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J ULI O CABRERA o CINEMA PENSA Uma introdução à filosofia através os filmes Tradução de RITA VINAGRE .

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JULIO CABRERA

o CINEMA PENSAUma introdução à filosofia

através os filmes

Tradução deRITA VINAGRE

.

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Titulo do originalCIN E, 100 ANOS DEFlLOSOFlA

Una introducción <lo la filosofia a través dei anãlisisde pelfculas

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Printed in Brazib1mpressono Brasil

preparação de originais

FELIPE ANTUN ES DE OLIVEIRA

CIP-Brasil. Calalogação-na-fome.Sindicato N acional dos Editores de Livros, Rl

suMÁRIo

P REFACIO PARAA EDIÇÃO BRASILEIRA.. .•. . . 9

CINEMA E F ILOSOFIA

Para uma crítica da razão logop ãtica 15

EXERCíCIO 1

Platão vai à guerra (A reoria das idéias) 49

EXE RCl c IO 2Aristóteles e os ladrões de bicicleta (A qu estão do verossímil) 68

Exsncrcro 3São Tomás e o bebê de Rosemary (A filosofia e o sobrenatural) 93

EXERCíc IO 4Bacon, Steven Spielberg e o cinema-ca tástro fe (A relaçãodo homem com a natureza) 112

Cl 23c

06-0287

Cabrera. Julio

O cinema pensa: uma introdução à filosofia atra v és

dos filmes/Julio Cabrera; tradução de Ryta Vinagre. _Rio de Jane iro: Rocco, 2006.

Tradução de: Cine: 100 afias de filosofiaISBN 85-325-2023-5

1. Cinema - Filosofia . LT üulo.

CDD -79 1.4301 ~

CDU - 791.43.000.141

EXERClcIO 5Descartes e os fotógrafos indiscreros (A d úvida eo problema do conhecimento).. , .

EXERCíCIO 6Os empirisras britânicos: John Locke e David Hume.A identidade de Batman e Q uentin Taran tino (As críricasempiristas da substância e da causalidade) .

140

159

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.!s

CINEMA E FILOSOFIA

Para uma cr ít ica da ra?-o lo go párica

I - Pensad ores páricos e pensadores apáricos

diante do surgimento do cinema

A filosofia não deveria ser considerada ai o erfeitamenre defini- Ido antes do surgImento o cinema, mas sim a1 o que po derIa fmodificár:secom esse sur-glmento. Neste séntl o , a I 050 la)/?

quando manIfesra seu Imeresse pela ~usca da verdade, não deve­ria apoiar a indagação acerca de si mesma apenas em sua próp riatradição , como marco único de auto-elucidação , mas inserir-se naroralidade da cultura .

Isto que se diz a respeiro do cinema poderia ser dito, propria­mente falando, de qualquer outro surgimento ou desenvolvimen­to cultu ral, já que a filosofia, por sua pró pria narureza abrangentee reflexiva, deixa-se aringir por rudo que o homem faz. A filosofiavolra a se definir diante do surgimento do mito , da religião, daciência, da pol ítica e da recnologia.

Assim como a narrariva literária se deixou influenci ar pelastécni cas cinematográficas (vide, por exemp lo, o livro de Ca rmenPefia-Ardid, Literatura y cine], podedamos 'p<;nsaLQue rambém afilosofia sofreu, em bora inconsciê nt,emente, esta influência, antesaõ~~;;;-~heci;:;~~to oficial da exisrê~~;;J~~2i;:;~~à no séculõX'X.Jãem séculos anrenores, surgiram ãrg~mas linh as de'pensamentôque ten ta ram uma modi ficação - qu e me arre veria a chamar"cinematográfica" - da racional idade humana: a tradição herrne-

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16 J U LI O CA BRE RA O C I N EM A PE NSA 17

-, n êuti ca, sobretudo depois da "virada onto lógica" dada a esta tra­dição no sécu lo XX por H eidegger, O surgimento e a extinçãorápida do existencialismo de insp iração kierkegaardiana, dos anos1940 e 1960, e a ma neira de fazer filosofia de Friedri ch Nie tzsche,amplamente inspi rada em Scho penhauer, no final do século XIX.O que é que estas co rrentes do pensamento t êm em comum ?Resposta possível: ter problematiza do a racionalidade puramentelógica (lagos) com a qual ofiMsofô encarava habitualmente o mundo,para jllZer intervir também, no p rocessp de comp reensão da realida­de, um elemento afetivo (ou "pdtico").

Pensadores eminentemente lágicos (sem o elemento pâtico, oupensadores ap áticos, como poderíamos chama r) foram, quase comcerteza, Aristóteles, São Tomás, Bacon, D escartes, Locke, Hu me,Kanr e W irrgens rein, deixando de lado casos mais controversos(como Piarão e Santo Agostin hoj .IQ uern conhece bem aquelesfilósofos talvez esteja aqui a ponto de proresrar. Nã o quero dizerque estes pensadores não [orm ularam o problema do impacto dasensibilidade e da emoção na razão filosófica, nem que não tema ­tizaram o componen re párico do pensamento, nem que não serefer iram a ele. De fato , Aris t óte les se referiu às paixões, SãoTomás falou de sentimentos mlsticos, Descartes escreveu um tra­rado sobre as paixões da alma, H ume formulou urna moral do sen­cimento e Wittgensrein se referiu ao valor relacionado à vontadehu ma na. Mas Scho penhauer, N ierzsche, Kierkegaard, Heide ererc., isto é, os filosóficos ª~ro:."l;âtlCoS ou cmerrtatográficos")Foram m Ulto mais lon e: não se li.'!'it!!ram a tematizar o componen­te a etiuo, maso incluíram na racionalidade como um elementoessen­Ciãlãê acesso ao m undo. O paihôs 'aei~~& ser um "objeto'Ue-êsÚ.ldõ--;a-que se,pod e aludir exteriormente, para se transformaremum a forma de encaminhamento.

Em geral, cosr umamos dizer a nossos alunos qu e, par a seaprópnar de um pro blema filosófiCõ', nao e suf'iêiente ente nde-Iõ:tam bém é preClSo vivê-lo, senti: lo na pele,([ra:m~tii.I:lo~sofiê-lo:

padecê-lo, sen tir-se ameaçado irár e.!e.L.s..e.~(J.~e nossas DãSésh"ã6ltuais de sus rentação são afetadas radicalmente. Se n'ão' fOr• • • •• n • • _ _ • • •• •• - _(

assim, mesmo quando "entendemos" plen amen te o enu nciadoobjetivo do pr obl ema, não te remos nos ap rop riado dele e nãoteremos realmente entendido. H á um elemento experiencial (não"empírico") na ap rop riação de um problem a fi los ófico que nostorna sensíveis a muitos d estes problemas e insensíveis a outros(isto é, cada u m de nós nã o se sen te igualmenre pre disposto ,"experiencialrnente ", a todos os pro blemas filosóficos. Algun s filó­sofos se sen tiram mai s afetados pela questão da dúvida, OUtrOS

pela questão da responsabilidade moral, outros ainda pela ques tãoda beleza etc .).

t. um fato que a filosofia se desenvolveu, ao longo de sua hi s­tória, na arma literdrza e não, oe exemplo , através de imagens.

aderíamos COOSI eear a 1asa lal eotre outras COISas. um generoliterário, urna forma de escrita . Assim , as idéias filosóficas foram~pressas de fo rma literárIa "Íaturalmen te, sem maior aut o­reflexão. Mas quem disse que deve ser assim? Existe alguma ligaçãointe rna e necessária entre a escrita e a probl ernatização filosóficado m undo? Por que as im agens não introduziriam prob lernariza-ções filosóficas, tão contundentes , ou mais ainda, do que as veicu- fladas'pela escrita? Não parece haver nada na narureza do inda{íar h-­filosófico qu e o condene inexoravelmenre ao meio da escrira artT<) lC. "~'"cuIada. Poden amos Imagmar, em um mu ndo possível, uma cultu--·'ira filos5fica desenvolvida integralmente por fotografias ou dança, .por exemplo. Nessa cultura possível, talvez as formas escritas deexpressão fossem consideradas meramen te estéticas ou meios dediversão.

À primeira vista, pode ser assustador falar do cinema como deum a fo rma de pensame nto, assim como assustou o lei to r deHeidegger inteirar-se de que "a poesia pensa" . Mas o que é essen­d al na filosofia é o questionamento radical e o carárer hiperabran­gente de suas considerações . Isto não é incompat ível, ab initio,com urna apresentaçao ·Ima~érica" (por me io 'd ~ ' (";"age'ns) dequestões , e seria um precon ceito pensar que existe uma incompa­tibil idade. Se houver, será preciso apresenrar argumentos, porquenão é urna questão óbvia.

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VTalvez O cinema nos apresente uma linguage m mais adequada

do que a linguagem escrita para expressar melhor as in tu ições queos mencionados filósofos (Schopenhauer, Nierzsche, Kierkegaard,Heidegger) riveram a respeito dos lim ites de uma racionalidadeunicamente lógica e a respeito da apreensão de certos aspectos domundo que não parecem ser captados por uma total exclusão doelemento afetivo. Será que muito do que tenta d izer Heidegger,por exemplo, quase infrutiferamente e destruindo irnpiedosamen­te a língua alemã, criando frases dificilmente inteligíveis e lançan­do sinais misteriosos, levando seus dedicados leitores ao desespero(algo que também poderia ser dito de Hegel e de suas tentativasdesaforadas de pensar o conce ito "temporalmente", pondo-o "emmovimento"), não poderia ser muito mais bem exposto pelas ima­gens de um filme? Mas não come{Carna21dizia de Nietzsche (emseu artigo ainda expressivo "A eliminação da merafísica através daanálise lógica da linguagem"), afirmando que o que "carece de sen­tido co nitivo" é mais bem "êxpresso" na linguagem da poesia, )assumindo-se a mensagem camomeramente effiOClOll " , mas, ao

"contd.n o, no sentIdo de que o CInema consegrnrta Ciar sen'lí'McÕ=nz.tzvo ao que tI egger e outros 1 ÓSO os Clnematogra Icas'i)tentaram dIzer medIante o recurso TIteráno, ao uuhzar um a raczo­na t ogopatzca e não apenas glca. CInema o erecena uma1tnguagem que, erilhe outras COIsas, êtitaria a realização destesexperimentos crone nbergianos com a escrita, deixando de insistirem "bater a cabeça contra as paredes da linguagem", como dir iaWittgenstein. Assim, o cinema não seria uma espécie de claudica­ção diante de algo que não tem nenhuma articulação racional e aoqual, por conseguinte, seria dado um veículo "puramente emocio­nal" (equivalente a um grito), mas sim outro tipo de articulaçãoracional, que inclui um componente emocional. O emocionainãodesaloja () racional: redefine-o . .

Menciono Heidegger polque foi ele, dentre todos os filósofosmais recentes, quem expressou de maneira mais clara este com­promisso da filosofia com um patbos de caráter fundamental,quando fala, por exemplo , da angústia e do téd io ~omo sentimen-

tos que nos colocam em contato com o ser mesmo do mundo, comosentimentos com valor cognitivo (no sentido amplo de um "aces­so" ao mundo, não em um sentido "epistemológico'} Ao se refe­rir à poesia como "pensante" - e não, simplesmente, como umfenômeno "estético" ou um desabafo emocional - Heidegger aconsidera essencialmente apta a expressar a verdade do ser, ao ins­taurar o poeta uma esfera de "deixar que as coisas sejam", sem ten­tar dominá-las ou controlá-las tecnicament e, por me io da ativida­de que denomina GeLassenheit ("serenidade" seria uma traduçã oaproximada). Não pareceria demasiado reb uscado considerar ocinema, com seu tipo particular de linguagem, uma forma possívelda Serenidade, uma forma de captação do mundo que promove ­como a poesia - esta atitude fundamental diante do mundo (mes­mo que o próprio Heidegger tenha sido cético com relação à signi­ficação do cinema, a qual relaciona com as modernas técnicas doentretenimento e não com a atitude pensante que atribui à poesia).

Chamar de cinem atográficos filósofos como Kierkegaard,Nietzsche e Heidegger pode levar a pensar que se sabe perfeita­mente o ue é o cinema. Ma verdade, não sabemos o que é ocinema Jean -C aude Carritre em seu maravilhoso livro TheSecretLanguage o l m expr u isso muito bem, ao dizer que ocinema é uma experiência aberta, sempre se redescobrindo, fu in-

a ermanentemenre as regras que procuram a nSlOná- a ema gum (anone esta e cc! o. as nao sa emos o que é o cinemaporúma razão projúndá, na re~lidade pelo mesmo tipo de razão pelaqual tamp ouco sabemos o que é a filosofia. Não porque sejamos

ignorantes ou porque não tenhamos ido bastante à biblioteca ou ~às cinernatecas, mas pela própria natureza do tema . Por isso, o que ,vou dizet aqui a respeito do cinema é completamente estratégico:trata-se de uma caractenzaçao convenIente dó Ónema para propd- .~sztos os6 cos, isto é, para a intenção e canSl erar os 1fies comoarmas de ensamento . ao se trata, portanto, e e lnl oes er-'

manentes e intoc vel~

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Ih

II - Conceitos-im agem

Algumas das razões para chamar aqueles filósofos "p ãticos" de"cine rnatogrãficos"J como fo i sugerido anterio rmente, seriam asseguintes:

Os "filósofos cinematográficos" sustentam que, ao menos, cer­tas dimensões fundamentais da realidade (ou talvez toda ela) nãopodem simplesmente ser ditas e articuladas logicamente para quesejam plenamente entendidas, mas devem ser apresentadas sensivel­mente, por meio de uma compreensão "logopática" , racionale aftti­ua ao mesmo tempo. Sustentam também que essa apresentação sen­sível deve produzir algum tipo de impacto em quem estabelece umcon tato com ela. E terceiro - mui to impo rtante - , os "filósofoscinematográficos" sustentam ue ar meio dessa a resentaçiío Jen-'stue tm aetante, sao a (an as certas realidades ue o em ser'ôeten'C!Tdas compretensõesde veniZldeuniuersa , sem se trarar ortan­to, e meras Impressoes p .,. cas, mas e experiências funda­mentaiS h das a condi o htiffiana, Isto é, relacionadas a todâa

umani.dtu:U e ue $Suem ürtanto. um sentido cogn"lrivo.Pois bem, estas três caracter ísticas das I osohas apresen1adas

pel os pensador es páti cos parecem-me defi nir a ling uage m docinema, se considerada do ponto de vistafilosófico. Como disse noiníc io, não quero pressupor aqu i un:. _",:,~_d.e.Ji l osofia, m~

sim consohdar um , ao mesmo tempo que consideram os filosofi­camente o cmema.p irel que o clriema~ visto··fiJos6fic"áme nté: "'l;construção do que chamarei conceitos-imayem , um tipo de "con­ceito visual" estrut uralmente diferente dos con ceitos tradicionaisut ilizados pela filosofia escrita, a que chamarei aqui de conceitos-idéia. -

O que é um conceito-imagem( Wittgenstsi.;J,os advertiu a res­peito do perigo de formular esse~-áe-pergunt a essencialista(que começa com as palavras "O que é..."), pois elas nos levam atentar pro po r uma respo sta defin it iva e fechada, do tipo "Osco nce itos- imagem são ..." . Mas esta noção não tem co nto rno sabsolutamente nítidos, nem um a definição precisa. E creio que

não deve ter, se pretende conservar seu vaiar heurísrico e crít ico.De form a que o que vou dizer aqui sobre conceitos-im agem ésimplesment e uma espécie de "encaminhamento" - num senti doheideggeriano - , isto é, um "pôr-se a caminho" em uma determi­nada direção compreensiva, para onde aponta esta caracrerização,mas sem querer fechá-la nem traçá-Ia completamente.

1.U~t~-ima9.em )é instaurado e func ion a no contexto 'de uma experiência que é preciso ter, para que se possa entender eutilizar esse conceito. Por conseguinte, não se trata de um concei­to extern o, de referênãã'êxterior a algo, mas de uma linguagem;;'staur'l1JOra qu eyrecisa passar por~-.:" eriência para ser ple­namente consolidada. Parãfraseand 'Austin po e-se izer qu e oéine ma é como um "fizer coisas com Imagens».

A racional idade logopática do cinema muda a estrutura habi­tualment e aceita do saber, enq uanto definido apen as lógica ouintelectualmente. Saber algo, do ponto de vista logopático, nãoco nsiste somente em ter iCllltorma óes" mas tam bém em estarãOerro a cerro tipO e expen encla e em aceitar deixar-sea etar poruma COIsa de dentro dela mesma, emuma ex ene ncla VIVida.~arma qu e é preciso aceitar que parre deste saber não é izivel, não fi

pode ser transmitido àquele que, por um ou outro mot ivo, nãoestá em condições de ter as experiências correspondentes.

É claro que um filme semp re pode ser colocado em palavras,no que se refere a seu componente purame nte lâgico. Posso d izer,por exemplo: "O tratame nto da questão da dúvida no filme BlowUp - Depois daquele beijo, de Michelangelo Anton ioni, consisteem colocar seu personagem em uma situação de incerreza intole- ':rável" . 5.? 9..l±,e. istos~r á plenamentecpmP..LSS"sível somente vendo-se i~

Ofi lme, instaurando a experiência corres ondente , com toda a sua I 0 :1.«:orça emocJOn . O que se acrescenta à leitura o cômentário ou v

á smopse no mõ1nento de ver o filme e de ter a experiência que ofilme propõe (a experiência do que o filme e) não é apenas lazer,ou uma "experiência estética», mas uma dimensão compreensivado mundo. .--_._-

- I

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f. cla ro que simplesmente uer o filme , como reco mendavaFellin i a seus cdricos mais in telectuais, não é, per se, fazer filosofia,nem configura ne nhum ripo de saber: trata-se som ente de uma

e~periên~ia est ética ou social. Paraf~s?~~m~m~­

Clsamos Inceraglr com seus elememos 1ó ICOS, eme na er que h á uma I1 la OU um conceito a ser transmiti o pc a Imagem em mo imen­·to. Mas slmplesmeme entêh élêresta iaé,a - medíame, dIgamos, a#

Teit{ua de 'um comentário (assim como Kant sabia urna enormida-de de geografia sem nun ca ter saído de sua K õnigsberg natal ) ­campo uco é suficiente. Poderemos ler incontáveis vezes o que se d ize ter ente ndido plenamente a obj etividade do problema e cont inua­remos a estar "fora" dele, desapropriados dele.

Para todos os efeitos lógicos, o comem ário proporciona umrelato completo do film e. Teríamos alguma esperança de ser en ren­di dos pelo filósofo inrelecrualisra se pudéssem os mostrar-lhe q ue"falta alguma coisa" no comentário, que está "incompleto". Mas naverdade no comentá rio es t á tudo, não "falta" absolutamente nadanele. A experiência vivida não faz pan e do relato , t um componenucognitivo que n ão t acrescentado à informaçãológica disponível, talvezpela mesm a razão pela qual a ênfase ou a força locucionária de umaexpressão não faça parte de seu signifi cado.

2. Os conceitos-ima em do cinem a, por meio de sta experiên-

Ic ia instaura ora e plena. pro curam pro Ullf em a gue m um 1:il-uem sem re m ulto mdetImao) um impacto emocIOnai que, aomesmo tem o, di a a o ares eito o mun o, o ser umano, a

-iiatu!.C2a etc. e ue tenha um -- - o-.-- ers'y~!'y2.~- 4

~arivo arravés de seu cO~'ponen~:.~~cion~ãõ estão inte­-r ressados, assim , somente empassar uma Inform açâo objetiva nem

em provocar uma pura explosão afetiva po r ela mesma, mas emuma abo rda gem q ue chamo aq ui de logopdtica, lógi ca e p ãtica aomesm o tempo.

Não se deve co nfundir " impacto emocional" com "efeito d ra­máti co". Um film e pod e não ser "dramático" nem buscar deter­m inados "efeit os" e, apesar disto , ter um impacto emocional, um

componente "p ãrico". Pensemos em filmes como Summer in thecity, de Wim Wenders , ou em O dilema de uma vida, deAn ronioni, ou em Detetive, de jean-Luc Godard . Inclusive os cha­m ados "filmes cerebcais" comovem o es eet ado r reClsamente ormeio e sua neza, e seu a arente caráter" élido" ou taciturno.sua "pUI?! teu é, precisamente, seu recurso persuasivo, seu tipopeculiar de emociona/idade. Seu grau de racionalização das emo­ções nunca é de nível tão alto como Oatingido pela racionalizaçãodos tratados filosó ficos , que co nseguem preterir as emoções deuma forma mui to mais bem-su cedida. (Talvez a obra-prima daracionalização das emoções seja o filme de A1exande r Kl uge, Opoder dos sentimentos, filme absolutamente gélido e distante masq ue , paradoxalmente , aficma algo a respeiro dos sen timentoshumanos e "afetá' logopaticameme o espectador.)

3. Mediante esta ex eriêncLa instaura do ra e em ocion alm en teimpactant e, os co nceitos-im a em afirmam go 50 re o mundocom pretensões v," de e de universa t e e emento efüil:

amental , po rq ue, se não conservamos as pretensões de verdade ede universalidade, difi cilmente poderemos falar, de form a interes­sante e não meram ente figurativa, de filosofia no cine ma ou defilosofia at ravés do cinema. Esta é a única característ ica q ue co n­servaremos da caracte rização t radicional .da filosofia, mas trata-sede um traço absolutament e fun damental. O cinema não elim inaa vecdade nem a un iversalidade, mas as cedefi ne dentro da razãoJOgop.lIca.

- j{ unIvh salidade do cinema-é de um t ipo peculiar, pertence àordem da Possibil id ade e nã o da N ecessidade. Ocinema li u piver­sal não no se ntido do "A co ntec e necessariamente com todomundo", mas no de "'Pode~ra acontecer com qüã1quer um". Isto

s erá expItcado em detãil\:es na pr óxIma seçao, dada a lm porr1.hciaparticular do tema . -

r 4. Onde estão os conceitos -imagem? Em que lugar do filmepodem ser localizados? '

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Um filme todo pod e ser considerado o conceito-imagem deuma ou de várias noções. Podemos chamar o filme inteiro umrnacroconceito-imagern, que será composto de outros conceitos­imagem menores. Um autor clássico que facilita a com preensãodo "conceito-imagem" é Griffith, com seu filme Intolerância, poisele, por meio do titulo e da reflexão filosófica qu e faz, medianteimagens, sobre a intolerância, mos trou de que forma um filmeinteiro pode ser visto como um conceito-imagem desse fenômenohumano chamado "int olerância". A principal tese filosófica destefilme é qu e a intolerância é a-histó rica, sempre existiu, ind epen­dentemente de épocas e situações. François Ttuffa ut disse certavez que todo bom filme deveria poder ser tesumido em uma só§ravra, e como exemplo d isso afir mou que Anõ passado emMar ien""bad, de Alain Resnais era simplesmente "a persuasão". Se éassim, temos que considerar Intolerância um bom filme.

Poderíam os dizer qu e algumas un idades meno res do filmeveiculam conceitos-imagem. Um episódio de Intolerância podeser visto também como um .conceito deste fenômeno. Mas oscon cei tos-imagem req uerem tempo cinematog ráfico p;;;;;q~~sejam desenvolvidos. Por serem experienciais, eles são fündamen~

~r"'aJ:'r=m"e"'n"t"'e"""u"'m~dr.es""e"'n"'v.".jolvimento temporal. Não são nem podem ser "pontuais. D ificilmente um foto gram a ou um único quadro podeconstituir um con ceito-imagem. Por exemplo, o quadro qu e mos­tra o jovem a POntO de ser enforcado (em Intolerância) não podecon stituir por si só um co nceito-image m da into lerância, é preci-

. so uma maior expansão, é preciso saber de qu e forma se foi pararnesta situação, por que estão fazendo tantas tenta tivas de salvá-iaetc . O conceito~imagem precisa de .u.!n.s~erro tempo para se desen­volver por completo. A rigor, só o filme int eiro é umCõnCeltõ­Imagem, mesmo quahdo unidades menores podem ser - e são,sem dú vida - conceit uais. (Ce rta mente , um a cena deste filmepoderi a constituir po r si só um conceito-imagem de outro fenô­meno, diferent emente da intolerância, por exemplo, da valenti a.Mas é preciso tentar capta r qual é a reflexão global ou plena que ofilme procura fazer.)

Parece qu e são as situações de um filme qu e podem consti tu irconceitos-imagem, o lugar pr ivilegiado on de se concentram. Masum personagçm p ode ser também um conceito- im agem .Evidente mente , um persop agem é inseparável das situações qu epro tagoniza. De certa forma, ele t essas siruações. Contudo, per­sonagens podem ser tipi ficados de uma maneira bastante fixa econstant e, de modo que acabam uni formizando extraordinaria­mente as situações que os caracterizam. Por exemplo, há um tipode personagem que costuma mo rrer de forma ao mesmo temp otr ágica e ridícula no s film es dirigidos ou pr odu zidos porSpielberg: o advogado ambicioso de Parque dosdinossauros, devo­rado por um dinossauro; o valentão Q uint de Tubarão, devoradopelo tubarão; o mercenário Jonas Miller de Twister, absorvido pe­lo to rnado etc. Todos eles morrem em virtude do mesmo con­ceito- im agem da "relação do homem com a natureza" . Elespodem ser considerados, então, conce itos-im agem desta relação.Mas definit ivamente os conce itos-imagem têm de ser desenvolvi­dõt e'ITiSituações e, em ultim a análiSe," na totãlIdade aas SItuações

"ãpfesentadas pOt um filme. ' .- ' 0 ' 0 •

Certamente fia casos I!artic:ul",es_l:mli!..o intereSsant eL Porexemplo, a primeira parte d(ZpOl - Uma odisséia no espaçoJi~' "Stanley Kubrick, protagon izada exclusivamente por macacos,pode ser considerada um con ceito-im agem da noção de "Relaçãocom a intel igibilidade do mundo". Mas a tese comp lera só seráapresentada no final, na imagem do enorme feto que flutu a noinfinito. Quase não há personagens !leste filme, no senti do habi­tual. As íiiiãgéns são de alto níveL=speculat ivo, um dos hlmes-~

mais metaffsicos que já foram produzidos. /"- - -- - . - J5. Os conceitos-imagem podem ser desenvolvidos no nível

literal do que está sendo mostrado nas imagens (por exemplo, ainto lerância no filme homô nimo de Gr iffith ; em que são apresen­tadas, literalmente, cenas de intolerância), mas tam bém podemser desenvolvidos em um nível ultra-abstrato. Por exemplo, Osp ássaros de H itchcock foi analisa do filosoficamen te como um

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filme que diz algo importante a respeito da fragilidade da existên­cia human a. Se este filme desenvolve conceitos-imagem destanoção, o faz num plano ultra -abstrato , porque nem um a palavraé dira no filme sobre esta questão , nem uma imagem alude a istode form a inequívoca e direta. Da mesma form a, A última garga­lhada, de Murnau , e O anjo azul, de von Sternberg, podem serconsiderados conceitos-imagem do Despojo ou da Queda.

É precisamente o fato de que o conceito-imagem pode sedesenvolver em um nível abstrato que permite que sua conceitua­lidade filosófica possa ser plenamente eficaz, mesmo quando setrata de um filme absolutamente fantástico ou irreal (ou surreal).Mesmo quando um filme apresenta monst ros ou situações abso­lutamente impossíveis, seres esquartejad os que se recompõem,pessoas que voam ou inverossimilhanças menores (como enco n­tros imp rováveis ou casualidad es implausíveis), o cinema apresen­ta, mediante tudo isso, problemas relacionados com o homem, omundo, os valores etc. Isto é absolutamente inevitável. Até KingKong ou a saga de Guerra nas estrelas afirmam alguma coisa - ver­dadeira ou falsa - a respeito da h umanidade ou do m undo emgeral. Neste sentido, no nível dos conceitos-imagem, esses filmesrepresentam situações possíveis, pessoas possíveis, algo que poderiaacontecer a qualquer um no plano conceitual do sentido, emb oranu nca pudesseacontecer no plano empírico (por exemplo, transfor­mar-se em uma mosca gigante ou viajar à velocidade da luz).

O filósofo D avid C ronenberg decla rou certa vez qu e boaparte da dra rnat icidade de seu film e A mosca se baseo u na expe­riência que ele reve, assistindo a uma grave doença de seu pai. Atransformação de um homem em inseto (como em Kafka) é umametáfora do envel hec im ento e da doença, isro é, da condiçãohumana. Certamente nenhu m de rrés jamais se rransformará emuma mosca, mas todos nós adoeceremos e morreremos. O filmede Cron enberg, falando de um homem-mosca, fala da condiçãõlhhumana, embora não o fu~~'--'êrdõ Ittera!. A lmguagem do .' .

c inemaé i n~vi taYelmentt· e,~i16él"éâ ~ .~!:~..~.:lve q~ãndo parece ser "1._tOt mente !retal , como no es realistas" ~Drãto âell!ln:ert"bta,,

texto (lirer ãrio ou cinematogtáfico) ser fictíc io, imaginário oufantás tico não impede em absoluto o caminho para a verdade. Aocontrário, através de um experimento que nos distancia extrao rdi­nariamente do real cotid iano e familiar, o filme pode nos fazer veralgo que habitualmente não vedamos. Talvez precisemos ver umbom filme de terror para nos conscientizarmos de alguns dos hor­

rores deste mundo.

6 . O s co ncei tos-i magem não são categorias estéti cas, nãodeterm inam se um filme é "bom" ou "ruim", de boa ou má quali­dade, de classe A ou de classe C. Como o filme cria e desenvolveconceitos ( ue é o ue interessa filosoficam nte e como ode sercons idera o "um bom filme" são duas ques tõe s diferentes. O con­teúdo hlos65 co-c rftico e problem-atizador de um hlme e processa­do arravés de imagens que têm um efeito emocional esclarecedo r,e esse efeito pode ser causado por filmes que, vistos intelectual­mente, não são "obras-p rimas" do cinema. Ao co ntrário , se nãoconseguirmos uma relação logopática com uma das consideradas"obras-primas" (se não conseguirmos afinidade afetiva, por exem­plo, com Cidadão Kane, de Orson Welles), dificilmente conseguire­mos entender plenamente o que esse filme pretende transmitir, noplano dos con ceitos filosóficos desenvolvidos por meio de imagens.Podemos ter boas experiências filosóficas, por outro lado, vendo asérie Cemitério maldito, filmes japoneses de luta ou filmes porno­gráficos de classe B, por mais que isto possa escandalizar o professoruniversitário ou o crítico decinema "especializado".

(D e certa forma , como acontece com a psicanálise, não podehaver'"l'esl;ecialistas em cinema!>. Por suas caractex.{stica5, tra(a~se

de":Uividades ue não odem set translórmadis em uma rofissã;como outra qu alqueL

f, .Ei.~ tamb ém a filoS9.fia. I?ertence a eSte­

tipO de atm d ade. S'e ela, no século XX, co nsegui u "pro fís:slOnahzar-se , ISSO~eve dizer algo im porta n te a respei to do tipode filosofia qu e atua lme nte é feita - e est imulada - em nosso meioacadêmico.)

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28 J U LI O C A BR E RA O C I N E MA PEN SA 29

7 . Os conceitos -ima gem não são exclusivos do cinema, isto é,não só o cinema os cons trói e util iza. Co mo vimos anteriormen-te, também a filosofia (por exemplo , nos textos de H eidegger) uti- .,liza conceitos- imagem para expor algu mas intuições (como aGelassenbeit, a Seren idade) e certa me nte a literatura os utilizouexaustivamente ao longo de roda a sua história. A literatura ins-taura uma expe riênci a em quem lê, exerce um impacto em ocio-nal, tem pretensão de verdade e uni versalidade e desenvolve con-ceitos em níveis abstratos e metafóricos. Q ual é, portan to, a novi-

dade do cinema? ~O que disti ngue os conceitos-ima em do cinema dos con-

ceitos-irna em a Iteratura ou I osofia é uma diferença téeni- I e.l.it'ca e não estritame nte e natu . os contos de Ka a po r -->, ~

exemplo, atraves do Monstruoso e JÚlimalesco, diz-se algo filoso­ficamente imp ortante sobre o mundo e o ser hum ano . A meta­morfose é impactante, logop ática, un iversal, como a literatura filo­sófica de Dostoievski, Thomas Mann, Max Frisch e tantos out ros.A literatura é hipercrítica e problematizadora, no sent ido filosófi­~Iudo ISSO Já fOl feao pela hter~tura ~.) po r co nsegUinte, pensa.dores como Heidegger poderiam ser cha mados também de "filó­sofos literários" ou "filósofos poéticos". Filósofos assumidamenteliterarios são, por exemplo, Sartre e Henri Bergson, entre outros.Sem dúvida a~E;eSen taç~Q. lfg?gftica de problemas filosóficostam6êm po ere ser at ribuída à iterat ilr:i:- - - - - --·- --

O que o CInema proporciona ti umJ espécie de "superporen­cialização" das possibilidades conceituais da literatura ao conse­gui r intensificar de forma colossal a "impressão de realidade" e,portant o; a instauração da experiênc ia indispensável ao desenvol­vimento do conceito, co m o conseqüente aumento do impac toemocional que o caracteriza. Certam ente nad a disso descarta, abinitio;« possibil idade de qu e um leitor de literatura tenha a sensi­bilidade adequada para se impressionar extraordina riame nte como que lê, com a mesma eficácia emocional do cinema. O que sediz tem um caráter genérico que não descarta estes casos particu­lares. O cinema é a plenitude da experi ên cia vivida, incl usive a

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temporalidade e os movime nto s t ípicos do real, apresentando oreal com todas as suas dificuldades, em vez de dar os ingredientespara que o espectador (ou o leitor) crie ele mesmo a imagem queo cinema proporciona.

O poder reprodutivo e produtivo da imagem em movimentomarca o caráter emergen te do cinema e também o distin gue, algosó possível graças- I..- fotografia em movim ento. O que marca adiferença são a temporalidade e a espac ialidade particulares docinema, sua capacidade quase infinit a de montagem e remo nta­gem, de inversão e de reca iocação de elementos, a estrutura deseus cortes etc. A literatura proporciona elementos para um filme,um a espécie de cinema privado , que est á na sens ib ilida de de~quem lê. O cinema a resenta de forma oeculiarmente "im ositi-vã ', tudo ou uase tudo?) o que a literatura só ind,uz. No caso do './\"cinem a, a Instaura o ater trreststtve _ r ..Jt

mente J leno. Tudo está ali. O mund o é colocado , ou recolocado.e ,..-­com to a sth dificuldade. Cinema e literatura, do ponto de vistaultra -abstra to adotado pela filosofia, são a mesma coisa. Mudamas técnicas, as linguagens, as respectivas tempo ralidades etc. Apretensão à verdade universal é a mesma.

Foi dito que , enquant o a literatura utiliza a linguagem articu­lada, o cinema cria sua própria linguagem, que não atende, inclu­sive, às cond ições das linguagens art iculadas. Por exempl o, não hádupla articulação no cin ema, nem CÓdlgOS. nem sintaxe, no senti­do estrito. (Chrisrian Me tz estudo u tudo isso mu ito bem.) Masestas característ icas do cinema não fazem com que a literatura nãopossa ser filosófica. O fato de se basear na linguagem a manrémno mesmo terreno da filosofia estrita tradicional, isso pode dimi­nui r os níveis de seu impacto, mas trata-se sempre de uma ques­tão expressiva.

Há inclusive algo na literatura s ue não parece sub st itu ívelpelo cinema: a descrição de processos psicológicos interiores.pque pensa um personagem (tudo o que Proust escreve acerca danostalgia, por exemp lo) não é exprimível nem sub stitu ível pelosconceitos-imagem do cinema, nem sequer quando expresso de

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30 J U LI O CABR ER A O C IN EMA P EN SA 3 I

modo sonoro. A dificuldade nã o rem a ver com a presen ça ouausência da pala vra. Podemos aproxima r a câmera do rosto dopersonagem o quanro qui serm os e nem por isso saberemos emque ele est á pensando , mesmo quando o arar é extraordinaria­mente expressivo (como Emi ! j annings, o grande arar do cinemamudo). O cinema é exrerioridade , aspeero, evidência. M uj.ço do. }interio r pode rrans arecer. sair. mas nunca com o incrível deta- ,

lsmo escn tlvo da literatura. ir-se- á: a angústia de um rosto #;

iz mais do que mi l pa lavras. Mas não se são palavras de umProust ou de um j oyce. As tentat ivas de levar Ulissese Um amor deSwan n para o cinema foram frusrradas (Eisenstein queria levar Ocapital para o cinema). Se existe algo filosoficamente importanteem um mo nólogo interior literário, em uma descrição proustiana,isto.marcará, no meu entender, um limite importante para a capa­cidade do cinema de fazer filosofia,

As técnicas cinemarográficas (o peculiar ripa de ternporalida­de e espacialidade do cinema, assim como seu peculiar sistema deconexões, a montagem ) a particularidade de sua "linguagem" oude sua falta de linguagem, segun~@nan 0eiíi}specificamas maneira s particu lares pel as qu ais o cinem a constrói seusconceitos-imagem, as formas com que con segue ser impactante­mente cognitivo. os modos pelos quais a verdade do cinema é cons­titu ída. As técnicas do cinema possibilitam a efetivação das carac-rerísticaS"filosóficas" (J)-(3) . ' .

D eve-se tent ar entenderi 'portanto , como o' cinema co nstróiseus conceiros-ima gem, uma forma sens ivelmen te diferente decomo Heidegger, Nierzsche ou Dostoievski constroem seus pró­prios conceitos-imagem.

Por exemplo, o filme Era uma vez no Oeste, de Sergio Leone,pode ser visto (entre muitas Out ras maneiras) como um conceito­im agem da Vingança. O filme é uma vingança. um desenvolvi­mento logopático da noção de vingança. Este con ceito -im agemfica completo depois que todo o filme é construído. Mas. porexemplo. a seqü ência em que Frank (Henry Fonda) é encurraladopelos homens de Norton (Ga brielle Ferzett i) nas ru as do povoa-

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. do , onde acaba matando todos com a ajuda do misterioso desco­nhecido (Charles Bronson) , tu do isso cons rirui um co nceito­im agem . uma parte do que Sergio Leone qu is nos dizer a respeitodo conceito de vingan ça. Esta seqüência mos tra que, na vingança,o vingador não só quer que sua vítima morra, ou seja castigada .mas que mo rra de um a determinada forma e pela ação específicae muito intencional do própri o Vingador (o qu e leva o desconhe­cido . na mencionada seqüência. a salvar a vida daquele a quem sepropõ e matar, algo absurdo do ponto de vista estrit amente racio­nal). Este aspecto da vinga nça deve ser acrescentado a todos osoutros con ceitos-imagem apresen tados pelo filme para montar oconceito- imagem final , global. do tema anali sado . isto é, a vin ­gança.

O cine ma con este im acro emocional , funda-mental para a eficácia cognitiva do conce ito-im agem, a rav 5 ecertas arttcu an a e .. Ia lea, as quais es­

aço as três seguintes:I) A pl unpmpectifja. isto é, a capacidade que rem o cinema de

saltar permapenremente da primeira pessoa (o que vê ou sente opersonagem) para a terceira (o que vê a câmera) e também paraoutras pessoas ou sem ipessoas que o cinema é capaz de co nstruir,chegando ao fundo de uma subjetividade. N o filfne de Leo nemencionado, para explicar a noção de Vingança com conceitos­imagem é fundamenral que se saiba que Frank, no momento demorrer. estâ pensando na maldade que fez no passado, em virtudeda qual está sendo justiçado . No filme . a vingança é apresentadacomo um a form a de justiça. Morrendo. o bandido recorda o terrí­vel mal que fez ao irmão do vingador, ano s antes, e morre recor­dando, para que a vingança seja perfeita e plenam ente consuma ­da. A câmera se mete literalme nte dentro da cabeça de Fran k eassistimos simultaneamente ao duelo final, à sua morte e aos seuspensamen tos, porque tudo isso é relevante para a esrruturaçãocinematográfica d a noção de vingança, Nenhum conceito -idé iapoderia enetrat tão fundo no inrerio r de uma no ão como lazesse ti o aua em. cnva po e.se r conside ra a

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8. O s co ncei tos-imagem propiciam soluç ões lógicas, epis t ê­

rnicas e moralme nt e abertas e problem áticas (às vezes acentuada­mente amoral istas e negativas, mas, de qualquer form a, nuncaestritamente afirmativas ou conciliadoras) para as questões filosó­ficas que aborda . Mesmo que um diretor se propusesse a "fechar"alguma solução de forma definitiva, a linguagem da im agem seopo ria a ele, e ele acabaria fazendo o filme que não queria fazer,(Um caso extraordinário disto é, pOt exem plo, O bebê de Rose­mary, de Polanslci, qu e, de acordo com as inten ções do diretor ­segundo se po de ler nas reportagens - , deveria ter sido um textocinemato gráfico "m uito m ais "defin ido" do que real mente é,Fellini , por sua vez, ter ia muitas reflexões a fazer a respeito da"abertura" essencial do t ratame nto cinematográfico de quest ões.)

A imagem cinemato ráfica não ode mostrar sem p roblem a­tizar, esestrururac, recolocar, torcer, distorcer. o fitra o que pen- \savam os o co-realistas italIanos, o Cinemae tud o meno s um puro

'regIstro do real". fAs soluçá es ~a filosofia escrit a, apresentadas po r conceitos­

idéia (só lógicos, não logopáticos) ten dem ao imobilism o e comfreqü ência têm uma clara pretensão de ap resentar soluções defini- \tivas, co nc iliado ras, fundamentalm ente antic éticas e construtivas,A intervenção do particular, do acaso, da emoção , do desencon-

. tro, do inesperado , da co ntingência etc. permi te, ao co ntrário,que o cinema proponha soluções abertas e >empre duvidosas às qUeJ­tões formuladas. O assom bro diante da realidade é multiplam enteexposto e nun ca plenamente [[solucIOnado)). Al gun s cineastas, é"élaro, mostra m isto de for ma paradi gmátlcã', co mo Kieslowski eos irmãos Coen (Fargo, por exemplo, é uma melancólica reflexãosobre as decepcion antes relações entre os ho me ns, cuja existênciase mostr a literalmente afundada na m ais tenebrosa e grotesca con­tingênci a). O cinema escolhe certos objetos privilegiad os: o inve­rossímil , o fantásti co, o calami toso, o demoníaco, a natu reza des­controlada, a incerteza, o heroísmo sem glória, a injustiça, a vio­lên cia, a agonia, a falta de comunicação, a falt a de referên cias

32J ULI O CABRERA

uma espécie de qual idade "divina" (ou demoníaca ') d 'sentid da Oni '. ' d ' o cinema, no

I o a rusc ien cm e a Onipot ênc ia. Evidentement e a •ragern ' , d ' mon -, a estrategl3 os corres os movime ntos de A

pod . 'fi ' came ra etc .em rnrensr tear esra ca rac teristica fundamen tal d '

ib ' o crne maque con tn UI grandemente para a eficácia do choque emocional :ck II) Em segundo lugar, a qu ase infini ta capacidade do cinema

manipular tempos e e sp aços, de avan çar e retroceder de im ornovos tipOS de espacialida de e temporalidade como ;ó o Phconseg ue fazer, son o

III ) Em rerceiro lugar, o corte cinematogrdfico, a po ntuação, am an ei ra pa rticul ar de conectar cada im agem com '.. ... . . a an ren or asequencia cInematográfica, a m ont agem de cad a elem ento, o f:a­seado crnem arográfico,

Logo, di ria que: I) mostra um a espécie de " I" dd ' m anejO I imita oos POntos de VIsta; 2) m OStra um manejo indefinido das coorde-

nadas ~"'paço- temporal s da ação e 3) um manejo das conexá esSubjetlYldade e O b' etividade são enri uec' . . " '

a~as

ao extremo e, ao mesmo tempo nisto se ui A • d-Igran e arte da filoso la o robI ' d en;~a le

emanza as e ISSO -VI as em sua . retensão de cons titu ir uma distinção n íri a Ocrnema está ém da Su bjetlvl a e e a Ubletlv,da e ou é as du asCO ISas ao mesmo rempo, f

_ D esta for,ma: a técn ica 'cin ematográfica possibilita a instaura-çao d~ expenen~la logopát ica e seu tipo pecul iar de verdade e uni-versalIdade , ass im como sua art iculação _ tamb ' I'r em pecu lar -entre? iteral e o metafórico. A través desta técnica são gerad os osc~nce l tos-lmagem . e : Ies são inseparáveis darnesrna. A técnicanao é mer~mente uma form a acide ntal de ter acesso a conceitos aque se terra acesso de Outra maneira Assim "- d . ) o conceiro-rm agernnao po e ser gerado por mei os puramente literários ou fotográfi­cos, po r exemplo, O fato de que a câm era de Sergio •

I ' r Leon e poss amu ~r tear as perspectivas e os espaços-tempo, e COrtar (pontuar)seu dme,como faz, é fundamental para a criação do conceiro- irna­g.em a vrn~anfiça. Sem estes elementos, não existe concei to-imagemcmematogra lCO.

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34 JULI O CABR ERA O C I N EMA P EN SA35

absolutas . Independentem ente de suas abo rdagens mais específi­cas, estes são os temas constantes do cinema.

Padecíamos pensar que isto depende dos filmes que são esco­lhidos como exem plo. Parece haver film es construtivos, mansos,o timistas, afir mativos} conciliadores . Mas o cinema vive doassombro, ~ com o um olho seletivo que vaI sendo sur reendido aca a Instante" ossos o os nun ca se et êrn no que não interessa.D maJ, a catáS trofe, a agonia, o descontrole chamam a arenção doolho, o seduzem , arrastam-no, inundam-no até a cegueira. O ple­namente positivo não "é interessante de ser visto; é o surpreenden-te, o extraordinário o que int eressa ao cinema, inclusive quando oextraordinário é o absolutamente cotidiano (como nos filmes deWenders e Antonioni ). Independentem ente de seus tem as e trata­me n to s: não exist~m. filmes.zotalrnente lógi cos, co ncluden tes,fechados, sem exp eriencialidad e abe rt a, sem problematizaçãoimag ética, co m uma proposta de soluçã o definitiva. O cin emamais con ciliador também é desconstrutivo.,Até os filmes ot imis­tas de Fran k Capra. O bem não constitui .'.m espetáculo, não seimpóe po r si mesmo , precisa de um contraponto desestabilizador(o senhor Porter de A ftlicidadenão secompra) e de um bem con­cebido de forma extraordinária (o anjo Clarence) , O logopáticofavorece a ruptura, a problernatização do particu lar, o terr ível, odevastador. A logopatia prob lemat iza a exclusividade lógica, ocontrole, a harm onia, o estético, o tranqüilo, o regulado, o domi­nável, o divino. O cinema é m ais pagão do que a filosofia (não foi \à toa que a primeira seção de CInema ocorreu , se lindo afece , na

caverna e atão . cinema nunca confirma nada. Volta a a rirõ que parecia aceito e estabilizado. ,

Se reurarm os o CIne m a de se~ enquadramento lim itador,como veículo de "escape" ou pura "diversão de m assa", pode mos

ver, em contrapartida, o rerrfvel escapismo da filosofia - um esca­pism o ilustre, digamos, e não um escapismo de massa - , po is elaconsiste, entre outras coisas, em uma expressão liter ária - linear,articulada,' simbolicament e bem-educada - "ar ranjada" de modo

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racional e conceitual-ideístico dos males do mundo, tanto mora is

como lógico-epistem ológicos. \ ' .Co m efeito, a filosofia teve desde seu nasCImento - desde ~a

desvIllCU açao a so suca ela, su a e fi va a essa rete nsaoa u matlva, ca no Ia ora ("religiosa"?), apesar de sua decl aradasecu anzaçao , que consiste e-m ten tar su meter a mu ti ICI, a ea VI a a uns pOUCOS Ulllversa mza res re. arado res, Jusn­ca ores e em e ezadores . O cinema, com seus Imp~ctos vIs~alS

terríveiS, seuSespantalhos ~ suas maquinarias infernais, tem sIdo '­m uito m ais um instru mento de captação de tudo .o que há d:demoníaco, de incontrolável, incompreensível, múltipl o e desani­mador no mundo e, neste senti do, desenvolveu um a filosofia,comum compon ente negativo-crít ico muito su~erio r. a~ ~a filosofiaescrita habitual. (Por outro lado, num sen tido h ist órico, as on - 1gens do cinema sao Sim leso te VIS U adas. ao vaudeville, aos

prosn u os e a marginal idade, com o conta Arlindo o, em I

7'rt-cinemlls epós-cznemas.) - . .Certamente o mora ismo a IrmatlvO no cmema aparece. na

exigência do happy en ou na necessi a e e qu e os maus sep mcastigados", embora à custa da narrativa (um exem~lo célebre é aversão cine mato gráfica de Testemunha de acusaçao, de Agacha

. Christ ie, feita por Billy Wilder, ou o escandaloso e vergonhos oacréscimo de Murnau a sua ob ra- p rim a A última gargalhada),,Mas no haepr end cinewaWgdfico há algo de descaradamenteart ificial (como acontece nos filmes de Frank Capra) , Os happyendS dahlo sofia, por sua vez, são rigorosamente sérios (talvez ~smais célebres sejam os da Teodic éia de Leib~ iz e da Fenomenologiado espírito de Hegel) e p retend em te r resolvido o mundo definiti ­vament e coisa mu ito ma is sér ia e pos itiva do que o que ClarkCable e 'CI audett e C olb ert podér iam co nsegu ir casando-se e i-sendo felizes para sempre . O ha 'Y end filo: ófi o é " I 'Marx já denunciava lano s como a tentativa de - 11 e

~

ver o mun o dentro d _ •aze r, em ora tente. Em suas imagens, os compo rtamentos nao

l,cam cunsohl1. dos , h em os eventos, plenamente estabelecidos. A

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\

I ll - Como pode' um a ficção particular

ter algum compromisso com a verd ade u n iversal?

- ii

37

, A problemÁtica universal/parti cu lar não é formulada comoconte údo dentro de um filme, nem existem filmes cujo argumen­to trate deste problema: Mas em tod os os film es qu e vemos esse

envolveri a tam bém um grande número d e out ras atividades

humanas e sociais.O cinema afece se caracterizar ela co nsti tui ão de um a

"im pressão de realida eH e ela errurbadora capacidade e a re­sentar ua uer coisa até a mais antastica e inv ero ssirm comaparê ncia de realidade , de ma eira retóric ' ' . . el ­çante, fetichizante assumida e descaradamente menmosa. filo­sofia, por sua vez, tem pretend o assuma "u~a a 1 li e 50 ,ria dereverência diant e da verdade e da concordanCla com a realidade,evitando sistematicamente ilusões e equívocos, tanto intelectuaisquanto de percepção, evitando associações im ed iatas.em bene fí­cio dà argumentarividade. Ao menos an tes d o s tO do s"filósofos áticosH men . . e o cin ema e a filo·

50 la pareCIam totalmente incam ativeis.a re I a e, este escân alo iante pretensões da verdade

e da universalidade do cinema é uma coisa bastante pr imária quenão resiste a uma aná lise mais profund a. Até as filosofias maisanal íticas e racional istas admitem abertamente a legitimidade delançar mão da fantasia e de exem plos fantasiosos e extravagantes(como o Gênio Maligno de Descartes, o famoso gato de WaIsma nnou a não menos famo sa Twin-Earth de Hilary Purnam) para o

sóbrio esclarecimento de ~ueHões filosóficas; Tanto na filo sofi~Ianalítica como na hermeneutlca e na 51canáltsc, aceita-se tranqUI am o ara ver ade e a un iversalida e seia

lversificado e fre üentem en te arad oxal, e ue tanto se odesa er a respeito o mundo e do ser humano através da verdadeéomo através de Suposições extrava antes ou da lÍusao. QUe o ,

inern a seja uma eno rme simulação não rz na a contra ua pre­tensão de verdade. Será preciso ver como essa simulação se situacom relação à realidade. Até a ciência está. cheia de sim ula ções. Apresença da simulação não diz nada porsi mesma. t preciso ver se

P~de existir um uso filosófic o dã simulação do cinema.~ ,

O C IN EM A PEN SAJU LI O CA BR ERA36

im agem cinematográfica é essenc ialm ente d esestrururador a,desestabilizado ra, subversiva.

Já o cinema mudo se alimenrou fundamentalmente do cará­ter aterrorizante e bizar ro da realidade, e as gro tescas quedas deseus heróis, os terrívei s err os que cometem e a violenta (e, porisso, rid ícula) agressividade da realidade social e natural, que frus­~ ra sistematicame nte seus planos mais mi nuciosos, puseram o cine­ma, desde seu nascim ento, em contato com uma realidade não susce­tível de reconciliação última. A filosofia contempo rânea, apesar desua renúncia a fun damenta ões do ti o teo[ó ico ou metafíSico- I~atur , não renunciou à tenrativa (de fundo religioso?) de umaconcilia -o social, comunicativa ou solidária, como ode ser vistonas o ras de H aberm as, Apel , ugen at, W s e or o a - •

so os o In o secu o

A verdade do cinem a? O que é isso?Fellini se autodenomi nou varias vezes "um grande mentiroso"

e o cinema é, cada vez mais, uma autênt ica fábrica de ilusões, de

malabarismos, de engenhocas, efei tos visuais, inverossimi lhanças .de todo calibre e cortes absolutamente art ificiais. Como esta lin­

guagem malabar p oderia ter alguma coisa a ver com a verdade e auniversalidade? _

Esta é uma questão absolu tamen te fun dam ental, uma vezque, se o crnema ê méIiJliEliLe ftch cm , sEm nenham víllculoIinterno com a verdade, e, seo CInem a é \lmera demonsfraçao aecasos particulares", sem nenhun1a retensão de universalidade, oCInema s po· e ser cons1 era o [osó co num sentI o em asia- fi}

.. amente amp o e meta órico para ser interessante. em estes e e- --.'mentes, o CInema sena (ld osóÍlco somente no sentid o de umapr oblerna tização ou de um a reflexão sobre o mundo , algo que

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38

}

J U LI O CAB RERA O CIN E MA PENSA39

, i

proble ma é form ulado implicitam enre , de maneira formal e ine­virável, com o questionamenro radical da própria tentativa de instau­raçãode umaexperiência, que rodo filme apresenra, que todo filme é.O problema do un iversal está implícito na própria pretensão "decla­rativo-demonstrativa" do cinema, é uma espécie de problematicidadeintrínseca CÚ1 imagem: a experiência instaurada tem valor universalou setrata somente do que ocorre a algumas pessoas?

No caso do' a a rerensão de verdade e universalidade sedá por meio de um impacto ernocion . rata-se e uma ver a eit 1mplO Idall

, ar asSim dizer. Um filme ê um golpe (as vezes, umgõIpetiaixo , não um aviso sóbrio ou uma mensagem civilizada.Suas imagens enrram pelas entranhas e dai vão ao cérebro, e preci­sam ente por isso têm maior pro babilidade de ir direro ao pontoprincipal , mais do que um sóbrio text o filosófico ou sociológico.Talvez a maioria das verdades (ou rodas elas) expostas cinemato­graficamenre já renha sido dita ou escrita por ourros meios, mascertame nre quem as capra por me io do cinema é inrerpelado porelas de uma forma completamente diferenre . N ão é a mesm a coisadizer a alguém que a guerra é absurda e verJohnny vai it guerra, deD alron Trumbo , ou Nascido em 4 de julho, de O liver Srone. N ão éa mesma coisa dizer a alguém qu e o vício em drogas é terrível emostrar Pink Ployd; Tbe Wall, de A1an Parker. Não é a mesma coisa.dizer que a injustiça é inrolerável e m ostrar Sacco e Vanzetti, deGiuliano Monraldo. Muitas pessoas são cét icas ou incrédulas comrelação ao crescenre aumenro da vigilân cia e da mi litar ização nassociedades modernas, com suaalarmanre diminuição das liberda­des individuais. M as um filme como Brazil, de Terry G illian, ins­taura a experiên cia de viver em uma so ciedade com ple tam entemili rarizada, fazendo sentir, paricaípatericajrnenre, de form a quaseinsupo rtável para nossos sentidos , o horro r da total privação daliberdade e da individualidade. Exercendo este efeiro de chogue,

.d. e. vio lência sensível, de franca agressividade dem.onstrativa, é pos- ·1

\ ...,SlveJ qu e o especrador rome uma aguda conSClenCla do prob lem al au, como dizem, ((se senslblhze'sL como talvez nao .acotlteça áele lendo um tno tratado sobre o tema . fista senslblhzaçao de con - o

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ceiros pode, inclusive, problema tizar algumas soluções tradicionaisde questões filosóficas, propostas pelo conceito escrito , ao lon go da

história da filosofia .Esta instauração impactante de uma experiência é fundamenral I

para tenta rmos co reo cc o tr.po un · CInema ~e

ropõe segundo a leirura 1 os ica o I os a UI. "

o tra' ar com emoçoes tanto quanto com elementos lógicos,o cinema se volta, evidentemente, aparticulares (já que são os par­t iculares que sentem emoções, e são siruações .part iculares as queas suscitam; dificilmente um universal nos fana chorar). Só que,com esta ê~fase na situação partIcular, o cinema não desiste ~esuas pretensões de universalidade, m:" as formula de outra manei­ra. O que Oliver Sro ne disse a respeito da gue rra se refere à.gue:­ra enquanto tal , à idéia da guerra, it gue rra em geral , e .a hist óriade Ron Kovic não é apenas a histó ria de um rapaz am encan o quefica paralítico, mas representa um argumen to univers~ a res~eitoda esrupidez da guer ra em geral . A emoção q ue sentimos diantedo drama de Kovic não é simplesme nte a piedade diante do qu eacontece u com uma pessoa em particular, mas se alimenta de umareflexão logopdtica de alcance universal,. q~e "" permite pensar omundo deforma geral, muito além do que e SImplesmente mostradonofilme. O impacto emo cional terá servido não para se prenderao .particular, mas precisamente para fazer. com que as pessoaschegue m à idé ia universal de uma forma mal.s c~ntunde~re . .

O cinema faz sen tir ue talvez esta m edJaçao emo cIOnal se aindispe nsávc:l para entender roblemas co mo os . a uerra e nãoomente para emocionar-se" co m eles. ,Talvez .exlstan: argume~~

ros perfeitam en te bem pensaaos a o pon to de vista lógiCO que na~sejam capazes de captar o absurdo CÚ1 guerra, como uma Imagem .ecapaz de fazer. Talvez, inclusive, o cinema ~osrre .como é cnrru­noso , inescru puloso e estúpido argumentar Ind efinidam ente, comconce itos-idé ia somen te lógicos l em favor ou contra certo.s ass~n ­

tos (como guerra ou racismo) em vez. de, por uma conceltual ,za­ção sensível adequada, fazer sentir (de forma mais aguda e pertur­badora do qu e a lite rarura, po r exemplo, que tam bém usa uma

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razão logopática) o absurdo da guerra ou do racismo e utilizar estesentimento como uma via privilegiada para a com preensão inte­lect ual deste absu rdo . Quem garante (sem reco rre r a uma tese I:metafísica pressuposta) que os ar umentos uramente lógicos são 'capazes e penetrar no nuc eo mesmo da realidade, sem nen umaajuda da sensibilIdade? • -fi

M as, po der/amos rlpl icar, fazer. intervir elementos emocio­nais pode ser pe rigoso , porque, através da emoção, qualquer idéia- mesmo uma idéia falsa, danosa ou monstruosa - pod e ser acei­ta pela força retórica e pe rsuasiva da emoção. Podemos nos emo­cionar tanto diante de uma co isa falsa como diante de algo verda­deiro (como se verificou durante a época de H itler, qu ando dis­cursos falazes ganharam a adesão do povo pela via emocional). Aimagem e seu impacto emocionilião são, assim . auto-suficie~~~! ; precisam de um elemento exter}or, de uma infor mação quenao provenha da própria imagem . Esta objeção parece prob lema­tizar a próp ria existência de "conceitos-imagem", na medida emque eles têm p retensões de verdade e universalidade. Como res­po nder a ela?

Admitir que existe um componente emocional na captaçãode algum aspec to da realidade não im plica assumir que o que aimagem cine m arogrãfica nos diz (nos mostra) deverá ser ace itoacriricarnente como verdadeiro . O cinema representa, nesta leitu­ta filosófica, asse rções im a ét iéâs a esp eit o da realidade, qu e~põaem esma orma -euma proposição dà1ífõSófia

(Cita :er~a ,eIras ou s~. f?sargumentos ~em avor e sua _verdade sao m ais bem enfatizados pela emoção, mas a asserçãocinematog ráfica não rem po r que nos convencer, de for ma defini­tiva ou imediata, da verdade do que afirma. Podemos negar a ver­dade qu e a im agem cinematográfica pretende nos impo r. Amed iação emocional tem a ver com a apresentação da idéia filosó­fica e não com sua aceitação irnpositiva. D evem os nos emocio narpara entendere não necessariamente para'aceitar.

ASSIm, mw ~ que a:"fêUlbçáo'"tfa itnagciíi nos mbstre imediata­mente um a verdade. A image m no s apresenta, irnp osirivarnenre,

um sentido, uma possibil idade. Mas o sentido de uma imagem--,­como o sentido de uma proposição, ean tenor asua verdade oufãIsldade. Ocomponente patIco da Imagem a5fe lima €Sfta <Tesenn do, 'fir,s ob riga a considerar o que não tínhamos co nsiderado,nos obriga, por exemp lo, a sentir o que é estar numa guerra (com ?em Platoont ou o que é ser ajudado pelos.outros (como em A fi1,­cidade n ão se comp ra). Isso não quer dizer que devamos aceitar asalegaç ões antibélicas de O liver Sto rie ou o o rim ismo de FrankCapra. Significa somente que, ao negá-los (já na interação com oelem ento lógico da imagem) , estaremos não só negan do uma pro­posição, mas também problematizando uma experiência, aque!aque o di reto r nos ob rigou a viver no nível dos sentidos. A em oçaosentida deverá ser acrescen tada aos argumentos objetivos paradecid ir sob re a verdade ou a falsidade das teses sus tenrad as,ob rigan do-nos a pergunt:u coisas como : "Um a coisa que reve umimpacto tão vivo em mim não estará apontando para algo verda­deiro?" certamente ares osta nta sernegativa A logopatia é da ordem do sentido , não da v rdade.

Se dIssermos que a Imagem tenta se im por como verdade, omesmo diremos das proposições. Às vezes ficam os firm ementeconvencidos da verdade de uma coisa qu e lem os em um livro defiloso fia e que, inclus ive, nos emoc iona viva men te , mas logopodemos crit icá-la . O mes mo acontece com uma Ima gem . O sdiscur sos de Hitler não eram im agéticos, eram veicu lados po rpalavras e tinham a mesma impositividade emocional (e o mesmo"perigo") que pode ter um filme. Na percepção do film e, o :,",pec­to emocional in rerage perm anenteme nte com o aspecto l ógico ou"proposicional". Parte-da emoção que sentimos também é de ter­minada pelo qu e sabemos a respeito ' dos personagens e situ ações

do filme.Por out ro lado, ao mesmo tem po que o cinema apresenta suas

pretensões "imag éticas" de universalidade , também tende a ap re­sen tar situações e casos part iculares que tê m o efeito de fazerestourar sua respectiva Idéia Universal na medida em que ela épen­sada somente no plano 16gico, apaticamente. Este desafio é explíci-

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de quel~ ,

to, por exemplo, no cinema de Kieslowski, que fez sua famosa tri--, logia para mostrar como os ideais de Igualdade, Liberdade e~utros_ valores modernos dificilmente podem ser aplicados hoje asituaçoes concretas. Certamente a universalidade que interessa aoCinema não é essa universalidade, quase sistematicamente proble­matizada pelo conceito-imagem cinematográfico. A problematiza­ção introduzida pelo cinema nas indagações filosóficas tradicionaisvem pela subversão do particular, dosensfve], pela multiplicidade

- de perspectivas, pela sua incrlvel capacidade de aproximação com ovivido, de transformação de uma idéia em uma vivência compreen­sível e dolorosa, pela sua capacidade de dificultar, de colocar obstá­culos ao universal-idéia, de forrnular a possibilidade de um mundofazendo com que ele conviva com outros.

Por exemplo, no nível dos conceitos-idéia éticos, fala-se daprostituição, sobretudo de adolescentes e de crianças. Diz-se, porexemplo, que a prostituição é degradante, que utiliza a própriape.ssoa como meio (Kanr), que representa uma exploração igno­mrruosa do homem pelo homem, que a sociedade deve criarmeios para tentar acabar com a prostituição, oferecendo a estaspessoas oportunidades de vida mais dignas etc. Um filme podeapresentar imageticamente - pOt meio de imagens - uma proble­rnatização de todas estas teses, seja através do drama, seja atravésdo humor. Exemplos do primeiro caso são Viver a vida, deGodard; Belle dejour, de Buriuel, e Uma mulher emfOgo, de VanAc.kere~ . Um exemplo do segundo é Irma la Dulce, de BillyW,lder. Em todos estes filme~,.a prostituição aparece como umaforma de vida posslvel como outra qualquer, ou é uma curiosaforma de auto-tealização pessoal, ou uma forma de erotismo for­temente auto-esclarecedor, ou uma escolha livre (ou, pelo menos,tão enganosamente "livre" como a de estudar computação ou dara volta ao mundo em 80 dias) ou é rebeldia contra a opressão.Nenhuma das mulheres que se prostituem nestes filmes enfrentaos dilemas morais formulados pelo filósofo com seus conceitos­idéia, com seus conceitos não dramatizados. O cinema dramatizaa prostituição, coloca-a em cena, na plenitude de uma experiên-

cia, até que o espectador veja~inta o que é ser uma prostituta,com todos os seus detalhes, suas matizes, suas complicações, evi­tando todo simplismo apressado, todo moralismo pseudo­esclarecedor, toda condenação a priori. A problematização maiscômica da prostituição é a que aparece em uma frase de Irma laDulce (Shirley McLaine), quando ela conta a alguém as difíceiscircunstâncias de sua vida. Depois de dizer como foi parar, apósmuitas vicissitudes, naquela casa de prostituição, comenta candi­damente: "Sou eternam~~·te grata por isso. Se não estivesse aqui ,só Deus sabe em que terià me transformado!"

Nos conceiros-imagem desres filmes, há uma problematizaçãoimagética do conceito-idéia da prostituição. Na realidade, apre~en­tarn apenas um aspecto do fenômeno, o aspecto sádico, por assimdize r, esquecendo completamente o componente masoquista.Acentuam o ativo, esquecendo o passivo. Vêem a prostituição

como uma fatalidade, nunca como uma forma de vida. Mostramas coisas como se a prostituta fosse um mero joguete das circuns­tâncias, sem que .ela tenha nenhuma sensibilidade em relação aoque faz, nenhum componente de autonomia e nenhuma atirudepositiva com relação a isso (orgulho, proflssionalismo)~E:fu;­mo afirmativo, eculiar dos conceitos-idéia) s6 conse ue a res c.:tar a prostltUlçáo como pro ema SOCl ,como mácula, como mal­alÇa0 morãl; entretanto, o paganIsmo do cinema, o amoralismovIsceral de sua Íln ua em conseguem mostrar isso e também ooutro a o, a posltlvi a e erótIca e VIr ~ uma ex enenCla uma­na, tao gran tOsa e tao ffilserave como outra li uer. I 050 la­I la parece mais titu eante quan o se trata de desenvolver empalavras a complicadadinâmica do prazer, com seus componentessadomasoquistas e, por conseguinte, parece deixar merade da vidafora de consideração. (O que se diz aqui sobre os filmes de prosn­tuição pode ser diro de todo tipo de tema: em O porteiro da noite,por exemplo, Liliana Cavani problematizou a relação carrasco/víri­ma de uma maneira estruturalmente sernelhanre.)

O conceito-imagem é desenvolvido e li'flito treto com os conceitos-idéia'IEncena aquilo

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J U LI O C ABRE RA O C I NE MA PEN SA45

onccito- id éia somente fala, ao quc se rcfcre exrerio rmente. Oo ~l ccito. imagem ent~a na coisa mesma e co nsegue isso porque

de ixa de lado o moralism o afirm ativo da filoso fia escrit a trad icio­nal, ~om se~ com promi sso com a ~azão pura, a objetividade pura,a uni versalid ade pura, a moralidade puta etc. A filosofi a nasce

lI\o;:d,: s:a, em con:rap~sição CO~ ª SO,fística, 9~e foi a cor.r.t;~m:u ClIlemato fatiça da GréCia anti a, a maLS cética , a mai s

pro ) crnatlza ora. ntrando na coisa at raves a expenencla'lô'lu . Ilegel tentou ~a Fenomenologia do espírito, a mais imagéticade suas prod uções literárias) con segue reconstruir a to talidade dacoi.,a e não somente seu aspecto de idéia, o que se pode saber do111111 \110 apaticamente. Enquanto a fi losofia escrita pretende desen­IJtl/'lfr um universal sem exceções, o cinema apresenta uma exceção11111/ raracteristicas universais. A universalidade do possível dian teda >retensa uni versalidade do necessário.

or ISSO não correta a o ]eçao e que todas estas teses sobreo .inern a dependem, em últi m a aná lise, dos filmes escolhi dos.Poderíamos dizer, pOt exemplo, que nem todos os filmes salvam olado prazeroso e masoq uista da prostitui ção; alguns ap resentam apll lSt ituição em tod o o seu h or ror (por exemplo, Na na], Claroqu e: isto pode ocorrer, e oco rre, mas não tem nada a ver co m auniversalidade do cinema. Esta unive rsalidade não quer dizer quetodos os filmes problemarizem todas as coisas da mesma forma.Q ller dizer que pelo menos um filme pode problema tizar deformaulllvm at uma certa uestao. Naõ ~e tra~a do mesm o tipOde Uni: I~' 1 a e da fiI~so la esc" ~A f,losof,a escrita não se propoe a oprob lem atIzar unIversã1mente , mas a encontrar um universal que .

pão seja mais problernarizante.Para que uma ~uestão apresentada em co nceitos-idéia fique

problernat izada universalmen te, é suficiente que um único film eo f"ça. Se outro filme fala da prostituição como de algo degrada n­te , o co nflito entre estes dois film es será equivalente ao co nfli toent re duas prop osições co ntradi tó rias ou contrárias da filosofi aescrita tr adicio nal a respe ito de alguma questão . Em filosofia, nãohá "paz perp étua", não se chega nunca a aco rdos dehnltlvos.•O

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que ex iste é, sem pre, argum entação, literária ou imagética, ou - (l

ambas. A filosofia é essencialmente ers ectivista, o ue não uer J '

dizer ue se a re atiVIsta su etlvlsta ou meramente essoai. Ao \ r~ode ter acess o obOetivamentc, m as sem re de u'[j;ã "

IV - Cinema e filosofia, m ais um a vez

É claro q ue o press up osto b ásico para que o cinema tenha ascaracterísticas mencionadas na formulação d o conceito-imagem éque nos disponhamos a ler ofilme filosoficamente, isto é, a tr atá-locomo um objeto conceitual; corno um conceito visuale em movimen­to. Ou seja, devemos impor a pretensão de verdade e universalidadeem nossa leitura do film e, quer o diretor unha proposto isso ou não.Não qu ero dizer qu e os film es sejam filosóficos "em si mesmos";evidentemerite se trata de uma certa leitura, entre outras possíve is.O cinema pode ser considerado fi losófico se for possível analisar osfilmes do pon to de vista conceitual, con siderando-os como suces­

sões de conceitos mostrados ou conceitos vistosoIsto não implica projetar nos filmes uma coerência int electual

que eles não têm . Precisamente, a imagem cinematográfica funda ,sustent o eu , outro tipo de conceito compreensivo da realidade, doqual não se exig~ o mesmo tipo de coerência exigid a do conceitotradic ional. Q fillJ)!:..Qão ?sténta a mesma ç<m\#!.m~J<ã9 açglupeD- I fJtativa ou d~~~ ~; con::eitos pró~~~~_~~ exp?sição filosó fic~_ I ~:<:fraalc~onãl , mas.~':.n:eiiua7iza 'magetic~m.:~ec~~~_a_q~~...s."~fe-re;-an irol:nrdõ:o [email protected]!clOnálfdo -Lh~ .~~1'.Jt.gTb11 idade. • t

H á muit~~tras leitu ras possíveis de um film e. As m aiscomuns são as leituras sociológica, psicanal ítica e semiológica. Asabordagens psicanalíticas, por exemplo, tratam o filme como sefosse um sonho a ser interpretado. Parte-se da idéia do caráter aluci­natório do cinema, abordagem certamente promissora e fàscinante.A abo rdagem semiológica está ma is próxima da adotada aqui, na

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med ida em que afirmar que o cinema pode ser filosófico. cunhandoconceitos de certo tipo . tem relaçâo com o fato de que o cinema uti­liza determinado tipo de signos . Se o cinema é filosófico. deverá

provar que ten; alg.uV'a rdaçãCLCoiij a verdt de, e I~t?~ª;,~~~;í~rIS~t:...~~s.lsr}lij.ç;U:l d e p m C' :rº .llpcuie drOQtanvldade do signo..':\9~!. ~,~!..dero os filJllesco=lt9~9);!~ se reférvn à realidade . j •

AqUI. como em outros temas. é preciso livrar-se do intelectua­lismo professoral , capaz de fazer diferenças perversas e bem for­muladas entre uma "mera diversão") como o cin ema, e a "em pe­nhada bu sca da verdade . sem outros interesses". como a filosofia .Marx. Wittgensrein e H eidegger, entre outro s. tentaram fugi r dointelectualism o e m ergulhar num cotidiano que esclarecesse con­ceitos. Em uma concepção filosó fic a do ci nema, não se d eveexcluir em absoluto o elemento "diversão" . enquanto ligad o aoimp acto sensível (que, ao mesmo temp o que espanta ou assusta,também diverte). Habitualmente este elemento é excluído como"desvio" do que filosoficamente o filme pretendia dem onsrrar. Dequalquer fonna; se olharmos bem. é totalm ente impossiuel encontrarum filme que somente "divirta", que não diga absolutamente nadasobre O mundo e oser humano. A questão é cultivar a capacidade delê-lo filosófico-conceitualme nte. Filmes como os de Spielberg são,ao mesmo tempo, divertidos e filosóficos, e filosóficos na estritamedida em que são divertidos. Não é necessário procurar a filoso­fia somente nos filmes de Tarkovski ou de Bergman . Ela esrá pre·sen te tam bém - por que não? - nos 101 dálmatas.~Neste pomo. poderíamos no s perguntat se é poss ível. inclusi­

ve na própria apresentação escrita tradic ional de idéias filosóficas,ames dos experimentos "visuais" de Hegel e H eidegger, prescin dirda mediação de algu m tipo de imagem. Será que a filosofi a tra di­cional não util iza também imagens, atrav és da escrita? Não pode­tia a propos ição ser vista como um tipo especial de enquadrarnen­to? A lin guagem escrita, não menos que o qu adro cinernarogr ãfi-.co. não consti tui um certo tipo de imagem , não pretende tambémser uma espécie de quadro ou pint ura da realidade? N ão há emtoda análise um compo nente "imag ético"?*- tJ

1

o cinema im põe à filosofia um desafio que a pró pria filoso~apresentou recentemente a SI mesma.M~ sug~re que, para ?oderreãImente tornar IOteltglvel este desaho, e precIso mudar a lmgua·gem da exposição e não simplesm ente conti~uar falando da ne ces­sidade de mudá-la. Isto foi vivamente sent ido por Heidegger emsua própria obra: Ser e tempo é um livro escr ito ainda ~m l i~g~a­gem filosófica trad icional, no qual u fala dos. pathos eXl~te.nclals eda insuficiência de uma racionalidade exclUSivamente loglca paracaprar o ser; tanto que nas obras posteriores, ~omo,A caminho dalinguagem, a p rópria linguagem d a e:poSlçã~ e m.odlficada ,tornando-se quase poética. Por que o clOema nao fatia parte da"abertura ao ser" I em vez de ser co nsiderado um a diversão ôn tica

sem importância? .O Impacto emobonal e a demo nstrativi dade não dl strae:",

mas co nscientizam , não desviam a atenção m as, pelo contr ário ,nos afundam numa realidade penosa ou p roblemática, como as

palavras escritas talvez hão consigam fazer.~recisa tentar ver ocinema fora dos uadros do esca lsmo ara co ocá-lo nos da refie­xão. O esforço na busca pela verdade e pela univers i ade .não

"'d'ffiü'nui co m a chegada do cinema , mas, ao cont rário , co ntinuapor me io de outras linguagens e ou tr as direções da exp ressão.Trata-se de chegar mais longe na me sma senda da filosofi a escrrta

rrad icional.D epois desta reflexão sobre logopatia . é conveniente observar

que a razão filosófica trad icional (a racionalidade das idéi~) não étão "fria" como prerende ser, não está totalmente de spoj ada deemoções, nem entregue ao puramente objetivo . Em um livro defilosofi a também se desenvolve um drama, com seus personagen s,suas situações ten sas e seus d esenlaces . O cinema ex licita deforma mais clara a d ramatizas;ão habirual as i éias. a re I a e.não é que o cinem a apareça para nos prop orc lOnar um acesso maisequilibrado e mai s complero ao mundo, mas para m ostrar com oa filo sofia escrita tradicio nal nunca constituiu realmen te este aces­so equilibrado e comple to . A filosofia conre mporân ea conco rdacom o cinema quamo a que a verdade e a universalidade existem,

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mas são mais frágeis, parc iais e provisó rias do q ue pareciam a nos­sos antepassados absolutistas e fundamentalistas.

E, afinal de contas, quem disse que a frieza é mais adequadapara formular e tra ta r problemáticas filosóficas do qu e o calor?P~"que essa currosa preferên cia térm ica? Por que o rigor deve serfrio: Até Descartes precisou de uma estufa para po der filosofar,emb.ora acabasse morrendo de frio na Suécia. Talvez seja este odesu no de todo bom racion alista.

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EXERCíCIO 1

Platão vai à guerra(A teoria das idéias)

1 - Introdução

No livro hoje conhecido como Mettlftsica, Aristót eles declara quecabe ao filósofo procurar a ciência "das causas primeiras (poi sd izemos que co nhecemos uma coi sa quando co nside ramosconhecer sua causa prime ira)" (Livro I, 983a) . Mais adiante, afir­ma: ''A maioria dos pri meiros filósofos acreditava qu e os princí­pios de tod as as coisas se encontravam exclusivamente no domí­nio da matéria" (983b). "D epois de passar os olhos pelas opiniõesdestes pensad ores, poder-se-ia pensar que a ún ica causa é a quepertence à classe qu e se chama material. Mas, progredindo destamaneira, a realidade mesma indicou-lhes o caminho a seguir e osobrigou a uma indagação ulterior" (984a). "A existência ou a pro­du ção do bem e da bele~a nos seres não tem verossimilmente porcausa nem o fogo , nem a terra, nem nenhum outro dos elementosC..) Além disso, seria injusto confiar ao acaso e à sorte assunto tãoimp ortante" (984b). "Sócrates, ao se ocupar da moral e desinre­ressar-se da natureza em conjunto, buscou nesse campo o univer­sal, sendo o primeiro a dar atenção às definições. Plarão adotou

/ ' seu modo de pensar, mas ente ndendo que a defin ição não deve sereferir ao sensível e sim a outro t ipo de realidade; com efeito , éimpossível que haja definição comum de uma coisa sensível, poisesta semp re está em contín ua transformação. Chamo u tais entida­des de Idéias, sustentando que as coisas sensíveis estão fora destas,