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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS JUAREZ ZACARIAS NETO O ARTISTA-DOCENTE: A LENTIDÃO COMO ESCOLHA PROCESSUAL EM DANÇA NATAL/RN 2016

JUAREZ ZACARIAS NETO O ARTISTA-DOCENTE: A LENTIDÃO … · Zacarias Neto, Juarez. O artista-docente: a lentidão como escolha processual em dança / Juarez Zacarias Neto. - 2016

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO

NORTE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES

CÊNICAS

JUAREZ ZACARIAS NETO

O ARTISTA-DOCENTE:

A LENTIDÃO COMO ESCOLHA

PROCESSUAL EM DANÇA

NATAL/RN

2016

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2016

JUAREZ ZACARIAS NETO

O ARTISTA-DOCENTE: A LENTIDÃO COMO ESCOLHA PROCESSUAL EM

DANÇA

Dissertação de mestrado para a obtenção do título de

mestre em Artes Cênicas pela Universidade Federal do

Rio Grande do Norte.

Orientadora: Patrícia Garcia Leal

Natal – RN

2016

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Departamento de Artes - DEART

Zacarias Neto, Juarez. O artista-docente: a lentidão como escolha processual em

dança / Juarez Zacarias Neto. - 2016. 122 f. : il.

Orientador: Profa. Dra. Patrícia Garcia Leal. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Rio

Grande do Norte, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Departamento de Artes, Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, 2016.

1. Dança – Dissertação. 2. Corpo – Dissertação. 3. Lentidão – Corpo na Dança – Dissertação. 4. Pausa na Dança – Dissertação. 5. Potência – Movimento (Dança) – Dissertação. 6. Artes Cênicas – Dissertação. I. Leal, Patrícia Garcia. II. Título. RN/UF/BS – DEART CDU: 793.3

(043.3)

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AGRADECIMENTO

Agradeço primeiramente a todos os meus professores, aos colegas de trabalho

(bailarinos), aos meus alunos e familiares, pois sem cada um de vocês esta dissertação

não seria possível.

Agradeço especialmente aos meus pais, que de forma direta e indireta me

mostraram através dos exemplos de vida como ser e como não ser um profissional em

que área do conhecimento eu escolhesse. Agradeço o apoio dado, e também das vezes

que desacreditaram na minha escolha na área da dança, mostrando-me que era preciso

força de vontade, determinação, amor, dedicação, abstinência e acima de tudo respeito

para com a escolha feita.

Agradeço especialmente aos meus professores, que tiveram e têm sua

importância descrita e entrelaçada nessa pesquisa. Aos meus alunos, que me mostram a

cada dia a beleza, o deleite e as provações de seguir a carreira de professor no Brasil.

Agradeço à Escola de Dança do Teatro Alberto Maranhão, por me receber e me

ensinar a arte e as técnicas em dança.

Agradeço à Companhia de Dança do Teatro Alberto Maranhão, por me

proporcionar construir minha carreira artística.

Agradeço especialmente à Wanie Rose por acreditar em mim, como bailarino,

professor e coreógrafo. Obrigado Wanie, por todas as oportunidades dadas!

Agradeço à Universidade Federal do Rio Grande do Norte, por proporcionar-me

através dos professores qualificados o conhecimento para tornar-me um artista-docente.

Agradeço especialmente à Professora Doutora Patrícia Garcia Leal, pelas

orientações, conversas, pesquisas, aulas, movimentos, reflexões, ensinamentos. Muito

obrigado Patrícia, por aceitar estar comigo nesta caminhada.

Agradeço especialmente a João Vítor, por estar do meu lado em meio às dúvidas

sobre a pesquisa, por me ajudar na entrega dos trabalhos quando estava em viagem, por

me escutar, por segurar a minha mão, por ser esse ser tão importante para minha vida.

Muito obrigado a todos!

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Resumo

A presente pesquisa tem como objetivo principal investigar a lentidão como

metodologia de conhecimento do corpo e como potência criativa para a dança.

Compreende a lentidão como potência qualitativa, proporcionando reflexões acerca do

corpo na dança. O processo de aceleração dos corpos na contemporaneidade abriu

espaços potentes de investigação nesta pesquisa, como: refletir acerca do processo de

desaceleração do corpo que dança, culminando em uma reflexão sobre a pausa na

dança; investigar como se dá através do sabor da lentidão o processo de entendimento

qualitativo do movimento dançado, no seu fazer artístico-criativo e pedagógico; propor

a dança como potência, proporcionando o entendimento da mesma como área de

conhecimento e de ampliação da consciência por meio das experiências vividas.

Os relatos da infância, do início da trajetória artística, da aplicação prática da pesquisa

realizada na Escola de Dança do Teatro Alberto Maranhão, do projeto cênico Amiúde

(2015) e do fazer artístico-docente proporcionaram uma reflexão acerca das

potencialidades da dança, propondo a lentidão como linguagem em dança que se

constrói aos poucos e profundamente, gerando um aumento na consciência de si e do

mundo.

A lentidão atua nesta pesquisa como objetivo de investigação principal e como

metodologia de uma linguagem em dança. O estudo da Eukinética labaniana, da “dança

pelos sentidos: composição coreográfica” e da “improvisação pelos sentidos” de Leal

(2012) nos fizeram perceber que as pesquisas acerca das qualidades expressivas do

movimento dançado e a investigação de propostas metodológicas em dança

contemporânea, baseadas nos sentidos, culminaram no entendimento do movimento, da

pausa e da dança como potências qualitativas que ampliam a consciência do corpo,

entendendo-o em sua totalidade.

PALAVRAS-CHAVES: Corpo. Dança. Lentidão. Pausa. Potência.

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Abstract

The present research aims firstly at investigating slowness as a means of understanding

the body as creative power for dance. It comprises slowness as qualitative power,

providing reflections on the dancing body. The process of body acceleration of

contemporaneity has opened powerful investigating fields in this research, such as the

reflection about the deceleration process of the dancing body, culminating in a

reflection on pauses in dance, the investigation of how the process of understanding the

qualitative aspect of the danced movement occurs within the flavor of slowness, in its

artistic-creative and pedagogical practice, the proposition of dance as a power,

providing its understanding as a knowledge field and of increased awareness by means

of lived experiences.

Memories from childhood, from the beginning of the artistic career, from the practical

use of the research carried out at the Theater Alberto Maranhão Dance School, from the

scenic design Amiúde (2015) and from the practice as an artist and teacher, all these

have made reflection possible on dance potential, proposing slowness as dance language

gradually and deeply built, causing wider self and world awareness.

Slowness in this research is the objective of the main investigation and the methodology

of a dance language. The study of Eukinétic of Laban, "Dance by the senses:

choreographic composition" and "improvisation by the senses" of Leal (2012) let us

realize that the studies on the expressive qualities of the danced movement and the

study of methodological proposals in contemporary dance, based on the senses, have

culminated in the understanding of movement, pause and dance as qualitative power

which amplifies body consciousness, understanding it entirely.

KEY WORDS: Body. Dance. Slowness. Pause. Power.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

PELO SABOR DA LENTIDÃO................................................................................11

CAPÍTULO I

VELOCIDADE OSCILANTE: EXPERIÊNCIA DE UMA DESACELERAÇÃO

SABOROSA.......................................................................................................................27

1 – Entre a infância e o ontem.........................................................................................39

CAPÍTULO II

3 EM 1 – 1 EM 3: A APLICAÇÃO METODOLÓGICA DA LENTIDÃO........................51

1 – Eukinética Labaniana: qualidades dinâmicas do movimento....................................52

1. 1 – Tempo e Fluência.....................................................................................55

1. 2 – Espaço e Cinesfera...................................................................................59

1. 3 – Peso e Gravidade.....................................................................................63

1. 4 – Tempo e Pausa.........................................................................................65

2 – Propostas metodológicas pelos sentidos: “dança pelos sentidos: criação

coreográfica" e “improvisação pelos sentidos”...............................................................68

3 – O sabor da lentidão: a pausa na dança.......................................................................73

CAPÍTULO III

A POTÊNCIA DA PAUSA: O ESPAÇO/TEMPO DO ENTRE.....................................76

1 – A potência do ato: o movimento................................................................................81

2 – A potência do entre: a pausa......................................................................................90

CAPÍTULO IV

A POTÊNCIA DO ATO E DO ENTRE: A DANÇA...................................................95

1 – É o projeto da casa, é o corpo na cama, é a chuva chovendo, é a conversa ribeira: é o

pé, é o chão, é a marcha estradeira, é o mistério profundo, é o queira ou não queira...103

2 – Percepção amiúde....................................................................................................110

3 – Dançar para abraçar e abraçar para dançar..............................................................113

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

TOCANDO EM FRENTE: ANDO DEVAGAR PORQUE JÁ TIVE PRESSA................114

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................119

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INTRODUÇÃO

PELO SABOR DA LENTIDÃO1

O objetivo desta pesquisa é investigar a lentidão como metodologia de

conhecimento do corpo e como potência criativa para a dança, que se constrói na

integridade corporal e que não visa o acúmulo quantitativo do consumismo imediato das

múltiplas informações. A pesquisa compreende a lentidão como potência qualitativa do

corpo, culminando em um estado de movência2 de caráter artesão, que demanda tempo,

prática reflexiva e crítica. Nesta perspectiva, a lentidão como conhecimento do corpo e

como potência criativa, se configura como um saber práxico, que está situado entre o

saber prático e o saber teórico (FORTIN, 2011).

Desta forma, a presente pesquisa em dança, formula reflexões, gera escolhas,

provando e sentindo sabores e cheiros, de uma estrutura dissertativa que procura seguir

o caminho da lentidão como sabor potente de um conhecimento de corpo na dança.

Propõe um pensamento crítico e reflexivo sobre o saber práxico (FORTIN,

2011) acerca da dança, seu processo de ensino-aprendizagem, conceitos, teorias,

teóricos, experiências, relatos, convites, práticas, que surgem na medida em que vou

rememorando, recordando, relatando e refletindo acerca do fazer artístico, docente e

pessoal. Concomitantemente, a reflexão gerada a partir da aplicação prática desta

pesquisa, na turma de dança contemporânea, da Escola de Dança do Teatro Alberto

Maranhão (EDTAM) 3, amplia nossa consciência acerca do corpo que dança e escolhe a

lentidão como processo artístico-educacional.

A aplicação prática realizada nesta pesquisa foi potente em sua importância, pois

percebemos e investigamos o sabor da lentidão nos corpos dos participantes gerando

uma ampliação da percepção, da consciência e do conhecimento sobre o corpo que

dança.

1 O título dessa introdução faz referência ao último tópico do capítulo Tessitura Aromática

Saborosa, do livro Amargo Perfume: a dança pelos sentidos (2012) da pesquisadora em dança Patrícia

Leal. 2 Utilizo o termo movência como um estado qualitativo do movimento, que se configura em uma

permanência saborosa do movimento investigativo do corpo, da dança, com o foco alojado na experiência

(Larrosa, 2002). 3 Escola de dança fundada em 1985 pelos Professores Carmem Borges e Edson Claro, no intuito

de ampliar o acesso à dança na cidade do Natal.

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Iniciando as reflexões acerca da lentidão, pergunto: qual é o sabor da lentidão?

Para responder a esta pergunta, preciso antes deixar claro sobre que lentidão estou

falando e como a proponho como metodologia da aplicação prática desta pesquisa. Este

entendimento permeará toda a estrutura dissertativa, suscitando outros conceitos e

perspectivas acerca do corpo na dança.

O processo cênico intitulado Amiúde (2015) é parte integrante desta pesquisa.

Tem como ponto de partida a escolha da lentidão como potência criativa para gerar

conhecimento. Visita composições coreográficas do artista-docente desta pesquisa, com

o propósito de reviver sensações, de saborear qualidades de movimento já

experimentadas, respeitando a construção processual vivida e relatada nesta dissertação.

Dessa forma, seu processo de montagem vem em construção antes mesmo do início da

escrita deste texto. Porém, o pensamento mais focalizado e a estruturação acerca da

composição Amiúde só foram possíveis após a aplicação prática da pesquisa, onde

refletimos sobre a potência da pausa na dança, sobre a potência do movimento e sobre a

potência da dança em âmbito criativo e educacional do corpo que dança.

A lentidão que proponho nesta pesquisa tem um caráter dilatado, expansivo e

enraizado na percepção corporal, propriocepção. Por vezes, a lentidão está de fato, em

um tempo lento a lentíssimo, com nuances de velocidade sutil, configurando em alguns

momentos a pausa. A presente pesquisa, também considera a lentidão na perspectiva do

tempo cronológico (em processo), onde os processos de propriocepção acontecem dia

após dia, na pulsação, em combinação à fluência, na síntese, no relaxamento e na tensão

muscular. Vivos e orgânicos no momento presente, recebendo e passando energia,

sendo inteiros, sendo soma.

Por vezes, experimento o movimento com a qualidade de tempo rápida como

fonte qualitativa de informações que geram o aguçamento perceptivo da desaceleração,

visando proporcionar um alargamento do entendimento do movimento pesquisado,

gerado, dançado, em uma perspectiva de experiência sensório-motora que acelera para

entender e corporificar a desaceleração.

Nesta pesquisa proponho a lentidão como metodologia investigativa das

qualidades expressivas do movimento dançado. O estudo da eukinética labaniana como

fator inicial da aplicação prática da pesquisa, e, por conseguinte, as propostas

metodológicas da “dança pelos sentidos: criação coreográfica” e da “improvisação pelos

sentidos” da pesquisadora Patrícia Leal (2012), como fonte investigativa e qualitativa

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das concepções abordadas, embasam a construção do entendimento da pausa na dança e

de uma compreensão de corpo com mais consciência de sua integralidade.

Percebo, ao longo dos anos na experiência artístico-acadêmica, que os fatores

qualitativos (LABAN, 1978) do movimento atuam em diversas combinações a todo

instante no movimento dançado e na vida cotidiana. A partir da eukinética de Rudolf

Laban (1978), que é o estudo dos aspectos qualitativos, dinâmicos e expressivos do

movimento, dou início à pesquisa prática pelos quatro fatores do movimento que foram

identificados por Laban – fluência, espaço, peso e tempo –, ao observar as atitudes

corporais na experiência do movimento (RENGEL, 2005).

A abordagem das qualidades do movimento dançado pela eukinética labaniana,

está conectada com a concepção de uma linguagem em dança que tem a lentidão como

uma escolha saborosa. Desta maneira, faço uma reflexão acerca da velocidade dos

corpos na contemporaneidade a partir das autoras Denise Sant’Anna (2001) e Patrícia

Leal (2012), percebendo, refletindo e perguntando: Quais caminhos precisamos

percorrer e experimentar para provar o sabor da lentidão no movimento dançado? De

que forma ainda estamos presos ao imediatismo da velocidade? De que maneira essa

possibilidade da lentidão faz com que o corpo construa um conhecimento em dança?

Essas questões serão retomadas na conclusão desta pesquisa, onde apontarei

possíveis respostas diante toda pesquisa feita acerca da lentidão como escolha

metodológica de conhecimento do corpo e como potência criativa em dança. Entretanto,

o leitor poderá refletir acerca dessas perguntas em todo o texto dissertativo.

O primeiro capítulo desta pesquisa, intitulado “Velocidade Oscilante:

experiência de uma desaceleração saborosa” reflete acerca da aceleração e

desaceleração dos corpos na contemporaneidade através de relatos de minha infância,

adolescência e início da trajetória artística, juntamente com a historiadora Sant’Anna

(2001) e a pesquisadora em dança Leal (2012). Proponho a lentidão como escolha de

um aprofundamento dos conhecimentos do corpo e da dança.

Leal (2012), refletindo sobre a velocidade dos corpos na contemporaneidade,

sobre a superficialidade e sobre a falta de identidade que a agilidade pode acarretar,

concorda com a historiadora Denise Sant’Anna (2001) quando levanta a valorização

crescente da problemática do corpo humano acompanhada por uma exploração

comercial ascendente, onde o imperativo da beleza e da saúde perfeitas se impõe na

onipresença da mobilidade corporal em expansão.

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Essa mobilidade corporal, cada dia mais crescente e presente na vida

contemporânea, se inicia, segundo Sant’Anna (2001), com o advento da velocidade nas

competições esportivas em meados do século XIX. Aparece também nas artes

impressionistas com o advento da fotografia e o estabelecimento do instante nas artes.

Reafirma-se com veemência no progresso das fábricas e máquinas, implantando novas

liberdades e agonias na contemporaneidade (LEAL, 2012).

Esta reflexão, além de estar no último capítulo da tese de Leal, é eixo norteador

em alguns artigos da historiadora Denise Sant’Anna (2001), nele a autora constrói seu

pensamento sobre a velocidade dos corpos sinalizando a lentidão como uma escolha que

não precisa ser o oposto da velocidade. Mas sim, uma maneira de experimentar as

nuances qualitativas do que já temos, do que já existe em nós. E que muitas vezes são

reprimidas pelo frenesi do imediatismo. Leal (2012), a partir desta reflexão, considera a

possibilidade de haver processos de criação e propostas metodológicas em dança que

têm a lentidão como opção.

A lentidão não precisa ser exclusivamente o oposto da velocidade. E nem

deveria definir-se pelo que supostamente lhe falta. Pois ela não resulta de um

traço defeituoso do corpo ou de caráter, não significa apatia, falta de

imaginação ou de energia, não se assemelha a um querer sem coragem nem a

um molengar alheio à realidade. A lentidão não requer degredo. É possível

defini-la de diferentes maneiras e experimentar muitos de seus charmes. [...]

no lugar de conceber a lentidão como deficiência, ela passa a ser entendida

como uma escolha. Uma escolha que nada tem de passivo (SANT’ANNA,

2001, p. 17).

O primeiro capítulo tem como objetivo relatar e identificar como e onde, em

minha formação pessoal e artística, a lentidão se apresentou. Inúmeras vezes, ignorada

pela apreciação e identificação com a velocidade de acumular vivências e, por vezes,

entendida como perda de tempo. A desaceleração é concebida, nesta pesquisa, como

sabor de um saber que se constrói aos poucos e que visa um entendimento qualitativo do

saber do corpo na dança.

Os relatos de minhas experiências, que estão no primeiro capítulo e em alguns

momentos desta introdução, visam demonstrar a minha percepção acerca da velocidade

ao decorrer da formação pessoal, artística e docente. Como a lentidão foi sendo

entendida e apreciada como um saber do corpo que precisa de tempo para se ramificar e

gerar conhecimento.

Relatar as minhas experiências não tem um caráter egocêntrico ou de exaltação,

tomando as minhas vivências como verdades absolutas. Mas sim um caráter

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investigativo para esta pesquisa, pois é a partir da experiência que o conhecimento foi

gerado.

A concepção de experiência nesta pesquisa se fundamenta no pesquisador Jorge

Larrosa (2002), que a conceitua como sendo o que nos passa, o que nos acontece, o que

nos toca. E não o que se passa, o que acontece ou o que toca. O saber construído pela

experiência é um saber particular, subjetivo, relativo, contingente, pessoal.

Se a experiência não é o que acontece, mas o que nos acontece, duas pessoas,

ainda que enfrentem o mesmo acontecimento, não fazem a mesma

experiência. O acontecimento é comum, mas a experiência é para cada qual

sua, singular e de alguma maneira impossível de se repetir. O saber da

experiência é um saber que não pode separar-se do indivíduo concreto em

que encarna. Não está, como o conhecimento científico, fora de nós, mas

somente tem sentido no modo como configura uma personalidade, um

caráter, uma sensibilidade ou, em definitivo, uma forma humana singular de

estar no mundo, que é por sua vez ética (um modo de conduzir-se) e uma

estética (um estilo). Por isso, também o saber da experiência não pode

beneficiar-se de qualquer alforria, quer dizer, ninguém pode aprender da

experiência de outro, a menos que essa experiência seja de algum modo

revivida e tornada própria (LARROSA, 2002, p. 27).

Larrosa (2002) afirma ainda que a experiência é cada vez mais rara na

contemporaneidade, devido a quatro apontamentos que demostrarei nos próximos

parágrafos, sendo os dois últimos intrinsicamente ligados a esta pesquisa. Contudo, os

quatro fatores se completam e formam um corpo conceitual sobre o “excesso”, que

impossibilita a experiência.

O primeiro apontamento de Larrosa (2002) se dá pelo excesso de informação – o

autor afirma que a informação não é experiência e que ela não deixa lugar e nem

possibilidades para a experiência acontecer. A contemporaneidade enfatiza a

informação como algo imprescindível na constituição do sujeito como informante e

informado. Porém a informação “não faz outra coisa que cancelar nossas possibilidades

de experiência” (LARROSA, 2002, p. 21).

A supervalorização e a ânsia de informação para a aquisição de poder

informativo na sociedade atual atuam nos afastando gradativamente da experiência

(LARROSA, 2002). Os processos investigativos em dança (destaco a dança por ser a

área de conhecimento pesquisada), tanto no aspecto criativo quanto educacional, tem a

ansiedade como impedidora do saber construído pela experiência. Impede que

escutemos a nós mesmo e a possibilidade para o novo acontecer.

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Ao refletir sobre a ansiedade, percebo que ela é um produto desencadeado pela

velocidade desmedida e infindável que a contemporaneidade nos impõe a todo instante.

Impedindo, assim, a experiência acontecer. Pois o excesso de informações provoca uma

necessidade de mais informações.

O segundo acontece pelo excesso de opinião – depois da informação vem a

opinião, a obsessão por ela também anula possibilidades de experiência e também faz

com que nada aconteça. E isto não é uma apologia a não termos opinião acerca de nada,

mas sim um chamado para que não fiquemos cegos e sedentos por dar opinião após

opinião sobre algo que muitas vezes não experimentamos. Larrosa (2002) busca dizer

que a opinião muitas vezes não está vinculada a um estudo aprofundado acerca do que

se diz e que, portanto, não se sustenta de modo consistente.

O terceiro apontamento do autor diz que a experiência é cada vez mais rara por

falta de tempo. Essa discussão sobre o tempo é amplamente debatida no primeiro

capítulo desta dissertação, fazendo uma ligação das minhas experiências com os relatos

sobre o tempo dos corpos na contemporaneidade, a velocidade voraz do imediatismo e a

desaceleração saborosa de proporções integradoras do conhecimento do corpo na/da

dança.

A relação com a impossibilidade da experiência por falta de tempo é abordada

da seguinte forma por Larrosa:

Tudo que se passa, passa demasiadamente depressa, cada vez mais depressa.

E com isso se reduz o estímulo fugaz e instantâneo, imediatamente

substituído por outro estímulo ou por outra excitação igualmente fugaz e

efêmera. [...] A velocidade como o que nos são dados os acontecimentos e a

obsessão pela novidade, pelo novo, que caracteriza o mundo moderno,

impedem a conexão significativa entre acontecimentos. [...] O sujeito

moderno não só está informado e opina, mas também é um consumidor voraz

e insaciável de notícias, de novidades, um curioso impenitente, eternamente

insatisfeito. Quer estar permanentemente excitado e já se tornou incapaz de

silêncio (LARROSA, 2002, p. 23).

O autor afirma ainda que “o sujeito do estímulo, da vivência pontual, tudo o

atravessa, tudo o excita, tudo o agita, o choca, mas nada lhe acontece. Por isso, a

velocidade e o que ela provoca a falta de silêncio e memória, são também inimigas

mortais da experiência” (LARROSA, 2002, p. 23). E é dessa velocidade que os relatos

abordam. Uma velocidade que não permite a pausa, o silêncio, produzindo assim

agonias que geram saltos nas etapas de construção do conhecimento.

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No início de minha trajetória artística, percebo saltos de etapas e ansiedade em

querer compreender de forma rápida e eficaz a técnica do balé clássico. Ao iniciar os

estudos de técnica clássica na EDTAM, em agosto de 2007, percebo hoje, que estava em

um processo cauteloso de reconhecimento do ambiente, pois a realidade de uma escola

de dança era extremamente nova para mim. O processo dos professores (Sammy Passos

e Lidiane Soares) e dos colegas de turma para comigo era cauteloso como o meu,

acelerando gradualmente ao decorrer das semanas. Decidi acompanhar esta aceleração e

não mais fazer somente uma aula por dia, mas cinco, já que a técnica clássica era

novidade para mim nesta época.

Tinha muita pressa e urgência em entender tudo o que acontecia comigo

decorrente aos estímulos que tinha em sala de aula, acreditando que, desta forma, teria

uma maior propriedade em relação à dança clássica. Tomado pela pressa de entender

que forma era essa de dançar, tive a oportunidade de assistir a uma apresentação da

Companhia de Dança do Teatro Alberto Maranhão (CDTAM), na abertura dos jogos dos

comerciários do Rio Grande do Norte, que me fez desacelerar. Naquele momento outra

forma de dança se ramificava na minha retina, me fazendo olhar mais, querer mais, e me

perguntar: que dança é essa que nunca tinham me apresentado? Sem pressa alguma,

uma moça do meu lado disse: “isso é dança contemporânea”. Imediatamente fui tomado

por outro questionamento: o que era a dança contemporânea?

A pergunta deixou-me suspenso, em um espaço-tempo lento, contrapondo o que

se fazia dança a minha frente. Em um tempo de moderado a rápido os movimentos dos

bailarinos da CDTAM me causavam um constante deslocamento perceptivo. Na medida

em que os movimentos eram feitos, a tentativa de compreender o primeiro se chocava

com a vinda de mais dois ou três movimentos. Nunca tinha visto aquela forma de

dançar. Os bailarinos se buliam de modo a não definir estaticamente o movimento, era

um movimento dentro do outro, meio borrado em um espaço multifocado.

No mês de novembro do ano de 2007, com apenas três meses de iniciação na

técnica clássica, a diretora artística da EDTAM e diretora geral da CDTAM, Wanie Rose,

chegou à sala na qual eu teria aula e permaneceu parada (pausa) na porta vendo a aula

acontecer. Como não a conhecia, eu não percebi que ela tinha passado a aula inteira

parada na porta observando a turma. A turma era composta somente por homens, e neste

dia éramos vinte e poucos. Chamava muito a atenção de todos na escola e ia se tornando

comum a presença de pessoas na porta da sala assistindo à aula.

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Para minha grande surpresa ao término da aula, o professor Sammy Passos veio

até mim e disse que a diretora da CDTAM me convidou para ser estagiário da

companhia. De início não acreditei, pois pensava: como fui chamado se nem sou

bailarino clássico? Como fui chamado se nem sei dançar a dança que eles se propõem?

O meu querer fazer parte da companhia era tão grande que nem quis responder essas

perguntas. Fiz o que o professor disse: “se joga!”.

A partir de dez de dezembro do ano de 2007, comecei uma incrível e

extraordinária jornada, a qual ainda percorro com grande gratidão, seriedade e

dedicação para com a arte que fazemos.

O intérprete Juarez Moniz4 ao chegar à Cia de dança do teatro Alberto

Maranhão, no ano de 2007, trazia em seu corpo, enquanto dança poucos

registros. Em um curto período de tempo através de aulas de diversos estilos

e participação em cursos durante festivais de dança em que a CDTAM

participou, e também ao assistir e observar espetáculos de dança, teatro,

música, fez com que essa fruição somada a um grande compromisso e

dedicação sempre, resultassem e que seu corpo e mente entrasse num

processo de ebulição, modificação, inquietação, e através de uma série de

estímulos, mais uma vez em um curto tempo, este ser que antes era somente

intérprete, passe a ser criador também, possibilitando aos seus companheiros,

a si mesmo e a seu público seja do estado do RN, outros estados e outros

países, puro deleite com tão grande sensibilidade artística, sistematizando

reflexões, sentindo e pensando o mundo através de escrituras corporais de

movimento com muita criatividade e estudo, a fim de buscar sua identidade

pessoal 5.

Diante do relato do percurso dos primeiros passos, percebo que o tempo lento

e/ou rápido está presente muito fortemente nas experiências vividas até aqui. Que o

espaço-tempo do entre meio, da pausa, da lentidão são questões imbricadas na presente

pesquisa, pelo fato de sermos, eu e a pesquisa, partes de um todo.

No momento da pergunta que me fiz acerca do que seria dança contemporânea

fui tocado, vivi um momento de pausa que por dias me fez parar para pensar. Parar para

entender que jeito era aquele de expressar o movimento dançado que eu nunca tinha

visto. E esta pausa, em momento algum se configurou como a paralização de todos os

pensamentos e sensações, pelo contrário, esta pausa, sobre a qual no capítulo III desta

dissertação me debruçarei, é uma pausa recheada de movência sensório-cognitivo-

afetivo-motora.

4Desde minha entrada na CDTAM utilizo o nome artístico, Juarez Moniz.

5Entrevista concedida por Wanie Rose em 25/08/2013.

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No ano de 20116 pela primeira vez fui convidado a experimentar a pausa como

potência cênica, ao participar da oficina de Dança-Teatro ministrado pela companhia

francesa La fleur de la peau, no 29º Festival de Dança de Joinville, Santa Catarina.

Naquele momento, o convite para pausar me causou estranhamento devido ao meu pré-

conceito de que pausa não era dança. Estava acostumado, muito por uma questão de

gosto, de pensar a dança como um eterno movimento visível de braços e pernas no ar e

de torções cada vez mais elaboradas. Percebo também que até aquele momento meu

corpo precisava experimentar cada vez mais movimentos que ampliassem e projetassem

a minha dança pelo espaço. Como se para mim a dança só fizesse sentido estando em

uma constante projeção e expansão dos membros inferiores e superiores do corpo.

A companhia francesa era composta pela brasileira, Denise Namura, e o alemão,

Michael Bugdahn, que trabalhavam a pausa do movimento externo valorizando e, no

meu caso, enfatizando o movimento interno como potência geradora do movimento.

Revelava para mim e para muitos ali presentes que a pausa na dança nos possibilita a

suspensão, gerando atenção, proporcionando assim uma ligação de um movimento para

o outro (pausa, fronteira, passagem, entre, espaço). E percebendo que os fatores

qualitativos do movimento identificados por Rudolf Laban (1978) atuam em diversas

combinações a todo o momento no movimento dançado e no movimento cotidiano.

Lembro-me que no segundo dia da oficina estava em constante movimento

quando o Michael Bugdahn se aproximou e disse: “Sua dança não respira”. Naquele

momento fui aos poucos parando o movimento externo e fiquei suspenso, em um tempo

de lento a lentíssimo, em pausa (silêncio). Meus movimentos arabescos haviam parado,

porém estava internamente em grande ebulição, com constantes deslocamentos. A

afirmação dele me fez percorrer um caminho que antes só olhava de longe e com

bastante estranheza, o caminho da potencialidade da pausa.

A experiência com a pausa fez meu corpo degustar várias passagens/transições

de um movimento para o outro. Passei a compreender que a dança não é somente

movimento externo, mas também é interno e, os dois se complementam tornando o

corpo integrado, interligado, ramificado.

6No ano de 2011, já havia passado por um processo criativo na CDTAM, o Rio Cor de Rosa, de

Clébio Oliveira. Onde tive um grande deslocamento perceptivo sobre o movimento dançado,

proporcionando-me alguns entendimentos sobre meu fazer em dança. Sendo um divisor de águas na

minha carreira artística. Porém outras questões me inquietavam e afloravam, como a questão da pausa na

dança.

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Percebo hoje que a pausa atua em minha dança como elemento potencializador-

investigativo do corpo que dança. Corpo que galgou seu próprio caminho em busca de

uma dança orgânica, integrada. Descobriu o sabor inigualável da lentidão que constrói

aos poucos e profundamente, onde através dos movimentos as fronteiras são borradas,

impermanentes, nubladas, gerando um convite para o deslocamento perceptivo, fugindo

de significados e, sendo significante na inteireza da sua concepção. A lentidão valoriza

o processo como uma imersão no sabor, no delicado, no movimento interno que

potencializa o gesto dançado, sendo o gesto, consequência recheada de sentido advindo

de processos de entendimento de si, de maneira integrada, buscando as possibilidades e

particularidades do corpo que dança (LEAL, 2012).

Dessa forma, pude compreender que o corpo é o lugar que abriga as fronteiras,

os entre-espaços, as potencialidades mais intrínsecas. E a busca pelo entendimento dos

saberes do corpo perpassa sobre tudo, pelo reconhecimento de que saberes são esses e

quais caminhos nos levam para este vasto campo do conhecimento.

Nesta perspectiva, a fenomenologia da percepção de Merleau-Ponty (1999) é

reconhecida nesta pesquisa como um dos caminhos que apresenta o saber sensível, de

forma a compreender que “o sensível” não é apenas qualidade do objeto, mas também é

sentido, intenção, significação. O filósofo nos convida a retornarmos as nossas próprias

experiências em sua complexidade, pois somente o ato da experiência perceptiva pode

ensinar-nos o que realmente é o ato da percepção (PORPINO, 2006). Assume que a

relação entre as minhas experiências e as experiências do outro tocam e são tocadas ao

mesmo tempo, possibilitando um olhar sensível que vai muito além do que conseguimos

expressar em palavras e que, em meu caso, é expresso pela dança. Uma reversibilidade

potente de experiência, de conhecimento.

Parto das experiências vividas para pesquisar, criar, experimentar, dançar e

acima de tudo reconhecer e refletir o meu ser nesse espaço-tempo, onde se configuram

inúmeras ramificações.

A fenomenologia é o estudo das essências, e todos os problemas, segundo ela,

resumem-se em definir essências: a essência da percepção, a essências da consciência,

por exemplo. É uma filosofia que compreende o homem e o mundo a partir de sua

facticidade, a tentativa de uma descrição direta de nossa experiência tal como ela é

(MERLEAU-PONTY, 1999). Para a fenomenologia a “minha experiência não provém

de meus antecedentes, de meu ambiente físico e social, ela caminha em direção a eles e

os sustenta, pois sou eu quem faz ser para mim (portanto, ser no único sentido que a

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palavra possa ter para mim)” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 03). Ou seja, o mundo é

aquilo que percebo, aquilo que vivo e não aquilo que penso dele. “Estou aberto ao

mundo, comunico-me indubitavelmente com ele, mas não o possuo” (MERLEAU-

PONTY, 1999, p. 16). Uma comunicação inquestionável que se dá através do corpo,

dos sentidos, das sensações, das experiências.

Na fenomenologia da percepção eu não tenho um corpo, eu sou um corpo. E

nesta perspectiva, a experiência é uma comunicação com o mundo, comigo mesmo, e

com os outros, ser com eles uma potência perceptiva, ao invés de estar ao lado deles,

alheio às sensações. Ser corpo, a partir da fenomenologia de Merleau-Ponty (1999), é

entender que ao mesmo tempo em que toco sou tocado, desencadeando processos

perceptivos potentes de experiência. Que precisam que pausemos para enxergar, para

ouvir, para sentir (MERLEAU-PONTY, 1999).

A concepção de experiência para Larrosa (2002) tem uma ligação intrínseca com

a concepção da experiência e do corpo em Merleau-Ponty (1999), e com a concepção da

lentidão nesta pesquisa.

A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer

um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que

correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar

mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir,

sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender

o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a

atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos

acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro,

calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço (LARROSA, 2002, p. 24).

Tanto a experiência quanto a lentidão são entendidas nesta pesquisa como um

encontro ou uma relação com algo que se experimenta, que se prova, que nos passa, que

nos toca, nos acontece, e ao nos passar, nos forma e nos transforma. “Somente o sujeito

da experiência está, portanto, aberto à sua própria transformação” (LARROSA, 2002, p.

26).

Quando entendemos que somos um corpo, na perspectiva fenomenológica,

começamos a perceber que as relações que se estabelecem com o mundo, consigo e com

o outro geram experiências profundas, que, como reflete Larrosa (2002), precisam ser

livres de excessos.

A informação, a opinião e a falta de tempo são, para Larrosa (2002) fatores

responsáveis pela inibição da experiência, por vezes, esses elementos são confundidos

com o fato do indivíduo ter tido uma experiência. A proposta metodológica da lentidão

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nesta pesquisa em dança entende a experiência como uma potência perceptiva do Ser,

na qual a lentidão é ao mesmo tempo um ato de escolha, um ato de apoderamento do

Ser através de si, e do entendimento de “que a percepção interior é impossível sem a

percepção exterior, que o mundo, enquanto conexão dos fenômenos, é antecipado na

consciência da minha unidade, é o meio para mim de realizar-me como consciência”

(MERLEAU-PONTY, 1999, p. 15).

O quarto apontamento sobre que Larrosa (2002) reflete, é o da experiência cada

vez mais rara por excesso de trabalho. Por vezes, a experiência é confundida com

trabalho. Ao refletir acerca deste apontamento do autor, chego ao entendimento de que a

experiência não se dá no acúmulo de tarefas, mas sim em momentos qualitativos de

atravessamento que geram conhecimento através da experiência. Na dança,

especificamente, não é a quantidade de aulas, processos ou repetições que proporcionam

experiências. Mas sim a atenção dada a cada momento desses. A atenção que se

configura em experiências que perpassam o corpo formula conhecimento, gerando a

transcendência.

A perspectiva da experiência como sendo o que nos passa, o que nos acontece,

vem ampliar o entendimento em relação ao corpo, pois é nele que as experiências

passam, acontecem. A lentidão como escolha nesta pesquisa vem propor um

entendimento de corpo como experiência pulsante, daquilo que se vive que se percebe,

que nos toca. Que está intimamente conectada, se percebendo à medida que acontece o

ato do movimento, da fala, do toque, do olhar, da escuta. E não tentando se perceber

através do espelho que somente reproduz a imagem exterior, onde se busca o

entendimento de si pela perspectiva da 3º pessoa, que vê de fora, percebendo a estrutura

física e estética do corpo.

Construo o caminho de compreensão da proposta metodológica e de corpo nesta

pesquisa, partindo da lentidão como escolha (SANT’ANNA, 2001), entendendo-os

como experiência (LARROSA, 2002) e como sujeito-objeto (MERLEAU-PONTY,

1999), para que, desta forma, possa introduzir a perspectiva da educação somática, que,

em minha concepção, reúne a lentidão como escolha, a experiência e o sujeito-objeto de

forma íntegra.

Adentro aos conceitos e técnicas da educação somática por entender que os

processos de conscientização através da perspectiva somática são construídos pelo sabor

da lentidão. Processos que se aproximam desta pesquisa pelo modo como percebem o

corpo.

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A educação somática é um campo teórico e prático que se interessa pela

consciência do corpo e seu movimento. Muito embora o campo exista há

mais de um século na Europa e na América do Norte, a denominação

“educação somática” foi criada em 1995 pelos membros do Regroupment

pour I’Éducation Somatique (RES) em Montreal, no Canadá. Sob a

denominação de educação somática reagrupam-se diferentes métodos

educacionais de conscientização corporal dentre os quais se destacam:

Técnica de Alexander, Feldenkrais, Antiginástica, Eutonia, Ginástica

Holística, etc. (BOLSANELLO, 2005, p. 100).

A educação somática considera o corpo humano um organismo vivo indivisível

e indissociável da consciência. Onde o termo somático deriva da palavra grega soma,

que para Thomas Hanna “[...] soma é o corpo subjetivo, ou seja, o corpo percebido do

ponto de vista do indivíduo.” (HANNA, 2003, p. 50 apud BOLSANELLO, 2005, p.

100).

Hanna (1972) elucida que durante o século XX aspectos tecnológicos, políticos,

sociais e culturais geraram conflitos entre a cultura tradicional e a cultura na qual o

autor chama de “mutante”. Os mutantes para o autor são “um novo tipo de ser humano,

cujo comportamento hesita em adaptar-se” (HANNA, 1972, p. 13) ao formato

tradicionalista da cultura de determinado lugar. Afirma que para esse novo tipo de ser

humano é necessário um novo e diferente comportamento e pensamento acerca da

cultura vigente e do que negligenciamos o que esquecemos e ignoramos durante

milênios, ou seja, o nosso corpo.

“A educação somática consiste em técnicas corporais na qual o praticante tem

uma relação ativa e consciente com o próprio corpo no processo de investigação

somática” (MILLER, 2011, p. 150), fazendo um trabalho perceptivo que direciona para

a sua autorregulação em aspectos físicos, psíquicos e emocionais. Na educação

somática, as decisões partem do indivíduo.

Experimentar e descobrir caminhos e sensações com o próprio corpo é um

potente conhecimento acerca de si e do mundo. A matéria prima para a construção de

conhecimento na educação somática é a matéria corpórea que “amplia as capacidades

cognitivas, motoras e funcionais, assim como também as habilidades criativas,

expressivas e imaginativas” (CAETANO, 2012, p. 151).

Miller (2011) incorpora os conceitos e técnicas da educação somática em uma

perspectiva criativa, de investigação do corpo cênico. Caetano (2012) entende o corpo

enquanto matéria expressiva em constante mutação e processo de reinvenção, onde o

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corpo e suas experiências intensivas na experimentação no campo da educação somática

abre um espaço potente de alto conhecimento.

A concepção somática de corpo enquanto experiência vem conceituar o corpo,

em conjunto com a experiência e sujeito-objeto em Merleau-ponty (1999), entendendo e

corporificando “a importância do sistema sensitivo-motor, ao invés de propor a

execução de exercícios motores voluntários e repetitivos, que às vezes tem a tendência a

brecar a aquisição de novas formas de se mexer” (CAETANO, 2012, p. 152; FORTIN,

1999, p. 43).

O trabalho do educador somático prima por um refinamento sensorial. Por,

um trabalho de refinamento da propriocepção [...]. Em reeducação, torna-se

ainda mais essencial alcançar a nuance dos detalhes. Nesta finalidade de

modulação sensorial, os conhecimentos somáticos propõem [...] a adoção de

situações pedagógicas privilegiando um trabalho em lentidão, uma

exploração atenta da amplitude articular, uma variação minuciosa do esforço,

etc. Ser capaz de sentir para agir, tal é um leitmotiv da educação somática.

Agir no intuito de aumentar as possibilidades de escolha, logo, aumentar sua

liberdade (FORTIN, 1999, p. 43).

Em uma perspectiva somática, o saber se constrói na experiência própria de cada

indivíduo. Posso perceber, dessa forma, que o sabor da lentidão se situa na experiência,

na nuance dos detalhes, no parar para escutar o corpo, escutar a si mesmo. “Isto implica

numa nova compreensão do corpo e da formação em dança, uma compreensão que se

constrói a cada dia sobre o terreno para uma prática” (FORTIN, 1999, p. 50).

Desta forma, os saberes somáticos me fazem cada vez mais perceber e constatar,

em decorrência dos textos lidos e das experiências enquanto intérprete-criador e

docente, que tudo que fazemos, lemos, entendemos ou não entendemos, vemos, falamos

ou não falamos, movemos, pausamos vai contraindo-se e distendendo-se, acomodando-

se. Pois percebo que o ser é soma agora, neste momento (HANNA, 1972).

Nesta perspectiva aprendemos por nossa própria experiência e não somente a

partir de teorias e manuais, e nem copiando o modelo cinestésico do professor. A

experiência do sujeito é valorizada como sendo única na medida em que o objetivo é

levá-lo a tomar contato com o aspecto subjetivo de seu corpo (BOLSANELLO, 2005).

O processo de aprendizado na educação somática visa validar a experiência

subjetiva de cada aluno como fonte de conhecimento, o professor evita julgar

o discurso que seus alunos têm sobre seus próprios corpos ou de impor seus

valores sobre a estética ou a eficácia do corpo. Seu papel é sobretudo o de

guiar o aluno em suas descobertas somáticas, suscitar uma reflexão sobre a

corporeidade [...] o conceito central do corpo enquanto experiência deixa

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entrever que na medida em que nos aprofundamos na realidade corpórea de

nossa existência, tocamos a capacidade inata que o ser humano tem de sentir

e tornar-se consciente. Podemos então reconhecer nossos limites, explorar

nosso potencial, desenvolvê-lo e contribuir de modo positivo ao meio onde

vivemos (BOLSANELLO, 2005, p. 102 - 105).

Assim sendo, a lentidão como proposta metodológica, a conceituação de

experiência a partir de Larrosa (2002) e o entendimento do corpo fenomenológico em

Merleau-Ponty (1999) e do corpo enquanto experiência na educação somática vêm

embasar o entendimento de corpo que norteia esta dissertação.

Proporcionando também a base teórica para o primeiro capítulo, onde será

ampliado ainda o conceito de educação somática como práxis (FORTIN, 2011), a

velocidade e a desaceleração dos corpos na contemporaneidade, vislumbrando tais

momentos na minha formação.

Chegamos, desta forma, no segundo capítulo, cujo objetivo é relatar toda a

aplicação prática desenvolvida na EDTAM, no segundo semestre do ano de 2014, na

turma regular de dança contemporânea da escola, na qual sou professor.

Os conceitos que nortearam a aplicação prática, os autores que a embasaram, a

busca pelo entendimento dos fatores qualitativos do movimento identificados por Laban

(1978), a “dança pelos sentidos: criação coreográfica” e a “improvisação pelos sentidos”

de Leal (2012) culminaram na reflexão acerca da pausa como potência cênica e como

entendimento perceptivo do corpo. O saber se construindo aos poucos e profundamente,

culminando na experimentação da pausa na dança.

A abordagem da pausa como potência será o tema do terceiro capítulo desta

dissertação, investigando a sua potencialidade integradora na construção de um corpo na

dança, em processos de criação e na ampliação da consciência do corpo dançante. A

pausa, nesta pesquisa, não é apenas uma definição ou conceito, mas elemento de

referência para pensar/experimentar o corpo na dança, de forma mais integrada e

consciente.

O quarto capítulo desta dissertação tem como objetivo pensar a dança como

potência, entendendo-a como espaços de oportunidade de movimento que proliferam

entendimentos acerca do corpo que dança, e da dança como área de conhecimento

potente de ampliação da consciência por meio das experiências vividas. Traz ainda a

análise da aplicação prática da pesquisa e o processo de criação de Amiúde (2015).

Proponho uma pausa conclusiva, assumindo o meu andar devagar por já ter tido

muita pressa, desejando aprofundar e ampliar esta pesquisa em um doutoramento,

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entendendo que os processos artísticos e docentes caminham de mãos dadas em um

abraço afetivo potente de conhecimento em dança.

Estejam convidados a mergulhar profundamente e sem pressa neste texto

dissertativo que se faz dança em suas possibilidades investigativas artístico-

educacionais.

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CAPÍTULO I

VELOCIDADE OSCILANTE: EXPERIÊNCIA DE

UMA DESACELERAÇÃO SABOROSA

No começo era o movimento. Não havia repouso por que não havia paragem

do movimento. O repouso era apenas uma imagem demasiada vasta daquilo

que se movia uma imagem infinitamente fatigada que afrouxava o

movimento (GIL, 2002, p. 11).

No início da minha trajetória artística, no ano de 2007, na Escola de Dança do

Teatro Alberto Maranhão (EDTAM) sempre pensava que a dança somente acontecia se

os movimentos do bailarino fluíssem de maneira contínua, com certa aceleração e sem

pausa. Essa questão parecia estar tão bem resolvida, que não me preocupava em

questionar-me sobre o não movimento na dança, movimentar-se era lei.

Esta concepção em relação à dança teve o início de sua mudança em janeiro de

2010, com o coreógrafo brasileiro residente em Berlin na Alemanha, Clébio Oliveira. O

início do processo coreográfico “Rio Cor de Rosa” na Companhia de Dança do Teatro

Alberto Maranhão (CDTAM), na qual atuo como bailarino, professor e coreógrafo me

fez perceber que a dança também acontece na pausa, que ela se potencializa na medida

em que o corpo do bailarino compreende e utiliza a palheta de movimentos de seu

repertório, graduando suas qualidades (FERNANDES, 2006), definidas por Laban7

(1978) por meio dos fatores do movimento: fluência, espaço, peso e tempo.

A atitude interna, que, segundo Laban (1978), são os impulsos internos dos quais

se origina o movimento, alterou-se no decorrer do processo citado. Rengel (2005),

ancorada nos estudos de Laban, elucida que a atitude interna é a “intenção de quem se

move em relação ao espaço, tempo, peso e fluxo, criando ritmos e nuances”. E foram as

nuances de movimento – gradação das qualidades do movimento labaniano – que

aumentaram a minha percepção de como e de onde o movimento surgia, desencadeando

um efeito dominó em tempo lento, que me estimulou a criação e a pesquisa de

movimento na dança, aguçando e ampliando a percepção de si. Porém, apesar do tempo

lento de entendimento e maturação da escuta dos impulsos internos, a ansiedade, por

7 Os quatro fatores do movimento estão conceituados, no estudo de Laban, como parte integrante

da Eukinética, que é o estudo dos aspectos qualitativos do movimento. Sendo a Eukinética, por sua vez,

parte integrante da Teoria dos Esforços (RENGEL, 2005, p. 62). Estes conceitos serão apresentados com

maior especificidade no capítulo II desta dissertação. Momento em que será descrita a aplicação prática

desta pesquisa, juntamente com os conceitos que foram utilizados como base teórico-metodológica.

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vezes, me tomava, deixando-me em um estado de oscilação ora acelerado ora “puxando

o freio”.

O processo coreográfico de “Rio Cor de Rosa” foi e continua sendo, para mim,

de extrema importância para o entendimento do movimento na dança. Este processo

aparecerá nesta dissertação como o alinhave de uma costura, ligando a pesquisa às

memórias, o entendimento passado ao entendimento presente, emergindo e

submergindo para ampliar a construção de pensamento neste processo prático-teórico.

Decorrente dessa costura textual, não seguirei uma ordem cronológica fechada dos

fatos. As memórias de infância e do início da jornada na arte da dança se fundem de

maneira a construir o pensamento desta pesquisa, respeitando e assumindo o tempo

lento como um tempo imprescindível para o entendimento aprofundado do

conhecimento do corpo e da dança.

No decorrer dos anos de 2009 e 2010 e nos anos seguintes 2011, 2012 e 2013,

com a continuação da prática diária da/na dança, tanto na EDTAM e na CDTAM, quanto

na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) no curso de licenciatura em

dança, pude criar quatro solos, um em cada respectivo ano.

Os quatro solos criados, a meu ver, mostram a ampliação do entendimento na

dança, do movimento, do corpo, que mergulhado nos conhecimentos prático-teóricos da

dança construíam o intérprete-criador Juarez Moniz.

Em 2010, circulei com o solo intitulado “Sem que eu soubesse”, sendo esse o

meu primeiro experimento coreográfico, que vinha em processo desde julho de 2009,

quando retornei da cidade de Joinville em Santa Catarina, onde participei do Festival de

Dança de Joinville. Neste momento, seis meses antes do processo com Clébio Oliveira,

foi a primeira vez, desde 2007, que algo em relação ao meu corpo, a minha dança,

mudava. A volta de Joinville fechava um ciclo de três viagens por festivais de dança

com a CDTAM. Pude ver diversos corpos se movendo, inúmeras nuances de movimento,

em diferentes técnicas em dança. Retornei em grande ebulição criativa, criando, assim,

o solo “Sem que eu soubesse”.

No ano de 2011, circulei com o solo intitulado “Precisei falar, desculpa!” que

teve seu processo de criação iniciado em outubro de 2010. Este solo foi a minha

segunda experiência enquanto intérprete-criador, e foi criado após a experiência com

Clébio Oliveira. Do primeiro solo para o segundo, houve uma transição, tanto minha

quanto da CDTAM. A companhia passava por uma transição na concepção de seus

espetáculos. “Rio Cor de Rosa” foi a primeira peça inteira de seu repertório, com 40

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minutos. Antes, a concepção coreográfica se dava em trabalhos de no máximo 12

minutos.

Figura 1 – Solo “Sem que eu soubesse” (2010)

Fonte: Festival de Dança FENDAFOR (2012).

Figura 2 – Solo “Precisei falar, desculpa!” (2011)

Fonte: Reginaldo Azevedo (2011).

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Durante esses dois anos (2010 e 2011), especificamente, o processo de

entendimento e maturação das informações que recebi ao decorrer do processo

coreográfico “Rio Cor de Rosa”, nos festivais de dança que participei e durante o dia-a-

dia na dança reverberou no meu corpo em forma de uma inquietude avassaladora. Dada

a aceleração, fazendo-me em alguns momentos pular etapas importantes no

entendimento do movimento dançado. Etapas que necessitavam de um tempo mais

alargado, um tempo lento de apreciação.

Por mais que tentasse diminuir a velocidade e graduar as qualidades do

movimento nos solos e no processo coreográfico citado, a urgência em ter algo novo

para mostrar aos colegas de trabalho e a mim mesmo, juntamente com a vontade de

dançar cada vez mais, na busca pelo entendimento das qualidades labanianas do

movimento, me impediam de enxergar que era justamente na urgência que se tinha que

tomar o maior fôlego.

Tal urgência em entender o movimento dançado em meu corpo me fazia em

vários momentos pular etapas importantes no entendimento qualitativo do movimento.

A respiração, por exemplo, era muito contida, dificultando um possível entendimento da

nuance qualitativa do fator fluência.

A historiadora Denise Sant’Anna (2001) faz algumas reflexões sobre a

supervalorização do corpo humano, acompanhado por sua intensa exploração comercial,

onde o imperativo da beleza e da saúde perfeita, assim como a onipresença da

mobilidade corporal, é incessantemente alimentado pelo risco do descarte e do

isolamento. A autora nos mostra um exemplo muito claro de pulos de etapas quando

exemplifica a mudança do meio de locomoção nas viagens na contemporaneidade.

Passando da contemplação das paisagens no trem, para a imagem acelerada e borrada

das viagens nos automóveis:

[...] com a banalização das viagens em automóveis particulares e o advento

das estradas de rodagem, o desaparecimento de paisagens e de cidades

inteiras se acelera: “antes, para ir de Paris para Essoyes”, conta Jean Renoir,”

pegávamos um trem expresso até Troyes, onde aguardávamos a partida de

outro trem, que nos levava a Poliseot”. Enquanto esperava, a família Renoir

podia passear por Troyes e contemplar as esculturas e suas igrejas. Mas, ao

decidir viajar de automóvel, essa parada foi suprimida. Troyes deixou de

fazer parte da viagem (SANT’ANNA, 2001, p. 14).

Este relato de Jean Renoir, descrito por Sant’Anna, transposto para os meus

relatos e experiências na dança, tem total relevância na medida em que percebo em mim

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os pulos nas etapas de entendimento qualitativo do movimento dançado. A aceleração

dos movimentos me fazia cortar os caminhos e perder o ar, pulando as terminações e

transições dos movimentos deixando de respirar em totalidade.

Decorrente desses processos em minha trajetória artística, versarei neste capítulo

sobre a escolha da lentidão como um fator metodológico da pesquisa. Presente na

aplicação prática, na criação e na escrita. Para vislumbrar uma arte que se quer

significativa e não qualquer (CALDAS, 2010 apud LEAL, 2012)8. Para compreender a

lentidão como sinônimo de sabor, de saber, de saborear (LEAL, 2012). E para assumi-la

como um espaço-tempo potente de emersão9 do conhecimento do corpo em/na dança.

Entender a lentidão como:

[...] perspectiva de uma linguagem que se constrói aos poucos e no profundo,

pouco a pouco assimilada, conhecimento do corpo. Saber que se constrói na

vivência mais integra e não apenas no acúmulo quantitativo ou no consumo

de uma multiplicidade de informações. Corpo que não busca ansiosamente a

superação de seus limites, mas que os reconhece, considera e, sob essa

perspectiva, gera a transcendência (LEAL, 2012, p. 125).

Para compreender a lentidão como uma linguagem que se constrói aos poucos e

profundamente, caminharei pelas trajetórias feitas até o presente momento desta escrita

para localizar o que me fazia pular as etapas do entendimento do movimento dançado.

Relatarei vivências da minha infância, para, assim, perceber a velocidade oscilante que

me fez chegar até o processo coreográfico “Rio Cor de Rosa” (2010) e perceber que a

velocidade do corpo que dança pode desacelerar construindo um conhecimento acerca

do corpo na dança, chegando, assim, ao entendimento de lentidão utilizado nesta

pesquisa.

“A febre da velocidade cria liberdades novas, mas fabrica agonias singulares”

(SANT’ANNA, 2001, p. 14). A autora me faz enxergar com esta frase a prisão na qual

me encontrava em relação ao entendimento do corpo na dança. Estava preso a uma

8 Leal (2012) utiliza o termo qualquer de Caldas (2010), apresentando-o como uma concepção

associada à dança contemporânea, onde a discussão sobre esta concepção vem se aprofundando. “Caldas

(2010) apresenta a beleza dessa concepção, a princípio, numa perspectiva em que qualquer movimento,

de qualquer corpo, em qualquer espaço pode se transformar em dança, uma ideia ligada à potência, à

experiência de novas corporeidades, novas gestualidades, contudo o autor também critica essa indistinção,

como uma possibilidade de banalização. Atenho-me a essa crítica na escolha do significativo (LEAL,

2012, p. 125)”. Utilizo o termo nesta pesquisa comungando com a crítica feita por Caldas (2010), para

significar o termo, assim como utilizou Leal (2012). 9 Utilizo a palavra emersão compreendendo-a como movimento (s) de um corpo que sai de um

fluido/estado no qual estava mergulhado.

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liberdade velada10

e ao entendimento da dança através da velocidade, e não entendia as

repetidas vezes que percebia as agonias decorrentes dos movimentos desconexos,

rápidos e muitas vezes difíceis de controlar, por estarem em uma velocidade acelerada

constante.

É importante deixar bem claro que, para mim, o movimento mais rápido e

acelerado é também importantíssimo para a construção do bailarino, coreógrafo,

professor, entre outros moventes da dança. Mas, a utilização desenfreada da velocidade,

e somente dela, causa agonias e um falso entendimento de liberdade no movimento.

Precisei passar por tudo isso para hoje entender e perceber que posso ir por outros

caminhos que não apenas o da velocidade rápida.

Dessa forma, percebo que entre os anos de 2010 e 2012 iniciei um processo de

entendimento perceptivo da desaceleração. Começando assim a entender que

desacelerar me proporcionava experimentar a totalidade da respiração e aguçava meu

corpo para perceber as nuances qualitativas do movimento dançado.

No processo coreográfico “Rio Cor de Rosa” (2010), ouvia do coreógrafo Clébio

Oliveira que a respiração ajudava ao movimento acontecer de forma mais fluida e

sinuosa. Porém, foi no processo coreográfico do solo “Otelo” (2012), de minha criação,

que comecei a vislumbrar a respiração que tanto ouvia Oliveira estimular. Foi nesse

momento que comecei a entender corporalmente as mudanças de qualidade do

movimento dançando, que, por vezes, visualmente, já percebia no corpo de alguns

bailarinos da CDTAM, como as bailarinas Anádria Rassyne, Andreia Melo e Margoth

Lima e no corpo do coreógrafo Clébio Oliveira, quando demostravam os movimentos

ao dançar.

No ano de 2012, com a criação e circulação do solo intitulado “Otelo” pude

então começar a perceber, concretizar e corporificar o entendimento da potência da

pausa na dança e da gradação das qualidades do movimento. O solo “Otelo” foi a

terceira mudança perceptiva das qualidades do movimento. Como citei anteriormente, a

primeira foi quando voltei em 2009 do Festival de Dança de Joinville (SC), culminando

na criação do solo “Sem que eu soubesse”. E a segunda mudança foi o processo

coreográfico “Rio Cor de Rosa”, quando pude experimentar e ser atravessado pelo lindo

sabor das nuances do movimento dançado.

10

O termo “liberdade velada” diz respeito a minha auto vigília em relação ao que fazia e pensava

sobre a dança, onde o imperativo do acerto e do erro ofuscava a percepção de um processo de construção

em dança, seja ele criativo ou pedagógico, mais lento e aprofundado.

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Se em 2010 Clébio Oliveira divide a história da CDTAM e a minha em antes e

depois de Rio Cor de Rosa, em 2012 o trabalho coreográfico “Otelo” me proporciona

olhar para trás e ver as oscilações de velocidade e entendimento do movimento. Olhar

ao mesmo tempo para frente, e perceber que daquele momento em diante a minha visão

em relação à dança mudava e precisava de outras fontes qualitativas para entendê-la

melhor. O ano de 2012 foi uma pausa que me suspendia, me fazendo experimentar

nuances, sendo o elo entre os extremos. Olhava para os anos de 2007 a 2011 e via um

artista que facilmente acessava o que Ciane Fernandes (2006) elucida como Polaridade

Condensada: fluxo contido, espaço direto, peso forte, tempo acelerado. Em 2012, as

informações até então adquiridas me deixaram em um estado reflexivo muito potente de

percepção de si, do outro e da dança.

No ano de 2013, deu-se início à experimentação consciente da Polaridade

Entregue: fluxo livre, espaço indireto, peso leve, tempo desacelerado (FERNANDES,

2006). Percebo essas qualidades nos anos anteriores, porém, elas são evidentemente

mais acessadas a partir da criação e circulação do solo intitulado “Elo” (2013), foi neste

processo coreográfico que comecei a vislumbrar a desaceleração como um

conhecimento potente de formação cênica e corporal que se constrói profundamente.

O nome “Elo” significava naquele momento a compreensão e entendimento

perceptivo do que meu corpo vinha maturando – em relação à dança – durante seis anos.

É neste solo que a desaceleração se presentifica, tanto na movimentação mais

degustada, quanto pela escolha da trilha sonora. Pela primeira vez em minhas

composições utilizei música clássica. Antes as trilhas eram feitas por colagem musical,

pedaços, fragmentos, que unidos formavam a música. A sonata número 05 em Fá maior,

para violino e piano, de Beethoven, em “Elo”, se funde aos movimentos e à respiração

em sua totalidade. Sendo a respiração a condutora dos movimentos neste solo. É ela que

faz com que a palheta de cores do movimento dançado se abra em cores outras,

nuances, em cores entre.

O entendimento da construção do conhecimento pela desaceleração aguçou-se

ainda mais com a leitura da tese da bailarina e pesquisadora em dança, Patrícia Leal

(2012). Especificamente no capítulo Tessitura Aromática Saborosa, Leal nos traz, no

último tópico, o entendimento de um saber que se constrói aos poucos e profundamente.

Vislumbra e convida-nos a sentir o sabor da lentidão, aguçando nossos sentidos e

ampliando nossa percepção acerca do conhecimento do corpo, da dança.

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Figura 3 – Solo “Otelo” (2012)

Fonte: Leila Bezerra (2013)

Figura 4 – Solo “Elo” (2013)

Fonte: Reginaldo Azevedo (2013).

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“Se a velocidade dota a natureza e as coisas de uma mobilidade inusitada, a

lentidão realça a força de sua presença, tornando incontornáveis as singularidades da

paisagem” (SANT’ANNA, 2001, p. 17). Esta frase traduz a transição feita ao decorrer

dos processos coreográficos dos solos que criei mencionados anteriormente. Sair de

uma natural mobilidade inusitada (por vezes frenéticas) para uma escolha consciente da

lentidão, em meu caso, demostrava certa maturidade em relação ao movimento dançado,

atestando inclusive que a prática diária da dança na CDTAM e na EDTAM se fundia

fortemente com toda leitura que fazia dos textos indicados pelos docentes do curso de

licenciatura em dança na UFRN.

Diante das vivências e leituras na/da dança, começo a me perguntar: “qual é o

sabor da lentidão?”. Ao fazer-me esta pergunta, percebo que para respondê-la preciso

olhar para trás e ver que a resposta vem se construindo durante o meu percurso de vida,

de arte. Nas vezes que a lentidão me foi posta para o deleite e que pela velocidade

frenética do imediatismo foi anulada. Nas vezes que a vislumbrei e a recusei por julgar

perda de tempo. E nas vezes que a percebi, experimentei e entendi sua importância,

considerando-a assim tempo ganho.

No segundo tópico deste capítulo, retomarei os meus passos percebendo os

rastros da formação em dança deixados nos caminhos que percorri, nos movimentos que

dancei, nas aulas que ministrei, nos cursos que participei, nos palcos que me permitiram

expandir, nos conhecimentos que adquiri nos processos de criação em dança. Gerou a

percepção de uma arte que se constrói aos poucos, que se dá a entrega, que se

movimenta gerando movimento que move o ser integralmente.

O sabor da lentidão pode ser notado na história da CDTAM, assim como venho

relatando na minha trajetória, sendo um potente desencadeador da percepção cênica,

trazido por coreógrafos como: Clébio Oliveiro, Mário Nascimento, Roseane Melo,

Wanie Rose, entre outros. Citarei alguns trabalhos coreográficos para elucidar o sabor

da lentidão na trajetória cênica da Companhia. As coreografias que serão mencionadas

nos próximos parágrafos fazem parte do repertório da CDTAM.

Na coreografia “Éramos cinco, em um 5x5, na Figueiredo Magalhães” (2003),

de Clébio Oliveira, os movimentos são amplos, rápidos e dilatados em um espaço

cênico reduzido, sendo possível presenciar a potência cênica da pausa. Diante das

inúmeras explosões de movimento, um dos nove bailarinos em cena desloca-se no

espaço quase que imperceptivelmente. Em um tempo muito lento e controlando a sua

fluência ao máximo, aquele corpo se faz pausa no espaço. “Éramos cinco” tem uma

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gradação da velocidade indo dos picos mais velozes até os mais lentos e um controle da

fluência que por vezes se configura na pausa, perpassando as qualidades de espaço,

direto e/ou focado até indireto e/ou multifocado (RENGEL, 2005).

As qualidades de espaço, tempo e fluência se repetem em combinações no

trabalho coreográfico “Não quero falar sobre isso agora” (2004). Clébio Oliveira retoma

a questão da limitação espacial e torna arte as combinações dos fatores labanianos

citados. A visualização da velocidade e da pausa também acontece nos trabalhos

coreográficos “Trilhas” (2000) e “Ritual de Festa” (2002) do coreógrafo Mário

Nascimento.

Percebo que a velocidade, enquanto qualidade de movimento e enquanto

processo formativo, veio oscilando dentro dos processos coreográficos da companhia e

por consequência nos corpos dos bailarinos. Outro ponto de grande observação da

oscilação da velocidade dentro da companhia são as aulas de preparação técnica e

corporal, fazendo com que o conhecimento seja construído de forma gradual e

profundamente.

As aulas são de diversas técnicas em dança e de preparação corporal: dança

contemporânea, balé clássico, capoeira, dança de rua, dança de salão, dança moderna,

jazz, pilates, danças populares (folclóricas), técnica vocal e condicionamento físico,

sendo o balé uma das técnicas em dança mais utilizadas pela companhia. Em meados

dos anos 2000, a companhia era responsável pelos papéis principais e pelo corpo de

baile dos espetáculos de encerramento do ano letivo da EDTAM, desde 2002 a escola

remonta os clássicos de repertório como, Don Quixote, O Lago do Cisne, A Bela

Adormecida, O Quebra-Nozes, entre outros. Porém, no decorrer dos anos o foco da

CDTAM foi se voltando cada vez mais para a dança contemporânea.

O balé clássico, assim como percebo acontecer em outras companhias de dança

contemporânea no Brasil, há um tempo, é mais uma técnica de manutenção do preparo

físico, com o intuito de preparar os corpos e não adestrá-los, no sentido a que Foucault

(2014), por exemplo, se refere.

Houve, durante a Época Clássica, uma descoberta do corpo como objeto e

alvo de poder. Encontraríamos facilmente sinais dessa grande atenção

dedicada então ao corpo – ao corpo que se manipula, modela-se, treina-se,

que obedece, responde, torna-se hábil ou cujas forças se multiplicam [...] uma

teoria geral de adestramento, no centro dos quais reina a noção de

“docilidade” que une ao corpo analisável o corpo manipulável (FOUCAULT,

2014, p. 134).

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Determinadas aulas de técnica clássica em dança tem como eixo primordial o

adestramento ao invés da arte. Digo determinadas, pois tudo depende de quem ensina

esta técnica e como é ensinada. As rigorosidades na transmissão da nomenclatura e dos

movimentos extremamente codificados, por vezes, ofuscam a arte da dança, gerando

assim, pessoas com movimentos engessados, presas dentro de uma couraça de

codificações que esquadrinham ao máximo o tempo, o espaço, os movimentos,

obediência e disciplina.

Esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo,

que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação

de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar as “disciplinas”. Muitos

processos disciplinares existem há muito tempo: nos conventos, nos

exércitos, nas oficinas também. Mas as disciplinas se tornaram no decorrer

dos séculos XVII e XVIII fórmulas gerais de dominação. [...] O corpo

humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o

recompõe. Uma “anatomia política”, que é também igualmente uma

“mecânica do poder” [...] ela define como se pode ter domínio sobre o corpo

dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que

operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se

determinam. A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados,

corpos “dóceis” (FOUCAULT, 2014, p. 135).

Por outro lado, existem pessoas que transmitem a arte da dança clássica com

consciência de que ali são corpos em processo de maturação de entendimento de si e

que a técnica clássica está para somar neste entendimento. Muda-se desta forma a

obediência e o medo pelo respeito e a gratidão, mudando não só as palavras, mas o

entendimento que dança é arte. Levando em consideração o ser humano como um todo

e não o reduzindo a palavras francesas e a “passos” codificados, sobrepostos em

sequências intermináveis, que alimentam muito mais o ego do modelo professoral do

que o entendimento consciente de quem pratica esta arte secular.

O trabalho de preparação corporal em algumas companhias de dança tem a

dança clássica como a linguagem que visa somar com o processo de formação do

artista, atuando como preparação para a interpretação em determinados trabalhos do

repertório da companhia, que tem, por sua vez, movimentos que são trabalhados em

aulas de dança clássica.

Em outras duas companhias brasileiras de dança contemporânea, a Quasar Cia

de Dança, da cidade de Goiânia/GO (28 anos), e o Grupo Primeiro Ato (34 anos), da

cidade de Belo Horizonte/MG, percebo que a técnica clássica em dança é utilizada

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como preparação corporal, buscando transcender um possível engessamento que esta

técnica possa proporcionar.

Demanda tempo e maturidade para degustar a lentidão. Ela pode até ser provada

no início da trajetória, mas por vezes é anulada pelo sabor urgente e imediato da

velocidade, do treinamento que visa unicamente à perfeição.

Identificar e, acima de tudo, perceber a oscilação da velocidade, de mais

acelerado e frenético para mais lento e degustado em minha trajetória artística, são de

extrema importância para enxergar onde e por quanto tempo vislumbrei a velocidade

rápida e imediata como um meio mais breve de acumular conhecimento. Sim, acumular,

pois me foi ensinado, tanto em casa quanto na escola regular, a acreditar que o

imediatismo de assimilar coisas e situações e o consumismo de tudo que fosse prazeroso

eram a fórmula certa para o acúmulo de coisas, pessoas e sentimentos.

Tempos atrás na minha trajetória artística, a quantidade de informação e

movimento tinha muito valor. Pois, quanto mais aulas eu fizesse e quanto mais

coreografias eu dançasse, mais me proporcionava uma sensação de vivacidade, de um

corpo que estava em constante mobilidade. Entretanto, a quantidade foi aos poucos

perdendo seu encanto á medida que experimentava e percebia as nuances qualitativas do

movimento dançado em meu corpo, e á medida que entendia a desaceleração como

possibilidade latente de conhecimento qualitativo do corpo na dança.

Foi a partir do reconhecimento de um corpo dotado de aceleração, que

vislumbrei a desaceleração como um tempo lento de aprofundamento dos

conhecimentos. Não mais visando à quantidade de informações e seu acúmulo, mas sim

sua qualidade, e reconhecendo, porém, que este espaço/tempo de velocidade foi de

extrema importância para entender e reconhecer que desacelerar era necessário e

imprescindível para entender o meu corpo e a arte da dança. Para depois, acelerá-la com

uma respiração profunda, o sabor acentuado pelo prazer de degustar cada movimento, e

pela consciência de ter entendido e percebido que a dança é muito mais que acelerar e

desacelerar.

Abro aqui um convite para degustar os charmes da dança que vislumbrei durante

nove anos de caminhada artística e das histórias de infância que me construíram.

Caminhada esta que continua ao decorrer da escrita desta dissertação. Pois seria, para

mim, impossível escrevê-la estando afastado dos processos, da sala de aula da EDTAM,

do trabalho corporal diário da CDTAM, dos palcos, do sabor inigualável que é acelerar e

desacelerar, percebendo as qualidades expressivas do movimento dançado, e que a cada

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movimento que danço, a ampliação da escrita se dá de forma íntegra. Com o sabor

inconfundível da lentidão.

1 – Entre a infância e o ontem.

Nascido no final da década de 80 do século XX, pude desfrutar de um privilégio

quase extinto nos dias de hoje: as brincadeiras de rua. As crianças do bairro Santarém

(bairro onde cresci e vivi toda a minha infância e adolescência, na zona norte da cidade

do Natal - RN), se encontravam em forma de barulho e êxtase para compartilhar

vivências que se transfiguravam em potentes diálogos de movência. Bandeirinha,

esconde-esconde e tica-tica (pega-pega) foram algumas das brincadeiras que me

permitiram experimentar o movimento de forma muito intensa, potente e

descompromissada.

O movimento seja ele brincante, esportivo ou dançante foi muito presente em

minha infância, tanto pelas brincadeiras de rua e danças apresentadas a mim pela escola,

quanto pelas modalidades esportivas que pratiquei, como: handbol, voleibol, natação,

atletismo e karatê. Cair, girar, correr, esgueirar, arrastar, puxar, lançar, empurrar, por

exemplo, foram algumas ações que ampliaram minha memória motora, afetiva e

cognitiva, devido à gama de possibilidades de experimentação do movimento e de

encontros, interações e brincadeiras. Tive esse privilégio ao longo de uma infância,

quando o movimento brilhava o olho, em descargas oscilantes e prazerosas de endorfina

e adrenalina.

Jean-Yves Leloup (2009) afirma “o corpo é nossa memória mais arcaica. [...]

acontecimentos vividos, particularmente na primeira infância e também na vida adulta,

deixa no corpo sua marca profunda” (2009, p. 15). Somos aprendizes multissensoriais e

usamos de maneira constante os nossos sentidos para aprender mais sobre o ambiente

em que vivemos. As memórias são adquiridas num certo grau de estado emocional.

Gravamos melhor, e temos muito menos tendência a esquecer, as memórias de alto

conteúdo emocional (GALLAHUE, 2013; IZQUIERDO, 2004). Desta forma, carrego

marcas profundas que se traduzem em momentos de comemoração. Momentos que

estão entrelaçados nas vísceras, na carne, nos ossos, em cada terminação nervosa, de

forma íntegra. Pois comemorar é lembrar junto, é lembrar como um todo por mais que

não se lembre de tudo.

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A afirmação de Leloup (2009) me faz recordar das inúmeras vezes que utilizei

registros do atletismo, do karatê, do handboll e das brincadeiras de rua para ampliar o

gesto na dança. Essa ampliação era o momento de transfiguração do gesto atlético,

brincante, para uma ressignificação do gesto dançado, que não deixou de ser nem

brincante nem atlético, mas conquistaram outras cores e formas, outros meios e outros

sentidos.

A pesquisadora em dança, Isabel Marques, nos apresenta em seu livro

Linguagem da Dança: arte e ensino (2010), a expressão freireana “impregnar de

sentido”, por meio da qual ela explana que o “sentido” só se configura nas teias traçadas

pelas relações sociais, pelos atos políticos, pelas produções e vivências culturais. Sendo

as teias de relações que constroem sentido, que “impregnam de sentido cada ato

cotidiano”. Para que entendamos o corpo como memória mais arcaica, penso que

devemos impregná-lo de sentido. Ter noção de que cada gesto, cada palavra, cada

expressão carrega consigo um sentido ou combinações de sentidos.

Tecerei no decorrer dos próximos parágrafos uma rede de comunicação para

ampliar a expressão freireana e a visão de Marques (2010) acerca do sentido,

culminando na arte da movência, a dança.

O pesquisador João Francisco Duarte Junior (2001) amplia o sentido do(s)

sentido(s) quando diz que:

Tudo aquilo que é imediatamente acessível a nós através dos órgãos dos

sentidos, tudo aquilo que é captado de maneira sensível pelo corpo, já carrega

em si uma organização, um significado, um sentido [...]. De pronto ao longo

da vida aprendemos sempre com o “mundo vivido”, através de nossa

sensibilidade e nossa percepção, que permite nos alimentarmos dessas

espantosas qualidades do real que nos cerca: sons, cores, sabores, texturas e

odores, numa miríade de impressões que o corpo ordena, na construção do

sentido primeiro. O mundo, antes de ser tomado como matéria inteligível,

surge a nós como objeto sensível (2001, p. 14).

O bebê, desde o momento do nascimento, aprende a interagir com o ambiente.

Uma interação perceptiva assim como o processo motor. “A percepção refere-se a

qualquer processo em que informações sensoriais são interpretadas ou recebem

significado em relação ao que está ocorrendo com a própria pessoa” (GALLAHUE,

2013, p. 174). Já na infância a brincadeira é uma forma que as crianças têm de

impregnar de sentido o mundo ao redor, para aprender sobre seus corpos e suas

potencialidades de movimento. O impregnar de sentido se dá durante toda a vida, pois

necessitamos dar sentido aos acontecimentos, as pessoas, as coisas, para que assim o

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mundo vivido tenha sentido e se torne fonte de conhecimento amplo e constante, através

da nossa sensibilidade e percepção.

Diante desta construção do pensamento, o filósofo Maurice Merleau-Ponty, que

está na reflexão de Duarte Junior sobre o sentido do sentido, nos possibilita refletir mais

acerca do dar sentido, quando nos demostra sua visão de mundo.

Tudo o que sei do mundo, mesmo devido à ciência, o sei a partir de minha

visão pessoal ou de uma experiência do mundo sem a qual os símbolos da

ciência nada significariam. Todo o universo da ciência é construído sobre o

mundo vivido, e se quisermos pensar na própria ciência com rigor, apreciar

exatamente o seu sentido e seu alcance, convém despertarmos primeiramente

esta experiência de mundo da qual ela é expressão segunda (MERLEAU-

PONTY, 1999, p. 6).

A Professora Doutora Terezinha Petrucia da Nóbrega (2009) elucida como o

corpo é visto em uma abordagem fenomenológica, sendo nele, ou seja, em nós, que os

sentidos fazem sentido:

O corpo não é objeto, formado por partes isoladas ou que se relacionam por

mecanismos lineares de causa e efeito. O corpo ocupa o espaço e o tempo de

um modo singular, próprio. Trata-se de uma especialidade diferenciada, por

que é expressiva tal qual a obra de arte (NÓBREGA, 2009).

Nessa perspectiva, Nóbrega nos diz ainda, que essa relação com o sensível

configura a dimensão estética do corpo em Merleau-Ponty, na qual se toma como

referência para refletir a possibilidade de eleger o corpo como campo de conhecimento

e de reflexão.

As experiências vividas por cada pessoa resultam em uma gama perceptiva do

mundo ao redor, que perpassam o corpo e através dele produzem sentido. Ao

assistirmos uma peça teatral, uma ópera, um espetáculo de dança, somos bombardeados

de símbolos cênicos que de algum modo fazem sentido para quem assiste, e também,

para quem atua. Damos sentido a esses símbolos a partir da nossa visão pessoal e das

nossas experiências e quando algo, aparentemente, não faz sentido pra nós, costumamos

ficar desinteressados ao ponto de desviar a nossa atenção para algo que nos faça sentido.

Mark Johnson (2007) vem ampliar esse entendimento do sentido que perpassa o

corpo quando diz ser a significação uma conexão entre presente, passado, futuro – atual

ou possível. O autor defende que a significação seja pautada primeiramente em nossa

experiência sensório-motora. Não sendo a significação “o desvendamento de um objeto

fixo no mundo, ela depende das nossas experiências e da capacidade de integração

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específica entre corpo, mente e ambiente” (JOHNSON, 2007 apud FIQUEIREDO,

2010, p. 147).

Através do movimento, nós aprendemos não só os contornos e as qualidades

do nosso mundo, mas também o sentido de nós mesmos como habitantes de

um mundo com o qual podemos interagir para alcançar alguns fins e

objetivos (JOHNSON, 2007, p. 27 apud FIQUEIREDO, 2010, p. 148).

Esses conceitos e pensamentos de Merleau-Ponty (1999), Nóbrega (2009) e

Johnson (2007) mostram que na dança essa significação, esse sentido, é dada a todo

instante através dos movimentos dançados que são frutos da experiência individual com

o mundo, sendo cada movimento uma impregnação de sentido única. Mesmo quando

vemos um corpo de baile dançando a obra clássica Giselle (1841), por mais uníssono

que pareça cada corpo ali presente, está impregnando a dança com um sentido próprio, o

sentido de suas experiências vividas, que se concretizam no movimento dançado, no

corpo.

Marques (2010), Duarte Jr. (2001), Merleau-Ponty (1994), Johnson (2007) e

Nóbrega (2009) vêm nos mostrar que o saber sensível perpassa o corpo, aguça sua

percepção do mundo, amplia-o e gera a transcendência, dando mais sentido ainda à

expressão freireana “impregnar de sentido”. Na área de conhecimento da dança, o corpo

está nesta perspectiva a todo o momento, olhando e sendo olhado, tocando e sendo

tocado, produzindo significado e significando, sendo sentido e dando sentido a quem

experimenta; tanto na concretização do movimento dançado, quanto na apreciação

estética desta arte que nos deixa em estado de movência. Um estado profundo de

assimilação através do movimento motor, afetivo e cognitivo.

A dança é uma área de conhecimento potente de combinações de sentido, de

reunião de memórias, de gestos políticos, de relações sociais, de produção e de vivência

cultural. E foi na escola regular, onde estudei quando criança, que muita coisa fez

sentido pra mim, e onde outros sentidos levaram anos para serem compreendidos.

Sempre estive envolvido nos eventos da escola que tinham a dança como

linguagem: quadrilhas juninas, festa do dia das mães e do dia dos pais, dia do índio, dia

do folclore, entre outras datas. Esses momentos de “comemoração” eram para mim,

possibilidades de estar em movimento constante, além de poder rechear os movimentos

com a intenção dada a cada data comemorativa. De fato, o sentido desses eventos, para

mim, era o do movimento, e não o de comemorar, pois não entendia como se

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comemorava algo em um dia somente e depois só se falaria no assunto novamente no

ano seguinte.

O sentido que eu dava para o movimento dançado era de uma rica possibilidade

de expressão, de respiração e de criatividade. Até o momento era podado e obrigado a

ver tudo somente da forma que a professora configurava, descartando as preciosas

possibilidades que se poderia construir para se ensinar algo, fez parte de um potente

diálogo de construção processual do Ser em formação.

O processo de ensino e aprendizagem da dança na escola em que estudava

quando criança se dava pelo método das “copiografias11

”. Em um processo veloz, as

professoras do ensino infantil traziam estruturas coreográficas prontas, e nos passavam

com a mesma velocidade em que eram cobradas pela diretora, devido ao tempo curto

destinado para o aprendizado de tais coreografias. Não havia – e em muitos lugares

ainda não há – um tempo longo e um espaço adequado para que os alunos aprendessem

a “dancinha”, termo usado pelo corpo docente da escola.

Márcia Strazzacappa (2012), refletindo sobre o ensino da dança e sobre a

formação do professor de dança, nos apresenta uma situação em que, por parte do

alunado, nas academias de dança e nas escolas formais, há um desejo por resultados

imediatos, instantâneos e, com isso, pouca compreensão de que em arte o tempo é

expandido, dilatado. Reflito sobre o tema e estendo esse desejo e essa urgência para

alguns professores, que muitas vezes estão presos no imediatismo e na rapidez que se

sobrepõe à ponderação e à contemplação. Parte devido à frenética aceleração dos

tempos modernos e parte pela fraca atuação e compreensão na sua própria área de

conhecimento, a dança.

Os desafios estão postos: a (difícil) compreensão por parte de professores e

de gestores sobre o papel da dança na educação de crianças e adolescentes; a

inadequação de infra-estrutura para as aulas de dança na escola formal; a

escassez de práticas corporais na infância, na adolescência e na juventude; a

virtualidade sobrepondo a realidade; [...] Esses desafios só reafirmam que a

dança, como conhecimento paulatinamente cunhado no corpo, pelo corpo,

para o corpo, que desenvolve a consciência do indivíduo sobre si, sobre os

outros e sobre o meio, deve, mais do que nunca, se fazer presente na

educação das pessoas (STRAZZACAPPA, 2012, p. 30).

11

Copiografias são coreografias copiadas da televisão, internet (redes sociais, hoje em dia).

Modelos prontos, que nos impediam de questionar e de vivenciar o processo de construção coreográfica.

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A dança era vista (pelos professores da minha infância) – e ainda é (por alguns

professores) – como possibilidade de entretenimento pontual durante o ano letivo.

Naquela época dançávamos e íamos para casa, com uma sensação de querer voltar, de

querer ficar em estado de dança.

Vale ressaltar que dançar na escola, e principalmente no nordeste brasileiro12

,

trazia (ainda traz?) consigo um grande paradoxo de uma cultura que só permite ao

homem (menino) dançar enquanto ele estiver dentro dos moldes estabelecidos. Ou seja,

somente cabia ao homem dançar em quadrilhas juninas. Qualquer outra forma de

expressão pelo movimento através da dança era (será que ainda não é?) motivo de

amplo debate sobre a sexualidade do indivíduo.

Lembro-me do grande constrangimento que foi, para mim, dançar pela primeira

vez em uma quadrilha junina na escola. Misturado com a alegria de dançar, estava o

constrangimento de um garoto de oito anos em fazer o papel de um soldado gay no

tradicional casamento das quadrilhas juninas. Em uma cultura machista que prima a

virilidade, um menino de oito anos dava vida a um soldado que era gay. No momento

da quadrilha só pensava o que meu pai iria achar daquilo e como todos iriam me ver

depois daquele dia. Recordo da professora em meu ouvido dizendo: “vai, mais

afeminado, deixa a voz mais feminina. Vai Juarez, você é um soldado gay!”. Naquele

momento, pouco importava a dança ou suas contribuições para o desenvolvimento

motor, cognitivo, afetivo do Ser. A professora e a grande maioria das pessoas ali

presentes queriam ver o estereótipo, sem enxergar e perguntar como o menino de oito

anos via tudo aquilo, como ele se sentia.

O forte pré-conceito em relação à dança é um motivo, inclusive, para muitos

professores (as) darem outros nomes às suas atividades com a dança

(“expressão corporal”, “educação pelo/do movimento”, “arte e criação”,

“movimento e criação”, etc.) que, em última instância, mascaram suas

intenções [...]. Não são poucos os pais de alunos, e os próprios alunos, que

ainda consideram a dança “coisa de mulher”. Em um país como o nosso, por

que será que esta visão de dança ainda é constante? Digo em um país como o

nosso pensando nos inúmeros grupos e trios elétricos dançantes formados

majoritariamente por homens durante o carnaval, nas danças de salão que o

Brasil exporta, nas danças de rua, na capoeira, entre tantas outras

manifestações em que a dança não está associada ao corpo delicado da

bailarina clássica, mas, ao contrário, à virilidade e à força, à identidade

cultural e racial (MARQUES, 1997, p. 21).

12

Faço o recorte do nordeste brasileiro por ser esse o contexto no qual estive/estou inserido. E

cito as quadrilhas juninas por terem sido e por ainda serem muito fortes na cultura nordestina.

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Ao término da quadrilha, fiquei mudo, nada falava (estado de pausa). Somente

observava cada olhar que se direcionava a mim, como se houvesse uma dilatação do

tempo. Lembro que quando cheguei perto de minha mãe, disse: “eu só queria dançar”.

Essa frase trouxe consigo um pedido de socorro de uma criança que via na dança uma

possibilidade de se expressar, de entender o mundo. Mas foi reduzida a um personagem,

que apagava a dança e dava luz ao rótulo e ao preconceito.

As “copiografias” eram mero produto nas mãos das professoras, que não tinham

noção de como aqueles movimentos transpassavam os corpos de cada um ali envolvido,

inclusive os delas. E essa quadrilha junina relatada acima é um grande exemplo de

produto, que vinha dando certo na escola, até um garoto de oito anos não fazer “tão

bem” o soldado gay, causando a mudança no modelo das quadrilhas juninas nos anos

seguintes. Este “personagem” foi removido da dramaturgia junina escolar. O não fazer

“tão bem”, refere-se ao não encaixe no estereótipo do soldado gay. Porém não me

recordo de nenhuma discussão na escola e nem em casa sobre esse assunto.

Será que, se os professores que trabalhavam as quadrilhas juninas na escola de

minha infância fossem formados em uma licenciatura em dança, essa abordagem teria

sido diferente? A abertura dos cursos superiores em dança proporcionou aos

ingressantes na área um alargamento do tempo. Possibilitando diálogos,

questionamentos, experimentações, construções, reorganizações de um corpo que irá

lidar com outros corpos em formação. Todos esses caminhos proporcionados pela

academia atraíram e atraem cada vez mais bailarinos, professores de formação informal

e intérpretes-criadores para uma ampliação na arte do movimento, da dança.

Acredito em uma dança que se pauta no fazer, no mover, no esgarçamento da

dança pela prática reflexiva. Para que, desta forma, nos apropriemos com consciência e

consideremos a dança como área de conhecimento potente de transgressão do Ser

humano. Com a convicção que a dança é a arte do fazer no corpo, para o corpo, do

corpo.

A pesquisadora Sylvie Fortin13

(2011) fez parte do 4º Seminário de Dança, do

Festival de Dança de Joinville/SC no ano de 2010, com o tema “O avesso do avesso do

corpo: educação somática como práxis”. Ela traz-nos a concepção de práxis para

conceituar um saber reflexivo e crítico, afirmando que: “O saber práxico situa-se entre o

13

Professora do departamento de Dança da Universidade de Quebec, em Montreal, onde obteve o

diploma de Estudos Superiores em Educação Somática.

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saber prático e o teórico. [...] práxis é a conceituação dos gestos da prática cotidiana, a

reflexão do saber artesão posto em palavras. [...]” (FORTIN, 2011, p. 39).

O saber artesão configura um conhecimento adquirido acerca do fazer prático.

Do conhecimento que nasce da percepção dos efeitos ocorridos do ato de “pôr a mão na

massa”, da criação, da movência. Sendo reflexivo e crítico no processo de entendimento

do que se faz.

Diante a deste tema, a pesquisadora começou a se perguntar “o que seria o lado

direito do corpo? O que seria o lado avesso do corpo? E o que seria o lado avesso do

avesso do corpo?”. Estas indagações levaram a pesquisadora ao conceito de “avesso do

avesso do corpo”.

Quando soube do tema do seminário, fiz com bastante rapidez a associação

do lado direito do corpo aos discursos dominantes em dança e do lado avesso

ao discurso mais marginal da educação somática, sob a condição, é evidente

de que a experiência fenomenológica íntima seja tratada como práxis, ou

seja, numa dimensão reflexiva e crítica (FORTIN, 2011, p. 39).

Este conceito está à luz da educação somática, na qual Fortin (2011) a defende

como práxis, ou seja, tal qual prática reflexiva e crítica. Pois a acepção de “soma”

exprime uma unicidade indivisível e integradora, visando o desenvolvimento da

capacidade de sentir.

A educação somática é um verdadeiro laboratório de percepção, seus métodos

produzem não somente uma reorganização dos músculos profundos e superficiais do

corpo, mas proporciona também um novo modo de estar presente no mundo e uma nova

perspectiva acerca desse mundo (FORTIN, 2011).

Estamos diariamente em contato com hábitos que já estão em nós como

couraças, sendo resistentes à mudança. “Todo hábito perceptivo é também hábito motor.

Os hábitos, quando protegem de esquemas familiares limitados, tornam-se infelizmente

armaduras que impedem novas experiências” (FORTIN, 2011, p. 33). Na educação

somática, quando os hábitos são reconhecidos, eles são explorados por diversas e

múltiplas variações, sendo construído um processo pessoal de novas percepções,

comportamentos e pensamentos que poderão ser integrados ao cotidiano do indivíduo

(FORTIN, 2011).

O soma, o corpo vivo em seu conjunto, não pode ser reduzido à soma de seus

componentes corpóreos, cognitivos, sociais, emotivos ou espirituais, o que

Maurice Merleau-Ponty tinha bem para consigo. Hanna retomou então ideias

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merleau-ponteiscas e o termo “soma” para fazer delas o fundamento de uma

abordagem do vivo explicitamente holística e portadora de uma

reinvindicação contra todos os pensamentos dualistas (FORTIN, 2011, p. 28).

O objetivo dos métodos de educação somática é encontrar novas formas, novas

opções, novos modos de mover baseados nas suas próprias referências e experiências

sensoriais. Sendo que não existe um modelo de corpo professoral a ser imitado, como é

o caso de algumas aulas de dança. A educação somática interessa-se pelo corpo por

meio da experiência do “eu” (FORTIN, 2011). Nos últimos dois anos (2014 e 2015),

meu trabalho como professor vem aguçando a experiência do “eu” ao ministrar aulas de

dança clássica na EDTAM, busco as frestas, os espaços entre, de uma técnica tão

estruturada, para trabalhar a respiração como eixo norteador do movimento. Desta

forma, a técnica da dança clássica aparece como modo de fazer, de entender e não como

um modo de prisão, produzindo agonias vorazes e frustrações singulares.

Já vinha com essa abordagem somática desde 2012 nas aulas de dança

contemporânea e danças populares (danças folclóricas) na EDTAM, valorizo o

conhecimento de corpo, do movimento, a partir do entendimento pelo próprio

movimento, pelo corpo. “A educação somática pode preencher plenamente sua

dimensão de práxis, quando uma dimensão reflexiva e crítica acompanha o investimento

corporal” (FORTIN, 2011). Interessa-me nessas aulas despertar o saber-sentir e o saber-

agir para, na prática reflexiva e crítica produzir conhecimento acerca das experiências

vividas na vida cotidiana e na prática da dança. Utilizando a desaceleração, o tempo

mais lento para entender o processo de percepção do “eu” mais profundamente, sempre

com a atenção primeiramente voltada para o próprio movimento e para o corpo.

Em uma perspectiva somática, o bailarino pode muitas vezes adotar diferentes

estratégias de aprendizado, às vezes, aparentemente contraditórios, para facilitar uma

reorganização corpórea global: o controle pelo abandono, o relaxamento para encontrar

a força, a visualização a fim de melhorar a execução motora, a lentidão para melhor

captar um alegro, entre outras possibilidades (FORTIN, 2011). Contudo, destaco a

última estratégia citada, por enxergar na lentidão um aprofundamento processual,

questionador e íntegro na dança, fazendo com que reconheçamos a singularidade do seu

corpo através das tomadas de decisão por meio das experiências sensíveis (GEBER;

WILSON, 2010 apud FORTIN, 2011).

Fortin (2011) diz ainda que a área da educação somática se consolidará

mostrando que ela existe pelas nossas práticas e também pelo discurso que produzimos.

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Ao decorrer desses anos na dança, percebo que este pensamento se aplica fortemente. A

área de conhecimento da dança, com todas as suas particularidades, histórias, conceitos,

questionamentos, somente será reconhecida como área de conhecimento potente do Ser,

quando a grande maioria dos que a fazem, dos que a retroalimentam, dos que a tem

como profissão, tiverem em seu discurso a força que tem a sua prática. Os dois

necessitam caminhar lado a lado, de mãos dadas, abraçados, fundidos, para que a força

cênica seja vislumbrada no discurso diário, de entendimento de si e do outro, enquanto

ser singular, enquanto artesão do seu “eu”. Sendo práxis no seu fazer artístico,

profissional e cotidiano. Este entendimento de práxis é norteador desta pesquisa, sendo

parte fundamental e indissociável do pensamento, do fazer, do corpo.

Mesmo não tendo a noção do conceito de práxis de Fortin na minha vida escolar,

percebo que na infância o fazer dança transpassava as teorias de outras ciências e me

auxiliava no entendimento do corpo, em uma aprendizagem pelo movimento. Recordo

que para aprender a matemática, utilizava um método não convencional, riscava a folha

do exercício ou da prova e ainda precisava mover os dedos e braços reproduzindo a

contagem do cálculo pelo movimento. Nas aulas de língua portuguesa a sinuosidade das

palavras me fazia mover na cadeira, dessa forma aprendia onde eram as acentuações,

criando uma melodia corporal para melhor entender, fazendo com que encontrasse

caminhos novos de movimento, novas possibilidades.

A dança e o movimento vinham entrelaçados em meu entendimento, como

sendo um código genético do genoma humano, auxiliando no ensino-aprendizagem. Na

época da escola, uma pausa, um repouso, uma quebra de fluxo, um desvio podava e

impedia a dança de acontecer (muitas vezes fui repreendido pelos professores por me

mexer demais no momento da explicação e isso atrapalhar, na concepção deles). Penso

que este posicionamento em relação à dança, que tive por muito tempo, se deva ao fato

de eu ter sido uma criança hiperativa, onde a pausa era um fator inquietante, pois,

restringia o movimento me fazendo parar motoramente, mas cognitivamente, havia um

turbilhão que se movimentava num espaço multifocado, em fluência livre e em tempo

rápido.

Ao recordar o trajeto percorrido na infância, percebo que de dezembro de 2007 a

janeiro de 2010 já na fase adulta, a dança continuava sendo para mim movimentos

contínuos e fragmentados, com bastante controle da fluência, em deslocamento pelo

espaço, com oscilações da velocidade que em momento nenhum poderia pausar. A não

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ser quando fosse o momento das palmas e do agradecimento. Neste período14

de intensa

velocidade, estive preso a uma frenética vontade de me mover.

Conseguir executar as sequências estruturadas nas aulas de dança era para mim

uma vitória incrível. Quanto mais rápidas fossem, mais vontade tinha de mergulhar em

um nado frenético, na busca pelo deleite de conseguir finalizar uma sequência de

movimentos. E como eram incríveis as sequências com todos os seus elementos:

rolamentos, entradas e saídas no chão, saltos, torções, giros, deslocamentos, suor. Só me

satisfazia quando podia experimentar todas aquelas estruturas de movimentos, mesmo

que não as conseguisse fazer como eram pedidas por Anádria Rassyne, Lidiane Soares,

Mário Nascimento, Margoth Lima, Andreia Melo, Airton Tenório, Anselmo Zolla e

Wanie Rose. Sempre esperando pela próxima aula, quando poderia experimentá-las

novamente, a rapidez, a velocidade, a urgência e a repetição, estes elementos eram

postos como meta de entendimento da dança.

Ao participar das aulas da CDTAM, me sentia a cada dia ampliando o gosto pela

liberdade que havia perdido em algum lugar da infância. Como se a cada movimento

encadeado a outro, meu corpo pulsasse na sede por mais movimentos. Mera rapidez!

Enquanto o gosto da liberdade pela velocidade se dava em movimentos rápidos e

repetitivos, as agonias que surgiam em decorrência dessa rapidez eram perturbadoras. A

agonia que mais me aprisionava era a de acertar cada movimento assim como foi

passado pelo ministrante da aula. O acerto sempre vinha carregado de outros fatores,

como o de não conseguir acertar e, o de como os outros iriam me olhar, na frustração de

não ter compreendido ainda por quais caminhos eu poderia ir para “acertar” o

movimento. Mera ilusão!Em uma aula, a gente aprende os códigos, mas o que é preciso

adquirir [...] você só o aprende vendo os outros se moverem. Você oscila sempre entre

dois polos indissociáveis de extrema exigência (LAUNAY, 2010, p. 94).

Se essas agonias são vistas em um espaço de ensino-aprendizagem da dança dito

não formal, as agonias tomam proporções avassaladoras nos espaços ditos formais.

Quem faz e/ou ensina dança sabe o quanto o conhecimento nesta área é construído por

meio do corpo em movimento, da ação, da prática, da repetição, da tentativa e erro,

precisando “pôr a mão na massa” e estando com os “pés no chão”. Os professores de

dança vivem na atualidade desafios para além das dificuldades do mercado de trabalho:

14

Período em que atuava somente como bailarino da Companhia de Dança do Teatro Alberto

Maranhão (CDTAM). Hoje em dia atuo como bailarino, professor e coreógrafo, desenvolvendo o estudo

sobre a dança, nestas três vertentes.

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a preguiça, a virtualidade, o imediatismo frenético e agoniante de seus pupilos

(STRAZZACAPPA, 2012).

A busca por resultados imediatos e instantâneos faz com que se perca a

compreensão de que em arte o tempo é expandido. Para realizar um giro bem executado,

um rolamento, os “meneios15

” do coco de roda, por exemplo, há uma técnica, e para se

adquirir essa técnica, há trabalho, dedicação e repetições reflexivas. Estamos em um

universo de informações recebidas e divulgadas em segundos, onde se perdeu

paulatinamente a capacidade de escuta e contemplação (STRAZZACAPPA, 2012).

Ao passar desses anos, fui percebendo de maneira muito lenta que a rapidez e o

imediatismo, nos quais estava preso, tiravam meu foco do entendimento da dança e me

prendiam nas agonias do acerto, me fazendo repetir meramente por repetir, sem refletir

sobre este ato. Desta forma, fui fazendo as aulas e conseguindo através da repetição

reflexiva “acertar” as estruturas de movimentos que eram passadas. Contudo, a dança

está para além de decorar sequências coreográficas.

Entre a infância e a fase adulta, mais precisamente até o final do ano de 2009, o

movimento para mim era controlado, aceitando mais o tempo rápido, o espaço

multifocado, o peso firme com a fluência contida, pois ainda não compreendia como ela

funcionava em meu corpo (na infância a fluência era tão natural como respirar). A

respiração era presa, contida, só respirava aliviado quando a sequência de movimento

acabava. Mesmo escutando que precisava respirar para dançar, não conseguia

compreender que respiração era essa. Como poderia respirar do jeito que me pediam se

eu não sabia como? E foi em meio a essas indagações que comecei o processo de

desaceleração pela consciência do movimento.

15

Movimento do quadril em círculos. Muito usado nesta dança popular nordestina brasileira.

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CAPÍTULO II

3 em 1 – 1 em 3: aplicação metodológica da lentidão

Até o presente momento, a reflexão feita sobre a aceleração e a desaceleração

dos corpos na dança, partindo de experiências minhas, fez com que fosse gerada uma

reflexão acerca do ensino e aprendizagem da dança e sobre como o saber práxico

(FORTIN, 2011) se constrói em cada minucioso detalhe, proporcionando um

alargamento perceptivo de si.

A construção do conhecimento na dança, na arte, como explana Strazzacappa

(2012) se dá por meio do corpo em movimento, da ação, da prática, da repetição, da

tentativa e erro, e é nesta perspectiva que esta pesquisa se desenvolve. Parto do meu

fazer artístico – imprescindível – pois sem as experiências que vivi ao longo da

trajetória não seria possível a escrita desta pesquisa. Como um rio, desemboco no mar

da dança, amplo e generoso, trazendo vivências que encorpam o meu fazer diário, que

nada tem de egocêntrico, mas sim de reconhecimento da sua importância para a escrita

desta pesquisa.

O objetivo deste capítulo é relatar, descrever e refletir a construção do

conhecimento que foi gerado, a partir da aplicação prática e da disponibilidade dos

corpos ali presentes. Refletir, sobretudo, acerca dos conceitos que embasaram este

momento da pesquisa e que foram indispensáveis para o entendimento da lentidão como

escolha metodológica da pesquisa.

Iniciarei neste momento, portanto, a descrição do processo de aplicação prática,

uma das etapas fundamentais desta pesquisa. Etapa saborosa de construção gradual que

proporcionou a todos os envolvidos uma experiência com o sabor da lentidão, fazendo

com que caminhássemos para uma construção de conhecimento de si, através do fazer

práxico, o fazer artesão que põe a “mão na massa”, que parte do corpo para o corpo,

gerando um conhecimento mais aprofundado de si. Pois, como refletimos na parte

introdutória desta dissertação, a experiência é algo que nos toca, que nos passa, e

quando esses acontecimentos ocorrem, é para o corpo um conhecimento profundo do

corpo de cada um que passou pela experiência (FORTIN, 2011; LARROSA, 2002).

Compartilhar é o verbo mais adequado para descrever em uma palavra o que foi

o processo de aplicação desta pesquisa. Tecer discussões reflexivas sobre a dança e o

corpo é conhecimento que gera conhecimento. É um compartilhamento de saberes, que

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amplia a percepção de si, gerando consciência acerca do mundo a partir da gama de

saberes que nos faz ser quem somos agora (DAMÁSIO, 2011). Desta forma, ressalto

que o entendimento de compartilhamento nesta pesquisa não é o de fragmentar ou

colocar em caixas isoladas o conhecimento e suas metodologias. Mas sim, o prazer que

é degustar o entendimento do outro e ao mesmo tempo oferecer para degustação o seu

entendimento sobre as questões suscitadas. É ter acesso, é presentificar, é experimentar,

é construir junto um saber artesão (FORTIN, 2011), um saber que demanda um tempo

mais lento e que o convida a refletir sobre o fazer.

A aplicação se deu no segundo semestre do ano de 2014, na turma de dança

contemporânea para iniciantes da EDTAM. Composta por 10 integrantes, com idade

entre 19 a 45 anos. Não limitei idade nem impus pré-requisitos, o que me interessava,

de fato, era compartilhar a proposta metodológica da pesquisa e vivenciar junto com

eles o como a proposta era percebida nos corpos de cada um.

A lentidão como percepção aprofundada evidenciou aspectos qualitativos do

movimento que foram trabalhadas na aplicação. Desta forma, dividi em três etapas o

processo metodológico da aplicação: o conhecimento dos fatores do movimento

(eukinética), de Rudolf Laban (1978); a aplicação das propostas metodológicas, “A

dança pelos sentidos: criação coreográfica” e a “Improvisação pelos sentidos”, de

Patrícia Leal (2012); e a pausa na dança como potência qualitativa do movimento. A

última etapa, a pausa, é uma consequência dos estudos feitos sobre a desaceleração do

meu corpo na dança, que culminou na lentidão como escolha metodológica; e da fusão

qualitativa da investigação sobre o movimento baseado nos fatores labanianos (fluência,

espaço, peso e tempo) e nos sentidos da percepção.

Apresentarei e dissertarei sobre as três etapas da aplicação da pesquisa,

integrando-as. Relatando como foi a assimilação destes conhecimentos nos

participantes, me incluindo também como um participante deste processo.

1 – Eukinética Labaniana: qualidades dinâmicas do movimento

Rudolf Jean-Baptiste Attila Laban, este é o nome do pesquisador responsável

pelo estudo das qualidades do movimento humano, que contribui de forma muito

intensa nesta pesquisa sobre a dança, o movimento, a educação, o corpo, etc. Nasceu na

Bratislava (região do antigo império formado por Áustria e Hungria) em 15 de

dezembro de 1879. Desde sua infância observava a dança dos camponeses, seus

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movimentos de trabalho e o movimento dos planetas, das plantas, dos animais. Na

adolescência, começou a viajar frequentemente para visitar o pai, que era militar e era

designado a servir em diferentes lugares. Essas viagens foram marcantes para o jovem

adolescente, pois assim construía seu conhecimento acerca do comportamento humano

e das particularidades do movimento. Em Paris estudou pintura, desenho, arquitetura e

balé clássico, onde continuou a observar os movimentos – todos os tipos de movimento.

Era fascinado pelas múltiplas e diversas manifestações do movimento, criando

coreografias que instauraram o expressionismo na dança, considerado, junto à Mary

Wigman e Martha Graham, um dos fundadores da dança moderna. Desenvolveu um

método de dança educacional que se tornou verdadeira cartilha básica para professores

em diversos países. Realizou estudos sobre eficiência e cansaço no trabalho. E buscou

incentivar a criação de uma dança pessoal e expressiva por meio de improvisações

temáticas (RENGEL, 2005).

Partindo de uma vida de observações do movimento humano, Laban

desenvolveu seu estudo e criou em 1910 o termo, eukinética, sendo este termo,

considerado por ele, o estudo dos aspectos qualitativos, dinâmicos e expressivos do

movimento. Levando-o à conceituação da categoria Esforço e dos quatro fatores do

movimento (RENGEL, 2005).

A autora e pesquisadora em dança Ciane Fernandes (2006) utiliza o termo

expressividade como sinônimo de eukinética, que também pode ser denominada de

Esforço.

O termo Expressividade vem de Antrieb, utilizado por Laban, significando

propulsão, ímpeto, impulso para o movimento, que pode ser leve, forte,

direto, indireto, etc. Pode-se também traduzi-lo para Esforço, visto que, em

inglês, esta categoria denomina-se Effort (FERNANDES, 2006, p. 120).

Fernandes (2006) deixa claro que o importante é a compreensão do termo

escolhido como uma ampla gama de qualidades expressivas. A categoria

Expressividade refere-se à teoria e prática desenvolvidas por Laban, as qualidades

dinâmicas expressam a atitude interna do indivíduo com relação a quatro fatores: fluxo

(ou fluência), espaço, peso e tempo.

Os fatores qualitativos do movimento foram o ponto de partida desta aplicação.

Pois a escolha da lentidão como metodologia da pesquisa fez com que os aspectos

qualitativos do movimento humano ficassem em evidência, tornando-os fonte de ampla

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investigação do corpo, no corpo, para o corpo. Decidi iniciar pelos fatores qualitativos

labanianos para pesquisar como cada fator seria assimilado e como afetariam a

qualidade expressiva do movimento de cada participante.

Portanto, entender a eukinética labaniana me conduziu à teoria dos Esforços e à

expressividade. Para, desta forma, entender que o movimento é fruto das pulsões de

atitudes internas que trazem consigo variadas e expressivas qualidades. “No movimento

humano, as qualidades expressivas sempre aparecem em combinações de duas ou três”

(FERNANDES, 2006), como peso e tempo; fluência e espaço; peso e espaço; tempo,

fluência e espaço. Fernandes (2006) explana que a combinação de dois fatores se

denomina estados expressivos. A combinação de três fatores, incluindo o fator fluência,

denomina-se impulsos expressivos. E a combinação de três fatores, excluindo o fator

fluência, denomina-se ações básicas de expressividade.

A presente pesquisa entende que entre o ato perceptivo de entender o movimento

e a qualidade do movimento dançado existem atitudes internas que agem

simultaneamente com o esforço físico e o movimento, o que, para Laban, é Esforço.

Esforço, na nomenclatura de Laban, não é estar fazendo força. Laban usou

esforço para enfatizar que o movimento não é só mecânico ou físico. Há um

esforço (ou pulsão) já acontecendo “dentro” do corpo, como emoções,

sensações, pensamentos, raciocínios etc., que se mostra em movimento

visível e lhe imprime qualidades (RENGEL, 2005).

Esforço são atitudes intelectuais, emocionais e físicas que não são entendidas

pelo viés da quantidade e sim pelo viés da qualidade. Referindo-se a características

únicas de cada agente16

que são vistas com diferenças do uso do tempo e do peso, e de

padrões espaciais e de fluência que o agente demonstra em suas preferências pessoais,

em suas atitudes de trabalho ou na elaboração criativa (RENGEL, 2005).

Os conceitos abordados acima foram se concretizando durante dois dias na

semana, todas as segundas e quartas-feiras, durante 1 hora por dia, com início no dia 04

de agosto de 2014, na EDTAM. Apesar do tempo cronológico curto, as experimentações

dilatavam-se, dando tempo para apreciar cada estímulo, cada sensação advinda da

possibilidade de experimentar os fatores do movimento com maior foco perceptivo.

Preferia a exploração do movimento dançado durante 45 ou 50 minutos e ter os minutos

finais para um diálogo que se ramificava nos cadernos de anotações de cada

16

Lenira Rengel utiliza o termo “agente” como sinônimo de pessoa, ser humano, indivíduo,

bailarino, ator, educador, professor, diretor, coreógrafo, estudante de artes corporais.

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participante. Em algumas vezes, este cronograma era invertido, quando o grupo sentia a

necessidade de conversas para refletir mais sobre o fazer, conversas que algumas vezes

duravam todo o horário da aula.

Os cadernos de anotações eram para além de letras, coesão e coerência. Eles

foram ramificações sensoriais, registro de movências postas em palavras, músicas,

desenhos, dança ou em outra (as) forma (as) que os participantes desejassem expressar a

gama de informações acessadas pelo movimento, oriundo da experimentação da

metodologia utilizada.

1. 1 – Tempo e Fluência

O primeiro fator a ser apresentado e trabalhado com os participantes do grupo, a

aplicação prática da pesquisa que estava sendo realizada, foi o fluxo ou fluência (a

nomenclatura pode variar de acordo com o autor). Utilizarei a nomenclatura fluência,

por significar uma característica do que é fluente e por me passar poesia traduzida em

movimento, quando pronuncio a palavra “fluência”. Todavia sempre que citar a autora

Ciane Fernandes utilizarei a nomenclatura “fluxo”, pois é desta forma que ela se refere a

este fator do movimento.

O fator fluxo relaciona-se com o “como” do movimento, o sentimento, a

emoção e a fluidez ao realiza-lo. Os líquidos corporais – sangue, linfa,

líquido conectivo, líquido sinovial, líquido cefalorraquidiano, etc. – e os

órgãos – estômago, intestino, fígado, pulmões, coração, etc. – concedem a

fluidez e o grau de intensidade do fator fluxo no movimento corporal

(FERNANDES, 2006, p. 124).

O estímulo inicial para o trabalho da fluência do movimento foi a respiração e

em seguida o trabalho com as articulações do corpo. Convidava a todos para fecharem

os olhos, para desta forma aguçar a percepção e focá-la no movimento natural da

respiração. Depois de um a dois minutos, o foco passava a ser as articulações, de forma

a experimentar as possibilidades de movimento, estimulando sempre a iniciar em um

tempo mais lento, para que o entendimento e a percepção acontecessem de forma mais

aguçada. As qualidades expressivas do movimento acontecem em combinações, como

já mencionei anteriormente. Durante as explorações dos fatores expressivos do

movimento, as qualidades de tempo (rápido/lento) estão presentes, o que faço é

focalizar um dos fatores, que neste caso é a fluência.

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O fator tempo e suas qualidades estão a todo tempo em combinações com os

outros fatores, nesta pesquisa. Por mais que o trabalho seja feito com o fator fluência,

peso ou espaço, o fator tempo sempre está em combinações com esses outros fatores.

Pois a questão da aceleração e desaceleração dos corpos está a todo tempo presente na

pesquisa, a lentidão está como objetivo principal, como escolha, sendo os conceitos

abordados no decorrer dos capítulos, potências que emergem de dentro deste rio de

percepções que se aguçam paulatinamente com o sabor da lentidão.

O tempo é o foco no trabalho qualitativo do movimento. A cada exercício

proposto na aplicação prática da pesquisa, trabalhei os fatores combinados ao tempo

mais lento (na maioria das vezes), proposta metodológica que proporciona um tempo

mais dilatado para a percepção.

À medida que ia passando de uma articulação para outra, estimulava os

participantes a agregarem as informações, de modo a vislumbrarem e corporificarem os

caminhos e as possibilidades de movimento, percebendo as sensações que aquele

trabalho proporcionava. Começava sempre pelas mãos e em seguida fluía para os

punhos, cotovelos, ombros e escápulas. Logo em seguida, sem perder os movimentos já

adquiridos, o estímulo era focado nos dedos dos pés, passando pelo tornozelo, joelho e

quadril. Sempre com a voz mais branda, calma, proporcionando alargamento das

sílabas, partindo de um tempo lento para outro mais lento, deixando a palavra em

suspensão. Névoa silábica que levada pelos fortes ventos daquela sala se traduzia em

movimento dançado, que ora parecia visualmente não se movimentar, por mais que o

movimento ali estivesse suspenso, seguindo seu fluxo entre o que foi dito e o que estava

sendo movido.

A terceira etapa deste trabalho teve seu início pela coluna cervical, onde lhes

pediam que começasse o movimento da cabeça de forma mais lenta do que o tempo já

existente nos movimentos articulares. Buscava proporcionar uma percepção mais ampla

acerca da coluna vertebral, de modo a preparar o corpo para o estímulo seguinte.

Sugeria que imaginassem uma gota d’água que brotava no final da coluna

cervical (sétima vértebra), que escorria por toda a coluna torácica e lombar, chegando

ao cóccix. Uma gota que se movia sinuosa, porém descendo lentamente e passando por

cada vértebra, a fim de proporcionar maior atenção ao movimento gerado a partir da

coluna vertebral. Neste ponto, com o corpo todo em movimento, iniciava-se o trabalho

com os níveis baixo, médio e alto.

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Ao sugerir a modificação de um nível para o outro, tinha a intenção de que

experimentassem as gradações qualitativas da fluência: qualidades da fluência livre,

fluente, abandonada, continuada, expandida; e as qualidades da fluência controlada,

cuidadosa, restrita, contida, cortada, limitada (RENGEL, 2005).

O elemento de esforço de fluência “controlada” ou obstruída consiste na

prontidão para se interromper o fluxo normal e na sensação de movimento de

pausa. [...] O elemento de esforço de fluência “livre” consiste num fluxo

libertado e na sensação de fluidez do movimento. A qualidade de esforço da

fluência livre não deveria, porém, ser confundida com a mera sensação de

continuar no movimento (LABAN, 1978, p. 125).

Figura 5 – Aplicação prática da pesquisa

Fonte: Juarez Z. Neto (2014).

Ao chegarem ao nível alto, os participantes permaneceram certo tempo

explorando os movimentos, aos poucos fui sugerindo a finalização desta etapa, que o

movimento não parasse de vez, e sim, fosse parando aos poucos a fim de que a sensação

permanecesse pulsando no corpo. Logo após este trabalho com as articulações e a

modificação dos níveis espaciais, lhes pedi para que formassem duplas, um deles

fechava os olhos e se entregava ao movimento tentando não conduzi-lo (se isso é

realmente possível), e o outro conduziria o movimento trabalhando a partir da

articulação do ombro do participante, que estava de olhos fechados.

Este trabalho tinha a intenção de estimular, no primeiro momento, a cintura

escapular e, no segundo momento, a cintura pélvica. De modo a perceber a fluência

combinada com o tempo e suas gradações em cada momento. Ora percebendo o

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trabalho com a cintura escapular, e sua ligação com os elementos qualitativos da

fluência, ora percebendo o trabalho da cintura pélvica, e todas as suas sensações e

qualidades percebidas.

A tarefa do fator fluência é a integração (tarefa refere-se ao aspecto que o fator

do movimento auxilia a desenvolver). A integração do movimento traz uma sensação de

unidade entre as partes do corpo (RENGEL, 2005). O trabalho com a cintura escapular e

pélvica pretendia aguçar a percepção para a unicidade entre as partes do corpo,

percebendo as qualidades expressivas do fator do movimento fluência na parte focada

pelo exercício e pela unicidade corporal.

O fator de movimento fluência:

É o primeiro fator observado no desenvolvimento do agente. Ao se observar

um bebê, é possível ver seus movimentos de expansão e contração; é a

fluência se manifestando com qualidades de esforço liberadas e/ou

controladas. Ele apenas “flui”, sem muito domínio deste fluir do movimento.

[...] A fluência apoia a manifestação da emoção pelo movimento, pois os

extremos e/ou as gradações entre um alto grau de abandono do controle ou

uma atitude de extremo controle, manifestam no movimento os aspectos da

personalidade que envolvem a emoção. O agente pode enfatizar, num

determinado treino corporal, a vivência mais consciente da fluência e

perceber que ela pode gerar atitudes internas oníricas, imaginárias, móveis,

criativas. A liberação da fluência demonstra, por exemplo, expansão,

abandono, extroversão, entrega, projeção de sentimento. O controle da

fluência demonstra, por exemplo, cuidado, restrição, contenção, retrair-se

(RENGEL, 2005, p. 64).

A fluência determina as qualidades de fruição do movimento, de um fluxo mais

liberado até o mais controlado possível, que, por consequência, defina a pausa no

movimento. Os exercícios descritos acima têm o cunho didático de evidenciar o fator

fluência. A combinação com o fator tempo se concretiza nos movimentos estimulados e

explorados.

O trabalho com o cunho didático realçando o fator fluência é o de abrir espaços

potentes para a experiência da pausa. Sendo a pausa o máximo de controle da fluência.

Uma pausa que segue o fluxo coerente da vida, do movimento, do ar, das marés, da

dança. Um fluxo suspenso e dilatado no tempo e no espaço que ramifica as percepções

do movimento expressivo. A fluência se refere à tensão utilizada para deixar o

movimento fluir ou para controlá-lo, restringi-lo. A fluência demonstra a precisão do

movimento e afeta seu controle para a expressão de sentimentos e emoções (LEAL,

2012).

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O trabalho com a combinação tempo-fluência se deu durante as quatro

primeiras aulas, sempre seguindo os exercícios relatados acima com variações de

velocidade ora pelo estímulo verbal e ora pelo estímulo sonoro das músicas utilizadas

durante as aulas. Na quinta aula, o fator fluência e sua combinação com o fator tempo

começou a dar o lugar para a segunda combinação de fatores a ser trabalhado, o tempo

com o espaço.

1. 2 – Espaço e Cinesfera

Ao mudar a combinação de fatores de tempo e fluência para tempo e espaço, os

exercícios de estimulação do movimento se modificaram. Enquanto isso, deixava claro

que os fatores expressivos do movimento acontecem em combinações de duas, três

qualidades na maioria das vezes. Contudo, para esta pesquisa, focalizar didaticamente,

um a um, os fatores expressivos para estudá-los foi de suma importância para o

entendimento das suas gradações e combinações presentes no movimento.

Se, na fluência, a respiração e o trabalho com as articulações do corpo eram o

ponto de partida do movimento, no espaço, o início se dava exclusivamente pela

respiração, o que faz a fluência continuar. Configurando, assim, as combinações cada

vez mais claras sobre os fatores do movimento humano. Da mesma forma que foi

utilizada no trabalho com o fator fluência, a exploração dos níveis espaciais se deu

também ao decorrer desta etapa do trabalho com o fator espaço.

O fator espaço relaciona-se com o “onde” do movimento, o pensamento, a

atenção ao realiza-lo. [...] Este fator refere-se à atenção do indivíduo ao seu

ambiente ao mover-se. Assim, ele pode ter sua atenção concentrada em um

ponto, canalizada para um único foco, o que consiste em foco direto. [...] Por

outro lado, um indivíduo pode ter sua atenção expandida por milhares de

pontos ao mesmo tempo, como se seu corpo tivesse olhos por todos os poros,

e se movesse com todos esses simultâneos focos. Neste caso, o foco e

indireto ou multifoco (FERNANDES, 2006, p. 126 e 127).

O trabalho de estimulação do movimento através da respiração proporcionou a

cada participante perceber o movimento natural que a entrada e saída de ar faz em cada

corpo. A expansão e contração da caixa torácica e do baixo abdômen foi o ponto de

partida para o trabalho do fator espaço, se trabalhava também cada vez mais o

entendimento da fluência e de como os fatores agem em impulsos expressivos

(FERNANDES, 2006), combinações de três fatores incluindo a fluência.

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Senti o ar dentro do meu corpo, e a partir desta sensação transformei em

movimento. No início meu movimento era mais agitado devido a minha

respiração ofegante. Depois foi ficando mais sutil e imagens de lugares que

para mim são calmos foram surgindo na mente17

.

Com o corpo em decúbito dorsal (de costas para o chão) e de olhos fechados, os

participantes voltavam sua atenção para o movimento da respiração através do toque das

mãos no peito e no abdômen. Em decorrência desta etapa do trabalho, chamava-os

atenção para a percepção do espaço interno do corpo, do espaço que o ar ocupa dentro

do corpo e do espaço que o ar deixa com o ato da expiração, fazendo com que os

participantes experimentassem por alguns minutos. Para Laban, este trabalho com o

espaço não é qualidade do fator espaço, e sim, é espaço na corêutica. O espaço corêutico

é concebido a partir do corpo. Assim, cada pessoa tem um território próprio (RENGEL,

2005).

A corêutica trata do estudo das formas espaciais dentro da cinesfera. Inclui a

organização espacial da cinesfera e o modo pela qual as formas lógicas e/ou

harmônicas, encontradas nesta organização, são implementadas no corpo do

agente. Corêutica trata do espaço no corpo e do corpo no espaço. Espaço no

corpo é tomar o corpo e/ou partes dele como ponto de referência direcional, é

definir lugares no espaço a partir do corpo. Corpo no espaço é tomar o espaço

(de um quarto, um palco, um jardim) como referência direcional para o corpo

(RENGEL, 2005, p. 36).

Em seguida a este momento, utilizei um exercício que experimentei durante o

meu estágio à docência, com a professora e orientadora desta pesquisa, Patrícia Leal. A

disciplina foi a de Laboratório de Composição Coreográfica II, no curso de licenciatura

em dança na UFRN. Na ocasião, Leal pediu para que todos deitassem no chão de

decúbito dorsal e com os olhos fechados. Deste modo, chamou a atenção para a

respiração e partindo dela iniciou o processo de exploração do espaço interno dos

participantes de sua aula. Com pequenas contrações abdominais seguidas de pequenas

expansões, o movimento oriundo dos estímulos servia como impulso gerador de outros

movimentos, partindo do centro do corpo para as extremidades. Os movimentos de

contração e relaxamento geravam certos espasmos desencadeando uma multiplicidade

de movimentos.

Leal também usou como estímulo a imagem de uma pequena bola que se

movimentava dentro do abdômen, gerando mais possibilidades de movimentos

17

Depoimento extraído do caderno de anotações de um (a) dos (as) participantes da aplicação

prática desta pesquisa.

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provenientes das contrações e expansões que eram geradas. Esse exercício desenvolvido

pela docente trabalhava a cinesfera labaniana, que também é denominada de kinesfera e

está dentro dos estudos de Laban da organização espacial do movimento, denominada

corêutica.

Entendendo os estudos labanianos da Corêutica, podemos conceituar por tanto a

cinesfera. Segundo Rengel (2005, p. 32), cinesfera é a esfera pessoal de movimento,

determinando o limite natural do espaço pessoal. Cada agente tem sua própria cinesfera,

a qual se relaciona somente a ele. Esta esfera de espaço cerca o corpo, esteja ele em

movimento ou em imobilidade.

Em decorrência do trabalho com a cinesfera, que foi estimulado pela imagem de

uma pequena bola que se movia dentro do abdômen, lembrei fortemente da técnica

desenvolvida pela Norte Americana Martha Graham, em que os movimentos têm sua

origem no centro do corpo, sobretudo na região pélvica, irradiando para todo o Ser. O

reconhecimento e aceitação da força da gravidade atuam como elementos fundamentais

para a qualidade da movimentação. Sendo também eixos norteadores da técnica

desenvolvida por Graham o uso da respiração, dos princípios de contração e expansão, e

das forças de oposição que atuam no corpo (LEAL, 2000).

Diante desta experiência e do conhecimento acerca da técnica de Martha

Graham, utilizei o mesmo exercício proposto por Leal na exploração do espaço interno

nos corpos dos participantes da aplicação prática desta pesquisa. Contudo, quando

cheguei ao estágio da pequena bola no abdômen, dei liberdade para que os participantes

experimentassem a “bola” em outras regiões do corpo que não a abdominal. Porém,

somente passando para outras partes quando a exploração do movimento abdominal já

estivesse ramificando para os membros e para a coluna vertebral, de modo que a

vontade de mover fosse percebida no ponto ramificado. Isso foi feito para que

pudéssemos experimentar outras formas e sensações do movimento.

O estímulo da pequena bola dentro do corpo em diferentes pontos me fez

lembrar o trabalho do conceituado bailarino, coreógrafo e pesquisador em dança

William Forsythe. Interessado em elementos estudados por Laban, ele desenvolveu um

método próprio de pesquisa e ressignificação do movimento dançado.

William Forsythe nasce em 1949 na cidade de Nova Iorque, e tem como

principais referências a dança e a música popular negra e o ballet clássico. Compõe o

elenco do Stuttgart Ballet em 1973 e, logo depois, se interessa pelo sistema de notação

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de Rudolf Laban, referência que Forsythe posteriormente incorpora ao seu método de

composição coreográfica (FERREIRA, 2013).

Coreógrafo contemporâneo e profundo conhecedor da corêutica de Laban,

William Forsythe amplia, atualiza e enriquece esta forma de orientação espacial. Ele

questiona a premissa de Laban de estabilidade e orientação no espaço a partir do centro

do corpo. Para Forsythe, o centro pode ser colocado em qualquer parte do corpo,

criando assim novos e diferentes centros que agem simultaneamente ou em sucessão

(RENGEL, 2005).

Para Forsythe, não existe só uma cinesfera. Ele propõe o conceito de múltiplas

cinesferas, em diferentes partes do corpo. Segundo ele, até mesmo uma falange tem a

sua cinesfera. O uso que o coreógrafo realiza da geometria de Laban é no sentido de

investigar suas possibilidades não harmônicas de fragmentação e vertigem, começando

a imaginar uma espécie de movimento serial. Que mantinha certas posições de braço do

ballet para se mover através deste modelo, orientando o corpo para os pontos externos

imaginários. Ao fazê-lo, o movimento projeta-se em diversos pontos e, daí, em diversos

eixos, multiplicando localmente cinesferas autônomas que já não se reportam a um

único centro de referência, como no modelo espacial labaniano (RENGEL, 2005, p. 34;

CALDAS, 2012, p. 109).

O fator espaço está dentro da eukinética, que é o estudo dos aspectos

qualitativos do movimento, refere-se à atenção ao espaço, que implica em uma atitude

interna quanto ao espaço que nos rodeia – foco direto/ foco indireto (FERNANDES,

2006).

O segundo momento da aplicação prática referente ao trabalho com o fator

espaço se deu em duas etapas: a primeira trabalhou o espaço direto e/ou unifocado, e a

segunda trabalhou o espaço indireto e/ou multifocado (RENGEL, 2005).

A experimentação de movimentos com um foco direto no espaço possibilitou

aos participantes a reflexão sobre a simetria do movimento dançado. Braços e pernas

foram bastante utilizados neste exercício, procurei não influenciar verbalmente sobre

essa ou aquela parte, deixando com que a exploração do movimento fluísse por si só.

Já na experimentação de movimentos com foco indireto (multifocado) os braços

e pernas não eram mais utilizados por completo. Houve uma fragmentação dos

movimentos a partir das estruturas articulares. Punhos, cotovelos, ombros, quadril,

joelhos, tornozelos, metacarpos, e metatarsos e toda a estrutura da coluna vertebral

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foram explorados, culminando em um exercício onde trabalhei conjuntamente e

conscientemente os fatores fluência, espaço e tempo.

Inicialmente com o foco na mão direita ou esquerda pedi-lhes que

permanecessem com o foco na mão escolhida e fossem explorando as qualidades

expressivas do fator espaço. Em dado momento, o entrelaçamento dos fatores gerava

novas perspectivas de movimento para os corpos em laboratório. Ao término desta

experimentação sentamos e conversamos sobre o ocorrido. As conexões entre os fatores

logo foram percebidas pelos moventes, gerando um rico entendimento acerca das

qualidades expressivas do movimento dançado. Os estados expressivos (States –

combinação de dois fatores); os impulsos expressivos (Drives – combinações de três

fatores, incluindo o fator fluência); e as ações básicas de expressividade (Basic Effort

Actions – combinações de três fatores, excluindo o fator fluência) (FERNANDES,

2006, p. 143).

Figura 6 – Aplicação prática da pesquisa

Fonte: Juarez Z. Neto (2014).

1. 3 – Peso e Gravidade

O fator peso é o terceiro elemento a surgir no desenvolvimento humano

(RENGEL, 2005), sendo aqui o terceiro fator a ser trabalhado, conjuntamente com o

fator tempo, como fonte de investigação do movimento dançado e como fonte de

ampliação e aguçamento da propriocepção.

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A tarefa do fator peso é a assertividade, dando estabilidade e segurança à pessoa.

Já a atitude relacionada com este fator do movimento é a intenção, que afeta a sensação

e a percepção do movimento. As qualidades de esforço do fator peso são leves e firmes,

com todas as nuances de pesos possíveis entre estas polaridades. O peso informa sobre

“o que” do movimento, significa poder transportar a si mesmo e auxiliar estabelecer a

afirmação da vontade. Este fator ajuda muito a aguçar a percepção corporal de si e dos

outros e a distribuir melhor o peso no “centro de leveza” (região escapular) e no “centro

de gravidade” (região pélvica) (RENGEL, 2005; 2006).

Mediante o aguçamento da percepção de si e do outro e da melhor distribuição

do peso no centro de leveza e gravidade, retomei o exercício das duplas feito no

trabalho com o fator fluência, no qual um fechava os olhos e o outro o conduzia a partir

da região escapular e depois da região pélvica. Mas, antes deste exercício em dupla, o

grupo experimentava o fator peso com o enrolar e desenrolar do corpo. Todos de pé se

distribuíam pelo espaço da sala.

As experimentações do fator peso iniciavam sempre com o enrolar e o

desenrolar do corpo, proporcionando-os ao enrolar (de cima para baixo) a possibilidade

de sentirem o peso firme, pesado. E ao desenrolarem (de baixo para cima), a

possibilidade de sentirem o peso leve. “Movimentos leves são mais fáceis para cima,

revelam suavidade, bondade, e, em outro polo, superficialidade. Movimentos firmes são

mais fáceis para baixo, demonstram firmeza, tenacidade, resistência ou também poder”

(RENGEL, 2005, p. 67).

Começávamos a experimentação do peso sem deslocamentos pelo espaço,

voltando a atenção exclusivamente para o peso da gravidade, que empurrava para baixo,

e para a resistência a ela quando desenrolávamos o tronco para cima. Em seguida, com

deslocamentos no espaço, repetíamos o enrolar e desenrolar, visando perceber também a

distribuição de peso ao caminhar. Decorrente desta etapa do trabalho laboratorial, na

última vez que caminhavam pedi para que parassem na frente da pessoa que estivesse à

sua frente, iniciando desta forma o trabalho com as duplas.

Permaneci com a base estruturar do trabalho realizado no fator fluência, a

proposta inicialmente era a de explorar a cintura escapular e em seguida a cintura

pélvica. Porém, não mais com o foco na fluência, e sim, com o olhar perceptivo para o

fator peso, não podemos esquecer que nesta pesquisa ele está em combinação com o

fator tempo.

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Quando as duplas experimentavam o movimento a partir da região escapular

(centro de leveza), o peso leve foi percebido e sentido. Entretanto, quando os pedia para

liberar a coluna cervical evitando tensões desnecessárias, deixando a cabeça fluir junto

com o movimento escapular, o peso se tornava mais leve, sendo percebidas por mim as

combinações qualitativas do fator peso, do fator fluência e do fator tempo.

Já quando a geração de movimento partia da região pélvica (centro de

gravidade), o peso firme foi notado fortemente. Com os pés fincados no chão para

manter a base, os participantes relataram que a musculatura ficou com um grau elevado

de tensão.

1. 4 – Tempo e Pausa

Este fator expressivo do movimento está fortemente ligado com as experiências

relatadas sobre a minha infância e sobre os primeiros anos na vida artística. Este é o

quarto e último elemento a surgir no desenvolvimento da pessoa, o fator tempo também

foi o quarto e último elemento qualitativo que comecei a perceber e corporificar no meu

fazer artístico.

Suas qualidades são “súbita” (rápida) e/ou “sustentada” (lenta). Tem como tarefa

a operacionalidade e como atitude relaciona-se à decisão, afetando a intuição e a

execução do movimento. Com seu treino contínuo e diário aprendemos a lidar com este

fator, desenvolvendo a maturidade necessária. Este fator indica uma variação na

velocidade do movimento, que se torna gradualmente mais rápida ou mais devagar,

informando ainda sobre o “quando” do movimento. Um movimento é acelerado quando

fica cada vez mais rápido, e desacelerado quando fica cada vez mais lento. Um

movimento simplesmente rápido ou lento que não varie seu tempo, ou seja, mantenha

seu tempo constantemente rápido ou lento, não possui ênfase no fator tempo (RENGEL,

2006, p. 127; FERNANDES, 2006, p. 135).

O tempo traz ao movimento um aspecto mais intuitivo da personalidade. [...]

Em termos de atitudes internas, o treino e o domínio das qualidades do fator

tempo ajuda, por exemplo, a que os limites não sejam tão rígidos. Auxilia,

ainda, a maior mobilidade e tolerância em relação às frustrações; se o agente

não tem algo agora, talvez seja possível obtê-lo depois (RENGEL, 2005, p.

70).

O início do trabalho com o fator tempo nesta aplicação prática se deu pelos

extremos, lento/rápido. Com o corpo na vertical, os participantes focavam sua atenção

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para a respiração partindo deste movimento a exploração do tempo lento. Com um

estímulo sonoro musical de tempo também lento, eles eram embalados logo depois que

iniciavam o processo de mover pela respiração, ou seja, em combinação com o fator

fluência. Deixava-os por cinco a dez minutos explorando o movimento respiratório em

tempo lento, para daí introduzir a música.

Rengel (2005, p. 71) diz que: “nem sempre em um movimento é possível

discernir características de tempo. Isso se deve ao fato de outras qualidades ou

considerações estarem mais imprimidas ao movimento”.

Para que o movimento aconteça é preciso uma atitude ativa em relação a dois

fatores. A qualidade de esforço em relação a um fator está obviamente

presente, a qualidade em relação ao segundo fator “adjetiva” a ação, enquanto

as qualidades em relação ao terceiro e quarto fatores aparentemente

desaparecem. Desta forma, o agente tem atitude para com todos os fatores de

movimento, porém há uma atitude mais determinante para a combinação de

qualidades de esforço em relação a dois fatores, dando-se assim a ação

incompleta. É praticamente impossível, na execução de uma ação, aparecer a

combinação dos quatro fatores de movimento, todos com a mesma

intensidade de ênfase. As ações completas ou quase completas se dão

raramente. Esses tipos de ação podem acontecer em movimentos do trabalho

que exijam grande concentração e no treinamento de artistas do corpo, que

buscam uma intensa sensação do movimento (RENGEL, 2005, p. 27).

A primeira afirmação de Rengel foi notada nas experimentações tanto do tempo

lento, quanto do tempo rápido, se percebia inclusive outras qualidades expressivas

atuando ativamente.

Depois de algum tempo de experimentação, pedi-lhes para que continuassem a

movimentação, porém o estímulo sonoro e a velocidade foram alterados, começando

assim a exploração do tempo rápido.

Com uma música veloz, pedi para que chegassem ao tempo rápido

imediatamente ao ouvirem o início do estímulo sonoro, sendo mais perceptível a

qualidade rápida e seu ápice. Fiz com que não ficassem mais do que um minuto nesta

exploração, todos pararam os movimentos exaustos.

O tempo foi considerado por muito tempo nada mais que um sistema de

medição e relacionamento entre dois instantes, não sendo visto como

qualidade ou intensidade. Era considerado um fenômeno meramente

acidental, não essencial. No entanto, o tempo é um fenômeno bem mais

complexo do que simplesmente tempo de relógio, instrumento de medição e

acidente casual (PETRELLA, 2006, p. 204).

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A opção em explorar os extremos do fator tempo foi proposital, pois assim o

entendimento das gradações começa a ficar um pouco mais claro. Apesar de ter tido

quatro encontros específicos sobre o fator tempo, ele foi trabalhado durante todo o

restante da aplicação, com outras ênfases e destaques. Pois, comungando do pensamento

de Petrella, o tempo é de fato bem mais complexo e, no que diz respeito às qualidades

expressivas do movimento, a complexidade não diminui ou aumenta, ela matura,

através da prática da dança tornando-se reflexiva no seu fazer.

Figura 7 – Aplicação prática da pesquisa

Fonte: Juarez Z. Neto (2014).

Os estímulos sonoros oriundos da rua foram o mote para o desenvolvimento do

próximo experimento. Com os olhos fechados cada um escolheu um lugar da sala para a

exploração do movimento. Como a EDTAM fica em uma zona portuária, os sons do

cotidiano daquela realidade são bastante interessantes para a exploração qualitativa,

gradativa, do movimento através do trabalho com o fator tempo. Buzinas de carros e

navios, pássaros, vozes altas indo do grave ao agudo, freadas, espirros, gritos, alarmes, e

música clássica oriunda das aulas de ballet que aconteciam na escola no mesmo

momento.

A intenção deste trabalho com os sons foi acessar as qualidades expressivas de

forma gradual, sinuosa, buscando a atuação do movimento entre os extremos

qualitativos deste fator. Tarefa nada fácil. Pois, como relatei nos tópicos anteriores, o

entendimento das gradações de fluência, espaço, peso e tempo acontecem dia a dia, há

oito anos no meu fazer artístico. Destaco o fazer artístico sem descartar, em hipótese

alguma, o desenvolvimento natural da vida, pois foi e é fundamental para o trabalho em

desenvolvimento no fazer docente e artístico atual.

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Gradativamente fui abordando o tempo e suas qualidades expressivas durante a

aplicação do projeto prático desta pesquisa. Sem deixar de lado todo o trabalho feito

com os outros três fatores anteriormente trabalhados. Afinal, eles agem em

concomitância.

O trabalho com as qualidades expressivas do movimento direcionou a pesquisa,

de modo muito natural e processual, para o vislumbramento da pausa na dança. A

proposta metodológica da lentidão como escolha proporcionou a possibilidade da pausa,

por várias vezes presente na exploração das qualidades do fator tempo. Ela apareceu de

forma a ampliar o conhecimento de todos ali envolvidos, fazendo com que seja o

assunto abordado e amplamente discutido no terceiro capítulo desta pesquisa.

Deste modo, fluindo em direção ao entendimento da percepção do movimento

através de suas qualidades, inicio a segunda etapa do projeto prático, introduzo a

metodologia da dança pelos sentidos da pesquisadora Patrícia Leal. Desejo salientar

ainda mais o fazer práxico da pesquisa, focalizando o movimento como matéria prima

da dança, seja ele externo ou interno. A busca é pelo que nos move.

2 – Propostas metodológicas pelos sentidos: “dança pelos sentidos: criação

coreográfica” e “improvisação pelos sentidos”.

Logo após a vivência e experimentação dos fatores expressivos do movimento a

partir da perspectiva de Laban, introduzi as propostas metodológicas “a dança pelos

sentidos: criação coreográfica” e a “improvisação pelos sentidos” da pesquisadora em

dança Patrícia Leal. O objetivo era ampliar o entendimento do movimento dançado,

mostrando aos participantes outro caminho para a percepção das qualidades expressivas

do movimento. Iniciei com o sentido do olfato e posteriormente o sentido do paladar foi

trabalhado, assim como norteia a proposta metodológica da dança pelos sentidos.

Leal (2012, p. 54) vem desenvolvendo e aprimorando esta proposta

metodológica em dança baseada nos sentidos desde 2001. O interesse pela pesquisa tem

três vieses, relata a pesquisadora. O primeiro, por uma necessidade de facilitar a

compreensão e a vivência das qualidades do movimento definidas por Laban, pelos seus

alunos, encontrando na pesquisa pelos sentidos uma referência indireta para que o corpo

possa experimentar sutilezas qualitativas. O segundo, por fazer a pesquisadora

compreender o movimento como estímulo principal através dos sentidos, sendo o

movimento pesquisado que gera as significações do processo criativo, o que atribui uma

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densidade qualitativa bastante efetiva aos movimentos. O terceiro viés de interesse, dar

ênfase ao domínio do movimento, pressupondo a improvisação como recurso

investigativo e a composição como proposta de compreensão do material pesquisado.

Na dança pelos sentidos a ênfase é a criação direta a partir dos sentidos do

olfato e paladar, em que o domínio do processo criativo pressupõe a

improvisação e, portanto, domínio interpretativo criativo. As propostas

apresentadas integram preparação corporal, interpretação e criação, a partir

da improvisação, permitindo a compreensão da co-existência entre estes três

aspectos no contexto pesquisado (LEAL, 2012, p. 54).

A dança pelos sentidos ressalta a importância da consciência corporal como

sendo imprescindível para a realização do trabalho proposto através da metodologia dos

sentidos, convergindo na educação somática que considera o corpo do indivíduo

contextualizado às suas especificidades e à sua relação com o espaço onde se encontra,

sendo uma relação sinérgica da consciência, da biologia e do ambiente. Traz a

improvisação como uma concepção de técnicas que integram preparação corporal,

interpretação e criação (LEAL, 2012). A metodologia faz isso a partir de três

possibilidades metodológicas: a improvisação pelos sentidos, a dança pelos sentidos:

composição coreográfica e a interpretação criativa pelos sentidos.

A divisão que proponho a seguir apenas contextualiza um trabalho vinculado

aos fatores do movimento definidos por Laban, decorrente do início de minha

pesquisa em relação aos sentidos, e um trabalho focalizado mais diretamente

nos sentidos do olfato e paladar para a criação. Contudo são trabalhos que

dialogam e podem desenvolver interfaces. A improvisação, utilizada como

preparação corporal, interpretação e criação, está presente nas propostas

metodológicas, contudo, com ênfases diferenciadas. Na improvisação pelos

sentidos a ênfase é a improvisação, como recurso investigativo e como

recurso criativo. Na dança pelos sentidos a ênfase é a criação direta a partir

dos sentidos do olfato e do paladar, em que o domínio do processo criativo

pressupõe a improvisação e, portanto, domínio interpretativo criativo (LEAL,

2012, p. 54).

Com grande ênfase no olfato e paladar “a dança pelos sentidos: criação

coreográfica” vislumbra algumas etapas metodológicas: 1) reconhecimento da matriz do

movimento, quando a partir do olfato e/ou do paladar localiza-se o ponto de origem do

processo criativo, sendo o movimento de percepção dos sentidos o fundamento para a

criação; 2) desenvolvimento das células de movimento, reconhecimento pequenas

estruturas de movimento e seleção intuitiva de movimentos potencias para a

composição coreográfica; 3) exploração e desenvolvimento de frases e temas de

movimento, que através da improvisação as frases de movimento são investigadas,

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elaboradas e aprofundadas; 4) definição da estrutura coreográfica em composição ou em

improvisação, onde os movimentos se articulam na formação de um conteúdo

simbólico, mantendo a possibilidade de exploração e transformação dos movimentos

(LEAL, 2012).

O meu contato com esta proposta metodológica em dança se deu em março de

2013, quando cursava a graduação em dança na UFRN. Na ocasião, tive o grande

privilégio de conhecer a mulher, mãe, bailarina, docente, coreógrafa, pesquisadora e

futura (atual) amiga e orientadora do meu trabalho de conclusão de curso e da presente

pesquisa em relato nesta dissertação.

Patrícia degusta, cheira, olha, escuta atenta e tateia sem pressa a dança que

acredita. Uma dança de possibilidades qualitativas geradas pelo que se propõe a

experimentar com compromisso, seriedade e entrega. Ela chega para somar, agregar, se

fundir com o corpo docente qualificado e respeitado na instituição.

E como respirei aliviado quando escutei pela primeira vez ela falar sobre a

dança. Cheia de questões, querências, perguntas e movências, ela falava a minha língua.

Leal discorre sobre o meu fazer diário na dança, como se estivesse passado por tudo

aquilo junto comigo. Só havia escutado alguém falar assim da dança uma vez, Clébio

Oliveira. O modo pelo qual enfatizo o dizer de Leal e Oliveira é pelo fazer reflexivo, é

pela prática que gera o conhecimento de mão dupla, integrador. Quando os escuto teoria

e prática estão unidas, é dança, é conhecimento, é arte.

Dançar pelos sentidos é ser a dança no ato e no momento que ela é. É ser desde o

primeiro impulso. São variações de intensos, amargos, doces, amadeirados e cítricos

perfumes qualitativos, do fazer artístico-docente-criativo.

A dança pelos sentidos foi amplamente apresentada a mim na disciplina

Elementos Técnicos e Estéticos da Dança Contemporânea (2014. 2), ministrada pela

docente Patrícia Leal no programa de pós-graduação em artes cênicas no qual estou

vinculado. Lá pude ter contato, experimentar mais a fundo e entender a proposta da

dança pelos sentidos.

Na ocasião da aplicação prático-teórica, desenvolvida na turma de dança

contemporânea da EDTAM, pedi-lhes para levar um pouco de pó de café. Os orientei

que ao cheirar o café prestassem atenção no movimento que iria ser concebido em

decorrência desta percepção olfativa.

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O cheiro do café repetidas vezes me fez sentir grãos de café como imagens na

minha mente [...] aguçando meu paladar e sentindo o meu pé e meu ombro

travando em decorrência do cheiro do grão. Quando deitei no chão da sala

lembrei-me do cheiro do café feito pela manhã na cozinha da minha casa [...]

minhas mãos meio fechadas me fez lembrar do dia que escrevi a minha

poesia chamada “dormindo”18

.

As aulas que se seguiam abordando a metodologia da dança pelos sentidos,

traziam sempre novidades perceptivas ao grupo, proporcionando o acesso a algumas

partes do corpo com maior ênfase, como a caixa torácica, quando trabalhamos com o

cheiro do café. A expansão e a contração da caixa torácica, que era proporcionada pelo

café, geravam possibilidades de movimento com qualidades que pouco tinham sido

percebidas ao decorrer das aulas onde o foco eram os fatores qualitativos do movimento

labaniano. A dança pelos sentidos desenvolve-se em uma perspectiva integradora de

corpo, um alargamento perceptivo e profundo do movimento gerado pelo olfato e

paladar.

Como a percepção estava mais aguçada, cada participante pode experienciar

qualidades de movimentos que antes não conseguiam identificar. O cheiro do café

possibilitou aos participantes acessar através dos movimentos, musculaturas,

articulações e regiões que até então, com o trabalho que estava sendo desenvolvido, não

tinham focalizado com tanta ênfase.

Destaco o trabalho com o pó de café, por ter sido um dos elementos olfativos

que mais gerou reflexões acerca do movimento dançado. Porém, houve outros

elementos de estímulo olfativo como: leite em pó, cravo, manjericão e laranja (a casca

da fruta).

Olfato e paladar estão extremamente ligados aos sentimentos, à afetividade, à

sexualidade. [...] o cheiro e o gosto conectam o ambiente externo com o

interno. O mundo é trazido para dentro do corpo e assimilado nesta relação

entre interior e exterior através de sensações de prazer e desprazer que se

traduzem na libertação ou restrição dos movimentos (LEAL, 2012, p. 67).

Na presente pesquisa vislumbro a abordagem do olfato e do paladar como a

combinação de três fatores do movimento labaniano, incluindo o fator fluência, que

Fernandes (2006) denomina de impulsos expressivos.

18

Depoimento extraído do caderno de anotações de um (a) dos (as) participantes da aplicação

prática desta pesquisa, no dia 27/08/2014.

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A “improvisação pelos sentidos”, na pesquisa de Leal (2012), atua como

facilitador para obtenção das qualidades do fator fluência, sendo um trabalho indireto e,

por este motivo, diminui a ansiedade do bailarino em conquistar as qualidades de

liberdade e controle da fluência.

Já na pesquisa em desenvolvimento nesta dissertação, o foco é o fator do

movimento tempo, suas qualidades e a combinação com outros fatores. O trabalho com

o olfato e paladar, dentro da proposta metodológica da “dança pelos sentidos: criação

coreográfica” vem enfatizar nesta pesquisa o tempo de entendimento do movimento na

criação, juntamente, com a percepção dos impulsos expressivos, o espaço, o peso e o

tempo, incluindo o fator fluência. Porém, não descarta o que Leal elucida na

“improvisação pelos sentidos” que o trabalho com os sentidos do olfato e paladar atuam

como facilitadores no entendimento da obtenção das qualidades do fator fluência.

Vale salientar que, na aplicação desta pesquisa, trabalhei as propostas

metodológicas, “a dança pelos sentidos: criação coreográfica” e “improvisação pelos

sentidos” de forma entrelaçada. Contudo, primeiro trabalhei o olfato e depois o paladar,

em uma perspectiva de criação (a dança pelos sentidos: criação coreográfica) e em uma

perspectiva de investigação qualitativa do movimento (improvisação pelos sentidos),

enfatizando que os dois sentidos são facilitadores da obtenção qualitativa do fator

fluência em combinação potente com os outros fatores (espaço, peso e tempo).

Decorrente desta abordagem, a discussão do tempo como qualidade do

movimento e do tempo de entendimento dos impulsos expressivos do movimento

desenvolveu-se gradualmente nas aulas. A discussão da lentidão foi sendo elaborada

como processo metodológico de entendimento do movimento na dança e como processo

de construção do intérprete-criador. Culminando, posteriormente, na discussão sobre a

potência da pausa na dança.

A experiência com o paladar foi tão proveitosa quanto a tida com o olfato.

Salivar, engolir, morder, mastigar são ações cotidianas que naquelas aulas,

especificamente, foram transcritas em movimento dançado, ampliando de forma

significativa todo o trabalho realizado desde o início das aulas.

Os elementos que foram mais utilizados para a abordagem pelo paladar foram as

frutas: uva, morango, banana e a mistura de várias delas (salada de frutas). O grau de

acidez ou de doçura das frutas e a textura delas na boca faziam com que os corpos em

laboratório experimentassem sensações mais próximas ao tato. Como o alimento está

em contato com a mucosa da boca e a língua, ações como mastigar e morder geram

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sensações como derreter, desmanchar, escorrer. Sensações que tomavam o corpo por

inteiro, fazendo com que os corpos derretessem para o chão, deslizassem em rolamentos

ou com os pés firmes, gerando movimentos, às vezes, fluídos, às vezes, pausado.

Ao sentarmos para a roda de conversa que acontecia em todas as aulas, o

primeiro fator a ser descrito era a fluência. Suas qualidades e suas gradações eram

relatadas sempre acompanhadas de algum movimento, assim como acontecia no relato

das experiências com o sentido do olfato.

A questão temporal, tanto nas qualidades e gradações de movimento, quanto no

tempo de entendimento e duração do movimento dançado, era o foco do relato, logo em

seguida da percepção do fator fluência. Os relatos acerca do tempo abriam caminhos

para a discussão sobre a pausa na dança e sobre a lentidão como proposta metodológica

de entendimento do movimento dançado e da construção do Ser que dança.

Desta forma, chegávamos ao terceiro momento da aplicação desta pesquisa, a

possibilidade de experimentarmos a pausa na dança e de assumir a lentidão como

proposta de pesquisa. Completando o ciclo do 3 em 1, onde o 3 é representado pelo

trabalho com a eukinética labaniana, as propostas metodológicas “a dança pelos

sentidos: criação coreográfica” e a “improvisação pelos sentidos” de Leal (2012) e a

proposta de assumir a lentidão como um caminho para o entendimento do Ser na dança,

e o 1 esse corpo integrado de inúmeras possibilidades de construção do saber em dança.

3 – O sabor da lentidão: a pausa na dança.

Neste momento da pesquisa proponho aos participantes a possibilidade de

assumirmos a lentidão como caminho para a percepção mais aprofundada do corpo na

dança. Até então, a lentidão foi trabalhada inúmeras vezes, como qualidade do fator do

movimento tempo, paulatinamente as discursões acerca da aceleração e desaceleração

dos corpos na contemporaneidade vinham sendo debatidas ao longo das aulas. Porém, o

foco da proposta das aulas anteriores era o entendimento dos fatores do movimento

labaniano, que a dança pelos sentidos de Leal, veio alargar esse entendimento e as

possibilidades de movimento.

A pausa e a lentidão como possibilidade de construção do conhecimento do

corpo na dança, que vem sendo aos poucos citadas no texto desde as primeiras linhas

escritas, como potência do movimento, como potência cênica, como potência

investigativa de criação e como proposta de um trabalho de consciência do corpo,

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começam, neste momento, a assumir um espaço importantíssimo na construção do

pensamento nesta pesquisa em dança.

Rengel (2005, p. 90) diz que, para Laban, a “pausa é o período de parada da ação

e/ou movimento”, assim “a duração da pausa pode ou não ser medida por unidades de

tempo proporcionais a dos movimentos que introduzem e concluem o período de

parada”. Quando o movimento pausa se configura o máximo do controle do fator

fluência, externamente o movimento do corpo está, aparentemente, parado.

A ênfase na palavra “aparentemente” é para refletir que mesmo quando o

movimento se encontra em pausa, internamente o fluxo sanguíneo corre naturalmente

em um constante e interminável ciclo nas veias e artérias do nosso corpo. Se esse ciclo

sanguíneo cessar, configura-se a interrupção do bombeamento do sangue devido à

parada do musculo cardíaco, o coração.

Músculo esse que se movimenta independente de qualquer ordem. Além do

coração, os pulmões estão em constante expansão e contração, configurando o

movimento da respiração. Que, por sua vez, está intimamente ligado com o músculo

diafragma, e com a constante entrada e saída de ar.

Os neurônios fazem sinapses incessantes e nossa percepção, em condições

normais, está nos movimentando constantemente, devido aos cheiros, gostos, ruídos,

sensações táteis e imagens.

Quando por algum motivo pausamos o movimento externo do corpo, precisamos

perceber que existem vários movimentos internos que nos movem. Que deslocam

líquidos, massas sólidas, estímulos neurais, pensamentos, vontades, querências. A pausa

existe, mais não absolutamente, a não ser na morte. Que em uma visão espiritual, a

pausa também não existe, ela se traduz em outra palavra, transição.

Penso a pausa como uma transição, que se potencializa exatamente neste

momento, quando o movimento externo pausa e internamente as transições de

movimento e cadeias cíclicas de fluxo geram impulsos, vontades, querências.

O trabalho com os fatores expressivos de Rudolf Laban (1978) e as propostas

metodológicas da dança pelos sentidos de Patrícia Leal (2012) vem conscientizando os

corpos participantes do processo de aplicação prática desta pesquisa a se prepararem

para perceber este estado de pausa. Por várias vezes no decorrer do processo de

aplicação prática, a pausa apareceu, mas não foi dado tanta ênfase, pois eu precisava

junto com os participantes entender qual estado potente de movência era esse que estava

pesquisando.

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Um momento muito significativo do processo da aplicação prática aconteceu em

uma manhã ensolarada e de muito vento, que se uniu a música “Águas de Março” de

Antônio Carlos Jobim, interpretada por ele e pela cantora brasileira Elis Regina. Essa

música esteve presente em diversos momentos ao decorrer do semestre, e sempre que

tocava o movimento improvisado dos participantes de alguma forma entrava em estado

de pausa, em um estado de grande dilatação perceptiva. A experiência com a pausa se

deu lentamente, gradualmente, sempre em um caminho qualitativo.

Neste momento se firma a ponte entre a desaceleração com o sabor da lentidão e

com a aplicação prática desta pesquisa, para atravessarmos em um estado de pausa.

Dois capítulos de preparação para o deleite da potência da pausa, que será exposto no

terceiro capítulo. Boa travessia!

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CAPÍTULO III

A POTÊNCIA DA PAUSA: O ESPAÇO/TEMPO DO ENTRE

O conceito de potência tem, na filosofia ocidental, uma longa história e, pelo

menos a partir de Aristóteles, ocupa nela um lugar central. Aristóteles opõe –

e ao mesmo tempo liga – a potência (dynamis) ao ato (energeia), e essa

oposição, que atravessa tanto sua metafísica como a sua física, foi transmitida

por ele como herança, primeiro à filosofia e depois à ciência medieval e

moderna (AGAMBEN, 2015, p. 243).

Embasado pelas reflexões que o filósofo italiano Giorgio Agamben (2015) faz

em seu texto, A potência do pensamento, disserto no início deste capítulo acerca da

construção do pensamento deste autor sobre a potência na perspectiva aristotélica. Desta

forma, construirei a fundamentação teórica dessa pesquisa acerca da potência do

movimento (o ato) e da pausa (o entre) na dança.

O objetivo desse capítulo é apresentar o conceito de potência nesta pesquisa,

para assim abrir caminhos para a discussão de dois tópicos: a potência do ato, o

movimento; e a potência do entre, a pausa. Dessa forma, ampliarei a proposição da

lentidão como conhecimento gradual e aprofundado na dança, trazendo a concepção

oriental de pausa a fim de ampliar o objetivo geral da pesquisa, que é propor a lentidão

como metodologia de conhecimento do corpo e como potência criativa para a dança.

Agamben (2015) traça uma linha sinuosa da construção de seu pensamento

acerca da potência. Primeiro, o autor se indaga “o que queremos dizer quando dizemos:

eu posso, eu não posso?”. Para elucidar essa pergunta, o autor relata uma breve história

contida na introdução da coletânea Requiem (1935 – 1940), da poetisa russa Anna

Akmatova, onde a autora conta como eram os dias na fila da prisão de Leningrado, a

espera de ter notícias sobre seu filho detido por delitos políticos. Em uma manhã, outra

mãe, em igual situação, diante de algumas palavras que Akmatova pronunciava na fila,

perguntou-lhe “Será que pode dizer isso?”. Akmatova se calou por um instante e depois,

sem saber por quê, encontrou nos lábios a resposta: “Sim, posso”.

Para cada homem chega o momento em que deve pronunciar esse “eu posso”,

que não se refere a qualquer certeza nem a qualquer capacidade específica, e

que, no entanto o compromete e põe em jogo inteiramente. Esse “eu posso”

além de toda faculdade e de todo o saber fazer, essa afirmação [...] coloca

imediatamente o sujeito em face da experiência talvez mais exigente – e, no

entanto, iniludível – com que ele alguma vez se confrontou: a experiência da

potência (AGAMBEN, 2015, p. 244).

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A decisão de Akmatova de dizer “sim, posso” carrega em si uma potência. Após

escutar a pergunta, houve um momento de silêncio, um momento de pausa, para logo

em seguida pronunciar a resposta. Este momento suspenso de tomada de decisão de

dizer “sim eu posso”, falar isso ou aquilo, é genuinamente um estado potente de

possibilidade, de dizer ou não dizer algo ou alguma coisa a alguém. Assumir essa

possibilidade é corporificar a decisão do sim ou do não, que leva o Ser para outro

estágio perceptivo de si, gerando outros questionamentos que suscitam outra gama de

possibilidades.

Em seguida, Agamben (2015) lança a segunda pergunta para a construção de seu

pensamento sobre a potência: “o que significa ter uma faculdade?”. O termo

“faculdade”, segundo o autor, exprime o modo como uma atividade é separada de si

mesma e atribuída a um sujeito. Afirma ainda que, ao falarmos que um homem tem a

“faculdade” de ver, a “faculdade” de falar, quando afirmamos simplesmente “isso não

está em minhas faculdades”, movemo-nos já na esfera da potência.

Algo como uma “faculdade” de sentir se distingue do sentir em ato, de modo

que este possa ser referido propriamente a um sujeito. Nesse sentido, a

doutrina aristotélica da potência contém uma arqueologia da subjetividade, é

o modo como o problema do sujeito se anuncia a um pensamento que não

tem ainda essa noção. Hexis (de echos, “ter”), hábito, faculdade, é o nome

que Aristóteles dá a essa in-existência da sensação (e das outras

“faculdades”) em um vivente. O que é assim “tido” não é uma simples

ausência, mas algo que assume a forma de uma privação (no vocabulário de

Aristóteles, steresis, “privação”, está em relação estratégica com hexis), isto

é, de algo que atesta a presença do que falta ao ato (AGAMBEN, 2015, p.

245).

Ter uma potência, ter uma faculdade, significa, segundo Aristóteles, ter uma

privação. Por este motivo, a sensação não sente a si mesma, assim como o combustível

não queima por si, sem um princípio de combustão. A potência é, portanto, a hexis (ter)

de uma steresis (privação), às vezes, o potente é tal porque tem algo, outras vezes

porque lhe falta. O que interessa para Aristóteles é a potência que significa ter uma

privação. Pois, para o filósofo grego existem dois tipos de potência: a potência genérica,

que é aquela de que se trata quando se diz que uma criança tem potencial para ciência,

ou que é em potência arquiteto ou chefe de Estado. A criança ainda não tem o saber ou a

habilidade técnica especifica para tais áreas, mas pode vir a ser percebida uma

disponibilidade para tal. E a segunda, é a potência de quem já tem a hexis (ter)

correspondente a certo saber ou a certa habilidade (AGAMBEN, 2015).

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É no sentido da potência do já ter um saber ou uma habilidade que se pode dizer

que o bailarino tem a potência de dançar mesmo quando não está dançando, ou que um

violinista tem a potência de tocar o violino mesmo quando não toca. A potência em

questão difere essencialmente da potência genérica que compete à criança. Aristóteles

escreve que, a criança é potente no sentido de que deverá se modificar através da

aprendizagem. Aquele que já possui uma habilidade não sofrerá mudança alguma, mas é

potente a partir de uma hexis, que pode não pôr em ato ou atuar (AGAMBEN, 2015).

Em relação à potência de pôr em ato, a decisão de falar ou não falar, dançar ou

não dançar, pôr em ato ou não atuar é potência, segundo o pensamento aristotélico. É

um ato político de tomada de decisão.

Agamben (2015) apresenta, ainda, outra importante concepção da presença

privativa da potência do filósofo grego Aristóteles, o escuro (skotos), tratando da

sensação, em particular, da visão. Ele afirma que a treva é a potência da luz.

O objeto de vista [...] é a cor, mais outra coisa para a qual não temos um

nome, mas que ele sugere que se chame o diáfano (diaphanes). O termo não

se refere aqui simplesmente aos corpos transparentes, como o ar ou a água,

mas a uma certa “natureza” (physis) presente neles e que constitui o que é

propriamente visível em cada corpo. Aristóteles não define essa natureza,

mas se limita a postular sua existência (esti de ti diaphanes, “existe o

diáfano”); ele afirma, porém, que o ato dessa natureza como tal é a luz, e que

a treva é sua potência. E se a luz é, como ele acrescenta logo a seguir, a cor

do diáfano em ato não seria então errado definir o escuro, que é a steresis da

luz, como a cor da potência. Em todo caso, é uma única e mesma natureza

que se apresenta uma vez como treva e outra vez como luz. [...] a sensação é

uma potência e não um ato. [...] Quando não vemos (isto é, quando nossa

vista permanece em potência) distinguimos, porém, o escuro da luz, vemos,

digamos assim, as trevas, como cor da visão em potência. [...] o escuro e a

luz, a potência e o ato, a privação e a presença (AGAMBEN, 2015, p. 247-

248).

Em dança, as sensações acerca do movimento dançado, das reflexões da prática

diária, da propriocepção, do mapeamento do corpo pelo cérebro, entre outros, são

potências, que, transcritas no movimento, se concretizam como atos. A escuridão que

potencializa a dança acontece no momento do fazer, onde teoria e prática se fundem

dando luz ao ato de dançar. É a potência de uma privação que gera uma tomada de

decisão pelo dançante, levando-o gradualmente à luz, ao ato, à presença, que

integralmente se torna corpo dançante potente de ser escuridão e luz ao mesmo tempo.

A consciência de que a escuridão (a potência) é imprescindível para o ato (o

movimento), um alimenta o outro, ampliando o entendimento do corpo na/da dança até

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vislumbrarmos o preto (a escuridão) no branco (a luz) e o branco (o ato) no preto (a

potência).

Figura 8 – Solo “Elo” (2013)

Fonte: Reginaldo Azevedo (2013)

Com base na pesquisa desenvolvida pela arte-educadora em dança Karenine

Porpino (2006), ampliarei a reflexão acerca da potência do ato na dança, aproximando

esta discussão à fenomenologia da percepção do filósofo Merleau-Ponty (1994).

Porpino (2006) conceitua corporeidade para poder adentrar em outros aspectos

conceituais de sua pesquisa sobre dança e educação. Entretanto, o conceito de

corporeidade, na corrente pesquisa, fundamenta e amplia o entendimento do corpo

fenomenológico percebendo-o como fonte embrionária da potência do ato na dança.

Corporeidade “não significa se referir a qualquer corpo, mas a uma concepção não

simplista do mesmo [...] onde é possível criar e viver a história de uma maneira não

determinista” (PORPINO, 2006, p. 63).

Na relação entre corporeidade e corpo sugerimos a corporeidade como sendo

a unidade que engloba uma pluralidade de formas ou de existências. [...] A

corporeidade é a unidade na pluralidade de formas, ou, seja, na pluralidade de

numerosos e diversos corpos existencializados (NÓBREGA, 1999 apud

PORPINO, 2006, p. 63).

A partir deste conceito, é possível entender o corpo como possuidor de uma

potência singular, a qual relaciono com a hexis (ter), que somente se compreende na

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pluralidade, a qual relaciono com a steresis (privação), da existência de outros corpos,

proporcionando o conhecimento mais consciente de si e do mundo (PORPINO, 2006).

A potência do ato na dança como sendo o movimento é uma retroalimentação do

corpo integrado, sendo e estando em potência ao mesmo tempo, abrindo possibilidade

de criação de novas formas de compreensão do mundo e de si. Cada movimento é a

possibilidade (potência) para novas ramificações do conhecimento do corpo que dança,

sendo a repetição um momento emergente de potências de experiência que geram

gradualmente uma consciência do corpo na dança.

O corpo é visível ao mesmo tempo em que se vê, é tocado ao mesmo tempo

que toca, um direito e um revesso, que sempre retorna um ao outro, como na

reversibilidade de um aperto de mãos. [...] A reversibilidade do corpo torna-o

uno e múltiplo simultaneamente [...] É a partir da reversibilidade entre corpo

e mundo que emerge a possibilidade de um logos estético como uma nova

compreensão do conhecimento, assim como uma compreensão da

corporeidade que desvela a poesia do corpo que somos na teia das múltiplas

interpretações da existência, percebendo o ser humano como criador de si

mesmo e ao mesmo tempo criação do mundo (MERLEAU-PONTY, 1999

apud PORPINO, 2006, p. 62).

Compreender corporeidade como uma unidade que engloba pluralidades de

formas e de diversidades corporais é potencializar a concepção da potência do ato (o

movimento) e do entre (a pausa) nesta pesquisa em dança. O corpo é a unidade

potencializadora do conhecimento em dança, de onde emergem pluralidades potentes de

movimento dançado e de um estágio que antecede o movimento externo. Um

espaço/tempo que se situa entre a potência e o ato, sendo uma transição de um para o

outro, que ao mesmo tempo é potência e ato. Configurando-se em alguns momentos

como uma pausa. Contudo, nesta pesquisa em dança, a pausa não é percebida como um

relaxamento decorrente de um grande esforço físico, mas sim um momento que

pluralidades sensoriais e motoras emergem de uma singularidade plural potente de ser

ao mesmo tempo unidade e diversidade, o corpo.

Ao chegarmos nesse entendimento de corpo fenomenológico na dança (me refiro

à dança por ser a área foco da pesquisa) abrimos o espaço/tempo potente do entre, onde

a escuridão (a potência) adentra a luz (o ato) e a luz invade a escuridão. De modo a se

encaixarem, respeitando o tempo de maturação do entendimento desse espaço/tempo no

corpo que dança. Visível ao mesmo tempo em que se vê, tocando e sendo tocado, corpo

integrado que é escuridão (a potência) e luz (o ato) simultaneamente.

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O filósofo da antiguidade, Temístio, seguidor do pensamento aristotélico, faz um

reflexão acerca da potência para as trevas, dizendo que:

Se a sensação não tivesse uma potência tanto para o ato como para o não-ser-

em-ato, se ela fosse sempre e apenas em ato, não poderia nunca perceber o

escuro (tou skotous) nem ouvir o silêncio; do mesmo modo, se o pensamento

(nous) não fosse capaz [...] tanto do pensamento como do não-pensamento

(anoian), não poderia nunca conhecer o mal, o sem-forma (amorphon), o

sem-figura (aneideon) [...] Se o pensamento não tivesse nada de comum com

a potência, não conheceria as privações (tas steresis) (TEMÍSTIO apud

AGAMBEN, 2015, p. 248).

Ouvir o silêncio, do qual Temístio reflete, é, no contexto dessa pesquisa, a

potência do espaço/tempo do entre. Força que se potencializa entre a potência e o ato,

entre a escuridão e a luz, entre a privação e a presença. Agamben (2015) continua

apresentando em seu texto pensamentos de Aristóteles que embasam ainda mais a

concepção da potência do espaço/tempo do entre.

Se uma potência de não ser pertence originalmente a toda potência, será

verdadeiramente potente só quem, no momento da passagem ao ato, não

anular simplesmente sua potência de não, nem deixá-la para trás em relação

ao ato, mas a fizer passar integralmente no ato como tal, isto é, poderá não-

não passar ao ato (ARISTÓTELES apud AGAMBEN, 2015, p. 253).

Agamben (2015, p. 253) complementa o pensamento aristotélico: “a passagem

ao ato não anula nem esgota a potência, mas esta se conserva no ato como tal e,

particularmente, em sua forma eminente de potência de não (ser ou fazer)”.

A partir do pensamento de Agamben (2015) sobre a potência aristotélica,

construí um caminho de entendimento que culmina na potência do entre. Um

espaço/tempo intervalar, que pode ser chamado de pausa, transição, fronteira. Agora,

diante ao conceito de potência (AGAMBEN, 2015), outros conceitos poderão, de

maneira mais clara, serem refletidos. O movimento, que será entendido como a potência

do ato, e a pausa, que será entendida como a potência do entre. Entretanto, começarei

refletindo sobre a potência do ato, que considero como sendo o movimento dançado

(movimento externo). Para assim, chegar à reflexão sobre a potência do entre, que

considero nesta pesquisa como sendo a pausa na dança.

1. A potência do ato: o movimento.

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O movimento do corpo não é um símbolo da expressão: ele é a própria

expressão (BARTENIEFF, 1975 apud FERNANDES, 2006, p. 22).

A partir da concepção da potência aristotélica debatida no início desse capítulo,

trago para a discussão neste tópico, o movimento como sendo a potência do ato na

dança. A concretude do movimento do corpo humano, na dança, traz consigo um

conjunto de potências, como, a consciência, a expressividade, as possibilidades criativo-

educacionais e criativo-cênicas, a linguagem, os gestos, entre outros. Porém, das seis

potências citadas, considero que a consciência e a expressividade, agregam de maneira

integradora as demais. Entretanto, a consciência será entendida como um conjunto de

potências do movimento do corpo, onde construirei a fundamentação conceitual deste

trabalho acerca da potência do ato na dança, como sendo o movimento. Para tal, trarei a

pesquisadora em dança Patrícia Leal (2012), o filósofo português José Gil (2002), e o

neurocientista português António Damásio (2011), para desenvolver o conceito de

consciência na dança. Bem como, outros autores, que fazem a costura do pensamento de

maneira rizomática.

A pesquisadora em dança, Patrícia Leal (2012), relata em sua pesquisa que o

movimento do corpo é o material mais próprio da dança. A concretude do movimento

do corpo, para Leal, é um estimulo de pesquisa interpretativa a partir dos sentidos, que

auxilia seus processos coreográficos, pedagógicos, improvisacionais. Entre suas

propostas metodológicas em dança contemporânea, na “dança pelos sentidos: criação

coreográfica”, a autora sugere um primeiro momento no processo de construção

coreográfica pelos sentidos: o reconhecimento da matriz de movimento a partir de

estímulo sensorial. No caso do sentido do olfato, “a matriz corporal é o primeiro

movimento do cheirar determinado elemento” (LEAL, 2012, p. 83). Ou seja, cheirar pó

de café, por exemplo, provoca uma percepção e é essa primeira percepção, esse

primeiro movimento, que constitui a matriz corporal na dança pelos sentidos. “A matriz

corporal é o próprio movimento da percepção” (LEAL, 2012, p. 83).

O movimento, na metodologia da dança pelos sentidos, é uma investigação

consciente do corpo na dança. Quem aponta a direção da construção coreográfica é o

movimento, não existindo um roteiro prévio, tão pouco uma necessidade de representar

algo, no sentido de fazer aparecer, imitar ou criar algo semelhante a alguma coisa ou

alguém (LEAL, 2012).

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O trabalho criativo através dos sentidos do olfato e paladar começa com o

reconhecimento de uma matriz de movimento. Considero como matriz um

ponto de origem, onde o processo criativo se inicia. O estimulo primeiro, a

primeira consciência da movimentação que irá se desenvolver. [...] Entender

a matriz corporal é desenvolver a consciência mais miúda a respeito da

percepção em questão (LEAL, 2012, p. 83).

Leal (2012) afirma ainda, que ao cheirar ou ao degustar um elemento, além de

reconhecê-los, lembramo-nos de fatos de nossa vida, julgamos se o cheiro é agradável

ou não. “Para o reconhecimento da matriz corporal, tudo isso é consciente, mas não

focalizado, o foco é o movimento. A construção da matriz é a capacidade de perceber e

depois, mesmo sem o elemento, desenvolver o movimento do cheirar ou do saborear”

(LEAL, 2012, p. 84). Decorrente aos estudos e práticas desta metodologia, afirmo que,

precisamos sentir muitas vezes o cheiro ou o gosto do elemento para que sejamos

capazes de reconhecer o movimento gerado por esses estímulos. O foco é o movimento.

Durante a aplicação prática desta pesquisa o trabalho com a dança pelos

sentidos, com o estímulo olfativo, proporcionou aos participantes perceber o que Leal

(2012) afirma acima. Uma das participantes ao cheirar o café relata:

Gosto de café me remete ao passado. Minha família na mesa à tarde tomando

um “cafezinho”. Mas, ao sentir o cheiro do café, meu corpo expandiu. Estava

sentada e fiquei inspirando e expirando profundamente várias vezes. Aquele

cheiro tomava conta do meu corpo. Me deu vontade de fazer movimentos

circulares com a cabeça, no tronco e depois levantar os braços em

movimentos contínuos e ondulados, com sensação de leveza. Balançava o

corpo de um lado para o outro19

.

Podemos perceber no relato deste participante, que as memórias e os

julgamentos de gosto, surgem na medida em que o cheiro do café invade seu corpo. Na

mesma medida que a expansão corporal se traduz como matriz. A expansão da qual o

participante relatou, foi experimentada toda vez que o cheiro do café era inalado. A

matriz no tocante desta pesquisa é potência e ato simultaneamente.

Segundo a proposta metodológica da “dança pelos sentidos: criação

coreográfica”, a vontade que a participante teve de movimentar cabeça, pescoço, braços

e a concretude do movimento do balançar o corpo de um lado para o outro, se configura

como célula coreográfica. Uma etapa que se desenvolve logo após o reconhecimento da

matriz de movimento.

19

Relato extraído do caderno de anotações de um dos participantes na aplicação prática desta

pesquisa, em 27/08/2014.

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Na dança pelos sentidos, Leal (2012) ressalta a importância da consciência

corporal, pois “sem a consciência da percepção dos sentidos como movimentos e a

compreensão da dinâmica destes movimentos no corpo, não é possível qualquer

investigação interpretativa e/ou criativa pelos sentidos” (LEAL 2012, p. 55), sendo

assim convergindo aos conceitos da educação somática.

A educação somática relaciona sinergicamente a consciência, o biológico e o

ambiente, ou seja, considera o corpo do individuo contextualizado às suas

especificidades e à sua relação com o espaço onde se encontra. Neste sentido,

os aspectos motores, sensoriais, perceptivos e cognitivos são considerados

simultaneamente e há uma maior valorização do processo corporal do que de

um resultado formal final. As práticas de educação somática facilitam o

desenvolvimento técnico expressivo do intérprete criador e previnem

possíveis lesões. Existe também um amplo respeito às condições e

características de cada um, considerando o individuo em seus múltiplos

aspectos, valorizando a busca por um corpo preparado, pronto ao processo

criativo. Pronto no sentido de prontidão, não no sentido de receitas ou

fórmulas pré-estabelecidas. O trabalho consciente permite, a cada corpo, em

suas especificidades e sua história, um ponto de partida para o trabalho

criativo (STRAZZACAPPA, 2001; SOTER, 1998 apud LEAL, 2012, p. 55).

As práticas de educação somática foram apresentadas a mim ao longo dos

estudos sobre o corpo, a dança e o movimento, entrelaçando as práticas e as teorias da

dança, culminando em um fazer prático-reflexivo que constrói dia após dia à

consciência do corpo que dança. As práticas somáticas estão fortemente ligadas com

meu fazer artístico-docente. Respeito às condições e características de cada indivíduo na

busca pela consciência corporal sem pressa de um entendimento imediato, mas

valorizando uma escuta do corpo que acontece durante o processo criativo-educacional.

Desta forma, o movimento do corpo é potência no ato do fazer dança, onde a

consciência e a expressividade caminham lado a lado.

A aplicação prática desta pesquisa proporcionou perceber o movimento como

potência da consciência gradual do corpo que dança. Desenvolveu nos participantes um

olhar de corpo integrado, em uma perspectiva somática, que abrange o entendimento do

mesmo no ato da dança. A consciência é sutilmente desenvolvida em um tempo que

nada tem de veloz. A presa pelo busca de uma consciência do corpo causa ansiedade e

desvio da atenção. Por vezes, na aplicação prática, alguns participantes entravam em um

caminho aparentemente mais curto e veloz para entender e perceber como esse ou

aquele movimento surgia de um determinado estímulo sensorial.

Ao decorrer das aulas fomos percebendo que não é o tamanho do trajeto que nos

fazia perceber o movimento, mas sim o grau de disponibilidade perceptiva que nos faz

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mergulhar com calma e gradualmente mais a fundo no movimento. Percebendo suas

potências qualitativas que dia após dia nos guia em novas descobertas corporais, com

sutilezas. Movimentos que na lentidão e na pequinesa potente, afloram dando forma ao

fazer artístico-educacional.

O filósofo português José Gil (2002), em seus estudos sobre a dança, repensa os

fundamentos ontológicos da dança: o corpo, a linguagem, o gesto, o sentido, a

comunicação e a consciência. E o faz em um dialogo entre teóricos da dança, como

Rudolf Laban, Merce Cunningham, Yvone Rainer, Steve Paxton e Pina Bausch, mas

também com filósofos como Merleau-Ponty, Kant, Husserl, Deleuze e Guatarri.

No decorrer da construção do seu pensamento sobre a dança, o filósofo faz uma

pergunta que me fez refletir sobre a dança: “o que é o plano de imanência da dança?”

(GIL, 2002). Imanência é a qualidade do que pertence à substância ou essência de algo,

estando em sua interioridade. É a característica ou particularidade daquilo que é

intrínseco ao mundo material e concreto. Dessa forma, refiz a pergunta: o que é o plano

da particularidade intrínseca e concreta da dança? o movimento.

Porém, Gil (2002) esclarece que não é qualquer plano de movimento. Pois, a

marcha, por exemplo, compõe também um plano de movimento, onde podemos

inclusive incluir movimentos não habituais para uma marcha, como andar virando a

cabeça para a esquerda e para a direita. Mas, mesmo assim, não se forma um plano de

imanência.

José Gil (2002) esclarece que:

Para construir tal plano dançando, requerem-se pelo menos duas condições:

a) que o pensamento e o corpo façam um só movimento; b) que o movimento

do corpo seja infinito, o que implica que possa agenciar-se como outros

corpos dançantes (GIL, 2002, p. 99).

O filósofo apresenta Steve Paxton, coreógrafo e bailarino americano, que

escreve sobre a consciência no desenvolvimento de sua técnica de contato

improvisação, que colabora com a fundamentação teórica desta pesquisa. Paxton (1993)

afirma que a consciência pode viajar no interior do corpo e diante essa afirmação, José

Gil (2002) reflete acerca desse pensamento.

Se a consciência pode viajar no interior do corpo, é com o fim de construir

um mapa desse espaço interno. Não como um espelho que reflete uma

paisagem, mas como uma topografia dos trajetos e dos lugares da energia. Só

esse mapa permite ao bailarino orientar os seus movimentos sem ter de os

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vigiar do exterior (como na aprendizagem do ballet diante do espelho), como

eles se orientassem por si próprios. Assim o bailarino tem necessidade de ter

mais que uma consciência do exterior do seu corpo; tem dele uma

consciência “do interior” (GIL, 2002, p. 100).

A construção de mapas da qual Gil (2002) escreve, proporciona-me trazer a

pesquisa do neurocientista António Damásio acerca do mapeamento que o cérebro faz

do corpo. Damásio (2011) afirma que o cérebro complexo do ser humano, produz

naturalmente, com mais ou menos detalhes, mapas explícitos das estruturas que compõe

o corpo. Mapeia também, os estados funcionais que esses componentes do corpo

assumem. Destaca ainda, que “esse mapeamento do corpo pelo cérebro tem um aspecto

singular e sistematicamente menosprezado: embora o corpo seja [...] mapeado, ele

nunca perde o contato com a entidade mapeadora, o cérebro” (DAMÁSIO, 2011, p.

119). E continua sua explicação afirmando que o minucioso mapeamento do corpo não

mapeia somente o corpo propriamente dito, como, os músculos, o esqueleto, os órgãos

internos, o meio interno. Mas mapeia também mecanismos especiais da percepção,

como, as mucosas do olfato e paladar, os elementos táteis da pela, os ouvidos, os olhos,

que ocupam zonas específicas do corpo. Mapeando assim, o corpo de forma inteira.

O corpo interage com o meio circundante, e as mudanças causadas no corpo

pela interação são mapeadas no cérebro. Sem dúvida é verdade que a mente

toma conhecimento do mundo exterior por intermédio do cérebro, mas é

igualmente verdade que o cérebro só pode obter informações por meio do

corpo. [...]. Mapeando seu corpo de modo integrado, o cérebro consegue criar

o componente fundamental daquilo que virá a ser o self (DAMÁSIO, 2011, p.

121).

O mapeamento do corpo pelo cérebro proporciona constantes estados de

potência para uma consciência corporal. Todo o meio interno, as zonas que se

encontram os mecanismos da percepção e o meio externo são mapeados de maneira a

nos proporcionar um grau de entendimento do tamanho dos órgãos e ossos, da espessura

e textura da pele por meio do sentido tátil, do espaço que ocupamos por meio dos outros

sentidos e por meio do movimento do corpo. E sobre o movimento, Damásio nos diz

que:

Pegar um objeto, andar, falar, respirar e comer são, todas, ações que

dependem da concentração e distensão de músculos esqueléticos. Sempre que

tais contrações ocorrem, muda a configuração do corpo. [...] Para controlar os

movimentos com precisão, o corpo deve transmitir instantaneamente ao

cérebro informações acerca do estado de contração de músculos esqueléticos.

Isso requer trajetos nervosos eficientes, os quais são evolucionariamente mais

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modernos do que os que transmitem os sinais das vísceras e do meio interno.

[...] O estado do interior do corpo é transmitido ao cérebro por canais neurais

dedicados a regiões cerebrais especificas (DAMÁSIO, 2011, p. 125 – 127).

Diante ao exposto por Damásio, acredito que o movimento dançado, as aulas de

dança, em especial as que têm um pensamento somático, desenvolvem a consciência do

corpo de maneira gradual e aprofundada. Observo que o movimento através da lentidão

e das qualidades que se situam no espaço-tempo do entre, ajuda de maneira significativa

no desenvolvimento da percepção consciente do movimento na dança, onde em

momento nenhum descarto o movimento acelerado enquanto qualidade do fator

labaniano tempo. Entretanto, destaco a lentidão como uma perspectiva metodológica de

construção aprofundada do saber em dança, que abarca o desenvolvimento das

qualidades expressivas do movimento do bailarino, do fazer criativo coreográfico e do

fazer pedagógico.

No processo coreográfico desenvolvido para esta pesquisa, intitulado Amiúde

(2015), o trabalho com as qualidades do fator do movimento labaniano tempo, estão

intimamente ligadas com o desenvolvimento da concepção da lentidão como proposta

metodológica no fazer criativo-educacional em dança. O movimento lento em Amiúde

potencializa as cadeias estruturais e improvisacionais de movimentos juntamente com a

qualidade mais acelerada.

O fundamental a ser observado é o movimento em si mesmo, de uma maneira

investigativa saborosa, percebendo como e por quais caminhos o movimento emerge

como ato na dança. Compreendendo também, que a observação dos movimentos dos

corpos, tanto na aplicação prática da pesquisa como no fazer diário da dança, é fonte de

conhecimento e de construção dos mapas cerebrais, independente de que técnica em

dança esteja sendo trabalhada.

Mediante ao exposto por José Gil (2002), António Damásio (2011) e pelas

experiências na atuação docente, pesquisadora e praticante da dança, percebo que o

mapeamento que o cérebro faz do corpo se potencializa e torna-se ato (movimento) na

dança com práticas corporais somáticas, artes márcias orientais e técnicas em dança,

como por exemplo: eutonia, antiginástica, método Klauss Vianna, Tai Chi Chuan,

improvisação em dança, a metodologia da dança pelos sentidos, entre outros. Cito essas

técnicas corporais, marciais e em dança, pois em vários momentos da formação

artística-docente tive contato com essas técnicas que me proporcionaram essa percepção

acerca do movimento na dança.

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As abordagens acima auxiliam na compreensão da consciência do corpo para

apresentar a concepção que José Gil (2002) traz sobre a the small dance (a pequena

dança) que compõe a técnica do contato improvisação de Steve Paxton. Segundo Paxton

(1978 apud GIL, 2002, p. 101), “a pequena dança é o movimento efetuado no próprio

ato de estar de pé: não é um movimento conscientemente dirigido, mas pode ser

conscientemente observado”. Paxton considera a “small dance” a fonte primeira de todo

movimento humano, pois é ela que nos sustenta quando estamos de pé. “É o movimento

microscópico que descobrimos no interior do nosso corpo e que o mantém de pé. [...]

Termos consciência do interior do corpo começa pela “observação” da “small dance”

em nós” (GIL, 2002, p. 101).

Ora, ter consciência dos movimentos internos produz dois efeitos: a

consciência amplia a escala do movimento, experimentando o bailarino a sua

direção, a sua velocidade e a sua energia como se tratassem de movimentos

macroscópicos; e a própria consciência muda deixando se manter no exterior

do seu objeto para o penetrar, o desposar, impregnar-se dele: a consciência

torna-se consciência do corpo, os seus movimentos enquanto movimentos de

consciência adquirem as características dos movimentos corporais. Em suma,

o corpo preenche a consciência com a sua plasticidade e continuidade

próprias. Forma-se assim uma espécie de “corpo da consciência”: a

imanência da consciência ao corpo emerge à superfície da consciência e

constitui doravante o seu elemento essencial (GIL, 2002, p. 101).

Paxton (1978) pretendia que cada um que fosse experimentar a técnica de

contato improvisação desenvolvida por ele, percebesse que ao descontrair (relax) as

estruturas musculares, no ato de ficar de pé, ocorria uma percepção (consciência)

corporal mais aguçada, podendo perceber uma quantidade de movimentos pequenos. A

percepção desses pequenos movimentos e o ato de ficar de pé, segundo Paxton (1978),

gera um limite entre o ficar de pé com a musculatura descontraída e o não cair pela

descontração excessiva da musculatura. Esse espaço-tempo do entre ficar de pé e cair,

faz o movente “entrar em contato com um esforço de base que os sustenta, e que tem

lugar no corpo sem interrupções, de tal maneira que não é preciso estar consciente dele”

(PAXTON, 1978 apud GIL, 2002, p. 101). Esses pequenos movimentos que não se

precisa estar com o foco da atenção neles e que sustentam o corpo fazendo com que

entrem em contato com forças elementares, Paxton chama de “a pequena dança”.

O trabalho que Steve Paxton desenvolveu com “a pequena dança” para chegar à

técnica de contato improvisação, me fez lembrar o ator e diretor Yoshi Oida, pelo fato

de utilizarem a posição de pé para iniciar o trabalho com o movimento e ampliar a

consciência corporal. Oida (2007) começa seu trabalho com o movimento, na posição

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de pé, passando por quatro posições diferentes, proporcionando uma percepção da

estrutura e do posicionamento corporal do espaço, tanto interno quanto externo. Tanto

Steve Paxton quanto Yoshi Oida começam o trabalho com o movimento corporal na

posição de pé, proporcionando assim o desenvolvimento de uma percepção corporal que

gradualmente se configurará em consciência.

Percebo nos dois artistas-pesquisadores uma preocupação com o despertar da

consciência corporal, trabalhando o movimento com sutilezas perceptivas que culminam

em uma ramificação do movimento no corpo, gerando uma consciência aprofundada do

corpo através de um tempo mais lento de construção do entendimento e da percepção do

movimento corporal.

[...] precisamos começar o trabalho na posição de pé, para depois desdobrá-la

em movimentos descendentes e ascendentes. Na sequência, exploramos a

posição sentada, seguida do caminhar, o qual, sucessivamente, nos permite ir

para qualquer lado. Aprender a geografia do corpo não é uma simples

questão de fazer exercícios ou adquirir novos e interessantes padrões de

movimento. Isso exige uma consciência desperta. Percebam o modo como

ficamos de pé normalmente. As pequeninas regiões de tensão ou

desequilíbrio afetam não só nossa facilidade de movimento e nossa expressão

externa, mas também a forma como estamos nos sentindo emocionalmente.

Cada minúsculo detalhe do corpo corresponde a uma diferente realidade

interior (OIDA, 2007, p. 36).

As artes cênicas trabalham o movimento do corpo de modo a atentar para o

movente que é preciso acordar, despertar, penetrar, impregnar-se do movimento de

maneira gradual, aprofundada e consciente, vendo-se como um corpo integrado, sem

dicotomias. Essa busca diária do artista cênico, especificamente, traz o desejo do

despertar o corpo através do movimento, na busca por uma consciência de si, atrelada à

expressividade do fazer no corpo, do corpo, para o corpo, tanto na dança quanto no

teatro. Por vezes, os processos se dão de forma acelerada, causando pulos em etapas

importantes do entendimento do movimento mais consciente. Venho percebendo que a

desaceleração processual e a lentidão como escolha de conhecimento aprofundado do

corpo, em processos criativos, processos educacionais (em dança) e no tempo como

qualidade do movimento dançado, proporciona uma consciência que penetra e impregna

o corpo de maneira que o movente entre em contato com a potência da experiência.

Diante aos estudos sobre o movimento dançado e suas ramificações conceituais

trazidas neste texto por, Patrícia Leal (2012), José Gil (2002), António Damásio (2011),

percebo que o fazer artístico-docente na dança precisa desenvolver-se de forma

embasada e coerente com o seu tempo de entendimento perceptivo sobre seu corpo, as

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técnicas em dança e outras técnicas, como as de educação somática. Muitas pessoas,

mesmo com a prática diária da dança, mais se aprisionam do que se conscientizam de

seu corpo, devido a ideias destorcidas sobre corpo e técnica em dança.

O movimento que emerge como ato explorando os sentidos, as qualidades

expressivas do movimento, os símbolos, as imagens, as informações advindas do

mapeamento que o cérebro faz do corpo é o ato na dança em sua concretude perceptiva.

É a partir do entendimento do movimento com potência do ato na dança que se constrói

um saber consciente do corpo para essa pesquisa, onde comungo com o pensamento dos

pesquisadores citados que embasam de maneira qualitativa a pesquisa em dança nesta

dissertação.

2. A potência do entre: a pausa

Seus pés podem tanto deslizar quanto bater pesadamente no chão, passar

levemente pelo solo ou, ao que parece despertar alguma enigmática energia

da terra. Também o contrário: da parte superior do corpo, o movimento desce

aos braços e às mãos. E pausas, como se o instante pudesse ser, não

propriamente interrompido, mas continuado. Aqui e ali seu movimento fica

suspenso no ar, deixando espaço para que se complete o sentido (BOGÉA,

2002, p. 28).

A potência que será abordada neste tópico permeia a pesquisa como um todo. Os

relatos sobre a minha infância e adolescência dada à aceleração. A experiência artística

e todas as questões acerca do entendimento gradual sobre a lentidão processual em

dança. A aplicação prática desenvolvida na EDTAM. A composição coreográfica

Amiúde. E o entendimento de potência nesta pesquisa. Proporciona a construção do

entendimento de movimento como potência do ato na dança e da pausa como potência

do entre-espaço de fronteira entre a potência e ato, ou seja, uma zona intervalar de

passagem entre ações embrionárias potentes de ser e de não ser. Proporcionando uma

consciência do corpo fenomenológico de que somos criador de si e ao mesmo tempo

criação do mundo. Um corpo singular que gera pluralidades potentes. Assim sendo, a

discussão da potência do entre, a pausa, ampliará o entendimento da consciência do

corpo que dança.

A concepção de pausa nesta pesquisa é de um tempo-espaço fronteiriço da

passagem sutil da potência para o ato, sempre em continuidade. Nada tem haver com

interrupção ou parada total de movimentos e intenções. É uma suspensão de

movimentos potentes de possibilidades, – permitindo a redundância, já que para

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Aristóteles potência e possibilidades são sinônimas – criando espaços de percepção

entre ações em uma zona intervalar de passagem, que tem a lentidão como qualidade

potencializadora de uma escolha processual (OKANO, 2007).

Assumir a lentidão como escolha processual da construção do corpo que dança

é potencializar o movimento (a potência do ato), e a pausa (a potência do entre).

Tomando para si a lentidão como linguagem em dança, que se constrói aos poucos e

profundamente, sendo construção de conhecimento do corpo. Um saber que é

construído na vivência mais íntegra, buscando a consciência pela qualidade e não pela

quantidade. Corpo que reconhece e considera seus limites potencializando-os na escuta

diária do fazer em dança (LEAL, 2012).

Um dos participantes da aplicação prática desta pesquisa relata a experiência

com a lentidão dentro do tempo-espaço da potência do entre, decorrente a uma das aulas

onde a abordagem da pausa (a potência do entre) era o foco da pesquisa. Nesta aula foi

lido parti de um capítulo da pesquisa da Dança pelos sentidos da pesquisadora em dança

Patrícia Leal (2012) no início do trabalho sobre a pausa e a lentidão.

Com os corpos estirados no chão os participantes escutaram o seguinte texto:

Sinto o aroma doce de uma xícara de café. O ar perfumado expande minhas

narinas, a nuca, o coração e o ventre. Ouço conversas infinitas, distantes,

internas, próximas. O cheiro acalma, relaxa, alivia, estou em casa seja onde

for. Tilintar de xícaras, encontro de pessoas, conversas prolongadas, posso

deitar e dormir. O aroma é como sono, sonho, real, sutil, efêmero. Tempo que

ralenta como a sensação de expansão que enche o corpo de ar; quente, doce,

familiar. Inspiração prolongada. Nunca mais vou soltar o ar, Espaço, interno,

infinito (LEAL, 2012, p. 40).

O texto foi lido ao som do vento que entrava pelas janelas da sala de dança.

Corpos em pausa. O movimento externo, aquele que estamos habituados a ver em aulas

e espetáculos de dança, estava em um tempo lento dentro do tempo-espaço do entre,

onde os participantes experimentavam o movimento em uma zona intervalar de

passagem, que potencializava o trânsito do movimento interno para se tornar

movimento externo.

A proposta da pausa e do lento foi provocadora. Primeiro as palavras me

fizeram sentir, pensar em não querer me movimentar. Pensar em uma

pesquisa profunda, em um não acumular informações e no lento como sabor

de uma experiência transcendental, me fez calar. Percebi uma ansiedade em

relação ao movimento. Em determinado momento meu corpo pareceu

afundar no chão, quase uma sensação de vertigem. Um fio de saliva me veio

à boca. A proposta de perceber a lentidão e a pausa me fez reduzir o tempo de

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todos os movimentos, de forma, que qualquer movimento que surgisse seria

logo percebido em sua nuance. Percebi o peso e as tensões do meu corpo

experimentando os movimentos lentos. O primeiro movimento percebido

externamente foi o da cabeça indo lentamente de um lado para o outro no

chão. O atrito do meu cabelo com o chão fazia um “barulhinho” interessante

e gostoso20

.

Ao ler o relato do participante, rememoro este dia de grande potência para o

desenvolvimento desta pesquisa sobre a lentidão como escolha processual em dança,

tendo a pausa como potência do tempo-espaço do entre. O movimento em gradações da

qualidade do fator labaniano tempo, a concepção de um tempo lento de construção do

corpo que dança, e o fazer artístico-pedagógico em dança, se fez presente na aplicação

prática desta pesquisa.

Para construir a fundamentação conceitual deste tópico, acerca da potência do

entre na dança, como sendo a pausa, trago para esta pesquisa a conceituação do Ma de

Michiko Okano (2007) e a conceituação de fronteira de Renato Ferracini (2011).

A noção do Ma é antiga no Japão e remonta ao espaço vazio (não no sentido de

vácuo, mas repleto de energia) de conexão com o divino. É um elemento cultural

nipônico que se apresenta como o modo pelo qual essa sociedade organiza e opera suas

atividades. Está presente em todas as manifestações culturais, tais como: na arquitetura,

nas artes plásticas, nos jardins, nos teatros, na música, na dança, na poesia, na língua, na

comunicação interpessoal, nos gestos, no modo de falar, etc (OKANO, 2007).

Okano (2007) propõe um estudo do Ma na sua relação com o corpo, revelando

uma cognição do mundo estabelecida por meio de uma tênue fronteira entre o corpo e o

meio em que ele vive, tratando-se de um entre-espaço de possibilidades. O autor

discrimina o elemento cultural nipônico (Ma) a partir do momento em que ele deixa de

ser pré-signo e passa a ser signo, estágio que denomina como sendo, espacialidade Ma.

Assim, a sua cognição se dá por meio das múltiplas aparições fenomenológicas.

A espacialidade Ma é um entre-espaço e pressupõe uma montagem, que pode

se manifestar como intervalo, passagem, pausa, não-ação, silêncio, etc. entre

dois elementos. [...] No entanto, é necessário tomar cuidado para não

correlacionar qualquer vazio intervalar ao Ma. Ele é o entre-espaço que

abriga uma potencialidade embrionária. Pode ser entendida como fronteira

que não se apresenta como um espaço divisório, mas de processo de tradução

e diálogo. Configura-se como um entre-espaço dinâmico no qual, por meio

de processos de conflitos, filtros e adaptações, reelaboram-se informações,

produzem-se transformações e espera-se um possível surgimento de algo

inovador [...] Capaz de estabelecer diálogos, relações e interações entre

20

Relato extraído do caderno de anotações de um dos participantes da aplicação prática desta

pesquisa, em 06/10/2014.

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diferentes semiosfera, a espacialidade Ma faz-se presente no corpo como um

entre-espaço de fronteira entre o interno e o externo ou entre o corpo e o

meio [...] ou ainda, entre a ação e a não-ação, sem estabelecer uma rígida

separação entre esses elementos (OKANO, 2007).

Okano (2007) apresenta ainda as palavras do teórico e crítico de arte, Masakaru

Nakai (1975): “Ma pertence ao tempo artístico e não àquele do relógio”. Um tempo de

possibilidades de ação e não-ação em potência. O momento de não-ação – que não é

ausência de ação – pode ser entendido como um espaço de pausa fronteiriça, que se

apresenta como inexistência de movimento visível ao olhar, entre uma ação e outra. A

pausa neste sentido se dá na compreensão de um momento suspenso ou interrompido

que abriga uma semente para o movimento seguinte, ocorrendo assim, a espacialidade

do tempo e a transmutação do eixo temporal cronológico para o eixo temporal cíclico,

pertinente à arte (OKANO, 2007).

A pausa não é algo estático, ela se refere a conexões. O artista da dança que

consegue conscientizar-se desse momento intervalar de grande potência embrionário-

criativa consegue suspender o tempo, deixando o eco de uma potência permear o tempo-

espaço do entre (potência da pausa) sem pressa ou ansiedade. A lentidão é aliada a este

momento de experiência que gera consciência do corpo que dança. Na aplicação prática

da pesquisa, no segundo semestre de 2014, pude perceber como a lentidão potencializa

o estado perceptivo do ser dançante. O corpo entra em estados descritos pelos

participantes como, de derretimento, de afundamento no chão. O olho fechado

proporciona uma ampliação profunda do entendimento do movimento e de suas

potências na dança.

O solo Amiúde (2015), projeto cênico desta pesquisa, me proporciona

experimentar este estado dilatado do entre-espaço, que acontece, no caso da composição

coreográfica citada em vários momentos. No início caminho em um tempo lento que

por vezes configura-se como pausa, transição, passagem, para o próximo momento da

composição. Uma fronteira que é ampla em possibilidades (potências).

Ferracini (2011) apresenta a concepção de fronteira como sendo um espaço de

criação, recriação e conflitos. Não é linha, delimitação e nem demarcação meramente

espacial ou temporal entre dois pontos ou territórios. Fronteira em sua concepção é uma

zona de experiência que gera potência, que coaduna com o movimento e a ação.

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Ferracini (2011) apresenta ainda uma concepção de trabalho na arte (na dança)

que propõe dançarmos na integridade corporal, assim como viemos discutindo ao

decorrer desta pesquisa. Propõe que deixemos de pensar o corpo no território do OU.

Homem OU mulher. Velho OU criança. Ativo OU passivo. Dança OU teatro.

Por que não lançá-lo em fronteira no território do E: homem E mulher, velho

E criança. E ir além: lança-lo no território da experiência: homem e mulher e

velho e criança e mulher tudo em zona de vizinhança (FERRACINI, 2011, p.

232).

O território do E, do qual Ferracini (2011) discorre, proporciona uma

consciência integral do corpo de maneira a aguçar a percepção do corpo que dança. Um

corpo que é potência e gera potência.

A concepção de Ferracini (2011) sobre a fronteira, territórios e percepções

dialogam de maneira muito próxima com a concepção do Ma (OKANO, 2007), da

potência aristotélica (AGAMBEN, 2015), e da consciência (DAMÁSIO, 2011), que

formam o escopo teórico deste capítulo, acerca da potência do ato (o movimento) e a

potência do entre (a pausa).

Estes conceitos proporcionam pensarmos a potência do entre (a pausa) de

maneira a ampliar e aprofundar a consciência do corpo na dança. Demanda tempo,

controle da ansiedade e respeito pelo corpo, para conseguirmos assimilar às potências,

as negações, as dificuldades, as realizações. Para chegarmos à determinada

compreensão, muitas vezes, iniciamos “pela negação, por aquilo que não queremos, por

uma realidade que nos oprime, mas também nos transforma e faz germinar uma

necessidade criativa” (LEAL, 2012, p. 110).

A proposta da lentidão como metodologia de conhecimento do corpo e como

potência criativa para a dança se afirma na medida em que tomamos consciência das

possibilidades que o corpo pode assumir escolher e ter na dança.

O conceito de potência que permeou todo este capítulo continuará seu fluxo e

permanecerá em um tempo-espaço fronteiriço até o próximo capítulo, onde

discutiremos acerca da potência do ato e do entre, a dança.

A pesquisa em dança possibilitou toda esta discussão-reflexiva sobre conceitos,

histórias, percepções, atuações artístico-docentes. Constrói dia após dia a reflexão e a

produção de conhecimento nesta área potente de ser, de estar, de fazer, de poder, de

criar.

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CAPÍTULO IV

A POTÊNCIA DO ATO E DO ENTRE: A DANÇA

Pensar na dança é pensar nos muitos momentos em que a comunicação

escrita e falada não foi suficiente para expressar as angústias ou o desejo de

poetizar. Se a dança fosse um texto escrito, poderia ser uma poesia; se fosse

um discurso falado, poderia ser uma declaração de amor à vida; mas, sendo

gesto, a dança só pode ser o próprio dançarino em seu movimento dançante.

Aí está a sua peculiaridade, a sua sutileza e sua riqueza, pois, para além dos

múltiplos códigos atribuídos ao dançar, será sempre na gestualidade do corpo

que ela poderá ser compreendida pelo homem. [...] Dançar é poder

incessantemente acreditar no corpóreo, em sua capacidade infinita de

transcender o dito (PORPINO, 2006, p. 28).

A presente pesquisa se configura como uma proposição de pensar, de atuar, de

ser e de fazer a dança, percebendo-a como conjuntos de ações que pulsam em um corpo

de possibilidades eminentes. Conjuntos em constantes interseções, nos conscientizando

que somos um corpo em potência para a dança. Uma proposta que entende a dança

como uma potência genuína da vida, que faz emergir inúmeras percepções sobre si e

sobre o mundo.

Neste quarto capítulo apresentaremos uma possibilidade (potência) de elo entre a

produção textual, cênica, artística, docente e pessoal já vivida, com a intenção de ir

além, na pesquisa artístico-acadêmica em dança, percebendo este momento dissertativo

como um caminho de ampliação e potência do artista-docente que se faz dança para

pensar a dança. Tem como objetivo, pensar a dança como potência do ato (o

movimento) e do entre (a pausa), não a reduzindo a essas possibilidades, mas

entendendo-a como espaços de oportunidade de movimentos que proliferam

entendimentos acerca do corpo que dança, e da dança como área de conhecimento

potente de ampliação da consciência por meio das experiências vividas. Apresentarei

três pesquisas que abordam a dança como potência do ato e do entre para dialogar com a

presente pesquisa.

Para tal, convido para a conversa textual-movente três pesquisadoras em dança

que proporcionam o entendimento da dança por meio de suas sutilezas processuais.

Mulheres (queridas), bailarinas (potentes), docentes (artistas) que assumem a

sensibilidade como potência primeira para viver (dançar): Karenine Porpino (2006),

Patrícia Leal (2012) e Ana Carolina Mundim (2013). A força integradora de suas

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pesquisas em dança abrem espaços para a valorização das singularidades do movente,

por meio do fazer criativo, pedagógico, artístico e educacional da dança.

Através da pesquisa em dança, as artistas-docentes, embasam o presente capítulo

colaborando com a proposição da lentidão como escolha processual de uma concepção

artística, pedagógica e educacional em dança nesta pesquisa. A lentidão que

proporciona uma construção e um aprofundamento da consciência do corpo que dança,

entendendo que a construção desse conhecimento se dá através das experiências de cada

indivíduo e da relação que o mesmo tem com a complexidade de si e de seu entorno.

O abraço (PORPINO, 2006), a brasilocalidade (MUNDIM, 2013) e os sentidos

da percepção (LEAL, 2012) são para as pesquisadoras parte do caminho de construção

no processo de entendimento e de conceituação do fazer artístico-pedagógico na dança

em suas pesquisas (teses): Dança é educação – interfaces entre corporeidade e estética

(PORPINO, 2006); Danças brasileiras contemporâneas – um caleidoscópio (MUNDIM,

2013); Amargo perfume – a dança pelos sentidos (LEAL, 2012). Dialogarei com as

pesquisadoras de forma a construir o embasamento teórico acerca da potência do ato e

do entre como sendo a dança.

A perspectiva do abraço elucidada por Porpino (2006) faz uma conexão

importante na construção do pensamento nesta pesquisa. A metáfora do abraço se faz

potência na dança, onde uma gama de possibilidades se apresenta para a vida de um ser.

Perceber que sim, dança é educação, é uma potência do ato (o movimento) e do entre (a

pausa), é uma potência da/na dança.

O termo Andara, de origem tupi-guarani, que significa abraçar para dançar, foi o

nome encontrado por Porpino (2006) para denominar o desejo do abraço. A

pesquisadora entende o abraço, como expressão do corpo que dança, pensando esse

abraço “como forma de despertar um dançar que pudesse fazer emergir um entusiasmo

para a vida ao invés da monotonia da repetição de passos de uma técnica específica”

(PORPINO, 2006, p. 96). Esta concepção do abraço surgiu de experiências pedagógicas

em dança que a arte-educadora vivenciou. Andara foi o nome pensado para denominar o

desejo do abraço que se mostra em movimento dançante.

Tomando o termo Andara, descobrimos também que o ato de abraçar exigia

uma certa disponibilidade corporal, um desejo de partilhar, para muitos, até

mesmo uma boa dose de coragem para a entrega ao outro. Como conseguir

esse despojamento? Pela própria dança, pois a dança se mostrava

mobilizador, incitava o contato, era contagiante. Pensamos então em

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encontrar um termo que traduzisse a relação inversa, dançar para abraçar

(PORPINO, 2006, p. 96).

Precisamos antes de tudo abraçar a nós mesmos, assumir nossa singularidade,

nossas limitações, nossos desejos e anseios. Olhar para si, para dessa forma, olhar para

o mundo. Ser o processo da mudança de paradigma. O abraço, por vezes, está tão

distante do que fazemos e ao mesmo tempo tão próximo de uma técnica específica em

dança com um padrão de corpo, que não nos reconhecemos enquanto potência. Vagando

por salas de aula de dança olhando sempre para o outro, sempre para fora de si, não

deixando espaço para um olhar que se faz necessário para viver: o olhar como na

reversibilidade de um aperto de mão (PORPINO, 2006). Ter consciência da

potencialidade do corpo demanda tempo. Um abraço prolongado que tateia o corpo de

olhos fechados, sentindo a respiração, as sensações que advêm do toque de um tempo

lento que degusta e reconhece as emergentes potencialidades.

Em dança somos acostumados a prestar atenção no modelo, na execução de um

movimento, na forma como o outro abraça. Não descarto a observação como importante

para o desenvolvimento da consciência do corpo que dança. Porém, no tocante desta

pesquisa, entendemos o abraço em uma perspectiva fenomenológica. Quem olha e quem

abraça, também está sendo olhado, abraçado. Essa reversibilidade do olhar (do abraço)

produz um conhecimento que precisa de atenção para se compreender. Uma potência do

ato que encontra na potência do entre o entendimento de que na dança (na vida),

precisamos adotar um “novo modo de vida integral, do qual a meta é atingir a

congruência entre pensamento, vida e experiência” (GOSWAMI, 2010, p. 24).

Porpino (2006) parte da concepção do abraço Andara e chega à expressão

moriniana21

do abraço como sendo a capacidade “de abranger, acolher e rejuntar valores

predominantemente entendidos como excludentes” (p. 97), compreendendo a metáfora

do abraço como expressão de uma estética de vida e do acolhimento à realidade

complexa do ser humano e seu entorno.

Desta forma, Porpino (2006) desagua no reconhecimento e na afirmação de que

dança é educação “em sua possibilidade de incitar o abraço e ao mesmo tempo emergir

deste como experiência estética desveladora da corporeidade” (p. 97). Assume a

integralidade entre pensamento, vida, experiência, estética, corporeidade, processos

artístico-pedagógicos.

21

Moriniana refere-se ao filósofo francês Edgar Morin.

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[...] reconhecemos a dança como sinônimo de uma educação capaz de

permitir o abraço afetivo, que rejunta o que ainda permanece cindido; o

diálogo entre prosa e poesia [...] Pensar que a dança é educação, numa

perspectiva poética, é pensar um educar que inclui a criatividade, a

flexibilidade, a sensibilidade, o entusiasmo, o amor, o corpóreo, o estético.

Porém, não negando o prosaico de nossas vidas, mas sim poetizando-o, para

que poesia e prosa possam gozar de instigantes diálogos (PORPINO, 2006, p.

138).

O abraço do qual Porpino (2006) acredita esta na zona do sensível. Um saber

que se constrói na sinuosidade, na reversibilidade, na visão de um corpo

fenomenológico.

O cientista quântico Amit Goswami (2010) apresenta a perspectiva da física

quântica para entender as potências de um ser, dialogando, nesta pesquisa, com a

potência do ato, do entre, da dança e do abraço trazido por Porpino (2006) para embasar

a afirmação potente da pesquisadora de que dança é educação.

Goswami (2010) afirma:

A física quântica nos ajuda a integrar. [...] é a física das possibilidades; as

possibilidades proliferam quando ficamos sentados em silêncio no modo

“ser”, sem fazer nada. De vez em quando, escolhemos uma dentre as

possibilidades que precipitam uma ação, no modo “fazer”. Vamos alternando

entre o modo “ser” e o modo “fazer” até chegarmos descontinuamente à

nossa percepção. [...] Podemos processar inúmeras possibilidades de uma só

vez no modo “ser”, e nossas chances de encontrar a solução desse modo

serão muito superiores ao método no qual exploramos uma tentativa de cada

vez (GOSWAMI, 2010, p. 32).

O modo “ser” e o modo “fazer” do qual Goswami (2010) pontua, é no tocante

desta pesquisa, a potência do entre (a pausa) e a potência do ato (o movimento). A

colocação do cientista: “em silêncio no modo “ser”, sem fazer nada” (GOSWAMI,

2010, p. 32), situa-se na zona da potência do entre. O “sem fazer nada” é o momento

fronteiriço, de passagem entre a potência e o ato, que nesta pesquisa é entendido como

uma pausa que nada tem de estática, mas sim se refere a conexões. Conexões essas que

são potência também no abraço porpiniano22

.

Portanto, a dança é uma potência. Área de conhecimento que permite a

integração do ser, que dialoga com outras áreas do saber. Nunca subjugada, antes,

22

Porpiniano refere-se à arte-educadora Karenine Porpino e a sua pesquisa, Dança é educação:

interfaces entre corporeidade e estética.

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percebida como concretude do corpo que vive a prosa-poética e a poesia-prosada do

dançar.

Uma das participantes da aplicação prática desta pesquisa percebeu a

potencialidade da dança quando corporificou a sua poesia escrita juntamente à poesia

dançada por ela. Durante o processo, foi percebendo que a potencialidade investigativa

do corpo na dança, desencadeava uma percepção mais aguçada sobre sua produção

textual poética. O movimento dançado fez emergir imagens potentes de investigação

criativa tanto na dança quanto na poesia escrita, proporcionando um mergulho de

sensações e memórias. A dança e a poesia escrita mesclavam-se, tinham suas fronteiras

borradas. Naquele momento as duas linguagens se potencializavam em um abraço

fundido, onde a potência acontecia na percepção da escolha em assumir o corpo como

singular e plural que gerava conhecimento sobre si.

As conexões nesta participante aconteciam na potência da pausa, no modo “ser”

(GOSWAMI, 2010) em silêncio, onde por muitas vezes o movimento externo se

configurava em micro movimentos e deslocamentos. Um tempo desacelerado que

potencializava a percepção do movimento entre dança, prosa e poesia.

[...] o cheiro do café me fez sentir como se a respiração estivesse nos meus

braços, causando uma espécie de formigamento. [...] minhas mãos entre

abertas me lembravam das asas de um pássaro e da poesia que escrevi

chamada “dormindo” 23

.

No encontro posterior ao relato escrito acima, a poesia escrita nos foi

apresentada. Percebemos que o trabalho feito com o estímulo olfativo do café, naquele

encontro investigativo em dança, corporificava a poesia escrita. Separadas, a poesia da

dança e a poesia escrita, vibram potentes em sues lugares. Porém, juntas, reverberam a

vibração potente do elo que se faz corpo na dança, proporcionando reflexões acerca do

corpo, da dança e do espaço/tempo do entre.

Não tem primeiro, nem segundo sono... Sinto um chacoalhar na cozinha, o

cheiro do café estar forte... Torno, abro suavemente meus olhos, porém volto

meus olhos a dormir. [...] As flores de copo de leite de um jardim distante já

acordaram... Eu? Vou continuar dormindo24

.

23

Relato extraído do caderno de anotações de um dos participantes da aplicação prática desta

pesquisa, em 27/08/2014. 24

Poesia anexada no caderno de anotações de um dos participantes, em 27/08/2014. Na qual foi

aplicada a parte prática desta pesquisa.

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Outra faceta da dança como potência é o estudo da brasilocalidade elucidada

pela pesquisadora em dança Ana Carolina Mundim (2013), que aposta na singularidade

do ser, buscando o que há de local nas experiências vividas por cada um. Percebe e

valoriza esse local (locais) onde se construiu o corpo que dança.

A valorização do local de construção do corpo que dança pesquisada por

Mundim (2013) faz uma conexão com o primeiro capítulo desta pesquisa, onde relata

aonde e quando na infância e juventude do pesquisador, a dança se construiu em uma

velocidade oscilante. A perspectiva e a valorização do local (locais) onde se constrói o

corpo que dança em Mundim (2013), embasa a presente pesquisa e reforça a escolha da

lentidão como potencialidade na construção do entendimento do corpo que dança.

Entendendo que o corpo gera potência ao assumir suas singularidades, multiplicando as

possibilidades de investigação do movimento dançado valorizando também o local onde

as experiências aconteceram.

Em sua pesquisa o termo brasilocalidade surge da análise que a autora faz dos

movimentos de dança contemporânea que acontecem no Brasil. Ana Mundim (2013)

“quer escapar da armadilha que vê as danças concebidas em nosso país como uma

transposição das experiências que acontecem fora. Ao invés disso, busca as

especificidades e as questões locais” (p. 14).

Os relatos acerca da infância carioca (Rio de Janeiro), de uma adolescência

mineira (Minas Gerais) e de uma vida adulta paulista (São Paulo) são segundo Mundim

(2013), heranças históricas que a influenciaram com suas reverberações. Foram as

cicatrizes de cada local que viveu que construíram o corpo dessa artista-docente.

[...] especificidades de distintas regiões brasileiras, impresso por experiências

sensíveis, retorcido continuamente em espirais, paradoxal em oposições,

firme e flexível. É um corpo que nasce na rua e se organiza, naturalmente,

nas relações hierárquicas que se estabelecem por tempo de experiência

vivida, mas mantêm um diálogo horizontal entre os pares. É um corpo

interferido por processos de escuta permanente, o que nos influencia no modo

como estabelecemos nossas relações humanas e como vemos e produzimos

arte. Essa estrutura criada e as peças que a compõem, dentre tantas outras

componentes de nosso caleidoscópio pessoal, trazem dados que nos instituem

enquanto corpo individual, social, local, global, pós-moderno, brasileiro e

artístico (MUNDIM, 2013, p. 254).

Mundim (2013) elucida que a cultura brasileira que nos impregna desde a

barriga de nossas mães sofre interferências europeias e americanas no caso do corpo que

dança. “O corpo já é experiência e cultura desde sua gestação e, desde seu período de

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formação, já está sofrendo interferências, bem como intervindo no meio onde está

inserido” (MUNDIM, 2013, p. 276).

No início da formação profissional em dança entramos em contato com técnicas

e estéticas estrangeiras de dança, tais como a dança jazz, o street dance e o balé

clássico. Algumas escolas de dança, companhias brasileiras de dança contemporânea e

as universidades, através dos cursos de licenciatura e bacharelado em dança,

proporcionam ao dançante contato com outras experiências para o corpo, tais como:

“dança contemporânea; dança moderna (reverberações dos trabalhos de José Limón,

Marta Graham, Rudolf Laban, Klauss Vianna), tai chi chuan, educação somática

(reverberações dos trabalhos de Alexander, Therese Bertherat, Bartenieff)” (MUNDIM,

2013, p. 255).

As técnicas citadas pela pesquisadora preparam o corpo do bailarino para

encontrar espaços futuros de criação e pesquisa no âmbito cênico e pedagógico em

dança. Sobre esse espaço potente na arte, na dança, Mundim (2013) traz uma concepção

muito pertinente para a presente pesquisa, apresentando que:

Não há respostas corretas, não há soluções únicas, tampouco um critério que

defina quem está melhor ou pior adaptado. Há possibilidades. E essas

possibilidades são produzidas de acordo com as necessidades e a

disponibilidade psicofísica de cada indivíduo. Todas elas são importantes

porque dão a oportunidade de escolha e, portanto, de um pensamento crítico

sobre o que se está fazendo (MUNDIM, 2012, p. 275).

Mundim (2013) aponta uma das mais belas potencias do ser humano, a escolha.

A possibilidade de escolher, produzir conhecimento e gerar uma mudança perceptiva

acerca do que se faz é potência, é dança, é vida. A escolha situa-se em um caminho de

constantes transformações, potencializando o corpo que dança em um saudável e

inevitável fazer artístico que sempre esteja se revendo e se reconstruindo. O caminho

do qual me refiro é um caminho de escolha processual em dança que se paute na

degustação, na apreciação, no aprofundamento dos conhecimentos que emergem do ato,

do entre e do corpo que dança.

Refletir sobre a escolha que se pauta em um caminho processual em dança que

aprecia e degusta a produção de conhecimento do corpo é dialogar uma vez mais com a

pesquisadora em dança e orientadora deste trabalho dissertativo, Patrícia Leal (2012).

A pesquisa da dança pelos sentidos, onde os sentidos da percepção foram

desencadeadores de investigação artística, pedagógica e improvisacionais para Leal

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(2012), é nesta pesquisa, potência da dança que gera pesquisa e conhecimento acerca da

construção consciente da escolha processual em dança assumida por esta pesquisa. Uma

artista-docente, pelo aprofundamento dos conhecimentos artísticos, pedagógicos e

criativos da dança.

Após toda a apresentação dos conceitos e da proposta metodológica que Leal

(2012) faz em sua pesquisa, que foi embasamento teórico em outros capítulos desta

dissertação, a artista-docente traz uma reflexão sobre a dança na contemporaneidade.

Destacarei uma passagem de sua pesquisa sobre a dança contemporânea, que dialoga

pertinentemente, com as pesquisa de Porpino (2006), Mundim (2013) e com a presente

pesquisa.

A dança contemporânea valoriza a investigação, a pesquisa, a presença de

cada corpo intérprete criador na busca criativa por sentidos significativos

fundados na materialidade da dança. A história e a trajetória de cada corpo

são importantes na investigação criativa da cena. É necessário ao bailarino

mais do que simples habilidade para realizar um movimento específico. O

bailarino precisa ser profundamente conhecedor de sua estrutura corporal,

precisa conhecer a concretude dinâmica de seus movimentos na sua

anatomia, precisa ser capaz de articular seus movimentos mais complexos no

espaço em suas diferentes configurações, precisa compreender seu corpo

como volume integrador a um espaço maior. A amplitude de informações

aumentou muito. Resta saber se também se aprofundou (LEAL, 2012, p.

122).

A dança é potência no abraço singular, local e sensorial da pluralidade dos

corpos que investigam, escolhem, sendo passado (s) e presente (s) e futuro (s), atuando

em uma zona fronteiriça que borra os limites, que aprofunda o conhecimento, recriando,

associando e expandindo as possibilidades.

A proposta da lentidão como escolha processual para o fazer criativo,

pedagógico e investigativo do movimento dançado atua nesta perspectiva de dança

como potência do ato e do entre. Para valorizar o saber práxico (FORTIN, 2011) do

artista-decente em dança, que se faz dança para pensar a si mesmo e pensar as

possibilidades que a dança pode suscitar no corpo que escolhe a dança como meio de

expressão da vida.

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1. É o projeto da casa, é o corpo na cama, é a chuva chovendo, é a conversa

ribeira: é o pé, é o chão, é a marcha estradeira, é o mistério profundo, é o

queira ou não queira25

...

No segundo capítulo desta dissertação, foi apresentada a metodologia da

aplicação prática desta pesquisa, desenvolvida na turma de dança contemporânea para

iniciantes da EDTAM, no segundo semestre do ano de 2014. Entretanto, este tópico tem

como objetivo analisar a aplicação prática, percebendo como ela desencadeou o

entendimento da lentidão como potência de uma escolha processual no campo criativo,

pedagógico e investigativo do movimento na dança, nos participantes desta

investigação.

A aplicação seguiu um percurso de investigação do movimento pautado na

eukinética labaniana com os fatores do movimento fluência, espaço, peso e tempo; a

dança pelos sentidos e a improvisação pelos sentidos de Leal (2012) com a investigação

dos sentidos do olfato, paladar, audição, visão e tato; e por último a investigação da

pausa na dança.

A exploração dos fatores qualitativos de Laban (1978) se deu sempre em

combinação com o fator tempo. Pois, este fator qualitativo do movimento, é entendido

nesta pesquisa, como caminho que leva a construção da consciência da pausa na dança.

No início da aplicação prática pretendia trabalhar cada fator isoladamente, porém, os

estudos labanianos me fizeram entender que apesar do foco estar em um dos fatores, o

movimento do corpo acontece sempre em combinação de dois ou três fatores. Deste

modo combinei fluência e tempo, espaço e tempo, peso e tempo, e no trabalho com o

fator tempo investiguei a potência da pausa na dança.

Com corpos disponíveis e em prontidão os participantes26

se entregavam à

investigação do movimento na dança como uma criança se entrega ao momento da

brincadeira. Uma vulnerabilidade geradora de potência permeava os corpos presentes na

sala na investigação do movimento dançado. Um estado de potência que oscilava em

borbulhas qualitativas de movimento. Um espaço que proporcionava perguntas e

respostas corporais, onde o acerto e o erro se borravam abrindo possibilidade para uma

25

O título deste tópico faz referência a música “Águas de março” de Tom Jobim. Música

utilizada em alguns momentos nas aulas da aplicação prática desta pesquisa. 26

Reafirmo, que quando a palavra “participante” surgir no texto faz referência a todos que

compartilharam a aplicação prática desta pesquisa.

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vulnerabilidade potente de arte. Acertar ou errar não se configurava como preocupação,

mas sim como potência de uma investigação saborosa do movimento na dança.

Figura 9 – Aplicação prática da pesquisa.

Fonte: Juarez Z. Neto

Figura 10 – Aplicação prática da pesquisa.

Fonte: Juarez Z. Neto

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O entendimento das qualidades do movimento dançado foi um ponto de partida

imprescindível para a construção do conhecimento nesta pesquisa. Compreender a

palheta de cores que temos em nossos corpos é a possibilidade de ter consciência da

potência singular que somos em meio à pluralidade que surge no movimento e que nos

rodeia constantemente.

O fator do movimento fluência que tanto me encantou no trabalho de conclusão

do curso de dança em 2013, continuou sendo importante para entender a respiração e os

graus de tensões no movimento. Particularmente nesta aplicação, percebi que a tensão

muscular e articular em excesso e a falta do trabalho respiratório durante o movimento

dançado mais bloqueia o movimento do que liberta. A respiração auxilia o movimento

mesmo na tensão. Em conversas posteriores ao trabalho investigativo em sala de aula,

chegamos ao entendimento de que a tensão precisa ser entendida como uma escolha que

potencializa determinado momento na construção cênica coreográfica.

Ao entendermos essa questão o trabalho investigativo com os fatores de

movimento espaço (direto e multifocado) e peso (leve e firme) tomaram proporções

para além dos extremos de suas qualidades. Começamos a compreender a

corporificação das qualidades que atuam no espaço entre os extremos. Inicialmente o

trabalho começou pelos extremos, com cada fator qualitativo do movimento labaniano,

e ao decorrer do processo investigativo fomos percebendo que as qualidades que atuam

no espaço do entre são de difícil acesso, porém quando as percebemos a consciência

acerca do que se faz muda completamente.

Esclareço que devido ao tempo cronológico, de início e fim da aplicação prática

da pesquisa, a percepção das sutilezas qualitativas do movimento no espaço entre as

extremidades foi sendo percebido gradativamente por cada participante. Não é tão

simples percebe-las, demanda tempo de aprofundamento na investigação do corpo que

dança. Foram sutilezas, percepções primeiras que dependendo de como o participante

siga o caminho na investigação do movimento dançado, perceberá outras qualidades,

aumentando as possibilidades de interpretação e da consciência do corpo que dança.

O fator tempo que veio sempre em parceria com os outros fatores labanianos, foi

nesta pesquisa, nos levando gradativamente para o entendimento da lentidão como

escolha de um processo de construção em dança (arte) que assume e reconhece o

processo individual e potente de cada participante. A ansiedade de compreensão do que

se fazia foi se lapidando e transformando-se em uma degustação saborosa da dança.

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A escolha de iniciar a aplicação pelos fatores qualitativos do movimento

labaniano foi importante e necessária para a investigação dos corpos dançantes.

Possibilitou o entendimento inicial da proposta da pesquisa, compreendendo a lentidão,

neste caso, como tempo lento processual da construção do conhecimento sobre o corpo

que dança. E posteriormente, trabalhando com a lentidão em uma perspectiva

investigativa do movimento em tempo lento, culminando na investigação da pausa na

dança.

Figura 11 – Aplicação prática da pesquisa.

Fonte: Juarez Z. Neto

Após o trabalho com a eukinética labaniana, começamos a investigar o

movimento dançando através das propostas metodológicas da dança pelos sentidos: a

criação coreográfica27

e a improvisação pelos sentidos (LEAL, 2012). Iniciamos a

investigação através dos sentidos do olfato e paladar. Elementos olfativos como café,

27

Na “dança pelos sentidos: criação coreográfica” ocorrem quatro etapas metodológicas:

Primeiro o reconhecimento da matriz de movimento localiza um ponto de origem do processo criativo, o

movimento de percepção dos sentidos como fundamento para a criação; Segundo o desenvolvimento das

células de movimento promovendo o reconhecimento de pequenas estruturas uma seletividade intuitiva

de movimentos potencias para o desenvolvimento coreográfico; Terceiro a exploração e desenvolvimento

de frases e temas de movimento aprofundando a investigação coreográfica através de frases de

movimento e variações compostas ou improvisadas; Quarto a definição da estrutura coreográfica em

composição ou em improvisação articulam-se na formação de um conteúdo simbólico, forma estética

fruto da materialidade coreográfica pesquisada. Esta estrutura pode ser apresentada como composição

coreográfica ou como improvisação, mantendo a possibilidade de exploração e transformação dos

movimentos (LEAL, 2012, p. 81).

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casca da laranja e gustativos como a fruta uva e o chocolate, por exemplo, foram

utilizados pelos participantes para focalizar na percepção do movimento gerado pelos

estímulos sensoriais. A percepção das matrizes de movimento, e a construção de células

e frases de movimento foram proporcionadas pela entrega dos participantes ao que se

propõe “A dança pelos sentidos: criação coreográfica”.

Nesta etapa da aplicação, a percepção do movimento dançado aflorou de

maneira muito significativa nos corpos ali presentes. Percebemos a ampliação da

consciência do corpo que dança. Os estímulos olfativos e gustativos, particularmente,

proporcionou percebermos o movimento pela sutileza da lentidão. Para cheirarmos e

degustarmos precisamos de um tempo dilatado que proporcionalmente dilata o corpo

em estado de investigação sensorial perceptiva do movimento na dança. O cheiro do

café foi o estímulo que mais proporcionou este estado de dilatação da percepção do

movimento.

Figura 12 – Aplicação prática da pesquisa.

Fonte: Juarez Z. Neto

A dança pelos sentidos entende o corpo integralmente. Cada elemento é

percebido de uma forma profunda que invade o corpo por completo, gerando

possibilidades e aflorando a percepção de si. Um corpo dilatado, expandido, que tem a

sutileza da percepção como potência da consciência.

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A investigação através da improvisação, nesta etapa particularmente,

potencializou e proporcionou uma sensação de liberdade de movimento nos

participantes, até mesmo naqueles que tem a estrutura como preferência. Chegamos ao

entendimento que para a investigação perceptiva do movimento na dança pelos sentidos

a improvisação é potencializadora do processo criativo e da construção do corpo que

dança.

Sequências de movimentos estruturadas foram trabalhadas na primeira etapa da

aplicação, quando exploramos o movimento percebendo as qualidades labanianas, mas

também trabalhamos com a improvisação nesta etapa.

As duas primeiras etapas da aplicação prática desta pesquisa proporcionaram a

ampliação da percepção e da consciência do corpo que dança. Para trabalhar com a

dança pelos sentidos e para chegar à terceira etapa da aplicação desta pesquisa foi

necessário o trabalho com os fatores expressivos de Rudolf Laban (1978). Pois, dá

autonomia perceptiva ao participante de entender como o movimento acontece e como

as qualidades são percebidas no movimento dançado.

Percebi no grupo que a percepção estava mais aguçada, a ansiedade já não

aparecia com tanta frequência como antes, e que a pausa na dança já se apresentava,

porém optei não focaliza-la. Entretanto pude observar que a pausa acontecia

frequentemente em momentos onde a concentração, a percepção e a consciência

atuavam simultaneamente, não deixando espaço para a ansiedade acontecer.

A exploração dos outros sentidos como o tato, a visão e a audição, se deu de

forma transitória entre a segunda etapa e a terceira desta aplicação. Vimos que a

segunda etapa foi o desenvolvimento do trabalho investigativo pelas propostas

metodológicas da “dança pelos sentidos: criação coreográfica” e “improvisação pelos

sentidos” (LEAL, 2012). Já a terceira etapa se configura na escolha da lentidão como

investigação da pausa na dança.

Da segunda para a terceira etapa da pesquisa fui gradativamente trabalhando

menos com a música, a fim de proporcionar uma maior percepção do movimento.

Contudo, a música “Águas de Março” de Tom Jobim, aparecia com certa frequência

onde por vezes era a única a ser tocada nas aulas, principalmente na terceira etapa.

É pau, é pedra, é o fim do caminho

É o resto de toco, é um pouco sozinho

É um caco de vidro, é a vida, é o sol

É a noite, é a morte, é o laço, é o anzol

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É peroba do campo, é o nó da madeira

Caingá, candeia, é o Matita Pereira

É madeira de vento, tombo da ribanceira

É o mistério profundo, é o queira ou não queira

É o vento ventando, é o fim da ladeira

É a viga, é o vão, festa da cumueira

É a chuva chovendo, é conversa ribeira

Das águas de março, é o fim da canseira

É o pé, é o chão, é a marcha estradeira

Passarinho na mão, pedra de atiradeira

É uma ave no céu, é uma ave no chão

É um regato, é uma fonte, é um pedaço de pão

É o fundo do poço, é o fim do caminho

No rosto o desgosto, é um pouco sozinho

É um estrepe, é um prego, é uma ponta, é um ponto

É um pingo pingando, é uma conta, é um conto

É um peixe, é um gesto, é uma prata brilhando

É a luz da manhã, é o tijolo chegando

É a lenha, é o dia, é o fim da picada

É a garrafa de cana, o estilhaço na estrada

É o projeto da casa, é o corpo na cama

É o carro enguiçado, é a lama, é a lama

É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã

É um resto de mato, na luz da manhã

São as águas de março fechando o verão

E a promessa de vida no meu coração

(JOBIM, 1973).

Esta música se apresenta na pesquisa como poesia que desencadeia movimento.

Traduz de maneira significativa uma visão poética da dança, da pausa, do processo de

escolha pela lentidão. Percebo a presente pesquisa sendo cada palavra dessa música,

permitindo a paixão e o amor, um drama em gerúndio (caminhando, chovendo,

pingando, brilhando), uma risada larga, um sorriso acanhado. Uma dança que se permite

que se lança em potência, em prosa, poesia, declaração de amor.

A pausa que se anunciava e se presentificava cada vez mais durante o processo

de investigação do movimento dançado, foi na terceira etapa um ponto de entendimento

coletivo da potencialidade que a mesma tem para o corpo que dança. Nas conversas

após a exploração do movimento dançado, nesta etapa, aconteciam em um tempo mais

lento onde por vezes faltavam palavras para descrever a sensação da pausa no

movimento. A própria fala tinham momentos de pausa fronteiriça. Perceber esses

momentos de potência é de uma força avassaladora para a pesquisa.

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Percebi ao final das aulas da aplicação prática desta pesquisa que o grupo

chegava e saia da sala em um tempo mais lento, que a fala assumia a pausa como um

espaço/tempo de movimento potente de construção do conhecimento. E o movimento

dançado, foco da pesquisa, não tinha mais presa para acontecer, para se mostrar externo.

Os participantes assumiam um tempo mais lento como processo de aprofundamento,

reconhecimento e consciência do que estavam fazendo.

A aplicação prática nesta pesquisa foi fundamental para perceber questões do

movimento na dança e aprofunda-los, tanto no ato da dança quanto no ato da escrita

desta dissertação.

2. Percepção amiúde

Após o término da aplicação prática da pesquisa, o trabalho cênico começou a

ser desenvolvido. Amiúde foi o nome dado para esta composição coreográfica que

trabalha a lentidão como escolha processual na criação, os fatores qualitativos do

movimento com ênfase no fator tempo e a oscilação da velocidade no movimento

dançado, levantadas durante o processo de pesquisa dissertativo.

O nome surgiu após ouvir a música “chão de giz” do cantor brasileiro Zé

Ramalho. Na infância escutei por diversas vezes essa música e anos depois voltei a

escuta-la proporcionando a recordação do meu pai ouvindo e cantando essa composição

musical.

Amiúde vai para além do seu significado epistemológico, que é de repetição ou

frequência, porém não foge dele. Utiliza-o como ponto de investigação criativa do

movimento, percebendo durante todo o processo o que se repete com certa frequência,

seja no movimento, no pensamento e na vida cotidiana. A composição tem duração de

trinta minutos e revisita outros trabalhos que criei durante a formação em dança.

O trabalho cênico perpassa o caminho descrito no primeiro capítulo desta

dissertação. A questão do entendimento e assimilação da velocidade que oscilava na

infância e na juventude culminando na percepção da desaceleração e na pausa como

zona potente de investigação do corpo que dança.

O processo foi pelo sabor da lentidão, onde busquei deixar a escrita da

dissertação e as questões que a pesquisa suscita reverberarem no fazer cênico. Os

capítulos escritos nessa dissertação caminham em um entrelace saboroso com o fazer

cênico. A infância dada à aceleração, o início do fazer artístico que marca uma

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desaceleração e o momento atual de assumir a escolha feita pela lentidão como

construção processual em dança está tanto na escrita textual dissertativa, quanto na

escrita corporal cênica.

Figura 13 – Solo “Amiúde” (2016)

Fonte: Juarez Z. Neto (2015).

A lentidão, em Amiúde, configura-se no pesquisar em tempo lento, entendendo

como o movimento surge, quais os caminhos que percorre, é uma possibilidade de

revisitar a trajetória artística até aqui produzida, percebendo as nuances na qualidade

dos movimentos dançados. Revisito dois processos criativos, “Eu, vós e ele” (2010) e

“Otelo” (2012) para compreender momentos de minha trajetória artística, entendendo

como a aceleração e a desaceleração aconteceu em meu corpo, em uma proposta cênica.

A potência do entre (a pausa), em Amiúde, atua como elo entre movimentos,

onde também é movimento em potência fronteiriça. Reconhece a velocidade do

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movimento dançado como qualidade que proporciona a desaceleração, enfatizando o

frenesi como ápice do movimento em tempo rápido e a pausa como ápice do

movimento em tempo lento.

Figura 14 – Solo “Amiúde” (2016)

Fonte: Juarez Z. Neto (2015).

Figura 15 – Solo “Amiúde” (2016)

Fonte: Juarez Z. Neto (2015).

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113

3. Dançar para abraçar e abraçar para dançar

As questões suscitadas nesta pesquisa são reverberações de uma trajetória

artístico-docente que tem uma visão holística do processo de construção do corpo na

dança. A partir dos relatos da infância e da iniciação na vida artística, tive a

possibilidade de refletir acerca de questões pertinentes no processo de construção do

corpo dançante.

Percebo o corpo em sua totalidade valorizando a singularidade do individuo no

âmbito criativo e educacional. Campos do conhecimento que englobam questões

sociais, culturais, biológicas, psicológicas entre outras.

A presente pesquisa na dança permitiu que pudesse ir à profundidade de

questões que permeiam o fazer artístico-docente, propondo uma construção do

conhecimento na dança através da escolha da lentidão como perspectiva de uma

linguagem que se desenvolve aos poucos, proporcionando a ampliação gradual da

consciência através da percepção de si e do mundo.

O reconhecimento da potência das experiências para o desenvolvimento de um

corpo que dança, nesta pesquisa, reflete acerca de uma oscilação de velocidade entre a

aceleração e a desaceleração, culminando em uma reflexão sobre a pausa na dança.

Uma pausa que potencializa a investigação do movimento dançado, fazendo emergir

desta potencialidade uma consciência do corpo mais apurada.

O movimento e a pausa foram assumidos como potência para a dança, abrindo

uma discussão acerca de suas potencialidades, como a possibilidade de escolha. Um ato

político de tomada de decisão.

O abraço (PORPINO, 2006), a brasilocalidade (MUNDIM, 2013) e os sentidos

da percepção (LEAL, 2012) foram entendidos como potencialidades da dança,

entendendo que dança é educação construída na valorização da localidade, onde o seu

desenvolvimento se dá no entendimento da totalidade corporal e na potencialidade do

saber sensível.

Danço para poder abraçar afetuosamente as questões que envolvem o fazer

artístico-docente e abraço para poder dançar as potencialidades que emergem desse ser

dançante arte-educador.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

TOCANDO EM FRENTE: ANDO DEVAGAR PORQUE JÁ TIVE

PRESSA28

A investigação da lentidão como metodologia de conhecimento do corpo e como

potência criativa para a dança é o objetivo principal desta pesquisa. Esta investigação

proporcionou um alargamento da consciência acerca do corpo e de suas potencialidades

para a dança, tais como: a experiência (LARROSA, 2002) como uma perspectiva de

algo que nos passa, nos acontece, nos toca. Um saber particular, subjetivo, relativo,

contingente e pessoal; o entendimento do corpo fenomenológico (MERLEAU-PONTY,

1994) de que não temos um corpo, mas sim somos um corpo, e sendo corpo, reconheço

a corporeidade como uma unidade que engloba uma pluralidade de formas e existências.

O corpo como possuidor de uma singularidade que somente se compreende na

pluralidade da existência de outros corpos, sendo vivo e orgânico no momento presente,

recebendo e passando energia, entendendo-o na integridade (HANNA, 1972;

PORPINO, 2006); e a compreensão de potência como “ter (hexis) uma privação

(steresis)” (AGAMBEN, 2015), onde às vezes, o potente é tal porque tem algo, outras

vezes porque lhe falta.

A potência do ato como sendo o movimento e a potência do entre como sendo a

pausa foram duas possibilidades de abordar a dança como potência do ato e do entre. O

movimento e a pausa na dança, nesta pesquisa, suscitaram outros conhecimento e

perspectivas.

A partir da aplicação prática desta pesquisa na EDTAM, na turma de dança

contemporânea no segundo semestre do ano de 2014, esses conhecimentos e perspectivas

foram aparecendo de forma natural e enriquecedora para o embasamento da pesquisa,

como: a eukinética labaniana (LABAN, 1978) onde o aprofundamento prático-teórico

das qualidades expressivas do movimento ampliou a consciência do movimento

dançado; a dança pelos sentidos: criação coreográfica e a improvisação pelos sentidos

(LEAL, 2012) que trazem uma perspectiva sensória perceptiva que amplia a consciência

do movimento na dança; e a compreensão da pausa na dança como sendo um

28

O título desta seção faz referência à música “Tocando em frente” (1991) dos compositores

Almir Sater e Renato Teixeira.

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espaço/tempo fronteiriço, de passagem, um entre meio de possibilidades que nada tem

de estática, mas sim se refere a conexões sempre em continuidade.

Dessa forma, pude assumir a lentidão como escolha processual da construção do

corpo que dança, nesta pesquisa. Tomando a lentidão como linguagem em dança, que se

constrói aos poucos e profundamente, sendo construção de conhecimento do corpo. Um

saber que é construído na vivência mais íntegra, buscando a consciência pela qualidade

e não pela quantidade. Corpo que reconhece e considera seus limites potencializando-os

na escuta diária do fazer em dança (LEAL, 2012).

Assim sendo, a aplicação prática desta pesquisa foi fundamental para construção

do pensamento acerca do corpo que dança, percebendo potencialidades no movimento

dançado. A possibilidade de propor um pensamento investigativo em dança através dos

fatores qualitativos do movimento labaniano, onde o fator tempo esteve em parceria

qualitativa com os demais fatores (fluência, espaço e peso), abriu a possibilidade de

adentrar nas propostas metodológicas da “dança pelos sentidos: criação coreográfica”

(LEAL, 2012).

A construção da matriz de movimento, da frase e das células através da

improvisação, além de aproximar a presente pesquisa do saber sensível que Leal (2012)

propõe, fez os participantes da aplicação prática aumentar a sua consciência do corpo,

do movimento e suas qualidades e da dança. Fazendo-os chegar gradativamente a

experimentações da qualidade lento do fator do movimento tempo, e da perspectiva da

pausa na dança.

A historiadora Denise Sant’Anna (2001) embasa todo o primeiro capítulo desta

pesquisa, proporcionando uma reflexão acerca da aceleração e da desaceleração dos

corpos na contemporaneidade. Para refletir sobre a velocidade dos corpos elucidada por

Sant’Anna (2001) trouxe relatos de uma infância e de uma juventude dada à aceleração

e de como os processos educacionais e criativos em dança proporcionaram-me uma

desaceleração saborosa, que pouco a pouco se configurou em um estado de consciência

mais aprofundado do corpo na dança.

Após refletir acerca dessa velocidade que oscilava em meu corpo, e que através

das experiências na dança começou a degustar o sabor da desaceleração, pude perceber

esse processo em outros corpos. Decorrente a reflexão acerca da velocidade dos corpos

que desenvolvi no primeiro capítulo desta dissertação, pude perceber como esse

processo acontecia nos corpos dos meus alunos de balé clássico da EDTAM, nos

participantes da aplicação prática desta pesquisa, e nos alunos do curso de graduação em

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dança da UFRN, onde atuei como professor substituto no semestre letivo 2015.2, nos

componentes curriculares: corpo e espaço, conscientização corporal e laboratório de

composição coreográfica I.

A ansiedade de entendimento do que se faz acaba que desviando a atenção do

trabalho que está sendo desenvolvido. No componente curricular do curso de dança na

UFRN, conscientização corporal, por exemplo, muitos alunos queriam compreender de

imediato as técnicas propostas. Conduzi a disciplina em uma perspectiva da educação

somática, apresentando e trabalhando a Eutonia de Gerda Alexander (1983), a

Antiginástica de Thérèse Bertherat (1998), o Processo Lúdico e o Processo dos Vetores

da técnica Klauss Vianna (2007), por exemplo. A educação somática prima por uma

perspectiva de escuta corporal que dialoga de forma muito direta com minhas vivências

enquanto artista-docente, dessa forma a ansiedade de entendimento acaba ofuscando e

desviando a atenção do foco do trabalho, que é escutar o corpo e entende-lo na sua

inteireza.

O mesmo percebi nos participantes da aplicação prática desta pesquisa. Nos

dois primeiros meses de encontro à ansiedade de mostrar padrões de movimentos em

dança se sobrepunha ao deixar o movimento surgir sem pressa, com calma. Nos meses

seguintes decorrentes ao trabalho desenvolvido, a calma de saborear os estímulos de

movimento proporcionou um estado de consciência de escuta do corpo. A lentidão

como proposta metodológica de conhecimento do corpo foi gradativamente sendo

compreendida pelos participantes. Cada vez que os participantes acessavam o

movimento através do sabor da lentidão os sentidos da percepção atuavam de forma a

ampliar a consciência do corpo que dança. A pressa por movimentar-se a qualquer custo

reproduzindo padrões de movimentos na dança, cedeu o lugar para uma degustação

saborosa que é perceber a emersão do movimento através das sutilezas, como os olhos

fechados, o vento alisando a pele, o toque do outro, o cheiro que invade o corpo, o gosto

da apreciação.

Essas percepções das potências do corpo na dança nos trouxeram a compreensão

do movimento como potência do ato na dança. Potência que dialoga com outras

potências, como a potência do entre, que nesta pesquisa é entendida como a potência da

pausa.

A pausa desencadeou outras percepções como o entendimento deste estado na

cultura japonesa. No Japão o Ma é um elemento cultural presente nas vertentes artísticas

e na arquitetura. Pode ser compreendido como uma possibilidade, que, ao se manifestar

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no mundo de existência, torna-se fenômeno e, portanto visível. No que se refere ao

corpo, Ma pode ser entendido como um entre-espaço de fronteira, uma zona intervalar

de passagem entre ações (OKANO, 2007).

Todas essas concepções nortearam o fazer cênico em Amiúde, projeto cênico

desta pesquisa. O solo traz para a cena a degustação do movimento sem pressa, mesmo

na velocidade. Em alguns momentos movimentos velozes demostram a etapa frenética

na qual vivenciei durante a infância, adolescência e o início da jornada artística na

CDTAM. Já em outros momentos o movimento lento se configura como suspensão,

potencializando o entendimento da lentidão como um processo de passagem,

conduzindo o entendimento das potencialidades do corpo adiante. Sem esquecer-se de

onde viemos, o caminho percorrido e para onde podemos ir, um caminho em potência

constante.

Hoje ando devagar, no sabor da lentidão, pois já tive pressa. Acredito que esta

pesquisa em dança respondeu três questionamentos feitos na introdução desta

dissertação: Quais caminhos precisamos percorrer e experimentar para provar o sabor

da lentidão no movimento dançado? De que forma ainda estamos presos ao imediatismo

da velocidade? De que maneira a possibilidade da lentidão, faz com que o corpo

construa um conhecimento em dança?

O caminho principal é abrir uma potência de escutar o nosso corpo, entendendo

a lentidão como um processo gradual que se situa na zona artístico-educacional da

dança, emergindo como possibilidades de conhecimento de si.

Ficamos presos no imediatismo da velocidade, na dança, quando deixamos a

ansiedade bloquear a possibilidade de entender que o movimento é potência do ato na

dança e não uma reprodução frenética de padrões. A potência que surge do movimento

abre caminhos para a percepção de si e do outro, ampliando desta forma, a consciência

de suas singularidades que se potencializam na pluralidade das possibilidades de corpos

e de situações existentes.

A lentidão como perspectiva de uma linguagem em dança faz com que aspectos

pedagógicos nesta linguagem artística sejam pensados e repensados de maneira mais

aprofundada. Rever atitudes docentes e artísticas que permeiam o fazer na dança,

possibilita que a lentidão seja uma potência concreta de entender o fazer artesão que

demanda tempo e dedicação paciente de construção processual no tocante educacional

na dança (FORTIN, 2011). Já em uma perspectiva criativa em dança, a lentidão, nesta

pesquisa, assume e compreende que a criação é uma constante zona intervalar de

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passagem entre ações. É o modo “ser” e o modo “fazer”, elucidado pela física quântica

(GOSWAMI, 2010). É assumir, assim como Porpino (2006) que dança é educação.

Uma educação que se pauta no sensível e se constrói na mescla do fazer pedagógico,

artístico e criativo em dança.

Potências emergiram, conceitos embasaram, perspectivas foram assumidas nesta

pesquisa em dança. Esta pesquisa propõe a lentidão como possibilidade de uma

ampliação da consciência do movimento dançado. Um corpo que se escuta e escuta o

outro, construindo um saber pautado na prática que gera conhecimento para a

teorização.

Desejo aprofundar esta pesquisa em desdobramentos acadêmicos que seguem o

horizonte da formação docente e artística, entendendo que os processos artísticos e

docentes caminham de mãos dadas em um abraço afetivo potente de conhecimento em

dança.

“É preciso amor para poder pulsar29

”, para poder educar, para poder dançar. “É

preciso paz para poder sorrir”, para poder chorar, para poder viver. “É preciso chuva

para poder florir”, para se permitir, para desabrochar, para educar, para dançar. “Só levo

a certeza de que muito pouco eu sei, ou nada sei”, e que maravilha é não saber, é errar,

isso é aprender, é viver, é educar, é dançar.

Por isso, ando devagar por que já tive muita pressa. Hoje confesso que saborear

a lentidão é meu convite para vocês, leitores, pesquisadores, dançantes, viventes. Uma

lentidão que tem o germe da excitação pela vida, pela descoberta, sem pressa e sem

moleza. Sigamos lentos e conscientes de que a lentidão que proponho nesta pesquisa é

um convite para a vida.

29

As frases entre aspas são trechos da música “Tocando em Frente” (1991) de Renato Teixeira e

Almir Sater.

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