Justiça Comunitária

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O Projeto Justiça Comunitária foi criado em outubro de 2000 com o objetivo de democratizar a realização da justiça, restituindo ao cidadão e à comunidade a capacidade de gerir seus próprios conflitos com autonomia.A iniciativa foi levada a efeito pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), em parceria com o Ministério Público do Distrito Federal, a Defensoria Pública do Distrito Federal, a Faculdade de Direito da Universidade de Brasília – Unb e, à época, a Comissão de Direitos Humanos da OAB-DF, sob o convênio firmado com a Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República.Atualmente, o Programa está instalado nas regiões da Ceilândia e de Taguatinga e conta com 60 agentes comunitários que, na qualidade de membros das comunidades nas quais atuam, compartilham a linguagem e o código de valores comunitários.Os agentes comunitários são credenciados junto ao Programa por meio de um processo de seleção levado a efeito por sua equipe multidisciplinar. Encerrada essa etapa, os selecionados iniciam uma capacitação permanente junto ao Centro de Formação e Pesquisa em Justiça Comunitária, onde recebem noções básicas de Direito e formação em mediação comunitária, animação de redes sociais e direitos humanos.A atuação dos Agentes Comunitários é acompanhada por uma equipe multidisciplinar composta de advogados, psicólogos, assistentes sociais, artistas, servidores de apoio administrativo, estagiários e uma juíza que coordena o Programa.

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Ministrio da Justia - Secretaria de Reforma do Judicirio

RELATO DE UMA EXPERINCIA

PROGRAMA JUSTIA COMUNITRIA DO DISTRITO FEDERAL

Braslia, 2008

MINISTRIO DA JUSTIA Secretaria de Reforma do Judicirio Endereo: Esplanada dos Ministrios, Bloco T, 3 Andar, Sala 324 Cep 70.064-900, Braslia - DF, Brasil. Fone: 55 61 3429 9118 Correio eletrnico: [email protected] Internet: www.mj.gov.br/reforma Distribuio gratuita Segunda edio - Tiragem: 10.000 exemplares Capa e Diagramao: Renato Berlim Fonseca Reviso: Jos Geraldo Campos Trindade Impresso pela Grca e Editora Ideal Ltda. Redao e organizao: Juza Glucia Falsarella Foley Pesquisa, colaborao e reviso: Servidores: Beatriz Medeiros Martins Benlson da Costa Atade Bruno Carpaneda Schmidt Carlos Escosteguy Fernanda da Silva Teixeira de Aquino Juliana Castro Jesuno da Silva Laci Augusto da Silva Sonia Maria Virgilio de Carvalho S. Veiga Tatianna Cristina Rodrigues de Souza Vanessa do Nascimento Lima Monteiro Vnia Sibylla Pires Vera Lcia Soares Vera Lucia Muniz de Carvalho Estagirios Caroline Souza Neves Gabriella Sabatiny Nogueira Barreto Igor Paulino Cardoso Juliana Natasha P. de Aquino Soa Jacqueline Lisboa Feitosa Viviane Soares Cavalcante

A transcrio e a traduo desta publicao so permitidas, desde que citadas a autoria e a fonte.

REPBLICA FEDERATIVA DO BRASIL Presidente da Repblica Luiz Incio Lula da SilvaMINISTRIO DA JUSTIA Ministro de Estado da Justia Tarso Genro Secretrio de Reforma do Judicirio Rogerio Favreto Diretor do Departamento de Poltica Judiciria Roger Lorenzoni Chefe de Gabinete Vinicius Wu

Presidente do Tribunal de Justia do Distrito Federal e Territrios Desembargador Nvio Geraldo Gonalves

Vice-Presidente do Tribunal de Justia do Distrito Federal e Territrios Desembargador Romo Ccero de Oliveira

Corregedor do Tribunal de Justia do Distrito Federal e Territrios Desembargador Getlio Pinheiro de Souza

Coordenadora do Programa Justia Comunitria Juza Glucia Falsarella Foley

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SUMRIOAPRESENTAO DE EXPERINCIA A POLTICA PBLICA JUSTIA COMUNITRIA: CONSOLIDANDO A DEMOCRACIA E PROMOVENDO OS DIREITOS HUMANOS POR MEIO DO ACESSO JUSTIA A TODOS PRLOGO PREFCIO INTRODUO 1 BREVE APRESENTAO DO PROGRAMA JUSTIA COMUNITRIA. 1.1. Histrico. 1.2. O Programa Justia Comunitria. Linhas gerais. 2. O LOCUS: A COMUNIDADE. 2.1. O conceito de comunidade. 2.2. Conhecendo o locus. O mapeamento social. 2.3. Animao de redes sociais. 2.3.1. As redes sociais. 2.3.2. As redes sociais em movimento. 3. OS ATORES E A SELEO. 3.1. Os Agentes Comunitrios de Justia e Cidadania. 3.2. O perfil dos Agentes Comunitrios 3.2.1. Requisitos pessoais. 3.2.2. Responsabilidades e compromissos. 3.3. As etapas da seleo. 3.3.1. O recrutamento. 3.3.1.1. Divulgao do processo seletivo. 3.3.1.2. Cadastramento dos interessados. 3.3.1.3. Esclarecimentos sobre o Programa. 3.3.1.4. Inscrio dos interessados. 3.3.2. A seleo. 3.3.2.1. Anlise do formulrio de inscrio. 3.3.2.2. Referncias judiciais e sociais. 3.3.2.3. Dinmica de grupo. 3.3.2.4. Entrevista de seleo. 3.3.2.5. Escolha dos candidatos. 3.4. O quadro atual de agentes comunitrios de justia e cidadania. 4. AS ATIVIDADES DOS AGENTES COMUNITRIOS. 4.1. Educao para os direitos. 4.1.1. Reflexes prticas. Educao para os direitos. 4.2. Mediao Comunitria. 4.2.1. Reflexes prticas. Mediao comunitria. 4.3. Animao de redes sociais. 4.3.1. Reflexes prticas. Animao de redes sociais. 5. A EQUIPE MULTIDISCIPLINAR. 5.1. O papel da multidisciplinaridade. 5.2. A equipe multidisciplinar do Programa Justia Comunitria. 5.3. Apresentando a equipe multidisciplinar. 6. OS NCLEOS COMUNITRIOS DE JUSTIA E CIDADANIA. 6.1. A finalidade. 6.2. A estrutura fsica. 6.3. Equipamentos teis ao funcionamento do Ncleo Comunitrio. 7. O CENTRO DE FORMAO E PESQUISA EM JUSTIA COMUNITRIA 7.1. Pressupostos epistemolgicos. 7 9 13 15 17 19 23 23 24 27 27 29 33 33 37 39 39 39 40 40 41 42 42 42 43 43 43 45 45 45 46 46 46 55 55 56 57 60 62 63 65 65 65 67 71 71 72 75 77 78

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7.2. As atividades de formao dos Agentes Comunitrios 80 7.2.1. Os encontros mensais. 80 7.2.2. O acompanhamento multidisciplinar. 81 7. 3. A programao curricular. 82 7.3.1. Cidadania e noes bsicas de Direito. 84 7.3.2. Os cursos e as oficinas de mediao. 85 7.3.3. A capacitao para a animao de redes sociais. 89 7.4. O corpo docente. 90 7.5. As atividades abertas. 91 7.6. Interlocues institucionais. 91 7.7. O boletim peridico. 97 7.8. A avaliao do processo de aprendizagem. 98 7.9. Os recursos pedaggicos. 99 7.10. Equipamentos teis 100 8. AS PARCERIAS INSTITUCIONAIS. 101 8.1. Tribunal de Justia do Distrito Federal e dos Territrios (TJDFT). 101 8.2. Secretaria de Reforma do Judicirio (SRJ). 101 8.3. Secretaria Nacional de Segurana Pblica (SENASP). 103 8.4. Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). 105 8.5.Defensoria Pblica do Distrito Federal (DPDF). 106 8.6. Ministrio Pblico do Distrito Federal e dos Territrios (MPDFT). 107 8.7 Universidade de Braslia (UnB) 107 9. OS CASOS CONCRETOS. 109 9.1. As estatsticas. 109 9.2. O perfil das demandas. 113 9.3. Os conflitos criminais. 114 9.4. Ilustrao de alguns casos concretos110 115 10. REGISTRO E MEMRIA. 127 10.1. O sistema de banco de dados. 127 10.2. Registrando as atividades. 128 11. O TRABALHO VOLUNTRIO. 129 11.1. A natureza do trabalho voluntrio. 129 11.2. A adeso voluntria. Questes prticas. 130 12. EM BUSCA DA AUTO-SUSTENTABILIDADE DO PROGRAMA. 133 12.1. Uma proposta para a reproduo de um programa de justia comunitria em larga escala e a baixo custo. 133 13. A AVALIAO DO PROGRAMA. 137 13.1. Avaliao. Conceito e objetivos. 137 13.2. A subjetividade da avaliao. 139 13.3. Momentos da avaliao. 139 13.4. A avaliao do Programa Justia Comunitria. 140 BIBLIOGRAFIA ANEXO ANEXO ANEXO ANEXO ANEXO ANEXO ANEXO ANEXO ANEXO ANEXO ANEXO ANEXO ANEXO ANEXO ANEXO ANEXO6

142 147 150 151 152 153 157 160 161 164 167 175 176 178 179 180 184Justia Comunitria - Uma Experincia

I II III IV V VI VII VIII IX X XI XII XIII XIV XV XVI

APRESENTAO

A crise do Estado moderno instabilizou a confiana do cidado nos poderes constitudos da Repblica, gerando um estranhamento que se aprofundou nos ltimos 30 anos. Ultimamente, no entanto, j comea a ficar demonstrada a possibilidade de uma reverso. Nesse contexto, assegurar a todos os cidados o acesso Justia um desafio republicano, de forma a colocar a cidadania na centralidade do processo democrtico. Em nosso pas, as iniciativas de reforma do Poder Judicirio, alm da reforma e modernizao do Estado brasileiro, na esteira da Constituio de 88, apontam para a criao de novas instituies que, de maneira inovadora, garantam a participao social e o envolvimento direto do cidado com as esferas de poder. No h como discutir a participao da cidadania sem abordar o acesso Justia. Foi por tal razo que o Ministrio da Justia criou uma secretaria especfica, a Secretaria de Reforma do Judicirio, para auxiliar nesse debate e na busca de iniciativas para a promoo do acesso Justia. Aps o enfoque inicial nas alteraes constitucionais e infraconstitucionais, que vm dotando o Poder Judicirio de instrumentos administrativos mais eficientes e agilizaram o processo judicial, a Secretaria de Reforma do Judicirio inaugura uma nova fase. Prioriza o acesso Justia e estimula frmulas alternativas de resoluo de conflitos, novas iniciativas que no se contrapem ao sistema clssico de Justia, ao contrrio. O complementam e desoneram da litigiosidade excessiva, alm de promover a coeso social. O desenvolvimento dessas formas alternativas ao processo judicial clssico, baseadas fundamentalmente na mediao, constitui um importante caminho para solues pacficas, rpidas e justas de conflitos, conforme recomendado pelas Naes Unidas. Uma das experincias mais positivas que possumos o Programa Justia Comunitria, implantado no ano 2000 e mantido pela parceria entre o Ministrio da Justia e o Tribunal de

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Justia do Distrito Federal. O Programa conta com a atuao voluntria de agentes comunitrios, contribuindo para o processo de democratizao da Justia. Levam informaes jurdicas populao, efetuam mediaes, realizam animao de redes sociais, transformando o conflito, por vezes aparentemente individual, em oportunidades de mobilizao popular e em criao de redes solidrias entre pessoas que, apesar de compartilharem de problemas comuns, no se organizam, at porque no se comunicam. O Ministrio da Justia orgulha-se de ter elevado esta experincia exitosa condio de poltica pblica, por meio do Pronasci-Programa Nacional de Segurana Pblica com Cidadania, possibilitando assim sua reaplicao por todas as regies do pas. Ao reeditar a presente publicao, o Ministrio da Justia espera ver o tema sob permanente debate, a fim de que a participao dos poderes Executivo, Legislativo e Judicirio seja estimulada, na construo de um Brasil de todos.

Tarso Genro Ministro da Justia

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DE EXPERINCIA A POLTICA PBLICA

No ano de 2000, havia um sonho, uma causa: levar a justia mais prxima comunidade. Uma juza, alguns abnegados, um nibus para atender s comunidades do Distrito Federal com dificuldades de acesso Justia. Era uma equipe pequena, mas absolutamente convencida de que uma parcela majoritria da populao no tem condies de submeter suas demandas Justia formal, seja por razes de ordem formal ou simblica. J tinham a clareza de que, alm de inacessvel financeiramente para alguns, a Justia veicula excessivo formalismo em sua liturgia forense. No sonhavam que aquela iniciativa, poca ainda em construo, de buscar a implementao de um mecanismo alternativo e democrtico de acesso Justia, fosse um dia se transformar em poltica pblica, com possibilidade de replicao em todas as regies do pas. Tinham e defendiam um objetivo: democratizar a realizao da Justia, restituindo aos cidados e comunidade a capacidade de gerir seus prprios conflitos com autonomia. Rapidamente, o projeto, com o apoio do Tribunal de Justia do Distrito Federal, do Ministrio da Justia, do PNUD, entre outros, foi se consolidando. O programa foi denominado Justia Comunitria e constitudo dois ncleos em cidades satlites de Braslia (Taguatinga e Ceilndia). De pronto, a iniciativa chamou a ateno da comunidade jurdica e, mesmo de forma no orgnica, comeou a ser replicada em alguns municpios da federao. O prestigiamento de procedimentos alternativos ao processo judicial clssico, baseados fundamentalmente na mediao e composio de conflitos, que recebe a recomendao da ONU, constitui um importante caminho para solues pacficas dos conflitos vivenciados pelos cidados e de fortalecimento da coeso social. O acesso Justia considerado um direito fundamental e um caminho para a reduo da pobreza, por meio da promoo da equidade econmica e social. Onde no h amplo acesso a uma Justia efetiva e de qualidade, a democracia est em risco e o desenvolvimento harmnico no possvel.

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De ressaltar-se que o investimento em sistemas alternativos de soluo de conflitos interessante, no como substituto do direito fundamental de acesso ao Poder Judicirio, mas como mecanismo complementar que pode ajudar a, cada vez mais, produzir espaos em que a gesto social de interesses antagnicos seja operada dentro das regras do Estado de Direito e com respeito aos direitos fundamentais dos cidados. evidente que o formato centrado de soluo de litgios no modelo concentrado do estado-juiz, tanto no Brasil como no mundo, revela-se esgotado. O elevado ndice de litigncia verificado em nosso sistema no traduz a universalizao dos meios e instrumentos de acesso Justia no Brasil. Ao contrrio, os dados disponveis indicam uso excessivo da mquina do Judicirio por grandes corporaes e pela Administrao Pblica em todos os seus nveis, ao passo que as demandas da populao economicamente necessitada no chegam, de regra, s instncias formais da Justia. De outra banda, a Justia no ser fortalecida apenas com reformas que visem a combater a morosidade do Poder Judicirio, mas, fundamentalmente, pela universalizao do acesso, conhecimento de direitos e proximidade do sistema de justia junto ao cidado. A Secretaria de Reforma do Judicirio do Ministrio da Justia definiu como prioridade para a atual gesto o tema Democratizao do acesso Justia, ao lado da continuidade das reformas constitucionais e infraconstitucionais voltadas modernizao e racionalidade da prestao jurisdicional. Esta deciso exige a continuidade de aes voltadas ao fortalecimento das defensorias pblicas para que a populao mais necessitada seja plenamente includa no sistema jurisdicional de prestao da Justia, por meio de atendimento eficiente e de qualidade voltado a concretizar o preceito constitucional de acesso Justia pela ampliao da assistncia jurdica gratuita. Exige, tambm, a prpria democratizao da Justia, definida quando efetivamente operada na comunidade, para a comunidade e, sobretudo, pela comunidade, como o caso da Justia comunitria. Por isso que a Secretaria de Reforma do Judicirio props a transformao da experincia de Justia Comunitria, de Braslia, com os aperfeioamentos incorporados de

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outras iniciativas similares, em uma poltica pblica com investimento permanente, a fim de apoiar financeiramente e incentivar institucionalmente projetos de implantao de ncleos de mediao comunitria em todas as regies do Pas. A expectativa a disseminao de ncleos da Justia Comunitria como forma de fortalecer a cidadania pela informao e conscientizao em direitos e preparao de lideranas comunitrias para atuarem como mediadores de conflitos em suas comunidades. Aps a difuso desse projeto, em parcerias com rgos estatais, em especial da Justia, e entidades da sociedade civil, esperamos consolidar essa experincia como um efetivo meio de resoluo de conflitos, combinando preveno, diminuio da judicializao e obteno de maior pacificao social. Com isso, poderemos passar para a fase de massificao do projeto. A ao, includa que est no Programa Nacional de Segurana com Cidadania - PRONASCI, desenvolvida por meio da atuao voluntria de agentes comunitrios e com auxlio de equipes interdisciplinares, deixou, no incio do ano de 2008, seu estgio de experincia, para tornarse uma poltica pblica, com apoio tcnico e suporte de recursos oramentrios do Ministrio da Justia, j destacados no Plano Plurianual, at 2011. Vrios ncleos de Justia Comunitria esto sendo implantados ou fortalecidos por todas as regies do pas, objetivando a coeso social, a solidariedade, a promoo da paz, por meio de atividades de informao jurdica, mediao comunitria e animao de redes sociais. Espera-se, assim, contribuir, de forma decisiva, para a incluso de milhes de brasileiros que ainda se encontram margem do sistema de Justia. Nesse sentido, esta publicao atualizada servir como orientao e guia terico para os parceiros do projeto, em especial os capacitadores e agentes da comunidade que sero habilitados tecnicamente para a mediao comunitria. Ao mesmo tempo, sero editados materiais complementares para servirem de manuais prticos na implementao do projeto, conferindo apoio tcnico e unicidade na efetivao dessa poltica pblica de democratizao da Justia.

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Cabe destacar que a mediao comunitria uma importante ferramenta para a promoo do empoderamento e da emancipao social. Por meio dessa tcnica, as partes envolvidas no conflito tm a oportunidade de refletir sobre o contexto de seus problemas, de compreender as diferentes perspectivas e, ainda, de construir em comunho uma soluo que possa garantir, para o futuro, a pacificao social. Com esta divulgao, esperamos melhor difundir o projeto e despertar o interesse de parceiros para a sua execuo, uma vez que o sucesso est associado cooperao e convergncia de esforos na busca da coeso social pela diminuio da conflituosidade e da violncia.

Rogerio Favreto Secretrio de Reforma do Judicirio

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JUSTIA COMUNITRIA: CONSOLIDANDO A DEMOCRACIA E PROMOVENDO OS DIREITOS HUMANOS POR MEIO DO ACESSO JUSTIA A TODOS

O PNUD identifica o acesso justia como um elemento prioritrio para a garantia do desenvolvimento e como uma rea de cooperao fundamental para o cumprimento de seu mandato em vrias partes do mundo. Nesse contexto, e no marco de seu mandato, o PNUD vem apoiando, desde 2005, em parceria com a Secretaria de Reforma do Judicirio do Ministrio da Justia, o Programa de Justia Comunitria, coordenado pelo Tribunal de Justia do Distrito Federal e Territrios. Para o PNUD, o Programa de Justia Comunitria representa um paradigma com grande potencial transformador na medida em que articula aes de disseminao de informao jurdica, mediao de conflitos e animao de redes sociais, tendo como protagonistas e parceiros a prpria comunidade, atravs dos agentes comunitrios e membros do poder judicirio local, com o objetivo nico de ampliar o acesso justia daquelas pessoas que, invariavelmente, no dispem de informao adequada ou dos meios necessrios para tal. O PNUD entende que o fortalecimento de programas de justia comunitria que levem em considerao o marco normativo brasileiro, a diversidade cultural e o respeito dignidade das pessoas envolvidas nos processos comunitrios ser um mecanismo para a consolidao da democracia e promoo dos direitos humanos atravs do acesso justia a todos. A publicao desse relato uma oportunidade mpar de socializar essa experincia concreta de construo coletiva. Por isso, o PNUD deseja que o presente relato da experincia de justia comunitria, coordenada pelo Tribunal de Justia do Distrito Federal e implementada pelos agentes comunitrios de justia e cidadania e representantes do

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Poder Judicirio sirva como exemplo de uma prtica bem sucedida de acesso justia, preocupada com o cidado, e que este possa inspirar a realizao de experincias semelhantes em outras cidades brasileiras e em outros pases da Amrica Latina. Kim Bolduc Representante Residente Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento

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PRLOGO

A justia, desde longnquas eras, perseguida pela humanidade, uma aspirao do ser humano. No se trata aqui to-somente de justia institucional, mas, sobretudo, de justia social. E o acesso a ambas reclama cidadania. Este o baluarte do Programa Justia Comunitria: a possibilidade de levar ao conhecimento dos cidados os deveres que os regem e os direitos que os amparam, de conferir-lhes os instrumentos necessrios para o pleno exerccio da cidadania. Nessa vertente, a presente obra corrobora a concretizao desse ideal humano como tambm a disseminao da aguerrida experincia resultante daquele Programa. Aes dessa envergadura fazem valer ainda mais o trabalho daqueles que incansavelmente atuam em prol de uma sociedade mais justa e inclusiva. Uma idia simples, no simplista, tem o condo de apresentar grandiosa extenso social e resultados motivadores. Os frutos auferidos at o presente momento so indicadores de que a direo est correta e de que o caminho apenas comeou a ser percorrido. E s-lo-a perenemente. Constitui grande honra para o Tribunal de Justia do Distrito Federal e dos Territrios partilhar essa experincia e contribuir com iniciativas de outros nascedouros, em especial, aquela empreendida pelo Ministrio da Justia, por meio do Programa Nacional de Segurana com Cidadania Pronasci. Enalteo a atuao de todos os envolvidos no Programa Justia Comunitria, os quais, a exemplo do homem sbio do Mito da Caverna de Plato, tornam corajosamente aos seus para levar-lhes a luz do conhecimento libertador e, por conseguinte, transformador. Parabenizo tambm os idealizadores e organizadores deste livro.

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Aos aambarcadores de projetos dessa estirpe, tenho a pronunciar: o comprometimento social , indubitavelmente, demonstrao de solidariedade e de esprito pblico. Desembargador Nvio Geraldo Gonalves Presidente do Tribunal de Justia do Distrito Federal e dos Territrios

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PREFCIO

O presente relato tem por objetivo compartilhar a experincia do Programa Justia Comunitria coordenado pelo Tribunal de Justia do Distrito Federal e dos Territrios, desde outubro de 2000. A partir de uma breve contextualizao do tema da justia comunitria no cenrio contemporneo, este material oferece algumas ferramentas operacionais para auxiliar todos aqueles que j iniciaram ou pretendem iniciar esta fascinante jornada pela democratizao da realizao da justia, no mbito comunitrio. Trata-se de uma exposio nem sempre confortvel da aprendizagem extrada destes anos de experincia, nas regies administrativas da Ceilndia e de Taguatinga, cidadessatlites do Distrito Federal. A ilustrao de nossos erros e acertos tem por objetivo inspirar novos e atuais programas e, na medida do possvel, ajudar a evitar que experincias negativas se repitam desnecessariamente. bem verdade que cada comunidade tem a sua trajetria que a faz nica e essa experincia local precede qualquer esforo institucional que lhe seja externo. Contudo, o que se pretende com esta segunda edio a ampliao dos canais de dilogo entre as diferentes comunidades e as instituies que integram as aes do Programa Nacional de Segurana com Cidadania Pronasci, do Ministrio da Justia. Partimos da convico de que, diante de um cenrio de profunda fragmentao do tecido social, todas as experincias que busquem a educao para os direitos, a animao de redes sociais, o estmulo ao dilogo solidrio e a reflexo coletiva dos temas sociais so indispensveis e devem ser expostas necessria troca, generosa partilha. Nesse sentido, a partir do registro de uma experincia concreta, este trabalho pretende provocar o debate sobre a possvel integrao entre pluralidade, autonomia, tica, democracia e justia, a ser estabelecido entre todos os que apostam na construo de uma sociedade mais coesa, mais solidria e mais justa.

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sob esta perspectiva, pois, que este trabalho pretende desenvolver no um modelo, mas caminhos possveis para delinear os traos de uma justia comunitria para a emancipao social.

Glucia Falsarella Foley Juza Coordenadora do Programa Justia Comunitria

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INTRODUO

Diante da crise dos paradigmas da modernidade, a realidade contempornea, plural e fragmentada, requer a construo de uma concepo de direito pertencente a uma nova constelao paradigmtica. No mbito da realizao da justia, a racionalidade moderna que celebra a universalidade, a linearidade e a verticalidade, j no se mostra suficiente para lidar com as complexidades que marcam os tempos atuais. A justia realizada por meio da jurisdio estatal um modelo que segue os padres da modernidade ocidental, posto que estruturada a partir de princpios universais pautados em imperativos legais. Trata-se de um tipo de justia que codifica procedimentos e aplica a norma no caso concreto, com base em dedues racionais advindas da autoridade da lei ou dos precedentes. Em situaes de conflito, o Estado substitui a vontade dos cidados, a fim de dizer o direito e assegurar a paz social. Sob este padro, o Estado detm o monoplio do exerccio da atividade jurisdicional. Isto no significa afirmar, contudo, que o Estado detenha o monoplio da criao do direito. H uma parcela da sociedade que, excluda do atendimento jurisdicional, busca frmulas prprias de resoluo de conflitos, criando alternativas para manter o mnimo de coeso social. Esta pluralidade de ordens jurdicas, apesar de ser uma realidade, em geral, no reconhecida oficialmente pelo Estado. Contudo, a partir do final da dcada de 70, sobretudo nos EUA, assistimos emergncia de um movimento de resgate dos mtodos alternativos de resoluo de disputas (ADRs)1 como um instrumento de realizao da justia2.

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A sigla tem as iniciais da expresso Resoluo Alternativa de Disputas, na lngua inglesa: Alternative Dispute Resolution. AUERBACH, Jerold S. Justice without Law? UK: Oxford University, 1983. Apud FOLEY, Glucia Falsarella. Justia Comunitria. Por uma justia da emancipao. Dissertao de Mestrado pela Faculdade de Direito da Universidade de Braslia, 2003, p. 69 72.

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Este fenmeno tem sido analisado sob diferentes perspectivas. O debate se divide entre os opositores flexibilizao do pretenso monoplio estatal na realizao da justia e aqueles que acreditam que os mtodos alternativos de resoluo de disputas revelam sinais de uma justia do futuro. Os crticos, apesar de algumas divergncias de linhas de pensamento, questionam: seria este movimento parte de um processo de privatizao das funes consideradas eminentemente estatais? Estaria o Estado outorgando suas atribuies jurisdicionais aos cidados, deixando-lhes escapar a autoridade de arbitrar conflitos e equilibrar desigualdades para promover a paz social? No seria esta uma forma de reservar a justia social aos socialmente includos e destinar uma justia de segunda classe aos excludos? De outro lado, entre os entusiastas, encontramos desde os que vem este movimento como uma alternativa eficaz morosidade e inacessibilidade do processo judicial oficial, at os que o consideram um instrumento de resgate do estatuto do cidado e da comunidade, a fim de restaurar a sua capacidade emancipatria, por meio da autogesto de seus conflitos. Este movimento de resgate e de construo de novos mtodos de resoluo de conflitos conta com um importante instituto, objeto de debate ao longo das ltimas trs dcadas: a mediao. Trata-se de um processo no qual uma terceira parte, desinteressada e sem qualquer poder de deciso, facilita para que as partes em conflito construam uma soluo. Em contraste com o sistema jurisdicional, a lgica da mediao oferece, potencialmente, um padro dialgico, horizontal e participativo. Quando operada na esfera comunitria, a mediao potencializa a sua dimenso emancipatria na medida em que trata de autodeterminao e de participao nas decises polticas, reelaborando o papel do conflito e desenhando um futuro sob novos paradigmas. Muito embora a experincia a ser partilhada neste relato tenha sido concebida por iniciativa de um ente estatal, o modelo desenvolvido comunitrio porque, alm de contar com membros da comunidade como seus principais operadores, exatamente na esfera comunitria, onde a vida acontece, que se estabelece o locus preferencial de atuao do Programa. Em poucas palavras, a justia realizada pela, para e na comunidade.

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O carter emancipatrio de um projeto no se define pela natureza da entidade que o implementou, mas pelos princpios com os quais opera. Portanto, no h qualquer razo na assertiva que confere legitimidade exclusivamente aos programas de justia comunitria levados a efeito por entes no estatais. Se h prevalncia da dialgica em detrimento da retrica persuasiva, da coero e da burocracia verticalizada3, se o saber local respeitado como parte do processo de aprendizagem; se o conflito transformado em oportunidade de empoderamento individual e social; e se as atividades so voltadas para transformar tenso social em possibilidades de criao de solidariedade e paz social, a justia do tipo comunitria e, como tal, ostenta vocao para a prtica transformadora. Por fim, h que se esclarecer que embora a justia comunitria seja, por vezes, classificada como instrumento alternativo de resoluo de conflitos, o modelo ilustrado neste trabalho no pretende afirmar-se em substituio ao sistema judicial oficial. Ao contrrio, o pressuposto adotado o de que a jurisdio revela-se um instrumento apto a proteger direitos e garantir a realizao da justia, em especial nas situaes extremas em que as circunstncias dos conflitos repousam na violncia e na ausncia do dilogo e, ainda, diante de um acentuado descompasso de poder seja econmico, social ou poltico entre as partes em conflito. Nesse sentido, a justia comunitria deve ser interpretada em sua complementaridade em relao ao sistema oficial. Por outro lado, considerando a sua vocao de promover a paz e a coeso social nas esferas da comunidade onde os conflitos havidos, em geral, no so levados ao Poder Judicirio, a justia comunitria constitui importante instrumento de realizao da justia, apto a integrar um projeto emancipatrio que redimensione o direito, articulando-o sob uma nova relao entre tica e justia.

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Retrica, burocracia e coero so, na anlise de Sousa Santos, os trs componentes estruturais do direito que podem se articular sob diferentes combinaes, a depender do campo jurdico ou dentro de um mesmo campo. SOUSA SANTOS, Boaventura de. O Estado e o Pluralismo Jurdico em frica, In: SOUSA SANTOS, Boaventura de e TRINDADE, Joo Carlos (Orgs.). Conflito e transformao social: uma paisagem das justias em Moambique, p. 7.

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1 BREVE APRESENTAO DO PROGRAMA JUSTIA COMUNITRIA4.

1.1. Histrico.O Projeto Justia Comunitria do Distrito Federal nasceu a partir da experincia advinda do Juizado Especial Cvel Itinerante do TJDFT, o qual busca atender as comunidades do Distrito Federal com dificuldades de acesso justia formal. Durante os primeiros trs anos entre 1999 e 2001 de experincia no interior de um nibus especialmente adaptado para a realizao de audincias, foi possvel constatar a absoluta falta de conhecimento dos cidados em relao aos seus direitos e, ainda, a dificuldade de produo probatria, tendo em vista a informalidade com que os negcios so firmados nestas comunidades. Um fato, porm, revelava o xito da experincia. Aproximadamente 80% da demanda do Juizado Itinerante resultavam em acordo. Esse dado confirmou que a iniciativa do nibus efetivamente rompeu obstculos de acesso justia, tanto de ordem material quanto simblica. A ruptura com a liturgia forense e a horizontalidade com a qual as audincias eram realizadas, ajudaram a criar um ambiente de confiana favorvel ao alto ndice de acordos constatado. Contudo, apesar dos acordos no resultarem de nenhum tipo de coero, o que se verificava, poca, era que nem sempre os seus contedos correspondiam ao sentimento de justeza trazido por cada parte ao processo. Como a produo probatria era difcil, os acordos pareciam resultar de uma razo meramente instrumental que levava renncia parcial do direito, a fim de se evitar os riscos de uma sucumbncia total. Esse consenso da resignao, pois, parecia contrariar todo o esforo de se buscar a democratizao do acesso justia formal.

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O inteiro teor do Programa Justia Comunitria do TJDF encontra-se disponvel no stio do Programa: http://www.tjdft. jus.br/tribunal/institucional/proj_justica_comunitaria/comunitaria.htm

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Essas constataes impulsionaram a reflexo sobre a possibilidade de se desenvolver na comunidade espaos nos quais fossem possveis a democratizao do acesso informao e o dilogo visando consensos justos do ponto de vista de seus protagonistas. Para tanto, o clssico operador do Direito deveria ceder lugar a pessoas comuns que partilhassem o cdigo de valores e a linguagem comunitria e, desta forma, pudessem fazer as necessrias tradues. Delineava-se, assim, o primeiro esboo do Projeto Justia Comunitria. Seus contornos, porm, ganharam maior definio no decorrer do debate havido entre os representantes das entidades parceiras5, os quais imprimiram, a partir da perspectiva de cada instituio, a sua contribuio para a elaborao do Programa, cujos breves traos se apresentam a seguir.

1.2. O Programa Justia Comunitria. Linhas gerais.O Projeto Justia Comunitria foi criado em outubro de 2000 com o objetivo de democratizar a realizao da justia, restituindo ao cidado e comunidade a capacidade de gerir seus prprios conflitos com autonomia. A iniciativa foi levada a efeito pelo Tribunal de Justia do Distrito Federal e dos Territrios, em parceria com o Ministrio Pblico do Distrito Federal, a Defensoria Pblica do Distrito Federal, a Faculdade de Direito da Universidade de Braslia Unb e, poca, a Comisso de Direitos Humanos da OAB-DF, sob o convnio firmado com a Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica. Atualmente, o Programa est instalado nas regies administrativas da Ceilndia e de Taguatinga, com 332.455 e 223.452 habitantes, respectivamente 6. O Programa conta

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Durante o segundo semestre de 1999, as instituies parceiras envolvidas nessa elaborao foram as seguintes: Defensoria Pblica do Distrito Federal; Faculdade de Direito da Universidade de Braslia; Ministrio Pblico do Distrito Federal e Territrios; Comisso de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil - Seo Distrito Federal e Tribunal de Justia do Distrito Federal e Territrios. Fonte: SEPLAN/ CODEPLAN - Pesquisa distrital por amostra de domiclios - 2004. Estimativas para o ano de 2006, da antiga Secretaria de Estado de Desenvolvimento Urbano e Habitao SEDUH, atual Secretaria de Estado de Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente SEDUMA do Governo do Distrito Federal, indicavam uma populao de 359.098 e 268.533 habitantes, respectivamente, para Ceilndia e Taguatinga.

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com 60 agentes comunitrios7 que, na qualidade de membros das comunidades nas quais atuam, compartilham a linguagem e o cdigo de valores comunitrios. Os agentes comunitrios so credenciados junto ao Programa por meio de um processo de seleo levado a efeito por sua equipe multidisciplinar. Encerrada essa etapa, os selecionados iniciam uma capacitao permanente junto ao Centro de Formao e Pesquisa em Justia Comunitria8, onde recebem noes bsicas de Direito e formao em mediao comunitria, animao de redes sociais e direitos humanos.

A atuao dos Agentes Comunitrios acompanhada por uma equipe multidisciplinar composta de advogados, psiclogos, assistentes sociais, artistas, servidores de apoio administrativo, estagirios e uma juza que coordena o Programa. As atividades9 desenvolvidas pelos Agentes Comunitrios so as seguintes: 1) educao para os direitos; 2) mediao comunitria e; 3) animao de redes sociais.

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O perfil dos agentes comunitrios e o processo de seleo esto descritos no Captulo 3 deste trabalho. Conforme Captulo 7. Conforme Captulo 4.

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A primeira atividade tem por objetivo democratizar o acesso s informaes dos direitos dos cidados, decodificando a complexa linguagem legal. Para tanto, os Agentes Comunitrios produzem, em comunho com os membros da equipe multidisciplinar, materiais didticos e artsticos, tais como: cartilhas, filmes, teatro, musicais, dentre outros, com base no processo de aprendizagem decorrente da formao continuada a qual esto submetidos. A mediao comunitria, por sua vez, uma importante ferramenta para a promoo do empoderamento e da emancipao social. Por meio desta tcnica, as partes direta e indiretamente envolvidas no conflito tm a oportunidade de refletir sobre o contexto de seus problemas, de compreender as diferentes perspectivas e, ainda, de construir em comunho uma soluo que possa garantir, para o futuro, a pacificao social. A terceira atividade refere-se transformao do conflito por vezes, aparentemente individual em oportunidade de mobilizao popular e criao de redes solidrias entre pessoas que, apesar de partilharem problemas comuns, no se organizam at porque no se comunicam. Ao desenvolver essas atividades, o Programa Justia Comunitria tem por pretenso a transformao de comunidades fragmentadas em espaos abertos para o desenvolvimento do dilogo, da autodeterminao, da solidariedade e da paz.

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2. O LOCUS: A COMUNIDADE.

A complexidade e a fragmentao da realidade social so traos da contemporaneidade impressos nas esferas mundial e local. Em toda sociedade, porm, h agrupamentos humanos unidos por uma identidade territorial que confere comunidade o status de locus privilegiado para o desenvolvimento de programas de transformao social. Essa identidade territorial, segundo Kisil,10 vivenciada onde os indivduos ou grupos sociais mais facilmente reconhecem como pertencentes a uma mesma comunidade (...). A fonte mais imediata de auto-reconhecimento e organizao autnoma o territrio. As pessoas identificam-se com os locais onde nascem, crescem, vo escola, tm seus laos familiares, enfim se socializam e interagem em seu ambiente local, formando redes sociais com seus parentes, amigos, vizinhos, organizaes da sociedade civil e autoridades do governo. No mesmo sentido, o Programa Justia Comunitria adota a comunidade como esfera privilegiada de atuao, porque concebe a democracia como um processo que, quando exercido em nvel comunitrio, por agentes e canais locais, promove incluso social e cidadania ativa, a partir do conhecimento local. na instncia da comunidade que os indivduos edificam suas relaes sociais e podem participar de forma mais ativa das decises polticas. nesse cenrio que se estimula a capacidade de autodeterminao do cidado e de apropriao do protagonismo de sua prpria histria.

2.1.

O conceito de comunidade.

Em meio vasta literatura sociolgica dedicada a conceituar comunidade, a definio talhada por Rogrio e Lycia Neumann revela-se bastante til para este trabalho, considerando a sua

10 KISIL, Marcos. Comunidade: foco de filantropia e investimento social privado. So Paulo: Global; Instituto para o Desenvolvimento Social (IDIS), 2005, p. 38.

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objetividade: comunidade significa um grupo de pessoas que compartilham de uma caracterstica comum, uma comum unidade, que as aproxima e pela qual so identificadas11. Conforme os prprios autores alertam, em geral, a unidade comum a regio onde as pessoas vivem, mas nada impede que uma comunidade seja constituda a partir de interesses e/ou causas partilhados. De qualquer sorte, no ncleo do conceito est localizada a idia de identidade compartilhada. Neste trabalho, a denominao comunidade ser atribuda queles agrupamentos humanos que vivem na mesma localizao geogrfica e que, nesta condio, tendem a partilhar dos mesmos servios (ou da ausncia deles), problemas, cdigos de conduta, linguagem e valores. A partilha territorial, entretanto, no leva necessariamente construo de uma comunidade coesa socialmente. Essa caracterstica vai depender do grau de conexo entre seus membros e de sua capacidade de promover desenvolvimento local, ou seja, de seu capital social. O capital social se verifica de acordo com o grau de coeso social que existe nas comunidades e que demonstrado nas relaes entre as pessoas ao estabelecerem redes, normas e confiana social, facilitando a coordenao e a cooperao para o benefcio mtuo.12 Segundo Robert C. Chaskin,13 a aferio da coeso social de uma comunidade se d a partir da anlise de quatro elementos, a saber: 1) senso de comunidade ou grau de conectividade e reconhecimento recproco; 2) comprometimento e responsabilidade de seus membros pelos assuntos comunitrios; 3) mecanismos prprios de resoluo de conflitos; 4) acesso aos recursos humanos, fsicos, econmicos e polticos, sejam locais ou no.

11 NEUMANN, Lycia Tramujas Vasconcellos; NEUMANN, Rogrio Arns. Repensando o investimento social: a importncia do protagonismo comunitrio. So Paulo: Global; Instituto para o Desenvolvimento Social (IDIS), 2004, p. 20-21. (Coleo Investimento Social). 12 AUSTRALIAN BUREAU OF STATISTICS, Social capital and social wellbeing, Apud NEUMANN, Lycia Tramujas Vasconcellos; NEUMANN, Rogrio Arns. Repensando o investimento social: a importncia do protagonismo comunitrio, p. 47. 13 CHASKIN, Robert C. Defining community capacity: a framework and implications from a comprehensive community initiative, Apud NEUMANN, Lycia Tramujas Vasconcellos; NEUMANN, Rogrio Arns. Repensando o investimento social: a importncia do protagonismo comunitrio, cit., p. 24.

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Onde h coeso social, h identidade compartilhada, cuja criao depende da mobilizao social e do envolvimento com os problemas e solues locais. H, portanto, segundo Putnam,14 um ciclo virtuoso entre capital social e desenvolvimento local sustentvel. Nesse sentido, desenvolver comunidade um processo que agrega valores ticos democracia e constri laos de solidariedade.15

2.2. Conhecendo o locus. O mapeamento social.Primeiramente, preciso definir o que se pretende com o mapeamento social, a fim de que os formulrios de identificao e cadastramento dos dados sejam elaborados de maneira a veicular as perguntas adequadas. Nesse sentido, importante ressaltar que o mapa a ser confeccionado no se resume a uma fotografia momentnea dos elementos identificados, mas um guia para subsidiar o dilogo entre estes elementos a servir de base para uma permanente animao das redes sociais. Para o Programa Justia Comunitria do Distrito Federal, a identificao das organizaes sociais fundamental para servir de referncia para: a) o processo de seleo de novos agentes comunitrios; b) o encaminhamento dos participantes para a rede social, quando a soluo do conflito assim o demandar; c) o conhecimento das circunstncias que envolvem os problemas comunitrios; e d) a constituio de novas redes associativas ou o fortalecimento e a animao das j existentes quando a demanda ostentar potencial para tanto. No decorrer da execuo do Programa Justia Comunitria do Distrito Federal, as dificuldades enfrentadas na confeco desse mapeamento foram inmeras, desde a carncia de recursos humanos em especial na fase inicial at a dificuldade em se traar uma estratgia de animao de redes sociais, quando toda a prioridade do Programa estava voltada para a capacitao dos Agentes Comunitrios nas tcnicas de mediao1614 PUTNAM, Robert D. Comunidade e democracia. A experincia da Itlia moderna. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora da Fundao Getlio Vargas, 2005, p. 186. 15 KISIL, Marcos. Comunidade: foco de filantropia e investimento social privado, cit., p. 51. 16 Hoje, a avaliao a de que o fato de o Programa ostentar trs pilares no significa, necessariamente, que eles devam ser construdos um a um. Havendo uma estrutura mnima, o ideal que os trs sustentculos de um programa de justia comunitria a educao para os direitos, a mediao comunitria e a animao de redes sociais sejam desenvolvidos em conjunto, uma vez que h ntima relao entre todos eles. A ttulo de exemplo, a partir de uma programao eficiente das atividades voltadas animao de redes sociais que se pode atrair demandas para a mediao efetivamente comunitria, com largo impacto social.

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Apesar das dificuldades, o Programa conseguiu reunir, com a colaborao de alguns agentes comunitrios, informaes relevantes para a confeco do mapa sem, contudo, estabelecer uma conexo entre elas. Na ausncia de um planejamento prvio aliado a uma clara estratgia metodolgica de conexo entre estas informaes, os dados coletados no se comunicaram. Com o propsito de suprir esta lacuna, o Programa desenvolveu um passo-a-passo17 como estratgia para a confeco permanente do mapeamento social das duas regies administrativas atendidas pelo Programa a) b) definir a rea geogrfica a ser mapeada com limites claros; definir as fontes de informao e a metodologia adequada (rgos oficiais, visitas in loco, entrevistas por telefone, entre outras); c) recrutar os Agentes Comunitrios para a coleta dos dados e estimular que o faam com o auxlio de alguns moradores; d) e) criar um formulrio para a identificao e o cadastramento;18 organizar um banco de dados apto a promover o cruzamento dessas informaes.

A partir da conscincia de que a cartografia social uma atividade em permanente construo, as etapas desse processo foram sendo adequadas capacidade estrutural do Programa. Assim, a equipe multidisciplinar ampliou a sua rea de atuao conforme o aumento do nmero de Agentes Comunitrios na ltima seleo, ocorrida no perodo de abril a julho de 2007, transformando a difcil tarefa de execuo do mapeamento em algo envolvente e eficiente. A definio territorial da rea mapeada e de suas limitaes obedeceu ao critrio de local de moradia de cada Agente Comunitrio, o que possibilitou, inclusive, maior insero dos Agentes em sua comunidade. Optou-se por localizar deficincias e necessidades, mas tambm talentos, habilidades e recursos disponveis. Essa estratgia possibilita que o mapeamento sirva de espelho para a comunidade que, ao se olhar, tenha conscincia de seus problemas,17 A formulao desse passo-a-passo foi uma adaptao da experincia desenvolvida pela equipe multidisciplinar do Programa Justia Comunitria da sistematizao sugerida por Lycia Tramujas Vasconcellos Neumann e Rogrio Arns Neumann (Desenvolvimento comunitrio baseado em talentos e recursos locais ABCD. So Paulo: Global; Instituto para o Desenvolvimento Social IDIS, 18 Conforme ANEXO I.

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mas tambm conhea as suas potencialidades, o que essencial para a construo de uma identidade comunitria19. Esse mtodo tambm torna possvel investigar em que medida as solues para os problemas comunitrios j existem ali mesmo, exatamente naquela comunidade que, por razes histrico-estruturais de excluso social, em geral, no enxerga nenhuma soluo para os seus problemas seno por meio do patrocnio de uma instituio externa quele habitat. Essa conexo entre problemas e solues promove um senso de responsabilidade pela comunidade como um todo, o que cria uma espiral positiva de transformao social.20 Para que essa conexo efetivamente acontea, indispensvel que o processo do mapeamento no tenha por objetivo to-somente a confeco de um banco de dados, repleto de informaes teis, porm sem ligao entre si. A construo permanente do banco de dados , sobretudo, um meio de fortalecer relaes e criar novas parcerias. Segundo Lycia e Rogrio Neumann, ao identificar os recursos locais, os moradores passam a conhecer o potencial de sua comunidade e comeam a estabelecer novas conexes, ou fortalecer as j existentes, entre os indivduos, seus grupos e as instituies locais, assim como entre esses atores e as causas que so importantes para o desenvolvimento daquela comunidade.21 Nesse sentido, apresenta-se a seguir as informaes a serem coletadas para o mapeamento social do Programa Justia Comunitria. Esse processo, sob essa nova formatao, teve incio em 25 de agosto de 200622.

19 Para que a confeco do mapeamento seja algo ldico, interessante e criativo, o Programa Justia Comunitria desenvolveu o Projeto RETRATE A SUA REALIDADE, pelo qual algumas mquinas fotogrficas sero distribudas aos Agentes Comunitrios, em sistema de rodzio, para que os mesmos possam expressar os seus olhares sobre a realidade na qual vivem e atuam. As melhores fotos sero escolhidas em um concurso e publicadas. 20 NEUMANN, Lycia Tramujas Vasconcellos e NEUMANN, Rogrio Arns. Desenvolvimento Comunitrio baseado em talentos e recursos locais ABCD, cit., p. 26. 21 Ibidem, p. 23. 22 Nessa data teve incio o semestre letivo de 2006, oportunidade em que se apresentou a nova metodologia de captao das informaes da comunidade, a fim de que os Agentes Comunitrios pudessem contribuir de maneira mais efetiva para a confeco do mapeamento social.

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RECURSOS DISPONVEIS23 Associaes de moradoresEssas organizaes so fundamentais por sua capilaridade e pelo potencial de produzir capital social e protagonismo comunitrio, ou seja, por sua capacidade de mobilizao em torno de interesses e valores comuns. um contraponto cultura de dependncia de apoio institucional externo. interessante que a identificao das associaes inclua a informao sobre seu funcionamento (local, periodicidade de reunies, dentre outros) bem assim as suas realizaes.

Instituies em geralEntidades pblicas = escolas, hospitais, postos de sade, parques, bibliotecas, etc.; Associaes e instituies = igrejas, clubes, cooperativas, centros comunitrios, etc. O elenco destas instituies deve ser acompanhado de um levantamento quanto ao acervo de recursos que cada uma delas pode oferecer. Por exemplo, importante registrar se uma escola pblica possui e/ou est disposta a oferecer salas para reunies abertas aos finais de semana, computadores, cursos de alfabetizao de adultos, quadras de esportes, educadores voluntrios, conselhos de pais e mestres, sinergia entre a escola e a comunidade, organizao estudantil, etc.24

Habilidades pessoaisEm toda comunidade, possvel identificar lderes, voluntrios, bordadeiras, cozinheiras, artistas, educadores, mediadores natos de conflitos, etc. Essas pessoas, entretanto, muitas vezes esto soltas e poderiam potencializar seus talentos se firmassem parcerias ou simplesmente se tivessem maiores oportunidades de expressar as suas habilidades. O mapeamento pode auxiliar no desencadeamento desse processo.

DIFICULDADES indispensvel que o formulrio de informaes coletadas para a confeco do mapa tenha um espao destinado ao registro dos problemas da comunidade, segundo a perspectiva da prpria comunidade. Alm disso, interessante classificar o problema de acordo com a sua natureza: estrutural, social, pessoal25 . Essa classificao, quando efetuada pelo prprio Agente Comunitrio, em comunho com as pessoas entrevistadas, pode provocar uma reflexo importante sobre o contexto nos quais se localizam os conflitos individuais ou coletivos - daquela comunidade. Assim, problemas como desemprego, analfabetismo, ausncia de saneamento, falta de hospitais e escolas, violncia domstica, crianas moradoras de rua, crime organizado, gangues de jovens, alcoolismo, evaso escolar, crimes, abuso infantil, problemas psicolgicos, dentre outros, comporo um mosaico til para impulsionar uma reflexo coletiva acerca de suas circunstncias.

23 NEUMANN, Lycia Tramujas Vasconcelos e NEUMANN, Rogrio Arns. Desenvolvimento Comunitrio baseado em talentos e recursos locais ABCD, cit., p. 53-61. 24 Ibidem, p. 64. 25 Ibidem, p. 24.

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Embora no haja um momento de concluso do mapeamento social, eis que se trata de um processo permanente na mesma medida da dinmica social, fundamental que os resultados parciais sejam objeto de partilha e debate na comunidade. Alm disso, importante que, periodicamente, sempre que possvel, haja uma anlise dos resultados alcanados a partir da confeco do mapa, tais como parcerias, empreendimentos ou eventos desencadeados a partir desse processo.

2.3. Animao de redes sociais.2.3.1. As redes sociais. As redes sociais so a expresso dos contornos da contemporaneidade. Para Castells,26 redes constituem a nova morfologia social de nossas sociedades, e a difuso da lgica de redes modifica de forma substancial a operao e os resultados dos processos produtivos e de experincia, poder e cultura. O padro de organizao em rede caracteriza-se pela multiplicidade dos elementos interligados de maneira horizontal. Os elos de uma rede se comunicam voluntariamente sob um acordo intrnseco que revela os traos de seu modus operandi: o trabalho cooperativo, o respeito autonomia de cada um dos elementos, a ao coordenada, o compartilhamento de valores e objetivos, a multiliderana, a democracia e, especialmente, a desconcentrao do poder.27 H um processo simbitico entre participao poltica, exerccio da autonomia e solidariedade entre os membros de uma comunidade organizada em rede. As redes permitem maximizar as oportunidades para a participao de todos, para o respeito diferena e para a auto-ajuda em um contexto de mtua assistncia. Participao traz mais oportunidade para o exerccio dos direitos polticos e das responsabilidades. Para se ter acesso aos recursos comunitrios, o nvel de atividade e de compromissos dos grupos sociais aumenta e a auto-estima cresce aps a conquista de mais direitos e recursos. H26 CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. Traduo de Roneide Venncio Mayer com a colaborao de Klauss Brandini Gerhardt. 3. ed. So Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 497 (A Era da Informao: Economia, Sociedade e Cultura, v. 1). 27 MARTINHO, Cssio. O projeto das redes: horizontalidade e insubordinao. Aminocidos, Braslia, Agncia de Educao para o Desenvolvimento (AED), n. 2, p. 101, 2002.

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uma reciprocidade entre os vrios componentes desta cadeia ecolgica, na medida em que implica retroalimentao.28 Castells declara que o principal agente da mudana atual um padro de organizao e interveno descentralizada e integrada em rede, caracterstica dos novos movimentos sociais.29 A leitura de que as redes revelam novas formas de relaes sociais tambm compartilhada por Aguiar, para quem: as redes vo possibilitando a combinao de projetos, o enfraquecimento dos controles burocrticos, a descentralizao dos poderes, o compartilhamento de saberes e uma oportunidade para o cultivo de relaes horizontais entre elementos autnomos.30 Essa nova estrutura que vai se consolidando como alternativa ao sistema oficial est associada prtica da mediao: como a verticalidade e as estruturas piramidais vo sendo confrontadas pelas redes, a soluo dos conflitos tende a abandonar as formas clssicas e judicializadas para admitir novas formas de composio de conflitos como a mediao, que consiste na possibilidade de discusso mediada dos problemas para se chegar a um acordo final.31 Essas experincias permitem que a lgica da rgida estrutura da linguagem judicial ceda lugar retrica, arte do convencimento, ao envolvimento. o que ele denomina direito dialogal, que respeita as diferenas e radicaliza a democracia.32

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FOLEY, Glucia Falsarella. Justia Comunitria: Por uma justia da emancipao. Dissertao de Mestrado pela Faculdade de Direito da Universidade de Braslia. 2003, p. 123 127. Pelo fato de que nossa viso histrica de mudana social esteve sempre condicionada a batalhes bem ordenados, estandartes coloridos e proclamaes calculadas, ficamos perdidos ao nos confrontarmos com a penetrao bastante sutil de mudanas simblicas de dimenses cada vez maiores, processadas por redes multiformes, distantes das cpulas de poder. So nesses recnditos da sociedade, seja em redes eletrnicas alternativas seja em redes populares de resistncia comunitria, que tenho notado a presena dos embries de uma nova sociedade, germinados nos campos da histria pelo poder da identidade. E conclui: o carter sutil e descentralizado das redes de mudana social, impede-nos de perceber uma espcie de revoluo silenciosa que vem sendo gestada na atualidade (CASTELLS, Manuel. O Poder da Identidade. Traduo de Klauss Brandini Gerhardt. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999, p. 426 427. A era da informao: Economia, Sociedade e Cultura, V. 2). E acrescenta: Isso enseja uma profunda reviso tanto no momento da gnese normativa, nas formas de sua construo, como tambm aponta para novas formas de aplicao, manuteno e controle dos que vivem no interior dessas relaes, onde no h lugar para a lentido, nem espao para assimetrias acentuadas, nem oportunidades de acumulao de poder pelos velhos detentores da mquina burocrtica. uma outra dimenso da democracia emergindo (AGUIAR, Roberto Armando Ramos. Procurando superar o ontem: um direito para hoje e amanh. Notcia do Direito Brasileiro, Nova srie, Braslia, Universidade de Braslia, Faculdade de Direito, n. 9, p. 71, 2002). Ibidem, p. 76.

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Mas, afinal, diante da centralidade do mercado e da retrao estatal, em que malhas sociais estas redes so construdas? Quais so os espaos possveis para a reinveno da emancipao? Para Sousa Santos, as sociedades capitalistas so constitudas de seis estruturas, seis esferas de relaes sociais, as quais produzem seis formas de poder, de direito e de conhecimento de senso comum. So espaos centrais para a produo e reproduo das relaes de poder, mas so tambm suscetveis de se converterem em lugares centrais de relaes emancipatrias33 a partir de prticas sociais transformadoras. Apesar de cada esfera guardar autonomia em relao s demais, posto que apresentam dinmicas prprias, a ao transformadora em cada uma delas s pode ser colocada em movimento em constelao com as demais.34 Em cada espao dessa estrutura multifacetada, a ao transformadora destina-se a construir condies para que os paradigmas emergentes possam ser experimentados em oposio reproduo dos velhos paradigmas, voltados dominao. Estes espaos so os seguintes: a) a esfera domstica, cujo paradigma dominante constitudo pela famlia patriarcal, em contraposio emergncia da democratizao do direito domstico, baseado na autoridade partilhada, na prestao mtua de cuidados, dentre outros; b) o espao da produo, no qual reina o expansionismo capitalista a ser transformado em um novo padro pautado em unidades de produo baseadas em cooperativas autogeridas; c) o mercado, no qual o consumo voltado para as satisfaes individualistas possa ser direcionado para as necessidades humanas, por meio do estmulo a um consumo solidrio; d) o espao comunitrio propriamente dito, em que a sociedade colonial35, representada por antigas formas de organizao pautadas na excluso das diferenas, possa dar espao identidade mltipla, inacabada, valorizando o senso comum emancipatrio orientado para uma ao multicultural e democrtica; e) a esfera da cidadania, constituda pelas relaes entre o Estado e a sociedade e entre os membros da

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Ibidem, mesma pgina. SOUSA SANTOS, Boaventura de. A crtica da Razo Indolente. Contra o desperdcio da experincia. So Paulo: Cortez, 2000, p. 271. Ibidem, p. 334 - 342. Ibidem, p. 339.

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sociedade. Neste espao, o paradigma emergente voltado democracia radical, realizao dos direitos humanos, transformando as relaes de poder em autoridades partilhadas; f) o espao mundial, no qual o paradigma do desenvolvimento desigual e da soberania exclusiva seja transformado em soberania recproca e democraticamente permevel. Nesses espaos estruturais, a construo do paradigma emergente pressupe uma tripla transformao: do poder em autoridade partilhada; do direito desptico em direito democrtico e do conhecimento-regulao em conhecimento-emancipao. Os espaos privilegiados para a formao destas redes solidrias, na perspectiva do Programa Justia Comunitria, so trs das seis esferas indicadas por Sousa Santos: o espao domstico, o comunitrio e o da cidadania. Nesses espaos possvel reinterpretar os conflitos, instrumentalizando-os para o exerccio da autonomia, sob uma perspectiva solidria. A autonomia a capacidade de autodeterminao de um ser humano ou de uma coletividade. Segundo Franco, o poder de se administrar por si mesmo, criando as normas nomos, para si mesmo auto. Mas, conforme adverte o mesmo autor, o exerccio da autonomia pressupe uma relao de poder, de vez que cada um, em sua auto-suficincia, no se volta realizao da humanizao. Assim, para romper com a lgica do poder, a autonomia deve se universalizar, por meio da construo de um mundo unificado por comum-humanizao.36 O conceito de autonomia com o qual opera o Programa Justia Comunitria tem, portanto, esta dimenso da alteridade. O seu desenvolvimento ocorre nos locais em que as pessoas erigem suas vidas e enfrentam as dificuldades, em comunho com as outras. nessas arenas locais domstica, comunitria e da cidadania que os cidados podem desenvolver a capacidade de refletir, dialogar e decidir em comunho os seus conflitos, dando ensejo realizao da autonomia poltica, no sentido de resgate do auto nomos e da radicalizao da democracia.37

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FRANCO, Augusto. Ao local: a nova poltica da contemporaneidade, Braslia: Agora; Instituto de Poltica; Fase, 1995, p. 61 e 80. MOUFFE, Chantal. Deliberative Democracy or Agnostic Pluralism? Social Research, v. 66, n. 3, p. 745 758, 1999. Disponvel em: http://www.ihs.ac.at/publications/pol/pw_72.pdf

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Essa requer mais participao popular, menos excluso social e, conseqentemente, mais justia social. nessas esferas que o cidado comum sente que possvel intervir na vida poltica, exercitando a cidadania. nesses espaos que as pessoas constroem suas relaes e fazem escolhas ao longo da vida. So esses os espaos em que se tece a teia da vida.382.3.2. As redes sociais em movimento.

Conforme j assinalado, o mapeamento social permite a descoberta das vocaes, talentos, potencialidades, carncias e problemas da comunidade e de seus membros. No decorrer da permanente sistematizao e anlise dos dados coletados, importante que haja um movimento que conecte as iniciativas e organizaes comunitrias, colocando-as em permanente contato e dilogo. A animao de redes sociais tem por objetivo promover capital social, cujo grau, embora no possa ser mensurado,39 pode ser avaliado a partir da presena dos seguintes elementos na comunidade: sentimento de pertena, reciprocidade, identidade na diferena, cooperao, confiana mtua, elaborao de respostas locais, emergncia de um projeto comum, repertrio compartilhado de smbolos, aes, conceitos, rotinas, ferramentas, histrias e gestos, relacionamento, comunicao, realizao de coisas em conjunto. Mas, como promover estes encontros em face de uma realidade que estimula o ceticismo na comunidade e at mesmo um certo grau de resignao de seus membros em relao aos temas afetos vida poltica? Conforme Neumann assevera, nas comunidades de baixa renda, a alta migrao de moradores, a violncia, a insegurana e a desconfiana de tudo e de todos tendem a quebrar as relaes sociais e a isolar as pessoas em suas casas e espaos. No permitindo que compartilhem anseios, dvidas e medos. Um trabalho de desenvolvimento de uma comunidade de dentro para fora deve comear por aproximar as pessoas e ajud-las a construir ou fortalecer as relaes e confiana mtua.40

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CAPRA, Fritjof. A teia da vida: uma nova compreenso cientfica dos sistemas vivos. Traduo de Newton Roberval Eichemberg. So Paulo: Cultrix, 1997. FRANCO, Augusto de. Capital Social. Braslia: Instituto de Poltica; Millennium, 2001, p. 62. NEUMANN, Lycia Tramujas Vasconcellos e NEUMANN, Rogrio Arns, Desenvolvimento Comunitrio baseado em talentos e recursos locais ABCD, cit., p. 32.

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Nesse sentido, fundamental que os Agentes Comunitrios e a equipe multidisciplinar mantenham em suas agendas permanentes contatos com a comunidade, por meio de reunies previamente organizadas. Para preparar as reunies, deve-se:41 verificarsehinfra-estruturanolocal(seoespaocomportaonmerodepessoas, se h barulho, etc); levantarasnecessidadesdematerial; definirofacilitador; elaborarapautadareunioaserdivulgadacomantecedncia; elaborarumacolhimentoinicial; elaborarumadinmicanaqualtodospossamparticipar42; fecharareunioamarrandooquefoideliberado; confirmareventuaistarefasassumidasindividualmenteouemgrupo; divulgaradatadeumaprximareunio.

A reunio tambm deve propiciar que o tema que a ensejou seja objeto de reflexo, abordagem e troca de saberes diferenciados, includos o dos tcnicos que eventualmente participem e daquele produzido localmente. Tambm deve haver um espao para falar do futuro que sempre um norteador dos esforos comunitrios. Ao proporcionar esses encontros e promover esses dilogos, os Agentes Comunitrios agem como teceles contribuindo para que essa teia social se revele coesa o suficiente, indicando que aquele aglomerado humano lanou-se na aventura de construir a sua comunidade.

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Ibidem, p. 30. A experincia do Programa Justia Comunitria revelou que, quando realizadas em pequenos grupos, as reunies tendem a ser mais eficientes porque propiciam um ambiente mais acolhedor e possibilitam maior conexo entre as pessoas. As dinmicas envolvendo grandes grupos tendem a privilegiar somente os mais extrovertidos, o que facilita que as decises sejam do tipo assemblesticas, ou seja, prevalecem o argumento e a perspectiva daquele que levar mais aliados e, por conseqncia, tiver maior nmero de adeses.

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3. OS ATORES E A SELEO.

3.1. Os Agentes Comunitrios de Justia e Cidadania.Para que o programa de justia a ser desenvolvido seja efetivamente comunitrio, indispensvel que seus principais operadores sejam integrantes da comunidade na qual se pretende atuar, porque no haveria sentido algum se a abordagem efetivamente comunitria de realizao da justia dependesse da atuao direta de tcnicos sem qualquer afinidade com a ecologia local, ou seja, a linguagem e o cdigo de valores prprios. O palco privilegiado da justia comunitria , pois, a comunidade que, embora permeada por dificuldades sociais, agrega membros com talentos e habilidades os quais so potencializados quando mobilizados por um trabalho comunitrio que efetivamente traduza as aspiraes e necessidades locais. O fato de os agentes comunitrios necessariamente pertencerem aos quadros da comunidade na qual o Programa opera essencial para que haja sintonia entre os anseios e as aes locais. por meio do protagonismo dos agentes locais que a comunidade poder formular e realizar a sua prpria transformao.

3.2. O perfil dos Agentes ComunitriosOs requisitos mnimos, as responsabilidades e os compromissos exigidos para o melhor desempenho das atividades inerentes funo so os seguintes:

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3.2.1. Requisitos pessoais. idade mnima: 18 anos; grau de instruo mnimo: saber ler e escrever43; experincia anterior: participao e/ou interesse em trabalhos sociais, voluntariado, movimentos populares44; aptides e caractersticas de personalidade: capacidade comunicativa, iniciativa, capacidade de sntese, criatividade, comprometimento e sociabilidade; residir por, no mnimo, 1 (um) ano no local onde atuar como Agente Comunitrio; ostentar referncias judiciais e sociais favorveis; no estar envolvido diretamente com atividades poltico-partidrias45.

3.2.2. Responsabilidades e compromissos. resguardar o sigilo em relao aos casos atendidos; ter disponibilidade e disposio para atuar ativamente nos espaos comunitrios: residncias, instituies, escolas, templos religiosos, entre outros;

43 No incio do Programa, era suficiente que os candidatos soubessem ler e escrever. Logo em seguida, passou-se a exigir o primeiro grau completo (ensino fundamental) para, ao final, demandar o segundo grau completo (ensino mdio). Essa deciso resultou da constatao de que algumas habilidades essenciais para o bom desenvolvimento das atividades de agente comunitrio habilidade de comunicao, potencial cognitivo para assimilao do contedo terico da capacitao e discernimento para relatar os casos atendidos de forma objetiva, destacando os pontos essenciais envolvidos em cada conflito faziam-se presentes com maior intensidade no agrupamento social que apresentava um grau maior de escolaridade. Ressalte-se, porm, que a relevncia dessas habilidades deu-se em razo, dentre outras, do enorme desafio de construo conjunta membros da equipe multidisciplinar e os Agentes Comunitrios de um modelo de mediao comunitria. Aps a consolidao do modelo de mediao com enfoque comunitrio, o Programa decidiu retomar o critrio original de escolaridade, qual seja, saber ler e escrever, a fim de ampliar as possibilidades de renovao do quadro de Agentes Comunitrios, ocorrida na seleo de junho de 2007. 44 Inicialmente, buscou-se selecionar lideranas comunitrias para o desempenho da funo. Na primeira seleo, contudo, no foi possvel o preenchimento de todas as vagas com esse perfil, seja pela dificuldade, poca, de localizao das lideranas na comunidade, seja porque as lideranas identificadas guardavam forte vnculo poltico-partidrio. A anlise dos trabalhos desenvolvidos pela primeira turma de Agentes proporcionou ao Programa uma constatao importante: a condio de lder no implica necessariamente bom desempenho no papel de agente comunitrio. Isto porque, o conflito deve ser abordado pelo mediador comunitrio como oportunidade de empoderamento das pessoas nele envolvidas. No se trata, pois, de resolver o problema pelo outro, mas de facilitar que todas as pessoas relacionadas ao conflito tenham condies de gerar suas prprias solues. Isto no significa afirmar que no haja interlocuo com estas lideranas que, por sua legitimidade e interesse comunitrio, tm colaborado com a divulgao do Programa. 45 Sem prejuzo do reconhecimento da relevncia e legitimidade do instrumento poltico partidrio, o fato de o Programa Justia Comunitria ser coordenado por um Tribunal de Justia, eventual envolvimento partidrio de um Agente Comunitrio pode ensejar indesejvel associao de alguma sigla partidria com o Programa, sobretudo em poca eleitoral.

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ter disponibilidade e disposio para a capacitao inicial que engloba o curso de mediao, a formao contnua com a trade profissional46 e os encontros mensais promovidos pelo Centro de Formao e Pesquisa em Justia Comunitria.

3.3. As etapas da seleo.O fato de o Programa Justia Comunitria contar com a atuao voluntria de agentes comunitrios no significa prescindir de um cuidadoso processo de seleo. Ao contrrio, exatamente porque a atividade voluntria, o nvel de compromisso que se espera deve ser aferido, analisandose em que medida os propsitos do Programa guardam sintonia com os anseios e com o perfil do candidato Agente Comunitrio. No decorrer destes oito anos de implementao do Programa Justia Comunitria, foram realizados alguns ajustes na conduo da seleo, a fim de aprimorar os procedimentos.47 A partir da observao e avaliao permanente da atuao dos agentes comunitrios, foi possvel a elaborao de mecanismos que possibilitaram: a) melhor elaborao do perfil exigido para a funo de agente comunitrio; b) melhor definio dos procedimentos de recrutamento e seleo e; c) melhor anlise dos dados coletados na seleo. O processo seletivo, conduzido pela equipe multidisciplinar do Programa, realizado em duas fases: recrutamento e seleo propriamente dita. O recrutamento o processo de captao de membros da comunidade interessados em se candidatar atividade proposta. A seleo o procedimento que facilita a identificao e escolha dos candidatos com o perfil mais adequado para o desempenho das atividades do Programa. As etapas deste processo sero demonstradas a seguir48.

46 A partir do segundo semestre de 2007, por fora da expanso do quadro de Agentes Comunitrios, a equipe multidisciplinar passou a se organizar em trades compostas por um bacharel em direito, um psiclogo e um assistente social cada qual responsvel pela superviso e permanente capacitao de um nmero determinado de Agentes Comunitrios. 47 O histrico de todos os processos seletivos e suas modificaes est ilustrado no ANEXO II. 48 Todo o processo de recrutamento e seleo est ilustrado de maneira simplificada no fluxograma do ANEXO III.

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3.3.1. O recrutamento. Na fase inicial do processo seletivo, importante divulgar a descrio das atividades gerais inerentes funo de agente comunitrio, bem assim, a definio dos requisitos minimamente exigidos, a fim de que a adeso do candidato ao processo de seleo seja consciente, ou seja, que haja adequao entre as suas expectativas e as propostas do Programa. 3.3.1.1. Divulgao do processo seletivo. procurar instituies diversas,49 tais como: escolas, associaes de moradores, prefeituras comunitrias, ongs, entre outras, que realizem eventos comunitrios nos quais possa haver divulgao do Programa e da seleo; promover eventos para a divulgao da seleo na comunidade; distribuir folhetos de divulgao do Programa50 e colar cartazes nos espaos da comunidade com a colaborao de agentes j atuantes; divulgar na mdia escrita e falada somente quando necessrio. O ideal que se possa ir pessoalmente comunidade para que haja um direcionamento mais apurado na busca dos possveis candidatos. 3.3.1.2. Cadastramento dos interessados. cadastramento de todos os interessados para que sejam convidados a participar da reunio de esclarecimento mais detalhado dos objetivos e atividades do Programa51.

49 Por ocasio de um determinado processo seletivo, a equipe multidisciplinar remeteu cartas s organizaes sociais solicitando a indicao de pessoas com as caractersticas desejadas. Esse mecanismo de recrutamento, porm, mostrouse inadequado para a identificao do perfil procurado porque muitas instituies em especial aquelas lideradas por representantes de perfil tradicional encaminhavam pessoas carentes de emprego, sem qualquer experincia em trabalhos comunitrios ou identidade com o propsito do Programa. A equipe multidisciplinar e a coordenao decidiram, ento, visitar pessoalmente as instituies comunitrias para apresentar o Programa, divulgar a seleo e esclarecer, minuciosamente, o perfil exigido. Essa forma de divulgao mostrou-se mais adequada, a julgar pelo nmero de candidatos que surgiram com o perfil adequado. 50 Conforme ANEXO IV. 51 Na verdade, o ideal que esse cadastro seja realizado ao longo do ano, sempre que possvel. Assim, havendo um novo processo seletivo, a equipe multidisciplinar entra em contato com os cadastrados para verificar se o interesse em se candidatar permanece.

3.3.1.3. Esclarecimentos sobre o Programa. realizao de reunio de esclarecimento aos provveis candidatos sobre a proposta do Programa: objetivos, atividades, requisitos, capacitao, compromisso, dedicao, dentre outros. Essa reunio realizada nos ncleos comunitrios correspondentes a cada localidade na qual o Programa opera; aqueles que se identificarem com a proposta, so solicitados a fazer a inscrio por ocasio da reunio. aqueles que se identificarem com a proposta so solicitados a fazer a inscrio por ocasio da reunio. 3.3.1.4. Inscrio dos interessados. inscrio, por meio de preenchimento de formulrio especfico,52 no qual constam questes objetivas e subjetivas formuladas a partir da anlise da descrio de atividades e conseqente avaliao tcnica dos requisitos necessrios ao desempenho das mesmas.

3.3.2. A seleo.Como fase preparatria deste processo, realizado um estudo minucioso das atividades desempenhadas pelos agentes comunitrios com a finalidade de elaborar o perfil que direcione as habilidades e aptides que devero ser identificadas no processo seletivo. Nesse sentido, todo o processo seletivo voltado para a identificao dos candidatos que ostentem as caractersticas adequadas execuo das atividades do Programa, descritas a seguir. Atividades inerentes funo de Agente Comunitrio de Justia e Cidadania 1. Atender, individualmente solicitantes que estejam envolvidos em um conflito individual ou coletivo; 2. 3. Preencher formulrio especfico com os dados e a demanda do(a) solicitante; Refletir com a trade profissional53 instalada no Ncleo Comunitrio de Justia e Cidadania, sobre as possibilidades de encaminhamento do caso atendido; 4. Caso a demanda no seja adequada mediao, e havendo interesse do(a)

52 Conforme ANEXO V.53 Conforme nota n. 46.

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solicitante, o agente comunitrio poder encaminh-lo(a) aos ncleos de assistncia judiciria gratuitos ou sugerir que procure um(a) advogado(a) de sua confiana para o ajuizamento da competente ao judicial; 5. Caso a demanda seja administrativa, informar s pessoas ou grupos sobre os rgos competentes e documentos necessrios para o melhor encaminhamento do caso; 6. Se o caso ostentar vocao para a mediao, esclarecer sobre esta tcnica de resoluo de conflitos e estimular que todos os participantes do conflito experimentem esta possibilidade; 7. Mediar, em parceria, conflitos entre pessoas ou grupos interessados em solucionlos sem a interveno do Poder Judicirio, com vistas a obter um acordo mutuamente aceitvel; 8. Fazer o acompanhamento do caso atendido, mesmo que j tenha havido a celebrao formal do acordo; 9. Procurar integrar-se comunidade participando dos eventos comunitrios e/ou promovidos por entes pblicos; 10. Incentivar a construo de redes na comunidade para a busca coletiva das solues mais adequadas aos problemas comuns; 11. Divulgar o Programa Justia Comunitria na comunidade mediante distribuio de panfletos, reunies com grupos diversos, entrevistas nos meios de comunicao, apresentao de peas teatrais, dentre outros; 12. Participar dos encontros de formao multidisciplinar do Centro de Formao e Pesquisa em Justia Comunitria; 13. Realizar levantamento das instituies e dos movimentos sociais que operam na rea de atuao correspondente a cada agente (confeco do mapeamento social); 14. Partilhar com a comunidade as informaes coletadas na confeco do mapeamento social; 15. Buscar a integrao entre a comunidade e as instituies mapeadas, visando animao de redes sociais; 16. Solicitar ajuda equipe multidisciplinar, sempre que necessrio, para a reflexo e compreenso do papel desempenhado;

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17. Buscar atualizar-se constantemente, por meio de leituras, debates com os demais colegas, presena nos encontros do Centro de Formao, entre outros. 18. Executar outras tarefas, correlatas s j descritas, que possam surgir com o desenvolvimento do trabalho. 3.3.2.1. Anlise do formulrio de inscrio. Esta etapa consiste na leitura crtica dos formulrios preenchidos pelos candidatos, observando-se os requisitos objetivos exigidos e identificando os traos pessoais relevantes que sero mais bem avaliados na dinmica de grupo e na entrevista. 3.3.2.2. Referncias judiciais e sociais. Trata-se de uma pesquisa desenvolvida em duas esferas: verificao junto ao sistema judicial de eventuais registros do(a) candidato(a) e pesquisa realizada junto vizinhana do(a) candidato(a), a partir dos dados por ele(a) fornecidos no formulrio de inscrio. Essa segunda etapa tem por objetivo averiguar em que medida os membros da comunidade conhecem e respeitam o(a) candidato(a) e se h algo de natureza grave em seu comportamento que possa comprometer a sua atuao para a promoo da paz social. Essa medida foi adotada aps o Programa ter afastado por problemas especficos um(a) agente comunitria(o) que foi selecionado(a) no perodo em que s havia aferio de eventual registro criminal junto ao sistema judicial. Embora esse (a) Agente Comunitrio no ostentasse, poca, qualquer referncia criminal, era conhecido(a) na comunidade por sua conduta social inadequada, o que s foi possvel constatar, infelizmente, aps a atuao do(a) mesmo(a) junto ao Programa. 3.3.2.3. Dinmica de grupo. Este mecanismo um processo vivencial que busca, a partir do contato grupal, promover a integrao, o aprendizado e a reflexo. No contexto seletivo, uma alternativa que possibilita aprofundar o conhecimento dos candidatos, bem como observar as caractersticas descritas nos perfis apresentados e a desenvoltura de cada candidato em situao de grupo.

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Nesta etapa, so formados grupos compostos por, no mximo vinte e cinco pessoas, oportunidade em que se aplica uma dinmica especfica54, definida pela equipe multidisciplinar. A adoo da dinmica de grupo como uma etapa da seleo favoreceu a avaliao dos candidatos, pois as situaes de vivncia grupal possibilitaram melhor visualizao de caractersticas tais como: sociabilidade, criatividade e potencial de estabelecer relaes horizontais na interao grupal. 3.3.2.4. Entrevista de seleo. A entrevista uma tcnica de seleo levada a efeito pela equipe multidisciplinar, que possibilita interao mais prxima com o candidato. Por meio da entrevista, possvel confirmar ou refutar as impresses havidas durante a dinmica de grupo, o que possibilita melhor identificao dos candidatos que se revelam mais adequados funo, a partir de suas caractersticas pessoais, experincias profissionais e sociais, identificao com o Programa e com trabalhos comunitrios. 3.3.2.5. Escolha dos candidatos. Cabe equipe multidisciplinar, em conjunto com a coordenao e, quando possvel, com os representantes das instituies parceiras, a escolha e conseqente credenciamento dos candidatos que atenderam ao perfil requerido para o desempenho das atividades de Agente Comunitrio de Justia e Cidadania. Uma vez definido o quadro dos novos Agentes, o Programa remete aos candidatos no selecionados uma carta de agradecimento pela participao no processo seletivo.

3.4. O quadro atual de agentes comunitrios de justia e cidadania.Nos dias 08 e 09 de novembro de 2005, os Agentes Comunitrios de Taguatinga e Ceilndia foram convidados a expressar a compreenso do trabalho que realizam por meio de uma dinmica de grupo promovida pela equipe multidisciplinar55 cujo objetivo era identificar as representaes do grupo quanto ao seu papel na comunidade. O resultado est ilustrado a seguir.

54 Conforme ANEXO VI.

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Ser Agente Comunitrio, na perspectiva dos Agentes de Ceilndia, ser transformador e compromissado, que est capacitado a agir na comunidade de forma solidria, alegre e criativa, disposto a construir a paz e ajudar a resolver conflitos, promovendo a cidadania. Para os Agentes de Taguatinga, o Agente Comunitrio pessoa que sabe cooperar, mobilizar, respeitar as diferenas, transmitindo segurana e confiana, ajudando e motivando as pessoas a encontrar a melhor soluo para os conflitos, respeitando o seu limite e o limite do outro.

Agentes comunitrios e perfis

Adlia Neves Soares, Ensino mdio completo, estudante.

Abigail Maria Cardoso, superior completo, pedagoga.

Antonio Carlos Augusta Isaura Dias de Montalvo, Ensino Moraes, ps-graduao, mdio incompleto, aposentada. autnomo.

Clia Maria Ferreira Rgis Barbosa, curso superior em Letras, dona-de-casa.

Cheila de Souza Luiz, superior incompleto, professora (Educao Fsica).

55 A dinmica foi iniciada com uma busca individual em revistas e jornais de figuras representativas que pudessem completar a frase: Ser Agente .... Em seguida, foram formados pequenos grupos para compartilhar as escolhas e montar um painel com as figuras selecionadas. Finalmente, solicitou-se a construo de um nico conceito do grupo, a partir de todos os painis.

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Daniel Vinicius dos Santos Castro, Ensino mdio completo, autnomo.

Deus Eli Cndida de Oliveira, Ensino mdio completo, dona-decasa.

Elaene Amncio dos Eleuza dos Santos, Reis, Ensino mdio superior incompleto, completo, dona-deservidora pblica. casa.

.Elisabeth da Silva Nakatani, Ensino mdio completo, alfabetizadora.

Eulenice Marques de Oliveira, Ensino mdio completo, promotora legal popular.

Fabiana Arajo Brando, Ensino mdio completo, autnoma.

Francilma Alves Mendona de Oliveira, superior completo, estudante.

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Francisca das Chagas Harlene Constana, Freire Gomes, Ensino Ensino fundamental mdio completo, donacompleto, fotgrafa. de-casa e artes.

Hermes Geraldo Soares, Hilda Teixeira superior incompleto, Vilaa, Ensino mdio estudante, servidor completo, estudante. pblico.

Izete Santos do Hildebrando Alves Resende, Ensino mdio completo, autnomo. Nascimento, psgraduao, diretora administrativa e pedaggica em escola.

Jos Fernando Ferreira da Silva, superior incompleto, empresa privada.

Jos Roberto Monteiro Gomes, Ensino mdio completo, body piercing.

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Juscelina Gomes Pedrosa Guimares, Ensino mdio completo, autnoma (atriz).

Juscelino Fernandes da Silva, Ensino mdio completo, autnomo (comrcio).

Lgia Campos Vieira, superior completo, autnoma.

Lindalva do Nascimento, superior completo, professora aposentada.

Luzia Lcio Lopes Luciano Rodrigues Arajo dos Santos, superior Ensino mdio incompleto, policial completo, dona-demilitar. casa.

Maildes Alves Marques, superior incompleto, estudante.

Maria das Dores Santos Sousa, superior incompleto, corretora.

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Maria de Lourdes Vieira Bueno, superior completo, professora aposentada. Maria Jos Estrela Marques, superior completo, autnoma.

Maria Sandra Mota Machado, Ensino mdio completo, dona-decasa.

Maria Suely Ribeiro, Ensino mdio completo, auxiliar tcnica em comunicao.

Mrcia Firmino de Figueredo, Ensino mdio completo, donade-casa.

Ney Robson Abrantes Benjamin, Ensino mdio completo, autnomo.

Reginaldo Moraes Silva, Ensino mdio incompleto, autnomo.

Rosilene Pereira dos Santos Torres, superior incompleto, estudante.

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Sara Guimares Sabryne Pereira de Bernardino Bastos, Santana, superior superior incompleto, incompleto, estudante. dona-de-casa.

Sheila M Rodrigues Sebastio Jos de Lima, dos Santos, Ensino superior completo, fundamental completo, autnomo. dona-de-casa.

Sheila Simone Santos Silvina da Conceio Silva, Ensino mdio A. Alves, Ensino mdio incompleto, estudante, completo, manicure. autnoma.

.Solange de Oliveira Sirlene Neves Barros Ribeiro, Ensino Pereira, Ensino mdio mdio incompleto, completo, autnoma. aposentada.

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Valdeci Pereira da Valria Maria Pereira da Silva, Ensino mdio Cunha, Ensino mdio completo, servidor completo, aposentada. pblico.

Vanda Faria de Amorim, superior completo, servidora pblica.

Vanuza Batista de Sousa, Ensino mdio completo, dona-decasa, autnoma.

Vera Lcia Torres da Vilzani Negro Pereira, Silva, Ensino mdio Ensino mdio completo, incompleto, autnoma. corretora.

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4. AS ATIVIDADES DOS AGENTES COMUNITRIOS.

Cada Agente Comunitrio atua, preferencialmente, na rea adjacente ao seu local de moradia, atendendo as demandas individuais e/ou coletivas que lhe forem apresentadas diretamente pelos cidados ou encaminhadas pelo Ncleo Comunitrio respectivo. A depender da natureza do conflito apresentado, vrias so as possibilidades que podem ser propostas pelos Agentes Comunitrios aos solicitantes. O encaminhamento sugerido ao caso concreto definido em uma reunio entre os Agentes Comunitrios e a trade multidisciplinar que atua no Ncleo Comunitrio de Justia e Cidadania. De qualquer sorte, sempre que possvel, o Agente Comunitrio buscar estimular o dilogo entre as partes em conflito, propondo, quando adequado, o processo de mediao. Basicamente, as atividades desempenhadas pelos Agentes Comunitrios so as seguintes: 1) educao para os direitos; 2) mediao comunitria e; 3) animao de redes sociais.

4.1. Educao para os direitos.O desconhecimento dos cidados de seus direitos e dos instrumentos disponveis para a sua efetivao constitui um dos obstculos para a realizao da justia, porque, a linguagem forense, cunhada no ordenamento jurdico pelos seus operadores e, ainda, o formalismo e a complexidade do sistema processual dificultam o acesso ao sistema judicial. Nesse sentido, a democratizao da informao jurdica um dos pressupostos da igualdade entre os cidados, razo pela qual a sua promoo uma das atividades desenvolvidas pelos agentes comunitrios de justia e cidadania. A democratizao da informao jurdica exercida pelo Programa, por meio da educao para os direitos, revela uma dimenso tridimensional: a) preventiva, porque evita futuros litgios que seriam deflagrados pela mera ausncia de informao; b) emancipatria, na medida em que proporciona empoderamento das partes em disputa para que eventual processo de

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mediao possa proporcionar um dilogo em situao de igualdade; e c) pedaggica, ao reunir condies para que o cidado compreenda como buscar, na via judiciria ou na rede social, a satisfao dos seus direitos, quando e se necessrio. As atividades de educao para os direitos do Programa tm por base a produo e a apresentao de recursos pedaggicos cartilhas, musicais, cordis e peas teatrais criados sob a inspirao da arte popular que, alm de contribuir para a democratizao do acesso informao, fortalece as razes culturais brasileiras e o resgate da identidade cultural entre os membros da comunidade. Alm da produo e apresentao desse material didtico na comunidade, os Agentes Comunitrios realizam a Educao para os Direitos, por meio de encaminhamentos sciojurdicos. Isto significa afirmar que, quando o conflito no pode ser submetido mediao seja porque as partes no o desejam ou em razo da natureza da demanda no o permitir os Agentes Comunitrios fornecem informaes para que os solicitantes possam encaminhar suas demandas aos rgos da rede social ou judiciria adequados. 4.1.1. Reflexes prticas. Educao para os direitos. Inicialmente, o Programa Justia Comunitria denominava esta atividade orientao jurdica, a qual englobava tanto as informaes de natureza preventiva, teis nas situaes pr-conflitos, quanto s informaes necessrias para as situaes ps-conflito. Nesse ltimo caso, buscava-se capacitar os Agentes Comunitrios para a orientao dos solicitantes interessados em buscar a efetivao de seus direitos junto ao Poder Judicirio. A princpio, essa atividade mostrava-se indispensvel, sobretudo aps a realizao de um levantamento qualitativo interno, que mostrou o quo inseguros os cidados se sentem quando esto prestes a ingressar no sistema judicial formal, seja na condio de autor, ru ou testemunha. A pesquisa revelou que, em geral, os cidad