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PONTIFÍCIA UNIVERSIDAE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC - SP Marcelo Freire Gonçalves JUDICIALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS NO DIREITO DO TRABALHO DOUTORADO EM DIREITO SÃO PAULO 2012

JUDICIALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS NO ... Freire... · CONTRATO DE TRABALHO 85 3.1 – Noção de direitos humanos 85 3.2 – Eficácia dos direitos humanos fundamentais

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDAE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC - SP

Marcelo Freire Gonçalves

JUDICIALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS NO DIREITO DO TRABALHO

DOUTORADO EM DIREITO

SÃO PAULO

2012

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDAE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC - SP

Marcelo Freire Gonçalves

JUDICIALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS NO DIREITO DO TRABALHO

DOUTORADO EM DIREITO

Tese apresentada à banca examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Direito das Relações Sociais, sob a orientação do Professor Doutor Ricardo Hasson Sayeg.

SÃO PAULO

2012

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Banca Examinadora

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RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo estudar a longa evolução do trabalho, em

especial, na sociedade capitalista contemporânea sob a ótica do humanismo

consagrado no primado da dignidade da pessoa humana. Aborda-se a

transição da sociedade brasileira pelo passado escravista até a modernidade

competitiva. Essa análise demonstra que o processo de construção da ordem

capitalista no Brasil não foi uniforme. As fase ou ciclos econômicos impactaram

decisivamente na formação das relações de trabalho. Passa-se em seguida

para o estudo do Direito do Trabalho, mormente após a evolução dos direitos

humanos. A constitucionalização do Direito do Trabalho, a valorização do ser

humano e a despatrimonialização do direito privado mereceram aprofundado

estudo a fim de se compreender o avanço do jus-humanismo e o declínio do

positivismo jurídico. Nesse aspecto, demonstra-se que a Constituição Federal

de 1988 representou um novo paradigma valorativo a ser observado tanto nas

relações públicas como privadas. O valor social do trabalho, a livre iniciativa e o

primado da dignidade da pessoa humana forneceram um arcabaouço

normativo cuja interpretação pelo operador do direito permite concretizar os

dirietos sociais. Finalmente, avalia-se a eficácia horizontal dos direitos

humanos fundamentais em dois casos concretos e o papel do Poder Judiciário

na máxima eficácia dos direitos humanos fundamentais.

Palavras-chave: direitos humanos fundamentais, direito do trabalho, dignidade

da pessoa humana, humanismo, Poder Judiciário.

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ABSTRACT

The present work aims to study the evolution of the work, in particular, in

contemporary capitalist society from the standpoint of humanism as set out in

the primacy of human dignity. Addresses the transition from the slave past

Brazilian society to modern competitive. This analysis demonstrates that the

construction process of the capitalist order in Brazil was not uniform. The phase

or cycle decisive impact on the formation of working relationships. It goes then

to the study of labor Law, especially after the evolution of Human Rights. The

constitunalization of the Labor Law, the appreciation of the human being and

the private deserved in depth study in order to understand the progress of jus-

humanism and the decline of legal positivism. In this respect, it is demonstrated

that the Federal Constitution of 1988 represented a new paradigma values to be

observed in both the public and the private relationships. The social value of

work, free enterprise and the primacy of human dignity provided a legal

interpretation to the operator whose right to make operational and the social

rights. Finally, we evaluate the effectiveness of horizontal two fundamental

human rights in concrete cases and the role os the Judiciary in the maximum

efficiency of fundamental Human Rights.

Keywords: fundamental humam rights, labor law, human dignity, humanism,

Judiciary.

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AGRADECIMENTOS

Agradecer é compartilhar o sucesso com os demais. Aqui não faltaram

pessoas amigas que, diretamente ou indiretamente, colaboraram para a

finalização do nosso trabalho.

Em primeiro lugar ao Criador, o nosso Deus maior, que nos ampara e

nos conduz pelos campos da vida.

Dando sequência, a minha esposa Dirley Aparecida e a minha filha

Mariana, molas mestre de nossa vida. Agradecimentos pelos empurrões diante

dos obstáculos da vida.

Aos meus familiares, principalmente aos meus pais Heitor e Maria

Augusta por sempre terem acreditado na minha educação.

Aos funcionários do meu gabinete no Tribunal Regional do Trabalho da

2ª região, pelo apoio, pela torcida e um todo especial ao nosso Chefe de

Ganinete Cesar Henrique.

Não menos querido, muito pelo contrário, ao meu prezado orientador

Professor Ricardo H. Sayeg, que com suas aulas trouxe uma nova visão do

mundo jurídico. Figura ímpar como pessoa, que nos leva a ter mais esperança

na vida humana.

Por derradeiro, um forte agradecimento aos maigos, colegas e à direção

da Fundação de Rotarianos de São Paulo pelos incentivos e amizade dedicada

nestes anos todos.

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Se as coisas são inatingíveis...ora!

Não é motivo para não querê-las...

Que tristes os caminhos, se não fora

A mágica presença das estrelas!

Mário Qintana

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 10

CAPÍTULO 1 - AFIRMAÇÃO HISTÓRICA DO TRABALHO LIGADA AOS DIREITOS HUMANOS 13 1.1 – Breve histórico 13

1.1.1 Período pré-colonial (1500-1530) 15

1.1.2 Período da economia escravista de cultivo do açúcar

(séculos XVI e XVII) 17

1.1.3 Período da economia escravista mineira (século XVIII) 24

1.1.4 Período da economia cafeeira e transição para o trabalho

assalariado 26

1.1.5 Leis contra a escravidão 34

1.1.6 Período da industrialização 39

1.2 Evolução dos direitos humanos 42

1.3 Reflexos da evolução dos direitos humanos no âmbito do

trabalho 47

CAPÍTULO 2 – AMBIENTE CONSTITUCIONAL DO CONTRATO DE TRABALHO 52

2.1 – Constitucionalização do Direito do Trabalho 52

2.2 – A positivação dos direitos sociais na Constituição Federal de

1988 67

2.3 – Princípios constitucionais aplicados na hermenêutica

justrabalhista 78

CAPÍTULO 3 – APLICAÇÃO HORIZONTAL DOS DIREITOS HUMANOS NO CONTRATO DE TRABALHO 85

3.1 – Noção de direitos humanos 85

3.2 – Eficácia dos direitos humanos fundamentais 101

3.3 – Aplicação horizontal dos direitos humanos fundamentais no

contrato de trabalho 110

3.4 – O papel da jurisdição na eficácia horizontal dos direitos

humanos fundamentais 121

CONCLUSÃO 129

BIBLIOGRAFIA 137

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ANEXOS 141

ANEXO I 142

ANEXO II 158

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INTRODUÇÃO

Dentro do capitalismo humanista, há três primados que cercam a

condição humana:

Família – Trabalho - Liberdade

Dentro da concepção de direitos humanos passada nas aulas do

Professor Ricardo Hasson Sayeg, vê-se a importância do jusnaturalismo

voltado para a concepção de fraternidade.

Se fosse adotado o pensamento do Professor Milton Friedman, o Brasil

nunca seria um país capitalista.

A globalização não trouxe frutos para a maioria da Humanidade. Via de

regra beneficiou os habitantes dos países ditos do Primeiro Mundo.

O progresso acelerado dos países ricos provocou o aquecimento global

nos países pobres.

Tome-se, como exemplo, as Ilhas Maldivas.

As águas do mar estão cobrindo as ilhas do oceano Pacífico e o governo

daquele país procura outros países dispostos a receber seus cidadãos. Mais

recentemente ocorreram os episódios das cidades da serra fluminense em que

se verificaram demonstrações de solidariedade em contraposição ao lucro

ganancioso.

Todavia, nos tempos atuais, a defesa intransigente do fundamentalismo

de mercado ganhou fôlego, seja através da redefinição do papel do Estado,

seja por meio de reformas econômicas e políticas que concentram a riqueza.

Esses setores políticos apregoam a supremacia das decisões do Banco

Central sem qualquer espécie de controle político, desregulamentação de

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setores da economia, privatizações em larga escala, liberalização financeira e

comercial e regime cambial.

Os reflexos desse modelo político e econômico nas relações privadas

revelam um acentuado individualismo em que o outro não é visto como

parceiro, mas sim como adversário ou concorrente.

A filosofia cristã, há muito tempo, impôs um temor reverencial aos

detentores dos meios de produção estimulando a igualdade. Forneceu a

justificativa moral necessária para assegurar o mínimo e indispensável à

sobrevivência humana.

É importante citar a Doutrina Social da Igreja desenvolvida na Encíclica

Rerum Novarum, de 1891, de Leão XIII; na Encíclica Quadragesimo Anno, de

1931, de Pio XI; em discursos e documentos pontifícios de Pio XII; nas

Encíclicas Mater et Magistra, de 1961, e Pacem in Terris, de 1963, de João

XXIII; na Encíclica Populorum Progressio, de 1967; e na Laborem Exercens, de

1981, de João Paulo II. Surgiu, na época, como uma alternativa aos exageros

do liberalismo econômico e do comunismo. Apregoava teses com forte sentido

humanista. Partia da premissa de que a dignidade do trabalhador merecia a

mais alta valoração, razão pela qual o Estado deveria regular as relações de

trabalho a fim de evitar a aniquilação dos mais pobres.1

O Professor Ricardo Sayeg consagra em sua tese “Filosofia Humanista

do Direito Econômico”, que a solução está no ideal que contempla a liberdade

e a igualdade na medida fixada pela fraternidade, numa cadeia de

adensamentos entre elas, em prol do homem livre.

A participação dos empregados na condução do negócio apresenta-se

como uma medida de integração entre o capital e o trabalho (Marcelo Freire

Gonçalves. A Participação do Empregado na Direção da Empresa. Tese de

1 NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho. 19.ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2004. pp. 41-42.

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Mestrado, ano de 2003, PUC-SP). É possivelmente a manifestação concreta da

fraternidade no âmbito da relação de emprego.

Em data relativamente recente o então Presidente da República Luís

Inácio Lula da Silva promulgou a Lei n.º 12.353, de 28 de dezembro de 2010,

que dispõe sobre a participação de empregados nos Conselhos de

Administração das empresas públicas e sociedades de economia mista, suas

subsidiárias e controladas e demais empresas em que a União, direta ou

indiretamente, detenha maioria do capital social com direito a voto.

Há, ainda, expressão mais eloquente da concretização dos direitos

humanos no âmbito do trabalho. Na impossibilidade do empregador manter a

empresa passaria esta aos empregados como meio de continuidade do

trabalho (Acórdão SDC 00304/2002-2 proferido no processo SDC 00312/2000-

3).

Nesta oportunidade queremos demonstrar nossa experiência na Seção

Especializada em Dissídios Coletivos do Tribunal Regional do Trabalho da 2.ª

Região, onde nos defrontamos com a eficácia do direito positivo dentro da

visão humanista do pleno emprego.

O intento é sincronizar os efeitos dos direitos humanos nas relações

trabalhistas. Para tanto, é necessário estudar os direitos da personalidade do

empregado e os limites impostos ao exercício dos direitos do empregador.

Temas como o combate à discriminação, “mobbing” (assédio psicológico),

proteção da maternidade e da paternidade, trabalhadores com deficiência física

ou mental e com doença crônica e, finalmente, os trabalhadores estrangeiros

estão na ordem do dia.

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CAPITULO I

AFIRMAÇÃO HISTÓRICA DO TRABALHO LIGADA AOS DIREITOS HUMANOS

1.1 Breve histórico:

A história da Humanidade está intimamente relacionada aos conflitos

pela riqueza. Os homens desde tempos imemoriais disputam a posse dos

meios de subsistência.

O trabalho humano é, sem dúvida alguma, um dos instrumentos de

geração de riqueza.

Assim, desde a Antiguidade havia a disputa pela força de trabalho. É

nesse contexto que se insere a escravidão.

É bom lembrar que o escravo era tido como propriedade e não titular de

direitos (cidadão).

Aristóteles, na obra “Política”, admitiu a escravidão e pretendeu justificar

a relação entre senhor e escravo a partir de uma teoria melhor do que aquela

que apontava a escravidão como pura violência.

Veja que Aristóteles adota o pensamento corrente na época de que o

escravo era mera ferramenta:

Os instrumentos são de vários tipos; alguns são vivos, outros inanimados; o capitão de um navio usa um leme sem vida, mas um homem vivo como observador; pois o trabalhador num ofício é, do ponto de vista do ofício, um de seus instrumentos. Assim, qualquer parte da propriedade pode ser considerada um instrumento destinado a tornar o homem capaz de viver; e sua propriedade é a reunião desse tipo de instrumentos, incluindo os escravos; e um escravo, sendo uma criatura viva, como qualquer outro servo, é uma ferramenta equivalente às

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outras. Ele é em si uma ferramenta para manejar ferramentas.2 Tampouco existe amizade em relação a um cavalo, a um boi ou a um escravo enquanto escravo, pois não há nada em comum entre as duas partes: o escravo é uma ferramenta viva e a ferramenta é um escravo inanimado. Enquanto escravo, portanto, não se pode ser seu amigo, porém, enquanto ser humano isso é possível, pois parece haver uma certa justiça entre um homem qualquer e outro homem qualquer que tenham condições para participar de um sistema jurídico ou ser partes em um contrato: portanto, pode haver amizade com um escravo na medida em que este é um homem.3

A escravidão é analisada por Aristóteles em meio à tentativa de justificar

a existência de formas distintas de governo do homem sobre o homem.

Ele explica que o escravo por natureza é uma criatura que obedece à

paixão e não concebe a razão. Acrescenta que a própria natureza distinguiria

os corpos dos escravos e do senhor, sendo que o primeiro seria forte para o

trabalho servil, enquanto que o segundo seria inútil para o trabalho físico, mas

útil para a vida política e para as artes. Conclui que, para os escravos, seria

melhor que fossem dirigidos pelo senhor, dotado de razão.

O escravo por natureza seria somente o bárbaro.

O escravo por convenção nasce da estipulação, segundo a qual todos

os homens capturados em guerra tornam-se propriedade do captor.

Porém Aristóteles ressalta que o escravo por convenção não poderia

decorrer simplesmente do poder de um homem infligir violência a outro. Isso

porque, se fosse admitida essa idéia, um nobre poderia ser escravo, o que não

é aceito na lógica aristotélica.

2 ARISTÓTELES. Aristóteles – Vida e Obra. Política. Tradução de Therezinha Monteiro Deutsch e Baby Abrão. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1999. p. 148. 3 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2000. pp. 188-189.

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O escravo por convenção teria que coincidir com o escravo por natureza,

o que significa que, numa guerra contra tribos bárbaras, seria justo fazer

escravos.

Esse raciocínio aristotélico será resgatado no período das grandes

navegações, pois serviria de justificativa para que espanhóis e portugueses

viessem a utilizar a mão-de-obra escrava no continente americano.

Além dos conflitos e justificativas morais do emprego da mão-de-obra,

faz-se necessário compreender a dinâmica dos sistemas econômicos, em

especial do capitalismo que prevaleceu ao longo dos últimos séculos.

O estudo do trabalho depende da compreensão da dinâmica do

capitalismo numa sociedade. Isso porque a modificação do sistema econômico

influencia diretamente na relação de trabalho.

Tome-se como exemplo a evolução da relação de trabalho na sociedade

urbana brasileira a partir dos anos 50. A industrialização brasileira - causa

direta da evolução das relações de trabalho no ambiente urbano – foi

proporcionada pela acumulação de riquezas geradas pelo café. Antes desse

período, a sociedade brasileira era marcadamente rural.

A ordem capitalista brasileira transitou pelo passado escravista até a

modernidade competitiva. É certo que essa transição foi extremamente lenta e

gradual e, mesmo na atualidade, vislumbra-se a herança do passado

escravista.

Isso significa que não houve uma ruptura completa, mas um processo de

adequação à nova dinâmica exigida pela ordem capitalista.

Torna-se necessário, portanto, compreender as fases ou ciclos da

economia brasileira desde o período colonial até a modernidade.

1.1.1 Período pré-colonial (1500-1530):

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No período pré-colonial (1500-1530), o Brasil não despertava interesse

de uma economia mercantilista como a de Portugal. Nesse período os

interesses do Estado metropolitano e da burguesia mercantil portuguesa

estavam voltados para as riquezas africanas (ouro, sal e escravos) e para as

ricas Índias Orientais que atraiam o comércio internacional.

As populações indígenas que habitavam as terras brasileiras viviam num

sistema primitivo, possuindo uma agricultura rudimentar. A produção destinava-

se apenas ao consumo coletivo.

O pau-brasil foi o único produto com valor econômico considerável que

despertou o interesse dos portugueses. Era uma madeira muito utilizada na

manufatura têxtil europeia, especialmente nas tinturarias de Flandres.

Uma vez descoberto, o pau-brasil foi declarado monopólio real (estanco)

pela Coroa portuguesa.

O particular somente poderia comercializar o pau-brasil se o Estado lhe

doasse uma concessão e, ainda assim, reservando para si o direito de cobrar

obrigações e tributos do arrendatário.4

Em troca do pagamento de quatrocentos cruzados anuais e do envio de,

no mínimo, seis navios por ano, a Coroa portuguesa arrendou a exploração do

pau-brasil a um grupo de cristãos-novos (judeus convertidos ao catolicismo)

liderado por Fernão de Noronha. A partir de 1513, foi declarada livre a

exploração do pau-brasil desde que se pagasse à Coroa portuguesa um quinto

do valor da madeira explorada.5

Foi utilizada a mão-de-obra indígena livre para extração, corte e

transporte de madeira até os navios.

4 SILVA, Francisco de Assis. História do Brasil. São Paulo: Moderna, 1992. p. 33. 5 CÁCERES, Florival. História da América. São Paulo: Moderna, 1980. p. 41.

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Os comerciantes portugueses estabeleciam feitorias na Costa e

utilizavam o trabalho indígena, através do escambo. A indústria da extração

pode sobreviver e se desenvolver graças à existência numerosa de tribos

nativas no litoral brasileiro. Os indígenas sujeitavam-se ao trabalho árduo de

cortar árvores de grande porte e transportar a madeira até a praia e daí às

embarcações em troca de quinquilharias de valor ínfimo.

A indústria extrativa do pau-brasil era essencialmente nômade já que

não havia sentido em estabelecer feitorias nem povoamento em qualquer

ponto, uma vez que a madeira explorada espalhava-se pelo país e,

rapidamente, esgotava-se pelo corte intensivo.

Talvez pelo caráter nômade dessa indústria foi que os povos indígenas

inicialmente foram suficientes como mão-de-obra.

Porém, já no período da colonização, os povos indígenas não aceitaram

mais passivamente o trabalho organizado pelos colonos. Isso porque eram

povos seminômades, portanto, pouco afeitos às ocupações sedentárias. A vida

no período da colonização era bastante estranha aos hábitos indígenas.6

Com isso, muitas tribos passaram a resistir à ocupação portuguesa e à

imposição do trabalho. Essa resistência criou certo embaraço à colonização e

obrigou os portugueses a procurar uma alternativa à mão-de-obra indígena.

Portanto não há muitas informações sobre o período pré-colonial. Sabe-

se, porém, que a atividade extrativa do pau-brasil teve relativo êxito e a forma

de exploração da mão-de-obra foi o escambo.

1.1.2 Período da economia escravista de cultivo do açúcar (séculos XVI e XVII):

6 PRADO JR., Caio. História Econômica do Brasil. 49.ª reimpressão. São Paulo: Brasiliense, 2008. p. 12.

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É preciso lembrar que Portugal e Espanha largaram na frente da corrida

colonialista. Países como Inglaterra, França e Holanda contestavam a rápida

expansão comercial de Portugal e Espanha. As demais nações europeias

opunham-se à divisão de terras feitas por Portugal e Espanha e sustentavam

que portugueses e espanhóis não tinham direito senão àquelas terras que

houvessem efetivamente ocupado7.

Percebe-se que a exploração e a ocupação econômica do território

brasileiro foi fruto da pressão política das demais nações europeias.

Colhe-se da lição de Celso Furtado8:

“(...) quando, por motivos religiosos, mas com apoio governamental, os franceses organizam sua primeira expedição para criar uma colônia de povoamento nas novas terras – aliás a primeira colônia de povoamento do continente -, é para a costa setentrional do Brasil que voltam as vistas. Os portugueses acompanhavam de perto esses movimentos e até pelo suborno atuaram na corte francesa para desviar as atenções do Brasil. Contudo tornava-se cada dia mais claro que se perderiam as terras americanas a menos que fosse realizado um esforço de monta para ocupá-las permanentemente.”

No início, Portugal desconhecia a existência de ouro no interior do Brasil.

Ao contrário da Espanha, os portugueses precisaram definir uma forma de

exploração econômica das terras que cobrisse os gastos de defesa dessas

extensas terras.

O empreendimento escolhido foi o cultivo do açúcar. Isso porque os

portugueses já haviam acumulado conhecimento técnico a partir da experiência

nas ilhas do Atlântico.

7 FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. 34.ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 27. 8 Ibid. p. 27.

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Celso Furtado9 destaca que os holandeses contribuíram decisivamente

para a expansão do mercado do açúcar. Eles não se limitaram a financiar a

refinação e comercialização do produto, já que financiaram também as

instalações produtivas no Brasil e a importação da mão-de-obra escrava.

A produção e o transporte do açúcar exigiam uma grande quantidade de

trabalhadores cujo recrutamento não poderia ser feito em Portugal, já que o

referido país ibérico não dispunha de excedente populacional suficiente para o

empreendimento.

Além disso, era extremamente difícil e ruinosa a transferência de mão-

de-obra da Europa para o Brasil. Transportar uma grande quantidade de

trabalhadores da Europa para o Brasil gerava custos elevados. As condições

de trabalho no Brasil eram piores que aquelas enfrentadas na Europa, de modo

que somente com a oferta de salários bem superiores é que seria possível

convencer os trabalhadores a se fixarem no Brasil Colônia.

A dificuldade em recrutar mão-de-obra branca européia foi bem

exemplificada por Caio Prado Jr.10:

(...) nem na Espanha, nem em Portugal, a quem pertencia a maioria delas, havia, como na Inglaterra, braços disponíveis e dispostos a emigrar a qualquer preço. Em Portugal, a população era tão insuficiente que a maior parte do seu território se achava ainda, em meados do séc. XVI, inculto e abandonado; faltavam braços por toda parte, e empregava-se em escala crescente mão de obra escrava, primeiro dos mouros, tanto dos que tinham sobrado da antiga dominação árabe, como dos aprisionados nas guerras que Portugal levou desde princípios do séc. XV para seus domínios do norte da África; como depois, de negros africanos, que começam a afluir para o reino desde meados daquele século. Lá por volta de 1550, cerca de 10% da população de Lisboa era constituída de escravos negros.

9 Ibid. p. 34. 10 Op. cit. p. 22.

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Como visto, os portugueses já estavam familiarizados com o mercado

africano de escravos.

No início, utilizaram a mão-de-obra escrava indígena. O emprego dessa

mão-de-obra não foi muito proveitoso diante das hostilidades dos índios.

Não se pode perder de vista que, no começo da colonização, a mão-de-

obra nativa foi fundamental na instalação da colônia.

Já, no período da instalação da monocultura do açúcar, o emprego da

mão-de-obra indígena encontrou grandes dificuldades, seja porque não se

adaptaram ao trabalho na lavoura de cana, seja porque resistiram bravamente

à escravidão que os portugueses tentaram lhes impor.

Ao perceberem os portugueses que a importação de escravos africanos

era um negócio altamente rentável, passaram a utilizá-la largamente.11

Impende observar que somente o trabalho escravo era viável num

sistema de produção com pequena margem de lucro e condições de trabalho

degradantes. Por certo não seria possível manter quantidade significativa de

trabalhadores livres sujeitos a uma rotina de trabalho desgastante com

remuneração baixa.

Lúcio Kowarick12 bem sintetiza o trabalho escravo nesse período:

Trabalho compulsório também porque, devido às estreitas margens de lucro, era imperioso para a empresa colonial subjugar, de forma permanente e disciplinada, grande quantidade de trabalhadores. Ela deveria levar adiante um processo cuja viabilização econômica dependia de uma produção em larga escala, voltada para o já partilhado e competitivo mercado mundial. Dessa forma, tornava-se inviável a submissão da mão-de-obra livre, pois, para afastá-la da economia de subsistência, seria necessário

11 Ibid. p. 35. 12 Trabalho e Vadiagem: A origem do trabalho livre no Brasil. 2.ª Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994. pp. 21-22.

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atribuir-lhe vantagens materiais incompatíveis com a dinâmica inerente ao empreendimento colonial, que só poderia estruturar-se na superexploração do trabalho. Assim o trabalho escravo, por meio de jornadas extremamente longas e do rebaixamento também extremado dos níveis mínimos de subsistência, mostrar-se-ia mais vantajoso do que tentar uma submissão em massa da população livre, cuja viabilidade num contexto de disponibilidade de terras era praticamente irrealizável.

Dessa forma, a mão-de-obra escrava africana substituiu com êxito uma

mão-de-obra menos eficiente e de recrutamento incerto.13

Aliás, foi a exigência da colonização na América que ressuscitou a

escravidão na civilização ocidental, sendo que estava em declínio desde fins do

Império Romano.14

É importante esclarecer que o processo de substituição do índio pelo

negro prolongou-se até o fim da era colonial e se deu em ritmo diferente em

cada localidade do Brasil. Em regiões como Pernambuco e Bahia, o processo

foi rápido, ao passo que, na Amazônia e em São Paulo, perdurou até o século

XIX.15

Essa observação é importante para compreender o processo de

construção da ordem capitalista no Brasil, que não foi uniforme. Mais adiante

será demonstrado que a transição para o trabalho livre também não foi

uniforme, conforme ensina Adalberto Cardoso16:

As diferenças regionais quanto ao timing da transição são reflexo de outro aspecto relevante da ordem escravista: a existência de diferentes regimes de escravidão. Sabe-se hoje, com muito mais propriedade, que o padrão de sujeição dos cativos nos canaviais de Pernambuco ou da Bahia era diferente do imperante nos pampas gaúchos, nas minas de ouro e diamantes das Gerais, nos cafezais do vale do Paraíba, em cidades

13 Ibid. p. 84. 14 PRADO JR., Caio. op. cit. p. 34. 15 Ibid., p. 37. 16 A Construção da Sociedade do Trabalho no Brasil: uma investigação sobre a persistência secular das desigualdades. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010. p. 57.

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22

pequenas do interior de São Paulo, numa cidade grande como o Rio de Janeiro ou no interior dos engenhos de açúcar. Neste último caso, por exemplo, hierarquias ocupacionais distinguiam os escravos segundo a qualificação para o uso adequado do maquinário, a capacidade de produção do açúcar com determinado padrão de qualidade etc., gerando expectativas de ascensão social e de alforria que não existiam nos campos de cana ou de algodão.

A expansão de grandes empreendimentos agrícolas (engenhos de

açúcar) somente foi possível com a utilização em larga escala da mão-de-obra

africana escrava.

Uma parte dos escravos ocupava-se do plantio destinado ao

abastecimento da população local, ao passo que o restante era direcionado

para as obras de instalação do empreendimento, para as tarefas agrícolas e

industriais do engenho.

Para se ter uma ideia da importância econômica da mão-de-obra

escrava africana nos engenhos de açúcar, vinte por cento do capital fixo da

empresa destinava-se à mão-de-obra:

O montante de capitais invertidos na pequena colônia já era, por essa época, considerável. Admitindo-se a existência de apenas 120 engenhos – ao final do século XVI – e um valor médio de 15 mil libras esterlinas por engenho, o total dos capitais aplicados na etapa produtiva da indústria resulta próximo de 1,8 milhão de libras. Por outro lado, estima-se em cerca de 20 mil o número de escravos africanos que havia na colônia por essa época. Se se admite que três quartas partes dos mesmos eram utilizadas diretamente na indústria do açúcar e se lhes imputa um valor médio de 25 libras, resulta que a inversão em mão-de-obra era da ordem de 375 mil libras. Comparando esse dado com o anterior, depreende-se que o capital empregado na mão-de-obra escrava deveria aproximar-se de vinte por cento do capital fixo da empresa. Parte substancial desse capital estava constituída por equipamentos importados.17

17 FURTADO, Celso. Op. cit. p. 78.

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Também havia, nos engenhos, alguns trabalhadores assalariados que

exerciam diversos ofícios e a supervisão do trabalho dos escravos.

Já nessa época, destacava-se a acentuada concentração da riqueza

gerada na colônia nas mãos da classe de proprietários de engenho.

Assim, nesse período, formaram-se grandes propriedades açucareiras

que reuniam um número grande de indivíduos sob a direção imediata do

proprietário ou seu feitor. Essa forma de exploração foi a única organização

coletiva de trabalho e da produção no Brasil daquela época.18

A estrutura era bastante complexa, pois compreendia numerosas

construções e aparelhos. Em regra, as propriedades eram constituídas pela

casa-grande que compreendia a habitação do senhor, a senzala dos escravo e

outras instalações acessórias, tais como: oficinas, estrebarias etc.

Por um longo período, a produção do açúcar, na forma de produção

acima mencionada, seria a base da economia brasileira. Como assinala Caio

Prado Jr.19, até meados do séc. XVII, o Brasil seria o maior produtor mundial de

açúcar.

Contudo não se pode ignorar que, paralelamente aos engenhos, formou-

se uma economia de subsistência na colônia em que se produziam gêneros de

consumo.

A pecuária desenvolveu-se no Interior já que os férteis terrenos de beira-

mar estavam ocupados com a cultura da cana. O movimento de exploração da

pecuária partiu da Bahia e Pernambuco. A partir da Bahia, ocupou Norte e

Noroeste em direção do rio São Francisco. A partir de Pernambuco, o

movimento seguiu em direção Norte e Noroeste, ocupando o Interior dos atuais

Estados da Paraíba e do Rio Grande do Norte.

18 Ibid., p. 38. 19 Ibid., p. 39.

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24

Os trabalhadores nas fazendas de gado eram recrutados entre índios e

mestiços, bem como entre foragidos dos centros policiados do litoral. O

trabalho era livre.

1.1.3 Período da economia escravista mineira (século XVIII):

No século XVIII, ocorreram as primeiras descobertas de jazidas

auríferas. A partir de então, Portugal concentraria sua atenção na mineração do

ouro no Brasil. As demais atividades entrariam em decadência.

É bem verdade que o estado de pobreza da Metrópole impulsionou a

iniciativa de procurar ouro no Brasil Colônia.

Já no início do século XVIII, em Portugal, formou-se uma grande

corrente migratória espontânea com destino ao Brasil. Uma grande quantidade

de recursos foi deslocado do Nordeste do Brasil, especialmente a mão-de-obra

escrava.20

A diferença no emprego da mão-de-obra na economia açucareira em

relação à economia mineira é que diz respeito à quantidade e forma de

utilização:

Se bem que a base da economia mineira também seja o trabalho escravo, por sua organização geral ela se diferencia amplamente da economia açucareira. Os escravos em nenhum momento chegam a constituir a maioria da população. Por outro lado, a forma como se organiza o trabalho permite que o escravo tenha maior iniciativa e que circule num meio social mais complexo. Muitos escravos chegam mesmo a trabalhar por conta própria, comprometendo-se a pagar periodicamente uma quantia fixa a seu dono, o que lhes abre a possibilidade de comprar a própria liberdade. Esta simples possibilidade deveria constituir um fator altamente favorável ao seu desenvolvimento mental.21

20 FURTADO, Celso. Op. cit. p. 118. 21 Ibid., p. 120.

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25

A alta lucratividade inicial da mineração induzia a concentração de

recursos e a uma crise de abastecimento, haja vista a elevação dos preços dos

alimentos e dos animais de transporte.

Entretanto a economia mineradora começou a entrar em declínio com o

esgotamento rápido das jazidas auríferas. É importante destacar que, na

colônia, exploravam-se apenas os depósitos superficiais de aluvião. Áreas

entranhadas no solo demandavam técnicas desconhecidas pelos colonos.

Além disso, o intrincado sistema de regulamentação da atividade

mineradora imposto pela Metrópole contribuiu para a apressada decadência

desse período. Veja, por exemplo, que, na época, fixou-se uma quota anual

mínima denominada quinto - já que se referia ao quinto de todo ouro extraído –

destinada à Fazenda Real. Caso o quinto não fosse atingido, procedia-se ao

derrame no qual se obrigava a população a completar a soma.22

É importante destacar que a decadência econômica é pródiga em induzir

fortes conflitos sociais. Em princípio, se poderia imaginar que o declínio da

exploração do ouro no Brasil geraria essa consequência.

Todavia Celso Furtado23 assinala que o regime de trabalho escravo

impediu que o colapso da produção de ouro gerasse conflitos sociais mais

relevantes.

A desagregação do empreendimento minerador provocou o decaimento

dos pequenos núcleos urbanos que haviam surgido ao redor dos centros de

exploração. A dispersão dos elementos formadores da economia mineradora

provocou a descapitalização do sistema. A população dispersa voltou-se para o

regime de subsistência.

Se for observado que, em torno de um século atrás, havia uma

economia de alta produtividade (açucareira), conclui-se que o retrocesso foi

22 PRADO JR., Caio. Op. cit. p. 59. 23 Op. cit. p. 133.

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26

enorme. A desarticulação da economia mineradora atrofiou o sistema

produtivo, reduzindo-o a uma agricultura de subsistência.

Celso Furtado24 sintetiza com maestria o quadro de decadência

econômica que afetou a mão-de-obra:

Dessa forma, uma região cujo povoamento se fizera em um sistema de alta produtividade, e em que a mão-de-obra fora um fator extremamente escasso, involuiu numa massa de população totalmente desarticulada, trabalhando com baixíssima produtividade numa agricultura de subsistência. Em nenhuma parte do continente americano houve um caso de involução tão rápida e tão completa de um sistema econômico constituído por população principalmente de origem européia.

Com efeito, esses fatores explicam a condição precária dos

trabalhadores nos dias atuais. Por certo não se trata de um fenômeno isolado.

É o resultado da combinação de fatores econômicos e históricos.

1.1.4 Período da economia cafeeira e transição para o trabalho assalariado:

No século XIX, despontava como classe dominante os grandes senhores

agrícolas. Já na segunda metade do século XVIII, a agricultura ressurge em

vista do desenvolvimento do mercado para seus produtos. O comércio colonial

para os países da Europa ganha importância, haja vista as disputas travadas

em torno da questão colonial (como as guerras napoleônicas, por exemplo).

Além disso, o fenômeno da Revolução Industrial reativa a demanda por

matérias-primas como o algodão.

A classe dos grandes senhores agrícolas é a base de sustentação do

poder imperial no Brasil livre da Metrópole portuguesa desde 1822.

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27

É bom lembrar que a economia brasileira estava intimamente ligada às

economias europeias.

Nesse período, os ingleses, amparados em razões morais e motivados

pelos interesses antilhanos que denunciavam a escravatura brasileira como

fator de depressão do mercado do açúcar, pretenderam eliminar o tráfico

transatlântico de escravos.25

Há, ainda, outra razão que bem explica a motivação de uma nação como

a Inglaterra para lutar contra a escravidão.

Caio Prado Jr.26 explica que o trabalho escravo gera mais custos que o

trabalho assalariado na indústria manufatureira:

(...) De modo geral, e de um ponto de vista estritamente financeiro e contabilístico, o trabalho escravo, em outras circunstâncias iguais, émais oneroso que o assalariado. O escravo corresponde a um capital fixo cujo ciclo tem a duração da vida de um indivíduo; assim sendo, mesmo sem considerar o risco que representa a vida humana, forma um adiantamento a longo prazo de sobretrabalho eventual a ser produzido; e portanto um empate de capital. O assalariado, pelo contrário, fornece aquele sobretrabalho sem adiantamento ou risco algum. Nessas condições, o capitalismo é incompatível com a escravidão; o capital, permitindo dispensá-la, a exclui. É o que se deu com o advento da indústria moderna.

Saliente-se que, em 1845, foi aprovado o ato Bill Aberdenn pelo

Parlamento inglês que tornava lícito o apresamento de qualquer embarcação

empregada no tráfico africano e sujeitava os infratores a julgamento por

pirataria perante os tribunais do Almirantado. Desde então, a Marinha de

Guerra inglesa não respeitava as águas territoriais brasileiras e praticava

verdadeiros atos de guerra ao caçar os navios negreiros.27

24 Op. cit. p. 134. 25 FURTADO, Celso. Op. cit. p. 145. 26 Op. cit., p. 175. 27 Ibid. p. 151.

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Em 1850, é proibido o tráfico de escravos no Brasil.

O trabalho escravo gerou graves consequências sociais e econômicas

para o Brasil. Estabeleceu limites à expansão e à diversificação econômica do

país, uma vez que não permitia a sua utilização em atividades mais bem

estruturadas com uma divisão de tarefas mais complexas e especializadas.28

O café surge em 1830 como principal produto de exportação diante do

declínio do açúcar e do algodão.

Todavia o governo central enfrentava sérias dificuldades financeiras.

Para se ter uma ideia, o governo central não conseguia arrecadar recursos

para arcar sequer metade dos seus gastos agravados com a revolta na

província da Cisplatina. A forma que o governo encontrou para financiar o

déficit foi a emissão de papel-moeda. Com isso, houve uma desvalorização da

moeda e consequente elevação relativa dos preços dos produtos importados.

Os efeitos dessa crise atingiram principalmente as populações urbanas de

pequenos comerciantes, empregados públicos, militares etc.29

A organização da cultura do café assentava-se no trabalho escravo. Foi

possível utilizar essa mão-de-obra subutilizada da região da antiga mineração.

É bom lembrar que a produção do café concentrou-se na região montanhosa

próxima à cidade do Rio de Janeiro. No terceiro quartel do século, os preços do

café recuperaram-se, enquanto que os do açúcar permaneceram o que forçou

uma forte migração da mão-de-obra do Norte para o Sul. Essa migração de

escravos da região Norte para o Sul foi incrementada depois da proibição do

tráfico negreiro. Diante da impossibilidade de importar escravos, a solução

encontrada foi trazer escravos de outras regiões do Brasil, principalmente do

Nordeste.

28 KOWARICK, Lúcio. Op. cit. p. 37. 29 FURTADO, Celso. Op. cit. p. 146.

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29

Há um dado que bem contextualiza a influência da mão-de-obra escrava

na evolução do trabalho no Brasil: o Brasil e os Estados Unidos da América

foram os dois principais países escravistas no continente americano, sendo

que o Brasil, no século XIX, importou três vezes mais escravos que os Estados

Unidos da América.

Todavia os Estados Unidos tinham uma força de trabalho escravo de

quatro milhões e o Brasil tinha em torno de um milhão e meio. A explicação

para isso é a elevada taxa de natalidade nos Estados Unidos e a alta taxa de

mortalidade no Brasil em vista das precárias condições de trabalho neste

último.30

Em paralelo, havia uma mão-de-obra com baixíssima produtividade na

economia de subsistência. Nas zonas urbanas também havia uma massa de

trabalhadores que não conseguia encontrar uma ocupação permanente.

Mas o país padecia da falta de mão-de-obra.

É bom lembrar que havia significativa resistência à utilização do

trabalhador livre nacional, pois ele era tido como preguiçoso, pouco confiável e

privado de mentalidade moderna (burguesa acumulativa, já que se contentaria

com muito pouco).31

A solução encontrada foi o fomento da imigração europeia:

Em 1852, um grande plantador de café, o senador Vergueiro, se decidiu a contratar diretamente trabalhadores na Europa. Conseguindo do governo o financiamento do transporte, transferiu oitenta famílias de camponeses alemães para a sua fazenda em Limeira. A iniciativa despertou interesse, e mais de 2 mil pessoas foram transferidas, principalmente de Estados alemães e da Suíça, até 1857. A idéia do senador Vergueiro era uma simples adaptação do sistema pelo qual se organizava a emigração inglesa para os EUA na época colonial: o

30 Ibid., pp. 174-175. 31 CARDOSO, Adalberto. Op. cit. p. 62.

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30

imigrante vendia o seu trabalho futuro. Nas colônias inglesas, o financiamento corria por conta do empresário. No caso brasileiro, o governo cobria a parte principal desse financiamento, que era o preço das passagens da família. É fácil compreender que esse sistema degeneraria rapidamente numa forma de servidão temporária, a qual nem sequer tinha um limite de tempo fixado como ocorria nas colônias inglesas.32

Essa espécie de exploração da mão-de-obra imigrante suscitou forte

reação dos países europeus, os quais passaram a dificultar a emigração de

trabalhadores para países escravistas como o Brasil.

Adotou-se o regime de parceria no qual o colono assumia parte do risco

do empreendimento.

Com isso, a renda do colono era incerta.

Nesse sistema, o proprietário da terra fomentava o endividamento do

imigrante, postergando, com isso, a sua saída da fazenda. O latifundiário

impedia que o imigrante formasse poupança suficiente para saldar as dívidas

do seu contrato de trabalho.

Alguns expedientes adotados pelos fazendeiros consistiam em repartir

de forma desigual da produção por meio do escamoteamento de pesos e

medidas, taxa de cobrança de juros, taxas e comissões no preço dos alimentos

que os colonos compravam nas vendas das fazendas.33

A partir de 1860, adotou-se o sistema misto no qual o colono recebia um

salário fixo para cuidar de um certo número de pés de café. Também recebia

um salário variável o qual era pago no momento da colheita de acordo com o

volume desta.

Contudo as condições de trabalho não se alteraram e os colonos

estrangeiros permaneceram em regime de servidão disfarçado.

32 FURTADO, Celso. Op. cit. pp. 184-185.

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31

A partir de 1870, o governo passou a custear as despesas dos colonos com a

viagem. Ao fazendeiro, cabia o dever de arcar com os gastos do imigrante

durante o seu primeiro ano de trabalho. Também deveria o fazendeiro

disponibilizar uma parte da terra para que os imigrantes cultivassem gêneros

de primeira necessidade para a manutenção da família.

Nesse mesmo período, processava-se a unificação política da Itália, o

que provocou o declínio da indústria manufatureira do Sul. O excedente de

mão-de-obra do Sul da Itália em busca de novas oportunidades de trabalho

abraçou a idéia da imigração para o Brasil.

Assim, formaram-se as condições necessárias para uma grande

corrente migratória para o Brasil.

Como se observa, mesmo antes da abolição da escravatura, já se

acentuava a corrente migratória de trabalhadores da Europa para o Brasil.

Em 1888, torna-se insustentável a manutenção do trabalho escravo no

Brasil. Desde antes, já se fazia sentir a pressão inglesa para acabar não só

com o tráfico de escravos, como também com a escravidão.

Merece registro o fato de que a primeira manifestação de um órgão

coletivo a favor da emancipação dos escravos partiu do Instituto de Advogados

do Rio de Janeiro. Aliás, as reações mais consistentes contra a escravidão

partiram do grupo de intelectuais da sociedade brasileira: advogados e

juristas.34

De fato, advogados e juristas estavam entre as primeiras classes a

defender a abolição da escravatura. O desenvolvimento de uma classe social

intermediária, que não representava nem a elite econômica, nem a camada

miserável foi fundamental para o processo de abolição. O processo de

33 KOWARICK, Lúcio. Op. cit. p. 37 34 PRADO JR., Caio. Op. cit. p. 176.

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32

urbanização, o surgimento das primeiras indústrias, organismos financeiros,

desenvolvimento de grupos artesanais de trabalhadores livres estimulou o

crescimento dos profissionais liberais. Essa nova classe não estava

comprometida com a escravidão, razão pela qual funcionou como suporte à

ação abolicionista.35

Após a abolição, as lavouras do café mais do que nunca dependiam da

mão-de-obra imigrante livre.

O trabalhador brasileiro livre foi empregado primordialmente nas regiões

estagnadas para as quais o imigrante não foi. Nas fazendas de café, o

trabalhador nacional foi utilizado apenas de forma subsidiária.36

A Lei do Ventre Livre e a proibição do tráfico negreiro tornavam o

escravo uma mercadoria extremamente cara. Não é nenhum exagero afirmar

que alguns proprietários de terras haviam mobilizado parcela de seu capital nos

escravos. Por isso a ideia da abolição da escravatura assustava os

fazendeiros. Muitos acreditavam que uma mudança tão drástica como essa

poderia representar a ruína dos mesmos.

Porém outros destacavam que a abolição da escravatura faria com que

os fazendeiros não precisassem mais empenhar significativas quantias na

comercialização de escravos.

Assim, haveria a liberação de vultosos capitais antes utilizados

exclusivamente na comercialização de escravos.

É curioso o caso de algumas ilhas das Antilhas inglesas citado por Celso

Furtado37 em nota de rodapé.

35 COSTA, Emília Viotti da. Da Senzala à Colônia. 4ª ed. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998. 36 KOWARICK, Lúcio. Op. cit. pp. 54-55. 37 Op. cit. p. 200.

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33

Na ilha de Antígua, a abolição da escravatura teve um caráter

puramente formal. É importante esclarecer que, lá, as terras eram

monopolizadas por uma única classe social. A literatura inglesa especializada

narra que a assembleia daquela ilha dispensou os escravos das obrigações

criadas pelo Apprenticeship System. Nesse sistema, introduzido pelo

Parlamento britânico como medida de transição para a abolição da

escravatura, os escravos eram obrigados a trabalhar para seus senhores,

durante seis anos, numa jornada diária de sete horas e meia, mediante o

fornecimento de alimentação, vestuário e alojamento. Facultava-se ao escravo

trabalhar mais duas horas e meia para receber salário. Ao final desse sistema,

com a libertação total dos escravos, os fazendeiros ajustaram-se para fixar um

salário extremamente baixo. Sem qualquer outro opção, os ex-escravos

sujeitaram-se a essas condições degradantes nas plantações.

Com isso, os ex-escravos, em vez de trabalharem sete horas e meia

para cobrir as despesas com alojamento, alimentação e vestuário como ocorria

no Apprenticeship System, passaram a trabalhar dez horas diárias para

alcançar a mesma situação. Concluíram os britânicos que as indenizações

pagas pelo governo da Grã-Bretanha aos senhores de escravos antilhanos

beneficiaram os escravistas, sem qualquer benefício prático aos trabalhadores.

Com efeito, a pura e simples abolição da escravatura sem alternativa

real de trabalho não traduz benefício direto aos ex-escravos. Sem oportunidade

e em franca condição de desigualdade econômica, os ex-escravos sujeitaram-

se a um regime de servidão em que a liberdade era apenas formal.

O autor acima mencionado ressalta que, na região nordestina de cultivo

do açúcar, ocorreu fenômeno semelhante.

Já na região cafeeira, os escravos tenderam a abandonar as antigas

plantações, dedicando-se à agricultura de subsistência dada a abundância de

terras cultiváveis.

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É bom lembrar que, com a introdução da estrada de ferro, foi possível

explorar terras mais distantes. Tais localidades apresentavam-se mais

produtivas, razão pela qual os cafeicultores podiam pagar salários mais altos

do que os senhores de engenho.

Essa situação favorável proporcionou salários mais elevados aos ex-

escravos.

Houve certa redistribuição de renda na região Sudeste se feita essa

comparação com o Nordeste.

Mas os cafeicultores preferiram a mão-de-obra imigrante mais

especializada.

No plano geral, a abolição da escravidão não gerou modificação na

organização da produção nem na distribuição de renda. O processo de

abolição da escravatura deveria ser acompanhado de uma ampla reforma

agrária, uma vez que a liberdade somente é plena se o trabalhador dispõe dos

meios materiais necessários para a satisfação de suas necessidades básicas.

Em outras palavras, a liberdade somente é plena se for acompanhada de uma

vida digna.

A falta de planejamento e empenho do governo em proporcionar uma

assistência material ao escravos recém-libertados lançou à margem da

sociedade a comunidade afrodescendente. A situação precária dos ex-

escravos reflete-se nas condições de vida e organização da classe

trabalhadora pelo período seguinte.

1.1.5 Leis contra a escravidão:

Em um trabalho que se pretende estudar o conflito do capital e do

trabalho, a evolução da legislação de proteção ao trabalhador e a evolução de

um sistema econômico capaz de harmonizar o trabalho e a livre iniciativa,

tendo como primado a dignidade da pessoa humana, faz-se necessário dedicar

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35

um tópico ao conjunto de leis tendentes à abolição da escravatura,

especialmente num país como o Brasil que adotou a tradição romano-

germânica (direito positivado em códigos).

Como efeito, o processo de abolição da escravatura foi fruto da

combinação de alguns fatores, tais como: o advento da industrialização e a

necessidade de novos mercados consumidores para as potências capitalistas,

avanço das ideias liberais, pressão externa inglesa, revoltas internas e crise

política na monarquia brasileira.

Todavia é inegável que o surgimento lento e gradual de uma legislação

abolicionista é um marco na nossa história. Até porque traduz a evolução da

nossa sociedade. Por isso merece destaque especial.

Abaixo será citada não só a legislação brasileira, mas também a

legislação estrangeira que, diretamente, impactou os rumos da escravização no

Brasil:

A Lei de 26/01/1818 proibia o tráfico de possessões portuguesas.

A Lei de 07/11/1831 proibia a importação de escravos. Essa lei foi

fundamental para que a Inglaterra reconhecesse a independência do Brasil.

O Bill Palmerston de 24/08/1839 autorizava os navios britânicos a

apresarem os navios negreiros.

O Bill Aberdeen de 08/08/1845 submetia os navios brasileiros à

jurisdição britânica.

A Lei Eusébio de Queiroz de 04/09/1850 proibia, definitivamente, a

importação de africanos.

É importante registrar que antes de 1850 o tráfico de escravos

prosperava no Brasil, embora o país se comprometesse a coibi-lo.

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36

Nelson Câmara38 lembra que o Brasil já revelava um conceito de país

que não cumpria seus compromissos.

O ilustre autor assevera que as Leis de 1818 e de 1831 já preparavam a

inevitável proibição do tráfico de escravos.

Mas somente em 1850 é que se aboliu, de forma definitiva, a importação

de escravos.

Essa proibição tornou o escravo um produto raro para os fazendeiros.

Nessa época, as fazendas de café do Sudeste prosperavam, enquanto

que os engenhos de açúcar no Nordeste estavam em declínio.

Diante da demanda por mão-de-obra escrava na região Sudeste e da

ascensão econômica dos cafeicultores, surgiu o risco de transferência dos

escravos da região Nordeste para o Sudeste onde se pagava mais pela mão-

de-obra escrava. Nesse contexto, o deputado João Maurício Wandeley, Barão

de Cotegipe, propôs a criação de uma lei que proibisse o tráfico interprovincial

de escravos. Esse projeto não foi adiante, mas algumas províncias criaram

taxas locais sobre a saída de escravos. Esse contexto desfavorável ao Norte e

Nordeste seria decisivo para fazer com que as ideias abolicionistas tivessem

mais êxito se comparadas com o Sudeste e o Sul.39

Em 1869, foi proibida a venda de escravos em leilão, graças ao projeto

de lei apresentado por José de Alencar, grande romancista.

Alguns países da América Central possuíam um Código Negro que

impunha limites às crueldades contra os escravos, prescrevendo um mínimo de

direito aos negros.40

38 Escravidão nunca mais: um tributo a Luiz Gama. São Paulo: Lettera.doc, 2009. p. 149. 39 PRADO JR., Caio. op. cit. p. 174. 40 CÂMARA, Nelson. op. cit. p. 152.

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No Brasil, tal código não existiu, mas os castigos corporais tornaram-se

mais escassos após a Lei do Ventre livre e do Sexagenário.

A Lei do Ventre Livre permitia ao escravo a formação de pecúlio por seu

trabalho a fim de alcançar a sua libertação. Desse modo, o filho do ventre livre

dava direito ao senhor a uma indenização.

Ressalte-se que foram travadas batalhas nos tribunais em que alguns

juristas contrários à Lei do Ventre Livre chegaram a invocar o antigo Direito

Romano para sustentar que o ventre de mulher escrava geraria escravo. Com

o advento da Lei n.º 2.040/1871 é que se impediu a tentativa de burlar a Lei do

Ventre Livre.41

No dia 08/05/1888, o Ministro da Agricultura Rodrigo Augusto da Silva,

que fazia parte do Gabinete de Ministros presidido por João Alfredo Correia de

Oliveira, formulou a proposta de abolição da escravatura, a qual foi

apresentada à Câmara dos Deputados pelo o projeto de lei de abolição da

escravatura. O projeto foi discutido e votado na Câmara nos dias 9 e 10 de

maio de 1888.

No dia 11 do mesmo mês, o projeto seguiu para o Senado, tendo sido

debatido nos dias 11, 12 e 13.

Em razão da viagem de Dom Pedro II à Europa, a lei foi sancionada pela

Princesa Isabel.

Assim, a Lei n.º 3.353, posteriormente batizada como Lei Áurea, foi

assinada no Paço Imperial, no dia 13/05/1888, por Dona Isabel e Rodrigo

Augusto da Silva.

41 Ibid., p. 158.

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38

De fato, a lei apenas reconheceu um fato inevitável em face da pressão

internacional, da desordem na senzala e do quase consenso nacional acerca

da questão.

Veja a lição de Nelson Câmara:

A Lei de 13 de maio de 1888 limitou-se a reconhecer e confirmar um fato preexistente e evitou maiores perturbações e desordens, se não terríveis calamidades. A emancipação estava feita no dia em que os ex-escravos se recusaram a marchar para o trabalho e começaram os êxodos das fazendas. A lei confirmou a liberdade, dando-lhe a sanção dos poderes públicos; mas, sem a lei, não deixaria de acontecer o fato que se impunha contra todas as resistências, ponderava o Jornal do Comércio em outubro de 1888.42

Por certo, a lei emancipadora, no caso da escravatura, chancelou um

movimento que já ganhava força entre a incipiente classe média brasileira e

populares que não tinham escravos. A população que possuía escravo era uma

minoria. Por isso ficava cada vez mais difícil para os proprietários de escravos

encontrar apoio moral para a escravidão.

Ademais, desde os anos 1870, desenvolvia-se, ainda que timidamente,

algumas fábricas, organizações financeiras, setores do comércio, tudo

impulsionado pela urbanização. Esse quadro descortinava novas

oportunidades de investimento do capital. Com isso, não mais convinha aos

fazendeiros imobilizar o capital em escravos, produto que se depreciava

rapidamente.

Por isso muitos fazendeiros de regiões prósperas aderiram à causa

abolicionista.

Porém pleiteavam a fixação de um prazo para a transição do trabalho

escravo para o assalariado, além de indenização para cobrir os gastos e

investimentos que haviam feito com escravos.

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39

A ordem jurídica escravocrata já não mais dispunha da adesão

espontânea da sociedade brasileira. O resultado dessa insatisfação social

refletia nas revoltas nas senzalas, o Exército já não mais aceitava ordens para

perseguir escravos, sociedades abolicionistas conspiravam, etc.

Era necessário que a ordem jurídica fosse alterada para acompanhar a

dinâmica social, sob pena de desprestígio e desobediência civil aberta.

Com efeito, a Lei Áurea reconheceu um fato social que se impunha há

muito tempo.

A importância dessa lei reside na consagração de um pensamento

libertário cujo efeito moral conduziu o país para novos rumos, haja vista o

movimento republicano. Um dos efeitos mais evidentes era o alinhamento do

Brasil às demais nações do mundo ocidental que, há muito tempo, já

condenavam a escravidão. Outro ponto que merece especial destaque é que,

caso a abolição não ocorresse, haveria o grave risco de tumultos sociais, os

quais já vinham ocorrendo com certa frequência.

De certa forma, a Lei Áurea trouxe relativa pacificação social.

1.1.6 Período da industrialização:

O advento da República representou o rompimento com certas posições

conservadoras. Surgiu um novo espírito empreendedor em que se buscava a

prosperidade material.

Por um longo período a produção cafeeira continuou sendo a principal

atividade econômica do país. Mas já se via sinais de certa prosperidade do

comércio e da indústria. O capital internacional faz-se sentir de forma mais

destacada em alguns setores privados.

42 Ibid., p. 155.

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40

Nesse período da República, o Brasil é um país cujo comércio externo

está apoiado na exportação de matérias-primas e gêneros tropicais.

Com a crise do café em 1896, o Brasil fica refém da finança

internacional. A entrada de capitais estrangeiros permite restabelecer as contas

externas e, ao mesmo tempo, promove uma certa ascensão dos padrões de

vida nacional.

Como já foi dito, a indústria no Brasil ainda era incipiente. O

desenvolvimento nacional ainda apoiava-se na exploração de matérias-primas

e gêneros tropicais.

As razões para o tardio desenvolvimento da indústria estão na escassez

de recursos energéticos, falta de siderurgia e fraqueza do mercado

consumidor. Além disso, as regiões do Brasil não estavam integradas e suas

respectivas produções destinavam-se quase exclusivamente para o mercado

externo.

Porém havia também alguns fatores que criaram terreno fértil para a

expansão da indústria no Brasil. São eles: o elevado custo da manufatura

importada necessária ao consumo interno, o aumento progressivo das tarifas

alfandegárias a partir de 1844, que protegeu a incipiente indústria, a

abundância de algodão e a disponibilidade de mão-de-obra.

Esse último fator é o que mais nos interessa. Veja o que leciona Caio

Prado Jr.43:

Numa economia agrária e escravista como a nossa, e onde a grande lavoura teve um papel absorvente e monopolizador das atividades rurais, a grande massa dos homens livres fica à margem. É o que se verifica efetivamente, e sintoma disso será a desocupação e a vadiagem que representaram sempre o estado normal de

43 Op. cit. p. 259.

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41

grande parte da população da colônia. Aí a indústria nascente encontrará amplo abastecimento de mão-de-obra; deficiente, é verdade, e muitas vezes precária e incerta. Mas compensando-se com seu ínfimo preço.

Nesse período, há um desenvolvimento modesto principalmente da

indústria têxtil.

Já no século XX, o Brasil enfrentou a crise da superprodução do café

que levou a uma baixa de preços do produto.

Seguiu-se, então, a política de valorização do produto implementada

pelo governo brasileiro. Essa política teve relativo êxito até a crise mundial de

1929. Isso porque, para manter o elevado preço do café, o governo brasileiro

mantinha estoques que controlavam artificialmente a oferta do produto no

mercado mundial. Em 1929, havia sido acumulado um elevado estoque, graças

a financiamento de bancos estrangeiros. A acumulação de estoques de café

criou uma pressão inflacionária.

Com a crise de 1929, o mercado de capitais estava em profunda

depressão, o que tornava escasso o crédito para financiar a retenção de novos

estoques. A crise atinge a produção do café.

Vale enfatizar que, depois de 1907, os grandes lucros da lavoura de

café, obtidos graças à política de valorização, foram aplicados na indústria.44

Ao mesmo tempo em que a industrialização ganhava fôlego, o

excedente de mão-de-obra da zona rural sem acesso a uma gleba de terra vem

para a zona urbana. Essa migração fornecerá para a indústria uma reserva de

mão-de-obra que pressionará para baixo os salários.

Em São Paulo, o contingente de mão-de-obra para a indústria será

formado basicamente de imigrantes.

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42

Pouco tempo depois, muitos desses imigrantes estrangeiros ou seus

filhos formaram o perfil dos industriais brasileiros, como os Matarazzo, Crespi,

Jaffet, Pereira Ignacio etc.45. O período que se seguiu de certa prosperidade

permitiu-lhes a acumulação de capital necessário para investir na produção.

No período de 1924 a 1930, muitas empresas enfrentaram dificuldades.

A exceção fica por conta das indústrias subsidiárias de grandes empresas

estrangeiras que exploraram os ramos de veículos automotores, produtos

farmacêuticos, aparelhos elétricos, alimentação, etc.

Após a Segunda Guerra Mundial, essas indústrias contribuíram

decisivamente para o desenvolvimento da indústria de base no Brasil.

Ao mesmo tempo em que a industrialização ganhava fôlego, na primeira

metade do século XX, ocorria o crescimento das aglomerações urbanas. Em

virtude da industrialização, formam-se núcleos econômicos com grande poder

de produção e consumo.

Nesse contexto é que surgirão os movimentos operários como resultado

do atrito entre o capital e o trabalho. As principais leis de proteção ao

trabalhador também serão fruto da ameaça de eclosão de conflitos sociais.

Finalmente, observa-se a construção de uma consciência comum entre a

classe trabalhadora, culminando nas primeiras organizações sindicais.

1.2 Evolução dos direitos humanos:

O Direito do Trabalho, desde o seu surgimento positivado na Revolução

Industrial, sempre buscou a harmonização do capital e do trabalho. Pode-se

afirmar que o escopo sociológico do Direito do Trabalho corresponde

justamente à pacificação social do conflito originado entre o capital e o

trabalho.

44 PRADO JR., Caio. Op. cit. p. 264. 45 Ibid, p. 265.

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43

A compreensão de sua evolução, culminando no estágio atual, exige o

estudo da ascensão dos direitos humanos. Isso porque a consagração dos

direitos sociais é reflexo da validação internacional dos direitos inerentes ao ser

humano.

Não é fácil precisar um único momento como a origem dos direitos

humanos, uma vez que não só os direitos humanos, mas também os demais

ramos do direito são produto da convergência de diversos fatores políticos e

sociais.

Alexandre de Moraes46 lembra que o Código de Hamurabi (1690 a.C.)

talvez seja a primeira codificação a consagrar um conjunto de direitos comuns

a todos os homens. As ideias de Buda acerca da igualdade entre os homens

influenciaram a filosofia e a religião. Na Grécia, vários estudos sobre a

necessidade de igualdade e liberdade do homem, a crença na existência de um

direito natural anterior e superior às leis escritas também sinalizavam para a

evolução do pensamento acerca dos direitos naturais. Em Roma, estabeleceu-

se um sistema normativo com mecanismos de interditos, visando tutelar os

direitos individuais em relação aos arbítrios estatais. A Lei das Doze Tábuas é

considerada a origem dos textos escritos consagradores da liberdade, da

propriedade e da proteção dos direitos do cidadão. Finalmente, as ideias do

cristianismo com a mensagem de igualdade de todos os homens,

independentemente de origem, raça, sexo ou credo influenciou pensadores,

fornecendo os subsídios sobre as quais se assentariam mais tarde os

postulados dos direitos humanos.

A expressão direitos humanos remonta à Idade Média. Veja que, em

1215, João Sem Terra outorgou a Magna Charta Libertatum que previa a

liberdade da Igreja na Inglaterra; restrições tributárias; proporcionalidade entre

delito e sanção; previsão do devido processo legal; livre acesso à Justiça;

liberdade de locomoção. Posteriormente, a Petition of Right de 1628, o Habeas

46 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos Fundamentais e as Constituições Brasileiras. In: PELLEGRINA, Maria Aparecida. TORRES DA SILVA, Jane Granzoto (coord.).

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44

Corpus Act de 1679 e o Bill of Rights de 1689 compreendiam uma série de

restrições à ação estatal, o que, por certo, preservava o indivíduo. Na mesma

linha de garantias ao indivíduo, pode-se citar a Revolução dos Estados Unidos

da América: Declaração de Direitos de Virgínia, de 16 de junho de 1776;

Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, 4 de julho de

1776; Constituição dos Estados Unidos da América, de 17 de setembro de

1787. Mas é no Leviatã de Thomas Hobbes (1651) que, pela primeira vez,

define-se direito do homem.47

A Revolução Francesa produziu a Declaração dos Direitos do Homem e

do Cidadão, destacando-se as seguintes previsões: princípio da igualdade,

liberdade, propriedade, segurança, resistência à opressão, associação política,

princípio da legalidade, princípio da reserva legal e anterioridade em matéria

penal, princípio da presunção da inocência; liberdade religiosa, livre

manifestação do pensamento.

No entanto a consagração dos direitos humanos veio com a sua

introdução pela Declaração Universal de 1948 e reiterada pela Declaração de

Direitos Humanos de Viena de 1993. Essa concepção contemporânea dos

direitos humanos é o resultado da internacionalização dos direitos humanos no

pós-guerra. É, na verdade, uma resposta da comunidade internacional às

atrocidades cometidas durante o regime nazista.48

Os horrores da Segunda Guerra Mundial significam um marco da história

contemporânea em que houve a ruptura total de um sistema político com os

predicados da condição humana.

A partir de então, desenvolveu-se a ideia de que a existência de um

sistema de proteção internacional poderia prevenir eventuais violações a

direitos básicos do homem. Tais direitos transcendem aos direitos puramente

Constitucionalismo Social: estudos em homenagem ao Ministro Marco Aurélio Mendes de Farias Mello. São Paulo: Ltr, 2003. p. 230. 47 ROMITA, Arion Sayão. Direitos Fundamentais nas Relações de Trabalho. São Paulo: LTr, 2005. p. 40. 48 PIOVESAN, Flávia. Direito ao Trabalho e a Proteção dos Direitos Sociais nos Planos Internacional e Constitucional in PIOVESAN, Flávia. CARVALHO, Luciana Paula Vaz de. (coord.) Direitos Humanos e Direito do Trabalho. São Paulo: Atlas, 2010. p. 5.

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45

estatais. A Unesco define os direitos humanos como uma proteção de maneira

institucionalizada dos direitos da pessoa humana contra os excessos do poder

cometidos pelos órgãos do Estado e, por outro, regras para se estabelecer

condições humanas de vida e desenvolvimento da personalidade humana.49

Alexandre de Moraes50 sintetiza as teorias que esclareceram os

fundamentos dos direitos humanos:

A teoria jusnaturalista fundamenta os direitos humanos em uma ordem

superior universal, imutável e inderrogável. Assim, os direitos humanos não

seriam uma criação dos legisladores e, por isso, não desapareceriam.

A teoria positivista fundamental apregoa a existência dos direitos

humanos na ordem normativa. Por isso seriam direitos humanos fundamentais

somente aqueles expressamente previstos no ordenamento jurídico positivado.

A teoria moralista fundamenta os direitos humanos fundamentais na

própria experiência e consciência moral de um povo.

O ponto comum a todas essas teorias era a necessidade de limitação e

controle dos abusos de poder do próprio Estado.51

Merece especial destaque em nosso estudo a Declaração dos Direitos

do Homem de 1948, pois, como visto, é o marco contemporâneo da ascensão

e profusão dos conceitos e valores dos direitos humanos na civilização

ocidental. Flávia Piovesan lembra que “(...) a Declaração de 1948 vem a inovar

a gramática dos direitos humanos, ao introduzir a chamada concepção

49 Les dimensions internationales des droits de I’homme. Unesco: 1978, p.11. apud MORAES, Alexandre de. Direitos humanos Fundamentais e as Constituições Brasileiras. In: PELLEGRINA, Maria Aparecida. TORRES DA SILVA, Jane Granzoto (coord.). Constitucionalismo Social: estudos em homenagem ao Ministro Marco Aurélio Mendes de Farias Mello. São Paulo: Ltr, 2003. p. 227. 50 Op. cit.. p. 227. 51 Ibid., p. 227.

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46

contemporânea de direitos humanos, marcada pela universalidade e

indivisibilidade desses direitos.”52

Como se observa, a Declaração Universal dos Direitos do Homem

contemplou duas características definidoras dos direitos humanos que

marcaram todos os demais ordenamentos jurídicos de proteção dos direitos

humanos: a universalidade e a indivisibilidade.

A universalidade significa a extensão universal dos direitos humanos,

considerando o ser humano – titular de direitos – como um ser moral dotado de

unicidade existencial e dignidade. A dignidade é inerente e incondicionada. A

dignidade humana foi adotada como valor fundante e norteador dos

instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos.

Ressalte-se que, após a Segunda Grande Guerra, emergiu uma forte

crítica ao positivismo jurídico puro. Isso porque tanto o fascismo como o

nazismo ascederam ao poder na Itália e Alemanha, respectivamente, sob o

manto da legalidade e em nome dela promoveram barbaridades.

Com isso, ganhou corpo a crítica ao positivismo jurídico puro.

Pensadores passaram a repudiar a ideia de um ordenamento jurídico

indiferente a valores éticos.53

A indivisibilidade dos direitos humanos é a conjugação dos direitos civis

e políticos com os direitos econômicos, sociais e culturais. Quando um deles é

violado, os demais também são. Por isso Flávia Piovesan ensina que os

direitos humanos compõem uma unidade indivisível, interdependente e

interrelacionada de direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais.54

Como visto, a evolução dos direitos humanos, tendo por norte o princípio

da dignidade humana, espraiou-se para os ordenamentos jurídicos do mundo

52 Op. cit. p. 6. 53 Ibid., p. 6. 54 Op. cit. p. 7.

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47

ocidental moderno, contaminando, ainda, os principais ramos da ciência

jurídica. Interessa-nos, sobretudo, o estudo da influência dos direitos humanos

no direito do trabalho, o que será objeto de estudo no tópico seguinte.

1.3 Reflexos da evolução dos direitos humanos no âmbito do trabalho:

No panorama histórico, pode-se afirmar que a primeira influência

significativa dos direitos humanos, ainda incipientes, no mundo do trabalho

deu-se através da Revolução Francesa de 1789, na qual já se condenava

abertamente a escravidão.

Como já foi visto, somente nos tempos modernos é que os direitos

humanos ganharam a configuração que conhecemos hoje e foram albergados,

explícita ou implicitamente, na grande maioria dos ordenamentos jurídicos

mundiais.

As relações de trabalho sempre foram fonte de atritos sociais, já que,

nelas, era emblemática a luta de forças sociais. Seja na Idade Antiga com a

escravidão, seja na Idade Média com a servidão, seja depois na Idade

Moderna novamente com a escravidão e, finalmente, na Idade Contemporânea

com o conflito entre os detentores dos meios de produção e o proletariado.

Interessa-nos o sistema capitalista no Mundo Contemporâneo, pois dele

originou-se o sistema de proteção das grandes massas. O moderno sistema de

proteção aos trabalhadores vem da eclosão de conflitos provocados pelo

desequilíbrio aviltante entre os que detinham o capital e os que não possuíam

senão sua força de trabalho.55

O avanço tecnológico da Revolução Industrial contrastava com a miséria

coletiva produzida. A desigualdade econômica criava um abismo social

aparentemente insuperável e colocava em perigo a estabilidade da sociedade

liberal.

55 NAZAR, Nelson. Direito Econômico e o Contrato de Trabalho: com análise do contrato internacional do trabalho. São Paulo: Atlas, 2007. p. 90.

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48

Surgiram reações comprometedoras como o socialismo de Karl Marx

que pregava a revolução proletariada, o fim da propriedade privada e a criação

de uma sociedade sem classes. Já, as ideias anarquistas ameaçavam a

existência do próprio Estado.

A Igreja por meio da encíclica De Rerum Novarum do Papa Leão XIII

proclamou:

(...) a necessidade da união entre as classes do capital e do trabalho, que têm ‘imperiosa necessidade uma da outra; não pode haver capital sem trabalho, nem trabalho sem capital. A concorrência traz consigo a ordem e beleza; ao contrário, de um conflito perpétuo, não podem resultar senão confusão e lutas selvagens.56

Segundo Nelson Nazar, as palavras do Sumo Sacerdote inspirariam o

surgimento do Estado Providência.57

De fato, a inanição estatal somada ao ímpeto acumulativo do capitalismo

industrial da época levaria a uma convulsão social de proporções imensas

capaz de comprometer até mesmo os alicerces da sociedade liberal.

Por isso seguiu-se uma onda de iniciativas legislativas louváveis

capazes de amenizar os conflitos entre o capital e o trabalho.

Tais iniciativas não serão objeto de estudo aprofundado neste trabalho,

mas serão aqui citadas apenas para que não se perca de vista o contexto

histórico.

Já no início do século XX, surgiram diplomas constitucionais com forte

preocupaão social. A Constituição do México de 31 de janeiro de 1917, a

Constituição de Weimar de 11 de agosto de 1919, a Declaração Soviética dos

56 VIANNA, Segadas. SÜSSEKIND, Arnaldo. MARANHÃO, Délio. Instituições de Direito do Trabalho. Vol. I. 13ª ed. atualizada por Arnaldo Süssekind e João de Lima Teixeira Filho. São Paulo: LTr, 1992. p. 40.

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49

Direitos do Povo Trabalhador e Explorado de 17 de janeiro de 1918, seguida

pela primeira Constituição Soviética de 10 de julho de 1918 e Carta do

Trabalho, editada pelo Estado fascista italiano em 21 de abril de 1927.58

Merece destaque o surgimento da Organização Internacional do

Trabalho, que era conexa à Sociedade das Nações em 1919.

Já foi visto que a Doutrina Social da Igreja influenciou o intervencionismo

do estatal.

Contudo não se pode perder de vista que a grave crise econômica de

1929 e a Segunda Guerra Mundial comprometeram a ideia de um sistema

capitalista motivado exclusivamente pelas forças de mercado. Revelou-se

necessária a interferência estatal seja na iniciativa de alavancar o

desenvolvimento em vista da fragilidade do capital privado na crise de 1929 e

no pós-guerra, seja no estabelecimento de condições mínimas para os

trabalhadores a fim de evitar o colapso do sistema capitalista, que entregue a

sua própria sorte, torna-se autofágico.

Com isso, o Estado Providência apresenta-se como elemento essencial

para impulsionar o desenvolvimento econômico combinado com o

desenvolvimento dos segmentos mais frágeis da sociedade.

A relação entre os direitos humanos e os direitos trabalhistas é bem

exemplificada na Declaração Universal dos Direitos do Homem aprovada em

10 de dezembro de 1948. No art. 23, o diploma internacional consagra o direito

ao trabalho e à proteção contra o desemprego, o princípio da igualdade salarial

e da suficiência mínima do salário e o direito ao associativismo sindical. Já o

art. 24 versa sobre o direito à limitação da jornada de trabalho e o direito ao

repouso, ao lazer e as férias periódicas pagas. Finalmente, o art. 25 trata do

57 Op. cit. pp. 91-92. 58 MORAES, Alexandre de. Op. cit. pp. 235-236.

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50

direito à proteção social, na doença e invalidez, na maternidade, na velhice e

no desemprego.59

A partir de 1949, começou um movimento de juridicização dos preceitos

contidos na Declaração Universal dos Direitos do Homem. Ganhou força o

pensamento de que a Declaração deveria ganhar a forma de tratado

internacional obrigatório e vinculante. Surgiram, então, dois distintos tratados

internacionais – o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto

Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – os quais passaram

a detalhar com mais precisão os preceitos contidos na Declaração Universal

dos Direitos do Homem.60

Com esse lastro, os ordenamentos jurídicos internos passaram a

positivar os valores e direitos expressos na Declaração de 1948.

Assim, é inegável que o movimento internacional de defesa dos direitos

humanos após a Segunda Guerra Mundial consubstanciado na Declaração

Universal dos Direitos do Homem exerceu forte influência sobre os

ordenamentos jurídicos internos nos anos seguintes.

A positivação na Constituição dos princípios e valores expressos na

Declaração de 1948 e a dificuldade de concretizar os direitos sociais

albergados no ordenamento jurídico, em especial na Constituição Federal, são

questões que bem exemplificam o caso brasileiro.

Há uma lei maior que proclama e amplifica os valores e princípios

inseridos na Declaração Universal dos Direitos do Homem, mas a realidade

bem demonstra a dificuldade de alocação responsável dos recursos públicos

para atender às demandas sociais.

59 RAMALHO, Maria do Rosário Palma. Direito do Trabalho. 2.ª ed. Coimbra: Almedina, 2009. p. 183. 60 PIOVESAN, Flávia. Op. cit. p. 14.

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51

De qualquer modo, desde 1948, houve um progressivo avanço na seara dos

direitos trabalhistas no Brasil em vista da incorporação de valores e princípios

inerentes ao movimento de direitos humanos.

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52

CAPÍTULO 2

AMBIENTE CONSTITUCIONAL DO CONTRATO DE TRABALHO

2.1 Constitucionalização do Direito do Trabalho:

A importância que a Constituição Federal de 1988 conferiu ao fenômeno

trabalho decorre do valor econômico que lhe está embutido, além das

preocupações sociais que a Constituição dispensa aos trabalhadores,

reconhecendo direitos fundamentais específicos da classe trabalhadora.

Para se entender o fenômeno da constitucionalização do Direito do

Trabalho é necessário contextualizar o Direito do Trabalho em uma das duas

grandes divisões acadêmicas: Direito Público e Direito Privado.

Isso porque houve uma tendência mundial de publicização das normas e

códigos de direito privado.

Assim, passa-se a examinar a separação acadêmica do Direito em dois

grandes ramos oriunda do Direito Romano e a contextualização do Direito do

Trabalho, a partir da lição de alguns renomados juristas brasileiros e

portugueses.

Para fins meramente acadêmicos, o Direito Privado é compreendido

como o ramo da ciência jurídica que disciplina as relações entre pessoas

privadas nas quais predomina o interesse particular. Já o Direito Público regula

as relações de ordem pública, ou seja, as relações em que o Estado é parte e

se relaciona com outro Estrado ou com os particulares, quando exerce o seu

poder soberano e tutela o bem coletivo.61

A partir dessa divisão clássica do Direito, segue-se a distribuição e

enquadramento do direito positivo nos dois respectivos ramos.

61 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 19.ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 255.

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53

Interessa-nos o enquadramento do Direito do Trabalho.

Para a maioria da doutrina justrabalhista, o Direito do Trabalho

enquadra-se no ramo do Direito Privado, pois trata, essencialmente, de uma

relação contratual entre particulares.

Há até mesmo doutrinadores com outras especializações que apontam

na mesma direção.

Veja que Maria Helena Diniz62 classifica o Direito do Trabalho como

ramo do Direito Privado ante o fato de regular o contrato de trabalho entre

particulares, embora sofra acentuada intervenção estatal.

Para outros, o Direito do Trabalho seria ramo do Direito Público face o

caráter imperativo de suas regras de proteção ao empregado e a acentuada

intervenção estatal nos contratos e especialmente nas negociações coletivas,

como ocorre no Brasil através dos dissídios coletivos. Há, ainda, um razoável

número de normas de fiscalização trabalhista de natureza administrativa. Isso

reforçaria a concepção publicística do Direito do Trabalho.

Contra essa concepção levantaram-se nomes de respeito como Amauri

Mascaro Nascimento e Mauricio Godinho Delgado.

O primeiro salienta que, no Direito do Trabalho, há uma dimensão para a

autonomia da vontade como fonte instauradora de direitos e deveres

recíprocos. Acrescenta que o vínculo entre empregado e empregador encontra

suas origens no direito privado, já que é o desenvolvimento da locação de

serviços do direito civil.63

O segundo pondera que a imperatividade de normas não define a

natureza jurídica de qualquer ramo do Direito. Até porque, se tal critério fosse

62 Ibid., p. 275. 63 NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Iniciação ao Direito do Trabalho. 31.ª ed. São Paulo: LTr, 2005. pp. 83-84.

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decisivo, o Direito de Família, formado por regras imperativas, não seria ramo

do Direito Civil e Privado. Acrescenta que o intervencionismo estatal também

não influi na definição da natureza jurídica do Direito do Trabalho, pois não tem

o condão de alterar a natureza da relação jurídica normatizada, qual seja, a

relação privada entre partes contratantes formalmente iguais.64

Por fim, há aqueles que, inspirados pela obra francesa “L’idée de Droit

Social” de Georges Gurvitch, enquadram o Direito do Trabalho num terceiro

gênero do Direito definido como direito social. Sustentam que o Direito do

Trabalho seria um “tertium genus” com novas categorias jurídicas e pessoas

coletivas complexas, motivo pelo qual não poderia ser atribuído nem ao direito

público nem ao direito privado.65

No Brasil, o expoente dessa corrente foi Cesarino Júnior.

Todavia tal posição encontra resistência na maior parte da doutrina. A

ideia que lançou a base do Direito Social parece ignorar o fato de que todos os

demais segmentos do Direito nos últimos anos têm sofrido alterações

legislativas e mesmo doutrinárias, revelando a preocupação acentuada na

prevalência do interesse coletivo sobre o individual. A socialização do direito

não é um fenômeno exclusivo do direito do trabalho. Outros ramos do Direito

Privado revelam a prevalência do ser coletivo sobre o individual, como o Direito

do Consumidor.66

Aliás, o próprio Direito Civil, nos últimos tempos, guindou à posição de

destaque normas lastreadas em conceitos que enfatizam a preocupação com a

coletividade e dirigismo contratual. Mesmo diante da forte interferência estatal,

não se cogita em alterar a classificação do Direito Civil como ramo do Direito

Privado.

64 DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 9.ª ed. São Paulo: LTr, 2010. p. 69. 65 SÜSSEKIND, Arnaldo. MARANHÃO, Délio. VIANNA, Segadas. op. cit.. pp. 113-114. 66 DELGADO, Mauricio Godinho. op. cit. pp. 69-70.

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Assim, prevalece o enquadramento do Direito do Trabalho como ramo

do Direito Privado.

Na doutrina portuguesa o tema também não é pacífico.

Maria do Rosário Palma Ramalho67 assevera que a maioria da doutrina

portuguesa qualifica o Direito do Trabalho como uma área jurídica híbrida ou

opta pela solução de aferir natureza pública ou privada da área jurídica

separadamente para os seus três centros regulativos tradicionais.

Esse segundo posicionamento é adotado por António Monteiro

Fernandes68:

(...) a partir do isolamento daqueles três tipos de relações jurídicas assentes na prestação de trabalho, a doutrina tem destacado, no conjunto das normas que constituem o conteúdo do direito do trabalho, três núcleos de regulamentação: o das normas (de direito privado) reguladoras da relação individual entre o dador de trabalho e o trabalhador, definidoras dos direitos e deveres recíprocos que eles assumem por virtude do contrato e sancionadas por meios de direito privado (a sua inobservância pode dar origem ao dever de indemnizar o prejudicado ou à invalidade do próprio contrato); o dos preceitos (de direito público) alusivos às relações entre empregador e o Estado, definidores dos deveres que ao primeiro incumbe observar, dos meios de controlo e das sanções correspondentes ao seu incumprimento, e fundados na defesa do interesse geral; finalmente, as normas reguladoras das relações colectivas de trabalho, votadas à tutela dos interesses colectivos, de categoria profissional e ramo de actividade. (itálicos no original)

Porém há entendimentos respeitáveis na doutrina portuguesa que

consideram o Direito do Trabalho como ramo do Direito Privado.

67 Op. cit. p. 116. 68 Direito do Trabalho. 14.ª ed. Coimbra: Almedina, 2009. p. 61.

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É o caso de Pedro Romano Martinez69 que, mesmo partindo da

premissa de alguns doutrinadores que distinguem o Direito do Trabalho por

áreas, classifica-o como ramo do Direito Privado.

Salienta que, mesmo as relações coletivas que ensejam dúvidas entre

os doutrinadores, não é suficiente para conceituar o Direito do Trabalho como

ramo do Direito Público. Isso porque as entidades sindicais ao celebrarem

instrumentos de regulamentação coletiva fazem-no sem a interferência estatal,

ou seja, desprovidas do ius imperii próprio do Direito Público. Acrescenta,

ainda, que a interferência estatal nos contratos de trabalho para garantir o

mínimo para a parte mais frágil da relação jurídica não seria suficiente para

descaracterizar o Direito do Trabalho como Direito Privado. Veja que a

limitação à liberdade contratual não é um fenômeno exclusivo do Direito do

Trabalho. O autor cita como exemplo a legislação civil acerca dos contratos em

geral e a responsabilidade civil do produtor. Ao final, conclui:

Por isso, o direito do trabalho não deve ser entendido como um composto de direito público e de direito privado, mas antes como um mero direito privado. Qualificando o direito do trabalho como direito privado e não como um misto de direito privado e de direito público, decorrem consequências, designadamente a nível de interpretação, pois só se recorre aos princípios do direito privado e não aos de direito público. por outro lado, como não raras vezes a regulamentação de diferentes aspectos de direito do trabalho apresenta lacunas, a integração faz-se mediante o recurso às soluções de direito privado; assim, mormente no que respeita à responsabilidade contratual, como a previsão laboral apresenta inúmeras falas, há que recorrer ao regime do Código Civil.70

E, por fim, Maria do Rosário Palma Ramalho71 trilha o entendimento

segundo o qual em termos globais o Direito do Trabalho é um ramo do Direito

Privado, o que não colide com o fato de conter algumas normas de natureza

pública com vistas a proteger o interesse público.

69 Direito do Trabalho. 4.ª ed. Coimbra: Almedina, 2008. pp. 62-67. 70 Ibid. p. 68. 71 Op. cit. p. 117.

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Com efeito, o Direito do Trabalho ostenta a natureza de Direito Privado,

pois traz subjacente a autonomia contratual. A interferência estatal na liberdade

de contratar não é uma exclusividade do Direito do Trabalho.

Embora, nesse ramo, seja mais acentuada, já se verifica o dirigismo

contratual no âmbito civil em face da tendência cada vez maior de socializar o

direito.

Essa tendência de publicização do direito decorre das mudanças do

Estado Liberal, transitando para o Estado Social. A valorização do ser humano

e a despatrimonialização do direito privado são apontadas por Mauro Schiavi72

como mudanças do paradigma jurídico.

Não se ignora que o constitucionalismo, como movimento político e

jurídico, surgiu com o objetivo de implantar regimes constitucionais de

governos, limitando o poder dos soberanos no Iluminismo.73

Nesse período, surge a primeira geração de direitos fundamentais

atrelados às liberdades públicas, protegendo o indivíduo contra o Poder do

Estado. Após a Primeira Guerra Mundial, surgem os direitos de segunda

geração que correspondem aos direitos sociais.

Já nesse período, desenha-se a ideia de intervenção estatal na

economia diante do advento do comunismo na Rússia em outubro de 1917.

O trabalho apresentava-se como elemento sensível de equilíbrio social,

motivo pelo qual seus conflitos bem exemplificavam os atritos sociais. Colhe-

se, nesse sentido, a lição de Francisco Pedro Jucá:

72 A Constitucionalização do Direito Civil. Reflexos na Responsabilidade Civil do Empregador em Atividade de Risco por Danos à Saúde do Trabalhador. In: ALMEIDA, Renato Rua de (coord.). CALVO, Adriana. ROCHA, Andrea Presas (org.). Direitos fundamentais aplicados ao direito do trabalho. São Paulo: Ltr, 2010. p. 116.

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Ora, na medida em que o fator trabalho inseriu-se no universo complexo da organização da sociedade, e, mais, a massificação brutal daqueles que vivem do trabalho – trocando-o por utilidades indispensáveis para a sobrevivência – cresceu, e o insumo/mercadoria trabalho/mão-de-obra passou a ter seu valor de troca flutuando na equação oferta/demanda, instalou-se a questão social, com o confronto exacerbado entre o capital e o trabalho, custando vidas, recursos e gerando a insegurança para a organização da sociedade; esta ocorrência ganhou dimensão política, consubstanciando, assim, conforme já se viu antes, em fator real de poder, e como tal, inseriu-se na formulação da equação política.74

Nesse contexto de valorização do homem a partir da Doutrina Social da

Igreja e de reação ao avanço dos ideais da Revolução Russa é que o Estado

passou a intervir no cenário econômico e consequentemente nos conflitos

trabalhistas.

Já no período posterior à Primeira Guerra Mundial, surge o chamado

Constitucionalismo Social:

Considerando que o movimento operário veio a constituir-se em fator real de poder, pelo seu potencial de mudança política profunda, e, que a ética social vigente dava início à real valorização do trabalho, sua tutela ganha dimensão política expressiva, e se constitucionaliza, o que vem a ser o chamado “Constitucionalismo Social”.75

No Brasil, o Constitucionalismo Social é inaugurado na Constituição de

1934. A Revolução de 1930, o movimento Tenentista da década de 20 e a

Revolução Constitucionalista de 1932 representaram a relativa insatisfação

com a ordem capitalista vigente. Ainda que não tenha ocorrido uma ruptura

com o modelo econômico e político vigente à época, a classe trabalhadora

ganhou espaço por meio de suas agremiações, fazendo com que a dramática

insatisfação social, antes reprimida pelo aparelho policial, passasse a ser alvo

73 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 27.ª ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 7. 74 A constitucionalização dos direitos dos trabalhadores e a hermenêutica das normas infraconstitucionais. São Paulo: LTr, 1997. p. 34. 75 Ibid., p. 35.

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de um diálogo mais amplo. Nesse passo, a elite econômica foi obrigada a fazer

concessões a fim de evitar a ruptura total da ordem econômica vigente,

permanentemente ameaçada por revoltas operárias sangrentas.

A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 16 de

julho de 1934, representou uma espécie de pacto político entre a elite

governante e a classe trabalhadora, uma vez que positivou certos direitos e

garantias de interesse da classe operária.

Mais uma vez invoca-se o precioso magistério de Francisco Pedro Jucá:

É este componente significativo para o declínio dos “casacudos”, minados pelas sucessivas revoltas políticas dos anos 20, como o Tenentismo, onde já são considerados aspectos relevantes da questão social e, pode-se vislumbrar os primeiros albores da modernização conservadora brasileira, que desaguou na Revolução de 30 a qual trazia em sua plataforma o problema do trabalho, e, acabou por instituir sistematicamente a legislação trabalhista e a justiça do trabalho. Com sua constitucionalização advinda em 1934, consectária da Revolução Constitucionalista de São Paulo, que contou com tropas incógnitas do Pará e Mato Grosso, esta última ostensiva, onde mesmo derrotada militarmente, findou por vitoriosa politicamente, e a Constituinte de que resultou a Carta de 1934, inaugura concretamente o Constitucionalismo Social e, consagrando os princípios laborais de ordem pública, como se verá adiante. (...) Com efeito, o Constitucionalismo Social inaugura-se entre nós em 1934, a partir de quando se foram consideradas as classes trabalhadoras como fator real de poder e, inscrevendo progressivamente garantias para seus interesses no pacto político, contido no instrumento jurídico-político da Carta Constitucional, num crescendo e em reelaborações sucessivas nos diversos ciclos constitucionais até hoje vividos(...)76

Não é por acaso que a Carta Política de 1934, por meio de seu artigo

122, instituiu as Juntas de Conciliação e Julgamento e as Comissões Mistas de

76 Ibid., pp. 49-51.

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Conciliação como órgãos administrativos vinculados ao Ministério do Trabalho.

Observa-se a preocupação política na época de se criar um órgão destinado a

dirimir os conflitos trabalhistas. Somente através do Decreto-Lei n.º 9.797, de 9

de setembro de 1946, que a Justiça do Trabalho foi integrada ao Poder

Judiciário77.

Essa Constituição criou um capítulo sobre a ordem econômica e social e

outro sobre família, educação e a cultura com normas programáticas sob a

inspiração da Constituição Alemã de Weimar:

A Constituição de 16 de julho de 1934 funda juridicamente no País uma forma de Estado social que a Alemanha estabelecera com Bismarck há mais de um século, aperfeiçoara com Preuss (Weimar) e finalmente iria proclamar com solenidade textual em dois artigos da Lei Fundamental de Bonn, de 1949, cunhando a célebre fórmula do Chamado Estado social de direito, matéria de tanta controvérsia nas regiões da doutrina, da jurisprudência e da aplicação hermenêutica.78

O artigo 121 da Constituição de 1934 tratou de preceitos da legislação

trabalhista, o que não havia sido feito antes. O salário mínimo, a jornada

máxima de oito horas de trabalho, o repouso hebdomadário, as férias anuais

remuneradas, a indenização ao trabalhador dispensado sem justa causa, a

assistência médica ao trabalhador e à gestante e as convenções coletivas de

trabalho foram objeto de disciplina constitucional.

Com efeito, a Constituição de 1934 não abandonou os ideais liberais já

consagrados pelas revoluções burguesas do passado, mas, ao mesmo tempo,

preocupou-se em criar mecanismos de intervenção na economia, a fim de

corrigir eventuais desequilíbrios e excessos do mercado livre defendido pelo

Estado Liberal.

77 GIGLIO, Wagner D. Direito processual do trabalho. 14.ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2005. p.p 3-5. 78 BONAVIDES, Paulo. ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. 3.ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. p. 325.

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José Afonso da Silva sintetizou com bastante felicidade a Constituição

de 1934 como “(...) um documento de compromisso entre o liberalismo e o

intervencionismo.”79

Os episódios posteriores à Segunda Guerra Mundial reforçaram a

tendência de constitucionalização dos direitos sociais.

Como já foi visto, o fenômeno da constitucionalização no mundo

ocidental iniciou-se antes da Primeira Guerra Mundial, mas se firmou somente

após a Segunda Guerra Mundial:

Todos esses fatores apontam para o sentido eminentemente social da Constituição de 1934. Seguindo uma certa tendência européia do pós-guerra, mas que na verdade só iria se firmar definitivamente ao término da Segunda Grande Guerra, alguns dos preceitos do chamado “Welfare State” foram consagrados no texto.80

Após a Segunda Guerra Mundial, há uma profunda reflexão no mundo

ocidental acerca da valorização do homem, culminando com a Declaração dos

Direitos do Homem em 1948. Ao mesmo tempo, o pós-guerra revelou um

quadro caótico em que a falência de empresas e a falta de recursos

inviabilizavam a reconstrução dos países envolvidos no conflito. Isso significava

que caberia ao Estado a iniciativa de reconstruir o país. Acrescente-se a isso o

fato de que a elevação das tensões sociais provocadas pela desigualdade

econômica estimulava o conflito de classes. Para muitos a intensificação

desses conflitos sociais poderia favorecer o avanço do movimento comunista a

partir do Leste Europeu.

Todo esse complexo quadro político e econômico impulsionou a

concepção do Estado do Bem Estar Social. Novamente o pensamento

keynesiano ganha força. O Estado passa a ser visto como o fomentador ou

indutor do progresso econômico e, ao mesmo tempo, o regulador das forças

79 Curso de Direito Constitucional Positivo. 34.ª ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 82. 80 BONAVIDES, Paulo. ANDRADE, Paes de. Op. cit. p. 319.

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econômicas, evitando assim a exploração de um segmento social por outro. O

trabalho passa a ser uma questão de forte preocupação do Estado. Se antes o

Estado Liberal era mero garantidor da propriedade e do respeito ao contrato, as

modificações sociais implementadas pelas duas Grandes Guerras forçaram

uma postura totalmente diversa na qual havia a necessidade de intervenção

estatal para assegurar o tênue equilíbrio político entre o poder do capital e as

demandas sociais dos trabalhadores.

A mudança do Estado Liberal para o Estado Social criou um ambiente

social em que cada vez mais o interesse público tangencia o interesse privado.

Áreas antes intocadas pelo interesse público, como, por exemplo, a autonomia

privada contratual, passaram a despertar o interesse público, exigindo

intervenção estatal.

É importante destacar que a tendência à constitucionalização no Estado

Contemporâneo abarcou não só o Direito do Trabalho, mas também o Direito

Privado.

Mauro Schiavi explica com propriedade o constitucionalismo do direito

privado:

A constitucionalização do direito privado decorre da migração, para o âmbito privado, de valores constitucionais, dentre os quais a dignidade da pessoa humana e despatrimonialização do Direito Civil. O ser humano é colocado no centro do Direito Civil.81

O Código Civil Brasileiro de 2002 bem exemplifica esse fenômeno, uma

vez que o referido diploma legal acolheu preceitos constitucionais concernentes

à função social da propriedade e do contrato e direitos da personalidade. Essa

interlocução ou diálogo entre o diploma legal infraconstitucional que adota

expressamente preceitos constitucionais e a Carta Política, que positiva em seu

texto institutos próprios do Direito Privado, revela uma tendência de

publicização do Direito Privado. Isso porque a preservação do postulado da

81 Op. cit., p. 119.

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dignidade da pessoa humana não se restringe às relações entre o súdito e o

seu Estado, mas também entre particulares. Daí a tendência dos direitos

fundamentais influenciarem as relações privadas. Mais adiante será abordada

de forma minuciosa a questão dos direitos fundamentais nas relações privadas

(eficácia horizontal dos direitos fundamentais).

Por ora, analisa-se a elevação para o plano constitucional dos princípios

do direito privado e, ao mesmo tempo, a interpretação dos institutos do direito

privado à luz dos novos valores constitucionais.

A Constituição Federal de 1988 representa um novo paradigma

valorativo a ser observado tanto nas relações públicas como privadas. Em

outras palavras, a interpretação de qualquer instituto do direito público ou do

direito privado só pode ser feita à luz dos valores alçados à categoria de

princípios fundamentais.

Nesse aspecto, o valor “trabalho” foi acolhido pela Constituição como

elemento fundamental para formação jurídica do Estado e para a promoção

social do homem.

No artigo 1.º da Constituição Federal são enunciados como fundamentos

da República Federativa do Brasil a dignidade do ser humano e os valores

sociais do trabalho.

Em regra, as Constituições revelam uma certa identidade política, já que

muitas delas oriundas de processos revolucionários costumam refletir as

posições do grupo vencedor.

Todavia, na Assembleia Constituinte do Brasil, não houve um grupo

majoritário que conseguiu impor o seu projeto político.

Assim, a elaboração de uma Carta Política naquele período só foi

possível mediante concessões feitas pelas diversas forças políticas das mais

diferentes matizes ideológicas que atuaram na Constituinte.

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Por isso é possível perceber que a Constituição de 1988 contém

preceitos inconciliáveis.

Nesse sentido, é a lição de Alexandre Teixeira de Freitas Bastos

Cunha82:

E a CRFB, muitas vezes, tenta conciliar valores de uma antinomia frontal, como resultado da ação de forças e interesses contrapostos no processo constituinte. Muitas vezes, essas contradições atuam em sentido contrário à Constituição. Por outro lado, acaba-se por não enfrentar, no âmbito da interpretação jurídica, os problemas derivados dessas colisões.

Veja, por exemplo, que A Lei Fundamental de 1988 ao mesmo tempo

em que consagra o Estado Democrático de Direito no caput do artigo 1.º, fruto

de uma nova ordem que se instaurava no país após o período ditatorial,

conserva o espírito corporativista no campo sindical ao prever a unicidade de

representação sindical no artigo 8.º, reproduzindo o art. 138 da Constituição de

1937.83

Essa dualidade, por vezes explícita na Constituição Federal e

aparentemente incompatível, não é estranha ao Direito do Trabalho. Esse ramo

do direito tem a vocação já de longa data de conciliar aquilo que,

aparentemente, é inconciliável. O espírito do Direito do Trabalho é harmonizar

o conflito entre o capital e o trabalho, equilibrar uma relação (de emprego) que

já se revela desequilibrada no momento em que nasce (celebração do contrato

de trabalho), conciliar interesses antagônicos de empregadores em maximizar

os lucros e dos empregados em obter melhores salários e condições de

trabalho.

82 Os Direitos Sociais na Constituição. Vinte Anos Depois. As Promessas Cumpridas ou Não. In: MONTESSO, Cláudio José. FREITAS, Marco Antônio de. STERN, Maria de Fátima Coêlho Borges (coord.). São Paulo: LTr, 2008. p. 25. 83 ROMITA, Arion Sayão. Os direitos sociais na Constituição e outros estudos. São Paulo: LTr, 1991. p. 12.

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Com efeito, o desafio posto no âmbito da Constituição identifica-se com

aquele, há muito tempo, enfrentado pelo Direito do Trabalho:

A solução reside numa interpretação jurídica que adote os direitos

fundamentais previstos na Constituição como referências, mormente os

princípios da proteção à dignidade da pessoa humana.

O fenômeno da constitucionalização implica numa nova leitura do Direito

do Trabalho, redefinindo ou reforçando as normas e princípios obtidos a partir

da Constituição.

Essa mudança é muito mais uma questão cultural do que de carência

normativa. Passa pela revalorização do Direito Constitucional.

José Joaquim Gomes Canotilho84 lamenta que, em Portugal, ainda

remanesça o mau hábito de se interpretar a Constituição a partir das leis

infraconstitucionais, quando o correto seria utilizar a Lei Fundamental como

guia na interpretação e aplicação dos demais preceitos normativos:

Algumas concepções que defendem a idéia de constituição como concentrado de princípios, concretizados e desenvolvidos na legislação infraconstitucional, apontam para a necessidade da interpretação da constituição de acordo com as leis, a fim de encontrar um mecanismo constitucional capaz de salvar a constituição em face da pressão sobre ela exercida pelas complexas e incessantemente mutáveis questões econômico-sociais. Esta leitura da constituição de baixo para cima, justificadora de uma nova compreensão da constituição a partir das leis infraconstitucionais, pode conduzir à derrocada interna da constituição por obra do legislador e de outros órgãos concretizadores, e à formação de uma constituição legal paralela, pretensamente mais próxima dos momentos metajurídicos (sociológicos e políticos).

No Brasil, o mesmo problema se apresenta.

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Há uma tendência de se ignorar o mandamento constitucional,

reconhecendo a força vinculante apenas do ordenamento infraconstitucional

como se a Constituição se limitasse a enunciar um rol extenso de direitos sem

operacionalidade.

Repita-se, mais uma vez, a mudança exige uma renovação da cultura

jurídica dos operadores do direito que deveriam prestigiar as conquistas

previstas na nossa Constituição, encontrando, no seu arcabouço axiológico, a

solução para eventuais conflitos principiológicos ou mesmo normativos.

Celso Ribeiro Bastos85 preconiza a importância do operador do direito

buscar na interpretação principiológica da Constituição a revelação do real

alcance e significado das normas nela previstas:

Talvez o artigo recupere maior alcance e significação se houver por parte da doutrina e jurisprudência uma interpretação mais coerente com a natureza das normas principiológicas. Em outras palavras, se houver rigor em extrair-se as conseqüências implícitas de todos os artigos que explicitamente a Constituição encerra, certamente será possível emprestar força a um rol de direitos não expressos. É uma questão de coragem hermenêutica e de coerência com a aceitação dos princípios. Uma vez postos estes, há de se concluir que sejam geradores de direitos e deveres e não uma mera enunciação, de cunho teórico e filosófico.

Essa orientação hermenêutica a partir de um paradigma constitucional é

capaz de direcionar o nosso ordenamento jurídico para uma nova fase, qual

seja, a de concretização dos direitos sociais inscritos na Constituição sem que

haja a necessidade de uma avalanche de leis e regulamentos novos.

Assim, alcança-se o objetivo político de realização do Estado Social e de

materialização dos fins programáticos previstos na própria Constituição.

84 Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7.ª ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 1230. 85 Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. 2º volume. São Paulo: Saraiva, 1988-1989. p. 395.

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2.2 – A positivação dos direitos sociais na Constituição Federal de 1988:

A Constituição Federal de 5 de outubro de 1988 adotou o modelo prolixo

uma vez que enuncia de forma minuciosa regras e preceitos tidos como

pertencentes à legislação ordinária.

A iniciativa do legislador de incluir no texto constitucional matérias que

antes estavam relegadas à legislação ordinária revela a preocupação de

conferir proteção especial a esses temas agora constitucionalizados.

É bom lembrar que a Carta Política de 1988 foi elaborada após um longo

período de autoritarismo em que a sociedade civil esteve à margem do poder.

Na época da Assembleia Nacional Constituinte, a sociedade civil

organizada exerceu considerável pressão política sobre os deputados

constituintes, levando até eles suas reivindicações represadas por mais de

vinte anos de autoritarismo.

É natural que reivindicações acerca de temas como liberdade civil,

educação, saúde, segurança e proteção à propriedade fossem objeto de

proposições a fim de constar no texto da Constituição.

Desse modo, a Constituição de 1988 revela o desejo de amplificar o

tratamento político a questões sociais. Veja que muitos direitos trabalhistas, por

exemplo, já constavam na legislação ordinária. A positivação desses direitos na

Constituição demonstra que a sociedade reclamava já no tempo da Assembleia

Nacional Constituinte prioridade no tratamento das questões sociais e das

liberdades civis.

Como bem salientou Francisco Pedro Jucá86, a Constituição Brasileira

de 1988, marcada pela influência quase contemporânea da Espanha e

Portugal, inicia-se pela enunciação de princípios e direitos individuais e sociais

86 Op. cit. p. 83.

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e, somente depois, trata da estruturação do Estado e repartição de poderes e

competências.

Além disso, outra característica da Constituição de 1988 é a sua rigidez

que cria maior dificuldade para sua modificação. Em outras palavras, a

Constituição só pode ser modificada através de um procedimento de revisão

específico, contrastando com o procedimento de elaboração das leis ordinárias.

Verifica-se que o legislador constituinte buscou atribuir à Constituição

estabilidade e supremacia em relação ao restante da legislação ordinária.

Na época, temia-se que as conquistas sociais e políticas positivadas na

Constituição pudessem ser facilmente derrogadas no futuro por procedimentos

simples, atendendo a conveniências momentâneas.

Novamente observa-se que o espírito que norteou a elaboração da

Constituição Brasileira de 1988 tem forte inspiração ibérica, já que, em

Portugal, também houve a preocupação de se estabelecer rigidez na

Constituição de 1976:

A opção por um “texto rígido”, no sentido assinalado, é hoje justificado pela necessidade de se garantir a identidade da constituição sem impedir o desenvolvimento constitucional. Rigidez é sinônimo de garantia contra mudanças constantes, freqüentes e imprevistas ao sabor das maiorias legislativas transitórias. A rigidez não é um entrave ao desenvolvimento constitucional, pois a constituição deve poder ser revista sempre que a sua capacidade reflexiva para captar a realidade constitucional se mostre insuficiente.87

Todavia já foi visto que a Constituição de 1988, por vezes, apresenta

inclinações ideológicas contraditórias. Essa situação deve ser compreendida

dentro da realidade brasileira. Lembre-se de que a Constituição de 1988 não foi

fruto de um projeto ideológico bem definido por um grupo político vencedor. As

contradições contidas na Carta Política revelam a correlação de forças políticas

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atuantes durante a sua elaboração. Buscou-se, na época, conciliar interesses

contraditórios num processo de concessões recíprocas em busca da

elaboração de uma Constituição que, se não era a ideal, pelo menos era a

possível naquela época.

Colhe-se, mais uma vez, a lição de Francisco Pedro Jucá88:

Articulando-se a tentativa de formação de um novo processo de hegemonia democrática no Brasil, cujo processo ainda está em marcha demorará ainda algum tempo, como tive a oportunidade de explicitar melhor noutro texto (“Aspectos da Transição Constitucional”, uma leitura gramsciana do Direito Público”, Francisco Jucá, policopiada, Dissertação de Mestrado apresentada à Universidade Federal do Pará, janeiro de 1990), onde se continha a influência do constitucionalismo recente e a herança do passado também recente. Evidente que daí saiu uma Constituição que Jorge Miranda classifica como pactícia, prenhe da ambigüidade entre o que uns desejam que seja e o que outros aspiram que venha a ser, acomodando contrários, compondo contradições, gerenciando conflitos, projetando a própria evolução.

O inciso I do artigo 8.º, da Constituição, que trata da instituição sindical

como instrumento de defesa dos trabalhadores é um exemplo claro da

contradição ideológica da Carta Política.

Ao mesmo tempo em que a norma constitucional avançou para conferir

liberdade aos sindicatos, impedindo a intervenção do Estado na sua

organização e atuação, a lei fundamental conservou a unicidade sindical

proveniente do Estado Novo ditatorial.

A questão da despedida arbitrária também reflete a indecisão da Carta

Política diante das posições antagônicas da Assembleia Nacional Constituinte.

87 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. cit. p. 216. 88 Op. cit. p. 68.

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De fato, não prevaleceu nem a posição daqueles que desejavam

positivar o direito de dispensar de forma arbitrária o empregado nem o grupo

favorável à estabilidade.

Restou positivado a proibição à dispensa do empregado de forma

arbitrária. Poderá ser dispensado o empregado por razões objetivas, ou seja,

se o empregado incidir em falta grave ou por fatos impeditivos ao bom

funcionamento da empresa, sejam eles econômicos ou técnicos. Essa é a

posição da Convenção n.º 158 da Organização Internacional do Trabalho.

Ocorre que diante da forte resistência a esse modelo e ao impasse

estabelecido entre as correntes ideológicas que atuavam na Assembleia

Nacional Constituinte, a solução encontrada foi postergar a disciplina da

proibição à dispensa arbitrária para lei complementar.

Assim, o inciso I do artigo 7.º, da Constituição Federal, foi redigido de

forma a ser um dispositivo de eficácia limitada ou reduzida e por isso não é

autoaplicável. Sua eficácia depende de lei complementar cuja aprovação

depende de maioria absoluta.

A fim de se compensar essa relativa indefinição político-jurídica, os

legisladores procuraram ao menos dificultar a dispensa arbitrária através do

aviso prévio ( inciso XXI do artigo 7.º), a indenização (inciso I do artigo 10 do

Ato das Disposições Constitucionais Transitórias) e contribuição adicional para

o seguro-desemprego (§ 4.º do artigo 239).

Essa situação bem evidencia a divisão ideológica entre aqueles que

desejavam contemplar estabilidade em norma de aplicação imediata a fim de

assegurar ao trabalhador estabilidade econômica e, ao mesmo tempo,

viabilizar a política do pleno emprego e aqueles que desejavam a possibilidade

de dispensar livremente os empregados a fim de permitir a empresa adaptar-se

às exigências do mercado realidade numa economia dinâmica.

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Arion Sayão Romita89 bem sintetiza a relação conflituosa acerca do tema

na Assembleia Nacional Constituinte:

Todos temos ainda vivos na lembrança os agitados debates que se travaram na Assembléia Nacional Constituinte e também fora dela (na imprensa, em aulas, conferências, simpósios e congressos jurídicos, livros, pareceres, artigos de doutrina, etc.) sobre o tema, então predominantemente tratado como estabilidade. Muito se discutiu a respeito da estabilidade no emprego, registrando-se apaixonados argumentos num e noutro sentido, a favor da estabilidade e contra ela. Vale dizer, volumosa corrente de opinião se manifestava pelo acolhimento da estabilidade; não menos significativa corrente inclinava-se pela manutenção do sistema então vigente, que favorecia a livre despedida, onerando o empregador apenas com a obrigação de pagar uma importância correspondente a 10% dos depósitos existentes na conta vinculada, admitindo alguns de lege ferenda a elevação dessa taxa para 40%.

Essa tendência da Constituição de 1988 de contrabalançar interesses

antagônicos também existe no Direito do Trabalho.

A positivação dos direitos trabalhistas também refletiu a crise econômica

de 1973. Se antes, a economia capitalista prosperava; verifica-se que, após

essa data, houve retração econômica.

Os efeitos da flexibilidade do mercado foram sentidos na legislação

trabalhista.

Em uma economia capitalista, os nefastos efeitos da retração econômica

logo são sentidos na seara trabalhista. Nessas ocasiões, a classe trabalhadora

é chamada a repartir os custos do sacrifício econômico aparentemente

inevitável.

89 Os Direitos Sociais na Constituição e Outros Estudos. São Paulo: LTr, 1991. pp. 97-98.

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Por vezes, os empregados e entidades sindicais dos trabalhadores são

persuadidos a aceitar esses sacrifícios de forma momentânea para garantir a

longo prazo o emprego.

Em uma economia capitalista é natural que as conquistas sociais

estejam diretamente dependentes e subordinadas à prosperidade empresarial.

Aliás, a própria sobrevivência do Estado fundado na economia de

mercado depende do sucesso empresarial.

Por isso qualquer alteração significativa na ordem econômica é

suficiente para colocar em risco a estabilidade das conquistas sociais.

A dinâmica do capitalismo afetada pelas oscilações provenientes da

relação de oferta e procura e a revolução tecnológica exigem certa flexibilidade

da legislação a fim de adequar os custos da força de trabalho às necessidades

da empresa.

Assim, verifica-se, já na Constituição de 1988, certa tendência à

flexibilização.

Veja que, já nos anos 70, o regime do FGTS permitia a rotatividade da

mão-de-obra.

Já foi visto que a Constituição de 1988, embora tenha preceituado a

proibição da dispensa arbitrária, acabou cedendo à pressão empresarial e

manteve a disciplina do FGTS, postergando para legislação complementar a

disciplina do inciso I, do artigo 7.º, da Constituição Federal.

Outra tendência de flexibilização pode ser vista no inciso VI do artigo 7.º

que contemplou uma exceção ao princípio da irredutibilidade salarial.

O aludido dispositivo constitucional permitiu a redução de salário desde

que seja ajustada por meio de convenção ou acordo coletivo.

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Observa-se que o texto constitucional também conferiu força

constitucional aos ajustes coletivos celebrados entre entidades sindicais e

empresas e sindicatos dos trabalhadores. A Carta Política reconheceu que o

dinamismo econômico exigia alterações na relação entre capital e trabalho que

nem sempre a fonte heterônoma era capaz de identificar a regular com

presteza.

Por isso foi reconhecido, no âmbito constitucional, a fonte normativa

autônoma que resulta do diálogo e da correlação de forças entre capital e

trabalho.

Desse modo, é fácil perceber que essa hipótese de ajuste bem reflete as

oscilações da economia de mercado. Quando as condições econômicas são de

prosperidade e fartura, a classe trabalhadora consegue obter vantagens

econômicas, em especial aumento de rendimentos. Em épocas de incertezas

econômicas e recessão, a classe empresarial exige sacrifícios, o que faz com

que os salários sejam até reduzidos para a conservação do emprego.

O legislador constituinte positivou o entendimento de que a composição

pela via coletiva produz bons resultados para a sociedade. Esse entendimento

há muito permeava o direito do trabalho que sempre prestigiou o entendimento

entre a classe trabalhadora e a empresarial.

No entanto a forte influência estatal nos conflitos coletivos estampada no

modelo corporativista do Estado Novo impediu o amadurecimento das

entidades sindicais.

Assim, as entidades sindicais sintonizadas com o modelo corporativista

do Estado Novo preferiram sempre esperar concessões para suas

reivindicações através da lei a participar do embate da luta de classes. As

negociações diretas entre sindicatos e sindicatos dos trabalhadores e

empresas foi um instrumento tradicionalmente negligenciado no Brasil.

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O inciso XXVI do artigo 7.º da Constituição Federal procurou no âmbito

constitucional corrigir essa tendência. A norma constitucional pretendeu em

sintonia com o escopo do Direito do Trabalho estimular o desenvolvimento de

outras fontes criadoras do direito.

Ao mesmo tempo, a norma coletiva ao prestigiar a via negocial coletiva

reduz, consideravelmente, o desequilíbrio ontológico entre empregador e

empregado considerado individualmente.

Através das convenções e dos acordos coletivos de trabalho, o

trabalhador representado pela entidade sindical tem melhores condições de

discutir com o complexo empresarial as condições de trabalho.

Sem dúvida alguma, a evolução das condições de trabalho não depende

apenas da vontade absoluta do legislador por meio da positivação de direitos.

O sucesso da harmonização entre o capital e o trabalho, viabilizando o

crescimento econômico paralelamente à melhoria das condições de trabalho

dos empregados, depende, em grande parte, do amadurecimento das

entidades sindicais.

É preciso estimular a cultura jurídica do diálogo entre sindicatos e

empresas sem que ambos busquem precocemente a solução de suas

diferenças:

A via negocial é a mais indicada. Só a organização da classe trabalhadora e seu entendimento por via coletiva com a classe empresarial em cada caso, separadamente, produz bons resultados para a sociedade como um todo. A organização no plano coletivo constitui o meio mais adequado para remediar a fraqueza congênita do trabalhador, quando da celebração do contrato de trabalho. A eliminação das desigualdades econômicas e sociais, agravadas pela crise que caracteriza os tempos atuais, depende, em larga escala, da ênfase que for colocada pelos interlocutores sociais na autonomia negocial dos grupos organizados, pois os nefastos efeitos da crise econômica e da introdução de novos processos tecnológicos só podem ser enfrentados com

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possibilidade de bom êxito pelas organizações sindicais de trabalhadores mediante apelo à negociação coletiva.90

Outro mecanismo emblemático acerca da composição entre capital e

trabalho positivado na Constituição Federal de 1988 é a participação nos lucros

ou resultados.

O Texto constitucional contemplou a participação nos lucros ou

resultados no inciso XI do artigo 7.º.

No Brasil, a participação do empregado na gestão da empresa não era

bem recebida tanto pelo empresariado quanto pelas entidades sindicais, sendo

que estas últimas preferiram sempre o modelo conflitivo ao participativo.

Arion Sayão Romita91 lembra o exemplo alemão no qual a participação

dos trabalhadores na gestão da empresa é visto como forma de integração

social capaz de gerar paz social.

Com isso, o conflito consubstanciado na greve é adotado pela classe

trabalhadora apenas como último recurso. A classe empresarial e trabalhadora

tende a privilegiar a solução participativa.

No Brasil, a Consolidação das Leis do Trabalho já tratava do instituto

participação nos lucros no art. 63, antes mesmo da Constituição de 1946.

A Constituição de 1988 também positivou esse mecanismo de

integração entre capital e trabalho. O Constituinte foi sábio ao desconectar o

pagamento a título de participação nos lucros ou resultados do salário, pois

eventual atribuição de natureza salarial ao referido pagamento, por certo,

desestimularia o empregador a adotar esse mecanismo.

90 Ibid, p. 208. 91 Op. cit. pp. 56-57.

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Observa-se que o dispositivo constitucional que versa sobre a

participação nos lucros ou resultados não é autoaplicável, pois depende de lei

definidora.

A Lei n.º 10.101, de 19 de dezembro de 2000, regulou a participação nos

lucros ou resultados.

O artigo 2.º da referida lei estabelece que a participação nos lucros ou

resultados será objeto de negociação entre a empresa e seus empregados

mediante comissão escolhida pelas partes ou convenção ou acordo coletivo de

trabalho.

Como se observa, embora o direito esteja positivado no texto

constitucional, a efetividade dele é dependente de entendimento entre

empregador e empregado por força da própria lei. E não poderia ser diferente

já que a gênese do instituto é justamente integrar o capital e o trabalho, o que

somente se viabiliza mediante processo negocial e não conflitivo.

Por essa relação muito próxima com via negocial, o instituto de

participação nos lucros e resultados também é um termômetro da evolução do

capitalismo e amadurecimento dos sindicatos.

Veja que, nos países em que os sindicatos dos trabalhadores são

atuantes e as economias são desenvolvidas, a participação nos lucros e

resultados é objeto de negociação coletiva e representa um suplemento

salarial, ou seja, sem prejuízo da majoração salarial. Já nos países em que os

sindicatos não dispõem de poder de barganha ou a atividade sindical é

meramente assistencial, a parcela de participação nos lucros ou resultados tem

contorno salarial.92

Com efeito, a positivação dos direitos sociais não é por si só suficiente

para assegurar a solução dos problemas sociais.

92 Ibid., pp. 78-79.

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Basta observar que, nos períodos de sucesso econômico, o instituto da

participação nos lucros ou resultados pode, momentaneamente, evitar a luta de

classes. Mas, em uma das crises cíclicas do capitalismo onde não exista lucro,

certamente eclodirá a relação conflituosa entre capital e trabalho.

Dessa forma, a positivação dos direitos sociais na Constituição Federal

de 1988 representou grande avanço, pois foi fruto da ampla participação

popular na Assembléia Nacional Constituinte. Ainda que haja um rol de direitos

lançados no texto constitucional sob caráter programático, tem-se que o

legislador definiu através desses direitos positivados objetivos a serem

alcançados.

Todavia é necessário incrementar o princípio da máxima efetividade da

norma constitucional e ao mesmo tempo estimular o amadurecimento da

cultura do diálogo entre os entes sindicais, já que a composição coletiva revela-

se como meio mais eficiente de pacificação de conflitos, atendendo à realidade

vivenciada entre empresas e trabalhadores, o que nem sempre é regulado a

tempo e modo adequado pelo legislador.

Embora o Estado seja sempre chamado a solucionar o conflito entre o

capital e o trabalho, a solução das controvérsias deve primeiramente passar

pelos próprios interessados, o que somente se viabiliza pelo desenvolvimento

de uma cultura de diálogo.

Nesse sentido, a Constituição Federal de 1988 descortinou uma nova

perspectiva para todos os brasileiros, já que abre espaço para a negociação

coletiva e para a representação dos trabalhadores.

Cabe aos atores sociais, em especial empresas e entidades sindicais e

associativas, adotarem medidas a partir do diálogo e da negociação coletiva

capaz de solucionar as controvérsias ainda na esfera privada.

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Sem dúvida, a Constituição Federal de 1988, ao positivar direitos

sociais, procurou garantir a cidadania não só no âmbito das relações públicas

entre Estado e cidadão, mas também nas relações privadas, o que inclui

empresa e cidadão.

2.3 – Princípios constitucionais aplicados na hermenêutica justrabalhista:

O estudo dos princípios é importante para o campo da aplicação e

interpretação tanto das normas constitucionais como infrasconstitucionais.

Ganha especial relevo em meio a um ordenamento jurídico em permanente

mutação.

Mesmo a Constituição Federal brasileira, que adotou o modelo rígido, já

foi alvo de 67 emendas constitucionais até abril de 2011.

Essas modificações são explicadas em parte pela crise que o

positivismo jurídico enfrenta. O direito como fruto do fenômeno histórico nem

sempre consegue acompanhar a evolução ou modificação das relações

sociais.

O legislador não detém condições de prever conflitos futuros e, com

isso, oferecer disciplina legal para todas as espécies de relações humanas.

Nessa esteira, os princípios apresentam-se como elementos

ordenadores capazes direcionar a hermenêutica das normas adaptando-as à

dinâmica vida social:

(...) os princípios gerais do direito informam o ordenamento, conformando-o e direcionando, conseq6uentemente, a hermenêutica, entendida sobretudo como concretização e pragmática do direito, igualmente se orienta no mesmo sentido, absolutamente inaceitável a divergência porquanto viria a ser a negação dos fundamentos do próprio sistema, servindo isto, também, para a construção jurídica progressiva no tempo, bem assim como a contemporaneização permanente das normas às realidades dinamicamente

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mutáveis, o que é tanto mais veloz e intenso na época da modernidade/pós-modernidade, marcada pela descartabilidade dos modelos e pela vertiginosa velocidade mutacional.93

Conforme já foi visto anteriormente, a materialização dos postulados

lançados na Constituição depende não só da realização material das normas

programáticas, mas também de uma interpretação das normas

infraconstitucionais já existentes à luz dos valores que a Carta Política elegeu

como fundamentais, em especial a dignidade da pessoa humana, a cidadania e

os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.

Com isso, qualquer interpretação normativa está subordinada aos

princípios inseridos, implícita ou explicitamente, na Constituição. Somente

através dessa hermenêutica é que será possível realizar o Estado Democrático

de Direito.

A importância dos princípios constitucionais na hermenêutica jurídica é

bem exemplificada por Celso Antônio Bandeira de Mello94:

Princípio – já averbamos alhures – é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes de todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo. Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão

93 JUCÁ, Francisco Pedro. Op. cit. p. 103. 94 Curso de Direito Administrativo. 18.ª ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2005. pp. 882-883.

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de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra. Isto porque, com ofendê-lo, abatem-se as vigas que o sustêm e alui-se toda a estrutura nelas esforçada.

O princípio norteador do nosso sistema jurídico é o princípio de proteção

da dignidade da pessoa humana.

Como já foi visto, esse princípio ganhou ênfase e passou a integrar

expressamente vários textos europeus com a Declaração Universal de Direitos

do Homem em 1948. Os horrores experimentados na Segunda Guerra Mundial

motivaram a propagação desse princípio.

A Constituição Federal de 1988, ao elegê-lo como princípio norteador no

inciso III, do artigo 1.º, atrelou o respeito ao Estado Democrático de Direito a

sua observância. Em outras palavras, o desrespeito ao princípio de proteção à

dignidade da pessoa humana corresponde ao desrespeito ao Estado

Democrático de Direito.

Como princípio a dignidade da pessoa humana é absoluto. Não

necessita de regulamentação e pode ser explícito ou implícito. Diferente das

normas, o princípio não necessita de vigência, eficácia e validade. Tem,

portanto, maior eficácia e efetividade.95

Alexandre de Moraes96 define esse princípio:

A dignidade da pessoa humana é um valor espiritual e mora inerente a pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que apenas excepcionalemte possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a

95 MARQUES, Christiani. A proteção ao trabalho penoso. São Paulo: LTr, 2007. p. 45. 96 Constituição do Brasil Interpretada. 8.ª ed. atual. até a EC n.º 67/10. São Paulo: Atlas, 2011. p. 61.

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necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos. O direito à vida privada, à intimidade, à honra, à imagem, entre outros, aparece como consequência imediata da consagração da dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil. Esse fundamento afasta a ideia de predomínio das concepções transpessoalistas de Estado e Nação, em detrimento da liberdade individual.

Com efeito, esse princípio tem o condão de unificar os direitos

fundamentais. Na verdade, ele densifica todos os direitos fundamentais. Não é

por acaso que a ordem econômica visa assegurar uma existência digna (caput

do artigo 170) e a ordem social busca a justiça social (artigo 193).

O princípio da igualdade veda as diferenciações arbitrárias, já que o

tratamento desigual aos desiguais é um desdobramento do próprio princípio no

caso concreto.

Uma dimensão desse princípio é a igualdade de oportunidades para

todos, o que se viabiliza não apenas através de leis, mas, principalmente, de

políticas sociais.

Nessa esteira, esse princípio, somado ao da dignidade e ao objetivo do

desenvolvimento econômico, fundamenta o ideal do pleno emprego.

Somente através da geração de empregos que possibilita o atendimento

das necessidades materiais vitais do cidadão é que se concretiza o princípio da

igualdade.

Isso porque já não basta a igualdade formal no plano político é

necessário franquear a todos em condições de igualdade a oportunidade de

pleno desenvolvimento do indivíduo em todas as suas dimensões, seja

espiritual e material.

Como dimensão espiritual entende-se a possibilidade do indivíduo

compreender-se como parte útil e capaz da sociedade.

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É indispensável num Estado Democrático de Direito que o indivíduo

adquira um conceito de si mesmo como indivíduo com capacidades a serem

aproveitadas pelo restante do grupo social, o que só se materializa através do

trabalho.

A dimensão material é o atendimento das necessidades mais

elementares para a sobrevivência física do indivíduo. Nesse plano o trabalho

cumpre a sua função de oferecer a contraprestação mínima para o indivíduo

adquirir os gêneros indispensáveis a sua subsistência.

O princípio da igualdade é direcionado tanto ao legislador e ao executivo

quanto ao intérprete da lei. Aos primeiros, o princípio busca orientá-los na

elaboração de leis e execução de políticas públicas para que não criem

tratamentos discriminatórios absurdos. Ao intérprete, o princípio da igualdade

objetiva direcionar a interpretação e a aplicação da lei de maneira igualitária

sem estabelecimento de diferenciações desarrazoadas.97

É emblemático o seguinte julgado do Supremo Tribunal Federal:

MANDADO DE INJUNÇÃO - PRETENDIDA MAJORAÇÃO DE VENCIMENTOS DEVIDOS A SERVIDOR PÚBLICO (INCRA/MIRAD) - ALTERAÇÃO DE LEI JA EXISTENTE - PRINCÍPIO DA ISONOMIA - POSTULADO INSUSCETIVEL DE REGULAMENTAÇÃO NORMATIVA INOCORRENCIA DE SITUAÇÃO DE LACUNA TECNICA - A QUESTÃO DA EXCLUSAO DE BENEFICIO COM OFENSA AO PRINCÍPIO DA ISONOMIA - MANDADO DE INJUNÇÃO NÃO CONHECIDO. O princípio da isonomia, que se reveste de auto-aplicabilidade, não e - enquanto postulado fundamental de nossa ordem político-jurídica - suscetivel de regulamentação ou de complementação normativa. Esse princípio - cuja observancia vincula, incondicionalmente, todas as manifestações do Poder Público - deve ser considerado, em sua precipua função de obstar discriminações e de extinguir privilegios (RDA 55/114), sob duplo aspecto: (a) o da igualdade na lei e (b) o da igualdade perante a lei. A igualdade na lei - que opera numa fase de generalidade puramente abstrata - constitui exigência destinada ao legislador que, no processo de sua formação , nela não podera incluir fatores de

97 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 24.ª ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 37.

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discriminação, responsaveis pela ruptura da ordem isonomica. A igualdade perante a lei, contudo, pressupondo lei ja elaborada, traduz imposição destinada aos demais poderes estatais, que, na aplicação da norma legal, não poderao subordina-la a critérios que ensejem tratamento seletivo ou discriminatorio. A eventual inobservancia desse postulado pelo legislador impora ao ato estatal por ele elaborado e produzido a eiva de inconstitucionalidade. Refoge ao âmbito de finalidade do mandado de injunção corrigir eventual inconstitucionalidade que infirme a validade de ato em vigor. Impõe-se refletir, no entanto, em tema de omissão parcial, sobre as possiveis soluções juridicas que a questão da exclusão de beneficio, com ofensa ao princípio da isonomia, tem sugerido no plano do direito comparado: (a) extensão dos benefícios ou vantagens as categorias ou grupos inconstitucionalmente deles excluidos; (b) supressão dos benefícios ou vantagens que foram indevidamente concedidos a terceiros; (c) reconhecimento da existência de uma situação ainda constitucional (situação constitucional imperfeita), ensejando-se ao Poder Público a edição, em tempo razoável, de lei restabelecedora do dever de integral obediencia ao princípio da igualdade, sob pena de progressiva inconstitucionalização do ato estatal existente, porem insuficiente e incompleto. (MI 58, Relator(a): Min. CARLOS VELLOSO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 14/12/1990, DJ 19-04-1991 PP-04580 EMENT VOL-01616-01 PP-00026 RTJ VOL-00140-03 PP-00747)98

Como visto, o princípio da igualdade deve orientar as políticas públicas

do Estado.

Dessa maneira, aquelas pessoas socialmente desfavorecidas devem ser

objeto de políticas específicas. Veja que o princípio da igualdade determina que

se trate de forma desigual os desiguais. Por isso os desfavorecidos devem ser

contemplados com alguma espécie de vantagem social representada por

políticas públicas tendentes a corrigir as distorções sociais provocadas pelo

sistema econômico.

Arion Sayão Romita99 definiu o princípio da equalização social como

uma versão do princípio da igualdade:

98 Extraído do seguinte endereço eletrônico no dia 03/05/2011: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%2858%2ENUME%2E+OU+58%2EACMS%2E%29&base=baseAcordaos. 99 Op. cit. p. 184.

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Pode-se cogitar, então, de um princípio de equalização social, como versão do princípio de compensação das desigualdades sociais, no sentido de fomentar a promoção das pessoas socialmente desfavorecidas em confronto com outras pessoas de condição social mais favorável, o que importa a concessão aos deficientes de alguma vantagem positiva. Sob esse aspecto, o princípio da equalização social seria, em face do princípio da igualdade perante a lei, como que a outra face da mesma moeda, visto que, se se tratar da mesma maneira os deficientes e as demais pessoas, o resultado seria a transformação dos desfavorecidos sociais em desfavorecidos jurídicos, com desmentido da igualdade perante a lei.

O escopo desse princípio alcança também o particular. Mesmo nas

relações privadas, o particular não pode agir de maneira discriminatória, o que

será analisado mais adiante em outro capítulo.

Ressalte-se que o Direito do Trabalho surgiu justamente sob a égide da

desigualdade inerente entre os detentores dos meios de produção e aqueles

que apenas dispõem da sua força de trabalho.

Assim, a desigualdade no âmbito da relação de emprego é uma

realidade com a qual o Direito do Trabalho sempre se deparou. Para cumprir

sua finalidade de proteção social, teve que desenvolver uma hermenêutica

capaz de compensar tais desigualdades no plano material.

Observa-se que, nos contratos de trabalho, o princípio da igualdade tem

como efeito mais imediato a limitação à autonomia da vontade.

A liberdade contratual é restringida a fim de compensar a inferioridade

da posição jurídica do trabalhador tanto no momento da celebração do contrato

quanto na sua execução.

A invocação constitucional desse princípio reforça a missão

justrabalhista de reequilibrar a relação entre empregado e empregador.

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85

CAPÍTULO 3

APLICAÇÃO HORIZONTAL DOS DIREITOS HUMANOS NO CONTRATO DE TRABALHO

3.1 Noção de direitos humanos:

É comum encontrar tanto na doutrina quanto no direito positivo o uso

das expressões “direitos humanos”, “direito do homem” e “direitos

fundamentais” sem distinção.

Aliás, é cada vez maior a diversidade semântica para definir o mesmo

conceito e conteúdo.

Como bem pontua Ingo Wolfgang Sarlet100, a própria Constituição

Federal de 1988 apresenta uma riqueza de expressões para se referir aos

direitos fundamentais: direitos humanos (art. 4.º, inciso II); b) direitos e

garantias fundamentais (epígrafe do Título II, e art. 5.º, § 1.º); c) direitos e

liberdades constitucionais (art. 5.º, inc. LXXI) e d) direitos e garantias

individuais (art. 60, § 4.º, inc. IV).

Para se compreender os direitos humanos, faz-se necessário distingui-

los dos direitos fundamentais e direitos do homem, o que implica,

necessariamente, numa breve digressão histórica.

Os direitos do homem foram tratados na Declaração dos Direitos do

Homem e do Cidadão, da Revolução Francesa de 1789. Nela, os direitos do

homem eram vistos em caráter universal e abstrato e por isso distintos dos

direitos do cidadão.101

100 A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspective constitucional. 10.ª ed. rev. atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011. p. 27. 101 ROMITA, Arion Sayão. Op. Cit. p. 40.

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Predominava uma concepção jusnaturalista, na qual havia direitos que

preexistiam em relação a qualquer ordenamento jurídico.

Desse modo, os direitos do homem correspondiam àqueles direitos

inerentes à natureza humana do que decorre o seu caráter inviolável,

intemporal e universal.102

Os direitos humanos são admitidos como os direitos do homem

reconhecidos na ordem internacional.103 Por isso revelam um caráter

supranacional e validade universal.

Os documentos internacionais usam a expressão “direitos humanos”

para se referirem aos direitos do homem na órbita internacional.

Já os direitos fundamentais são aqueles direitos do ser humano jurídico-

institucionalizados, ou seja, aqueles direitos humanos positivados na esfera do

direito constitucional de determinado Estado.104

Veja a lição de Ricardo Sayeg e Wagner Balera105:

Como se vê, os direitos humanos não se confundem com os direitos fundamentais, estes mais restritos e representam a positivação constitucional daqueles e de outros valores tidos como fundamentais, promulgados pelo Estado para maior segurança de concretização. Os direitos humanos os antecedem e são abrangentes, determinados por direito natural – logo, são inatos ao homem e a todos os homens, não se confundindo com os fundamentais, no rol dos quais o Artigo 5º da Constituição Federal autoriza, por exemplo, a prisão civil do depositário infiel, em dispositivo manifestamente colidente com os direitos humanos. A jurisprudência do STF, conforme registrado na súmula vinculante nº 25, concretizou intuitivamente os direitos humanos e suprimiu a aplicação do comando em comento.

102 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. cit. p. 393. 103 MARTINS DE MELLO, Simone B. de. A Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais nas Relações de Trabalho. Revista LTr. Vol. 75, n.º 6, junho de 2011. São Paulo. p. 687. 104 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. cit. p. 393. 105 O Capitalismo Humanista. 1.ª Ed. Petrópolis: KBR, 2011. pp. 119-120.

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Assim, em resumo, os direitos do homem são os direitos naturais não

positivados, os direitos humanos são os direitos positivados na esfera do direito

internacional e os direitos fundamentais são os direitos reconhecidos na órbita

do direito constitucional interno de um determinado Estado.

Com isso, os direitos do homem numa concepção jusnaturalista

compreendem a origem dos direitos humanos e dos direitos fundamentais. A

partir do momento em que os direitos do homem passam a ser reconhecidos

pela ordem jurídica, seja ela internacional ou interna, passam a ser direitos

humanos ou direitos fundamentais, respectivamente.

No presente trabalho, opta-se pela denominação direitos humanos

fundamentais utilizada por Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Alexandre de

Moraes e Sérgio Resende de Barros. Este último refuta a tese da distinção

entre direitos humanos e direitos fundamentais e sustenta que a designação

direitos humanos fundamentais ressalta a unidade essencial e indissolúvel

entre direitos humanos e direitos fundamentais, abarcando tanto a matriz

internacional quanto a constitucional106:

Não há razão por que separar direitos fundamentais e direitos humanos, pondo aqueles numa situação ontológica, na qual têm concreção normativa, aparecendo definidos, firmes, positivados, reforçados na constituição jurídica do Estado, e pondo estes numa situação deontológica imprecisa e insegura, sem uma definição positiva, que deveriam ter mas não têm, daí aparecendo sem tutela ou concreção reforçada. Mesmo porque tanto uns quanto outros estão em ambas as situações. Na verdade, o instituto nasceu uno e nunca foi senão um, conquanto admita, como outros institutos e conceitos jurídicos, níveis ou campos de compreensão e de extensão que podem variar do mais geral e fundamental ao mais particular e operacional. Tal variância impõe reconhecer a existência de direitos humanos fundamentais e direitos humanos operacionais: aqueles estruturais, principais destes; estes conjunturais, subsidiários daqueles; mas todos no mesmo espaço

106 Direitos humanos: paradoxo da civilização. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 39.

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institucional, compondo um só instituto jurídico: os direitos humanos. (itálicos no original)

Para Manoel Gonçalves Ferreira Filho, a separação entre direitos

humanos e direitos fundamentais não existiria, sendo que direitos fundamentais

seria uma abreviatura de direitos humanos fundamentais.107

E Alexandre de Moraes reforça o emprego da expressão direitos

humanos fundamentais para definir os direitos universalmente reconhecidos

pela maioria dos Estados, seja em nível constitucional, infraconstitucional, seja

em nível de direito consuetudinário ou mesmo por tratados e convenções

internacionais.108

A definição direitos humanos fundamentais ao contemplar tanto os

direitos catalogados na Constituição quanto os direitos positivados na esfera

internacional permite examinar com mais profundidade os diferentes graus de

efetividade desses direitos reclamados nas instâncias judiciárias.

Ademais, não se pode superestimar os direitos positivados apenas na

esfera internacional. Isso porque, se tais direitos não forem recepcionados pela

ordem interna, a carga de efetividade será reduzida.

Ingo Wolfgang Sarlet109 chama a atenção para a falta de

correspondência exata entre o catálogo internacional de direitos humanos e o

rol de direitos institucionalizados na ordem interna (direitos

constitucionalizados). Há alguns direitos fundamentais que só podem ser

exercidos pelos cidadãos de determinado país, ao passo que os direitos

humanos dirigem-se a todos.

De qualquer forma, vislumbra-se, ao longo da história, a evolução dos

direitos humanos fundamentais.

107 Direitos humanos fundamentais. 9.ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 14. 108 Direitos humanos fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. 1.º a 5.º da Constituição da República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. 9.ª ed. São Paulo: Atlas, 2011. p. 21. 109 Op. cit. p. 34.

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Cumpre observar que, na origem e no desenvolvimento histórico, não

havia distinção entre a doutrina dos direitos naturais (natural rights), de origem

anglo-saxônica, dos direitos fundamentais (Grundrechte), de origem alemã, e

dos direitos do homem e liberdades fundamentais (droits de I’homme et libertes

fondamentales), de origem francesa. Apenas na atualidade é que os conceitos

apresentam distinções.110

Por isso no estudo da evolução e afirmação histórica dos direitos

humanos, não se vislumbra distinção com os direitos fundamentais.

Somente depois da Declaração Universal dos Direitos do Homem é que

a doutrina passou a fazer a aludida distinção.

Os direitos humanos não são fruto do acaso, mas sim de movimentos

sociais, filosofias e religiões que escoradas nas ideias de liberdade e dignidade

da pessoa humana apresentavam uma resposta à distribuição desigual dos

recursos materiais e do poder. À medida que essas ideias encorpavam as

legislações internas acolhiam-nas num verdadeiro processo de

constitucionalização.

A evolução está diretamente associada à evolução do Estado Liberal

para o Estado de Direito.

Porém é inegável que, no mundo antigo, a religião e a filosofia

contribuíram com algumas ideias essenciais para a concepção de que o ser

humano é titular de direitos naturais e inalienáveis.

Os valores da dignidade da pessoa humana, da liberdade e da igualdade

dos homens têm origem na filosofia greco-romana e no pensamento cristão.111

110 ROMITA, Arion Sayão. Op. cit. p. 48. 111 SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit. 38.

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Ricardo Hasson Sayeg e Wagner Balera112 bem pontuam a enorme

influência do cristianismo na gestação do embrião dos direitos humanos:

(...) não há como desconsiderar dois mil anos de inegável e relevante evolução histórica e antropológica na formação da consciência universal do cristianismo. Ninguém pode desprezar a influência da cultura cristã na formação da atual civilização, mormente a ocidental em que vivemos. O calendário da história humana é dividido em antes e depois de Jesus Cristo, e é Ele o protagonista, sem demérito de outros grandes agentes, na construção da consciência universal da fraternidade – base antropológica do humanismo integral exposto nas presentes reflexões. (...) É inegável que a fraternidade cristã representou uma revolução cultural. (...) Aliás, tanto Reale quanto Kelsen, já citados, falam expressamente em cultura e civilização cristãs. Em que pese ser judeu, Kelsen textualmente afirma que somos homens de uma civilização cristã.

A pedra angular dos direitos humanos fundamentais é a dignidade da

pessoa humana, já que a partir desta surge um feixe de direitos que visam

satisfazer as necessidades bioculturais.

Pela importância e clareza, transcreve-se a lição de Ricardo Hasson

Sayeg e Wagner Balera113:

Todos os direitos do homem convergem para o específico direito objetivo natural da dignidade da pessoa humana e, por desdobramento, da dignidade planetária, de modo que a concretização destas é também o melhor atestado da satisfação plena dos direitos subjetivos naturais. Logo, os direitos humanos estão enquadrados no realismo jurídico e não se interpretam, mas se concretizam – isto é, executam-se diante das realidades com o fim específico da consecução objetiva e tangível do direito da dignidade da pessoa humana. Daí a precedência atribuída à dignidade da pessoa humana sobre toda ordem jurídica, tal como é pacífico na jurisprudência do STF ao

112 Op. cit. pp. 106-107. 113 Op. cit. p. 117.

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demonstrar que tal proeminência não é atributo da positivação, mas do imperativo de direito objetivo inato do homem e de todos os homens. (...) Por isso, violar a dignidade humana é colocar o homem em situação desumana, ou seja, naquilo que avilta a sua condição humana existencial biocultural.

De fato, a religião e a filosofia no mundo antigo contribuíram

decisivamente para a formação das ideias de igualdade, fraternidade e

dignidade.

Já na Idade Média, desenvolveu-se a ideia da existência de direitos

naturais. Santo Tomás de Aquino defendia o pensamento, segundo o qual

existiam duas ordens distintas, formadas, respectivamente, pelo direito natural

e pelo direito positivo.

Com isso, havia a necessidade de se compatibilizar o direito positivo às

regras jurídicas naturais.

Nos séculos XVII e XVIII, o jusnaturalismo atinge o seu auge.

É importante esclarecer que esse processo de contribuição para a

consolidação de uma direito natural foi extremamente lento. Isso porque, no

século XVIII, o alto clero era favorável à monarquia absolutista.

Assim, não havia o interesse de formular um pensamento favorável à

concepção de igualdade entre os homens.

Não se pode deixar de registrar que o cristianismo primitivo sim continha

uma mensagem de libertação cujo embrião é o princípio da dignidade da

pessoa humana.114

Com o iluminismo há uma laicização do direito natural.115

114 SILVA, José Afonso da. Op. cit. p. 177. 115 SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit. 39.

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É essa secularização que desvincula o direito natural da vontade divina,

permitindo que se forme a concepção universal dos direitos humanos.116

Ainda no século XVII a ideia de direitos inalienáveis do homem e da

submissão da autoridade aos ditames do direito natural foi acolhida por

extraordinários juristas, são eles: o holandês Hugo Grócio (1583-1645), o

alemão Samuel Pufendorf (1632-1694) e os ingleses John Milton (1608-1674) e

Thomas Hobbes (1588-1679). Ingo Wolfgang Sarlet lembra que foi na

Inglaterra do século XVII que a concepção contratualista da sociedade e a ideia

de direitos naturais do homem adquiriram particular relevância, haja vista as

diversas Cartas de Direitos assinadas pelos monarcas nesse período.117

Nesse período, o pensamento contratualista predominava. Os

defensores dessa corrente entendiam que o poder estatal somente se

justificava se atendesse às necessidades dos homens. A submissão à

autoridade estatal decorria da abdicação voluntária que os indivíduos faziam de

parcela da sua liberdade a fim de que o Estado pudesse assegurar a vida, a

liberdade e a propriedade.

Segundo Norberto Bobbio, a doutrina dos direitos do homem nasceu da

filosofia jusnaturalista. Acrescenta o ilustre jurista italiano que a doutrina de

Kant sintetiza bem o pensamento nesse período. Na doutrina de Kant, todos os

direitos naturais estão compreendidos num único e principal direito, qual seja, o

direito à liberdade.118

Na Inglaterra do século XIII foi elaborada a Magna Carta pelo rei João

Sem-Terra e pelos bispos e barões. Esse é o principal documento acerca da

evolução dos direitos humanos. Trazia uma série de liberdades e garantias aos

nobres ingleses em face do poder real.

116 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. cit. p. 382. 117 SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit. p. 39.

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Todavia a Magna Carta não é aceita como embrião dos direitos

humanos fundamentais. Ingo Wolfgang Sarlet esclarece que os direitos e

liberdades nela contidos, ainda que oferecessem uma limitação ao poder

monárquico, não vinculavam o Parlamento, carecendo, portanto, de

supremacia e estabilidade. Não havia, nesse caso, uma constitucionalização.119

Somente com a Declaração de Direitos do Povo da Virgínia, de 1776, é

que houve a necessária universalidade e supremacia dos direitos

fundamentais. Isso porque os direitos reconhecidos na aludida declaração

incorporavam as liberdades e garantias previstas na carta inglesa, albergando

todos os súditos das colônias americanas e vinculando os poderes públicos.120

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, tinha

inspiração no jusnaturalismo. Também contribuiu para a consagração dos

direitos humanos fundamentais.

Os direitos reconhecidos e exaltados nesses documentos compreendem

os chamados direitos de primeira geração.

É importante destacar que a divisão apresentada em gerações não

significa substituição de um grupo de direitos humanos fundamentais por outro.

Na verdade, há uma evolução gradativa em que, num determinado

período, consagra-se um grupo de direitos e, no período seguinte, consagra-se

outro num processo cumulativo e complementar.121

Paulo Bonavides comunga dessa mesma posição.122

Na doutrina estrangeira também há nomes de peso que criticam a

divisão dos direitos em gerações.

118 A era dos direitos. 9.ª Ed. tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. pp. 73-74. 119 Op. cit. p. 43. 120 Ibid., p. 43. 121 SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit. 45.

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Essa é a posição de José Joaquim Gomes Canotilho123:

Critica-se a précompreeensão que lhes está subjacente, pois ela sugere a perde (sic) de relevância e até a substituição dos direitos das primeiras gerações. A idéia de generatividade geracional também não é totalmente correcta: os direitos são de todas as gerações. Em terceiro lugar, não se trata apenas de direitos com um suporte colectivo – o direito dos povos, o direito da humanidade. Neste sentido se fala de solidarity rights, de direitos de solidariedade, sendo certo que a solidariedade já era uma dimensão “indimensionável” dos direitos econômicos, sociais e culturais. Precisamente por isso, preferem hoje os autores falar de três dimensões de direitos do homem (E. Riedel) e não de “três gerações”.

No entanto, por razões didáticas, ainda se estudam os direitos humanos

fundamentais segundo uma divisão em dimensões ou gerações.

A primeira dimensão de direitos é reflexo direto da Carta Magna inglesa

que positivou as liberdades clássicas. Estão incluídos os direitos civis e

políticos. A inspiração filosófica dos direitos de primeira dimensão está no

iluminismo e jusnaturalismo. Para o pensamento liberal-burguês da época, a

principal finalidade do Estado era assegurar a liberdade do indivíduo.

Por isso os direitos humanos fundamentais de primeira dimensão

apresentam-se como um direito do indivíduo frente ao Estado, subministrando

uma abstenção ao Estado. Trata-se de uma proibição ao Estado de interferir

em certos aspectos da vida do indivíduo.

Esses direitos têm por titular o indivíduo e são oponíveis ao Estado.

Traduzem o pensamento liberal-burgês de separação entre a Sociedade e o

Estado. Implicam numa valorização do homem-indivíduo.124

122 Curso de Direito Constitucional. 25.ª ed. atual. Malheiros: São Paulo, 2010. p. 563. 123 Op. cit. pp. 386-387. 124 BONAVIDES, Paulo. Op. cit. pp. 563-564.

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São exemplos desse direitos: o direito à vida, à liberdade, à liberdade de

imprensa, à manifestação do livre pensamento, reunião, associação, garantias

processuais, direito de petição.

Já a segunda dimensão compreende os direitos sociais, econômicos e

culturais. Esses direitos são produto da preocupação no início do século com o

trabalho, previdência e assistência social. Já não bastava que o Estado se

abstivesse de interferir na liberdade individual.

Enquanto os direitos de primeira dimensão marcaram o início da

positivação dos direitos humanos fundamentais no século XIX, os direitos de

segunda dimensão dominaram o século XX.

A característica marcante desses direitos é a atuação interventiva do

Estado, já que, após os impactos da industrialização e os movimentos

reivindicatórios, passou-se a exigir uma posição mais ativa do Estado na

concretização da justiça social.

Esses direitos ganham ênfase nas Constituições após a Segunda

Guerra Mundial.125 Decorreram de uma reação aos desdobramentos sociais do

liberalismo político e econômico. O avanço do marxismo fez com que se

temperasse o liberalismo. Essa moderação econômica traduziu-se numa nova

roupagem para o liberalismo a qual ficou conhecida como social democracia. A

Constituição de Weimar é um exemplo da maior interferência do Estado na vida

econômica e social.

Enquanto os direitos de primeira dimensão ou geração estão baseados

no princípio da liberdade, os direitos de segunda dimensão decorrem da

exaltação e desenvolvimento do princípio da igualdade.

Contudo, como já foi dito, a divisão dos direitos em gerações ou

dimensões não pressupõe a substituição de um grupo pelo outro. Na verdade,

125 Ibid., p. 564.

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há um processo de acumulação e complementaridade em que um grupo de

direitos se soma ao outro numa escala crescente de conquistas.

Por isso, mesmo nos chamados direitos de segunda dimensão, verifica-

se não apenas direitos de cunho prestacional, mas também liberdades sociais,

tais como, a liberdade de sindicalização e o direito de greve.126

Por fim, os direitos de 3.ª dimensão são chamados de direitos de

solidariedade ou fraternidade, traduzindo-se no direito a um meio ambiente

equilibrado, a uma saudável qualidade de vida, ao progresso, à paz, à

autodeterminação dos povos e a outros direitos difusos.127

Os direitos de 3.ª dimensão são resultado de novas reivindicações do

homem moderno diante das inovações tecnológicas, do estado permanente de

conflitos armados e das consequências do processo de descolonização do

segundo pós-guerra.128

Observa-se um descolamento do direito ao indivíduo. Há uma superação

da concepção individualista do direito, uma vez que a titularidade desses

direitos é a coletividade.

Destaca-se até mesmo uma certa dificuldade na definição da titularidade

desses direitos. Isso porque muitos desses direitos atingem a universalidade

dos homens:

Com efeito, um novo pólo jurídico de alforria do homem de acrescenta historicamente aos da liberdade e da igualdade. Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, os direitos da terceira geração tendem a cristalizar-se no fim do século XX enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou de um determinado Estado. Têm primeiro por destinatário como valor supremo em termos de existencialidade concreta.

126 SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit. p. 48. 127 MORAES, Alexandre de. Op. cit. pp. 26-27. 128 SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit. pp. 48-49.

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Os publicistas e juristas já os enumeram com familiaridade, assinalando-lhe o caráter fascinante de coroamento de uma evolução de trezentos ans na esteira da concretização dos direitos fundamentais. Emergiram eles da reflexão sobre temas referentes ao desenvolvimento, à paz, ao meio ambiente, à comunicação e ao patrimônio comum da humanidade.129

Aqueles que defendem, entusiasticamente, a ascensão dos direitos de terceira

dimensão apontam para a sua titularidade transindividual.

Além disso, os direitos de terceira dimensão compreendem uma

diversidade de direitos cuja efetivação atinge até mesmo a escala mundial.130

Como exemplo dessa diversidade e complexidade para efetivação em

escala mundial, cita-se o direito à paz mundial, à autodeterminação dos povos,

ao meio ambiente, à comunicação e à qualidade de vida.

É importante registrar que os direitos de terceira dimensão ainda não

desfrutam da positivação nos ordenamentos jurídicos internos nem de

reconhecimento unânime na seara constitucional.

Questiona-se até mesmo a condição de direito na acepção jurídica do

termo. Para alguns, os chamados direitos de terceira dimensão ou geração

seriam meras aspirações ou declarações solenes de objetivos ou ideais.

Cita-se a crítica de Norberto Bobbio131:

O que dizer dos direitos de terceira e de quarta geração? A única coisa que até agora se pode dizer é que são expressão de aspirações ideais, às quais o nome de “direitos” serve unicamente para atribuir um título de nobreza. Proclamar o direito dos indivíduos, não importa em que parte do mundo se encontrem (os direitos do homem são por si mesmos universais), de viver num mundo não poluído não significa mais do que expressar a

129 BONAVIDES, Paulo. Op. cit. p. 569. 130 SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit. p. 49. 131 Op. cit. pp. 09-10.

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aspiração a obter uma futura legislação que imponha limites ao uso de substâncias poluentes. Mas uma coisa é proclamar esse direito, outra é desfrutá-lo efetivamente. A linguagem dos direitos tem indubitavelmente uma grande função prática, que é emprestar uma força particular às reivindicações dos movimentos que demandam para si e para os outros a satisfação de novos carecimentos materiais e morais; mas ela se torna enganadora se obscurecer ou ocultar a diferença entre o direito reivindicado e o direito reconhecido e protegido.

Contudo ousamos discordar do professor italiano. Não se pode limitar o

reconhecimento dos direitos humanos fundamentais àqueles positivados no

ordenamento jurídico interno.

Os direitos humanos são consagrados pelas declarações e tratados

internacionais. Na esteira desse raciocínio, reconhece-se a existência de

direitos de terceira dimensão, pois são contemplados nas declarações e

tratados internacionais.

Além disso, o reconhecimento dos direitos humanos independe da

outorga estatal.132

O direito é consequência do fenômeno social. Por isso o seu

reconhecimento não é uma exclusividade do poder estatal.

Colhe-se a lição de Miguel Reale133:

A sociedade deve viver o Direito e como tal reconhecê-lo. Reconhecido o Direito, é ele incorporado à maneira de ser e de agir da coletividade. (...) O Direito autêntico não é apenas declarado mas reconhecido, é vivido pela sociedade como algo que se incorpora e se integra na sua maneira de conduzir-se. A regra de direito deve, por conseguinte, ser formalmente válida e socialmente eficaz.

132 SAYEG, Ricardo. BALERA, Wagner. Op. cit. p. 119. 133 Lições Preliminares de Direito. 25ª ed. São Paulo: Saraiva, 2000. pp. 112-113.

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A sociedade é extremamente dinâmica. A partir de novas situações

capazes de gerar conflito é que surge a necessidade de regrá-las. Em outras

palavras, a positivação dos direitos persegue o fenômeno social.

É inegável que as novas tecnologias criaram novos conflitos, além de

novas aspirações, o que obriga a doutrina a formular respostas para esses

novos desafios.

As conquistas sociais materializadas, por vezes, na positivação de uma

classe de direitos abrem novos horizontes. As novas expectativas geradas

pelas conquistas anteriores e pelo permanente processo de mudança fazem

com que a sociedade caminhe na direção da promoção de novos direitos. Isso

significa que há processo de constante busca de novos direitos para atender

demandas crescentes fulcradas sempre na promoção da dignidade da pessoa

humana.

Sérgio Resende de Barros bem pontua esse fenômeno134:

Vale dizer: sem os direitos individuais abrindo o caminho não haveria em continuação os direitos sociais. Daí, que as gerações de direitos são mais continuação do que gerações sucessivas. Há uma geração contínua de direitos, crescendo no curso da história em defesa e promoção do ser humano.

Essa necessidade de permanente atualização dos direitos humanos

fundamentais consubstancia-se no surgimento de uma nova classe de direitos

a qual se denomina direitos de terceira dimensão.

Não se pode esquecer de que o delineamento desses direitos como

humanos fundamentais de terceira dimensão é feito a partir da tônica do

princípio da dignidade da pessoa humana.

134 Op. cit. p. 28.

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100

Todos os direitos humanos fundamentais têm uma matriz em comum,

qual seja, o princípio da dignidade da pessoa humana.

Isso porque todos os direitos humanos de quaisquer dimensões ou

gerações somente são realizados ou concretizados quando se tem em mira a

satisfação do princípio da dignidade da pessoa humana.

Ricardo Hasson Sayeg e Wagner Balera reforçam essa assertiva ao

sustentarem que a democracia e a paz universais somente serão alcançadas

quando os homens ostentarem dignidade manifestada através do cumprimento

de todos os seus direitos.135

De qualquer modo, a paz surge no nosso ordenamento jurídico como um

princípio (inciso IV do art. 4.º da CF). Ainda que não haja um desenvolvimento

mais explícito do tema, adota-se o posicionamento de que se trata de um

direito de terceira dimensão ou geração.

Acrescente-se que os direitos de terceira dimensão consubstanciam a

fraternidade, completando, assim, a tríade francesa do liberalismo político:

liberdade, igualdade e fraternidade.

Para Paulo Bonavides136, existe ainda uma quarta dimensão ou geração

de direitos que é resultado da globalização dos direitos. Ele classifica como

direitos de quarta geração os direitos à democracia participativa, à informação

e ao pluralismo.

Esses direitos despontam para uma globalização política.

O nobre constitucionalista cearense explica que a globalização dos

direitos fundamentais equivale a universalizá-los no campo institucional.

135 Op. cit. 119. 136 Op. cit. p. 571.

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Os direitos de quarta dimensão representam a máxima universalização

dos direitos humanos fundamentais e são capazes de viabilizar o ideal de uma

sociedade universal absolutamente democrática. Como suporte a esse ideal de

uma sociedade aberta fundada na democracia universal despontam o

pluralismo e a informação. Somente em meio ao pluralismo e o amplo acesso à

informação é que se pode construir uma sociedade universal democrática.

3.2 – Eficácia dos direitos humanos fundamentais:

A temática dos direitos humanos ganhou importância fundamental não

só na seara acadêmica, mas, especialmente, no campo político. Em meio a

tantas incertezas no mundo moderno, como a crise de alimentos, a crise

econômica mundial iniciada em 2008, os graves conflitos armados na África, os

direitos humanos fundamentais são um alento.

Como já foi visto, somente após a Segunda Guerra Mundial é que os

direitos humanos fundamentais transcenderam a esfera nacional, tornando-se

uma prioridade internacional.

Aliás, como bem pontua Flávia Piovesan, ao final da Segunda Guerra

Mundial, surge uma grande crítica à ideia de um ordenamento jurídico

indiferente a valores éticos cujo único compromisso seja o positivismo formal.

Pode-se dizer que os direitos humanos são frutos de valores comungados pela

grande maioria das nações. Após os horrores do nazismo, o direito reencontrou

a ética.137

A Declaração Universal dos Direitos do Homem inaugurou uma nova era

na qual as nações assumiram o compromisso de fazer valer aqueles direitos

mínimos essenciais a uma existência digna.

137 Direito ao trabalho e a proteção dos direitos sociais nos planos internacional e constitucional. In: PIOVESAN, Flávia. CARVALHO, Luciana Paula Vaz de. (coord). Direitos humanos e direito do trabalho. São Paulo: Atlas, 2010. p. 6.

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Todavia não se pode perder de vista que a mera enunciação

internacional desses direitos não é garantia alguma de respeito a eles. É

necessário que esses direitos sejam de fato observados em todos os cantos do

globo.

Por isso a positivação interna desses direitos nas Constituições de cada

país fornece um instrumento jurídico essencial para a efetividade deles.

Aliás, o desafio maior não é mais enunciar quais direitos são tidos como

fundamentais, nem discutir sua natureza ou fundamento, mas sim investigar

qual o melhor meio para garantir sua efetividade.

Essa questão é proposta pelo jurista italiano Norberto Bobbio138:

(...) o problema grave de nosso tempo, com relação aos direitos do homem, não era mais o de fundamentá-los, e sim o de protegê-los. (...) Com efeito, o problema que temos diante de nós não é filosófico, mas jurídico e, num sentido mais amplo, político. Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados.

Sem dúvida, a ampla constitucionalização e a internacionalização dos

direitos humanos fundamentais confere-lhe primazia sobre as demais normas,

mas nem sempre há a necessária força vinculante.

Deve-se, inicialmente, ter em vista que os direitos humanos

fundamentais gozam de aceitação universal ao menos formalmente.

A Declaração Universal dos Direitos do Homem bem representa um

conjunto de valores expresso por meio de norma internacional cuja validade

conta com o consenso geral.

138 Op. cit. p. 25.

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Nessa linha, embora a totalidade dos direitos humanos não estejam

expressamente consignados nos ordenamentos jurídicos internos e

internacionais até porque os direitos humanos independem de positivação (são

inatos ao homem) a sua concretização faz-se através de uma releitura de todo

o ordenamento jurídico pelo prisma da proeminência do princípio da dignidade

da pessoa humana (artigo 1.º, III, da Constituição Federal).

Colhe-se mais uma vez a preciosa lição de Ricardo Hasson Sayeg e

Wagner Balera139:

É de rigor admitir-se que os direitos humanos, como direitos subjetivos naturais, estão revestidos de pretensão garantida pela ordem jurídica, sendo concretizáveis. Tal pretensão consiste no espontâneo e objetivo exercício da dignidade da pessoa humana; os direitos humanos não são, pois, somente ideais ou valores, e muito menos princípios programáticos destituídos de qualquer normatividade.

Com efeito, a positivação dos direitos humanos não é requisito

indispensável à sua eficácia.

Como a dignidade da pessoa humana é o núcleo permanente dos

direitos humanos e considerando que os direitos humanos são preexistentes

aos direitos fundamentais, tem-se que, embora não positivados na ordem

interna, os direitos humanos são revelados através da aplicação no caso

concreto dos direitos fundamentais. Os direitos humanos conformam toda a

ordem jurídica, na medida em que a dignidade da pessoa humana funciona

como um princípio vetor, orientando tanto o legislador na elaboração da norma

quanto o julgador na aplicação dela.

Na feliz expressão de Ricardo Hasson Sayeg e Wagner Balera, os

direitos humanos estão imbricados no intratexto dos direitos fundamentais

positivados.140

139 Op. cit. p. 118.

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104

Mesmo diante de um norma aparentemente distante e desconexa com o

tema dos direitos humanos há, na sua essência, uma carga de normatividade

humanista, pois está inserida num ordenamento jurídico regido pelo princípio

da dignidade da pessoa humana.

Nessa senda, cabe ao operador do direito considerar que o escopo

teleológico da norma sempre se destina à concretização dos direitos humanos.

Em outras palavras, o operador do direito deve sempre, diante de duas

interpretações possíveis, optar por aquela que potencialize, alcance e satisfaça

o princípio da dignidade da pessoa humana:

A Lei Universal da Fraternidade exige que na solução de qualquer caso sejam concretizados os direitos humanos tendo em vista a dignidade da pessoa humana. Qualquer outro desfecho imporá o vácuo jurídico, o nada absoluto, sem a energia clara que é essência elementar da matéria e, portanto, inexistente.141

Aliás, o nosso ordenamento jurídico reconhece a preponderância e

orientação dos direitos humanos, conforme § 3.º do artigo 5.º da Constituição

Federal e artigo 7.º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

Todavia é importante destacar que a eficácia da norma definidora de

direito fundamental depende necessariamente da técnica de positivação.142

A lição de José Joaquim Gomes Canotilho é emblemática sobre as

formas de positivação dos direitos fundamentais, embora refira-se apenas aos

direitos fundamentais sociais.

140 Op. cit. p. 120. 141 Ibid., p. 121. 142 SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit. p. 260.

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O renomado professor português aponta quatro formas de positivação

dos direitos fundamentais sociais, os quais merecem citação neste trabalho

diante do paralelismo que pode ser feito com o direito pátrio143.

As normas programáticas estabelecem fins do Estado. Por meio delas,

obtém-se o fundamento constitucional para a regulamentação das prestações

sociais, além de auxiliarem na forma de princípios conformadores no momento

da concretização dos direitos sociais.

As normas de organização no campo dos direitos fundamentais sociais

atribuem a certos órgãos a competência para a consecução dos objetivos

definidos. Define a qual órgão cabe a regulamentação dos direitos sociais.

Desde já, se chama a atenção para uma dos problemas mais evidentes

acerca da eficácia dos direitos.

A falta de sanção.

Tanto as normas programáticas quanto as normas de organização

carecem de maior carga de eficácia, pois, ao seu eventual descumprimento,

não é cominada sanção jurídica.

À falta de concretização das medidas impostas pelas normas

programáticas, assim como a inanição do órgão competente definido pelas

normas de organização não gera qualquer sanção jurídica.

Tal circunstância retira ou, pelo menos, diminui, drasticamente, a carga

de eficácia dessas normas, as quais, por assim dizer, permanecem numa

espécie de limbo de normas abstratas.

Não é exagero dizer que esses preceitos constitucionais transformam-se

em meros enunciados ou promessas solenes.

143 Op. cit. pp. 474-476.

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A terceira forma de positivação dos direitos sociais é apresentada

através das garantias institucionais. Dirige-se ao legislador, obrigando-o a

respeitar e proteger o instituto albergado pela Constituição. São exemplos as

medidas de proteção à família, à saúde pública etc.

Por fim, os direitos subjetivos são a última forma de positivação dos

direitos sociais.

As normas atuam de duas formas: a) impõem para o legislador a

obrigação de atuar positivamente, criando condições materiais para o exercício

desse direito; b) fornecimento de prestações aos cidadãos.

Embora se reconheça um extenso rol de direitos na Constituição Federal

e nas inúmeras declarações e tratados internacionais, a eficácia desses diretos

é o grande desafio.

A positivação na órbita interna desses direitos contribui para a eficácia

deles.

Ainda assim, a técnica de positivação ou natureza da norma definidora

do direito influi decisivamente na eficácia jurídica.144

Os direitos humanos fundamentais podem ser divididos em dois grandes

grupos: a) os direitos de defesa que incluem os direitos de liberdade,

igualdade, as garantias e a parcela dos direitos sociais que englobam as

liberdades sociais; b) os direitos a prestações que envolvem os direitos à

proteção e à participação na organização e procedimento e os direitos sociais

de natureza prestacional.145

As normas que definem direitos de defesa, por exigirem uma abstenção

do Estado, normalmente têm maior eficácia, sendo sua aplicação imediata. Já

144 SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit. p. 260. 145 Ibid., p. 260.

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as normas de conteúdo prestacional exigem um comportamento ativo do

Estado, o que nem sempre pode gerar efeitos imediatos.

Questão essencial para a elucidação do tema da eficácia dos direitos

humanos fundamentais é a disciplina do § 1.º do art. 5.º da CF.

A literalidade da norma aponta para a aplicabilidade imediata de todas

as normas definidoras dos direitos humanos fundamentais.

Todavia a questão suscita séria discussão na doutrina.

Manoel Gonçalves Ferreira Filho defende que a eficácia está contida nos

termos da lei.146

Essa é uma posição mais restritiva.

Já José Afonso da Silva pondera que, em geral, as normas definidoras

de direitos humanos fundamentais são de aplicabilidade imediata, excetuando-

se a hipótese em que essas mesmas normas mencionem uma lei

integradora.147

Alexandre de Moraes trilha o mesmo caminho ao asseverar que, em

regra, as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais têm

aplicabilidade imediata. Mas há normas cuja aplicabilidade não é imediata, já

que a própria Constituição faz depender de legislação ulterior a aplicabilidade

de algumas normas definidoras de direitos sociais. Acrescenta que a

Constituição prevê também alguns mecanismos para tornar eficiente a

incidência dos direitos humanos fundamentais, tais como, o mandado de

injunção e a iniciativa popular.148

146 A aplicação imediata das normas definidoras de direitos e garantias fundamentais, in: Revista da Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo (RPGESP) n.º 29 (1988). p. 35 e ss. apud SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit. p. 264. 147 Op. cit. p. 184. 148 Op. cit. p. 27.

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Celso Bastos, por sua vez, defende como regra geral a aplicabilidade

imediata dos direitos humanos fundamentais, admitindo, todavia, duas

exceções: a) quando a Constituição remete ao legislador a elaboração de

norma implementadora do direito fundamental, o que se dá na hipótese em que

no texto constitucional consta o exercício na forma da lei; b) na hipótese em

que a norma definidora do direito fundamental não apresenta os elementos

necessários e indispensáveis para a sua aplicabilidade imediata.

Em posição mais extrema, situa-se o pensamento do Ministro do

Supremo Tribunal Federal Eros Roberto Grau que defende a eficácia imediata

mesmo das normas programáticas na nossa Constituição.149

Ainda que pareça atrativo o pensamento de Eros Grau, o fato é que

esses mecanismos processuais não são suficientes para atribuir eficácia plena

aos direitos fundamentais contidos em normas programáticas.

Embora José Joaquim Gomes Canotilho defenda a inexistência de

normas programáticas, ele admite a existência normas-fim, normas-tarefa,

normas-programa que estabelecem diretrizes para legislador e para a

administração.150

Muitas dessas normas são abertas e indeterminadas e assim o são

porque buscam construir um Estado Social de Direito151.

Nesse caso, a intervenção do legislador é fundamental, pois lhe cabe

ponderar através de um diálogo franco com os demais interlocutores da

sociedade quais são as prioridades a serem atendidas diante da limitação e

149 Cf. Eros Roberto Grau. A ordem econômica na Constituição de 1988 (interpretação e crítica). 12.ª ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2007. pp. 326-327. Sustenta o autor que o § 1.º do art. 5.º da CF preceitua a aplicação imediata dos direitos e garantias fundamentais, as quais devem ser cumpridas imediatamente pelos particulares, independentemente de produção legislativa ou administrativa. Salienta, ainda, que a CF no inciso LXXI do art. 5.º e no § 2.º do art. 103 estabelece o mandado de injunção e a ação direta de inconstitucionalidade por omissão, respectivamente. Tais remédios jurídicos demonstram, segundo o autor, o repúdio ao entendimento de que as normas programáticas não são dotadas de eficácia. 150 Op. cit. p. 1176. 151 Cf. Paulo Bonavides. Op. cit. pp. 225-237. O autor explica a evolução das normas programáticas e seu papel na transição do Estado Liberal para o Estado Social.

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escassez dos recursos públicos. Sabe-se que as demandas sociais sempre

são superiores às disponibilidades orçamentárias, o que exige racionalização e

definição das prioridades. O parlamento é a seara adequada para essa

avaliação.

Isso significa que algumas normas de cunho prestacional não têm a

mesma densidade normativa apresentada pelas normas que expressam

direitos de defesa. Estas últimas gozam de eficácia imediata, ao passo que as

primeiras são concretizáveis a partir da intervenção legislativa.

É certo, porém, que o Poder Judiciário, quando acionado, pode viabilizar

a fruição dos direitos humanos fundamentais cuja eficácia ainda não é plena.

Todavia essa intervenção não é absoluta e sofre restrições diante dos

limites impostos pela reserva do financeiramente possível, falta de legitimação

dos tribunais para implementação de políticas públicas e eventual colisão de

direitos que possa implicar na sobreposição de uma direito sobre outro

igualmente fundamental.152

Conclui-se, com supedâneo na lição de Ingo Wolfgang Sarlet, que a

regra do § 1.º do art. 5.º da CF é uma espécie de mandado de otimização das

normas de direitos humanos fundamentais. Diante do caso concreto deve-se

optar pela interpretação da norma que assegure a máxima eficácia do direito

humano fundamental sempre que possível.153

Esse posicionamento distancia-se dos extremos que negam a

aplicabilidade imediata das normas definidoras de direitos humanos

fundamentais ou que admitem a aplicabilidade imediata em todos os casos.

Tem a virtude de viabilizar a máxima eficácia das normas definidoras de

direitos fundamentais sem se descuidar das hipóteses em que o legislador

dispôs expressamente sobre a necessidade de ato concretizador do legislador

infraconstitucional ou do Poder Executivo.

152 SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit. pp. 269-270. 153 Ibid., pp. 270-271.

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Finalmente se observa que, na atualidade, já não mais se admite a

existência de normas definidoras de direitos humanos fundamentais totalmente

desprovidas da capacidade de operar efeitos, mesmo aquelas de natureza

programática. Toda norma definidora de direitos humanos fundamentais é apta

a gerar efeitos em face do mandamento contido no § 1.º do art. 5.º da CF, o

que varia é apenas a carga de eficácia.

3.3 – Aplicação horizontal dos direitos humanos fundamentais no contrato de trabalho:

A Constituição Federal do Brasil não prevê expressamente a vinculação

dos entes públicos e particulares aos direitos humanos fundamentais.

Todavia já foi visto que o § 1.º do art. 5.º da CF é uma norma-princípio

cuja principal finalidade é maximizar a eficácia dos direitos humanos

fundamentais.

Também já foi analisado que os direitos fundamentais, originariamente,

surgiram como forma de limitação da ação estatal na esfera de direitos do

indivíduo, ou seja, para a defesa das liberdades individuais. Isso significa que

os direitos humanos fundamentais eram originariamente oponíveis ao Estado a

fim de proteger o indivíduo.

Por isso proclama-se seguramente a eficácia dos direitos fundamentais

na relação entre o particular e o Estado – mais conhecida como eficácia vertical

dos direitos fundamentais.

No entanto a ofensa aos direitos fundamentais não é uma exclusividade

do Estado. Se no passado os direitos fundamentais serviam exclusivamente

como uma espécie de escudo do particular frente à agressão proveniente do

Estado, já que ele oferecia maior risco à liberdade do indivíduo, com o passar

do tempo, o entrelaçamento de relações privadas que se tornaram mais

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complexas vislumbra-se atualmente nos particulares potenciais agressores de

direitos fundamentais.154

Com isso, surge a discussão acerca da eficácia dos direitos humanos

fundamentais na relação entre os particulares.

Renato Rua de Almeida cita um caso examinado pelo Tribunal Federal

Alemão em 1954 sobre igualdade salarial entre mulheres e homens que

exerciam a mesma função. O processo foi relatado por Hans Carl Nipperdey,

que adotou a drittwirkung, ou seja, a vinculação dos particulares aos direitos

fundamentais.155

Simone B. de Martins Mello, em magnífico artigo, explica que doutrina e

jurisprudência alemãs trataram pioneiramente da eficácia dos direitos

fundamentais nas relações horizontais a partir do caso Luth (de 15 de janeiro

de 1958).156

O caso Luth é considerado um marco histórico não só no

constitucionalismo alemão, mas também no estudo da eficácia dos direitos

humanos fundamentais no mundo ocidental.

George Marmelstein Lima157 explica que a discussão jurídica partiu de

uma demanda envolvendo Eric Luth, um judeu que presidia o Clube de

Imprensa; e Veit Harlan, alemão e produtor de cinema que havia lançado o

filme “Amada Imortal”. Ocorre que Veith Harlan havia sido, no período da

154 BORBA, Joselita Nepomuceno. Direitos fundamentais. Eficácia horizontal direta nas relações sociais entre capital e trabalho. Risco do trabalho e obrigação de reparar os danos deles decorrentes. In: ALMEIDA, Renato Rua de. (coord.). CALVO, Adriana. ROCHA, Andrea Presas (org.). Direitos fundamentais aplicados ao direito do trabalho. São Paulo: LTr, 2010. p. 61. 155 Eficácia dos direitos fundamentais nas relações de trabalho. In: ALMEIDA, Renato Rua de. (coord.). CALVO, Adriana. ROCHA, Andrea Presas (org.). Direitos fundamentais aplicados ao direito do trabalho. São Paulo: LTr, 2010. pp. 145-146. 156 A eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações de trabalho. Revista LTr Vol. 75, n.º 06, junho de 2011. pp. 690-691. 157 In: 50 anos do Caso Luth: o caos mais importante da história do constitucionalismo alemão pós-guerra. Disponível em: http://direitosfundamentais.net/2008/05/13/50-anos-do-caso-luth-o-caso-mais-importante-da-historia-do-constitucionalismo-alemao-pos-guerra/. Acesso em 17/10/2011.

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Segunda Guerra Mundial o principal responsável pelos filmes de divulgação

das ideias nazistas, especialmente o filme “Jud Sub” (1941), considerado uma

das mais odiosas representações dos judeus no cinema. Antes do lançamento

do filme “Amada Imortal”, vários judeus liderados por Eric Luth decidiram iniciar

uma campanha de boicote, conclamando o povo a não assistir ao filme na

“Semana do Filme Alemão”, ainda que não houvesse qualquer menção ao

nazismo ou antisemitismo no referido filme.

Em razão do boicote, o filme foi um fracasso.

Assim, Veit Harlan, em conjunto com os empresários que haviam

investido no filme, ingressaram com uma ação cobrando Eric Luth pelos

prejuízos. Nessa ação, alegaram que Eric Luth havia violado o Código Civil

alemão.

A pretensão obteve êxito em todas as instâncias até que Eric Luth

decidiu recorrer para a Corte Constitucional Alemã, sustentando que a Lei

Fundamental alemã lhe assegurava a liberdade de expressão e que não

poderia ser punido por exercer um direito.

A partir desse caso, a Corte Constitucional alemã delineou algumas

teorias:

a) dimensão objetiva dos direitos fundamentais;

b) a eficácia horizontal dos direitos fundamentais e

c) a necessidade de ponderação, em caso de colisão de direitos.

Ainda na doutrina e legislação estrangeira, observa-se que o art. 18/1 da

Constituição Portuguesa admite expressamente a vinculação das entidades

públicas e privadas aos direitos fundamentais.

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José Joaquim Gomes Canotilho158 explica que existem duas teorias

acerca da “eficácia externa” ou da “eficácia em relação a terceiros”, aqui, no

Brasil denominada de eficácia horizontal dos direitos fundamentais: (1) teoria

da eficácia direta ou imediata (unmittelbare, direkte Drittwirkung); (2) teoria da

eficácia indireta ou mediata (mittelbare, indirekte Drittwirkung).

De acordo com a primeira teoria – a teoria da eficácia directa -, os direitos, liberdades e garantias e direitos de natureza análoga aplicam-se obrigatória e directamente no comércio jurídico entre entidades privadas (individuais ou colectivas). Teriam, pois, uma eficácia absoluta, podendo os indivíduos, semqualquer necessidade de mediação concretizadora dos poderes públicos, fazer apelo aos direitos, liberdades e garantias. Para a teoria referida em segundo lugar – a teoria da eficácia indirecta -, os direitos, liberdades e garantias teriam uma eficácia indirecta nas relações privadas, pois a sua vinculatividade exercer-se-ia prima facie sobre o legislador, que seria obrigado a conformar as referidas relações obedecendo aos princípios materiais positivados nas normas de direito, liberdades e garantias. (negritos e itálicos no original)

Essas duas correntes da teoria da eficácia horizontal dos direitos

humanos fundamentais decorrem da doutrina alemã que discorreu

profundamente sobre o tema.

Mas há, ainda, uma terceira corrente que nega a eficácia dos direitos

humanos fundamentais entre particulares. Essa corrente desenvolveu-se nos

Estados Unidos da América a partir da State Action Doctrine, segundo a qual

os direitos humanos fundamentais são primariamente direitos de defesa contra

o Estado, não vinculando particulares, embora a proibição da escravatura

contida no Civil Rights Act de 1875 tenha eficácia entre particulares.159

A doutrina brasileira admite a eficácia horizontal dos direitos

fundamentais, existindo apenas uma certa divergência acerca da medida dessa

eficácia, mediata ou imediata.

158 Op. cit. pp. 1286-1287. 159 Ibid., p. 1290.

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Todavia há uma certa tendência de superar essa dicotomia adotando

soluções diferenciadas para cada caso concreto.

Desse modo, a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas

só pode ser analisada à luz do caso concreto.

Ingo Wolfgang Sarlet160 explica as hipótese de edficácia imediata e

mediata:

a) eficácia seria mediata na hipótese de concretização de determinadas

normas de direitos fundamentais por intermédio do legislador ordinário que

edita normas de direito privado e aplica preceitos relativos aos direitos

fundamentais;

b) a eficácia também será mediata quando o legislador estabeleceu cláusulas

gerais e conceitos indeterminados que devem ser preenchidos pelos valores

contidos nos dirietos fundamentais;

c) a eficácia será imediata quando inexistir lei ordinária concretizadora, não

houver cláusulas gerais ou conceitos indetermináveis aplicáveis ao caso.

No âmbito das relações privadas também existe a possibilidade de

violação dos direitos humanos fundamentais.

Apesar do silêncio do poder constituinte originário brasileiro, os direitos

fundamentais aplicam-se às relações privadas em vista do princípio da máxima

efetividade das normas constitucionais.

Isso porque, na interpretação das regras constitucionais, deve-se aplicar

o princípio da máxima efetividade segundo o qual a uma norma constitucional

deve ser atribuído o sentido que lhe dê maior eficácia.161

160 Op. cit. p. 380. 161 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. cit. p. 1224.

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A partir de uma interpretação que assegure a máxima eficácia do § 1.º

do art. 5.º da CF, conclui-se que os direitos humanos fundamentais também se

aplicam nas relações privadas.

Até porque não é razoável pressupor que uma pessoa, ao estabelecer

relações privadas, abdique de direitos que lhe são inatos.

Ademais, negar a eficácia horizontal dos direitos fundamentais seria o

mesmo que negar a força vinculante da Constituição Federal nas relações

privadas e sua supremacia na pirâmide normativa.

Reconhece-se a autonomia privada da vontade nas relações privadas,

porém admite-se ao mesmo tempo que essa autonomia não torna os

particulares imunes aos limites e restrições impostos como salvaguardas

constitucionais.

Como bem acentuam Rodrigo Fortunato e Roland Hasson, a relação

capital-trabalho é um campo fértil para violações de todas as matizes em vista

do acentuado desequilíbrio entre as partes. Num polo da relação contratual,

figura o empregador, o qual detém os meios de produção e com base no seu

poder de direção, fiscalização e punição dirige a prestação de serviços. No

outro polo figura o empregado que depende do trabalho para assegurar sua

sobrevivência. Nesse contexto, o empregado muitas vezes sujeita-se a toda

sorte de abusos para que não seja privado da oferta de trabalho. Há, ainda, a

tradição patrimonialista do direito privado que gera reflexos no direito do

trabalho, fazendo com que o empregado, muitas vezes, seja identificado como

mera mercadoria.162

A forte concentração de renda acentua a assimetria na relação entre o

capital e o trabalho, transformando a mão-de-obra numa simples peça na

engrenagem de funcionamento do empreendimento econômico.

162 A eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações de trabalho. Revista Trabalhista Direito e Processo. Ano 7. N.º 25. p. 140.

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116

A constitucionalização do direito privado motivou uma nova interpretação

das leis exigindo que as normas do ramo privado fossem interpretadas à luz da

Constituição.

Passou-se a admitir uma comunicabilidade entre a Constituição Federal

e as demais leis, em especial o Código Civil.

Aliás, o próprio Código Civil de 2002 representou um grande avanço,

uma vez que conferiu ao operador do direito através da cláusula geral o poder

de decidir fundado em princípios vetores sobre situações jurídicas:

O Código Civil de 2002 perfilou diversos dispositivos legais classificados doutrinariamente como cláusulas gerais, tais como: a intenção sobrepujando a forma nos negócios jurídicos, como destaca o art. 112; a boa-fé dos negócios jurídicos, disposta no art. 113; o abuso de direito a caracterizar o ato ilícito, estampado no art. 187; o art. 421 que trata da função social do contrato; o art. 422 e a boa-fé objetiva nele perfilada; o art. 423 e a interpretação favorável ao aderente em caso de ambiguidade de conteúdo; art. 884 e o enriquecimento sem causa, dentre outros. (...) cA comunicação entre o Código Civil e a Carta Maior e a importância das chamadas cláusulas gerais, notadamente a boa-fé objetiva, desse novo modelo civilista, são aspectos primordiais à justificação do modelo de eficácia entre particulares dos direitos fundamentais, especialmente nas relações laborais.163

No âmbito da relação de trabalho, o operador do direito deve avaliar a

situação concreto e a disciplina legal preexistente sob a ótica do princípio da

dignidade da pessoa humana, da valorização do trabalho e da função social

dos contratos. Ao mesmo tempo, deve também respeitar o espaço de auto-

163 COSTA, Marcelo Freire Sampaio. Premissas acerca da eficácia horizontal de direitos fundamentais nas relações laborais. In: ALMEIDA, Renato Rua de. (coord.). CALVO, Adriana. ROCHA, Andrea Presas (org.). Direitos fundamentais aplicados ao direito do trabalho. São Paulo: LTr, 2010. pp. 108-109.

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117

regulação que é inerente às relações privadas, compatibilizando-o com os

preceitos fundamentais.164

Por isso acolhe-se a lição de J.J. Gomes Canotilho de que cada caso

concreto comporta uma solução acerca da eficácia dos direitos humanos

fundamentais, não sendo possível adotar os extremos da eficácia mediata ou

imediata.

Caso emblemático, que bem revela a eficácia horizontal dos direitos

fundamentais, foi enfrentado pelo Tribunal Regional do Trabalho da 2.ª Região

no julgamento do Dissídio Coletivo de Greve n.º 20281200800002001165, no

qual foi destacado que a dispensa em massa de trabalhadores sem obedecer

procedimento de negociação coletiva ofende os direitos à informação e à

negociação coletiva, além de causar forte impacto social:

EMENTA: DESPEDIDA EM MASSA. NULIDADE. NECESSIDADE DE NEGOCIAÇÃO COLETIVA. GREVE DECLARADA LEGAL E NÃO ABUSIVA. Da greve. Legalidade. 1.A greve é maneira legítima de resistência às demissões unilaterais em massa, vocacionadas à exigir o direito de informação da causa do ato demissivo massivo e o direito de negociação coletivo. Aplicável no caso os princípios da solução pacifica das controvérsias, preâmbulo da CF; bem como, art. 5º, inciso XIV, art. 7º, XXVI, art. 8º, III e VI, CF, e Recomendação 163 da OIT, diante das demissões feitas de inopino,sem buscar soluções conjuntas e negociadas com Sindicato. Da despedida em massa. Nulidade. Necessidade de procedimentalização. 1. No ordenamento jurídico nacional a despedida individual é regida pelo Direito Individual do Trabalho, e assim, comporta a denúncia vazia, ou seja, a empresa não está obrigada a motivar e justificar a dispensa, basta dispensar, homologar a rescisão e pagar as verbas rescisórias. 2. Quanto à despedida coletiva é fato coletivo regido por princípios e regras do Direito Coletivo do Trabalho, material e processual. 3. O direito coletivo do trabalho vem vocacionado por normas de ordem pública relativa com regras de procedimentalização. Assim, a despedida coletiva, não é proibida, mas está sujeita ao

164 ROMITA, Arion Sayão. Op. cit. pp. 179-180. 165 Anexo I.

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procedimento de negociação coletiva. Portanto, deve ser justificada, apoiada em motivos comprovados, de natureza técnica e econômicos e ainda, deve ser bilateral, precedida de negociação coletiva com o Sindicato, mediante adoção de critérios objetivos. 4.É o que se extrai da interpretação sistemática da Carta Federal e da aplicação das Convenções Internacionais da OIT ratificadas pelo Brasil e dos princípios Internacionais constante de Tratados e Convencões Internacionais, que embora não ratificados, têm força principiológica, máxime nas hipóteses em que o Brasil participa como membro do organismo internacional como é o caso da OIT. Aplicável na solução da lide coletiva os princípios: da solução pacífica das controvérsias previsto no preambulo da Carta Federal; da dignidade da pessoa humana e do valor social do trabalho, e da função social da empresa, encravados nos artigos 1º, III e IV e 170 "caput" e inciso III da CF; da democracia na relação trabalho capital e da negociação coletiva para solução dos conflitos coletivos, conforme previsão dos arts. 7º, XXVI, 8º, III e VI e artigos 10 e 11 da CF bem como previsão nas Convenções Internacionais da OIT, ratificadas pelo Brasil nºs: 98, 135 e 154. Aplicável ainda o princípio do direito à informação previsto na Recomendação 163,da OIT, e no artigo 5º, XIV da CF. 5. Nesse passo deve ser declarada nula a dispensa em massa, devendo a empresa observar o procedimento de negociação coletiva, com medidas progressivas de dispensa e fundado em critérios objetivos e de menor impacto social, quais sejam: 1º- abertura de PLANO DE DEMISSÃO VOLUNTÁRIA; 2º- remanejamento de empregados para as outras plantas do grupo econômico; 3º- redução de jornada e de salário; 4º- suspensão do contrato de trabalho com capacitação e requalificação profissional na forma da lei; 5º- e por último mediante negociação, caso inevitável, que a despedida dos remanescentes seja distribuída no tempo, de modo minimizar os impactos sociais, devendo atingir preferencialmente os trabalhadores em vias de aposentação e os que detém menores encargos familiares. (Ac. Seção Especializada em Dissídios Coletivos do TRT da 2ª Região. Dissídio Coletivo de Greve nº 20281200800002001. Rel. Des. Ivani Contini Bramante. DJ 15/01/2009)

Renato Rua de Almeida acrescenta que a dispensa em massa sem a

prévia informação e negociação implica ilicitude por abuso de direito e por

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violação da boa-fé objetiva e seus deveres anexos previstos nos arts. 187 e

422, ambos do Código Civil.166

Na seara do direito individual do trabalho, o Tribunal Regional do

Trabalho da 2.ª Região também enfrentou caso em que se aplicou a tese da

eficácia horizontal dos direitos fundamentais através do julgamento do

processo n.º 00141009420105020044167. A demanda versava sobre dispensa

discriminatória:

EMENTA: RECURSO ORDINÁRIO. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. VEDAÇÃO A DISPENSA DISCRIMINATÓRIA. EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS. O postulado da dignidade da pessoa humana alçado pelo inciso III do art. 1º da CF à condição de princípio-guia do sistema jurídico fornece ao órgão julgador uma diretriz inafastável na aplicação e concretização de qualquer norma jurídica positivada. É por isso que o direito de propriedade, o direito potestativo de rescisão contratual e a própria autonomia privada da vontade devem ser interpretados e aplicados no caso concreto à luz do princípio da dignidade da pessoa humana. Além do mencionado princípio, o valor “trabalho” e “livre iniciativa” foram acolhidos pela nova ordem jurídica democrática como elementos fundamentais para a formatação jurídica do estado e para a promoção social do homem. Fiel a esses princípios o constituinte elegeu certos direitos como direitos fundantes de uma sociedade, denominando-os como direitos fundamentais. Dentre os direitos fundamentais há o da não-discriminação previsto no caput e inciso I do art. 5º da CF. É bem verdade que o parâmetro antidiscriminatório é encontrado em diversos dispositivos do texto constitucional como no inciso XXX e XXXI do art. 7º; inciso XLII do art. 5º; inciso IV do art. 3º, todos da CF. Contudo, o desafio do mundo moderno, o que inclui o mundo do trabalho, já não é o reconhecimento desses direitos fundantes, mas sim a efetividade dos mesmos. É incontroversa a eficácia dos direitos fundamentais na relação entre o particular e o Estado – mais conhecida como eficácia vertical dos direitos fundamentais – já que os direitos fundamentais

166 Op. cit. pp. 147-148. 167 Anexo II.

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originariamente surgiram como forma de limitação da ação estatal na esfera de direitos do indivíduo, ou seja, para a defesa das liberdades individuais. Já nas relaçoes privada (ou horizontais) a doutrina e a jurisprudência brasileiras sob forte influência do direito constitucional alemão e português passaram a reconhecer os efeitos dos direitos fundamentais nas relações entre particulares. Desse modo, é inegável que a proibição à discriminação não se dirige apenas ao Estado mas também ao particular nas relações privadas. Em atendimento ao manancial de direitos e princípios que resguardam a dignidade da pessoa humana, rejeitando a discriminação manifestados no inciso III e IV do art. 1º; incisos I, III e IV do art. 3º; caput e incisos I e XLI do art. 5º, todos da CF, além da função social da propriedade privada e da busca do pleno emprego expressos nos incisos III e VIII do art. 170 da CF, respectivamente, e da função social do contrato e da boa-fé contratual indicados nos artigos 421 e 422 do Código Civil, respectivamente e, finalmente, em obediência às Convenções 111 e 117 e à Declaração sobre os Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho, de 1998, todas da OIT, o legislador infraconstitucional editou a Lei nº 9.029, de 13 de abril de 1995 na qual se veda expressamente a adoção de prática discriminatória para acesso ao emprego ou sua manutenção. Com efeito, o legislador infraconstitucional albergou expressamente um direito fundamental a ser aplicado, inclusive, na relação privada. (Ac. 12ª Turma do TRT da 2ª Região. Processo 00141009420105020044. Re. Des. Marcelo Freire Gonçalves. DJ 14/10/2011)

Nesse caso, adotou-se a tese da eficácia mediata dos direitos humanos

fundamentais no âmbito da relação de trabalho, uma vez que, para a

concretização do direito humano fundamental da não-discriminação

desarrazoada o órgão julgador, pode utilizar-se de um manancial normativo

formado por cláusulas gerais, princípios e, até mesmo, de lei específica (Lei n.º

9.029/1995) que vedam a discriminação no acesso e manutenção do emprego.

Em atendimento à diretriz constitucional que resguarda a dignidade da pessoa

humana, rejeitando a discriminação manifestados no inciso III e IV do art. 1º;

incisos I, III e IV do art. 3.º; caput e incisos I e XLI do art. 5.º, todos da CF, além

da função social da propriedade privada e da busca do pleno emprego

expressos nos incisos III e VIII do art. 170 da CF, respectivamente, e da função

social do contrato e da boa-fé contratual indicados nos artigos 421 e 422 do

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Código Civil, respectivamente e, finalmente, em obediência às Convenções 111

e 117 e à Declaração sobre os Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho,

de 1998, todas da OIT, o legislador infraconstitucional editou a Lei n.º 9.029, de

13 de abril de 1995, na qual se veda expressamente a adoção de prática

discriminatória para acesso ao emprego ou sua manutenção.

Como se observa, o direito humano fundamental irradiou seus efeitos

por meio de norma infraconstitucional concretizadora desse direito (da não-

discriminação desarrazoada).

A aplicação da Constituição, nesse caso, deu-se de forma indireta.

3.4 – O papel da jurisdição na eficácia horizontal dos direitos humanos fundamentais:

A eficácia dos direitos humanos fundamentais depende da ação

concreta do Estado, seja através da edição de normas concretizadoras, seja

por meio de atuação interventiva direta.

A violação dos direitos humanos fundamentais reclama ação repressiva

do Estado que se faz através do Poder Judiciário.

Aliás, o acesso à Justiça consubstancia-se num direito humano

fundamental consagrado não só no nosso ordenamento jurídico interno (inciso

XXXV do art. 5.º da CF), mas também em tratados internacionais.

Com efeito, não basta o reconhecimento dos direitos humanos

fundamentais e as prescrições legais que vedam expressamente o particular e

o Estado de ferir-lhes o conteúdo. É necessário viabilizar instrumentos que

coíbam ou, ao menos, reparem o quadro de violação.

Não basta de fato a mera enunciação de direitos, pois, como visto, o

desafio atual já não é o mero reconhecimento de direitos humanos

fundamentais, mas sim a sua eficácia.

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Todavia a positivação desses direitos fornece um manancial normativo

cuja eficácia pode ser reclamada perante o Poder Judiciário.

Como bem assinala Eros Roberto Grau168, a Constituição formal por si

só não tem o condão de superar as distorções sociais da nossa realidade. Mas

pode conduzir ao reforço de uma ideologia jurídica, ao que ousamos

acrescentar que essa ideologia deve estar fundada no primado da dignidade da

pessoa humana.

Por isso não é nenhum exagero afirmar que a eficácia depende em

grande parte da autuação do Poder Judiciário.169

Aliás, a força atrativa e vinculante dos direitos humanos fundamentais

permeia e direciona todos os atos judiciais.170

Essa vinculação ocorre de duas formas: a primeira gera o dever para os

tribunais interpretarem e aplicarem as leis em conformidade com os direitos

humanos fundamentais, o que significa que os direitos humanos fundamentais

funcionam como baliza e referência para a formação do direito; a segunda

forma de vinculação diz respeito ao poder-dever do Poder Judiciário de não

aplicar normas inconstitucionais, ou seja, havendo conflito entre a norma

infraconstitucional e o direito humano fundamental albergado pelo CF, decide-

se em favor deste último.171

168 Op. cit. p. 328. 169 GOULART, Rodrigo Fortunato. HASSON, Roland. Op. cit. p. 142. 170 Cf. J. J. Gomes Canotilho. Op. cit. p. 446. O autor explica que os tribunais, além de estarem a serviço da defesa dos direitos fundamentais, também estão vinculados aos direitos fundamentais por serem órgãos do poder público. 171 Cf. J. J. Gomes Canotilho. Op. cit. pp. 444-445. O autor explica que o princípio da “vinculatividade imediata” das normas garantidoras dos direitos, liberdades e garantias prevalece em relação ao princípio da legalidade nos casos em que este deixou de ancorar-se em normas constitucionais. Cf. COMPARATO, Fábio Konder. Op. cit. p. 18. No mesmo sentido ensina Fábio Konder Comparato qye na hipótese de contradição insuperável entre uma norma constitucional de direitos humanos e uma noprma legal reconhece-se que a norma legal não tem validade pois infringe a Constituição.

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Interessa-nos a primeira forma, já que este trabalho não versa

especificamente sobre o controle de constitucionalidade, tema que mereceria

longo e profundo estudo.

A adequação das normas infraconstitucionais aos direitos humanos

fundamentais exige uma hemenêutica axiológica até porque a adoção da

literalidade da norma como único caminho pode desaguar numa desarmonia do

sistema jurídico.

Além disso, há muito tempo, já está superado o positivismo jurídico em

que o Direito resumia-se à norma abstrata e o juiz a um mero autômato

indiferente que ordena o cumprimento da lei.

Isso significa que o juiz, ao atuar no caso concreto, deve sempre ter em

mira a concretização dos direitos humanos com vistas à satisfação da

dignidade da pessoa humana.

Essa é a lição de Ricardo Sayeg e Wagner Balera172:

A dignidade da pessoa humana é um direito indisponível e, em decorrência, seu titular não tem como perdê-la, comissiva ou omissivamente, ainda que por ato voluntário. Habita no homem todo e em todos os homens um núcleo essencial, que lhe atribui valor por si e se expressa, juridicamente, no feixe indissociável, interdependente e multidimensional dos dirietos humanos que, a rigor, há de ser observado, considerado, respeitado e concretizado pelo juiz. Agir com fraternidade e, se houver miséria, com misericórdia, é justamente reconhecer esse valor que todo homem carrega consigo.

Aliás, a razão de ser do Direito é a proteção da dignidade humana.173

172 Op. cit. p. 127. 173 COMPARATO, Fábio Konder. O papel do juiz na efetivação dos direitos humanos. In: Direitos humanos: visões contemporâneas. Publicação especial em comemoração aos 10 anos de fundação da Associação Juízes para a Democracia. São Paulo: Método Editoração e Editora Ltda, 2001. p. 15.

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Ao juiz cabe não só a concretização dos direitos humanos fundados no

primado do princípio da dignidade da pessoa humana, já que essa é a

finalidade do próprio Direito como ciência jurídica, e também, por meio de sua

decisão, resistir ao pensamento neoliberal que reduz o Direito a uma simples

técnica de organização da vida econômica em proveito da classe

empresarial.174

Na busca da concretização dos direitos humanos fundamentais através

de uma hermenêutica fundada em valores, o juiz dispõe dos princípios cujo

conteúdo normativo é sempre mais abstrato do que o das regras jurídicas. O

emprego dos princípios permite ao órgão julgador adequar a norma positivada

ao caso concreto.

É importante registrar que, no pós-positivismo, foi reconhecida não só a

força normativa dos princípios mas também a condição de base dos sistemas

constitucionais:

A terceira fase, enfim, é a do pós-positivismo, que corresponde aos grandes momentos constituintes das últimas décadas do século XX. As novas Constituições promulgadas acentuam a hegemonia axiológica dos princípios, convertidos em pedestal normativo sobre o qual assenta todo o edifício jurídico dos novos sistemas constitucionais.175

O Professor Paulo Bonavides lembra que o reconhecimento da força

normativa dos princípios decorre da forte crítica dirigida ao positivismo jurídico

a partir de uma reação intelectual de grandes juristas liderados pelo jurista de

Harvard, Ronald Dworkin.176

Fábio Konder Comparato também defende a carga normativa dos

princípios, ressaltando que são normas jurídicas e não simples recomendações

programáticas ou exortações políticas.177

174 Ibid., p. 16. 175 BONAVIDES, Paulo. Op. cit. p. 264. 176 Op. cit. p. 265. 177 Op. cit. p. 22.

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No pós-positivismo ficou superada a dicotomia entre norma e princípio,

já que pelos ensinamentos de Robert Alexy na Alemanha e Ronald Dworkin

nos Estados Unidos da América, a norma foi alçada à categoria de gênero, do

qual são espécies o princípio e a regra.178

Paulo Bonavides, citando o magistério do Professor de Harvard, lembra

que as regras obdecem ao parâmetro de aplicação tudo ou nada (an all or

nothing). Isso significa que ou uma regra se amolda ao caso e, por isso, será

válida para aquela situação, ou não se amolda ao caso simplesmente. Já o

princípio opera no plano do peso ou valor.179

Com isso, numa determinada situação um princípio pode ter um peso ou

relevância menor, mas nada impede que em outro caso aquele mesmo

princípio prevaleça sobre outro. No conflito entre duas normas apenas uma

subsiste. Já com os princípios a prevalência de um sobre o outro ocorre

apenas num caso concreto.

Essas considerações são necessárias para se demonstrar que, por

vezes, na aplicação dos direitos humanos fundamentais, o operador do direito

se vê diante do conflito de regras a até mesmo de princípios. Há muitas vezes

em ambos os polos da lide valores que são tutelados pela ordem jurídica. Esse

conflito depende de uma hermenêutica apoiada por princípios.

A importância dos princípios é cada vez maior, já que as próprias

Constituições modernas adotaram valores que servem como guias tanto para o

legislador como para os órgãos julgadores. No caso da Constituição Federal do

Brasil, há o princípio-guia da dignidade da pessoa humana (inciso III do art.

1.º), valor social do trabalho e da livre iniciativa (inciso IV do art. 1.º),

solidarismo (inciso I do art. 3.º), função social da propriedade privada (inciso III

do art. 170) e da igualdade (caput e inciso I do art. 5.º).

178 BONAVIDES, Paulo. Op. cit. p. 276. 179 Op. cit. pp. 282-283.

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Essa constitucionalização dos princípios revela uma nova fase de

amadurecimento dos mesmos que deixaram de operar apenas no plano

metafísico para se converter em NORMA com categoria e prestígio

constitucional.

Para se ter uma ideia da importância e, até mesmo, da superioridade e

hegemonia dos princípios na pirâmide normativa, cita-se o magistério de Paulo

Bonavides que asseverou que os princípios governam a Constituição.180

Como se observa, os princípios já não mais se limitam a uma função

supletiva. Ostentam carga normativa e fundamentam todo o nosso

ordenamento jurídico.

Nesse passo, os princípios informam todo o ordenamento jurídico por

meio dos valores que veicula, adequam as regras ao caso concreto e integram

as diversas regras aparentemente isoladas formando um conjunto sistêmico.

Tem em suma função de fundamento da ordem jurídica, já que as

Constituições contemporâneas baseiam-se em muitos dos valores veiculados

nos princípios; função orientadora já que auxiliam o magistrado a buscar o

sentido e real alcance da regra, abandonando definitivamente a concepção

positivista na qual o juiz limita-se à literalidade do dispositivo legal; e também a

função supletiva no caso de ausência de lei e de costume que disciplinem o

caso concreto.

A primeira e a segunda função merecem destaque, pois auxiliam o

magistrado na compreensão do alcance e significado das regras pertinentes

aos direitos humanos fundamentais:

É o princípio que, por excelência, preserva o espírito da Constituição. E, tratando-se de interpretar direitos fundamentais, avultam a sua autoridade e prestígio, na medida em que a natureza sistêmica, imanente ao mesmo, pode conduzir, entre distintas possibilidades

180 Op. cit. pp. 288-289.

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interpretativas, à eleição daquela que realmente, estabelecendo uma determinada concordância fática, elimina contradições e afiança a unidade do sistema.181

Como já foi examinado anteriormente, o direito privado fornece conceitos

indeterminados e cláusulas gerais que permitem ao órgão julgador no exame

do caso concreto decidir de acordo com uma nova perspectiva jurídico-objetiva

dos direitos humanos fundamentais.182

Nas relações em que figuram o particular de um lado e o Estado ,do

outro a eficácia dos direitos humanos fundamentais não suscita maiores

controvérsias, pois, repita-se, os direitos humanos fundamentais surgiram

primordialmente como mecanismo de defesa contra o abuso estatal.

Mas as relações privadas oferecem um elemento complicador que se

traduz na autonomia da vontade.

Caso seja transportada para a relação privada a forma de incidência e

eficácia dos direitos fundamentais nas relações de direito público, por certo

haverá o grave risco de mutilação da autonomia da vontade e enorme

insegurança jurídica.

Esse problema já foi diagnosticado por grandes juristas, dentre eles,

Arion Sayão Romita183:

Cumpre aos direitos fundamentais respeitar a autonomia da ordem jurídica privada, reconhecendo-lhe o espaço de auto-regulação e evitando transformar-se em garrote da liberdade do direito privado. Esta limitação ao raio de ação dos direitos fundamentais se fará em obediência ao cânon da unidade da ordem jurídica e com reverência à regra da interpretação do direito privado em conformidade com a Constituição, além da harmonização dos direitos fundamentais com a ordem pública.

181 Ibid., p. 610. 182 SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit. p. 382. 183 Op. cit. pp. 179-180.

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Assim, o magistrado deve valer-se dos princípios a fim de resolver a

aparente incompatibilidade que possa existir entre os direitos humanos

fundamentais e autonomia da vontade, esta última inerente às relações

privadas, ou mesmo entre dois ou mais direitos humanos fundamentais.

Em hipóteses tais, o juiz deve se valer de uma juízo de ponderação (os

alemães chamam de Abwägung), considerando todas as disposições em

questão, além de seus efeitos, a fim de aferir qual dos direitos melhor preserva

o valor dignidade humana.184

Os princípios e as cláusulas gerais atuam como elos de comunicação

entre as leis esparsas, códigos, Constituição, consolidações e tratados

internacionais, viabilizando um diálogo entre essas diversas fontes do Direito,

além de tornar essas mesmas fontes num bloco sistêmico e ordenado com eixo

no princípio da dignidade humana.

Finalmente, o juiz não pode desatender ao imperativo constitucional de

julgar para construir uma sociedade mais livre, justa e solidária, além de

colaborar para reduzir as desigualdades sociais (art. 3.º da CF).185

Nesse quadrante, o magistrado, a partir dos princípios e cláusulas

gerais, deve e pode com sua decisão concretizar os direitos humanos

fundamentais e, com isso, atender aos objetivos fundamentais do Estado

brasileiro.

184 COMPARATO, Fábio Konder. Op. cit. p. 24. 185 Ibid, p. 28.

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CONCLUSÃO

A evolução histórica do trabalho bem exemplifica a evolução das

instituições políticas e das relações sociais.

No período da escravidão, o escravo era tratado como uma propriedade.

Isso significa que o escravo não era titular de direitos e obrigações, mas sim

objeto.

Aristóteles concebia o escravo como uma ferramenta. Ele buscou na

própria natureza a explicação para a diferença entre escravos e senhores.

Afirmava que os corpos dos escravos eram preparados para o esforço físico,

ao passo que os corpos dos senhores não. Entendia que a escravidão não

decorria da mera violência de uma guerra. Anos mais tarde, esse pensamento

seria resgatado pelos colonizadores portugueses e espanhóis para justificar o

emprego da mão-de-obra escrava no continente americano.

Observa-se que, ao longo dos tempos, as diversas formas de produção

e relações de trabalho necessitavam de uma justificativa moral e legal.

No entanto é o sistema econômico que define as relações de trabalho e

a correspondente justificativa moral.

Se, no início, a escravidão foi justificada pela lógica aristotélica a partir

da própria natureza, a principal razão para o emprego da mão-de-obra escrava

era o sistema econômico. A carência de mão-de-obra exigia que os povos

antigos buscassem em outras civilizações trabalhadores para a agricultura e

para os trabalhos domésticos.

No período das grandes navegações, portugueses e espanhóis

utilizaram-se largamente da mão-de-obra escrava.

O caso português é emblemático. Transferir trabalhadores de Portugal

para o Brasil gerava enormes custos para a Coroa.

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Além disso, as condições de vida no Brasil Colônia eram extremamente

precárias de modo que somente com a oferta de salários bem superiores é que

seria possível convencer os trabalhadores a se fixarem no Brasil Colônia. A

alternativa encontrada foi a utilização de mão-de-obra escrava oriunda da

África.

Como se observa, a ordem capitalista brasileira transitou pelo passado

escravista até a modernidade competitiva. Essa transição foi extremamente

lenta e gradual, o que gerou reflexos no atual quadro econômico, social e

político.

Houve, na verdade, uma adequação à nova dinâmica exigida pela ordem

capitalista.

As desigualdades sociais e econômicas são fruto desse período e

deixam suas marcas ainda no mundo atual das relações de trabalho.

Em que pese todo o avanço legislativo, por vezes defronta-se com

situações em que o trabalhador, parte hipossuficiente da relação de trabalho,

ainda é tratado como objeto e não sujeito de direitos.

O curiosa caso da ilha de Antígua citado pela literatura inglesa bem

demonstra que de nada adianta avanços legislativos sem a implementação de

políticas públicas destinadas aos trabalhadores. Naquela ilha, a abolição da

escravatura teve um caráter puramente formal, já que os escravos passaram a

trabalhar formalmente nas plantações como trabalhadores livres, porém, em

condições ainda degradantes por alimentação, vestuário e alojamento.

Sem oportunidade e em franca condição de desigualdade econômica, os

ex-escravos sujeitaram-se a um regime de servidão em que a liberdade era

apenas formal.

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A evolução econômica e dos meios de produção fez-se sentir nas

relações de trabalho.

A consolidação do capitalismo industrial extinguiu definitivamente o

modo de produção baseado na escravidão.

As consequências mais diretas da industrialização foram a urbanização,

o surgimento de uma classe média e o surgimento do Direito do Trabalho.

Merece especial destaque o Direito do Trabalho cuja principal finalidade

é a pacificação social do conflito originado entre o capital e o trabalho.

A evolução do Direito do Trabalho é indissociável do avanço dos direitos

humanos. Mesmo porque a consagração dos direitos sociais é reflexo da

validação internacional dos direitos inerentes ao ser humano.

Aliás, a evolução dos direitos humanos, tendo por norte o princípio da

dignidade humana, irradiou-se para os ordenamentos jurídicos do mundo

ocidental moderno, atingindo não o Direito do Trabalho, mas todos os demais

ramos da ciência jurídica.

Com isso, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada em

10 de dezembro de 1948, na Assembléia Geral das Nações Unidas, representa

um marco na Humanidade. Esse documento internacional exerceu forte

influência sobre os ordenamentos jurídicos internos das principais economias

mundiais nos anos seguintes.

Em seguida, observou-se o fenômeno da constitucionalização do Direito

do Trabalho. Diversos direitos sociais passaram a ser positivados nas

Constituições. No Brasil, não foi diferente em especial com a Constituição

Federal de 1988.

Na Europa e no Brasil, neste último de forma menos acentuada, houve

uma transição do Estado Liberal para o Estado Social que, no campo jurídico,

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traduziu-se na publicização do direito. Essa mudança marcou a valorização do

ser humano e a despatrimonialização do direito privado.

A Constituição Federal de 1988 representou um novo paradigma

valorativo a ser observado tanto nas relações públicas como privadas. A

interpretação de qualquer instituto do direito público ou do direito privado só

pode ser feita à luz dos valores alçados à categoria de princípios fundamentais.

O valor “trabalho” foi acolhido pela Constituição como elemento

fundamental para formação jurídica do Estado e para a promoção social do

homem.

A par disso, a Constituição trouxe um arcabouço de princípios cuja

interpretação pelo operador do direito permite identificar o alcance e significado

das demais normas. Essa orientação hermenêutica, a partir de um paradigma

constitucional, é capaz de direcionar o nosso ordenamento jurídico para uma

nova fase de concretização dos direitos sociais inscritos na Constituição. Os

princípios, em especial a dignidade da pessoa humana, a cidadania e os

valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. apresentam-se como elementos

flexíveis capazes direcionar a hermenêutica das normas adaptando-as à

dinâmica vida social.

Assim, alcança-se o objetivo político de realização do Estado Social e de

materialização dos fins programáticos previstos na própria Constituição.

O princípio norteador do nosso sistema jurídico é o princípio de proteção

da dignidade da pessoa humana.

Esse princípio ganhou ênfase e passou a integrar expressamente vários

textos europeus com a Declaração Universal de Direitos do Homem em 1948.

Os horrores experimentados na Segunda Guerra Mundial motivaram a

propagação desse princípio.

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A Carta Política de 1988 ao elegê-lo como princípio norteador no inciso

III do artigo 1.º atrelou o respeito ao Estado Democrático de Direito à sua

observância. Em outras palavras, o desrespeito ao princípio de proteção à

dignidade da pessoa humana corresponde ao desrespeito ao Estado

Democrático de Direito.

É o princípio vetor do nosso ordenamento jurídico e de toda a

construção doutrinária e legal acerca dos direitos humanos.

A pedra angular dos direitos humanos fundamentais é a dignidade da

pessoa humana, já que, a partir dela, surge um feixe de direitos que visam

satisfazer as necessidades bioculturais.

Neste trabalho, optou-se pela expressão direitos humanos fundamentais,

já que com ela se pode contemplar tanto os direitos catalogados na

Constituição quanto os direitos positivados na esfera internacional.

Os direitos humanos fundamentais são estudados numa divisão em

gerações ou dimensões, já que cada grupo corresponde a um determinado

período.

Cumpre observar que essa divisão não significa que estejam separados

em compartimentos estanques. A divisão em gerações não significa

substituição de um grupo de direitos humanos fundamentais por outro. A

evolução dessas diversas gerações ou dimensões dos direitos humanos

fundamentais deu-se, ao longo do tempo, num processo acumulativo e

complementar.

As conquistas sociais materializadas na positivação de uma classe de

direitos abrem novos horizontes. As novas expectativas, geradas pelas

conquistas anteriores e pelo permanente processo de mudança social, fazem

com que a sociedade caminhe na direção da promoção de novos direitos.

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Com isso, há processo de permanente busca de novos direitos para

atender demandas crescentes fundadas na promoção da dignidade da pessoa

humana.

Os direitos humanos fundamentais gozam de ampla aceitação

internacional ao menos formalmente.

O desafio que se coloca na atualidade já não é mais a discussão acerca

da natureza jurídica desses direitos ou o seu reconhecimentos, mas sim a sua

eficácia. A sua concretização faz-se através de uma releitura de todo o

ordenamento jurídico pelo prisma da proeminência do princípio da dignidade da

pessoa humana (artigo 1.º, III, da Constituição Federal). O operador do direito

deve sempre diante de duas interpretações possíveis optar por aquela que

potencialize, alcance e satisfaça o princípio da dignidade da pessoa humana.

Nesse aspecto, o Poder Judiciário desponta como instituição

protagonista no papel de viabilizar a fruição dos direitos humanos fundamentais

cuja eficácia ainda não é plena.

Não há previsão expressa acerca da vinculação dos entes públicos e

particulares aos direitos humanos fundamentais.

No entanto a regra do § 1.º do art. 5.º da CF desdobra-se numa espécie

de mandado de otimização das normas de direitos humanos fundamentais.

No início, os direitos humanos fundamentais surgiram como forma de

limitação da ação estatal na esfera de direitos do indivíduo, ou seja, para a

defesa das liberdades individuais. Isso significa que os direitos humanos

fundamentais eram originariamente oponíveis ao Estado a fim de proteger o

indivíduo.

A partir da experiência dos tribunais alemães, consolidou-se a teoria da

eficácia horizontal dos direitos humanos fundamentais, ou seja, a eficácia dos

direitos humanos fundamentais nas relações entre particulares.

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Esse entendimento foi acolhido pela doutrina majoritária brasileira, haja

vista a tendência de publicização do direito e o princípio da máxima eficácia

das normas constitucionais.

Não se pode admitir que uma pessoa ao estabelecer relações privadas

abdique de direitos que lhe são inatos.

Ademais, negar a eficácia horizontal dos direitos fundamentais seria o

mesmo que negar a força vinculante da Constituição Federal nas relações

privadas e sua supremacia na pirâmide normativa.

Todavia, no âmbito das relações privadas a eficácia dos direitos

humanos fundamentais, não se opera com a mesma intensidade da relação

entre o particular e o Estado. Isso porque as relações privadas são orientadas

pela autonomia da vontade.

Assim, há que se compatibilizar, no caso concreto, a eficácia dos direitos

humanos fundamentais com o princípio da autonomia da vontade.

O órgão julgador dispõe das cláusulas gerais e dos princípios como

ferramentas para decidir no caso concreto em que se verifique eventuais

conflitos entre o princípio da autonomia da vontade e os direitos humanos

fundamentais.

A comunicação entre a Constituição Federal e o Código Civil de 2002

fornece ao órgão julgador o manancial normativo necessário para

compatibilizar o conflito acima mencionado.

Cabe ao Poder Judiciário, a partir de uma hermenêutica axiológica e um

juízo de ponderação, viabilizar um diálogo entre as diversas fontes do Direito,

além de tornar essas mesmas fontes um bloco sistêmico e ordenado com eixo

no princípio da dignidade humana.

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Tudo isso para construir uma sociedade livre, justa e solidária.

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ANEXOS

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ANEXO I

PROCESSO TRT/SP - SDC Nº: 20281.2008.000.02.00-1 DISSÍDIO COLETIVO DE GREVE SUSCITANTE: AMSTED MAXION FUNDIÇÃO E EQUIPAMENTOS FERROVIÁRIOS S/A SUSCITADO: SINDICATO DOS TRABALHADORES NAS INDUSTRIAS METALÚRGICAS, MECÂNICAS, E DE MATERIAL ELÉTRICO DE OSASCO, CARAPICUÍBA, COTIA, BARUERI, JANDIRA, ITAPEVI, PIRAPORA DO BOM JESUS, SANTANA DO PARNAÍBA, EMBÚ, ITAPECERICA DA SERRA, TABOÃO DA SERRA E VARGEM GRANDE PAULISTA E DE TERCEIROS NÃO IDENTIFICADOS

EMENTA: DESPEDIDA EM MASSA. NULIDADE. NECESSIDADE DE NEGOCIAÇÃO COLETIVA. GREVE DECLARADA LEGAL E NÃO ABUSIVA. Da greve. Legalidade. 1. A greve é maneira legítima de resistência às demissões unilaterais em massa, vocacionadas à exigir o direito de informação da causa do ato demissivo massivo e o direito de negociação coletivo. Aplicável no caso os princípios da solução pacifica das controvérsias, preâmbulo da CF; bem como, art. 5º, inciso XIV, art. 7º, XXVI, art. 8º, III e VI, CF, e Recomendação 163 da OIT, diante das demissões feitas de inopino, sem buscar soluções conjuntas e negociadas com Sindicato. Da despedida em massa. Nulidade. Necessidade de procedimentalização. 1. No ordenamento jurídico nacional a despedida individual é regida pelo Direito Individual do Trabalho, e assim, comporta a denúncia vazia, ou seja, a empresa não está obrigada a motivar e justificar a dispensa, basta dispensar, homologar a rescisão e pagar as verbas rescisórias. 2. Quanto à despedida coletiva é fato coletivo regido por princípios e regras do Direito Coletivo do Trabalho, material e processual. 3. O direito coletivo do trabalho vem vocacionado por normas de ordem pública relativa com regras de procedimentalização. Assim, a despedida coletiva, não é proibida, mas está sujeita ao procedimento de negociação coletiva. Portanto, deve ser justificada, apoiada em motivos comprovados, de natureza técnica e econômicos e ainda, deve ser bilateral, precedida de negociação coletiva com o Sindicato, mediante adoção de critérios objetivos. 4. É o que se extrai da interpretação sistemática da Carta Federal e da aplicação das Convenções Internacionais da OIT ratificadas pelo Brasil e dos princípios Internacionais constante de Tratados e Convencões

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Internacionais, que embora não ratificados, têm força principiológica, máxime nas hipóteses em que o Brasil participa como membro do organismo internacional como é o caso da OIT. Aplicável na solução da lide coletiva os princípios: da solução pacífica das controvérsias previsto no preambulo da Carta Federal; da dignidade da pessoa humana e do valor social do trabalho, e da função social da empresa, encravados nos artigos 1º, III e IV e 170 "caput" e inciso III da CF; da democracia na relação trabalho capital e da negociação coletiva para solução dos conflitos coletivos, conforme previsão dos arts. 7º, XXVI, 8º, III e VI e artigos 10 e 11 da CF bem como previsão nas Convenções Internacionais da OIT, ratificadas pelo Brasil nºs: 98, 135 e 154. Aplicável ainda o princípio do direito à informação previsto na Recomendação 163,da OIT, e no artigo 5º, XIV da CF. 5. Nesse passo deve ser declarada nula a dispensa em massa, devendo a empresa observar o procedimento de negociação coletiva, com medidas progressivas de dispensa e fundado em critérios objetivos e de menor impacto social, quais sejam: 1º- abertura de PLANO DE DEMISSÃO VOLUNTÁRIA; 2º- remanejamento de empregados para as outras plantas do grupo econômico; 3º- redução de jornada e de salário; 4º- suspensão do contrato de trabalho com capacitação e requalificação profissional na forma da lei; 5º- e por último mediante negociação, caso inevitável, que a despedida dos remanescentes seja distribuída no tempo, de modo minimizar os impactos sociais, devendo atingir preferencialmente os trabalhadores em vias de aposentação e os que detém menores encargos familiares.

RELATÓRIO Trata-se de Dissídio Coletivo de Greve ajuizado pela empresa Amsted Maxion Fundição e Equipamentos Ferroviários S/A em face do Sindicato dos Trabalhadores nas Industrias Metalúrgicas, Mecânicas e de Material Elétrico de Osasco, Carapicuíba, Cotia, Barueri, Jandira, Itapevi, Pirapora do Bom Jesus, Santana do Parnaíba, Embú, Itapecerica da Serra, Taboão da Serra e Vargem Grande Paulista. Alega a empresa Suscitante que em razão da crise econômica e, necessidade de manter suas atividades no parque fabril instalado na planta do Município de Osasco, reduziu o seu quadro de pessoal e, portanto, dispensou parte dos trabalhadores empregados. Relata na inicial que: "procedida a dispensa parcial dos funcionários da suscitante o sindicato suscitado compareceu nas dependências da empresa e, mesmo sem declarar estado de greve incitou os funcionários a não ocuparem seus postos de trabalho e simplesmente deixarem de trabalhar mediante violência e grave ameaça, o que será objeto de interposição de interdito proibitório"

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Afirma que a demissão parcial de seus funcionários é definitiva e que dispõe a negociar apenas algumas condições pós rescisão contratual. Alega que "as partes realizaram uma reunião para tentarem discutir vantagens e benefícios que poderiam ser concedidos aos dispensados, mas o resultado transcorreu in albis". Que havia agendado nova negociação para o dia 18.12.08. No entanto as 6:00 do dia 17.12.08 o Suscitado compareceu nas dependências da empresa paralisando as atividades da mesma. Afirma, em síntese que: a greve é ilegal e abusiva, ofensiva aos artigos 3º e 4º, da Lei 7783/89, porque não houve exaurimento das negociações; foi realizada sem a convocação da assembléia na forma prevista do estatuto sindical e, sem notificação com antecedência mínima que 48 horas. Alega que o Sindicato está ameaçando paralisar totalmente as atividades da empresa o que poderá causar sérios e irrecuperáveis prejuízos, eis que a suscitante é uma fundição e os fornos respectivos de aço devem estar em funcionamento para não colocar em risco a produção a segurança das imediações da unidade fabril. Pede liminar de cessação dos abusivos e ilegais atos, sob cominação diária de R$ 100.000,00 a declaração da ilegalidade e abusividade . Realizada audiência no dia 18.12.2008, as 13: horas, foi constatado que a razão da paralisação foi o fato da demissão coletiva de 450 trabalhadores no primeiro momento e 150 no segundo momento, totalizando 600 trabalhadores despedidos. Pela Presidência foi proposto que as partes mantivessem um canal de negociação e estudassem a possibilidade de reversão das demissões contra a redução da jornada de trabalho de todos os empregados da Empresa, o que levaria as partes a fazer frente à crise que se avizinha, bem como evitar o desemprego coletivo. A proposta foi aceita pelo Sindicato Suscitado e rejeitada pela Empresa, que a considera inviável neste passo. Facultada às partes a palavra, pelo Suscitado foi dito que: "No dia 15 de dezembro de 2008 a Empresa comunicou a demissão de 450 empregados. Houve a suspensão do trabalho a partir de então e o exercício do direito de greve. De forma flagrantemente ilegal e ilícita durante o período de greve a Empresa demitiu por telegrama cerca de 200 trabalhadores. Determinou ainda férias coletivas para os demais trabalhadores a partir do dia 22/12/2008. A violência da ilegalidade dos atos até aqui praticados se complementa com a demissão de trabalhadores portadores de doenças ocupacionais, acidentários e cipeiros. À vista do crime contra a organização do trabalho requer imediatas providências do Ministério Público para instauração

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dos procedimentos cabíveis e inclusive em relação aos diretores da Empresa Suscitante. Requer ainda o Sindicato a indicação da pauta de reivindicações anexa à defesa onde pede o cancelamento das demissões ocorridas no dia 15 de dezembro, o que provocou a greve, cancelamento das demissões do dia 17 de dezembro pela flagrante ilegalidade, cancelamento dos empregados portadores de instabilidade. A procedência da pauta de reivindicações se deve pelo fato de que há 10 dias, ou seja, até 05 de dezembro de 2008 a Empresa trabalhou fazendo que todos os seus empregados cumprissem sobrejornada de trabalho. A Empresa trabalhou o ano de 2008 com sobrecarga de horas extras, o que ocorreu em períodos anteriores, vindo no dia 15 de dezembro praticar as violências aqui denunciadas. Esta violência ultrapassa os limites do bom senso, o que demanda o reconhecimento das reivindicações com estabilidade aos trabalhadores até conclusão de negociações que seria, o mínimo, dentro do respeito que deve à sociedade a Empresa Suscitante. Requer a juntada de defesa." Dada a palavra ao Suscitante, pelo mesmo foi dito o seguinte: "Inicialmente, insta esclarecer ao Juízo que ao contrário do alegado pela Suscitada, esta foi informada, na pessoa de seu Presidente Sr. Jorge Nazareno, de que a Empresa Suscitante havia estudado todas as possibilidades de manutenção de seu quadro de funcionários, mas que em virtude da recessão econômica mundial e o cancelamento de contratos de fornecimento até então mantidos com a Suscitante, esta via-se obrigada a promover a redução de seu quadro, fato este ocorrido em reunião com o diretor do Suscitado na sexta-feira, 12/12/2008. Naquela ocasião, o Suscitado limitou-se a dizer que não admitiria nenhuma demissão e que não homologaria nenhuma rescisão trabalhista. Na segunda-feira, 15/12/2008, a Empresa então iniciou o processo de demissão de seus funcionários. Na tarde do dia 16/12/2008, e somente nesse dia, o Suscitado compareceu às portas da Empresa sem qualquer aviso prévio ou comunicação expressa e impediu seus associados de entrarem nas dependências da Empresa, em prática de claro ato de movimento paredista e nunca de exercício de direito de greve. Não se pode falar em greve quando o Sindicato Suscitado deixa de obedecer não a um, mas a inúmeros preceitos expostos na Lei 7783/89, pelo que a declaração de abusividade é de rigor. Não houve por parte do Suscitado, qualquer comunicação prévia nem sequer convocação de assembléia na forma prevista no próprio estatuto do Suscitado, donde sequer há legitimidade para deliberar sobre a paralisação. Com relação às demissões ocorridas no dia 17/12/2008, por comunicação via telegrama, a mesma deu-se apenas e tão somente por ausência de alternativa da Suscitante posto que o piquete patrocinado pelo Sindicato impediu a entrada dos funcionários na Empresa. No tocante ao aviso de férias coletivas, a comunicação deu-se em 03 de dezembro de 2008, dentro do que determina a legislação, ou seja, primeiramente protocolizada na Delegacia Regional do Trabalho e a posteriori a comunicação formal ao Suscitado. Mais uma vez, frise-se, o Suscitado quedou-se inerte donde é corolário lógico que concordou com seus termos. Não se pode falar nem atender aos reclamos do Suscitado de suspensão dos contratos de trabalho ou

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de demissão porquanto a greve, a que o Suscitado diz estar exercendo o direito, nunca foi deflagrada, não existindo qualquer informação a esse respeito, sequer neste momento quando apresenta sua contestação, e não traz nenhum documento comprobatório do seu direito, razão pela qual, reitera uma vez mais que o piquete patrocinado pelo Suscitado não é greve e como tal não pode ser tratado." Dada a palavra ao Ministério Público pelo mesmo foi dito que: "Toda a paralisação do trabalho é greve. O movimento pode ser considerado abusivo ou não, mas sobre ele incidem as regras legais constantes da Lei 7783/89. As fotos anexadas pelo próprio Suscitante mostram empregados em "estado de greve". Passa-se, pois, ao exame das questões que envolvem a greve. As normas relativas à negociação prévia e seu esgotamento dirigem-se ao período de formação de acordos ou convenções coletivas. Não é o caso. A Empresa vinha trabalhando normalmente. No dia 12/12/2008, segundo relato acima, decide demitir de 30 a 40% de seu quadro funcional. Não é desconhecido pela Empresa o gravame social que seu ato representa. Sua decisão, conforme suas próprias palavras, tem caráter irreversível. Portanto, ao Sindicato, como representante dos empregados, não restou outra alternativa além de mobilizar seus representados. A negociação proposta pela Empresa abarcaria apenas benefícios posteriores à demissão. Portanto, não havia negociação do fato principal. Os prazos para comunicação de paralisação de atividades são relativos à realidade de cada caso. Um acidente do trabalho, assim como um ato de repercussões sociais graves e extensas pela sua própria natureza já admitem a paralisação, dispensando formalidades, que restariam inócuas. A razão da greve é pertinente porquanto o direito ao trabalho, consubstanciado na continuidade do contrato de trabalho decorrem da Constituição Federal, Artigo 7º, Inciso I, e albergado na Legislação Ordinária, constituindo ainda princípio de aplicação do ordenamento jurídico trabalhista. Posto isto, opina-se pela não abusividade do movimento, devendo ser pagos os dias de paralisação e conferida estabilidade de 90 dias aos grevistas. Neste passo, ingressa-se já no mérito para que seja declarada a nulidade das dispensas efetivadas por telegrama dos empregados que estavam em greve, devendo os mesmos serem readmitidos imediatamente, conforme o parágrafo único do Artigo 7º da Lei 7783/89. Relativamente à dispensa dos demais empregados, ocorrida anteriormente à greve, por ausência de lei complementar regulamentando Inciso I do Artigo 7º, fica-se com o que dispõe o ADCT. Contudo, frise-se, o ato praticado atenta contra a dignidade da pessoa humana e contra o que dispõe o Artigo 1º, Inciso IV da Constituição Federal porquanto revela flagrante desequilíbrio entre os

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valores sociais de trabalho e da livre iniciativa, priorizando-se a atividade econômica em detrimento da pessoa humana. Contudo, devem ser preservadas as estabilidades previstas na Constituição Federal e na lei, tais como de dirigentes sindicais, cipeiros, gestantes, acidentados e outros. Estes empregados devem ser relacionados e readmitidos imediatamente. Relativamente ao requerimento de instauração de procedimento criminal em face da Empresa e de seus diretores, o Ministério Público do Trabalho opina pela expedição de ofício ao Ministério Público Federal para que este, querendo, instaure procedimento que entender cabível." Diante da gravidade dos fatos esta Relatora decidiu designar nova audiência para o dia 22.12.2008 às 13h00 e, liminarmente, proibiu qualquer dispensa sob pena pecuniária diária até julgamento definitivo do Dissídio. Pela Sra. Relatora foi reaberta a instrução considerando que havia necessidade de alguns esclarecimentos. Ouvidos os esclarecimentos prestados pelo advogado foi dito que: "a Empresa contatou com o sindicato no dia 12/12 para comunicar a dispensa de 600 trabalhadores que seriam dispensados no dia 15/12; que na oportunidade o sindicato sugeriu um pedido de intervenção do Governo Federal, bem como as suspensões do contrato de trabalho, e a Empresa respondeu que seria oportuna a intervenção do governo, mas que a esta altura os fatos já estariam consumados e que não resolveriam os problemas da Empresa referentes ao cancelamento dos pedidos feitos pelos clientes; que a Empresa iniciou os desligamentos na segunda-feira no dia 15/12, e que na tarde do dia 16 o sindicato compareceu na Empresa paralisando as atividades; que a paralisação foi parcial, cujos os componentes eram os trabalhadores demitidos no dia anterior e uma parcela dos trabalhadores que estavam ingressando no 1º turno; que a assembléia na porta da fábrica começou a partir das 5:00 horas da manhã até por volta das 8:30 da manhã e que uma parcela dos trabalhadores empregados voltou a trabalhar; que no mesmo dia 16/12 houve uma reunião com o sindicato que reivindicava revisão das demissões mas a Empresa respondeu que seria inviável, sendo que o sindicato reivindicou um pacote de benefícios para os demitidos consistente em um ano de cesta-básica, um ano de plano de saúde, oferta de plano de capacitação e recolocação e um salário para cada ano trabalhado a título de indenização e pagamento dos abonos previsto em convenção coletiva; que diante da reivindicação a Empresa ficou de estudar a proposta mas já antecipou que não poderia atender na integralidade tendo em vista a necessidade de manutenção da Empresa e dos postos de trabalho remanescentes; que na quarta-feira dia 17/12, no turno da noite, os empregados que ainda estavam em greve voltaram a trabalhar na integralidade; que nos dois turnos anteriores, apesar do movimento grevista, houve produção normal; neste ato perguntado se os fornos de fusão chegaram a paralisar ou tiveram prejuízo, esclareceu o gerente de produção presente Sr. Eduardo Monteiro, que não houve paralisação dos fornos, embora com produção reduzida; que no dia 17/12 a Empresa enviou telegrama de rescisão contratual para cerca de 150 trabalhadores."

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Neste ato o advogado esclarece que "tendo a necessidade de atendimento da ultimação dos pedidos de 2008, bem como, a concessão de férias coletivas a partir de 22/12 e ainda os problemas da paralisação, a Empresa resolveu transferir parte da produtividade para a planta de Cruzeiro e esclarece que todas as plantas entraram em férias coletivas nesta data; esclarece também que foi feita a demissão coletiva de 250 empregados na planta de Cruzeiro, num contingente de 1600 e dispensa coletiva de 600 na planta de Hortolândia, num contigente de 1300; esclarece que o contigente da planta de Osasco era de 1500 e que houve dispensa de 600; que a Empresa não descarta a possibilidade de fechar a unidade fabril de Osasco remanejando a produção para outras plantas; que perguntado respondeu que nas demais plantas (Cruzeiro e Hortolândia) houve negociação e aceitação com os sindicatos com a mesma proposta que foi ofertado ao sindicato de Osasco, quais sejam: 03 meses de cesta-básica (R$ 40,00 cada), pagamento de dois abono previstos em norma coletiva (equivalente a 18% do salário no total) e o pagamento integral da participação nos lucros, sem apuração de metas, relativo ao ano contábil de 2008, cujo fechamento é semestral (mais ou menos R$ 2.000,00 no total semestral); esclarece que no dia 18/12, quinta-feira, na entrada do turno da manhã, houve uma assembléia na porta da fábrica que deliberou pelo retorno total ao trabalho o que foi reafirmado na sexta-feira dia 19/12; nada mais a Empresa tem a esclarecer." Dada a palavra ao Presidente do Sindicato Suscitado, pelo mesmo foi dito: "que a greve teve início no dia 16/12, pela manhã, quando dos trabalhadores decidiram pela deflagração do movimento grevista; que no dia 19/12 no período da manhã, após a realização de assembléia, os trabalhadores que ainda permaneciam em greve retornaram ao trabalho objetivando aguardar a decisão desse E. Tribunal; que previamente a greve a Empresa somente informou que haveria dispensa de trabalhadores, sem precisar a forma, número e condição que a mesma se daria; nada mais." O Sindicato Suscitado aqui presente esclarece que não aceitou a mesma proposta e ofertou contra-proposta, a saber: 1- a imediata reintegração de todos os empregados dispensados no curso da greve; 2- a imediata reintegração dos empregados dispensados que sejam portadores de estabilidade de qualquer natureza; 3- seja iniciado procedimento de negociação, com monitoramento desse E. Tribunal através de sua Assessoria Econômica, a fim de se analisar a instauração de PLANO DE DEMISSÃO VOLUNTÁRIA em relação aos demais empregados dispensados e a aprovação de um pacote de benefícios para esses empregados, tendo como base inicial de negociação a proposta já formalizada à empresa; 4- que no curso da negociação de que trata o item "3", sejam vedadas novas dispensas;

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5- o pagamento dos dias parados. A Empresa, analisando a presente a proposta que inclusive já foi objeto da análise anterior, diz que: "Não há possibilidade de reversão das demissões já realizadas, porquanto a redução levada a efeito visa a manutenção dos outros 900 postos de trabalho; com relação ao item "2" da proposta de reintegração dos estáveis, a Empresa obedece, como sempre obedeceu, as normas legais e satisfeitas as exigências do processo demissional ou não como por exemplo comparecimento para realização do exame demissional promoverá a reintegração". Tendo em vista a intervenção do Assessor Econômico, foi solicitado o esclarecimento pelo Gerente de Produção Sr. Eduardo Monteiro, pelo mesmo foi dito : que o Grupo de Empresas produz fundidos para exportação, fundidos para reposição para vagões e fundidos para montagem de vagões novos, peças para tratores da Caterpillar, carro-grelha para India e para a CIA Vale do Rio Doce, peças para tratores de menor volume para Medson e a quinta-roda fabricado na planta de Cruzeiro; que o depoente esclarece que participou de reuniões em novembro sobre cenários de mercado para o ano de 2009 e o impacto do nível de emprego da Empresa; que participaram dessas reuniões gerentes ligados a produção e diretores da Empresa; que segundo as informações que possui o depoente não há expectativa de melhora para os setores de fundidos de exportação (cerca de 60%), fundidos de reposições para vagões (cerca de 15%) e fundidos para montagem de vagões novos (cerca de 25%); que no setor de fundidos para exportação a produção reduziu drasticamente a partir de outubro; que nos fundidos de reposição e fundidos para vagões novos a redução se verificou a partir de novembro/dezembro com péssima expectativa para janeiro/2009; que o Grupo detém aproximadamente 80% da fabricação de vagões de trem de carga no país; que detém também 50% do mercado de reposições; que não sabe dizer se a Empresa possui estudos concretos econômicos produtivos dos segmentos que demanda seus produtos que sustentem demissões nesta proporção; nada mais. O Presidente do Sindicato esclarece que a proposta da Empresa já foi submetida à assembléia e foi recusada e que a proposta agora ofertada pelo sindicato já foi aprovada pelos trabalhadores. Pela Exma. Sra. Des. Relatora foi feita a seguinte proposta: 1- Reversão das demissões dos estáveis (que inclusive já foi aceito pela Empresa); 2- Reversão das demissões efetuadas no período de greve, ressalvada a aceitação do pacote de benefícios pelos trabalhadores interessados; 3- Pacote de benefícios aos demitidos consistente em manutenção de 6 meses de cesta-básica, de 6 meses de plano de saúde e uma indenização no valor de

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um salário nominal por ano trabalhado limitado a 3 salários e parcelados em 6 meses; 4- Para os empregados que continuam trabalhando, na hipótese da Empresa resolver pela demissão coletiva, que sejam observados os critérios da necessária negociação coletiva com medidas progressivas de dispensa, fundados em critérios objetivos, quais sejam: 1º - abertura de PLANO DE DEMISSÃO VOLUNTÁRIA; 2º - remanejamento de empregados para as outras plantas do grupo econômico; 3º - redução de jornada de salário; 4º - suspensão do contrato de trabalho com capacitação e requalificação profissional na forma da lei; 5º - e por último mediante negociação, caso inevitável, que a despedida dos remanescentes seja distribuída no tempo, de modo minimizar os impactos sociais, devendo atingir preferencialmente os trabalhadores em vias de aposentação e os que detém menores encargos familiares. O Sindicato aceita a proposta oferecida pela Sra. Relatora enquanto que a Empresa recusa e apresenta nova proposta: - Reitera a proposta oferecida anteriormente acrescendo para 6 o número de cestas-básicas no mesmo valor ali constante. O Sindicato não aceita a contra-proposta da Empresa. Diante do impasse das negociações a Sra.. Relatora remete o processo para julgamento, designado para julgamento no dia de hoje às 17:30 horas. O Advogado da Empresa requer a juntada de Memorial. Deferido. V O T O DAS PRELIMINARES DO COMUM ACORDO A empresa suscitante alega que em se tratando de dissídio de greve o requisito do comum acordo é dispensável. Com razão. Não se exige o comum acordo a que alude art. 114, § 1º e 2º, da Carta Federal quando o dissídio vem acompanhado de greve. DA FALTA DE CONVOCAÇÃO ASSEMBLEAR Alega a empresa que o Sindicato descumpriu a lei à medida em que não procedeu à convocação dos trabalhadores na forma do seu estatuto. Sem razão. Verifica-se do processado que as várias assembléias ocorreram na porta da empresa e, portanto, presentes todos os trabalhadores interessados. Aplica-se ao caso o princípio da finalidade.

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A greve localizada dispensa convocação da assembléia na forma do estatuto sindical. Isto porque, a convocação tem por desiderato dar publicidade do ato. A assembléia feita na porta da empresa dispensa a convocação dos trabalhadores na forma do estatuto, eis que o ato de publicidade, ainda que praticado por outra forma atingiu a finalidade. Rejeita-se. DA FALTA DE PRÉ- AVISO DE GREVE Diz a empresa que o Sindicato não observou a lei que comanda o aviso prévio de greve de 48 horas. O aviso prévio de greve não se aplica quando a empresa dá causa à greve, pelo descumprimento flagrante de valores, princípios e regras do ordenamento jurídico, tais como os casos: de mora salarial (Decreto 368/68), descumprimento de cláusula e ou condição de trabalho (art. 14, parágrafo único, Lei 7783/89), ato unilateral de dispensa em massa (art. 1º, III, IV, 7º, I, XXVI, 8º, III e VI, 170, caput e inciso III, CF). DA LEGALIDADE DA GREVE A greve é maneira legítima de resistência às demissões unilaterais em massa, vocacionadas à exigir o direito de informação da causa do ato demissivo massivo e o direito de negociação coletivo (principio da solução pacifica das controvérsias, preâmbulo da CF, art. 5º, inciso XIV, art. 7º, XXVI, art. 8º, III e VI, CF, e Recomendação 163 da OIT) diante das demissões feitas de inopino, sem buscar soluções conjuntas e negociadas com Sindicato. É certo que no dia 12/12.2008 (sexta-feira) a empresa comunicou a dispensa ao sindicato, mas, apresentou os fatos já consumados, pois as dispensas ocorreriam, como de fato ocorreram a partir do dia 15/12.2008 (segunda-feira). Portanto, na prática, a empresa concedeu ao Sindicato apenas três dias de prazo para negociação, denotando que não buscou soluções conjuntas, antecipadas, em prazo razoável. Tampouco cuidou de distribuir o número de despedidas no tempo, de modo progressivo e parcial e de forma negociada. A conduta da empresa afrontou os princípios da boa-fé e da razoabilidade. Não restou provado nenhum ato, por parte dos trabalhadores, de violência ou grave ameaça. Quanto à alegação dos sérios e irrecuperáveis prejuízos, porque a suscitante é uma fundição e os fornos respectivos de aço devem estar em funcionamento, sob pena de risco a produção e a segurança é preciso deixar claro que a greve, conforme apurado na segunda audiência, foi parcial, apenas uma parte dos empregados aderiu à greve, pois a maioria dos grevistas eram trabalhadores que haviam sido despedidos em 15.12.2008. Ademais, como ficou esclarecido na segunda audiência, os fornos não foram paralisados e a empresa não teve qualquer prejuízo.

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Note-se que a empresa, esta sim, em conduta precipitada, resolveu transferir a produção para a unidade de Cruzeiro, sinalizando a possibilidade de fechamento da unidade de Osasco. Aliás, dos depoimentos prestados na segunda audiência, verifica-se que a empresa não descarta a possibilidade de transferir toda a produção de Osasco para Cruzeiro. A greve portanto é legal e não abusiva. A empresa deu causa à greve com a conduta unilateral e arbitrária de dispensa em massa e ofensiva aos ditames constitucionais e legais. Deste modo, são devidos os dias parados a cargo da empresa. DA DISPENSA COLETIVA No ordenamento jurídico nacional a despedida individual é regida pelo Direito Individual do Trabalho, e assim, comporta a denúncia vazia, ou seja, a empresa não está obrigada a motivar e justificar a dispensa, basta dispensar, homologar a rescisão e pagar as verbas rescisórias. Quanto à despedida coletiva é fato coletivo regido por princípios e regras do Direito Coletivo do Trabalho, material e processual. Portanto, deve ser tratada e julgada de acordo com os princípios e regras do Direito Coletivo do Trabalho. O direito do trabalho, vem vocacionado por normas de ordem pública relativa com regras de procedimentalização. Assim, a despedida coletiva, não é proibida, mas está sujeita ao procedimento de negociação coletiva. Portanto, a dispensa coletiva deve ser justificada, apoiada em motivos comprovados, de natureza técnica e econômicos e ainda, deve ser bilateral, precedida de negociação coletiva com o Sindicato, mediante adoção de critérios objetivos. É o que se extrai da interpretação sistemática da Carta Federal e da aplicação das Convenções Internacionais da OIT ratificadas pelo Brasil e dos princípios Internacionais constante de Tratados e Convencões Internacionais, que embora não ratificados, têm força principiológica, máxime nas hipóteses em que o Brasil participa como membro do organismo internacional como é o caso da OIT. Note-se que o constituinte originário idealizou uma sociedade justa fraterna e solidária, comprometida com a democracia e com os direitos sociais. Assim, é no contexto dos valores, princípios e regras constitucionais que a despedida coletiva encontra limites. Com efeito, o preâmbulo e o artigo 1º, da Carta Federal elencam os valores constitucionais fundantes do Estado Democrático de Direito, que têm força normativa, e que comandam o observância da dignidade da pessoa humana o valor social do trabalho. Portanto, a livre iniciativa deve ser exercida de acordo com referidos ditames. Daí os imperativos da função social da propriedade, nela incluída a função social dos meios de produção ou da empresa, retratada nas diretivas da função sócio-ambiental-tecnológica da empresa (art. 1º, III, IV

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e 170, caput e inciso III, CF) e, da democracia na relação trabalho- capital ao assegurar voz a voto aos trabalhadores nas decisões que lhes afetam (Convenções Internacionais da OIT n. 98, 135 e 154 e Recomendação 163, da OIT, ratificadas pelo Brasil e art. 7º, XXVI, art. 8º, III e VI, art. 10 e 11 CF). Os fatos apurados nos autos revelam que os atos praticados pela empresa são ofensivos aos valores, princípios e regras constitucionais e legais, eis que descompromissados com a democracia na relação trabalho-capital, com os valores humanos fundamentais e com função social da empresa. Isto porque, a empresa procedeu a dispensa coletiva de cerca de 1.500 trabalhadores, sendo 600 na unidade fabril de Osasco (400 trabalhadores no dia 15.12. 2008 e 150 trabalhadores no dia 17.12.2008, data do inicio da greve), 700 trabalhadores na unidade de Hortolândia e; 250 trabalhadores na unidade de Cruzeiro. Some-se que, durante a greve a empresa procedeu a dispensa de 150 trabalhadores, por telegrama, cujos contratos encontravam-se suspensos por força da Lei 7783/89 (art. 7º). As dispensas coletivas foram feitas sob o espeque da recessão econômica. Contudo, não há qualquer prova da dificuldade financeira. Não cuidou a empresa da apresentação de demonstrativos consistentes de cenários econômicos futuros, relacionados com a demanda dos seus principais clientes, que justificassem a brusca dimensão do percentual de dispensas em cotejo com seu quadro efetivo. Foram despedidos 40% do efetivo da planta de Osasco, percentual esse apenas justificável caso ocorresse uma recessão econômica sem precedente, principalmente, quando se leva em conta que a empresa possui uma carteira de demanda relativamente diferenciada em termos de produtos e clientes. Sendo assim, apenas uma recessão violenta, e completamente disseminada e persistente no tempo justificaria o percentual de demitidos. Indicadores como os levantados nos autos, tipicamente de curto prazo e surgidos no ambiente atual da mais completa incerteza a respeito da evolução futura da economia são obviamente inadequados como base da evolução econômica a médio e longo prazo, principalmente tendo em consideração o atual esforço regulador da política econômica governamental. Sendo assim, as despedidas coletivas ocorreram de forma inopinada, arbitrária (art. 7º, I, CF), e sem qualquer critério objetivo de escolha dos demitidos, eis que a empresa incluiu nas demissões os trabalhadores que têm estabilidade no emprego (art. 8º, VIII CF e 165, CLT), algumas delas vítimas de doenças ocupacionais e do trabalho (art. 118, Lei 8213/91). Ainda a dispensa coletiva foi feita sem aviso prévio razoável, sonegado o direito de informação (art. 5º, XIV da CF). Não houve qualquer negociação prévia, em tempo razoável – apenas três dias - com o Sindicato. Ademais, a empresa apresentou pacote pronto e um fato consumado para a negociação e,

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ainda abriu uma pós negociação incipiente e inflexível oferecendo uma proposta, cujos ítens os trabalhadores já eram detentores do direito parcial ou total. A única vantagem real ofertada foi três cestas básicas no valor de R$ 40,00 cada, incompatível com o porte e magnitude da empresa. Verifica-se verdadeira ofensa ao dever de negociar (art. 8º, VI, CF e 616 da CLT), uma vez que as propostas devem ser sérias, razoáveis e justas. Ademais, a dispensa coletiva não foi precedida de qualquer ato unilateral de abertura de Plano de demissão voluntária ou oferta de pacote de vantagens e benefícios adicionais às verbas rescisórias, de modo a torná-la menos impactante e privilegiar, em efetividade máxima, a dignidade da pessoa humana dos trabalhadores e o valor social do trabalho (art. 1, III e IV, CF). E mais, no curso da greve a empresa demitiu 150 trabalhadores, cujos contratos estavam suspensos. Além disso, em atitude de ampliação da instabilidade e insegurança dos trabalhadores, transferiu parcela da produção da unidade de Osasco para a unidade de Cruzeiro. Conduta que não se justifica, uma vez que a greve foi parcial e temporária. A demissão em massa não é regulada de forma consolidada no ordenamento jurídico nacional. Entretanto, é possível traçar o procedimento a ser adotado uma vez nenhum direito é absoluto, considerando a necessidade de compatibilização com os demais direitos de igual matriz e hierarquia. Ressalte-se que, se a greve é a última conduta que os trabalhadores devem tomar, diante de um conflito coletivo, de igual modo, a dispensa coletiva deve ser a última medida a ser adotada pela empresa diante de uma recessão econômica iniciante e ainda de forma não definida. Assim, a livre iniciativa e a liberdade contratual devem ser exercidas em compatibilidade com a dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho (art. 1º, III e IV, CF). Com efeito, o direito potestativo do empregador de dispensa em massa encontra limites constitucionais e legais. A liberdade contratual deve ser exercida com responsabilidade social e fundada na boa-fé. Consoante julgamento no processo 20252.2008, que também versou sobre despedida em massa, a Exma Sra. Relatora Vânia Paranhos expõe: "A intrincada questão da dispensa coletiva encontra-se ainda em discussão não apenas em nosso País, mas também em nível internacional, mormente considerando-se que, no atual estágio da economia globalizada, a busca de proteção ao trabalhador contra toda dispensa injustificada, através da imposição de limites ao direito potestativo do empregador de resilição contratual, torna-se uma preocupação constante. Sendo assim, os ordenamentos jurídicos de diversos países têm procurado conciliar os interesses antagônicos, de um lado buscando albergar a liberdade de gestão empresarial e, do outro, oferecendo proteção ao emprego, pelo que as soluções adotadas não são uniformes."

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Acrescenta ainda que: "Nesse sentido o artigo 7º., inciso I da Constituição da República:"Art. 7º. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: I – relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos; No entender de Arion Sayão Romita, no prefácio à obra de Nelson Mannrich supramencionada, a dispensa coletiva "deve ser encarada como o ultimum remedium que só deve ser utilizado depois de falharem todas as demais soluções de menor nocividade social". É certo que a implantação do regime de dispensa coletiva e conseqüente limitação à liberdade patronal de rescisão do vínculo de emprego mediante indenização compensatória exige a competente normatização legislativa, uma vez que, nos termos do artigo 7.º, inciso I, da Constituição Federal, acima mencionado, é tarefa que incumbe à lei complementar. Contudo, considerando a relevância e repercussão social da matéria ora discutida e tendo em vista que a própria empresa Suscitante buscou a solução do conflito coletivo que culminou com a demissão de 326 (trezentos e vinte e seis) funcionários, através do presente Dissídio Coletivo de Trabalho, entendo que este E. Tribunal deve enfrentar essa questão da limitação à liberdade patronal de proceder à demissão de seus funcionários, mormente considerando-se os elementos fáticos e jurídicos constantes dos autos". Nesse diapasão, a Justiça do Trabalho não pode quedar inerte. Não se desconhece que crise atual do capitalismo global, gerada pela índole especulativa-financeira, colocou a sociedade refém de uma situação de grave dificuldade de liquidez, com impactos diretos e mediatos, em cadeia, na relação trabalho-capital. São inúmeras as despedidas em massa que estão ocorrendo na atualidade, máxime a partir do ano de 2008. Entretanto , referidas demissões devem ser levadas a cabo com responsabilidade social pelas empresas. Destarte, considerando o Poder Normativo conferido à Justiça do Trabalho ( art. 114, § 1º , 2º e 3º, CF) mister se faz a solução dos conflitos trabalhistas mediante decisão "sobre a procedência total ou parcial das reivindicações ou improcedência das reivindicações" (art. 8º, Lei 7783/89). DISPOSITIVO Assim, e ainda com base na amálgama dos princípios e regras constitucionais, que comandam no sentido de que a despedida coletiva deve ser bilateral, mediante negociação coletiva, bem como com fundamento na força normativa dos princípios, aplico os seguintes princípios na solução da presente lide:

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- Princípio da solução pacífica das controvérsias previsto no preambulo da Carta Federal; - Princípios da dignidade da pessoa humana e do valor social do trabalho, e da função social da empresa, encravados nos artigos 1º, III e IV e 170 "caput" e inciso III da CF; - Princípio da democracia na relação trabalho capital e da negociação coletiva para solução dos conflitos coletivos, conforme previsão dos arts. 7º, XXVI, 8º, III e VI e artigos 10 e 11 da CF bem como previsão nas Convenções Internacionais da OIT, ratificadas pelo Brasil nºs: 98, 135 e 154. Aplicável ainda o princípio do direito à informação previsto na Recomendação 163,da OIT, e no artigo 5º, XIV da CF. Passo a decidir: 1. Afasto as preliminares de ausência de exaurimento das negociações, de aviso prévio de greve, de convocação da assembléia dos trabalhadores; 2. Declaro não abusiva a greve devendo a empresa pagar os dias de paralisação, artigo 7º, da Lei 7783/89; 3. Declaro nula com reversão das demissões dos estáveis (que inclusive já foi aceito pela Empresa); 4. Declaro nula com a reversão das demissões efetuadas no período de greve; uma vez que os contratos estavam suspensos artigo 7º, da Lei 7783/89; 5. Declaro nula a demissão em massa, com fundamento nos artigos ( art. 1º, III e IV, art. 5º, XIV, art. 7º, XXVI, 8º III e VI, CF) tendo em vista a inobservância do procedimento de negociação coletiva e do direito de informação, sendo que deverão ser revistas para observar o procedimento adequado. 6. Mantenho a liminar concedida, com as observações contidas nesse dispositivo com relação ao procedimento da despedida coletiva, até julgamento final do presente dissídio. Assim, a empresa deverá observar na demissão coletiva o procedimento de negociação coletiva, com medidas progressivas de dispensa e fundado em critérios objetivos e de menor impacto social, quais sejam: 1º- abertura de PLANO DE DEMISSÃO VOLUNTÁRIA; 2º- remanejamento de empregados para as outras plantas do grupo econômico; 3º- redução de jornada e de salário; 4º- suspensão do contrato de trabalho com capacitação e requalificação profissional na forma da lei;

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5º- e por último mediante negociação, caso inevitável, que a despedida dos remanescentes seja distribuída no tempo, de modo minimizar os impactos sociais, devendo atingir preferencialmente os trabalhadores em vias de aposentação e os que detém menores encargos familiares. Custas pela suscitante no importe de R$ 1.600,00 sobre o valor da causa, ora arbitrado em R$ 80.000,00.

Ivani Contini Bramante Desembargadora Federal do Trabalho

Relatora

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ANEXO II

PROCESSO TRT/SP nº 0014100-94.2010.5.02.0044 (20110014191) RECURSO ORDINÁRIO - 44ª VARA DO TRABALHO DE SÃO PAULO 1º RECORRENTE: OSESP COMERCIAL E ADMINISTRADORA LTA 2º RECORRENTE: MONALISA ADELAIDE ARMOND 3º RECORRENTE: BANCO SANTANDER (BRASIL) S/A

EMENTA: RECURSO ORDINÁRIO. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. VEDAÇÃO A DISPENSA DISCRIMINATÓRIA. EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS. O postulado da dignidade da pessoa humana alçado pelo inciso III do art. 1º da CF à condição de princípio-guia do sistema jurídico fornece ao órgão julgador uma diretriz inafastável na aplicação e concretização de qualquer norma jurídica positivada. É por isso que o direito de propriedade, o direito potestativo de rescisão contratual e a própria autonomia privada da vontade devem ser interpretados e aplicados no caso concreto à luz do princípio da dignidade da pessoa humana. Além do mencionado princípio, o valor “trabalho” e “livre iniciativa” foram acolhidos pela nova ordem jurídica democrática como elementos fundamentais para a formatação jurídica do estado e para a promoção social do homem. Fiel a esses princípios o constituinte elegeu certos direitos como direitos fundantes de uma sociedade, denominando-os como direitos fundamentais. Dentre os direitos fundamentais há o da não-discriminação previsto no caput e inciso I do art. 5º da CF. É bem verdade que o parâmetro antidiscriminatório é encontrado em diversos dispositivos do texto constitucional como no inciso XXX e XXXI do art. 7º; inciso XLII do art. 5º; inciso IV do art. 3º, todos da CF. Contudo, o desafio do mundo moderno, o que inclui o mundo do trabalho, já não é o reconhecimento desses direitos fundantes, mas sim a efetividade dos mesmos. É incontroversa a eficácia dos direitos fundamentais na relação entre o particular e o Estado – mais conhecida como eficácia vertical dos direitos fundamentais – já que os direitos fundamentais originariamente surgiram como forma de limitação da ação estatal na esfera de direitos do indivíduo, ou seja, para a defesa das liberdades individuais. Já nas relaçoes privada (ou horizontais) a doutrina e a jurisprudência brasileiras sob forte influência do direito constitucional alemão e português passaram a reconhecer os efeitos dos direitos fundamentais nas relações entre particulares. Desse modo, é inegável que a proibição à discriminação não se dirige apenas ao Estado mas também ao particular nas relações privadas. Em atendimento ao manancial de direitos e princípios que resguardam a dignidade da pessoa humana, rejeitando a discriminação manifestados no inciso III e IV do art. 1º; incisos I, III e IV do art. 3º; caput e incisos I e XLI do art. 5º, todos da CF, além da função social da propriedade privada e da busca do pleno emprego expressos nos incisos III e VIII do art. 170 da CF, respectivamente, e da função social

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do contrato e da boa-fé contratual indicados nos artigos 421 e 422 do Código Civil, respectivamente e, finalmente, em obediência às Convenções 111 e 117 e à Declaração sobre os Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho, de 1998, todas da OIT, o legislador infraconstitucional editou a Lei nº 9.029, de 13 de abril de 1995 na qual se veda expressamente a adoção de prática discriminatória para acesso ao emprego ou sua manutenção. Com efeito, o legislador infraconstitucional albergou expressamente um direito fundamental a ser aplicado, inclusive, na relação privada.

Da r. sentença de fls. 47/56 cujo relatório adoto e que concluiu pela procedência parcial dos pedidos formulados na petição inicial, complementada pela decisão de fls. 174, recorrem as reclamadas Osesp Comercial e Administradora Ltda a fls. 157/173 e Banco Santander (Brasil) S/A a fls. 193/205 e a reclamante a fls. 175/179, postulando a sua reforma. Recurso ordinário interposto pela 1ª reclamada, Osesp Comercial e Administradora Ltda, no qual alega que a reclamante não faria jus à reintegração ao emprego. Afirma que o aviso prévio de fls. 68 indicaria que a reclamante teria sido pré-avisada da dispensa em 13/07/2009 com previsão de trabalho até 11/08/2009. Ressalta que o documento de fls. 68 não teria sido impugnado pelo reclamante. argumenta que em depoimento a reclamante teria declarado que tomou conhecimento da redução de sua capacidade auditiva entre julho e agosto de 2009 e que em agosto de 2009 teria comunicado o fato ao supervisor Vanderlan. Salienta que em agosto de 2009 a reclamante já estaria cumprindo o aviso prévio. Entende que haveria confissão real da reclamante. assevera que seria da reclamante o ônus de comprovar a dispensa discriminatória. Destaca que a testemunha Vanderlan teria confirmado que a reclamante somente comunicou a perda auditiva após ter recebido o aviso prévio. Conclui que não haveria prova da dispensa por causa da perda auditiva. Acrescenta que não haveria nenhuma ressalva no TRCT de fls. 69. Esclarece que a avaliação mencionada pela testemunha Vanderlan seria da 2ª reclamada. Afirma que não teria acesso à mesma, motivo pelo qual não poderia juntá-la aos autos. Acrescenta que a doença seria degenerativa sem qualquer nexo com o trabalho. Pondera que não seria devida indenização por dano moral. Requer que seja provido o recurso. Recurso ordinário interposto pela reclamante no qual alega que teria sido disepnsada por discriminação. Afirma que teria sofrido um trauma muito forte o que implicaria em dano moral. Pleiteia a majoração do valor de indenização por dano moral para o montante fixado na petição inicial. Requer que seja provido o recurso. Recurso ordinário interposto pela 2ª reclamada, Banco Santander (Brasil) S/A, no qual alega nulidade da r. sentença por negativa de prestação juridicional. Afirma que mesmo após a oposição dos embargos de declaração o Juízo não teria se manifestado sobre a inexistência

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de pedido de responsabilidade subsidiária da 2ª reclamada e a impossibilidade de subsidiariedade das contribuições previdenciárias. Aponta violação ao art. 832 da CLT; art. 458 do CPC; inciso IX do art. 93 da CF e incisos XXXV e IV do art. 5º da CF. Afirma que seus embargos de declaração não teriam caráter protelatório, motivo pelo qual não poderia ter sido condenada ao pagamento de multa de 1%. Pondera que a r. sentença seria extra petita pois o reclamante teria pedido a responsabilização da ora recorrente de forma solidária, sendo que a r. sentença teria deferido a responsabilização de forma subsidiária. Argumenta que a reclamante não teria comprovado ter prestado serviços para a ora recorrente. Suscita a sua ilegitimidade de parte. Salienta que seria incentivadora da inclusão de portadores de necessidades especiais. Assevera que cumpriria os ditames da Lei nº 8.213/1991. Pondera que a Súmula nº 331 do C.TST não abrangeria indenização de natureza civil. Sustenta que a reclamante não faria jus à reintegração ao emprego pois não teria sido afastada em gozo de auxílio previdenciário. Entende que não haveria dano moral. Por cautela, requer a redução do montante da indenização. Por fim, aduz que não haveria solidariedade ou subsidiariedade quanto às contribuições sociais. Requer que seja provido o recurso. Contrarrazões apresentadas pela 1ª reclamada a fls. 182/187, pela reclamante a fls. 188/192 e fls. 215/219 e pela 2ª reclamada a fls. 206/209. É o relatório.

V O T O Em vista da identidade de matérias, os recursos interpostos pelas partes serão analisados em conjunto. Por estarem presentes os pressupostos de admissibilidade, conhece-se dos recursos ordinários. 1. Da alegação de negativa de prestação jurisdicional: Alega a 2ª reclamada, Banco Santander (Brasil) S/A, nulidade da r. sentença por negativa de prestação juridicional. Afirma que mesmo após a oposição dos embargos de declaração o Juízo não teria se manifestado sobre a inexistência de pedido de responsabilidade subsidiária da 2ª reclamada e a impossibilidade de subsidiariedade das contribuições previdenciárias. Aponta violação ao art. 832 da CLT; art. 458 do CPC; inciso IX do art. 93 da CF e incisos XXXV e IV do art. 5º da CF. Afirma que seus embargos de declaração não teriam caráter protelatório, motivo pelo qual não poderia ter sido condenada ao pagamento de multa de 1%. Razão não lhe assiste. A r. sentença analisou a controvérsia à luz do direito vigente, tendo o órgão julgador demonstrado as razões do seu convencimento.

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Na r. sentença consta expressamente a responsabilização subsidiária da 2ª reclamada com base na Súmula nº 331 do C.TST. Por óbvio que o Juízo singular rejeitou o pedido de responsabilização solidária. Quanto às contribuições previdenciárias, a decisão consignou a responsabilização subsidiária da 2ª reclamada acerca de todas as verbas da condenação excetuando-se a obrigação personalíssima de reintegrar a a reclamante ao emprego. O juiz não tem o dever de refutar cada argumento trazido pela parte, mas apenas decidir de forma fundamentada (inciso IX do art. 93, da CF), consoante o seu entendimento que fica adstrito às provas, ao pedido e à lei (art. 131 do CPC). Na verdade a 2ª reclamadas pretendia a reforma do julgado o que é inadmissível pela via dos embargos de declaração. Aliás, os pontos sobre os quais a reclamada entendem ser omissa ou contraditória a decisão foram contrários aos seus interesses, tendo sido alvo específico de impugnação no recurso ordinário, o que evidencia a inexistência de qualquer vício previsto no caput do art. 897-A, da CLT, e art. 535, do CPC. O fato da solução dada ao caso não atender aos interesses da parte não significa que apresente vício. Por isso, rejeita-se a alegação de nulidade da decisão por negativa de prestação jurisdicional. A multa por embargos de declaração protelatórios deve ser mantida já que o referido recurso foi manejado sem que houvesse qualquer indício de omissão ou contradição da r. sentença de origem. 2. Da alegação de sentença extra petita: Argumenta a 2ª reclamada que a r. sentença seria extra petita pois o reclamante teria pedido a responsabilização da ora recorrente de forma solidária, sendo que a r. sentença teria deferido a responsabilização de forma subsidiária. Sem razão. O pedido de responsabilização solidária é mais amplo do que a responsabilidade subsidiária deferida. Na inicial o reclamante narrou que a 2[ recamada seria tomadora de serviços da 1ª reclamada e beneficiária direta da sua mão-de-obra. Todavia, pleiteou a responsabilidade solidária da 2ª reclamada.

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Não há nenhum óbice à condenação da mesma como responsável subsidiária com base na Súmula nº 331, IV, do C. TST, mesmo porque tal condenação está inserida na pretensão do obreiro de que seja também responsabilizada a aludida reclamada pela satisfação das verbas deferidas. Em tal hipótese, há que se aplicar o princípio iura novit curia segundo o qual o julgador a partir dos fatos narrados deve proceder ao correto enquadramento jurídico. A corroborar tal posicionamento, oportuna a transcrição da seguinte ementa:

“RECURSO DE REVISTA. JULGAMENTO EXTRA-PETITA. Compulsando o acórdão recorrido se depara com o registro de o recorrido ter pleiteado a condenação solidária das reclamadas, solidariedade que foi afastada em prol da subsidiariedade contemplada naquela precedente, estando aí subentendida a aplicação do princípio ‘iura novit curia’, em função do qual não se vislumbra o alegado julgamento ‘extra petita’. Não conheço.” (Processo TST RR n. 367003/1997.8, Ac. 4ª T, proferido em 03.04.2002, Relator Ministro Barros Levenhagen, publ. DJ de 19.04.2002)

Desse modo, rejeita-se a nulidade arguida. 3. Da ilegitimidade de parte: A 2ª reclamada sustenta que seria parte ilegítima para figurar no pólo passivo da lide. Razão não lhe assiste. A avaliação da legitimidade de parte independe do reconhecimento com eventual direito material ora pleiteado. Para que haja legitimidade processual não é necessário que figure no pólo ativo aquele que de fato detém o direito material e no pólo passivo aquele que efetivamente lesou este direito. Basta que a partir da narrativa dos fatos seja possível constatar que figure no pólo ativo aquele que se declara titular do direito material e no pólo passivo aquele que tenha sido apontado como violador desse direito, tendo em vista a independência e autonomia do direito processual em relação ao direito material. No caso em tela as partes desta ação são legítimas, pois figura no pólo ativo aquele que se declara titular do direito material e no pólo passivo aqueles em face de quem se pede a tutela jurisdicional. Há, portanto, pertinência subjetiva.

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A discussão acerca do efetivo aproveitamento da mão-de-obra da reclamante depende de cognição exauriente com o exame das provas, o que não se confunde com o exame das condições da ação a partir das assertivas lançadas na inicial. 4. Da dispensa discriminatória: A Constituição Federal de 1988 é seguramente a representação jurídica do avanço democrático no Brasil. No seu texto consta um manancial de direitos e obrigações cujo objetivo é seguramente construir uma sociedade livre, justa e solidária. Já no art. 1º do texto constitucional o poder constituinte declarou que a República Federativa do Brasil tem como fundamentos a dignidade da pessoa humana (inciso III) e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (inciso IV). Como efeito, a Carta Política de 5 de outubro de 1988 representa um novo paradigma valorativo a ser observado tanto nas relações públicas como privadas. Em outras palavras, a interpretação de qualquer instituto do direito público ou privado só pode ser feita à luz dos valores alçados à categoria de princípios fundamentais. Por essa razão, o postulado da dignidade da pessoa humana fornece ao órgão julgador uma diretriz inafastável na aplicação e concretização de qualquer norma jurídica positivada. Nesse sentido é o magistério de Ricardo Sayeg1:

“A dignidade da pessoa humana é um direito indisponível e, em decorrência, seu titular não tem como perdê-la, comissiva ou omissivamente, ainda que por ato voluntário. Habita no homem todo e em todos os homens um núcleo essencial, que lhe atribui valor por si e se expressa, juridicamente, no feixe indissociável, interdependente e multidimensional dos direitos humanos que, a rigor, há de ser observado, considerado, respeitado e concretizado pelo juiz. Agir com fraternidade e, se houver miséria, com misericórdia, é justamente reconhecer esse valor que todo homem carrega consigo.”

Nesse aspecto o valor “trabalho” e “livre iniciativa” foram acolhidos pela nova ordem jurídica democrática como elementos fundamentais para a formatação jurídica do estado e para a promoção social do homem.

1 O Capitalismo Humanista. 1ª Ed. Petrópolis: KBR, 2011. p. 127.

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Fiel a esses princípios o constituinte elegeu certos direitos como direitos fundantes de uma sociedade, denominando-os como direitos fundamentais. José Joaquim Gomes Canotilho define os direitos fundamentais como aqueles direitos do ser humano jurídico-institucionalizados, ou seja, àqueles direitos humanos positivados na esfera do direito constitucional de determinado Estado.2 A posição topográfica no texto constitucional e a extensa lista de direitos consagrados com o status jurídico diferenciado de direitos fundamentais revelam a importância dos mesmos para a existência do Estado e da segurança da sociedade. Colhe-se nesse sentido a indispensável lição do Ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Ferreira Mendes3:

“A Constituição brasileira de 1988 atribuiu significado ímpar aos direitos individuais. Já a colocação do catálogo dos direitos fundamentais no início do texto constitucional denota a intenção do constituinte de emprestar-lhes significado especial. A amplitude conferida ao texto, que se desdobra em setenta e sete incisos e dois parágrafos (art. 5º), reforça a impressão sobre a posição de destaque que o constituinte quis outorgar a esses direitos. A idéia de que os direitos individuais devem ter eficácia imediata ressalta a vinculação direta dos órgãos estatais a esses direitos e o seu dever de guardar-lhes estrita observância.”

Na mesma direção e em igual importância cita-se a preciosa lição do Professor Ingo Wolfgang Sarlet4:

“Dentre as inovações, assume destaque a situação topográfica dos direitos fundamentais, positivados no início da Constituição, logo após o preâmbulo e os princípios fundamentais, o que, além de traduzir maior rigor lógico, na medida em que os direitos fundamentais constituem parâmetro hermenêutico e valores superiores de toda a ordem constitucional e jurídica, também vai ao encontro da melhor tradição do constitucionalismo na esfera dos direitos fundamentais.”

2 Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª Ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 393. 3 Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito constitucional. 3ª Ed. rev. E ampl. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 1. 4 A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10ª ed. rev. atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011. p. 66.

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A importância desses direitos ainda pode ser medida pela inclusão dos mesmos no rol das cláusulas pétreas (inciso IV do § 4º do art. 60 da CF) o que impede o desaparecimento dos mesmos em razão da ação do poder derivado. Dentre os direitos fundamentais há o da não-discriminação previsto no caput e inciso I do art. 5º da CF. É bem verdade que o parâmetro antidiscriminatório é encontrado em diversos dispositivos do texto constitucional como no inciso XXX e XXXI do art. 7º; inciso XLII do art. 5º; inciso IV do art. 3º, todos da CF. Pode-se, por isso, falar em princípio da não-dicriminação assim definido por Maurico Godinho Delgado: “(...) a diretriz geral vedatória de tratamento diferenciado à pessoa em virtude de fator injustamente desqualificante.”5 Pois bem. Outra questão que se coloca é a efetividade dos direitos até porque é inócua a extensa enumeração de direitos fundamentais sem concretização ou tutela jurídica. É incontroversa a eficácia dos direitos fundamentais na relação entre o particular e o Estado – mais conhecida como eficácia vertical dos direitos fundamentais – já que os direitos fundamentais originariamente surgiram como forma de limitação da ação estatal na esfera de direitos do indivíduo, ou seja, para a defesa das liberdades individuais. No entanto, a ofensa aos direitos fundamentais não é uma exclusividade do Estado. Nas relações privadas também se verifica a agressão a direitos fundamentais por uma das partes. A Constituição Federal de 1988 não é expressa acerca da horizontalização dos direitos fundamentais, ou seja, não menciona a aplicação direta ou indireta dos direitos fundamentais nas relações privadas. Ocorre que a doutrina e a jurisprudência nacional adotaram o entendimento segundo o qual os direitos fundamentais surtem efeitos nas relações privadas. Esse entendimento tem supedâneo na doutrina e jurisprudência alemãs que a partir do caso Luth (de 15 de janeiro de 1958) trataram pioneiramente da eficácia dos direitos fundamentais nas relações horizontais, conforme magnífico artigo de Simone B. Martins Mello.6 Ingo Wolfgang Sarlet7 em obra de fôlego justifica a eficácia imediata dos direitos fundamentais nas relações privadas a partir de uma interpretação do § 1º do art. 5º da CF: 5 Curso de Direito do Trabalho. 8ª Ed. São Paulo: LTr, 2009. p. 719. 6 A eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações de trabalho. Revista LTr Vol. 75, nº 06, junho de 2011. pp. 690-691. 7 Op. cit. pp. 365-366.

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“Diversamente do que enuncia o art. 18/1 da Constituição Portuguesa, que expressamente prevê a vinculação das entidades públicas e privadas aos direitos fundamentais, a nossa Lei Fundamental, neste particular, quedou silente na formulação do seu art. 5º, § 1º, limitando-se a proclamar a imediata aplicabilidade das normas de direitos fundamentais. A omissão do Constituinte não significa, todavia, que os poderes públicos (assim como os particulares) não estejam vinculados pelos direitos fundamentais. Tal se justifica pelo fato de que, em nosso direito constitucional, o postulado da aplicabilidade imediata das normas de direitos fundamentais (art. 5º, § 1º, da CF) pode ser compreendido como um mandado de otimização de sua eficácia, pelo menos no sentido de impor aos poderes públicos a aplicação imediata dos direitos fundamentais, outorgando-lhes, nos termos desta aplicabilidade, a maior eficácia possível. Assim, por exemplo, mesmo em se tratando de norma de eficácia inequivocamente limitada, o legislador, além de obrigado a atuar no sentido da concretização do direito fundamental, encontra-se proibido (e nesta medida também está vinculado) de editar normas que atentem contra o sentido e a finalidade da norma de direito fundamental. Também no direito lusitano se parte do pressuposto de que o art. 18/1 da CRP assume a função de reforçar o caráter vinculante das normas de direitos fundamentais, que ressalta o dever específico dos poderes públicos de respeitar e promover os direitos fundamentais.”

A mais alta Corte do país já se pronunciou sobre o tema:

EMENTA: SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. UNIÃO BRASILEIRA DE COMPOSITORES. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. RECURSO DESPROVIDO. I. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos,

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estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados. II. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COMO LIMITES À AUTONOMIA PRIVADA DAS ASSOCIAÇÕES. A ordem jurídico-constitucional brasileira não conferiu a qualquer associação civil a possibilidade de agir à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial, dos postulados que têm por fundamento direto o próprio texto da Constituição da República, notadamente em tema de proteção às liberdades e garantias fundamentais. O espaço de autonomia privada garantido pela Constituição às associações não está imune à incidência dos princípios constitucionais que asseguram o respeito aos direitos fundamentais de seus associados. A autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais. III. SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. ENTIDADE QUE INTEGRA ESPAÇO PÚBLICO, AINDA QUE NÃO-ESTATAL. ATIVIDADE DE CARÁTER PÚBLICO. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL.APLICAÇÃO DIRETA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS À AMPLA DEFESA E AO CONTRADITÓRIO. As associações privadas que exercem função predominante em determinado âmbito econômico e/ou social, mantendo seus associados em relações de dependência econômica e/ou social, integram o que se pode denominar de espaço público, ainda que não-estatal. A União Brasileira de Compositores - UBC, sociedade civil sem fins lucrativos, integra a estrutura do ECAD e, portanto, assume posição privilegiada para determinar a extensão do gozo e fruição dos direitos autorais de seus associados. A exclusão de sócio do quadro social da UBC, sem qualquer garantia de ampla defesa, do contraditório, ou do devido processo constitucional, onera consideravelmente o recorrido, o qual fica impossibilitado de perceber os direitos autorais relativos à execução de suas obras.

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A vedação das garantias constitucionais do devido processo legal acaba por restringir a própria liberdade de exercício profissional do sócio. O caráter público da atividade exercida pela sociedade e a dependência do vínculo associativo para o exercício profissional de seus sócios legitimam, no caso concreto, a aplicação direta dos direitos fundamentais concernentes ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa (art. 5º, LIV e LV, CF/88). IV. RECURSO EXTRAORDINÁRIO DESPROVIDO. (Ac. 2ª Turma do C.STF. RE 201819/RJ. Min. Redator. Designado Gilmar Mendes. DJ 27/10/2006)

O C.TST também já enfrentou a questão:

EMENTA: RECURSO DE REVISTA. REINTEGRAÇÃO NO EMPREGO. DISPENSA ARBITRÁRIA. TRABALHADOR PORTADOR DE ESQUIZOFRENIA. 1. O sistema jurídico pátrio consagra a despedida sem justa causa como direito potestativo do empregador, o qual, todavia, não é absoluto, encontrando limites, dentre outros, no princípio da não discriminação, com assento constitucional. A motivação discriminatória na voluntas que precede a dispensa implica a ilicitude desta, pelo abuso que traduz, a viciar o ato, eivando-o de nulidade. 2. A proteção do empregado contra discriminação, independente de qual seja sua causa, emana dos pilares insculpidos na Constituição da República Federativa do Brasil, notadamente os arts. 1º, III e IV, 3º, IV, 5º, caput e XLI, e 7º, XXX. 3. Acerca da dignidade da pessoa humana, destaca Ingo Wolfgang Sarlet, em sua obra -Eficácia dos Direitos Fundamentais- (São Paulo: Ed. Livraria do Advogado, 2001, pp. 110-1), que -constitui pressuposto essencial para o respeito da dignidade da pessoa humana a garantia da isonomia de todos os seres humanos, que não podem ser submetidos a tratamento discriminatório e arbitrário, razão pela qual são intoleráveis a escravidão, a discriminação racial, perseguição em virtude de motivos religiosos, etc. (...). O que se percebe, em última análise, é que onde não houver respeito pela vida e pela integridade física do ser humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas, onde a intimidade e identidade do indivíduo forem objeto de ingerências indevidas, onde sua igualdade relativamente aos demais não for garantida, bem como onde não houver limitação do poder, não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana, e esta não passará de mero objeto de arbítrio e injustiças-. 4. O exercício do direito potestativo de denúncia vazia do contrato de trabalho sofre limites, igualmente, pelo princípio da proteção da relação de emprego contra despedida arbitrária, erigido no art. 7º, I, da Constituição - embora

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ainda não regulamentado, mas dotado de eficácia normativa -, e pelo princípio da função social da propriedade, conforme art. 170, III, da Lei Maior. 5. Na espécie, é de se sopesar, igualmente, o art. 196 da Carta Magna, que consagra a saúde como -direito de todos e dever do Estado-, impondo a adoção de políticas sociais que visem à redução de agravos ao doente. 6. Nesse quadro, e à luz do art. 8º, caput, da CLT, justifica-se hermenêutica ampliativa da Lei 9.029/95, cujo conteúdo pretende concretizar o preceito constitucional da não-discriminação no tocante ao estabelecimento e continuidade do pacto laboral. O art. 1º do diploma legal proíbe a adoção de qualquer prática discriminatória para efeito de acesso a relação de emprego, ou sua manutenção. Não obstante enumere certas modalidades de práticas discriminatórias, em razão de sexo, origem, raça, cor, estado-civil, situação familiar ou idade, o rol não pode ser considerado numerus clausus, cabendo a integração pelo intérprete, ao se defrontar com a emergência de novas formas de discriminação. 7. De se observar que aos padrões tradicionais de discriminação, como os baseados no sexo, na raça ou na religião, práticas ainda disseminadas apesar de há muito conhecidas e combatidas, vieram a se somar novas formas de discriminação, fruto das profundas transformações das relações sociais ocorridas nos últimos anos, e que se voltam contra portadores de determinadas moléstias, dependentes químicos, homossexuais e, até mesmo, indivíduos que adotam estilos de vida considerados pouco saudáveis. Essas formas de tratamento diferenciado começam a ser identificadas à medida que se alastram, e representam desafios emergentes a demandar esforços com vistas à sua contenção. 8. A edição da Lei 9.029/95 é decorrência não apenas dos princípios embasadores da Constituição Cidadã, mas também de importantes tratados internacionais sobre a matéria, como as Convenções 111 e 117 e a Declaração sobre os Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho, de 1998, todas da OIT. 9. O arcabouço jurídico sedimentado em torno da matéria deve ser considerado, outrossim, sob a ótica da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, como limitação negativa da autonomia privada, sob pena de ter esvaziado seu conteúdo deontológico. 10. A distribuição do ônus da prova, em tais casos, acaba por sofrer matizações, à luz dos arts. 818 da CLT e 333 do CPC, tendo em vista a aptidão para a produção probatória, a possibilidade de inversão do encargo e de aplicação de presunção relativa. 11. In casu, restou consignado na decisão regional que a reclamada tinha ciência da doença de que era acometido o autor - esquizofrenia - e dispensou-o pouco tempo depois de um período de licença médica para tratamento de desintoxicação de substâncias psicoativas, embora, no momento da dispensa, não fossem evidentes os sintomas da

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enfermidade. É de se presumir, dessa maneira, discriminatório o despedimento do reclamante. Como consequência, o empregador é que haveria de demonstrar que a dispensa foi determinada por motivo outro que não a circunstância de ser o empregado portador de doença grave. A dispensa discriminatória, na linha da decisão regional, caracteriza abuso de direito, à luz do art. 187 do Código Civil, a teor do qual o exercício do direito potestativo à denúncia vazia do contrato de trabalho, como o de qualquer outro direito, não pode exceder os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. 12. Mais que isso, é de se ponderar que o exercício de uma atividade laboral é aspecto relevante no tratamento do paciente portador de doença grave e a manutenção do vínculo empregatício, por parte do empregador, deve ser entendida como expressão da função social da empresa e da propriedade, sendo, até mesmo, prescindível averiguar o animus discriminatório da dispensa. 13. Ilesos os arts. 5º, II - este inclusive não passível de violação direta e literal, na hipótese -, e 7º, I, da Constituição da República, 818 da CLT e 333, I, do CPC. 14. Precedentes desta Corte. Revista não conhecida, no tema. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. ASSISTÊNCIA SINDICAL. AUSÊNCIA. NÃO-CABIMENTO. A teor da OJ 305/SDI-I/TST, -na Justiça do Trabalho, o deferimento de honorários advocatícios sujeita-se à constatação da ocorrência concomitante de dois requisitos: o benefício da justiça gratuita e a assistência por sindicato-, e, nos moldes da Súmula 219, I, do TST, -a condenação ao pagamento de honorários advocatícios, nunca superiores a 15% (quinze por cento), não decorre pura e simplesmente da sucumbência, devendo a parte estar assistida por sindicato da categoria profissional e comprovar a percepção de salário inferior ao dobro do salário mínimo ou encontrar-se em situação econômica que não lhe permita demandar sem prejuízo do próprio sustento ou da respectiva família-. Revista conhecida e provida, no tema. (RR - 105500-32.2008.5.04.0101 , Redatora Ministra: Rosa Maria Weber, Data de Julgamento: 29/06/2011, 3ª Turma, Data de Publicação: 05/08/2011)

Desse modo, é inegável que a proibição à discriminação não se dirige apenas ao Estado mas também ao particular nas relações privadas. Cabe acrescentar que na interpretação das regras constitucionais deve-se aplicar o princípio da máxima efetividade segundo o qual a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê.8 8 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. cit. p. 1224.

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Infere-se, portanto, que, apesar do silêncio do poder constituinte originário, os direitos fundamentais aplicam-se às relações privadas em vista do princípio da máxima efetividade das normas constitucionais. Ademais, negar a eficácia horizontal dos direitos fundamentais seria o mesmo que negar a força vinculante da Constituição Federal nas relações privadas e sua supremacia na pirâmide normativa. Reconhece-se a autonomia privada da vontade nas relações privadas, porém, admite-se ao mesmo tempo que essa autonomia não torna os particulares imunes aos limites e restrições impostos como salvaguardas constitucionais. É por isso que o direito de propriedade, o direito potestativo de rescisão contratual e a própria autonomia privada da vontade devem ser interpretados e aplicados no caso concreto à luz do princípio da dignidade da pessoa humana denominado como princípio-guia do sistema jurídico por José Antônio Ribeiro de Oliveira Silva.9 Em atendimento ao manancial de direitos e princípios que resguardam a dignidade da pessoa humana, rejeitando a discriminação manifestados no inciso III e IV do art. 1º; incisos I, III e IV do art. 3º; caput e incisos I e XLI do art. 5º, todos da CF, além da função social da propriedade privada e da busca do pleno emprego expressos nos incisos III e VIII do art. 170 da CF, respectivamente, e da função social do contrato e da boa-fé contratual indicados nos artigos 421 e 422 do Código Civil, respectivamente e, finalmente, em obediência às Convenções 111 e 117 e à Declaração sobre os Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho, de 1998, todas da OIT, o legislador infraconstitucional editou a Lei nº 9.029, de 13 de abril de 1995 na qual se veda expressamente a adoção de prática discriminatória para acesso ao emprego ou sua manutenção. Com efeito, o legislador infraconstitucional albergou expressamente um direito fundamental a ser aplicado, inclusive, na relação privada. No presente caso a reclamante foi admitida para a função de telefonista em 01/08/2008, tendo sido dispensada em 11/08/2009. Alega a reclamante que teria sido dispensada por discriminação já que seria portadora de perda auditiva tendo que utilizar aparelho auditivo. Ficou comprovado que a dispensa decorre de prática discriminatória. Os documentos de fls. 15/17 revelam que a reclamante tomou conhecimento damoléstia em junho de 2009. 9 A saúde do trabalhador como um direito humano: conteúdo essencial da dignidade humana. São Paulo: LTr, 2008. p. 71.

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A autora sustenta que somente foi dispensada após comunicar seu supervisor acerca da perda auditiva e da necessidade de ter que utilizar aparelho auditivo. Ocorre que o preposto da reclamada não soube informar a data em que a reclamante comunicou o supervisor sobre a perda auditiva nem se essa comunicação teria ocorrido antes ou depois do aviso prévio (fls. 46/47). O desconhecimento dos fatos implica na presunção de verdade das alegações da parte contrária. As declarações do preposto vinculam a empresa, consoante § 1º do art. 843 da CLT. Com isso, ficou fragilizado o valor probatório do documento de fls. 68. Impende observar que no direito do trabalho vigora o princípio da primazia da realidade segundo o qual os fatos apurados nos autos prevalecem sobre qualquer formalidade registrada. Acrescente-se que a reclamada não logrou êxito em comprovar que a dispensa da reclamante devia-se a critérios técnicos, já que não trouxe aos autos qualquer avaliação que indicasse insuficiência de desempenho da autora na função. Desse modo, é imperiosa a readmissão da reclamante aos quadros da 1ª reclamada sendo-lhe garantido os salários vencidos e vincendos desde a ilegal dispensa até o efetivo retorno, bem como FGTS, férias acrescidas de um terço e 13º salários. Todavia, face a perda auditiva apresentada pela reclamante, autoriza-se a readaptação da autora em outra função a fim de se evitar eventual agravamento do problema, desde que mantida a mesma remuneração. 5. Da indenização por dano moral: As reclamadas insurgem contra a condenação por dano moral e por cautela requerem a redução do valor da indenização. Já o reclamante pleiteia a majoração do valor da indenização. Razão não lhes assiste. O dano moral corresponde à lesão ao patrimônio psíquico ou ideal da pessoa, conforme ensinamento de Sílvio de Salvo Venosa10. 10 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Responsabilidade Civil. 4º vol. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 203.

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Nesse sentido o dano moral atinge os direitos da personalidade da pessoa, ou seja, resulta da violação à intimidade, honra e imagem. Esse dano é de tal ordem capaz de provocar uma profunda dor física ou psicológica no lesado. Por ser uma lesão que normalmente tem repercussão na intimidade da pessoa, não se cogita de prova desse dano para que haja responsabilização do agente causador. Alice Monteiro de Barros11 explica que a responsabilização surge no momento em que se verifica a lesão, não se cogitando de prova do dano, uma vez que não se poderia exigir do lesado a prova do seu sofrimento. Dessa forma, o pedido de condenação da reclamada por danos morais deve ser analisado sob o prisma da existência ou não da violação (ato ilícito) e se esta é capaz de gerar seqüelas psicológicas. Este é o posicionamento do C.TST:

“PRELIMINAR DE NÃO-CONHECIMENTO DO RECURSO DE REVISTA ARG6UIDA EM CONTRA-RAZÕES. I – O fato de o recurso não atender aos requisitos da Instrução Normativa nº 23 do TST não constitui óbice para a sua análise, uma vez que a referida instrução apenas cuida de recomendações técnicas para a formação do recurso de revista. II – A revista obedeceu aos requisitos extrínsecos, tendo em vista que se encontra tempestiva, com o preparo e representação regulares. III Rejeito. DOENÇA PROFISSIONAL. LER OU DORT. DANO MORAL. CONFIGURAÇÃO. RESPONSABILIDADE. I É sabido que o dano moral prescinde de prova da sua ocorrência, em virtude de ele consistir em ofensa a valores humanos, bastando a demonstração do ato em função do qual a parte diz tê-lo sofrido. II – Por isso mesmo é que em se tratando de infortúnio do trabalho há de se provar que ele, o infortúnio, tenha ocorrido por dolo ou culpa do empregador, cabendo ao Judiciário se posicionar se o dano dele decorrente se enquadra ou não no conceito de dano moral. III – É certo, de outro lado, que o inciso X do artigo 5º da Constituição elege como bens invioláveis, sujeitos à indenização reparatória, a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas. Encontra-se aí subentendida no entanto a preservação da dignidade da pessoa humana, em razão de ela ter sido erigida em um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, a

11 BARROS, Alice Monteiro de. Curso de Direito do Trabalho. 2ª ed. rev. e ampl. São Paulo: LTr, 2006. p. 620.

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teor do artigo 1º, inciso III da Constituição. IV – Significa dizer que a norma do inciso X do artigo 5º da Carta Magna deve merecer interpretação mais elástica a fim de se incluir entre os bens ali protegidos não só a honra e a imagem no seu sentido mais estrito, mas também seqüelas psicológicas oriundas de ato ilícito, em razão de elas, ao fim e ao cabo, terem repercussões negativas no ambiente social e profissional. V – Constatado ter a recorrente adquirido LER em conseqüência das condições adversas de trabalho executado, capazes de causar o afastamento da reclamante do trabalho pelo INSS, em função da qual se extrai notório abalo psicológico e acabrunhamento emocional, tanto quanto irrefutável depressão por conta do confinamento das possibilidades de inserção no mercado de trabalho, impõe-se a conclusão de achar-se constitucionalmente caracterizado o dano moral. Conclusão que não se altera pelo fato de tais condições terem sido minimizadas, bem como de ter sido indicada a reabilitação profissional pelo INSS. VALOR DA CONDENAÇÃO. I O recorrido reitera nas contra-razões do recurso de revista a impugnação veiculada, no recurso ordinário, ao valor arbitrado pelo Juízo de primeiro grau. Cabe o pronunciamento do TST. II – Ainda que inusual em sede de cognição extraordinária, verifica-se que a sentença arbitrou o valor de 20 vezes a última remuneração da autora. III – Em relação ao arbitramento do valor da indenização por dano moral, é sabido que se deve observar o critério estimativo, levando em conta a gravidade da ofensa e a capacidade econômica do ofensor, tanto quanto o objetivo dissuasório de práticas assim malsãs. IV – Adotando tais parâmetros e considerando que houve reabilitação indicada pelo INSS, conforme se deduz da fundamentação regional, o que indica a temporariedade da lesão, é razoável a redução do valor arbitrado para o equivalente a 10 vezes a última remuneração da autora. V Recurso conhecido e provido parcialmente. DIFERENÇA DE MULTA DE 40% DO FGTS. EXPURGOS INFLACIONÁRIOS. RESPONSABILIDADE. I – Prescreve a Orientação Jurisprudencial nº 341 da SBDI-1/TST que [...] é de responsabilidade do empregador o pagamento da diferença da multa de 40% sobre os depósitos do FGTS, decorrente da atualização monetária em face dos expurgos inflacionários. II – Recurso de revista conhecido e provido. (grifamos. Ac. 4ª Turma do C.TST. RR 703/2003-441-02-00. Rel. Min. Barros Levenhagen. DJ 11.10.2007)”

É evidente que a discriminação sofrida pela autora acarretou-lhe profunda angústia, tendo atingido a sua autoestima. A vida profissional do indivíduo é uma das dimensões mais significativas da sua personalidade. O trabalho e a profissão funcionam como um elemento de identificação e valorização do ser.

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Por isso, aquele que é dispensado por critério desqualificante a partir da falsa premissa de que por ostentar certa deficiência seria incapaz de colaborar para o sucesso empresarial é agredido na sua dignidade. Diante do ilícito praticado consubstanciado no abuso do direito potestativo de rescindir o contrato de trabalho, faz-se necessária uma indenização de cunho reparatório e ao mesmo tempo inibitória de futuras práticas ilegais semelhantes. Insta observar que não existe no nosso ordenamento jurídico dispositivo legal fixando parâmetros ou mesmo valores para a indenização por dano moral. Com o advento da Constituição Federal de 1988 não mais subsiste qualquer regra de tarifação da indenização por dano moral. Este é o entendimento do C.STJ manifestado na Súmula nº 281:

281 - A indenização por dano moral não está sujeita à tarifação prevista na Lei de Imprensa. (DJ 13.05.2004)

A jurisprudência já sedimentou o entendimento de que a fixação do valor de indenização por dano moral deve ser feita por arbitramento (interpretação analógica do art. 953 do Código Civil), sendo que o órgão julgador deverá valorar aspectos como a gravidade do ilícito civil praticado, a repercussão do fato, a extensão do dano (art. 944 do Código Civil), a capacidade econômica das partes envolvidas e a duração do contrato de trabalho. Além desses parâmetros, a doutrinta e jurisprudência também apontam uma dupla finalidade para o quantum indenizatório: o valor deve proporcionar à vítima alguma compensação e ao mesmo tempo inibir o transgressor da prática de novos atos ilícitos12. Acrescente-se, ainda, que na fixação desse valor indenizatório o órgão julgador deve pautar-se pelo princípio da razoabilidade, a fim de encontrar um valor que não seja ínfimo, nem excessivo para que não se converta e meio de enriquecimento sem causa. No caso em tela deve-se considerar a extensão dos danos sofridos pela reclamante. A gravidade da culpa da reclamada é atestada pelas natureza da ofensa direta a um direito fundamental. Em casos como este a condenação deve ser também exemplar para desestimular a conduta ilícita.

12 OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Indenizações por Acidente do Trabalho ou Doença Ocupacional. 2ª ed. São Paulo: LTr, 2006. p .194.

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Desse modo, não merece reparo a r. sentença que fixou a indenização em R$ 10.000,00. 6. Da responsabilidade da 2ª reclamada: Argumenta a 2ª reclamada que a reclamante não teria comprovado ter prestado serviços para a ora recorrente. Pondera que a Súmula nº 331 do C.TST não abrangeria indenização de natureza civil. aduz que não haveria solidariedade ou subsidiariedade quanto às contribuições sociais. Primeiramente cumpre observar que a 2ª reclamada admite em suas razões recursais que não negou o fato de que teria se aproveitado da prestação de serviços da reclamante, conforme 7º parágrafo no verso da fl. 195. Por isso, é incontroverso que a 2ª reclamada figura como tomadora de serviços, tendo se aproveitado do trabalho da reclamante. O contrato juntado a fls. 131/152 revela que a 2ª reclamada terceirizou para a 1ª reclamada o serviço de telefonista. A terceirização consiste "(...) na possibilidade de contratar terceiro para a realização de atividades que não constituam o objeto principal da empresa."13 O objetivo dessa forma de organização da atividade produtiva é a formação de parceria através da qual uma empresa complementa a atividade da outra. O fato da reclamante não ter sido empregada da 2ª reclamada não desonera esta última de responder subsidiariamente por dívida reconhecida nestes autos, uma vez que beneficiou-se do labor prestado pela trabalhadora. Com efeito, a responsabilidade é subsidiária e não solidária como fixou a r. sentença. Os tomadores de serviços respondem subsidiariamente, em caso de inadimplemento da prestadora de serviços pelas dívidas trabalhistas, na hipótese em que a contratação foi legal e regular (Súmula 331, IV, do C.TST). Nestes autos, restou caracterizada a inidoneidade da empresa empregadora tendo em vista a dispensa discriminatória. A 2ª reclamada tem o ônus de fiscalizar a idoneidade financeira da empresa prestadora de serviço. Na hipótese de haver descumprimento das normas por parte da prestadora de serviço caracterizar- 13 MARTINS, Sergio Pinto. A Terceirização e o Direito do Trabalho. 4ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Atlas, 2000. p. 23.

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se-á culpa in eligendo (na escolha da empresa prestadora) e culpa in vigilando (na fiscalização da empresa) das tomadoras, o que por si só enseja a sua responsabilização. Tal decorre da mesma regra inserta no art. 159, do Código Civil Brasileiro de 1916, renovado pelo art. 186, do novo Código Civil Brasileiro de 2002: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano”, ou “...ainda que exclusivamente moral (o dano), comete ato ilícito”, de onde se extrai a necessária diligência da contratante, quanto à capacidade financeira da contratada, especialmente com relação aos empregados que admitir para a prestação dos serviços a que se comprometeu. No mesmo sentido, o item IV da Súmula nº 331 da Súmula do C. TST:

“inadimplemento das obrigações trabalhistas por parte do empregador implica na responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços quanto àquelas obrigações, inclusive quanto aos órgãos da administração direta, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista, desde que este tenha participado da relação processual e conste também do título executivo judicial”

Ainda que os vínculos obrigacionais entre as empresas possuam regramento jurídico na esfera do Direito Civil, as relações estabelecidas com os empregados, na execução do contrato, devem ser analisadas à luz do Direito do Trabalho. Neste ponto releva notar o caráter protetor que informa o Direito do Trabalho que, em casos de inadimplência da prestadora de serviços, a tomadora passa a responder pelos débitos trabalhistas, a exemplo do que prevê o art. 16 da Lei nº 6.019/1974 (Lei do Trabalho Temporário nas Empresas Urbanas). Acrescente-se, ainda, que não obstante não haja normatização específica acerca da responsabilidade subsidiária da empresa tomadora, que se beneficia da prestação de serviços sem ter que suportar os encargos dela decorrentes, trata-se de questão de relevante interesse social pois não são raras as vezes em que o trabalhador se vê impossibilitado de cobrar de seu empregador direto os direitos que lhe foram judicialmente reconhecidos. Por essa razão reconhece-se a responsabilidade subsidiária da 2ª reclamada, ressaltando-se ainda que a trabalhadora, alheia ao pacto firmado entre as co-reclamadas e possuidora de crédito privilegiado,

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deve receber dentre as devedoras daquela que tem meios de pagar, podendo a responsável subsidiariamente utilizar-se posteriormente da ação regressiva em relação à responsável principal (art. 934 do Código Civil de 2002). Nem se alegue que o fato da terceirização ser regular afastaria a responsabilização da tomadora. Isso porque eventual irregularidade na terceirização enseja a responsabilização solidária da tomadora, teor do disposto no art. 186 do Código Civil e item I da Súmula nº 331 do C.TST. Ainda que a terceirização seja regular haverá responsabilização da tomadara, porém, de forma subsidiária. Do acima exposto, extrai-se que sempre haverá responsabilidade subsidiária da contratante dos serviços, quando não ocorra o adimplemento das obrigações contratuais por parte da efetiva empregadora, de forma a resguardar os direitos daquele que entregou sua força de trabalho. Desse modo, não merece reparo a r. sentença nessa parte. Esclareça-se que a responsabilidade subsidiária envolve a globalidade dos valores objeto da condenação, o que inclui a indenização por dano moral e as contribuições previdenciárias, conforme item VI da Súmula nº 331 do C.TST. Ante o exposto, acordam os Magistrados da 12ª Turma do E. Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região em: conhecer dos recursos ordinários interpostos pelas partes e, no mérito, DAR PROVIMENTO PARCIAL ao recurso interposto pela reclamada Osesp Comercial e Administradora Ltda a fim de autorizar a readaptação da reclamante em outra função, mantida a remuneração da obreira, NEGAR PROVIMENTO aos recursos interpostos pelo reclamado Banco Santander (Brasil) S/A e pela reclamante, tudo conforme fundamentação do voto. Mantido o valor das custas e da condenação. Ficam desde já advertidas as partes que a oposição de embargos de declaração para reapreciação da prova ou para discutir pontos sobre os quais houve expresso pronunciamento do órgão julgador, ainda que contrário ao interesse das partes, configurará intuito protelatório. Essa conduta abusiva da parte atenta contra o princípio da celeridade processual previsto no inciso LXXVIII do art. 5º da CF e autoriza a aplicação da pedagógica e inafastável sanção prevista no parágrafo único do art. 538 do CPC.

MARCELO FREIRE GONÇALVES Desembargador Relator