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GRANTA VIPERS Kamila Shamsie TRADUÇÃO DE DÉBORA LANDSBERG

Kamila Shamsie - img.travessa.com.brimg.travessa.com.br/.../ALFAGUARA/GRANTA_VOL_11_OS...9788579622403.pdf · fornecera uma tradução, declarou: Magnifique! E a mulher apoiou os

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GRANTA

VIPERS

Kamila Shamsie

TRADUÇÃO DE DÉBORA LANDSBERG

KAMILA SHAMSIE

1973

Kamila Shamsie é autora de cinco ro-mances. O primeiro, In the City by the Sea, foi publicado pela Granta Books em 1998 e foi finalista do John Llewellyn Rhys Prize. Sua obra mais recente, Burnt Shadows (Sombras marcadas, Al-faguara), foi finalista do Orange Prize de ficção e traduzida para mais de vinte lín-guas. Ela cresceu em Karachi e reside atualmente em Londres. É membro da Royal Society of Literature, faz parte do conselho da English PEN e do Authors Cricket Club. “Vip ers” é um trecho de seu próximo romance.

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Qayyum levou o pão com manteiga ao nariz, seu odor uma confirmação de que o próprio Alá amava mais os franceses

do que os pachtuns. Ao lado dele, Kalam Khan, impaciente pelo gosto de fruta, mordeu a casca de uma laranja para chegar à polpa ali embaixo, os olhos fechados de prazer enquanto os maxilares continuavam a descascar.

— Como é que está?— Sem gosto.Kalam limpou um resto de manteiga do nariz de Qayyum e

cuspiu uma mistura de casca e pele no trilho do trem, sorrindo — um garoto que cresceu entre pomares se alegrando ao desco-brir que os produtos do pai no Vale de Peshawar eram superiores a qualquer coisa que a França pudesse cultivar no próprio solo. Não importava que tudo o mais fosse melhor do que no mundo q ue haviam deixado para trás — as vacas mais lisas, os edifícios mais imponentes, os homens mais sérios, as mulheres… o que pensar sobre as mulheres? Um dos homens que saía da estação fez um gesto de quem segura dois melões rotundos contra o peito e houve uma torrente de homens rumo à porta assim que o tenente Bonham-Carter pôs os pés para fora, seguido de um francês e uma mulher cujo vestido era cortado para exibir-lhe os seios como se fossem artigos à venda. “Piranha”, Kalam disse com entusias-mo, mas Qayyum desviou o olhar quando viu a mulher primeiro cruzar as mãos diante do peito e depois, levantando a cabeça para olhar os homens de cima, as abaixou até os quadris.

O tenente Bonham-Carter pediu que a banda do regimento se reunisse. O francês se negava a aceitar dinheiro em troca dos cigarros, cafés, laranjas e pães que os homens tinham comprado, e em vez disso preferiu pedir à banda que tocasse a Marselhesa, assim como tinham feito quando os 40th Pathans desembarca-ram no porto e percorreram a cidade. O tenente Bonham-Carter

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sorriu ao fazer o pedido — tinha sido ele quem ensinara à banda de dhol e shehnai a tocar a canção francesa na viagem iniciada na Alexandria. A genialidade do inglês era entender todas as raças do mundo; como os franceses haviam aplaudido os 40th Pathans enquanto iam das docas até a pista de corrida em Marselha. Les Indiens! Les Indiens! Um berro de boas-vindas que transformou os homens em heróis antes de sequer pisarem no campo de batalha. Como era melhor desta vez do que o primeiro desembarque de Qayyum em Calcutá, onde os babus bengalis tentaram criar pro-blemas para o Raj e precisaram de alguns pachtuns por perto para lhes ensinar a se comportar.

Depois da Marselhesa, a banda tocou a canção do regimento, “Zakhmi Dil”, com a participação de todos, inclusive de boa par-te dos oficiais ingleses. Kalam virou-se para Qayyum, os braços abertos em resignação enquanto cantava as primeiras palavras em uma plataforma da zona rural da França onde talvez a língua pachto nunca tivesse sido ouvida: “Tem um garoto do outro lado do rio / Com um traseiro como pêssego / Ai de mim! / Não sei na-dar.” Terminada a canção, o francês, a quem nenhum dos oficiais fornecera uma tradução, declarou: Magnifique! E a mulher apoiou os cotovelos no espaldar de um banco e se inclinou para a frente, olhando fixo para Qayyum. Magnifique, ela ecoou.

Constrangido por ter se questionado se ela não se referia à can-ção, Qayyum desviou o olhar e examinou a plataforma: como esta-vam orgulhosos — punjabis, dogras, pachtuns, todos! — de serem recebidos com tanta cordialidade por aqueles desconhecidos. A generosidade do francês bastou para que deixassem de lado o des-contentamento que traziam consigo desde Marselha, onde foram informados de que teriam de trocar os turbantes e o traje pardo e verde do regimento por balaclavas e uniformes cinza mal ajustados que provocavam coceira, mais adequados ao clima. E suas armas também lhes foram tiradas porque não eram compatíveis com a munição francesa; os fuzis novos eram estranhos, o peso, o formato ainda não era uma extensão natural do corpo dos soldados.

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Porém, uns minutos depois, no almoxarifado em que o aro-ma do café logo se misturou a um cheiro ainda mais terroso, a garota francesa mostrou a Qayyum com que rapidez um corpo desconhecido poderia se unir ao dele. Ele titubeou até a situação ficar impossível. Sua única experiência tinha sido em Kowloon, na noite anterior à partida do navio do 40th rumo à França, com uma mulher que não fingira que ele estava dando algo mais que quisesse além do dinheiro que foi obrigado a botar em cima da mesa antes de começarem. Havia sido menos atordoante, de certo modo, do que as reações dessa garota, que parecia obter prazer de coisas que lhe davam aflição pela possibilidade de que a ma-chucassem. Será que uma mulher pachtum reagiria dessa manei-ra?, ele se perguntou, praticamente no mesmo instante em que terminaram, o pensamento o deixando envergonhado tanto por si como pela francesa, que o beijou na boca e disse algo que ele não entendeu. Foi só então que se deu conta de que não tinham trocado nem uma palavra, e quando falou com ela no seu inglês intermitente, ela fez que não com a cabeça e riu. Presumira que todos os brancos entendessem as línguas uns dos outros, assim como todos os indianos do exército tinham pelo menos uma lín-gua em comum.

Kalam o procurava quando ele saiu do almoxarifado, uma ex-pressão zombeteira, um pouco magoada.

— Se cuida, irmão. Você já está apaixonado demais por esse povo.

— Bata continência a seus comandantes, sipaio.— Sim, senhor, Lance-Naik, senhor!Sua saudação foi tão afiada que se destinava a tirar sangue.

Qayyum — promovido do posto de sipaio só alguns dias antes — o liberou com um gesto preguiçoso, se recusando a aceitar o desafio. Sim, estava apaixonado por aquele povo, aquele mundo. A vergonha passou na mesma velocidade com que se instalara, e ele se empertigou quando o trem assobiou sua chegada, com-

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preendendo naquele instante o significado de ser homem — a ma-ravilha, a beleza disso.

Chegaram a Ouderdom debaixo de chuva, Kalam mancando sobre o tornozelo que torcera ao deslizar em uma pedra de

cantaria escorregadia. A queda foi brusca, e Qayyum debandou para ajudá-lo a se levantar, pondo o braço de Kalam em torno de seus ombros, preparado para escorá-lo pelo tempo que fosse preci-so para continuarem a marcha. No entanto, uma belga tinha saído de casa, passado unguento no tornozelo de Kalam, enrolado seu pé em atadura e voltado para casa sem dizer uma palavra. Kalam se sentira humilhado com a situação e não dizia nada desde então, exceto ao afirmar a Qayyum que podia andar com os próprios pés.

Mas agora Kalam erguia o olhar em direção à terra cultivada e sorria — ali, andando pelo campo, estavam os homens cujos rostos eram conhecidos dos 40th, não pessoalmente, mas no conjunto das feições, na expressão. Os soldados da Divisão de Lahore, a pri-meira do Exército da Índia a chegar à França. Sobrepondo-se ao uivo do vento, uma voz bradava em pachto: Por que demoraram tanto? Muitos traseiros de pêssego distraindo vocês pelo caminho?

— Pensamos em dar a vocês uma chance de conquistar a glória antes de assumir ela sozinhos!

Kalam recuperou o bom humor. Qayyum olhou por cima do ombro os homens dos 40th sorrindo, praguejando, ao seu redor. Não somente os pachtuns, mas também os dogras, os punjabis. Irmãos reconhecendo irmãos com um solavanco de amor, uma dose de rivalidade. O que Qayyum sentiu ao ver batalhão seguido de batalhão de soldados indianos acampados no campo era algo bem diferente — um alívio profundo, inexplicável.

O havildar-naik do 57th Wilde’s Rifle acompanhou o ritmo de Qayyum ao caminhar pelo gramado enluarado. Não se ouvia

nenhum som além do ronco dos soldados e do clamor de um so-litário pássaro noturno.

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— Preocupado com amanhã, Lance-Naik?— Senhor, não, senhor.— Não me chame de “senhor” agora. Mohammad Khan Afri-

di, de Landi Kotal.— Qayyum Gul. Peshawar.— Você acha que um dia vão contar histórias sobre a gente na

Rua dos Contadores de Histórias?Afridi acendeu um cigarro, o passou a Qayyum e acendeu

outro para si. Os sapatos de Qayyum rangiam contra a grama molhada quando se apoiava nos calcanhares, soprando a fumaça para o alto, observando seu rastro fantasmagórico ascender e se dissipar.

— Você ficou sabendo da 5th Light Infantry?, indagou o Afridi.— Não, senhor. O quê? Também estão aqui?— Não, em Cingapura. Sendo julgados por amotinação. Não

todos, mas muitos deles.— Pachtuns?— Pachtuns e muçulmanos rajputs. Eles ouviram o boato de

que seriam mandados para a Turquia para lutar contra outros mu-çulmanos, então se rebelaram. Mataram os comandantes.

Qayyum praguejou em voz alta e o mais velho concordou com a cabeça, pôs a ponta do cigarro em uma folha de carvalho e dese-nhou um círculo com a chama. O cheiro lembrava o dos incêndios de inverno.

— Eles ingressam em um exército formado para lutar contra outros pachtuns nas áreas tribais, mas se rebelam diante da ideia de pegar em armas para combater os turcos. É assim que o nosso povo é, Lance-Naik.

— O Exército Britânico da Índia foi formado para combater os pachtuns?

— Claro que foi. Você não sabia?Qayyum fez que não, examinou o bivaque. Às cinco e meia da

manhã do dia seguinte, estariam marchando de novo. Pigarreou, umedeceu os lábios.

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— Como é, de verdade? Lutar contra os alemães?— Vá dormir, Lance-Naik. Sonhe com Peshawar. É uma or-

dem. Amanhã você vai descobrir a resposta para a sua pergunta, em Vipers.

Repetidas vezes a dor o atirava na inconsciência e uma nova ra-jada de tiros o trazia de volta. Depois havia o silêncio e espe-

rava que as trevas o reivindicassem, mas eram apenas as chamas que se alastravam perto de seu rosto, lambendo as profundezas de sua órbita ocular. Uma formiga subiu numa folha de grama e sua respiração ofegante a soprou em direção ao córrego, a pou-cos centímetros de distância, inalcançável; o sol que fazia o fogo queimar com mais furor em seu rosto adquiriu um jeito brinca-lhão ao mergulhar no conforto da água. Vou morrer aqui, Qayyum pensou e aguardou Alá ou a família ou as montanhas de Peshawar tomarem conta de seu coração. Porém, havia apenas o fogo e o sangue que alagava seu olho e o fedor dos homens mortos. Seria ele o único vivo, ou haveria outros como ele, que sabiam que os artilheiros os descobririam caso movessem um dos membros?

Talvez já estivesse morto e esse fosse o inferno. As chamas eter-nas, sim. Devia ter acontecido no instante em que subia a ladeira — os alemães estavam exatamente do lado oposto, logo depois da crista do morro. Mas a primeira salva de tiros devia tê-lo matado e arremessado nesse mundo feito pelo diabo em que os homens eram forçados a correr por um campo sem proteção, tropeçando nos cadáveres de seus irmãos, e quando os vestígios esfarrapados de uma divisão chegaram às linhas inimigas do declive do outro lado do campo, uma névoa amarela penetrou-lhes os corpos e os fez cair, espuma em suas bocas. Cubram o nariz e a boca, veio o comando, ligeiro e inútil; se estivessem com os turbantes, os en-rolariam no rosto, mas só tinham balaclavas. Qayyum se lembrou do lenço no bolso, aquele que o capitão Dalmohy o instruíra a mergulhar nos baldes de líquido que passavam, e o segurou contra o rosto mesmo ao reparar que a brisa empurrava a névoa amarela

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para o leste. Então não era o inferno. A névoa teria saltado em seus pulmões caso fosse.

O tom verde-esmeralda do gramado se tornou verde-pinho; o sol se pôs completamente na água. Sua mão estava dormente, mas tinha medo de tentar acordá-la ainda que a dormência se es-palhasse pelo braço. Vira um sipaio sentado no campo enquanto os homens avançavam ao redor, um dos braços terminando no punho. Qayyum pegara a mão separada em que quase pisou e a entregara ao homem, que agradeceu, muito educado, e tentou colocá-la no lugar. Acho que está faltando um pedaço. Você pode dar uma olhada?, ele pediu e faleceu. Qayyum tinha se esquecido disso, embora tivesse acontecido poucas horas antes.

Qayyum tentou rezar, mas o Misericordioso, o Caridoso, havia abandonado o campo e os homens que ali estavam. Algo se mexia no chão, algo pesado; um animal faminto, lobo ou chacal, com a barriga no solo, cheirando a carne; um alemão com uma faca entre os dentes. A grama aplanou, a coisa entrou no espaço entre Qayyum e o córrego. Qualquer movimento era dor, qualquer mo-vimento era tiro ao alvo para os artilheiros. E depois um sussurro, seu nome.

— Kalam, fique aí. Vão atirar em você.— Lance-Naik, senhor. Cale a boca.

Uma tarde, na Rua dos Cambistas, Qayyum e o irmão, Najeeb, tropeçaram em um objeto na pista — um coelho morto com

os lábios costurados, espuma na boca. Um homem se deparava com uma centena de crueldades em Peshawar todos os dias, e nada naquele coelho o levou a desacelerar o passo, mas Najeeb se ajoelhou na rua e cortou cuidadosamente o fio, a cabeça empas-tada de pelo e lama do bicho na palma da mão. Quando Qayyum pôs a mão no ombro do garoto, Najeeb ergueu o olhar e pergun-tou, você acha que a família estava por perto e ele tentou pedir ajuda? Como se essa fosse a verdadeira razão para sofrer, e não a agulha perfurando os lábios do bicho, a mão que teria lhe inter-

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rompido a respiração pelo nariz. Ó Alá, a crueldade do mundo. Como Najeeb teria conhecido esse horror, essa solidão de morrer sozinho? A mão de Kalam agarrou seu tornozelo e ele sentiu as lágrimas deslocarem o sangue do olho, o qual não podia tocar sem ter a sensação de que esfregava o rosto inteiro.

— Não me abandone.— Pachtum desmiolado, você acha que eu vim até aqui só para

sentir o seu chulé?O tempo nunca havia passado de forma tão lenta quanto na-

queles minutos — ou seriam horas? — em que Kalam se arrastava pouco a pouco pelo chão até nivelar seu rosto com o de Qayyum e poder examinar o que o fogo tinha causado.

— Me diz. A situação está muito ruim?— Não se preocupe, Yousuf, as Zuleicas todas ainda vão querer

te seduzir, e os Putifars também.— Kalam, não brinca com isso.— É rir para não chorar. Tenha paciência, a gente recua quan-

do escurecer.— O sol já se pôs.— Meu amigo, você se esqueceu da lua, enorme e branca que

nem os peitos da sua francesa, subindo no céu. Só mais algumas horas. Mas eu estou aqui, não se preocupe. O seu Kalam está aqui.

O fim da frase desapareceu no tiroteio. O corpo de Qayyum se contraiu na expectativa das balas que o atravessariam, mas Kalam estava com a mão em seu peito, lhe dizendo para ficar firme, os artilheiros tinham outra coisa em mira. Você também fica firme, disse Qayyum, mas Kalam se apoiou nos cotovelos e os usou para impulsionar os braços, o restante do corpo imóvel enquanto — várias e várias vezes — ele enfiava a palma das mãos no córrego e devagar, quase sem deixar uma gota cair, as levava à boca seca de Qayyum, lavava o sangue de seu rosto e tentava limpar a imundice de seu olho. Com o fedor de sangue por todos os lados, a única luz no mundo vinha daquelas mãos unidas, a água se movendo dentro delas.

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Desculpe, não, a recuperação não vai ser como se fosse um corte de faca no braço. Vamos ter de retirá-lo.

O médico indiano recuou e desligou uma lanterninha que Qayyum não tinha percebido que ele segurava. Quando o médico deu um tapinha em seu ombro e passou à cama seguinte, a mulher de pele branca, cabelo grisalho e cheia de rugas em volta da boca continuou ali para trocar os curativos, seu toque impessoal como jamais imaginara que o toque de uma mulher pudesse ser. Que lu-gar era este para onde o levaram? Brighton, informaram eles, mas o que percebera era só uma praia coberta de pedrinhas, o cheiro úmido da ambulância e depois este lugar, saído de um livro de histórias sobre djim, para o qual foi levado. Tudo que já tinha sido visto ou imaginado pintado nas paredes, no teto — dragões e ár-vores e pássaros e homens de Tashkent ou Fergana como aqueles da Rua dos Contadores de Histórias. Tanta cor, tanta opulência. Mais do que um olho seria capaz de captar. Flutuava acima daqui-lo tudo, ao lado dos dragões dourados no baldaquino de couro do teto. A Inglaterra fizera a dor cessar. Mas a mulher falava com ele, tinha de voltar para a cama para ouvir o que ela dizia.

— Vamos preparar um olho de vidro e em breve você estará partindo corações.

— Não quero partir corações.— Ah, querido.Ele não sabia por que ela o olhava daquele jeito, ou o que uma

mulher estava fazendo entre tantos homens, mas quando ela disse “querido” naquele tom de voz triste ele compreendeu, apesar da incandescência da ausência de dor, que agora era um mutilado, um homem incompleto, e dali em diante nunca o admirariam, somente se compadeceriam.

Ele era um homem que subia em árvores só para ver a paisagem do alto, que entrava numa cidade nova e procurava as vielas

mais densas, um homem que marchava rumo ao clamor. Agora

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não podia pensar em um galho sem imaginar a ponta entrando no olho remanescente. Tudo, em todos os cantos, era uma ameaça. Cada galho, cada bola tracejando o ar, cada rajada de vento, cada som agudo, cada ambiente escuro, cada noite, cada dia. Os coto-velos de uma mulher; os movimentos súbitos que ela fazia em sua direção levada pelo desejo; as mãos dela buscando em seu rosto aquelas expressões que só se revelam na escuridão. Tateou a pele em torno do olho enfaixado. Quem era ele agora, este homem que via na proximidade um risco?

Um aviso, irmão, se você me vir caminhando na rua, fique longe de mim. O que eu quiser eu vou ter — mulheres ou homens, vinho ou ouro. Uma espada no coração de qualquer um que tentar me impedir. É assim que é quando um homem anda pelo inferno e sobrevive. Quando você voltar a Peshawar, diga ao meu pai que ele tinha razão. Eu devia ter ficado no pomar.

Qayyum desviou o olhar da carta. Em meio à névoa, o portão arqueado e a cúpula verde da entrada do Pavilhão pareciam ir-reais, uma fantasia atirada contra o céu inglês pela força da sau-dade que os soldados sentiam de casa. Ajustou o lençol em volta dos ombros, o olho doendo por causa do esforço de ler umas pou-cas frases. Havia uma provocação na carta, nas entrelinhas da ira apontada para o mundo, ou será que toda essa inquietação vinha de dentro dele? Um dia em Vipers e sua guerra acabou. Agora es-tava ali, nas dependências de um palácio em Brighton enquanto o sipaio Kalam Khan lhe escrevia das trincheiras de Aubers Ridge.

Levou a mão até a pálpebra, permanentemente fechada, e a apertou de leve, sem sentir resistência. Não havia ali nenhum ho-mem que o invejasse por isso, por sua passagem de volta para casa. Quando você voltar a Peshawar. Mas ele não queria nem Peshawar nem Aubers Ridge — queria somente esse pavilhão abobadado junto ao mar, esse lugar que fazia tudo o que mãos humanas eram capazes de fazer para consertar homens feridos e

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não fazia nenhuma pergunta sobre a casta ou religião do soldado a fim de fazê-lo se sentir inferior, mas que entendia esses fatores a ponto de ter nove cozinhas onde a comida de cada grupo podia ser preparada separadamente, e onde a carne para os muçulma-nos era abundante e halal. O próprio rei-imperador tinha dado instruções rígidas para que ninguém tratasse soldados negros — e a palavra incluía pachtuns — como homens inferiores. Pensar no rei-imperador fez Qayyum pôr a mão no coração e inclinar a ca-beça. Cedera o próprio palácio aos soldados indianos feridos. Que nababo ou marajá agiria assim?

Esse pensamento lhe ocorreu pela primeira vez quando olhou para o imenso candelabro da Enfermaria 1, outrora salão de festas, com sua enormidade pendendo da garra de um dragão prateado; a besta de língua comprida descia de folhas de bananeira de cobre que pareciam brotar da folhagem pintada no teto. Era bonito ou feio? Não conseguia decidir. Mas sabia que o candelabro era mais esplendoroso do que Peshawar inteiro. Com o tempo, passaria a ver o candelabro como o Império — o rei era o dragão prateado, uma das garras aguentando o peso dos dragões menores, flor de lótus de cristal, uma estrela de espelhos. Repetiu essa ideia para um dos médicos ingleses e daí em diante era chamado sempre que recebiam visitas importantes para explicar que, quando olhava para o candelabro, ele via a glória do rei. O que dizia era motivo de admiração equivalente, se não maior, pelo fato de que o dizia em inglês. Quando a enfermeira-chefe estava ali para ouvir o elogio, piscava para Qayyum e encostava o dedo no lábio — tinha sido ela quem ensinara as palavras em inglês que ele desconhecia, polira a gramática de suas frases, explicara que os objetos de cristal eram flores de lótus e não réplicas dos espanadores que os funcionários usavam para limpar o candelabro.

Era impressionante como as enfermeiras tornavam cômo-do estar perto de uma mulher que não fosse a mãe, a irmã ou a esposa. Nas alas, os soldados falavam sem parar de mulheres brancas — não só das enfermeiras como também das camponesas

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francesas com quem alguns tinham acampado e da aviadora que um deles jurava ter conhecido (ninguém acreditava, mas todos pediam várias vezes que contasse a história). Nada na França ou na Inglaterra era mais diferente da Índia do que as mulheres — e a partir disso foi apenas um passo para que certos soldados de-clarassem que, se as mulheres da Índia mudassem, o país também seria próspero como as nações brancas, e tudo, do gado ao povo, brilharia por causa disso. Qayyum escutava e tentava se imaginar dizendo à mãe que ela deveria ser mais parecida com as mulheres da Europa — ela lhe daria um tapa na orelha com o sapato se ele ainda fosse pequeno.

Sem aviso, o ar virou chuva torrencial e as palavras de Kalam borraram a folha. Qayyum abaixou a cabeça e, com toda a rapidez que suas mãos desastradas permitiam, jogou o cobertor em cima da cabeça, cobrindo-a totalmente. No dia em que a irmã caçula pôs a burca pela primeira vez, vestiu-a do avesso, sem malha no rosto para enxergar e respirar, e irrompeu em lágrimas, até que Qayyum levantou o tecido e o virou do lado certo; ela ainda era jovem o bastante para lhe abrir os braços e dizer, Lala, esquece o exército, fique aqui e nos defenda dos nossos erros. Nem o olho perdido fazia com que desejasse ter dado ouvidos. Ali estava ele, no palácio do rei.

Entretanto, havia outro lado nesse mundo e Kalam Khan es-tava nele, desgostoso com seu uniforme de soldado, a irmanda-de dos 40th Pathans, a honra do serviço. Qayyum se perguntava quem teria escrito as palavras de Kalam agora que não estava mais lá para escrevê-las, e se quem escreveu a carta teria omitido algu-ma coisa. Qayyum achava que o processo de seleção era parte de seu dever como escrivão da carta no lugar dos homens feridos, iletrados do Pavilhão. Muitos deles pediam que ele escrevesse para as famílias Pelo amor de Deus, não não não deixe que meu irmão meu primo qualquer pessoa da nossa aldeia se aliste. Tais palavras jamais passariam pelos censores, e causariam má impressão a respeito das tropas indianas, nas quais confiavam para mandar ao outro

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lado do mundo e lutar pelo rei apesar de inúmeras pessoas na Inglaterra acharem que sua fidelidade não estava à altura do de-safio. Qualquer dúvida que tivessem sobre sua índole só persistia naqueles que nunca tiveram a honra de servir a seu lado. Essa foi a única coisa que os oficiais ingleses disseram, ou precisaram dizer, quando os 40th Pathans zarparam rumo à França.

A chuva batia no cobertor e a dor respondia, sim, sim, estou aqui, eu realmente não fui embora. Ele tirou a lã molhada do

rosto e segurou-a sobre a cabeça como um toldo; o alívio de emer-gir do tecido pegajoso foi imenso. Do outro lado do jardim, viu uma figura mancando. Era o sipaio cujo tornozelo fora destruído por uma bala e cujos pulmões foram debilitados pelo cloro; em breve seria mandado de volta para a França. Sua carta fora ende-reçada ao rei-imperador em pessoa, reclamando que os indianos feridos eram mandados de volta ao campo com ferimentos que permitiriam que um soldado inglês voltasse para casa. Qayyum escreveu cada palavra que o homem disse, ciente de que jamais chegaria ao palácio. A carta terminava: Se é para um homem morrer defendendo um campo, que este campo seja seu campo, a terra seja sua terra, o povo seja seu povo.

Duas enfermeiras se aproximaram, guarda-chuvas sobre as ca-beças. Ladeando Qayyum feito guarda-costas, ambas puseram a mão no braço dele e o conduziram até a enfermaria, o olho restan-te fechado para protegê-lo da chuva cortante.

Viu a enfermeira-chefe se aproximar quando ele estava no jardim do Pavilhão, lendo em voz alta a carta que um dos

sipaios recebera da esposa. O sipaio chorava na cadeira de rodas, consciente de que os sonhos da esposa sobre os filhos que teriam quando ele regressasse jamais se concretizariam. Qayyum achou que a enfermeira encontrava-se ali para avisar que o carro estava pronto para levá-lo ao vidreiro a fim de medir o olho, mas, apesar da ansiedade de perambular pelo mundo com a aparência de ho-

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mem inteiro, ele terminou de ler a carta e manteve a mão no om-bro do sipaio por um tempo, até que seus soluços abrandassem, antes de ir até ao encontro dela, debaixo de uma árvore.

— Você é muito gentil com eles, Lance-Naik. Calculo que passe metade do dia lendo e escrevendo cartas para os seus companheiros.

— Isso ajuda o dia a virar noite.— É. Bom, eu queria lhe dizer adeus, e desejar boa sorte.— Vou embora?— Você não.Ela virou o rosto e falou com o inglês de trajes civis que se

aproximara sem ser notado.— Ponha isso no seu relatório. Diga a eles que uma viúva de

cinquenta e seis anos foi vista dando sinais de que estima um ga-roto pathan. Que o Império estremeça diante dessa informação.

Voltando-se para Qayyum, ela enfiou seu lenço nas mãos dele.— Quando você estiver de olho novo, talvez precise de alguma

coisa na qual enrolá-lo de noite.Ele não entendeu de imediato. Nem naquele dia nem no dia

seguinte, nem mesmo quando se deu conta de que todas as enfer-meiras do sexo feminino haviam partido. Mas na mesma semana, em uma excursão à orla de pedras, ele encontrou dois suboficiais da Divisão de Lahore — um sique e um rajput — que declararam que todas as mulheres também tinham sido afastadas do York Pla-ce Hospital.

— Será que os ingleses resolveram que as mulheres não podem ver homens feridos?, Qayyum indagou.

O sique apenas grunhiu, pegando uma pedra com a mão que lhe restava — a esquerda — e concentrando toda a sua atenção no preparo do arremesso, a manga do lado direito ondulando. Era de manhã cedo, o sol mal tinha nascido: a hora em que homens desfigurados saíam no mundo esvaziado.

Porém, o rajput com metade do rosto enfaixado e voz rouca de quem engoliu gás fez um ruído de escárnio.

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— Elas não foram afastadas de todos os hospitais. Só dos que têm pacientes indianos.

— Por quê?— Por que você imagina que seja? Por que você acha que as

inglesas que te visitam na enfermaria e te dizem o quanto o Impé-rio te deve nunca são novas e são sempre vigiadas por um inglês?

O sique lançou a pedra, seu corpo inteiro girando. Qayyum se distanciou, tampando o olho bom. Caso o rajput não estivesse ali para amparar o sique, ele teria caído no chão. A pedra caiu em ou-tra pedra — um tinido estridente — e o mar se apressou em cobri--lo. O sique empurrou o rajput para longe, cambaleou, recuperou o equilíbrio, e quando falou seu rosto era um rosnado.

— Têm razão em se preocupar. Vou achar todas as inglesas com maridos na guerra e saciar a sede que elas têm de homem.

— Cuidado com o que você fala. Agora vocês que são siques têm que ter o dobro da lealdade que o resto de nós tem.

O rajput falava com empatia, mas suas palavras foram recebi-das com uma sequência de xingamentos. Em Lahore, um julga-mento por conspiração estava em curso para quase trezentos ho-mens — a maioria deles siques — acusados de tentar incitar uma rebelião no Exército Britânico da Índia com o apoio dos alemães. A enfermeira-chefe dissera a Qayyum, se um murmúrio de dúvida for vinculado a qualquer um dos soldados daqui por causa dessa trama perversa, vou para Lahore e enforco os conspiradores com as minhas próprias mãos. Ele se pegou imaginando-se num abraço com a velha senhora. A conspiração em si, que jamais teve chance de êxito, não era tão incômoda para Qayyum quanto o fato de que alguns dos sipaios do Pavilhão já tinham começado a usar o nome “Kirpal Singh” como código para informante, duas caras, alguém que não era confiável. Kirpal Singh, o homem que informara os britânicos sobre a tramoia e mandara siques como ele para a ca-deia e pouco depois — era inevitável — o pelotão de fuzilamento.

Um dos médicos indianos do Pavilhão, o responsável pelo tur-no da noite, caminhava em direção a eles na orla. Qayyum o cha-

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mou e perguntou sobre as enfermeiras. O médico esticou os bra-ços para aludir às manobras esquisitas dos ingleses e disse que o afastamento delas resultava da afronta criada nos círculos oficiais por uma fotografia em um jornal de uma enfermeira ao lado da cama de Khudadad Khan, o primeiro indiano a ser condecorado com a Cruz de Victoria.

Nem o rajput nem Qayyum sabiam o que dizer sobre o assun-to. Os três ficaram em silêncio observando o sique, que segurava a ponta da manga oca entre os dentes, esticando-a, e arrastava a ponta afiada de uma pedra de um lado para o outro do tecido, logo abaixo do coto do braço. A palavra “desonra” adentrou a cabeça de Qayyum e se negava a ser expulsa.

Qayyum, estou aqui, em Brighton. No Kitchener Hospital. Não se preocupe, são feridas de balas em lugares onde a pele vai sarar e

em breve me mandarão de volta para a França. Mas estou aqui agora, em Brighton. Rezo a Alá que você ainda não tenha ido embora para Peshawar. Kalam Khan, sipaio.

Ele caminhou pelas ruas de Brighton, o sol a pino. Antes, só ha-via percorrido o curto caminho do Pavilhão à orla de manhã

cedo. Agora reunia um grupo de crianças curiosas que o seguiam assobiando “It’s a Long Way to Tipperary” até ele dar meia-volta e, de rosto inexpressivo, fingir tocar flauta. Uma das enfermeiras lhe dissera que esse era um jeito conveniente de dispersar uma tur-ma de crianças e, para seu espanto, funcionou, embora não enten-desse por que tinham gritado e corrido. Na Queen’s Park Road um carro freou e o motorista se ofereceu para levá-lo ao hospital, mas como apreciava as casas majestosas e a rua sossegada e a sensação de expectativa com que andava em direção a Kalam, agradeceu ao homem e seguiu em frente. Mais adiante, um inglês de bigode longo tirou o chapéu para Qayyum e a esposa do homem murmu-rou “Obrigada”. Apertou o passo, o sol lançou seu calor sobre ele, extravagante. Continuava a ser Qayyum Gul, apesar de tudo.

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VIPERS

O Kitchener Hospital ficava em um prédio grande, com quatro andares e uma torre com relógio que comparou ao seu relógio de pulso, parando para dar corda e adiantar num grau mínimo o ponteiro dos minutos. Um dos médicos do navio-hospital rumo a Brighton o colocara em seu punho e nenhuma justificativa foi pedida ou recebida. Ele o daria a Kalam, resolveu, ao se aproximar lentamente do portão, olhando de soslaio todas as janelas abertas para ver se um vulto familiar não estava debruçado no peitoril, à espera. Com a atenção voltada para os andares mais altos, não reparou no homem da guarita e teria atravessado logo o portão aberto caso o homem — um policial militar — não o mandasse parar e perguntasse o que ele queria.

— Lance-Naik Qayyum Gul. Aqui para ver o sipaio Kalam Khan.

— A visitação não é permitida.— A que horas devo voltar?— A visitação não é permitida.— Porque hoje é domingo?— Não, porque a visitação não é permitida. Em dia nenhum.

Em horário nenhum.— Meu amigo está aí dentro. Estávamos em Vipers. 40th

Pathans.— A. Visitação. Não. É. Permitida.— Sou um lance-naik. 40th Pathans.— O que não vai me impedir de te prender se você não for

embora.Um carro com três indianos e um inglês saiu portão afora e

parou ao lado da guarita. O que é que está acontecendo?, o oficial inglês perguntou em urdu, e Qayyum, com um alívio incomen-surável, o saudou e afirmou que havia um engano, seu inglês não era muito bom, será que o oficial não poderia dizer ao PM que ele estava ali para visitar um dos sipaios sob seu comando?

— Desculpe, Lance-Naik, normas do hospital. Nada de visitação.

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KAMILA SHAMSIE

— Será que o senhor não poderia descobrir se ele não tem condições de sair? Não sei até que ponto ele está ferido, mas quem sabe ele não pode andar, ou usar a cadeira de rodas?

— Nenhum funcionário indiano, à exceção dos suboficiais, tem permissão para entrar nas dependências do hospital. Exceto em marchas supervisionadas.

— Senhor?— Olha, Lance-Naik, não fui eu quem criou as normas.— Mas como é que eu faço para vê-lo?— Imagino que você não vá conseguir.— Mas estivemos em Vipers juntos. Senhor? Lutamos em Vi-

pers. Ele esteve em Aubers Ridge. Estava sob o meu comando. 40th Pathans.

— Entendo o que você está tentando me dizer. Sinto muitís-simo, mas não há nada que eu possa fazer, nem mesmo pelos homens que estiveram em Ypres.

Qayyum olhou freneticamente para os três suboficiais indianos dentro do carro, dois dos quais lhe viravam o rosto. O terceiro — com insígnia de naik — esticou a mão para fora do carro e tocou em seu braço. Me diga o nome dele, o naik pediu. Posso garantir que ele vai ficar sabendo que você esteve aqui.

Qayyum inclinou a cabeça para trás, pôs as mãos em volta da boca e gritou pelo portão do hospital na maior altura possível para seus pulmões:

— Kalam Khan!A voz foi interrompida pela mão em seu pescoço. O policial

militar aproximou-se do rosto de Qayyum, que pôde ver o globo ocular do homem, seu tom amarelado, os vasos sanguíneos. O que ele estava fazendo, o inglês, jovem e fisicamente saudável, parado do lado de fora de um hospital, impedindo um soldado de chegar perto de outro?

— Você não é ninguém — Qayyum se flagrou dizendo ao inglês.— O que foi que você falou?

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VIPERS

A mão do PM se fechou em volta do pescoço de Qayyum, que se deu conta de que poderia fazê-lo — poderia investir contra um inglês. Mas antes que “poder” virasse “fazer”, o naik que lhe estendera a mão saltou do carro, se interpondo entre Qayyum e o PM, uma das mãos no peito de Qayyum.

— Ele só está obedecendo às normas, Lance-Naik. É melhor você ir embora.

As ondas tornaram a explodir sobre as pedras — não, era o portão se fechando, arranhando o cascalho do chão. O PM fechou a tranca e ficou parado diante dela, braços cruzados.

— Normas? Existem normas contra falar o nome de um amigo?De novo levantou a voz, tirando forças do fundo da barriga:— Kalam! Sou eu, Qayyum. Kalam!O naik pôs o dedo logo abaixo do olho bom de Qayyum, a

ponta do dedo acariciando a pele. A voz de Qayyum se calou.— Bom menino. Não cause problemas agora.Aproximando-se, ele sussurrou: Nem eu posso sair sem ser

vigiado. Aqui nós somos prisioneiros. Você vai piorar a situação do seu amigo.

A última frase tornou impossível qualquer atitude que não partir. Quando Qayyum voltou ao Pavilhão, viu, como se fosse a primeira vez, a cerca de arame farpado que recobria os muros, as guaritas no portão, os vãos da sebe tampados com tábuas. Por um brevíssimo instante, acreditou que estava em um campo para prisioneiros de guerra alemães, cercado de homens e mulheres que falavam inglês — um plano elaborado para incitar os soldados indianos contra o rei-imperador.

Mas não, estava na Inglaterra e Kalam Khan estava preso em um hospital, esperando que Qayyum fosse ao seu encontro assim como ele tinha ido ao encontro de Qayyum no campo de luar e homens mortos e artilheiros alemães. Amanhã Qayyum acharia uma forma de vê-lo, mesmo se fosse preciso um requerimento ao rei-imperador em pessoa.

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KAMILA SHAMSIE

Na manhã seguinte recebeu um bilhete do naik de Kitchener informando que Kalam estaria recuperado em breve, e que nesse meio-tempo tinha sido transferido para Barton-on-Sea. E naquela tarde o olho de vidro de Qayyum chegou do vidreiro e o médico lhe disse que poderia voltar para a Índia.

No último dia em Brighton, Qayyum passou muito tempo junto à entrada da Enfermaria 3, outrora um salão. Ao lon-

go das paredes havia pinturas de árvores de troncos finos. Um pássaro livre e um pássaro engaiolado se encaravam, seus olhares incólumes às borboletas em preto e branco que adejavam entre os dois. O pássaro engaiolado era da mesma cor laranja desbotada que a porta de sua prisão; o pássaro livre era marrom como o galho onde estava pousado, as pontas das asas verdes e vermelhas como as folhas e flores que o rodeavam. Qayyum deu um passo para trás — os pássaros, as flores, as borboletas e até mesmo a árvore eram circundados por uma estrutura dourada, seu formato o de uma gaiola.

Só quando já estava no navio-hospital, a caminho da Índia, Qayyum se deu conta de que o motivo de não ter recebido ne-nhuma resposta às cartas enviadas a Barton-on-Sea era que o recado do naik era mentira. Correu para o convés, pronto para saltar nas águas frias do Atlântico, mas era tarde demais, a Grã--Bretanha era apenas uma cabeça de alfinete — uma ilha muito, muito pequena. �