutura social como a encontraram são, na realidade, também políticas. Defendem uma política de cará­ter conservador, no pressuposto de que o existente é mais justo ou adequado à coletividade em cujo meio se pro­cessa”.83

Em verdade, como salienta com acerto ALIOMAR BALEEIRO, a chamada finança neutra obedece a uma dire­triz conservadora, além de abrir largas concessões ao inter­vencionismo, sobretudo em matéria de protecionismo alfan­degário.

Sob o ponto de vista econômico, outra não é a lição do prof. BARRE: “Mèsmo quando se constata essa ampliação moderna no papel do Estado, não seria de indagar se a sua função econômica não se manifesta sempre na vida econô­mica e se o liberalismo puro não passa de uma simples visão do espírito ou deformação interessada da História?

“Em todos os tempos o Estado arrecadou impostos, isto é, modificou os circuitos do fluxo de moeda e do fluxo de bens e serviços. Em todos os tempos estabeleceu regimes alfandegários e legislação protetora do trabalho. Em todos os tempos exerceu uma arbitragem, já que ele não pode, por definição e vocação, ignorar as regras do interesse geral e do bem comum.

“Ainda quando pretende desinteressar-se da vida eco­nômica, o Estado está intervindo, pois dá assim liberdade de ação (tal como acontece relativamente ao pecado, há inter­venção por ação e por omissão). Além disso, não representa o Estado, freqüentemente, grupos sociais ou políticos a exerce­

83. BALEEIRO, Uma Introdução à Ciência das Finanças cit., vol. I, n. 176, pág. 255; ibidem, n. 27, pág. 44.

Page 39: José Souto Maior Borges - Introdução Ao Direito Financeiro

4 6 JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES

rem momentaneamente o poder? A democracia liberal do século XIX tomou-se — segundo observação de E. CARR -7— uma “democracia de proprietários” que compreende a igual­dade “como supressão de toda desigualdade, exceto a origi­nada da distribuição desigual da riqueza” (Les Condictions de la Paix, Genebra, 1944, pág. 19). O liberalismo transformou- se, então, em máscara por detrás da qual os interesses econô­micos dominantes tiram proveito do poder político ’̂.84

As Finanças Públicas Modernas, em conseqüência, são estudadas sob prismas discordantes das concepções das Finanças Clássicas,

Entretanto, deve-se acentuar que, embora o imposto puramente neutral seja uma utopia, como pretende o prof. ANGELOPOULOS, de vez que a tributação produz sempre efeitos econômicos, é evidente que, se o critério da neutrali­dade informa um sistema fiscal, a influência dos tributos sobre a realidade econômica preexistente se reduzirá ao mínimo e, por outro lado, os recursos obtidos com a tributa­ção destinar-se-ão exclusivamente a nutrir o orçamento financeiro do Estado, vale dizer, a sustentar os serviços públicos indispensáveis à vida coletiva.85

SEÇÃO II

As finanças extrafiscais

35 — A moderna teoria da extrafiscalidade, entre­tanto, põe em relevo a produção dos efeitos extrafiscais da atividade financeira, isto é, efeitos decorrentes da intervenção

84. Ob. cit., vol. 1, pág. 142.85. Cf. SAINZ DE BUJANDA, ob. cit., vol. I, pág. 94.

Page 40: José Souto Maior Borges - Introdução Ao Direito Financeiro

INTRODUÇÃO AO DIREITO FINANCEIRO 4 7

do Estado, pelas finanças públicas, na vida econômica e social, além da simples obtenção de recursos para a execução dos serviços administrativos e manutenção das funções governamentais: “Acredita-se encerrado o tempo das finanças “neutras”, às quais sucedem as finanças “ativas”, como ala­vancas de comando da conjuntura econômica”.86

A doutrina da extrafiscalidade — ao contrário da con­cepção da finança “neutra” — não considera a atividade financeira um simples instrumento ou meio de obtenção de receita, utilizável para o custeio da despesa pública. Através dela, o Estado provoca modificações deliberadas nas estrutu­ras sociais. É, portanto, um fator importantíssimo na dinâ­mica socioestrutural,

Modernamente, nos sistemas de economia planifi­cada, o Estado, como sujeito central da atividade econômica, assume, pelo intervencionismo financeiro, a liderança no pro­cesso de redistribuição da renda-nacional. É este um dos aspectos mais sugestivos do intervencionismo estatal na eco­nomia. Chega-se a falar de uma “agressividade fiscal” ou “fiscalismo hiperprogressivo” do “Estado regulador e tribu- tador”.

A intensificação dos aspectos econômico-sociais da atividade financeira acentuou a oposição entre o neutralismo e o intervencionismo das finanças públicas. Noutros termos, essa oposição se reduz à discussão entre os que entendem, no âmbito doutrinário, que elas se devem propor exclusivamente um fim fiscal de obtenção de recursos ou se, além disso, devem perseguir f malidad.es extrafiscais, vale dizer, de natu­reza econômica e ¿ocial, como acentua FONROUGE87 que,

86. ALIOMAR BALEEIRO, Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar cit., n. 104, pág. 409.87. Ob. cit., vol. I, n. 8, pág. 16.

e2i

Page 41: José Souto Maior Borges - Introdução Ao Direito Financeiro

4 8 JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES

com razão, coloca o problema das funções fiscais ou extrafis- cais na ordem dos fins visados pela atividade financeira.

Entre nós, já VEIGA FILHO88 ensinava que a tributa­ção, até certo ponto, promove a equitativa distribuição da riqueza.

A utilização das finanças públicas para a consecução de fins sociopolíticos decorre da constatação das reações recíprocas entre os fenômenos econômicos e financeiros. “Os dois fenômenos — o econômico e o financeiro — não ocor­rem paralelamente, mas, pelo contrário, não raro se cruzam ou se superpõem, surgindo daí recíprocas relações. Tanto as finanças públicas sofrem as conseqüências da conjuntura econômica quanto podem modificar profundamente a face desta”.89

O emprego da tributação como instrumento de regula­ção pública (fim extrafiscal) é, ao lado das funções puramente fiscais da atividade financeira, largamente utilizado: “Ao invés das “finanças neutras”, da tradição, com o seu código de omissão e parcimônia, tão do gosto da empresa privada, entendem hoje alguns que maiores benefícios a coletividade colherá de “finanças funcionais”, isto é, a atividade financeira orientada no sentido de influir sobre a conjuntura econô­mica”.90

BALEEIRO advoga o emprego das finanças para fins extrafiscais: “Pelo volume enorme das receitas dos impostos

88. Manual de Ciência das Finanças, 4* ed., Gráf. Monteiro Lobato & Cia., São Paulo, 1923, § 7o, pág. 7.89. ALIOMAR BALEEIRO, Unta Introdução à Ciência das Finanças cit., vol. I, n. 9, pág. 20.90. BALEEIRO, ob. e vol. cits., n. 32, págs. 50 e 51.

Page 42: José Souto Maior Borges - Introdução Ao Direito Financeiro

INTRODUÇÃO AO DIREITO FINANCEIRO 49

nos orçamentos contemporâneos são eles, por excelência, o instrumento fiscal para comando da conjuntura”.91

36 -— Adepto das finanças funcionais de fins extra- fiscais mostra-se, igualmente, MANUEL ANDREOZZI, para quem ao conceito clássico de que o tributo tem como fim essencial o custeio de gastos públicos se sucedeu a constata­ção, sobretudo em conseqüência da última guerra, de que o tributo não tem apenas um fim exclusivamente fiscal, ou seja, de acumulação de dinheiro para custear gastos públicos, mas objetiva alcançar outros fins, podendo afirmar-se que se pro­duziu uma substituição do princípio clássico por um conceito do imposto como função.92

37 — para GRIZIOTTI, a finança é instrumento de obtenção direta (finança extrafiscal) ou indireta (finança fis­cal) dos fins do Estado: “Si distinguen las finanzas fiscales y las extrafiscales.Xa primeras persiguen la satisfacción de los fines públicos indirectamente porque consisten en la actividad de procurarse los recursos con los cuales se efetuan los gastos que cumplen los fines públicos.

“Las segundas persiguen la satisfacción de los fines públicos directamente, ya que consisten: a) en la orden de pagar tributos con la finalidad de tomar menos conveniente o prácticamente imposible la actividad alcanzada, o en la exención de tributos, para que sea más conveniente la actividad desgrávadá, de modo que la conducta económica y social de los particulares se modifique en un sentido considerado más conforme al interés colectivo; o bien: b) en

91. BALEEIRO, ob. e vol. cits., n. 263, pág. 402; consultar também a 3* ed., vol. único), sob o título Uma Introdução à Ciência das Finanças e à Política Fiscal, Forense, Rio, 1964).92. Cf. Derecho Tributário Argentino cit., vol. I, pág. 12, nota 4.

Page 43: José Souto Maior Borges - Introdução Ao Direito Financeiro

5 0 JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES

la percepción de tributos, a fin de debilitar la posición patrimonial y redituaría de los sujetos alcanzados y, por lo tanto, modificar la estructura y las condiciones políticas y sociales”.93

38 — WILHELM GERLOFF {Die Öffentlich Finanzwirtschaff), Band I (Allgemeiner Teil), 2a ed., revista, 1958,94 toma posiçãó ao lado da “finança funcional”, em rela­ção à finança clássica “neutra”, listinguindo um “imposto fiscal” ou “financeiro”, ou seja, aquele que consiste em pres­tações exigidas coativamente pelas corporações públicas com o objetivo de custear as necessidades financeiras de uma eco­nomia sem retribuição específica (Finanzsteur) de um imposto “regulador” ou de “ordenamento”, ou seja, aquele consistente em prestações em dinheiro com as quais as corpo­rações públicas gravam as outras economias, não (ou não principalmente) para obter ingressos, mas para determinar uma conduta, um fato ou omissão (Ordnungsteur).95

93. Princípios de Ciência de las Finanzas cit., págs. 4 e 5.94. Apud MORSELLI, ob. cit., n. 20, nota 14.95. Alguns autores utilizam o vocábulo parafiscalidade para caracterizar o exer­cício dessâs funções reguladoras, desprovidas do caráter típico da doutrina tradi­cional da tributação.Tal orientação não nos parece aceitável, porque a denominação parafiscalidade deve ser reservada para a atividade de obtenção e aplicação de recursos por órgãos paraestatais: “O vocábulo parafiscalidade toma, nesses casos, sua signifi­cação plena: uma fiscalidade “marginar’ ou “lateral”, em relação à fiscalidade ordinária ’ (BILAC PINTO).A denominação extrafiscalidade vem tendo aceitação generalizada para caracteri­zar a utilização da atividade financeira do Estado com finalidades reguladoras da vida econômica e social.JEAN-GUY MÉRIGOT (Elementos de unia teoria da parafiscalidade, in Revista de Direito Administrativo, vol. 33, pág. 56) adverte que o termo parafiscalidade é ambíguo e a própria etimologia do vocábulo imprecisa, provocando confusões entre a parafiscalidade e noções conexas. A parafiscalidade é, por vezes, confun­dida com aquilo que se poderia denominar extrafiscalidade.

Page 44: José Souto Maior Borges - Introdução Ao Direito Financeiro

INTRODUÇÃO AO DIREITO FINANCEIRO 51

39 — A atividade financeira apresenta-se a MORSELLI “como tipicamente redistribuidora, e a redistri­buição operada pelas finanças, por um lado poderá ser cha­mada objetiva, e manifesta-se através dos efeitos exercidos pelas finanças, no tçmpo e no espaço, sobre o consumo, o câmbio, a poupança e a produção particular”, enquanto que o caráter financeiro da redistribuição subjetiva “se investiga começando por postular as diferentes posições individuais de riqueza que resultarão dos levantamentos feitos pelo Estado por meio do imposto”.96

40 — O intervencionismo estatal ampliou considera­velmente o campo de atuação do Estado, atingindo setores tradicionalmente defesos ao seu acesso: “Al exigírsele al Estado la responsabilidad por un extenso ordenamiento de la vida social y la dirección de la economía nacional, en especial una regularización de la conyuntura económica con el fin de asegurar el pleno empleo, la economía pública financiera se ha visto frente a tareas que rebasan muchísimo las anteriores ideas y experiencias de cobertura de las necesidades económicas y financieras”.97

A atividade financeira do Estado, para os adeptos da extrafiscalidade, é um método pelo qual se exerce a influên­cia da ação estatal sobre a economia (regulatory effects); visa atingir escopos extrafiscais de intervencionismo estatal sobre as estruturas sociais.

RUBENS GOMES DE SOUSA (Compêndio de Legislação Tributária cit,, § 49, pág. 131), entretanto, utilizou o termo parafiscal idade para designar também o emprego da finança pública com objetivos não fiscais.96. Ob. cit., n. 2, pág. 13 e segs.97. WILHELM GERLOFF, Doctrina de la economia tributaria, in Tratado de Finanzas cit., tomo II, pág. 203.

Page 45: José Souto Maior Borges - Introdução Ao Direito Financeiro

5 2 JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES

As finanças públicas desenvolvem-se não apenas para suprir necessidades estatais, mas também pára a consecução de objetivos de dirigismo e ordenação econômica.

41 — MAURICE DUVERGER, depois de acentuar que as instituições financeiras do Estado se encontram em plena evolução, observa que hoje as concepções modernas se juntam à concepção tradicional clássica das finanças públicas, que consideram ser o único fim destas assegurar cobertura para as despesas públicas. Por meio das despesas e das recei­tas públicas o Estado pode exercer uma ação sobre a econo­mia. Por exemplo: isentando de impostos tal atividade ele a favorecerá. Pode, igualmente, conceder subvenções a tal ou qual empresa para favorecê-la; meio de intervenção por uma despesa pública. Dum modo mais geral chega-se a considerar que o Esfcado poderá assegurar uma redistribuição da renda nacional por meio das finanças públicas.

Através da arrecadação, do empréstimo e do imposto ele absorve, com efeito, uma grande parte da renda nacional. Mas, redistribui as somas assim obtidas ao público. Apenas, os que recebem não são exatamente os que pagam. Desta ma­neira, o Estado modifica a repartição da renda e dos bens- Concebe-se, assim, uma intervenção muito desenvolvida do Estado na vida econômica, política e social, por meio das finanças públicas.98

42 — ABBA P. LERNER preconiza o julgamento das medidas fiscais somente pelos efeitos e formas como funcio­nam na sociedade, disciplina que denominou finança funcio­nal. Para ele, a finalidade dos tributos nunca é arrecadar dinheiro, porém deixar menos dinheiro nas mãos dos contri-

98. Droit Public , Presses Universitaires de France, Pans, 1957, pâgs. 331 e 332.

Page 46: José Souto Maior Borges - Introdução Ao Direito Financeiro

INTRODUÇÃO AO DIREITO FINANCEIRO

buintes. Deve-se julgar as ações por seus efeitos e não por noções vagas a respeito de sua propriedade ou improprie­dade... Os efeitos de um tributo são duplos: aumentar o dinheiro nas mãos do governo e, ao diminuir o dinheiro nas mãos do contribuinte, este gasta menos. A tributação é importante não como meio de obter dinheiro, mas como um meio de limitar os gastos privados”.99

Para LERNER, que assegura ser a obrigação funda­mental de um governo manter a ocupação plena, o princípio de julgar as medidas fiscais pela forma como funcionam em relação à economia, podemos denominá-lo finança fun­cional.10°

A Finança Funcional é forma particular de finança extrafiscal, como Finança de Ordenamento (Ordnungsteur), de GERLOFF; a Rational Finance, de HANSEN; a Social Finance, de BEVERIDGE e a Political Finance, de R. V. KELLER, distintas, entre si, não obstante, quanto aos meios ou fins visados. (O incremento dos estudos sobre Política , Fiscal decorreu da publicação da General Theory o f Employment, Money and Interest, de KEYNES.)

43 — Também BLUMENSTEIN, na sua obra clás­sica,101 analisa as funções extrafiscais de repressão e prote­cionismo pelo ordenamento jurídico-financeiro: “Infine Pordinamento giuridico, con Pintroduzione di determinate imposte, può anche perseguire scopi stranei alia copertura del fabbisogno finanziario (c. d. effeto extrafiscale delP imposta). Esso può in particular modo cercare di reprimere o di frenare

99. Teoría Económica del Control, trad. de EDMOND FLORES, l* ed., Fondo de Cultura Económica, Méxicol 1951, págs. 340 e 341.100. La hacienda funcional y la deuda federal, in Lecturas sobre Política Fiscal, trad. de MIGUEL PAREDES, Revista de Occidente, Madri, s/d, pág. 592.101. Sistema di Diritto delle Imposte cit., § 1", n. IV, pág. 8.

Page 47: José Souto Maior Borges - Introdução Ao Direito Financeiro

5 4 JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES

taluni fenomeni non desiderati delia vita sociale ed econo- mica, attraverso rimposizione del fatto in questione (c. d. imposte proibitive sulle bevande alcooliche, sulíe affissione pubblicitarie pertubatrice e simile). Inoltre, mediante speciale imposte sulle industrie, commerci, artigianato, professione cerca di combattere una insana concorrenza al commercio al dettaglio ed alia media industria da parte delie grandi imprese”.

O insigne mestre suíço, ao concluir suas observações sobre o assunto mostra-se adepto da distinção entre o imposto financeiro (.Finanzsteur) e imposto de ordenamento (Ordenungsteur): “II piü importante effeto extrafiscale Io hanno i considetti dazi protettive che devono proteggere 1’economia interna contro la concorrenza straniera, attraverso l’imposizione fiscale delle merci introdotte. La moderna scienza delle finanze vorrebbe poi distinguere le imposte finanziarie ed imposte di ordine (“Ordnungsteuf’), com riguardo agli effetti extrafiscali dei singoli “tipi”.102

44 — Opinião singular, no que se refere ao tema da extrafiscalidade, é a do prof. GUSTAVO DEL VECCHIO, para quem “não existe uma finança fiscal e uma finança extrafiscal; existe, muito bem ou mal determinada, uma finança fiscal e depois existem possibilidades infinitas de modificar as finanças por exigências, ideais, motivos, dos mais variados tipos, extrafiscais”.103

Entretanto, como acentua MORSELLI, ainda ao emi­nente estudioso permaneceu necessária ou útil essa forma de ‘‘erro lógico”.

102. Ibidem , págs. 8 e 9.103. Introduzione alia Finanza, págs. 180 e 181, apud MORSELLI, ob. cit., n. 5, pág. 22, nota 18, in fine.

Page 48: José Souto Maior Borges - Introdução Ao Direito Financeiro

INTRODUÇÃO AO DIREITO FINANCEIRO 55

45 — DINO JARACH, por seu turno, considerou que a redistribuição forçada de valores, operada pela tributação extrafiscal, era ilegítima: “Jurista fiscal já em plena ascensão na Itália, Jarach radicou-se na América Latina em 1941 e nesse ano pronunciou uma série de conferências na Faculdade de Direito de Montevidéu. Fixando os limites do poder tri­butário do Estado, afirmou Jarach, então, que o emprego de instrumentos tributários com finalidades extrafiscais é ilegí­timo porque equivale a permitir que o Estado faça indireta­mente aquilo que nãò poderia fazer diretamente. Por exem­plo: se o Estado não pode, legalmente, proibir o exercício de determinada indústria, não há razão e é perigoso para a ordem jurídica, admitir que ele proíba virtualmente essa indústria de funcionar taxando-a em 99,5%. Se o Estado não pode, legal­mente, confiscar bens particulares, não deve poder confiscá- íos virtualmente, tributando-os em 99,5% do seu valor; e assim por diante”.104

O ponto de vista de JARACH — observa RUBENS GOMES DE SOUSÁ— justifica-se, ao tempo em que foi exposto, como uma reação natural num jurista, contra a exa­cerbação dos poderes dos Estados totalitários em prejuízo das liberdades e garantias individuais. Mas, essa justificativa situa-se no campo.político e não no jurídico.105

4 6 — Deve ser referida também neste trabalho a opi­nião de KARL MARX, no primeiro tomo de O Capital, para quem os impostos têm por objetivo assegurar aos bourgeois os meios de se manterem como classe dominante.

De qualquer forma, o Manifesto Comunista atribui ao imposto a missão de ser o meio de reordenação do direito de

104. Apud RUBENS GOMES DE SOUSA, As modernas tendências do direito tributário, in Revista de Direito Administrativo, vol. 74, pág. 6.105. Revista e vols. cits., ibidetn.

Page 49: José Souto Maior Borges - Introdução Ao Direito Financeiro

5 6 JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES

propriedade e da situação burguesa de produção, quer dizer, da transferência das organizações privadas de produção para a propriedade do Estado e para a nivelação dos rendi­mentos.106*

Esse fato é, aliás, recordado por ALIOMAR BALEEIRO: “A idéia de reforma social por meio de impostos, em lugar da técnica revolucionária, aflorou à pena de vários escritores e líderes. O próprio K. MARX, no Manifesto Comunista (1848), incita a massa a pleitear esse instrumento de oportunismo na ação política, que deveria ser invocado em vários congressos socialistas. Os fabianos o recomendaram e vários partidos socialistas, como o Partido Trabalhista inglês, no programa de 1918, atribuído a SIDNEY WEBB, defendem proposições expressas nesse sentido. Era a arma da reforma que evitaria as dores da revolução”.107

47 — Além dos tributos, outros recursos financeiros como os empréstimos públicos, podem ser utilizados para fins extrafiscais: .“Os keynesianos, propugnaram a utilização dos empréstimos como instrumento de alta eficácia na luta contra a depressão”.108 BALEEIRO acentua, ainda, com a habitual clareza, que a facilidade de contrair dívidas, como meio para a realização dos fins estatais, integra-se no pro­cesso econômico de repartição do custo de funcionamento do governo e, ao mesmo tempo, o de redistribuição da renda nacional, um e outro peculiares a toda atividade financeira.109 O crédito público, do ponto de vista econômico, exerce sobre

106. GERLOFF, Doctrina de la economia tributaria, in Tratado de Finanzas cit., vol. II, pág. 214.107. Uma Introdução à Ciência das Finanças cit., vol. I, n. 180, págs. 260 e 261.108. Idem , vol. II, n. 478, pág. 800.109. Ibidem , n. 479, pág. 802.

Page 50: José Souto Maior Borges - Introdução Ao Direito Financeiro

INTRODUÇÃO AO DIREITO FINANCEIRO 57

a coletividade um papel de instrumento de repartição e da redistribuição da riqueza e da renda nacionais, análogo ao dos impostos.110

48 — Dentre os objetivos que podem ser colimados pela extrafiscalidade, podem ser; citados alguns, a título meramente exemplificativo:

a) combate às depressões, à inflação e ao desemprego;b) proteção à produção nacional (v. g., estímulo

industrial por meio de isenções a indústrias novas, direitos alfandegários protecionistas, etc.);

c) absorção da poupança e restabelecimento da pro­pensão para o consumo;

d) tributação fragmentadora dos latifúndios improdu­tivos, pelo imposto territorial fortemente progressivo, e impo­sição incidente sobre a exploração de jogos de azar;

e) incentivos à urbanização, pela tributação de terre­nos baldios e áreas inaproveitadas;

f) tributos gerais fortemente progressivos sobre as grandes fortunas, réditos e heranças (política de nivelamento e redistribuição);

g) impostos suntuários de repressão ao luxo;h) combate ao celibato pela imposição, estabeleci­

mento de isenções em favor de famílias prolíficas e agrava­mento da tributação sobre casais sem filhos.111

49 — O estudo da destinação fiscal ou extrafiscál da atividade financeira suscita discussões sobre o departamento científico em que deve ser incluído. Transcende, para alguns,

110. Ibidem , n. 482, pág. 812.111. Sobre o assunto e para' outros exemplos, consultar BALEEIRO (ob. cit., vol. I, n. 179, pág. 257; idem, Cinco Aulas de Finanças e Política Fiscal, Livraria Progresso Editora/Salvador, 1959, n. 22, pág. 50).

Page 51: José Souto Maior Borges - Introdução Ao Direito Financeiro

JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES

o campo específico da ciência financeira, como assunto de natureza econômica, política ou filosófica. THOMAS COOLEY (The Law o f Taxation), baseado no critério teleo- lógico como fundamento do tributo, considera a atividade financeira extrafiscal do Estado, assim, entendida a de finali­dade reguladora, como manifestação do poder de polícia (pólice power): COOLEY dá como critério para identificar o fundamento de um tributo o teleológico. Se se destina, pre­dominantemente, a atender às necessidades do erário público, funda-se no poder de tributação.

“Se, ao contrário, tem principalmente um fim político ou social, funda-se no poder de polícia”.112

A imprecisa denominação “poder de polícia” ̂ — como assinala BILAC PINTO — raramente empregada no direito brasileiro, é, nos Estados Unidos, de uso constante e, até mesmo, indispensável no vocabulário de direito constitucio­nal.113

ALIOMAR BALEEIRO refere-se à distinção dos escritores e tribunais americanos entre impostos decretados com fundamento no poder de tributar (power to tax), que atendem à necessidade fiscal de prover o Tesouro de fundos, obedecendo, entre outros princípios, ao adequado processo da lei (due process o f law), e impostos criados sob a égide do poder de polícia (pólice power), meio de regulação e inter­venção na vida do país e não de obtenção de dinheiro, caso este em que a Corte Suprema tolera a atenuação ou mitigação do due process of law: “Os constitución alistas e financistas norte-americanos, seguindo as pegadas dos tribunais do seu país, construíram uma distinção entre os tributos cobrados com fundamento no “poder de tributar” e os exigidos sob a

112. Cf. BILAC PINTO, Contribuição de M elhoria , Revista Forense, Rio, s/d, n. 197, pág. 206.113. Ibidem, n. 195, pág. 205.

Page 52: José Souto Maior Borges - Introdução Ao Direito Financeiro

INTRODpÇÃO AO DIREITO FINANCEIRO 59

égide do “poder de polícia”, um e outros inerentes e insepa­ráveis do Estado.

“Praticamente, essa distinção corresponde a de “impostos puramente fiscais” e “impostos com funções extra- físcais”, ou regulatórias (omissis).

“Essa doutrina, em face da similitude de instituições, encontra campo de adoção em países como o Brasil ou a Argentina”.114

A doutrina clássica norte-americana, portanto, vincula a tributação do tipo exclusivamente fiscal ao poder tributário (taxing power) e a tributação de caráter extrafiscal ou regu- latório ao poder de polícia (pólice power).

Esta distinção é, todavia, criticada por FONROUGE: “Empero, no consideramos acertada esa distinción: desde el punto de vista de la ciencia de las finanzas, por la noble función que cumplen ciertos tributos; jurídicamente, porque el poder tributario, ya radique en la soberania o en la potestad de imperio, no reconoce limitaciones, excepto ías que puedan resultar de normas constitucionales, y por lo tanto, es la base de aplicación de cualquier clase de tributos” .l 15

50 — Segundo GRIZIOTTI, notam-se ñas entradas fiscais, além da função financeira de procura de meios para cobrir despesas públicas, funções acessórias de caráter social, que se manifestam na própria natureza do tributo (e. g. imposto sobre o luxo ou suntuário), na sua estrutura (alíquota progressiva) ou destinação da respectiva receita (impostos de destinação específica).

114. Uma Introdução à Ciência das Finanças cit., vol. I, n. 177, pág. 255; idem , O D ireito Tributário da C onstitu ição, Edições Financeiras S/A , Rio, 1958, pág. 165.115. Ob. cit., vol. I, n. 149, pág. 268.

Page 53: José Souto Maior Borges - Introdução Ao Direito Financeiro

6 0 JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES

Quando as funções sociais prevalecem sobre as finan­ceiras (meramente fiscais) estamos diante da finança extrafis- cal.116

As entradas fiscais constituem um instrumento indi­reto ou mediato para a realização dos fins do Estado; as entradas extrafiscais são, ao contrário, um instrumento direto ou imediato para a realização dos fins públicos.

GRIZIOTTI inclui entre os escopos da finança extra- fiscal os de proteção (econômica, demográfica e social), da distribuição da riqueza, da prevenção, da repressão e da san­ção.

Esses objetivos extrafiscais, para ele, se manifestam de diversas maneiras, tais como:

a) a proteção econômica, pela imposição de tarifas aduaneiras de escala móvel, inversamente proporcionais aos preços externos, isto é, tarifas que aumentam com a dimi­nuição dos preços externos e se reduzem com seu aumento. Quando a tarifa é tão elevada que toma o imposto proibitivo, este cumpre uma finalidade exclusivamente protetora. Quando o imposto, ao contrário, tendo alíquotas menos ele­vadas, permite a introdução de mercadorias estrangeiras, tem caráter extrafiscal e fiscal ao mesmo tempo. A proteção eco­nômica exerce-se amplamente através das isenções e redu­ções de impostos.

b) a proteção demográfica, pela adoção de medidas fiscais favoráveis ao incremento populacional do Estado, p. ex., a isenção tributária para as famílias numerosas e agrava­mento dos tributos sobre o celibato.

c) a proteção social, pela criação de tributos destina­dos a cobrir os gastos da previdência social, seguro social, salvação, educação e tutela da juventude, etc.

116. Cf. Saggi sul Rinnovamento dello Studio delia Scienza delle Finanze e del Diritto Finanziario, Giuffrè, Milão, 1953, pág. 52.

Page 54: José Souto Maior Borges - Introdução Ao Direito Financeiro

INTRODUÇÃO AO DIREITO FINANCEIRO 61

d) a redistribuição, pela tributação da renda, do patrimônio e das sucessões (através do imposto logra-se a redistribuição da renda nacional).

e) a prevenção, evitando a prática de atos ilícitos ou criminosos e assegurando a observância da lei. Nesta hipó­tese, o poder de polícia exercita a sua atividade valendo-se dos subsídios do poder fiscal (e. g., licença para porte de armas, venda de bebidas alcoólicas, fabricação e comerciali­zação de explosivos, ou de armas e similares). O poder fiscal complementa o poder de polícia, visando fins extrafiscais.

f) a repressão e a sanção, pelo exercício da atividade financeira em caráter complementar ao exercício do poder judiciário penal, pela cominação de penalidades pecuniárias para a repressão de delitos e contravenções.117

51 — Aplicável às funções fiscais e extrafiscais dos tributos, GRIZIOTTI elaborou uma distinção fundamental entre as finanças racionais ou lícitas e as irracionais ou ilí­citas. Os tributos fiscais ou extrafiscais fundados numa causa justa constituem ingressos racionais, distintos dos tributos extorsivos ou arbitrários.

Discípulos do Chefe da Escola de Pavia retomaram a lição do mestre: “Considero que es fundamental la identificación de Griziotti entre lo racional y lo lícito, y viceversa, éntre lo irracional y lo ilícito en las finanzas públicas, asi como el reconocimiento de que los recursos son racionales cuando realizan una relación conmutativa directa o indirecta, o cuando representan el instrumento directo para alcanzar fines estatales de proteción, redistribucción, equilibrio económico-social, etc”.1,8

117. Cf. GRIZIOTTI, ibidem , pág. 371 e segs.118. DINO JARACH, La teoria Jinanciera de Benvenuto Griziotti, in Princípios de Ciência de las Finanzas cit., pág. XXXV, n. 8, nota 25.

n

Page 55: José Souto Maior Borges - Introdução Ao Direito Financeiro

JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES

Por outro lado, já se observou que o progresso assi­nala uma redução da área da irracionalidade, em benefício da racionalidade.119

A classificação de GRIZIOTTI distingue, portanto, duas categorias de ingressos: os que têm uma causa lícita (ra­cionais) e os de causa ilícita (irracionais), subdistinguindo para cada uma dessas categorias os dois grupos de tributos fiscais e extrafiscais. A causa justificadora do tributo fornece o fundamento ético-político da obrigação tributária,

A análise dos elementos determinantes da finança irracional de fins fiscais ou extrafiscais descobre as seguintes características: a) vício do poder fiscal; b) vício da capaci­dade contributiva e c) vício da causa (do nexo jurídico causal).120

Podem-se arrolar, como principais institutos das finanças irracionais: I - para as finanças fiscais irracionais, a extorsão (angheria), o resgate (taglia), a inflação e a falência fiscal; II - para as finanças extrafiscais irracionais, a avoca- çâo ou confisco dos lucros de guerra, os saques, as represá­lias, as indenizações de guerra, a anulação das dívidas interna e externa, provocada, sistematicamente, por meio da inflação e a bancarrota do Estado.121

119. RAFAEL BIELSA, Estudios de Derecho Público, II, Derecho Fiscal, Editorial Depalma, Buenos Aires, 1951, pág. 6.120. Saggi cits., pág. 384 e segs.121. Sobre a finança irracional, consultar os Saggi cits., pág. 70 e segs., até 73 e 390 e segs., até 395.