78
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA - UNB INSTITUTO DE LETRAS - IL DEPARTAMENTO DE TEORIA LITERÁRIA E LITERATURAS MESTRADO EM LITERATURA KEHINDE, SÍMBOLO DA RAÇA NEGRA ANDERSON SILVEIRA DE FRANÇA ORIENTADORA: PROF.ª DR.ª RITA DE CASSI PEREIRA DOS SANTOS BRASÍLIA 2012

KEHINDE, SÍMBOLO DA RAÇA NEGRA - core.ac.uk · escravizar os índios ao chegar no Brasil, ... a reificação dos negros implica uma visão de que não eram ... Na literatura brasileira

Embed Size (px)

Citation preview

UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA - UNB INSTITUTO DE LETRAS - IL

DEPARTAMENTO DE TEORIA LITERÁRIA E LITERATURAS

MESTRADO EM LITERATURA

KEHINDE, SÍMBOLO DA RAÇA NEGRA ANDERSON SILVEIRA DE FRANÇA

ORIENTADORA: PROF.ª DR.ª RITA DE CASSI PEREIRA DOS SANTOS

BRASÍLIA 2012

UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA - UNB INSTITUTO DE LETRAS - IL

DEPARTAMENTO DE TEORIA LITERÁRIA E LITERATURAS

MESTRADO EM LITERATURA

KEHINDE, SÍMBOLO DA RAÇA NEGRA

ANDERSON SILVEIRA DE FRANÇA

Trabalho apresentado ao Departamento de Teoria Literária e Literaturas da Universidade de Brasília, como requisto para obtenção do grau de mestre em literatura brasileira.

ORIENTADORA: PROF.ª DR.ª RITA DE CASSI PEREIRA DOS SANTOS

BRASÍLIA

2012

iii

KEHINDE, SÍMBOLO DA RAÇA NEGRA

DISSERTAÇÃO SUBMETIDA À COMISSÃO EXAMINADORA, DESIGNADA PELO COLEGIADO DO CURSO PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA DO DEPARTAMENTO DE TEORIA LITERÁRIA E LITERATURAS – TEL DO INSTITUTO DE LETRAS, COMO REQUISITO PARA OBTENÇÃO DO GRAU DE MESTRE EM LITERATURA BRASILEIRA. ___________________________________________________________ Profa. Dra RITA DE CASSI PEREIRA DOS SANTOS (TEL /UNB) - PRESIDENTE __ ______________________________________________________________ Prof. Dr. AUGUSTO RODRIGUES DA SILVA JUNIOR (TEL/UNB) - membro ___________________________________________________ Prof. Dr. AMAURI RODRIGUES SILVA - (CEUB) - membro __________________________________________________________________ Profa. Dra. CÍNTIA CARLA MOREIRA SCHWANTES - (TEL/UNB) - suplente

iv

DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho, feito com muito cuidado, atenção e esforço às seguintes pessoas:

Minha maravilhosa mãe, Maria Oda Silveira de França, a quem sempre me deu apoio total, amor

e cuida de mim sempre. A ella, pessoa “magnificat mater”.

A minha querida professora Rita de Cassi Pereira dos Santos, incansável orientadora, a quem

devo boa parte dos meus conhecimentos. Uma mulher atenciosa, dedicada e profundamente

responsável em seu ofício. Agradeço não só aos ensinamentos literários, mas também aos tantos

outros que aprendi durante a convivência necessária e agradável para elaboração desta

dissertação.

Dedico carinhosamente a minha sobrinha Larissa, a qual está com sete meses de vida e me faz

refletir sobre a caminhada da vida.

v

AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus em primeiro lugar.

Agradeço também ao apoio incondicional da orientadora deste trabalho, Rita de Cassi Pereira dos

Santos, a quem jamais esquecerei por ter me ajudado nesta etapa tão importante da minha vida.

Aos meus pais, irmãos, irmã e a todos que incondicionalmente deram-me apoio.

Por fim, agradeço as bênçãos dos orixás que me iluminaram para que eu pudesse construir este

humilde texto.

Canto de Oxum: “Yèyé e yèyé s'oròodò!”

vi

EPÍGRAFE

Trecho do poema Navio negreiro, de Castro Alves

(...) Era um sonho dantesco... o tombadilho

Que das luzernas avermelha o brilho. Em sangue a se banhar.

Tinir de ferros... estalar de açoite... Legiões de homens negros como a noite,

Horrendos a dançar...

Negras mulheres, suspendendo às tetas Magras crianças, cujas bocas pretas

Rega o sangue das mães: Outras moças, mas nuas e espantadas, No turbilhão de espectros arrastadas,

Em ânsia e mágoa vãs!

E ri-se a orquestra irônica, estridente... E da ronda fantástica a serpente

Faz doudas espirais ... Se o velho arqueja, se no chão resvala,

Ouvem-se gritos... o chicote estala. E voam mais e mais...

Presa nos elos de uma só cadeia,

A multidão faminta cambaleia, E chora e dança ali!

Um de raiva delira, outro enlouquece, Outro, que martírios embrutece,

Cantando, geme e ri!

No entanto o capitão manda a manobra, E após fitando o céu que se desdobra,

Tão puro sobre o mar, Diz do fumo entre os densos nevoeiros:

"Vibrai rijo o chicote, marinheiros! Fazei-os mais dançar!..."

(...)

7

NOME COMPLETO DO AUTOR: ANDERSON SILVEIRA DE FRANÇA

TÍTULO: KEHINDE, SÍMBOLO DA RAÇA NEGRA

NOME DO CURSO: LITERATURA (MESTRADO)

DATA DA DEFESA: 03/07/2012

NOME COMPLETO DO ORIENTADOR: RITA DE CASSI PEREIRA DOS SANTOS

RESUMO: A obra Um Defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves, é uma metaficção historiográfica em que

a personagem narradora, Kehinde, escrava, rompe com os paradigmas da época da colonização. A saga

da protagonista entre África e Brasil percorre diversos espaços e se passa o longo de quase todo o

século XIX, onde o negro é visto como mercadoria. A narrativa mostra uma realidade desumana, onde o

negro é privado de todos os seus direitos. A dissertação procura enfatizar as formas de resistência do

negro pra burlar os esforços do dominador para aniquilar seus valores étnicos, bem como os processos

de defesa do negro em relação a eles. No construto discursivo da obra, destacam três linhas-chave:

aspectos históricos, escravidão e orixás, os quais são analisados no trabalho.

PALAVRAS-CHAVE: mulher negra; orixás; resistência; escravidão; metaficção.

ABSTRACT: The novel “Defeito de cor”, by Ana Maira Gonçalves, is a historiographical meta-fiction in

which the main character and narrator, Kehinde, a slave, who breaks the paradigm of the time of

colonization. The saga of the protagonist between Africa and Brazil happens in many places and goes

through almost all the Nineteenth Century, when the blacks were considered merchandizing. The

narrative shows an inhumane reality, when the blacks were deprived of all their rights. This work aims to

emphasize the ways of the black resistance in order to cheat dominator’s effort to annihilate his/her

ethnical values, as well as the processes of their defense. Three key-lines are pointed through the

discursive construct in this thesis: historical aspects, slavery and orishas.

KEE-WORDS: Black woman; orishas; resistance; eslavery; meta-fiction.

8

SUMÁRIO

1 Resumo.......................................................................................................................................7

2 Introdução..................................................................................................................................9

3 Capítulo I: fundamentação teórica ............................................................................................23

4 Capítulo II: a força dos orixás, uma marca identitária ............................................................. 35

5 Capítulo III: a saga de Kehinde ............................................................................................... 54

6 Conclusão..................................................................................................................................73

7 Bibliografia.................................................................................................................................75

9

9

INTRODUÇÃO

É indiscutível que os negros africanos fazem parte da sociedade brasileira,

contribuindo nas relações sócio-étnica e religiosas. Fato importante tanto para a história do

Brasil, bem como para a literatura. Durante muitos séculos, desde o descobrimento no século

XVI até quase o final do século XIX, o negro - como escravo – foi o sustentáculo para a

colonização portuguesa e para os seus descendentes brasileiros. Os lusos eram detentores de

conhecimentos técnicos sobre navegação e outros, mas precisavam de mão de obra para a

lavoura e serviços domésticos. Antes da escravização dos negros, os brancos tentaram

escravizar os índios ao chegar no Brasil, mas não deu certo porque não é da natureza dos

sílvicolas trabalharem para produzir algo para outrem.. Sua cultura era de subsistência.

Deste modo, os portugueses trouxeram, então, os negros de diferente regiões da

África, os quais possuiam os conhecimentos de que, eles, os lusos e brasileiros , careciam sobre

agricultura, artesanato de madeira, metais, ouriversarias e outros. E isto é um fator importante

para que se possa compreender o processo de escravidão que ocorreu em nosso país, bem como

em muitas outras nações, como, por exemplo, nos Estado Unidos, país onde se possui um

preconceito ainda tão evidente em relação aos negros quanto o nosso.

O regime escravagista está ligado principalmente ao poder econômico, o qual via

os negros como um produto ser comprado, uma vez que este possuia algo que muito interessava

os brancos e que era a especialidade e força para o trabalho em diferentes áreas do

conhecimento. Esta mentalidade escravista coloca os negros em pé de igualdade a uma máquina

de produção. Desta forma, durante muito tempo, período escravocrata, e um bom tempo

depois, o negro foi visto não como “ humano”, mas como um objeto não só de trabalho, mas de

manipulação, bem como também, no caso das mulheres negras, em objeto sexual.

Ao transformá-los em objetos restaram-lhes uma relação desigual, que resultou em

uma relação comercial, negando aos negros o seu aspecto humano e, portanto, o direito de lutar

pela própria liberdade. Este escravizado recebeu em troca dos serviços um pouco de alimento e

abrigo précarios dados pelo seu proprietário. Isto sem se falar nas péssimas condições

oferecidas nos navios negreiros que, chamados de tumbeiros, os transportavam da África para o

Brasil, como cita Julio Chiavenato: “Essa mercadoria tão mal acondicionada para o transporte

custava muito pouco na fonte produtora e vendia-se muito caro ao consumidor brasileiro. Daí

um trato rudimentar no seu transporte” (CHIAVENATO, 1986, p.126).

10

Os negros eram “coisificados”, ou seja, objetos de uso e também alvo de satisfação

sexual dos brancos. É possível afirmar que eles eram percebidos de forma ambivalente, além de

serem os que servem aos brancos, recebiam estereótipos sexuais, conforme Sergio Costa

observa: “de um lado, se atribui aos negros um desenvolvimento moral e intelectual limitado,

infantilizando-os, de outro, cultiva-se a fantasia de que negros são hipersexuais (oversexed)”

(COSTA, 2006, p.115).

Neste sentido, a reificação dos negros implica uma visão de que não eram

necessariamente humanos, mas uma peça de utilidade seja no trabalho ou de outra forma. Por

isso, é fundamental entranharmos na relação histórica da África com o Brasil para que

possamos tentar avivar uma discussão sobre este contato dos negros com os colonizadores no

Brasil, e de um modo geral, pontualmente, na relação de servilismo econômico no tocante ao

aspecto social, religioso, e pensar como se dava a organização dominante adotada pelas

sociedades ocidentais, que tentou destruir a tradição religiosa dos negros, proibindo-os de

qualquer tipo de manifestação e obrigando os negros a substituírem seus deuses pelos dos

colonizadores. Normalmente, fica no esquecimento dos opressores, esta dilaceração, a partir da

instituição do regime colonial, que não existia na cultura africana anterior à chegada dos

portugueses em territórios africanos, mas, sim, apenas as lutas tribais.

Em se tratando desta situação do objeto escravo, é fundamental realçar o foco de

interesse dos traficantes que davam preferências aos homens. Estes vinham em maior

quantidade do que as mulheres, devido à sua força de trabalho. As mulheres, consideradas mais

fracas, eram destinadas, em geral, aos trabalhos domésticos como cozinheiras, babás, amas de

leite, mucamas ou eram utilizadas para satisfazer a luxúria dos senhores de escravos. Além

disso, os escravos não tinham o direito de constituir famílias e nem possuir a guarda dos filhos.

Estes eram vendidos como mais um produto da fazenda (ou da cidade). Todos os pretos eram

subordinados a uma condição desumana.

O homem branco era exaltado em detrimento da mulher branca, bem como dos

negros em geral no período da escravidão. Ele, o branco, detinha o poder e a autoridade. Podia

impor a sua lei, ou seja, as regras eram ditadas a partir do regime patriarcal e secundadas por um

“estado disciplinador”, a Igreja - instituição dominadora – que ajudava também no controle

social da mulher. Ambos, a igreja e senhores de escravos, viam a mulher branca como genitora

e quase sempre confinada ao espaço privado, principalmente, nas fazendas. A situação muda

um pouco no século XIX com a vinda da Família Real para o Brasil. Então ela podia aprender a

11

ler e a escrever, frequentar teatros e outras atividades dentro do quadro traçado para ela. No

entanto, em qualquer espaço – campo ou cidade – ela e os filhos deveriam ser submissos ao

marido, tendo suas vidas controladas pelo chefe da família.

No tocante à mulher negra, a situação era mais castradora. Podia procriar, porém

muitas vezes, não tinha o direito de amamentar o próprio filho para que sobrasse mais leite para

o filho do senhor, afinal, como um objeto de uso, ela era manipulada em todas situações. Na

literatura brasileira do século XIX, a mulher branca foi representada como um protótipo da vida

social burguesa e sempre subjugada ao pai ou ao esposo. Também não tinha voz dentro da

sociedade quer em questões políticas ou econômicas porque ela estava destinada ao casamento,

geralmente arranjado pelo pai ou por um tutor. Inclusive na condição de mãe. Além disso, não

tinha o direito de mantê-lo junto a si, por ele ser objeto de venda.

Já a mulher, africana e afro-brasileira, era sempre representada como escrava

submissa, como se vê nos livros de José de Alencar ou malévolas, ou também lascivas como em

Vítimas algozes, de Joaquim Manuel de Macedo. Em Alencar, elas eram destituídas de

personalidades, de vontade própria; em Macedo, estas mulheres eram personalidades satânicas

ou libidinosas e sem moral, ou, ainda, como a Rita Baiana, de O cortiço de Aluisio de Azevedo.

Nos casos acima, falta objetividade para mostrar o negro, em especial, a mulher negra e afro-

brasileira como ser humano com virtudes e defeitos. Todos estes exemplos dados são do século

XIX. Isto ocorria porque os escritores baseavam-se em um “olhar etnográfico”, que

examinavam “povos outros através da percepção de sua cor de pele, de sua língua e de seus

costumes e construíam sobre estas, outras categorias provenientes mais do universo do velho

mundo que do mundo que estavam conhecendo” (CARRIZO, 2001, p.25). Esta concepção

prevalece na literatura brasileira em todo o século XIX. Desde então vemos manter-se o status

quo e o racismo. Também no século XX, a mulher, negra e afro-descendente, era vista mais

sobre o aspecto da “criada subalterna”, similar às do século XX. Constatou-se isto

principalmente em escritores como Raduan Nassar na obra Um copo de cólera e outros, bem

como em obras de escritoras brancas como Horas nuas de Ligia Fagundes Teles. Como no

passado, as personagens não tinham voz, apenas compunham o cenário de uma família de classe

média alta urbana, como na primeira obra ou rural na segunda. Tal perspectiva literária em

relação, particularmente à mulher negra, começa a mudar com o advento de escritores e

escritoras afro-brasileiras em prosa e verso, a partir da década de oitenta do século XX. No caso

da prosa ficcional, destacamos a obra Um defeito de cor, obra foco dessa dissertação, que

12

embora, tenha como protagonista uma africana, os aspectos mais significativos da história do

corpus se passam em território brasileiro, como será visto adiante.

A narrativa citada acima, publicada em 2007 por Ana Maria Gonçalves que é

também jornalista, é uma “metaficção historiográfica”, ou seja, há nela um construto discursivo,

em que a História se entrelaça aos fios do enredo, com o intuito, provável, de contrapor-se a

discursos oficiais que camuflam a realidade do negro, e ao mesmo tempo, procuram reconstruir

um passado ficcional próximo aos dos afro-brasileiros.

Para compreender um pouco melhor esta problemática do negro e em particular da

mulher negra nos oitocentos, valho-me da protagonista e narradora Kehinde, vista por mim

como um símbolo do negro em geral. Procurarei verificar por meio da “saga” da personagem

principal como se entrelaçaram os fios da história à ficção e como se concretiza o discurso

ideológico da autora. No prólogo de Gonçalves tem-se indicado os principais temas que vão

tecer a obra, como a história de uma escrava, em especial, e o conflito do povo malês - negros

mulçumanos - venda do segundo filho, nascido livre, que vão gerando meandros os mais

diversos ao longo da narrativa. A diferença da autora é que ela entrança sua história pessoal, no

prefácio, com a descoberta dos manuscritos da pseudoautora deles que estavam com uma

zeladora de uma igreja em Itaparica, onde morou algum tempo.

Virando um dos papéis, amarelado pelo tempo e que deixava vazar a escrita em caneta tinteiro para o lado dos desenhos, percebi que parecia um documento escrito em português antigo, as letras miúdas e muito bem desenhadas, uma escrita contínua, quase sem fôlego ou pontuação. A leitura daquela folha já estava bastante prejudicada (,,,) (GONÇALVES, 2008, p.15).

A obra tem estrutura tradicional, linear, e também se liga à tradição literária quanto

ao pequeno informe que antecede à história, que nos lembra a obra O sofrimento do jovem

Werther, do escritor alemão Wolfgang Goethe, século XVIII, a advertência de Machado de

Assis em Esaú e Jacó e também em Memorial de Aires no século XIX. Os dois autores, como a

autora do corpus em leitura, têm a intenção de criar um aspecto de verossimilhança. Ainda

assim, o romance compõe-se de 10 capítulos semelhantes aos cantos de uma epopeia, porém

uma epopeia moderna, cuja heroína é símbolo da situação do negro e da mulher negra em

13

especial. Traz a história desse povo escravizado desde a captura na África, a travessia marítima

até o destino nas fazendas ou cidades brasileiras.

Em UDC1 a narrativa é em primeira pessoa e a protagonista, autodiegética, vai

sendo contada ao longo de quase oitenta anos, marcada por tragédias e sucessos, em um extenso

romance-carta memorialista como uma forma de ligação com o filho perdido. Contudo tal

gênero só é percebido pelo leitor a partir das páginas seiscentas que nomeia uma de suas

protegidas como “escritora fantasma”. As tragédias aconteceram nos primeiros anos de sua

vida, desde a captura até a alforria. O cativeiro, vivido e sentido pela protagonista, não é visto

como condição insolúvel, pelo contrário, há um enorme desejo de Kehinde de subverter a

situação e mudar o quadro de sua vida, porém, o poder maior dos brancos, de certo modo,

neutralizava a ação dos negros e preparava um terrível futuro “o que nós não sabíamos era que o

destino já tinha decidido por coisa pior” (GONÇALVES, 2008, p.169). Já os últimos anos vão

além de sua condição primeira, de escrava. A protagonista e narradora, Kehinde, inicia a

história com a primeira tragédia de sua vida, aos seis anos de idade em sua cidade natal, Savalu

em 1810. Esta cidade, pertencente ao reino do Daomé - atualmente é o reino do Benin - onde

sua mãe é violentada e assassinada juntamente com o irmão - Kokumo - por guerreiros nativos.

Diante do acontecido a avó, que enterra a filha e o neto sob a sombra do Iroco2, resolve com as

duas netas gêmeas, ir para cidade portuária de Uidá onde conhece a família da Titilayio e se

tornam amigas. Nesta comunidade, as gêmeas decidem por curiosidade conhecer o porto da

cidade, de onde chegavam e partiam navios negreiros, principalmente para o Brasil, trazendo

carregamentos os mais diversos e conduzindo levas de escravos para São Salvador, hoje

Salvador, Bahia. Lá elas são capturadas. Um dos motivos dessa captura é o fato de serem ibêjis3

1 A partir daqui, será utilizado o termo UDC para referir-se à obra Um defeito de cor. 2 Árvore cultivada tanto na África quanto na Bahia. No Brasil, “Iroko” é conhecida principalmente

como gameleira branca, cujo nome científico é ficus religiosa. De um modo geral, esta árvore possui um importante valor simbólico por estar ligada à longevidade, à durabilidade das coisas.

3 De acordo com Nei Lopes na obra Enciclopédia brasileira da diáspora africana, “ IBêjis (orixás menores da tradição nagô), protetores dos gêmeos, no Brasil identificados com os santos católicos Cosme e Damião. Um deles é a aposição de nomes. Assim, o primeiro gêmeo ao nascer recebe sempre o o nome de Taiwo “aquele que sentiu primeiro o gosto da vida”. O segundo Kainde ou Kehinde “o que demorou a sair”. Mas a família dos gêmeos livre da ameaça de perda quando nascer o filho seguinte e lhe for colocado o nome de Idowi” (LOPES, 2004, p. 333).

(gêmeas), o que chamava muito a atenção das pessoas. O aprisionamento delas foi feito por dois

negros a mando de brancos. Em seguida, são alojadas em um barracão portuário.

14

Na hora do embarque, a avó desesperada descobre onde as duas netas se encontram

e suplica para ir junto com elas. Consegue. Todas são enviadas para o Brasil em um navio

negreiro-tumbeiro juntamente com muitos outros negros. Durante a travessia, morrem a avó e a

irmã, Taiwo. Exatamente nesta travessia é que inicia a saga de Kehinde. A autora nos faz ver

aqui como eram capturados os negros para serem transportados a outros continentes, e como

vinham para o Brasil. Tal versão da escritora sobre estas prisões, fecha-se à observação de Jean

Marie Lambert em História da África negra que diz “Os europeus, portanto, nunca foram

capturar negros no mato, apenas os adquiriam nos postos de venda [como de Uidá] e, via de

regra pagavam com fuzis” (LAMBERT, 2001, p.27). Estes serviam aos chefes que viviam em

lutas por maior domínio e escravizavam em geral, os vencidos de outras tribos nas guerras, ou

invadiam pequenas comunidades e escravizavam homens; mulheres e crianças em menor

quantidade, pois rendiam muito pouco. Assim tanto africanos quantos europeus comercializam

seres humanos com propostas muito diferentes.

Após uma longa e desumana viagem, Kehinde aporta na Bahia, ilha dos frades,

permanece poucos dias e segue para a ilha de Itaparica, para o engenho do Senhor José Carlos,

pai da sinhazinha Maria Clara4

Além desta redução, mais sofrimentos viriam com o tempo, bem como a tentativa

de anular-lhes a identidade. Assim que aportaram na ilha, havia um padre católico aguardando o

desembarque para batizar os negros, Kehinde foge do batismo e pula da embarcação, atirando-

se na água. O nome de Luisa Gama, a qual ela, a narradora, adotou, foi composto da seguinte

. O translado dos negros da África para outros continentes é uma

atividade que se intensifica no século XIX e é uma forma agressiva de demonstrar que o branco,

dominador é mais forte. Jaime Pinsk, em A escravidão no Brasil nos fala que:

O transporte dos escravos, ao qual só no século XIX a “civilização branca” vai destinar poemas cadentes (...) era sem dúvida uma forma de reduzir o negro à sua expressão mínima de humanidade, e prepará-lo para o que vinha (PINSKY, 1988, p.34).

4 Esta personagem teve a mãe morta no parto. Sua madrasta é a sinhá Ana Felipa.

15

forma: foi dado quando ela estava na embarcação e conheceu Tanisha. Esta usava o mesmo

nome em português. O sobrenome (apelido) vem do seu primeiro dono, José Carlos Gama,

quando ainda estava no mercado para ser comprada. Quando lhe foi feita a pergunta sobre qual

era o seu nome, ela disse ser Kehinde. O empregado ficou bravo e neste momento, lembra-se de

que uma companheira de viagem, Tanisha, disse-me que tinha usado o nome de Luísa. Deste

modo, ela passou a ser Luísa Gama:

foi então que me lembrei da fuga do navio antes da chegada do padre, quando eu deveria ter sido batizada, mas não queria quis que soubessem dessa história A Tanisha tinha me contado o nome dado a ela, Luisa, e foi esse que adotei. Para os brancos fiquei sendo Luísa, Luísa Gama, mas sempre me considerei Kehinde (GONÇALVES, 2008, p.72).

Desta forma, na maior parte da narrativa, Kehinde utilizava-se do nome africano,

contudo, em algumas ocasiões tanto no Brasil quanto em África posteriormente, ela usava

“Luisa”, inclusive mudando o apelido de Gama para Andrade.

No espaço da ilha de Itaparica, no engenho, o segundo lugar de Kehinde, no Brasil,

o patriarca mandatário lhe dá a tarefa de acompanhar a sinhazinha Maria Clara, sua única filha.

Ele é casado com a sinhá Ana Felipa, a qual já tentou ter filhos sem êxito. O pai de Maria Clara,

tentando preparar a filha para um bom casamento contrata Fatumbi, um escravo mulçumano

para ensinar a filha a ler e a escrever. No decorrer das aulas, a narradora se sente atraída e

interessada e o professor permite que ela as assista. Assim, a narradora tem a oportunidade de

aprender a ler a escrever.

A trajetória desta personagem é marcada pelas mudanças de lugares. Saindo da ilha

de Itaparica, após a morte do marido, Senhor José Carlos, a Sinhá Ana Felipa, viúva, vende a

fazenda e se muda para São Salvador e compra uma mansão. Ela levou consigo alguns escravos

e dentre eles, Kehinde, a qual se desentende com sua sinhá e esta a coloca para trabalhar como

escrava de ganho. Este tipo de escrava comerciava alguns produtos: doce, comidas como acará,

acarajé etc. No entanto, a maior porcentagem dos ganhos deveria ficar com sua dona (Sinhá

Ana Felipa). Este tipo de imposto era chamado de jornal. A protagonista iniciou o trabalho de

venda na rua com “cookies”, uma espécie de biscoito.

16

O trabalho de Kehinde como escrava de ganho por ser uma atividade de

socialização e pelo fato de compartilharem um mesmo espaço público, favoreceu-lhe uma série

de relações entre os que exerciam a função dela ou não. Isto a ajudou no contato com diferentes

comunidades africanas, afro-descendentes ou brancos, com os quais começou a interagir sobre

diferentes aspectos: negócios, crenças africanas, em geral ligadas ou não a sua etnia Iorubá5

O ser humano no mundo necessita de relações familiares, afetivas e sociais. E a

condição de escravo negava aos negros todos esses direitos que deveriam ser inquestionáveis.

Cada um tem o direito de construir o seu próprio destino, mas isto, no entanto, era negado aos

escravos que em vários momentos da obra lutam por esta liberdade de escolha da própria vida.

No entanto, isto lhes é negado na medida em que os senhores de escravos impedem a eles a

possibilidade de construir uma vida comunitária, unida por língua e crenças. A imposição de

uma língua a outro povo é uma forma de dominação. Tentar destruí-la é aniquilar a identidade

de um povo. Sabe-se que a língua é um instrumento importante de compartilhamento de ideias e

que dá consciência de si e ajuda construir esta identidade, afinal a fala de um povo é uma forte

. Ela

fez muitos amigos. Desde que se separou da amiga sinhazinha, ambas trocavam cartas,

inclusive quando Kehinde voltou à África.

Em UDC, há uma série de relações humanas que se intercalam entre negros e

negros, mestiços e negros e também entre brancos e negros, como é caso da amizade entre a

Sinhazinha e Kehinde. Entre os africanos, muitos se uniam formando uma família (relações de

sexo oposto), que muitas vezes não tinha o consentimento do dono. Em alguns casos, o senhor

separava o casal ou mesmo uma família já construída. Cada um dos membros desta família

escrava seguia para um destino diferente. O interesse não era de que tal família permanecesse

unida, mas sim uma prevalência dos interesses de quem manda.

Desde o início da narrativa, a autora coloca em evidência uma problemática acerca

do processo de destruição da cultura do africano pela separação de famílias. Há de se pensar que

todo ser humano nasce, desenvolve preferências, gostos, tem um nome próprio e uma relação

com o meio que em vive Sua cultura e todos esses aspectos vão se incorporando a esse sujeito

de modo a construir sua identidade individual e comunitária.

5 Os iorubás ou iorubas (em iorubá: Yorùbá), também conhecidos como ou yorubá ou yoruba, são

um dos maiores grupo étnico-linguístico na África Ocidental, composto por 30 milhões de pessoas em toda a região.

17

marca identitária. Sendo assim, a partir do instante que os brancos dilaceraram a identidade dos

negros, proibindo-os de falar as línguas africanas, há uma quebra que não irá mais se

reconstituir, uma vez que, além da condição inferiorizada de escravo em outro lugar, falar outra

língua distanciava-o mais ainda das suas raízes. Já que havia imposição do branco sobre o negro

em vários sentidos, inclusive de obrigá-lo falar o português, mas apesar disso, eles, os negros,

procuravam manter, de algum modo, longe dos brancos, a própria língua. Desta maneira, esta

dissertação procura tratar sobre este aspecto da língua e outros, mostrando como esta ruptura

teve consequências graves para os negros.

. Assim, Kehinde possuía um forte desejo de comprar sua liberdade, bem como a do

filho e de alguns amigos. Juntava todo dinheiro que sobrava de sua função de escrava de ganho,

o qual era pouco. Chegou a contribuir com uma espécie de cooperativa dos negros, cujo

objetivo desta, era, após certo montante empenhado, emprestar dinheiro ao assegurado para

comprar a própria carta de alforria ou a de outrem.

Entretanto, a situação entre ela - Kehinde - e sua dona estava cada vez mais tensa

porque ela percebia que a sinhá Ana Felipa queria “roubar-lhe” o filho, talvez como um modo

de suprir a carência por ter perdido os filhos ao nascer, que é um desejo natural de muitas

mulheres. Neste contexto, porém, a fé da narradora em seus orixás nunca foi esquecida ou

trocada por ela, apesar de aceitar os santos cristãos na aparência. Afinal, o sentimento religioso

da protagonista era tão forte que a sustentava e a animava para se libertar da escravidão. Ela

manteve sempre consigo imagens ou altares dos deuses africanos. Na época em que morava na

fazenda na ilha de Itaparica, costumava colocá-las dentro de um buraco que ficava por baixo da

esteira onde dormia. Ele fez uma espécie de altar para os “ibêjis”. Na cultura africana, a crença

nos deuses fortalecia muito sua vida em sua condição de cativa. Era necessário a ela este alento

fé, quando a narradora se viu diante da dificuldade de comprar sua alforria, uma vez que a sinhá

havia tomado a decisão de ir morar em Portugal. Kehinde resolve fazer um pedido a Oxum,

para que a deusa pudesse ajudá-la a resolver o seu problema. No instante em que se encontrava

com a imagem nas mãos, surge uma cobra que pula em cima dela e, para se defender, ela joga a

imagem contra a serpente. E do orixá surge a solução: de dentro da imagem salta “ouro em pó e

pepitas, e também outras pedras de variadas cores, brilhantes, pequenas, parecendo vidro

18

transparentes” (GONÇALVES, 2008, p.343). O orixá6 é uma espécie de santo do pau oco”, em

cuja cavidade os portugueses levavam ouro e pedras preciosas, após vedarem muito bem a base.

Na obra funciona como um “deus “ex-machina”7

Esta moradia é uma “loja” onde havia basicamente muçurumins

, onde uma ação inesperada de uma

personagem é introduzida para resolver uma situação ou desemaranhar uma trama. Este tipo de

recurso é comum em narrativas em que o enredo apresenta difíceis soluções em dado momento.

Com esta ajuda, do orixá, ela, Kehinde, compra sua alforria e a do filho. Leva-o a

morar consigo, onde já morava uma africana liberta, Claudina. A protagonista começa então a

buscar soluções para comprar a liberdade dos seus amigos mais próximos, Esméria, sua

segunda mãe e companheiros de infância, “Tico e Hilário”, que trabalhavam na distribuição dos

“cookies”. Eles conseguem posteriormente tornarem-se independentes e a protagonista uma

comerciante bem sucedida, acumulando um bom capital no Brasil e depois em África quando se

torna empresária no ramo da construção civil. 8

, dentre eles o

professor da Fazenda, Fatumbi. Eles eram os mais instruídos. Já na “loja” de Manoel Calafate,

onde os muçurumins se reuniam para tratar de assuntos políticos em relação à liberdade dos

negros. Ali surgem as primeiras ideias para a revolta histórica dos malês em Salvador: “Já

estava tudo certo, e a rebelião começaria as quatro da madrugada, do dia vinte e cinco de janeiro

daquele ano, mil oitocentos e trinta e cinco” (GONÇALVES, 2008, p.516).

Pouco antes do início da revolta, os negros foram denunciados e ao invés de

surpreender as forças legais, foram surpreendidos e vencidos. Muitos foram presos e mortos,

entre os muçurumins havia um número considerável de africanos de várias etnias ou nascidos

no Brasil. Kehinde, apesar de participar também da luta armada, escapou de ser morta:

Olhei para os lados e não vi mais os conhecidos, e então fechei os olhos, como tinha feito no caminho de Savalu para Uidá. Os guardas, os mortos, o sangue, os cavalos e até mesmo o barulho sumiram por uns instantes, dentro do que meus olhos não queriam ver (UDC, p.529).

6 O substantivo “orixá” é masculino, porém, em alguns casos, é usado como feminino. 7 Em grego antigo, essa expressão, “deus ex-machina” era usada para mostrar quando um deus era

introduzido em um jogo para resolver uma situação de embaraço. Do grego apò mēchanês theós. 8 Este termo é usado para designar negros mulçumanos.

19

Após o confronto, ela consegue fugir e se esconder em um tipo de “túnel” dentro do

Convento das Mercês. (GONÇALVES, 2008, p.528) A narradora se vale, após passar um bom

tempo no esconderijo, do doutor Jorge, afro-brasileiro, filho do vizinho, um militar aposentado.

Ele a ajuda sair, após vários dias de sofrimento. Além dela, há outros companheiros de luta e

dentre eles, Elesbão, personagem que ficou escondido também no convento junto com Kehinde.

Os primeiros deslocamentos da protagonista foram impostos (África / Brasil; fazenda / São

Salvador) ou por necessidade devido à conveniência dos negócios [escrava de ganho], ou ainda

por escolha [imóvel do amante português], com o envolvimento da revolta, eles acontecem por

questões políticas. A partir daí, os seus deslocamentos vão se ampliando.

Se houve tantas mudanças tanto físicas quanto espaciais de longas distâncias,

obviamente que ocorreram, também, mudanças de casas e regiões, tanto aqui no Brasil quanto

na África. Naquele lugar, após a compra da alforria, Kehinde fica alguns dias numa loja de

muçurumins. Nesta etapa da vida dela, está enamorando-se de Alberto, um comerciante

português, de quem mais tarde, se torna amante e dele tem o segundo filho. O amante, para não

ser deportado, casa-se com uma brasileira bem mais velha do que ele e continua como amante

da protagonista. A esposa toma-lhe a fortuna, uma vez que ele bebe excessivamente e pratica

jogos de azar. Ele se submete à imposição da esposa porque é inseguro.

Após a convivência com o amante e a mudança para o sítio deste próximo de

Salvador. Kehinde inicia um negócio na cidade, uma padaria em sociedade com Alberto,

administrada pelo Fatumbi, seu ex-professor. Após passar por uns tempos difíceis, época em

que os portugueses não estavam sendo aceitos no Brasil, em especial na Bahia, por divergências

políticas, a narradora começa outro negócio: fabricação de charutos, com os quais tem similar

sucesso “aos dos cookies”. Tanto a sociedade na padaria quanto a sociedade com os

muçurumins na fabricação de charutos ocorreram antes da revolução dos malês e depois do

tempo na ilha de Itaparica. Após aquele evento, hospeda-se na casa da mãe de santo - Mãezinha

- na ilha de Itaparica, a qual cultua “eguns e eguguns” africanos9

9 Egun é a morte que volta à terra em forma espiritual e visível aos olhos dos vivos. Em UDC há

uma parte narrada sobre este rituais quando Kehinde via encontrar a personagem Agontimé no Maranhão. Egungun significa ancestral individualizado, aquele que está de novo "vivo"; A aparição dos Eguns é cercada de total mistério, diferente do culto aos Orixás.

.

20

De volta a Salvador, envolve-se, sem querer, na revolta contra a criação do novo

cemitério, a “cemiterada10

A viagem durou vinte e seis dias. Saí de São Salvador a vinte e sete de um mil oitocentos e quarenta e sete e desembarquei em Uidá a vinte e dois de novembro, no mesmo local de onde tinha partido trinta anos antes (...) eu não me lembrava muito bem da África que tinha deixado, portanto não tinha

”. Vai presa e sai com a ajuda novamente do amigo mulato brasileiro,

Doutor Jorge, o mesmo que a livrou do esconderijo depois da rebelião dos muçurumins. Mais

uma vez é obrigada a migrar e deixa o filho com a Isméria - sua segunda mãe, a qual a protegeu

desde que chegou à fazenda do senhor José Carlos – e com uma amiga e o pai do seu segundo

filho, Alberto. O primeiro já havia morrido tragicamente com um profundo corte de face em si

mesmo, brincando com crianças muçurumins.

Kehinde viaja então, para São Luís do Maranhão. Lá se encontra com a mãe de

santo Agontimé, antiga conhecida dela. Neste lugar, a mãe de santo muda seu nome, utilizando

“Maria Mineira Naê”. Ela é responsável - uma espécie de sacerdotiza - pelo assentamento de

vodúns africanos. Desta maneira, a narradora inicia seu aprendizado no intuito de dar

continuidade ao trabalho espiritual, que é uma preparação espiritual para o culto aos vodúns. A

protagonista demora-se lá tempo demais, e quando volta mais uma tragédia a espera, a notícia

da venda do filho que nasceu livre, pelo pai português.

Se as saídas anteriores foram por questões políticas, agora a motivação é outra,

tentar encontrar o filho vendido pelo amante, embora tivesse nascido livre. Nesta busca,

percorre várias cidades em estados diferentes: São Paulo, capital, Campinas-SP. Volta a São

Paulo e lá descobre o local onde o filho, adolescente, esteve e fugiu por descobrir que era livre.

A protagonista decide ir para o Rio de Janeiro, antiga capital onde fica bastante tempo,

procurando em vários lugares, principalmente em mercados de venda de escravos sem nada

descobrir. Envolve-se amorosamente com Piripiri, um preto capoeirista.

Após muito tempo de busca do filho, Kehinde resolve voltar para a África.

Transforma seu dinheiro em bens (folhas de fumo) para serem negociados:

10 Revolta da população contra a inauguração do cemitério, uma vez que os sepultamentos eram

feitos dentro das igrejas e causavam doenças.

21

muitas expectativas em relação ao que encontraria (GONÇALVES, 2008, p. 732).

Nesta viagem, ela conhece Geninha:

Além dos três homens tive também a companhia do Juvenal, um igbo de ibadã, sua mulher, uma crioula chamada Jacinta, e os três filhos, o Tomé, de quatro anos, a Rosinha, de três anos, e a Ifigênia, a quem todos chamavam de Geninha (GONÇALVES, 2008, p. 732).

Esta personagem é uma menina ainda de colo, a qual será sua companheira-filha até

o final da vida e que é também, a pessoa que escreve as memórias da protagonista, uma vez que

Kehinde fica cega no final da vida. A criança é uma peça fundamental no enredo e quem

escreve toda a história “desculpe a pausa, mas preciso dizer que neste ponto minha

acompanhante me interrompe e pergunta se é somente isso que tenho a dizer sobre a passagem

por São Paulo” (GONÇALVES, 2008, p.718).

Erradicada novamente na África, torna-se uma importante empresária

primeiramente como negociante de armas vendidas ao rei Guezo11

Retomando a questão religiosa, este trabalho incluirá na pesquisa as formas

conflitantes que se deram entre negros e brancos, no que se refere à fé de crenças como

juntamente com o seu

marido Jhon, o qual ela conhece na primeira viagem de retorno ao continente africano – depois

como construtora de casas brasileiras em Uidá e Lagos. Já no fim da vida, ela retorna pela

segunda vez para o Brasíl em companhia de Geninha. Porém, a protagonista morre antes dentro

do navio antes de pisar novamente em terras brasileiras.

Na obra, os brancos não permitiam que os negros praticassem suas religiões,

afirmando que eram forças malignas. A personagem se rebela desde o início, haja vista que ao

chegar o Brasil, se nega a ser batizada e pula dentro do mar. Todo negro ao chegar às terras

brasileiras, deveriam ser batizados e receber um nome de “branco”. Mais um modo de impor a

cultura do colonizador.

11 Um importante rei tribal.

22

doutrina. Maria da Consolação André explica como seu deu a construção de subjetividade em

afro-brasileiros: “Em relação às religiões da população negra, com raízes africanas, temos o

conhecimento de que as mesmas eram alvo de proibições, no período escravagista por serem

considerados primitivas, magia, animismo infantil (ANDRÉ, 2008, p.90).

A dissertação está estruturada em três capítulos e além desta introdução e das

considerações finais, serão discutidos aspectos que estão relacionados à cultura, a identidade

africana da personagem, bem como outros aspectos que vão sendo incorporados a partir da sua

vinda para o Brasil, que são novos elementos identitários criados por força da escravidão.

O primeiro capítulo, o da fundamentação teórica, trata dos textos da África negra e

do Brasil. São obras de alta relevância para a compreensão da trajetória da protagonista e por

extensão da própria história da escravidão desde a saída de portos africanos até a chegada a

portos brasileiros, em especial em São Salvador. Tenta-se, com esta perspectiva histórica,

elucidar na ficção os processos de captura, venda e compras nos dois continentes e a vida

escrava no Brasil.

Outro aspecto teórico deste capítulo é sobre o construto estrutural do romance, a

metaficção historiográfica. É ela que nos leva a destrinchar melhor não apenas a posição da

autora como afro-brasileira, como a da personagem principal, Kehinde, símbolo de uma raça,

ambos sujeitos “ex-cêntricos”, em uma tradição canônica de nossa literatura.

No segundo capítulo, irei demonstrar a força dos orixás, aliado ao sentimento

atávico contra os mecanismos realizados pelos dominadores para aniquiliar a identidade dos

negros e consequentemente de sua cultura. Procura substituir os nomes africanos por cristãos;

impor-lhes o cristianismo; separar famílias etc. E, ainda, como os negros conseguem burlar, em

parte, a tentativa de destruição da identidade por parte dos brancos.

No terceiro capítulo, procuro sintetizar a saga da protagonista em busca do filho

vendido pelo pai no Brasil. As frustrações que acontecem em cada lugar ao tentar encontrá-lo,

apesar do amigo influente como advogado que a ajuda até o final direto ou indiretamente. Será

relatado o seu desencanto e retorno à África, onde procura reconstruir sua vida com um

companheiro de viagem e com o qual tem dois filhos. Procura-se também mostrar os elos vitais

que a fortalecem durante a maior parte ou em toda a sua saga: os orixás, a busca do filho e os

amigos do Brasil.

23

CAPÍTULO I

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Yayá Massemba, letra deRoberto Mendes e Capinam

Que noite mais funda calunga No porão de um navio negreiro

Que viagem mais longa candonga Ouvindo o batuque das ondas

Compasso de um coração de pássaro No fundo do cativeiro

Vozes-mulheres, Conceição Evaristo

A voz da minha bisavó ecoou criança

nos porões do navio. Ecoou lamentos

de uma infância perdida. A voz de minha avó

ecoou obediência aos brancos-donos de tudo.

A voz de minha mãe ecoou baixinho revolta

no fundo das cozinhas alheias debaixo das trouxas

roupagens sujas dos brancos pelo caminho empoeirado

rumo à favela. A minha voz ainda

ecoa versos perplexos com rimas de sangue

e fome (...)

24

A África é um continente importante como outro qualquer. Quando nos referimos a

ele, o pensamento remete a uma série de elementos: raça e cultura negra, bem como a outro

fator crucialmente importante que fez parte da história da humanidade, por ter sido uma

tragédia: a escravidão, fato que perdurou até o século XIX. Na história do Brasil, a discussão

sobre a influência da cultura negra em nosso país não foi um assunto de destaque até

recentemente porque sempre houve e há forte preconceito por parte das pessoas brancas; tal

discussão era tida como periférica e não havia grande interesse por parte da sociedade, em trazer

à luz de discussão, questões secundárias.

O assunto, sobre a questão do negro, só foi levado às escolas públicas e privadas de

ensino fundamental e médio há pouco tempo. O Ministério da Educação - MEC criou

disciplinas que tratavam sobre cultura africana como parte da nossa.

A escravidão foi concebida principalmente pela atuação dos portugueses, dos quais

partem os primeiros contatos entre eles e os africanos. Enquanto a Europa achava-se em crise,

Portugal estava organizando um governo forte e unido ao poder da burguesia mercantilista. A

centralização política e monárquica de Portugal se conjugava a outros fatores, como por

exemplo, o desejo do pioneirismo no processo de expansão marítima. Após Cristovão Colombo

haver chegado à América. O interesse lusitano em desbravar o mundo e chegar a outros lugares

caracterizava um povo emanado de fortes interesses comerciais.

O pesquisador Jean-Marie Lambert em História da África negra mostra como os

portugueses lançaram ao mar em circunavegações e chegaram até a África. Embora a obra seja

apenas um olhar parcial e não definitivo sobre o assunto, mesmo assim nos ajuda a

compreender uma parte da história da África negra. A partir daí, deixa um pouco mais claras as

relações entre portugueses e africanos, as quais vão refletir as consequências políticas, sociais,

econômicas entre eles. Além disso, mostra, ainda, uma incursão em regiões como Congo,

Sudão, Gana e Zimbábue, relatando os fatos do misterioso mundo africano.

O navegador Diogo Cão foi um dos primeiros a chegar até continente negro:

Após ter relatado a Portugal a descoberta de tal rio, houve forte interesse por parte do rei português que acreditava que tão grande estuário poderia ser uma via de acesso para o interior e, quem sabe, para novas riquezas (LAMBERT, 2001, p.19).

O primeiro contato entre nativos e exploradores foi amigável, apesar da dificuldade

de comunicação, aqueles conseguiram explicar que pertenciam à não do Congo, governada por

25

um monarca poderoso, cuja capital se encontra a montante “Relatou ter alcançado a foz de um

rio tão poderoso que suas águas lamacentas chegavam a escurecer o oceano várias milhas

adentro. (LAMBERT, 2001, p.19).

O contato entre portugueses e africanos deu-se primeiramente na região do Congo,

Nesta região os portugueses encontraram um chefe africano “sentado em seu trono de marfim,

cercado por conselheiros, guarda pretoriana e todo aparato digno de um grande monarca. O

encontro foi um sucesso (...) (LAMBERT, 2001, p.19). Tem início então, o incursionar dos

lusos pela África, visando ao comércio de interesses mútuos do que foi ganhando mutações do

que era comerciado entre eles: de objetos passou para escravos. Posteriormente, entre 1850 e

1900, os amigos (ou os pseudosamigos), tornaram-se dominadores, procurando colonizar

regiões africanas“ (...) quando a Europa sentiu a necessidade de dominação territorial para

ajustar as periferias do projeto” (LAMBERT, 2001, pp.19-20). Além da região do Congo,

houve interesses em outras regiões, como o Golfo do Guiné e o Daomé (atual Reino do Benin):

Ao chegar no Benin, em 1505, os portugueses se defrontaram com a poderosa capital de um grande império. Embora tenham permanecido aí durante todo o século, não deixaram muita informação a respeito. (LAMBERT, 2001, p.94).

Obviamente, para que se concretizasse o projeto da escravidão, havia a necessidade

primeiramente da captura e depois do translado até o local de destino.

A comunicação entre portugueses e africanos, já mencionado, não foi algo fácil:

tratava-se de culturas e línguas diferentes. Todavia, a sociedade africana mantinha a preservação

da memória dos antepassados e a reverência à figura de um patriarca (rei). Com efeito, estes

últimos aspectos aproximam-se dos sistemas político e social de Portugal que tinham também o

patriarcalismo e a monarquia. Ambos, cada um a seu modo, buscavam angariarem poderes

políticos e econômicos.

Os portugueses levavam vantagens sobre os africanos porque, entre estes, havia

muitas lutas, ou seja, tribo contra tribo. Isto sem se falar no baixo nível civilizatório em relação

aos exploradores. Viviam os negros em grande parte, e um estado de selvageria. Tudo isso

favorecia a escravidão negra, que se inicia com a captura dos mais fracos, isto é, os vencidos

das guerras tribais pelos que dispunham de maior poder. Eram vendidos nos portos de atracação

26

de navios estrangeiros que transportavam “armas, fumo, e outros produtos, os quais no caso dos

navios vindos do Brasil eram trocados pelos negros escravizados. O translado como dito antes,

era feito em navios negreiros, os tumbeiros, em condições desumanas.

No processo de escravização de negros por brancos, foi utilizado o aspecto religioso

como escudo (máscara) para encobrir ou disfarçar os verdadeiros interesses dos portugueses.

Davam, assim, a impressão de uma preocupação sócio-religiosa com o intuito de livrá-los da

selvageria e do paganismo. Mas na verdade mais uma forma de dominação. Isto sem falar da

língua que lhes foi imposta. Tudo isto mais além de reificá-los, procurava destruir-lhes a

identidade étnica. Perduraram estes processos até a abolição em 1888.

Todos estes procedimentos de dominação e outros, a autora Ana Maria Gonçalves

de UDC procurou reconstruir em um panorâmico painel fictício, historiograficamente marcado

por grande parte da história oficial do Brasil e com alusões à de outros lugares. Desse modo a

literatura retrabalha pela ficção criativa aquilo que se sabe da realidade dos negros, mas

transformado por um trabalho estético que nos dá uma perspectiva diferente do real conhecido.

A história dos negros vindos da África para terras brasileiras, bem como para outros lugares,

está ligada a um aspecto econômico e político citado antes. Apesar do caráter de dominados os

negros deixaram marcas indeléveis na cultura brasileira, sem se falar da miscigenação.

Para a compreensão da perspectiva histórica, que tece este primeiro capítulo,

principalmente a obra História da África negra de Jean-Marie Lambert foi de grande valia com

projeções e alusões ao longo do corpus, uma vez que permite-nos uma compreensão da situação

do negro em algumas regiões da África: guerras tribais, capturas, escravização e venda ou troca,

bem como translados para outras regiões, a de Jaime Pinsky, A escravidão no Brasil nos mostra

os problemas dos escravos trazidos de regiões da África para o Brasil.

Começa o autor de A escravidão no Brasil destacando a tentativa dos portugueses

de escravizar os índios, pois só precisavam de mão de obra para a lavoura e para trabalhos

domésticos, enquanto durou o interesse dos índios, o que não foi muito tempo. Passaram a

conduzir de modo indolente. Além disso, surgiram os opositores à escravidão dos índios, que

teve o seu mais célebre defensor: o Padre Antônio Vieira, o qual defendia apenas os índios e

não os negros, por quê? a resposta está no conluio entre a igreja e os interesses da Coroa e dos

traficantes

Enquanto a captura do índio era quase um negócio interno da colônia (...), favorecendo a sonegação de impostos à coroa, o comércio ultramarino trazia

27

excelentes dividendos ao governo, quanto aos comerciantes. Assim, o governo e jesuítas apoiavam indiretamente os traficantes, estabelecendo limitações à escravidão indígena em nome de Deus. Em nome de que, por outro lado, aceitavam a escravidão negra? (PINSKY, 2006, PP. 21-22).

E também nos “excelentes dividendos, tanto para o governo, quanto para os

comerciantes”. Dito de outro modo, esqueceram Deus e Cristo e entronizaram o deus do

mundo, o dinheiro. É em nome dele que se esqueceram de que o negro era também criação

humana como os índios do Deus cristão.

A escravidão de povos da África data, segundo Pinsky, de 1441, quando capturaram

“meia dúzia de azenegues na Costa do Saara, na África” (PINSKY, 2006, p.13). A partir de

então a captura de nativos pelos portugueses foi realizada nos primeiros séculos de modo

aleatório e aliada à busca. Muitas caravelas partiam de Portugal com único propósito de

aprisionar escravos. Com o passar do tempo, “as expedições ocasionais dariam lugar a uma

organização sofisticada com a criação de um forte português em uma ilha ao sul de Cabo

Branco” (PINSKY, 2006, p.14). E a partir destas expedições mais organizadas foi que os

portugueses abriram o seu mercado escravista para outros países, inclusive para as próprias

ilhas. É neste momento que o Brasil, com o fracasso da escravidão dos índios, torna-se um

mercado promissor. É neste estágio de organização do comércio de escravos que se dá o início

do livro em leitura. Nesta fase, como nos dizem Lambert e Pinsky, os lusitanos passam a

compradores de escravos, comerciantes como aparece também no corpus.

Os negros trazidos vinham como força de trabalho para suprir a carência de uma

estrutura que estava se organizando. A lavoura “inserida no sistema mercantilista da época, se

caracterizava por produzir gêneros destinados ao mercado mundial” (PINSKY, 2006, p.23).

Esta, a lavoura, tinha comando centralizador e unificado representado na família de proprietário,

possuidores de terras e escravos e sob a direção dele. E em torno do senhor estavam feitores,

uma espécie de polícia em relação aos escravos, e os agregados.

A partir da fase mais organizada do comércio escravista e o aumento progressivo do

contato com as Américas, e em especial com o Brasil, pela esperteza os portugueses passaram a

trocar bugigangas, tabaco, açúcar, aguardente, e posteriormente armas em relação ao recebido: a

mão de obra escrava. Este comércio se dava em geral nas cidades portuárias como Luanda,

Benguela, Angola e outras cidades citada no livro. A captura de escravo era feita nas regiões do

interior de maneira violenta como os vencidos tribais. Era uma rede muito complexa e era para

28

os traficantes um comércio de mercadorias. Aqui os dois autores, Lambert e Pinsky, com

algumas diferenças, se coadunam com o que se lê em UDC, colocando-se de maneira mais forte

com os feitos dramáticos que envolvem a captura e o translado dos escravos.

Após a captura, eram ‘guardados’ em depósitos à espera do navio negreiro, também

chamado de tumbeiro por transportar o negro no porão deste, que era fechado e escuro como

uma tumba, e que os levavam para os seus destinos. Naquele espaço foram reunidos os cativos

de diferentes tribos com línguas e religiões diferentes. Havia nisso, um cálculo de capturadores,

compradores que procuravam evitar que os aprisionados interagissem entre si e organizassem

rebeliões. Tal estratégia foi mantida em relação ao envio deles. Isto funcionou em curto espaço

de tempo, mas a convivência mais longa e em espaço e tempo mais detalhadamente vemos na

obra UDC em relação à revolta dos malês na década de 1830, na Bahia, que agregou diferentes

tribos africanas e afro-brasileiros.

A travessia África-Brasil como nos relata Pinsky era desumana. Amontoavam um

número exorbitante de homens (em maior quantidade), mulheres e crianças em um porão

infecto do navio, cujos companheiros eram: “a fome, a sujeira, o desconforto, e a morte”

(PINSK, 2006, p. 37). Ali faziam suas necessidades, adoeciam/morriam e suicidavam-se. E o

tumulo dos mortos era o fundo do mar. Pairava no ambiente um mau cheiro, um calor

insuportável e consequentemente geravam doenças. (PINSK, 2006, p. 37). Ainda no primeiro

capítulo de UDC pode-se constatar mais uma vez esta metaficcionalidade historiográfica. Em

parte dele surge a travessia com todos estes aspectos negativos e envolve a perda da única

família da protagonista-narradora, a avó e a irmã gêmea. Mortas provavelmente de inanição e

doença.

O desembarque dos capturados dava-se tão logo chegasse o navio em um dos portos

de destino no Nordeste ou Rio de Janeiro. Eram levados para barracões (mercados) para as

transações comerciais. Como registra Pinsky: “o negro era tratado como mercadoria, não

havendo preocupação alguma em se respeitar sua natureza humana (...); pais e filhos eram

separados sem o menor problema por compradores que não tinham, eventualmente interesse

pela família inteira” (PINSK, 2006, pp. 44-45).

Quando chegavam ao destino eram-lhes atribuídas as tarefas sem liberdade de

escolha, apenas deveria obedecer. O destino era variado, “agroindústria canavieira, na

agricultura canavieira, agrária, atividades domésticas” (PINSK, 2006, p. 47). A jornada de

trabalho era de quinze a dezoito horas, iniciada na madrugada. Era uma maneira que os

29

senhores de escravos tinham também para mantê-los ocupados e cansados para que não

tivessem tempo para maquinar revoltas. Engano, porque desde a chegada ao solo brasileiro no

século XVI, nunca desistiram de lutar pela própria liberdade. Mostram isto, as fugas individuais

ou coletivas, os quilombos ou agressões aos patrões, embora a literatura do século XIX, como

visto antes, camuflassem esta realidade. Não menos desumano, era o alimento frugal que

recebiam sem a liberdade de complementá-lo com frutas ou outra coisa. Compreendia três

horários: às dez da manhã, uma hora da tarde e a noite.

Este dois livros, História da África Negra e A escravidão no Brasil, permitem-nos

confirmar a tecitura metaficcional historiográfica da obra em leitura. Além deles são úteis sobre

este aspecto historiográfico, O ser negro de Maria Consolação André, que focaliza a

desconstrução das relações humanas e sociais do negro; Dois atlânticos, de Sérgio Costa, trata

de ideias sobre etnia e racismo; já a obra O negro no Brasil, de Júlio Chiavenato, escreve sobre

a condição do negro no Brasil desde a época da colonização e outros. Se as obras elencadas nos

ajudam no que tange ao aspecto histórico em relação, principalmente, ao primeiro capítulo e

com propriedade na obra toda, o livro de Linda Hutcheon Poética do pós-modernismo nos

favorece a compreensão do corpus quanto a sua estruturação no que se refere a quem fala no

romance, bem como em relação ao elemento estruturante da obra. No primeiro caso, quem fala

no romance, vamos encontrar um sujeito “o ex-cêntrico, “off-centro”; inevitavelmente

identificado com o centro ao qual aspira, mas que lhe é negado” (HUTCHEON, 1987, p.88). No

texto abordado pela pesquisa tem-se este sujeito “ex-cêntrico”, representado pela protagonista e

narradora, Kehinde, escrava e negra. Toda a trajetória da personagem é em busca de “o centro

ao qual aspirar”. Ela, a protagonista-narradora aprende a ler quando criança, ganha dinheiro e

compra o bem maior que é a liberdade, chave que a conduzirá para outros bens, principalmente

materiais: dinheiro, negócio próprio etc, embora não consiga encontrar o filho vendido. Esta

perda é o “LEITMOTIV” deste romance carta.

A obra de Linda Hutcheon também nos faz compreender que a presença de

personagens marginalizadas quanto à raça, sexo, preferências sexuais e outros, “como

protagonistas em obras que se tornaram possíveis a partir da década de 1960 com o movimento

de escritores negros americanos. Surgiram entre os romances autobiográficos escritos por

homens negros americanos (...)”. E “as mulheres negras foram auxiliadas pela ascensão do

movimento feminista” (HUTCHEON, 1987, p.90).

30

Aqui no Brasil, apesar de manifestações esporádicas de escritores negros em

diferentes épocas, a literatura feita por negros ganha força e evidência a partir da década de

1980, tanto em prosa quanto em versos como destaco nesta dissertação, a obra Um defeito de

cor por trazer uma perspectiva transatlântica de história de escravidão no Brasil.

Tal perspectiva nos conduz para o segundo aspecto, o estruturante da obra, a

metaficção historiográfica. Esta orientação nos é dada não só pela leitura do corpus como

também pela introdução à “bibliografia” colocada no final do livro, quando a autora escreve:

“este é uma obra que mistura ficção e realidade”. Para informações mais exatas e completas

sobre os temas, ela sugere a leitura de várias obras dominantes, de histórias sobre negros no

Brasil e em menor número, dele negro, em África” (HUTCHEON, 1987, 149).

Para falar sobre a metaficção historiográfica, Linda Hutcheon traça um paralelo

entre esta e o romance histórico de longa tradição, ou seja, o romance de hoje, pós-moderno e o

do passado. Mostra que “a metaficção historiográfica procura desmarginalizar o literário por

meio de confronto com o histórico, e o faz tanto em termos temáticos como formais”

(HUTCHEON, 1987, p.145). É isto que se observa em UDC, quando literário, os

procedimentos estético ficcionais (personagem- narradora, tempo e espaços, objetivos etc) se

imbricam ao histórico, formando um universo diegético. Dentro desta visão como se observa:

A metaficação historiográfica adota uma ideologia pós-moderna de pluralidade e reconhecida diferença; o “tipo” tem poucas funções, exceto como algo a ser atacado com ironia. Não existe nenhuma noção de universalidade cultural. Em sua reação a história pública ou privada, o protagonista de um romance pós-moderno (....) é declaradamente específico, individual, condicionado cultural e familiarmente (HUTCHEON, 1987, p.151).

Esta “ideologia pós-moderna de pluralidade e reconhecimento de diferenças” se faz

presente no corpus, na medida em que a autora escolhe como assento uma problemática que é

reconhecidamente marcada pela diferença cultural, étnica e religiosa, a escravidão no Brasil em

uma perspectiva panorâmica. Outro aspecto marcante dentro desta metaficção de Ana Maria

Gonçalves é o “ex-cêntrico”, figura periférica, o negro, na histórica ficcional brasileira por

muito tempo e que no texto em leitura ganha o estatuto de protagonista, “individual

condicionando cultural e familiarmente” como se observa na personagem-narradora, Kehinde,

31

que ao longo da narrativa mantém os liames de sua cultural pela crença e fé nos orixás e dos

familiares pela lembrança da primeira família morta e da nova criada pelas circunstâncias da

escravidão.

Além disso, o teórico, citando Kraft, faz-nos compreender que nesta trama

ideológica, os personagens descobrem e fazem suas próprias histórias, “numa tentativa de

impedir que eles mesmos sejam as vítimas passivas das tramas comerciais ou políticos dos

outros”. (HUTCHEON, 197, p.159). Kehinde é esta personagem que reconhece a própria

situação de escrava e procura reverter isto por meio do seu querer, com consciência e

reconhecimento da situação de escrava. Pode e faz na medida em que cria condições para fazer

frente “às tramas comerciais e políticas” dos senhores (brancos). Assim, a autora de Poética do

pós-modernismo nos leva a “perceber que nenhuma pesquisa sobre o passado está livre das

condições socioeconômicas, políticas e culturais” (HUTCHEON, 1987, p.159).

Para que se possa tratar desse sujeito “ex-cêntrico” como protagonista da obra, não

se pode esquecer da relação da autora com a heroína, para isto são levadas em contas as obras

Questões de estética e literatura e Estética da criação verbal, ambas de Mikhail Bakthin, com o

auxílio delas, será possível esclarecer melhor quem fala no romance e a ideologia que encarna.

Nos diz Bakhtin que:

A relação do autor com o herói, tal como se escreve a sua arquitetônica estável e em sua dinâmica viva, deve ser compreendida tanto sob o ângulo do principio básico a que obedece, quanto sob o ângulo das particularidades individuais que ela reveste neste ou naquele autor, nesta ou naquela obra (Estética da criação verbal, BAKTHIN, 2006, p.25).

Partindo desta perspectiva, observa-se que esta “relação do autor com o herói”

dava-se numa via indireta, ou seja, era sempre a voz de outrem, principalmente antes da pós-

modernidade, quando se tratava de personagens “ex-cêntricos” - negro - pobre, homossexual –

quase sempre ocupam um papel secundário porque o autor, o ideólogo era predominantemente

o homem branco. É só com surgimento:

de grupo anteriormente “silenciosos definidos por diferença de raça, sexo, preferências sexuais, identidade étnica, status pátrio e classe. Nas décadas de 1970 e 1980 houve registro cada vez mais rápido e completo desses mesmos

32

“ex-cêntricos” no discurso e na prática artística, pois os outros (fala), hetero, euro e etnocentrismo foram intensamente desafiados (HUTCHEON, 1987, p.89).

Desse modo, o centro se desloca para as margens e o sujeito marginalizado pode

aspirar àquilo “o qual aspira” mas que lhe é negado”. É o que se observa sobre dois ângulos:

tanto no do sujeito criador como no do objeto criado. No que tange ao primeiro ângulo, a

criadora é uma afro-brasileira “que abandonou a publicidade para dedicar-se à literatura”

(orelha do romance em leitura) e a personagem central é uma mulher negra de origem africana.

Por meio dela, ao autora concretiza sua metaficção historiográfica e, ao mesmo tempo, coloca

em evidência a sua ideologia duplamente a favor dos “ex-cêntricos”: sujeito criado e objeto.

Dito de outro modo (HUTCHEON, 1987, p.10).

Todos os povos têm seus mitos desde as comunidades reais primitivas até as menos

remotas e civilizadas no tempo e no espaço. O mito, em geral, compreende um rito e uma

religião. Comecemos por compreender o conceito de mito. Como nos assevera Mircea Eliade

em Aspectos do mito, não existe uma definição que seja unanimemente por todos os estudiosos.

Afirma-nos o autor que: O mito é uma realidade cultural extremamente complexa (...): conta uma história sagrada e relata um acontecimento que teve lugar no tempo primordial, o tempo fabuloso dos “começos”. Noutros termos, o mito conta como graças aos feitos de seres sobrenaturais, uma realidade passou a existir, quer seja a realidade total, os cosmos, quer apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano (...). Os mitos revelam, pois, a sua actividade criadora a sacralidade (ou, simplesmente, a “sobrenaturalidade”) de suas obras (ELIADE, 1989, pp.12-13).

O mito é em qualquer tempo uma representação coletiva transmitida de geração em

geração. É, portanto a palavra “revelada”, o dito. Citando Maurice Lunhardt, como afirma

Junito de Souza Brandão em Mitologia grega: “(...) mito é a palavra, a imagem, o gesto, que

circunscreve o acontecimento no coração do homem, emotivo como uma criança, antes de

fixar-se como narrativa” (BRANDÃO, 1994, p.36).

O mito significa, ainda, no conceito de Jung, a conscientização dos arquétipos,

“modelos primitivos, ideias inatas”, ou seja, conteúdo do mito - do inconsciente coletivo.

33

Aqueles formam “um elo entre o consciente e o inconsciente coletivo” (BRANDÃO, 1994,

p.37). Estes arquétipos tornam a forma de imagens, símbolos. Dentro deste aspecto requer um

rito. Por meio do rito, diz-nos Brandão:

O homem se incorpora ao mito, beneficiando-se de todas as forças e energias que possam nas origens. A ação ritual realiza no imediato uma transcendência vivida. O rito torna, nesse caso, “sentido de uma ação essencial e primordial através da referência que se estabelece do profano ao sagrado”. Em resumo, é a práxis do mito. É o mito em ação. O mito rememora e comemora (BRANDÃO, 1994, p.39).

O rito pode ou não exigir uma religião.

A mitologia africana, como uma cultura africana, figurada na obra, mostra essa

transmissão oral de geração em geração, comum a todas as sociedades não letradas. É o

movimento das “ideias inatas”, ou seja, “do conteúdo do inconsciente coletivo”.

Estas “ideias” surgem como “mitologemas” isto é, “a soma dos elementos antigos

da tradição” (BRANDÃO, 1994, p.38) que na obra, pode-se considerar o conjunto dos orixás12

12 Orixás “na tradição iorubana, cada uma das entidades sobrenaturais, forças das naturezas emanadas

de Olurum ou Olofina que guiam a consciência dos seres vivos e protegem as atividades de manutenção da comunidade”. Cito alguns dos orixás considerados benévolos e protetores que são encontram na obra e no livro consultado: Egungum (árvore), egunguns (espírito dos mortos). Exu, Ibêjis, Iemanjá, Oguns, Oxum (LOPES, Nei, Enciclopédia brasileira da diáspora africana. São Paulo: Selo negro, 2004).

como suas mais diversas funções. E cada orixá de “per si” constitui o “mitema”,

correspondendo a cada um deles, como será desenvolvido no próximo capítulo.

Estas são as essenciais linhas mestras da obra. Ao meu ver, a principal é o aspecto

da metaficção historiográfica, seguida de personagens “ex-cêntricos” e finalmente a mitologia

africana. Todos estes aspectos não excluem, mas incluem a complexa rede de subtemas que

constituem a tessitura da obra. E como consta no corpus, o simbolismo está na mitologia

africana, nas imagens dos orixás e outros originados pela trama narratológica, como o fio de

sangue oriundas das mortes da mãe e do irmão da protagonista, cujo filete passara a simbolizar

tragédia, desgraça.

34

Desta forma, UDC, esta narrativa nos mostra, por meio do viés historiográfico que

o mito é um elemento presente no cotidiano do povo africano. Amauri Rodrigues da Silva, em

sua obra Presença e silêncio: da colônia à pós-modernidade, nos fala que: “Outro importante

esclarecimento trazido por Um defeito de cor trata-se de um dos inúmeros mitos que cercam a

vida dos escravos, em particular, dos negros, em geral, no que diz respeito a uma pseudofalta de

amor próprio que o caracteriza” (SILVA, 2010, p.298).

35

CAPÍTULO II

A FORÇA DOS ORIXÁS: UMA MARCA IDENTITÁRIA

Canto de Oxum Maria Bethânia

Yèyé e yèyé s'oròodò, yèyé o yèyé s'oròodò Olóomi ayé s'óromon fée s'oròodò

Oxum era rainha,

Na mão direita tinha O seu espelho onde vivia á se mirar

Quanto nome tem a Rainha do Mar? Quanto nome tem a Rainha do Mar?

Dandalunda, Janaína, Marabô, Princesa de Aiocá,

Inaê, Sereia, Mucunã, Maria, Dona Iemanjá.

(...) O que ela gosta? O que ela adora?

Perfume, Flor, espelho e pente

Toda sorte de presente Pra ela se enfeitar.

Como se saúda a Rainha do Mar? Como se saúda a Rainha do Mar?

Alodê, Odofiaba, Minha-mãe, Mãe-d'água,

Odoyá! (...)

Quem é que já viu a Rainha do Mar? Pescador e marinheiro

que escuta a sereia cantar. É com povo que é praieiro que Dona Iemanjá

quer se casar.

36

A identidade e a cultura dos negros africanos, fora da África, foram mantidas a

culto de grandes sacrifícios e artimanhas principalmente por causa do processo escravista, com

o intuito de dominá-los. Procurava destruir neles as marcas identitárias como nome, religião,

língua e outros. Isto tudo sem que se esqueça do estigma da cor.

A resistência do negro em defesa de sua identidade, único bem que lhe restava em

países estranhos, foi sentida pelos dominadores ao longo do período de escravidão. A força

estava em crenças e sentimentos atávicos que os ligava ao continente negro, embora

pertencendo a comunidades diversas em suas próprias crenças ou mesmo sem um parentesco

consanguíneo, como é o caso da protagonista Kehinde na obra UDC em leitura. Conseguiam se

aliar em defesa de seus princípios e em oposição ao “inimigo” comum, o senhor.

Havia então, por parte dos negros, como em qualquer outra cultura, um sentimento

de pertencimento de um lugar. Esta “vontade” circunstancial são sinais que se carregam e se

manifestam independente de onde se esteja. A materialidade “identitas” (do latim identidade)

são aspectos de “continuidade e descontinuidade” que, segundo Maria Consolação André em O

ser negro “surgem durante o desenvolvimento humano e são causadores/motivadoras dos

redirecionamentos que ocorrem no processo de construção da identidade” (ANDRÉ, 2008, p.

95). Porém, a manutenção desta identidade foi um embate quando os brancos os levaram para

outros lugares, escravizados pelo fato de virem a ser dominados e haver um choque entre a

cultura desses e daqueles.

Nesta luta mantiveram na clandestinidade, os nomes a língua, a crença nos orixás e

outros costumes, dilacerando a prepotência dos senhores.

Dificilmente o dominador escapa da influência do dominado. Este age, às vezes, de

modo sutil e lento ao longo dos séculos, como é caso da cultura brasileira. Ela é procedente,

como se sabe, da cultura portuguesa seu primeiro e principal esteio e depois enriquecida pelas

culturas indígenas e africanas. A influência da última foi maior e mais prolongada devido aos

séculos de cativeiro e a uma convivência mais próxima dos brancos, não só no trabalho do

campo, mas principalmente como pajens, mães de leite, mucamas etc. Estas duas culturas

estranhas em relação à primeira deixaram traços na língua com vários vocábulos, na culinária,

na música, e em outros aspectos. Tudo isto sem que se esqueça da miscigenação, gerando uma

tez diferente em muitos brasileiros, como quis mostrar Macedo, no século XIX, como sua

personagem a Moreninha. Contudo, tanto esta contribuição cultural quanto étnica, em geral,

forçada nada é ou quase nada significou nos anos de escravidão porque, desde o início, quando

37

foram arrancados de sua terra para trabalhar nas plantações e casas dos senhores, a preocupação

tenaz destes era destruir-lhes a identidade e para isso valeram-se de vários meios, como será

visto mais claramente à frente.

A retaliação desses valores africanos figura na obra, UDC, em que a autora

representa o sujeito negro aparentemente submisso tanto durante a escravidão quanto depois.

Esta atitude “passiva” foi conseguida a custo de agressões físicas e psíquicas: açoites,

proibições da língua materna, dos ritos e das venerações aos orixás (em solo brasileiro). Nesta

dissertação, a personagem central é Kehinde. Ela é vista como um protótipo de resistência ao

aniquilamento da identidade africana adaptando-se aos valores do branco quando lhe era

conveniente.

Dito de outro modo, ela, a protagonista, viveu numa dualidade consciente: um

pertencimento ao lugar de origem África, crenças, costumes, paralela à incorporação dos

costumes brasileiros, a língua e a religião cristã dos colonizadores, a partir do momento da

chegada à Bahia e depois, que foram impostos aos negros como forma de denegação dos

valores do outro. Houve uma reação por parte dos negros, como confirma Maria Salete

Joaquim:

A religião foi a primeira forma de resistência dos escravos, e a África forneceu elementos que vieram contribuir às necessidades do Novo Mundo, criando assim estilos de vida do negro nas Américas (JOAQUIM, 2001, p.26).

Neste contexto de resistência, a narrativa de Gonçalves realça um enorme universo

simbólico. Os símbolos são referências e servem para enfatizar a cultura de um povo. A cultura

africana foi vista como selvagem naquilo que não interessava aos brancos, como costumes,

folguedos, religiões etc. E proibiram, assim, os escravos de “exercerem” suas crenças. Os

símbolos cultuados por eles foram ameaçados constantemente, pois os senhores afirmavam que

as imagens africanas eram coisas demoníacas, mas foi, obviamente, inegável, a influência

cultural deles entre os luso-brasileiros. Um dos pontos riquissimamente embutido na narrativa

UDC, oriundo da língua, foram os provérbios africanos que aparecem na introdução de cada

capítulo e que servem – tais frases - como um ícone de caráter popular de um povo.

Estes “rifões” servem principalmente para mostrar a sabedoria e instrução a um

povo, bem como usos, costumes e valores “universamente” compreendidos. No capítulo um, há

38

o provérbio “a borboleta que esbarra em espinhos rasga as próprias asas”. No Dicionário de

símbolos, de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant há a seguinte explicação para “borboleta”: “(...)

um símbolo de ligeireza e inconstância (...). É assim símbolo do fogo ctoniano oculto, ligado à

noção de sacrifício, de morte e de ressurreição” (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2006, p.

139).

O símbolo da borboleta, inicialmente na obra, nos faz pensar sobre os

acontecimentos que estão por vir e funciona como um ícone na narrativa: prenúncio da morte do

irmão e da mãe de Kehinde, que são acontecimentos marcantes para a protagonista, vividos no

início da narrativa e que mudam rapidamente. Logo após a morte, a avô e as netas seguem para

Uidá. Em seguida, há captura das irmãs gêmeas.

Estes provérbios são símbolos culturais, que enriquecem substancialmente a obra

UDC. Por exemplo, no capítulo quatro, “Só quando uma árvore cai alcançamos todos os seus

galhos”, são canais que nos levam a uma visão sobre os dizeres da cultura africana e a proibição

que foi feita aos negros falarem sua língua (o dialeto africano). Isto foi a forma mais cruel de

destronação da identidade.

Assim, a borboleta é uma imagem recorrente na literatura brasileira. Ela aparece,

por exemplo, na obra Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. O nome do

capítulo é A borboleta preta, que, para muitos, simboliza superstição. Na ocasião, Brás Cubas

ignora o fato do aparecimento do inseto, fazendo ironia com o caso. No dia seguinte, ele pode

vivenciar o que, realmente, Dona Eusébia, personagem secundária, sentiu e foi de certa forma,

supersticioso, pois se incomodou com a presença da borboleta, matando-a.

Outro elemento simbólico muito presente na obra do início ao fim é o “sangue”.

Este é vida, é início, pois nós nascemos e vivemos até quando o sangue circula em nosso corpo.

“O sangue é considerado universalmente o veiculo da vida” (CHEVALIER e GHEERBRANT,

2006, p. 800). É símbolo do aspecto emocional de nossas da alma. Seu significado é forte e

representa não só a vida, mas também o pacto do indivíduo entre os poderes divinos ou

demoníacos. A mulher menstrua e neste caso, é um ciclo que está ligado à fertilidade. Na

religião, o sangue de Cristo revela o poder da vida e da morte, um profundo potencial de fé, a

partir do derramamento que houve para salvar a humanidade. Ele é um elemento extremamente

precioso e potente assim como a poção da imortalidade. Em um universo lúdico os vampiros,

imortais, sobrevivem a partir deste nutriente único e vigoroso que é o sangue. A genética

também se traduz pelo sangue, pela herança e simboliza a estreita relação do afeto entre os que

39

estão unidos por ele; é, pois um símbolo da essência da vida com conotação de vida afetiva e

que pode ser traduzida por paixão, desejo e violência. “o sangue corresponde ainda, ao calor,

vital e corporal, em oposição à luz, que corresponde ao sopro e ao espírito” (CHEVALIER e

GHEERBRANT, 2006, p. 800). Desta forma, o sangue na obra UDC, é um símbolo presente

que pode representar tanto a vida, haja vista os quatros filhos da protagonista, bem como as

tragédias que estão ligadas na vida dela, primeiramente a morte da mãe, depois a morte do

primeiro filho Banjokô. Ainda há a morte do marido Jhon na África.

Já em território brasileiro, o símbolo do sangue ressurge em duas ocasiões: com a

castração do namorado, Lourenço, e a morte do primeiro filho. Deste, diz a autora:

Na mesa já havia uma enorme poça de sangue, e o corpo pareceu tão gelado quanto a lâmina da faca que estava ao lado dele, a mês que minutos antes estivera enterrado em seu peito. (GONÇALVES, 2008, p.467).

Este simbolismo nos permite ainda pensar nas tristezas, dores e sofrimentos

ocorridos na vida da protagonista. A dramática cena da morte do filho em cima de uma mesa

com o sangue empoçado é uma imagem que ao mesmo tempo é morte (fim), é também traz à

sua memória, a imagens dos entes queridos mortos na infância da protagonista.

Apesar do padecimento da mãe e dos amigos de Kehinde, ainda é necessário

continuar a luta e a vida. Outro acontecimento em que o “sangue” aparece é na luta armada de

1835, revolta dos malês. Após perderem a batalha, Kehinde fecha os olhos e une o passado ao

presente e novamente a imagem do sangue:

Durante algum tempo fiquei sozinha no meio daquela confusão toda. Olhei

para os lados e não vi mais os conhecidos, então fechei os olhos, como tinha

feito no caminho de Savalu para Uidá. Os guardas, os mortos, o sangue, os

cavalos e até mesmo o barulho sumiram por uns instantes, dentro do que meus

olhos não queriam ver. (GONÇALVES, 2008, p.529).

40

Ainda no que diz respeito à questão da identidade, outro aspecto preponderante é a

língua. Ela é uma herança social, uma realidade fundamental que uma vez assimilada pelo

indivíduo, entremete-se ao cognitivo e cria uma profunda relação emocional – principalmente

com lugar onde vive - perceptiva, cultural, familiar, um construto simbólico que se constitui

como produto da história de um povo, fator cultural, histórico, que um povo utiliza em seus

diversos contextos e que é, indubitavelmente, a “essência da comunicação” e da identidade.

Desta maneira, não podemos pensar o homem em uma comunidade, sem pensar na sua língua.

O homem possui uma relação tão forte com sua língua materna porque, de certo

modo, ela constitui o seu próprio ser como realidade subjetiva mergulhada em uma tradição

cultural. Conscientes da força linguístico-atávica, os dominadores, em geral, procuraram de um

modo ou de outro destruir a língua do dominado e impor a sua própria língua. No contexto da

escravidão no Brasil, foi esse um dos procedimentos usados de forma lenta e deliberadamente

para o aniquilamento da identidade dos negros escravizados. Além de ter sido um ato anti-

humano, foi também uma ação racista. Nei Lopes afirma que “Uma das formas do racismo

antinegro mais arraigadas na alma brasileira é aquela que procura reduzir todas as comunidades

étnicas africanas à condição de tribos e suas línguas à condição de dialetos” (LOPES, 2006,

p.196). Desta forma, neste trabalho, destacarei como se deu a proibição da língua, bem como

dos símbolos religiosos dos negros.

Logo, a protagonista, ao chegar à casa do senhor José Carlos, aos seis anos, houve

um estranhamento, as figuras da Sinhazinha Maria Clara e da senhora Ana Felipa, pela brancura

excessiva, também os negros que trabalhavam na casa-grande por seus modos de falar. A visão

de uma vida nova trouxe surpresas e impacto. E um deles foi a proibição de se falar dialeto e

língua africanos, como o iorubá, o eve, ou eve-fon (língua materna da protagonista), no Brasil, e

em especial, na casa dos senhores:

A Esméria disse que as minhas roupas não eram roupas novas e nem para crianças do meu tamanho (...) Ela também disse que eu estava bonita e que não falaria mais comigo em iorubá, pois eu precisava aprender logo o português. Alertou novamente que nunca, nunca mesmo, eu poderia falar iorubá ou eve-fon perto do sinhô,da sinhá, da sinhazinha ou do Eufrásio, pois seria castigada (GONÇALVES, 2008, p.79)

41

Esta proibição nos permite pensar na dimensão das consequências geradas a partir

da negação dessas línguas africanas para os negros. Em primeiro plano, esta proibição

dificultava a comunicação e de certo modo, atrapalhava. A pesquisadora Maria Consolação

André confirma quando nos diz que “Além de estarem misturados com as várias etnias, outra

dificuldade se dava pelo fato de que a maior parte do povo africano não havia desenvolvido a

escrita” (ANDRÉ, 2008, p.96). A proibição da língua nativa era uma estratégia dos traficantes e

senhores de escravos para evitar que longe deles, os escravos, pudessem se comunicar e tramar

algumas coisas, como vingança ou fuga. Deste modo, a quebra de continuidade cultural gerava

nos africanos uma angústia, uma inconformidade, ao perceber que eles - negros - estavam

perdendo parte da sua cultura, e que a muito custo, ainda conseguiram manter seus ritos, sua

língua, mas de modo camuflado, pois os brancos queriam, aos poucos, apagar da memória

deles, as marcas identitárias: e a língua foi o primeiro impedimento. Pouca coisa restou:

da maioria das vivências das tradições africanas, restaram algumas manifestações, tais como a capoeira e o samba-de-roda, que eram desenvolvidos como meio de divertimento, mas também como forma de expressar e comunicar a sua história através das linguagens diversas que faziam de suas origens (ANDRÉ, 2008, p.97).

Neste distanciamento do espaço original, encontravam-se, no Brasil, distantes do

convívio com suas variantes dialetais, havido, assim, um panorama heterogêneo em que os

novos contatos linguísticos promoveram uma nova relação com uma língua diferente, o

português. Apesar de toda essa desordem, é pertinente analisar o outro lado da questão. A

própria Kehinde, por ser perspicaz e inteligente, aprendeu de rapidamente o idioma luso.

“aprendemos também as primeiras palavras em português, uma língua que desde o início

pareceu uma música suave, com as palavras cantadas e muito bonitas” (GONÇALVES, 2008,

p.64).

Os cultos religiosos foram outro aspecto alvo das proibições escravistas em solo

brasileiro. A “palavra” “religião” deriva do termo latino "re-ligare", que significa "religação"

com o divino. Esse conceito remete à ideia de “ato de fé”, de crença em Deus ou que possam

ajudar o ser humano a resolver seus problemas. Toda religião parte da premissa que há um

indizível conceito ideológico, ligado a uma verdade e introduz conformidades indiscutíveis e

42

inquestionáveis na vida dos homens. Porém, é nesse âmbito de crer naquilo que não se vê é que

são pautadas as religiões. Ninguém sabe realmente de onde veio e nem para onde vai. Mas se

acredita firmemente que tais respostas podem ser dadas pela guia espiritual dos deuses na terra,

os quais deixaram seus pensamentos na tradição oral e em livros como a Bíblia cristã, a Tora

dos judeus e o Alcorão dos mulçumanos. O místico é também uma forma de preencher um

vazio natural que todo ser humano possui:

As práticas religiosas são parte de um sistema simbólico e veículo de poder e de exercício político, portanto, podem ser um lócus para que se apreenda as diversas forma das diversas populações. Em relação às religiões da população negra, com raízes africanas, temos o conhecimento de que as mesmas eram alvo de proibição no período escravagista por serem consideradas primitivas, magia, animismo infantil. (ANDRÉ, 2008, p.90).

É o hábito, geralmente por parte de grupos religiosos, de taxarem tal ou qual grupo

religioso rival de seita. Mas esta não tem apoio no significado do termo “seita” que é um

vocábulo derivado da palavra latina "Secta", nada mais é do que um segmento minoritário que

se diferencia das crenças majoritárias, contudo como tal também pode ser considerada religião.

Foi dentro desta perspectiva de seita, que os portugueses consideravam as religiões africanas

mais que isto. Eram vistos como cultos selvagens, diabólicos. No corpus os orixás são o esteio

de fé, da coragem e da identidade para Kehinde, em particular, e demais africanos.

Estes orixás são símbolos como os de qualquer outra cultura. O símbolo são

criações humanas e fazem parte da nossa cultura, “a tradição neo-kantiana (...) trata os

diferentes universos simbólicos, mito, língua, arte, ciência, como instrumento de conhecimento

e de construção do mundo, dos objectos, como “formas simbólicas” (...)” (BORDIEU, 1989,

p.8). Neste sentido, os “sistemas simbólicos” estão ligados à comunicação, principalmente da

cultura, de um povo e são “invisíveis”. Pierre Bordieu confirma esta ideia quando diz que “Os

“sistemas simbólicos”, como instrumento de conhecimento e de comunicação, só podem

exercer um poder estruturante porque são estruturados” (BORDIEU, p.9). Tal estruturação é

uma construção “cognoscente” do mundo objetivo, ou seja, há uma relação de “objetividade”

do “sentido do mundo” pela concordância das subjetividades.

43

Assim, os grupos sociais - como os africanos - foram, no decorrer da sua existência,

construindo seus símbolos culturais, os orixás. A essência destes baseia-se nos símbolos

universais – água, terra, ar e fogo – comuns a todos os povos. Desde as civilizações chamadas

de primitivas até as consideradas evoluídas. Há nos culto aos orixás uma forte ligação com

aqueles elementos de natureza, como plantas, água e outros, nos quais os africanos (ou afro-

brasileiros) buscam as forças vitais, tanto em sentido individual quanto coletivo e identitário. As

imagens, símbolos desses deuses são conduzidos consigo de maneira objetiva, como o colar

com pingentes dos “ibêjis” usado por Kehinde ou cultuados em pequenos nichos camuflados

nas senzalas ou na casa grande. Os negros livres tinham um espaço especial para os seus orixás,

normamente dentro de casa.

No Brasil há um sincretismo muito grande e os deuses africanos, símbolos

religiosos dos negros, vieram juntamente com a escravidão negra, esta que foi segundo Femi

Ojo-Ade em Negro: raça e cultura “(...) uma história de sofrimento e vergonha, de

desumanização, e degradação, de cristianização e civilização” (OJO-ADE, 2006, p.159). A

cristianização como nos coloca Ojo-Ade, foi um modo de deslocar os negros das suas crenças,

negando o direito de exercer sua fé. Esta negação estava intrinsecamente ligada ao poder

político que versava, no entanto, dentro da realidade castradora, os deuses, de certo modo,

foram um sustentáculo para os negros, pois tanto sofrimento e dor careciam de suporte

espiritual, embora mantendo certa ambiguidade religiosa, quer por interesses políticos, quer por

sobrevivência:

A nova elite, jubilosa por ser educada, desposou o cristianismo e a civilização ocidental. Mas eles não se podiam divorciar totalmente das suas tendências atávicas: eles adoravam o Deus branco, mas deslizavam sorrateiramente, para o orixá, à noite. Ainda a questão é a seguinte: o dia permanece branco como Deus e a noite tem conotação de escuridão, como os orixás. (OJO-ADE, 2006, p.161).

Quando os escravos africanos chegaram ao Brasil, obrigados a professarem uma

nova experiência religiosa, surgiu a necessidade da utilização de algumas estratégias para burlar

a autoridade dos brancos, afinal, o cristianismo foi a religião trazida pelos brancos juntamente

no início da colonização e que perdurou, também, durante o processo de escravidão. Depois, ao

contrário do que se pode imaginar, não é possível afirmar que essa posição instalou a astúcia

44

dos africanos, à noite, único momento livre dos senhores e feitores, que permitiam-lhes cultuar

as mesmas divindades veneradas em território africano .

Com efeito, os negros tinham que fingir adorar o Deus e venerar santos dos seus

senhores. Todavia, para manter as aparências, criaram os escravos o artifício de nomear os

orixás mais cultuados com os nomes dos santos católicos, por exemplo, Ogum é associado a

São Jorge, porque aquele como este são considerados guerreiros; Iemanjá, “a grande orixás das

águas em geral” (LOPES, 2004, p.335) corresponde a nossa Senhora da Purificação ou da

Conceição.

Do vasto universo de divindades, os que mais se destacaram na obra UDC foram

Oxum, Nanã, Xangô, os ibêjis13

Conhecida como a rainha que vive no ventre cachoeiras. Ela é doce, possui um ar

de candura e de meiguice; a sua cor é o dourado e o seu metal preferido é o ouro. Oxum é

vaidosa, sensual e também é a rainha de Ijexá

, cultuados pela personagem principal, apesar de aparecerem

bastante em diversos momentos. Estes orixás que são os mais conhecidos entre os praticantes e

não praticantes das religiões de origem africana. Segundo os ensinamentos do candomblé, todas

as pessoas são filhas de um orixá (filhas de santo), a quem devem veneração e culto. Alguns

deuses africanos ficaram menos cultuados que outros. Oxum foi uma dessas divindades que foi

muito cultuada. Ela é a deusa só das águas doces.

14

Oxum exerce também um poder influente no comportamento dos seres humanos,

regendo principalmente o lado obstinado, além daquele espírito ardiloso que existe em cada um

dos seres humanos. Esta deusa rege o charme, o lado sensual, tudo que está ligado à

sensualidade, à sutileza; este aspecto está intrinsecamente ligado à regência de Oxum . E ela que

desenvolve tais sentimentos e comportamentos nos indivíduos, sendo o sexo feminino o mais

influenciado. Desta maneira, Kehinde suportou parte de suas dores e fracassos acreditando em

seus protetores espirituais: “Voltei para o quarto, armei um altar e chorei e rezei por um bom

. Ela é a Orixá da prosperidade, da riqueza,

ligada ao desenvolvimento da criança ainda no feto: “Orixá da fertilidade e da prosperidade”

(GONÇALVES, 2008, p.119).

13 Ibêjis são, reconhecidamente, os santos católicos Cosme e Damião. 14 Ijexá é uma nação africana formada pelos escravos vindos de Ilesa na Nigéria, concentrada nas

religiões Batuque e Candomblé.

45

tempo, pedindo aos orixás que me mostrassem uma solução ou me fizessem conformada com o

destino” (GONÇALVES, 2008, p.342).

A fé nos orixás ajudou a protagonista a resolver um problema que aparentemente

não tinha solução. Uma questão crucial em sua saga: a compra da sua alforria bem como a do

filho e dos amigos. A protagonista estava diante de um problema muito grave, ela não tinha

dinheiro suficiente para a compra das cartas de liberdade, porém, frente a uma situação

desconcertante e complicada, pede ajuda aos seus orixás.

Neste caso, uma possível solução foi vender a imagem da Oxum, embora

contrariada, para arrecadar uma quantia que a ajudasse na compra da alforria, “(...) e estava indo

pegar a Oxum e levar até o canto, para entregar a prenda à vencedora” (GONÇALVES, 2008,

p.343) quando uma cobra saltou sobre Kehinde. Ela instintivamente para se proteger, joga a

imagem da Oxum sobre o réptil e aquela cai no chão e abre uma fenda por onde havia escapado

um pó dourado (ouro), que cobre o assoalho, e inúmeras pedras de diferentes cores, algumas

transparentes como vidro (diamante). A cobra parece surgir como uma inusitada mensagem do

orixá, satisfazendo o desejo de sua devota ou como uma “serenpidade” que no dizer da autora

no prefácio do livro, é utilizada “para descrever aquela situação em que descobrimos ou

encontramos alguma coisa enquanto estávamos procurando outra” (GONÇALVES, 2008, p.9).

Foi o que aconteceu a Kehinde, uma resposta da Oxum, uma serenpidade. Fica assim resolvido

o dinheiro para a alforria das cartas.

Dito de outro modo, o que houve foi uma concessão de graça por parte do orixá em

auxílio à protagonista. E é assim que paralelamente os homens de um modo geral creem em

relação aos fatos inusitados que acontecem em suas vidas. Afinal, a fé é que “remove

montanhas” e cria, a partir da religião professada, uma relação forte de identidade nos mitos

religiosos. De acordo com o estudioso do sincretismo religioso de Pierre Verget, a saudação de

Oxum, tanto no Brasil quanto na África, é “Ore Yê yê o!” e significa “chamemos a

benevolência da mãe (VERGER, 1997, p. 176). É um hábito dos que cultuam os orixás

africanos saudá-los com os seguintes elementos: um determinado tipo de alimento que agrada

ao deus, velas e animais, dependendo se o tipo de “oferenda” exija sacrifícios.

46

Outro orixá muito cultuado por Kehinde são os ibêjis15

15 “orixás menores da tradição nagô, protetores dos gêmeos; no Brasil, identificados como os santos

católicos Cosme e Damião (LOPES, 2004, p.505).

, o qual possui uma

substanciosa relação de significado dentro da obra, pois Kehinde era gêmea da irmã Taiwo. Os

nomes “Kehinde e Taiwo” possuem uma representatividade de destaque e possuem, na cultura

africana, sentido a partir de quem nasce primeiro ou depois. Ideia destrinchada por Nei Lopes:

Assim, o primeiro gêmeo a nascer, recebe sempre o nome de Taiwo. (“aquele que sentiu primeiro o gosto da vida”). ; o segundo Kainde ouKehinde (“o que demorou a sair”). Mas a família dos gêmeos livre da ameaça de perda quando nascer o filho seguinte e lhe for colocado o nome de IDOWU (LOPES, 2004, p. 687).

Kehinde possuiu fortemente, ligações afetivas e espirituais com a irmã, bem como

uma forte cumplicidade e possivelmente, até uma ligação telepática, pelo fato da protagonista,

em muitos momentos, sentir a presença da irmã morta, em vida e em sonhos. Elas eram na

verdade, algo “uno”: “Eu e a Taiwo tínhamos nascido com a mesma alma e eu precisava dela

sempre por perto para continuar tendo a alma por inteiro” (GONÇALVES, 2008, p.60). Ela, a

irmã, sempre esteve presente na vida de Kehinde, “apesar de o corpo ter adormecido quieto e

pesado como pedra, não tive um sono tranquilo e vi a Taiwo zangada comigo, como quando

brigávamos em criança” (GONÇALVES, 2008, pp.266-267). A relação fraternal foi mantida,

mesmo depois da morte da irmã. Seguindo as orientações da avó “Sentia que estava me fazendo

mal não ter os ibêjis por perto, como a minha avó tinha instruído” (GONÇALVES, 2008,

p.267). E esta forma de aproximação deveria ser mantida por um pingente carregado ao

pescoço:

Depois da morte dela, o único jeito de isso acontecer (mantê-la por perto, grifo meu) é por meio da imagem com um pingente benzido por quem sabe o que está fazendo (GONÇALVES, 2008, p.60)

47

Quando há gêmeos em uma família, na cultura africana, chamam-se ibêjis, Como

ambas as personagens são gêmeas, a presença deles no lar representa bons presságios e

riquezas. Tal presença no corpus é figurada nas atividades de dançarina da mãe das gêmeas:

Ibêjis dão boa sorte e riqueza para as famílias em que nascem, e era por isso que a minha mãe podia dançar no mercado de Savalu e ganhar dinheiro. Ela dançava e as pessoas colocavam Cauri16

que a exemplo de Ogum, sabe fazer valer sua valentia. Em certa ocasião, porém, as coisas começaram a ir muito mal para o seu lado, pois o inimigo além de mais forte, havia se revelado de uma crueldade implacável. (...) Xangô, rilhando os dentes de raiva, amaldiçoou o inimigo. Sua ira, porém parecia não ser mais o suficiente para pôr um fim às atrocidades inimigas. (...) Uma massa de soldados formou-se rapidamente ao redor do rei de Oió. Todos aqueles corpos suados e cobertos de ferimentos não pediam outra coisa, senão a luta e mais luta, a fim de impedir que as dores do corpo e a humilhação da

em sua testa (...). (GONÇALVES, 2008, p.21)

Outro orixá de considerável relevância para os africanos e afro-brasileiros, na

narrativa, é Xangô, o qual sempre foi muito cultuado no Brasil. E segundo alguns adeptos da

religião, ele foi o primeiro orixá trazido da África para terras brasileiras. Xangô é forte, de

integridade indiscutível e também irremovível; com isso, é evidente que há um autoritarismo

implícito em sua figura forte por ele ser conhecido como o “senhor das pedreiras”. Há em uma

de suas mãos, segundo as imagens apresentadas ao público, um machado que denota o seu

poder de fogo. Há lendas sobre suas determinações e desígnios, coisa que não é questionada

pela maior parte de seus filhos, quando inquiridos.

Suas decisões são sempre consideradas sábias, ponderadas, hábeis e corretas. Ele é

o Orixá que decide sobre o bem e o mal. Ele é o Orixá do raio e do trovão. Seganfredo e

Franchini, em sua obra de narrativas sobre vários deuses africanos, As melhores histórias da

mitologia africana nos fala um pouco sobre este guerreiro:

16 Uma espécie de concha usada como dinheiro, um tipo de moeda africana.

48

alma lhe trouxesse o desânimo. (FRANSCHINI e SEGANFREDO, 2008, p.87).

E assim o combate teve uma trégua momentânea, no entanto, Xangô, com seu poder

e sua força de rei, seguiu de cabeça erguida, mesmo tendo alguns de seus soldados em prisão ele

tentou dar força ao general que lhe representava “Xangô, num ato instintivo, olhou para o rosto

do general. Seus olhos estavam fixos no pó do chão, como se já adivinhasse, de antemão, o

conteúdo do samburá maldito” (FRANSCHINI e SEGANFREDO, 2008c, p.88). O rei de Oió

percebeu que precisava de ajuda e disse “Orunmilá, ajude-me!(...) – Veja a ignomínia que

desceu sobre os meus soldados e sobre minha honra! Diga o que devo fazer para derrotar meus

inimigos que, afrontando todas as leis sagrada da guerra, violam a dignidade dos prisioneiros”.

Orunmilá17

Quando ela foi mandada pela Sinhá Ana Felipa à senzala grande, a protagonista

adquire novos conhecimentos sobre a vida real dos escravos. Lá, ela começa a conhecer a

vingança contra a sinhá tornando-a estéril para sempre, por ter arrancado os olhos da escrava,

Verenciana, preferida do marido; os arranjos de famílias, ali formadas, que eram feitos à morte,

sem que os feitores e senhores soubessem a trama da fuga dos escravos; a dor dos que foram

separados dos seus entes queridos, vendidos para senhores diferentes. O culto aos orixás de

forma viva e atuante. Toda esta vivência fortalece-a ao longo de sua saga e prepara-a para

conhecer mais sobre os orixás

condescendeu ao pedido de Xangô e este começou a bater em pedras com toda sua

força, liberando faíscas que se transformaram em labaredas. Por esta razão, ele é conhecido

como Deus do fogo e “os inimigos de Xangô, apavorados, começaram a bater em retirada. Mas

a fúria de Xangô recém havia começado, e logo uma chuva de fogo desceu do alto sobre a

pedreira, alcançando o acampamento do inimigo” (FRANSCHINI e SEGANFREDO, 2008,

p.89).

18

17 Este deus pode ser comparado ao Deus-pai dos cristãos. 18 O culto dos orixás, como afirma a autora que “Na Bahia, os orixás já tinham tomado conta das

cabeças dos pretos e o culto deles vinha de muito tempo, praticado por quase todos os africanos que, por muitos anos, iam parar naquelas terras” (GONÇALVES, 2008, p.83).

e participar de lutas como as pela sua liberdade, a dos filhos e

das pessoas queridas, e participar também do levante dos malês e outras. E mesmo diante de

todas as dificuldades, ela manteve seus orixás perto de si, a quem muito rogava (inclusive

49

Xangô): “(..) naquele anoitecer, quando voltamos para a senzala, alguém tinha dado um jeito de

colocar na minha baia esteira, o Xangô e os ibêjis, e eu implorei muito a Xangô, o deus do fogo

e dos trovões para que me livrasse de tudo o que queima. Ele deve ter me valido”

“(GONÇALVES, 2008, p.118).

Outra divindade que Kehinde também cultuou e acreditou foi Nanã. Ela “é termo de

referência para pessoas idosas e respeitáveis (...). É a mais antiga, representada pelas águas

paradas dos lagos e pela lama dos pântanos, de onde tudo se originou; é o princípio da

fertilidade enfim” (LOPES, 2004, p. 466). Senhora de muitos búzios, traz significados diversos

como a morte, a fecundidade e a riqueza, para os povos Jeje19

A divindade Nanã, ligada ao espaço das águas lamacentas e profundas, nos leva a

pensar sobre a própria formação da vida em seu princípio, segundo a mitologia africana. A

ciência por mais que venha a descrever geneticamente os passos do surgimento da vida, talvez

jamais chegue à compreensão plena da gênese da vida cientificamente, pois todas as religiões

tem os seus mitos de criação do homem, portanto, a visão dos cientistas, por hora, não será

aceitas por muitos crentes. Ela também nos remete à questão do tempo passado. Sob este

aspecto tem uma ligação intrínseca com o próprio enredo de UDC, uma vez que se trata de uma

narrativa de cunho memorialista. Nesta perspectiva, a personagem central agrega as suas

memórias às de outros personagens. Nanã, sendo a mais antiga das divindades das águas

lamacentas, representa a memória ancestral do mundo; é a mãe antiga por ser a deusa mais

velha do candomblé e é também respeitada como se fosse a mãe de todos os orixás. Ela se

destaca também, em UDC, quando da cerimônia do nome do primeiro filho de Kehinde. O

Baba Ogumfiditimi, o Babalaô, espécie de pai de santo, ao fazer o jogo do Ifá

. Nanã é uma divindade suprema e

não raro, ela pode ser vista frequentemente como um orixá masculino. Talvez os significados de

fecundidade e riqueza estejam ligados à fecundidade de Kehinde que teve quatro filhos - dois no

Brasil e um casal de gêmeos na África - e a riqueza que foi aumentando progressivamente até a

idade madura.

20

19 Jeje é o povo da narradora.

, conta a

dificuldade de Nanã e como os seus filhos fizeram jejum durante vários dias:

20 Ifá. Oriundo de Ifé, na Nigéria, é considerado o meio de adivinhação Yorubá mais complexo de toda a África. Este idioma dos orixás é a religião principal dos povos que habitam a Nigéria ocidental e o Benin e,

50

O décimo verso do oráculo de Ifá conta que Nanã, a velha mãe d’água e mãe de todos, inclusive dos muçurumins, estava muito doente. Os búzios foram jogados e indicaram que, seus filhos, deveriam fazer sacrifícios aos Orixás. Mas em vez de dar comida a eles, resolveram dar comida a Nanã, e todos os dias a alimentavam com mingau de milho. Nanã não melhorava, e quando estava para morrer, chamou os filhos e ordenou que, daquele momento em diante, quando cada ano se completasse, eles deveriam passar fome por trinta dias, não podendo beber ou comer nada durante o tempo em que o sol permanece no céu. (GONÇALVES, 2008, p. 286).

Este passagem da obra pode ser comparada ao período da quaresma dos povos

cristãos ou ao jejum dos povos islâmicos, o Ramadã, no mês de setembro de cada ano, do

nascer ao por do sol, o muçulmano se abstém de comer, beber, fumar e praticar atos sexuais.

Todo muçulmano que é adulto e segue os preceitos de sua religião, tem que praticar esta

obrigação. Sendo assim, o jejum é obrigatório desde que não represente perigo à vida do

muçulmano. Este ato é um modo de autodisciplina física para uma purificação interna e um

agradecimento a Deus pelas conquistas na vida. Durante o mês de Ramadã21

com a exportação de escravos, foi largamente difundido no Brasil e em Cuba. O povo Yorubá sempre consulta o Ifá antes de realizar qualquer projeto.

21 Nono mês do calendário islâmico; ritual que faz parte dos pilares do Islão.

, os muçulmanos

estão unidos por este jejum e procuram estar mais próximo de seu semelhante e de seus

familiares que se reúnem diariamente para o desjejum.

Retomando o evento da cerimônia do nome, outro aspecto interessante que nos

chama atenção é a “dança”, a qual faz parte das religiões, de certo modo, e está intrinsecamente

ligada aos ritos sagrados. Podemos observar em várias partes da narrativa de UDC, que a dança

acontece tanto dentro da própria veiculação da fé, dos rituais, como fora dela. É um elemento

essencial que compõe a religião unindo o ser humano aos deuses. Exemplo disso é o que ocorre

na igreja católica. O movimento dos carismáticos, em alguns deles, os jovens cantam e dançam

para saudar o Cristo, similar ao que fez o rei Davi, na bíblia, antigo testamento, diante da arca

sagrada. Assim, no candomblé, é um hábito cantar e dançar ao ritmo dos tambores. A “linha” de

roda que os adeptos vão seguindo invisivelmente chama-se “ Xiré Shiré”.

Em outro momento, nesta cerimônia do nome do primeiro filho, onde o Baba

Ogumfiditimi comanda a ordem do ritual. Antes da dança, houve toda uma preparação:

51

O salão parece maior visto pelo lado de dentro, com o chão de tijolos e as paredes pintadas de azul, onde estavam pendurados quadros com as imagens dos orixás junto com outras pinturas, como o machado de Xangô e dos instrumentos de caça de Ogum, de quem Ogumfiditimi era filho. Havia também pequenos oratórios com esculturas de orixás em madeira tingida para representar as cores deles. A cor principal de Xangô é o vermelho, de Ogum é o azul, de Oxóssi é o verde e de Oxum é o dourado, cada um tem a sua. (GONÇALVES, 2008, p.203)

A dança, como qualquer outro rito, não poderia ser feito explicitamente na frente

dos brancos, mas sim às escondidas. Tal aspecto dos ritos africanos era considerado pelos

senhores brancos como bárbaros. Os africanos, como já dito, foram retirados de sua terra natal

pelas potências colonizadoras que fizeram do continente africano uma fonte de matéria prima

para o trabalho escravo. Na obra em leitura observa-se que a erradicação dos negros do

continente africano já referido foi uma das preocupações de comerciantes de escravos e

senhores compradores, destruir qualquer vínculo de identidade entre os negros. E outro aspecto

alvo disto foi a família. A família, desde a origem do homem, foi a primeira forma de

associação em que um grupo cria um elo, que é a atitude de doação. Independente de qualquer

tempo ou distância, o sentimento que une cada membro um ao outro é solidário. Um núcleo

familiar não sobrevive se cada membro vive em função de si mesmo e abandona o outro.

Família é um centro de formação para a vida. No ambiente familiar são formados os caracteres

e onde é formado o homem para a vida moral, social, enfim, para os valores que nortearam a

conduta do individuo. Daí a importância de um clima saudável, equilibrado e construtivo no

lar. Numa proporção relativamente alta, as pessoas reproduzem, nos diversos meios em que

vivem, o que aprenderam em casa. Família é um laboratório para experimentar e desenvolver a

fé. A “Família Ideal” não existe. Existem famílias que em geral, se entendem, se amam, não

criando barreiras entre eles, mas sim pais quase sempre presentes na vida dos filhos, na

educação, no lazer e nos problemas.

Na literatura, há famílias que são representadas de várias maneiras. No conto

“Teoria do medalhão” de Machado de Assis, por exemplo, o autor ironicamente coloca em

destaque a figura de um pai que ensina o filho a se acostumar com o silêncio, que é a forma de

circunspecção. (ASSIS, 1985, p.290). Vale-se o autor de Dom Casmurro, do diálogo do pai com

52

o filho para denunciar a hipocrisia e a mediocridade de uma sociedade burguesa arrogante, que

prega valores convencionais, visando “status” e riqueza. A perspectiva dada por Ana Maria

Gonçalves, em UDC, tangencia o conto de Machado de Assis sobre o aspecto da denúncia,

embora em ângulos diametralmente opostos. Machado aponta os falsos meios para obter o

sucesso na sociedade burguesa; Gonçalves denuncia a missão da história do país em relação à

escravidão, que procura camuflar ou amenizar os sofrimentos, agressões e revolta dos negros ou

mesmo as vinganças destes, narrando uma convivência entre negros e brancos como se fosse

absoluta e não relativamente pacífica, fato conseguido à custa de muito sofrimento como mostra

a autora.

Ana Maria Gonçalves nos mostra, na obra, como ocorreu a destruição de famílias

africanas transladadas para o Brasil. Elas vieram, já mencionado, de várias regiões da África:

Angola, Costa da Mina, Nigéria, Reino do Benin (antigo Daomé), a última é a região da

protagonista. Outras localidades foram citadas. A presença de muitas regiões africanas deu à

personagem principal a ideia de ter ali um grande continente em um mesmo lugar: “Mas a

grande maioria era de pretos como nós, que eu imaginava em uma África inteira em um só

lugar” (GONÇALVES, 2008, p. 60).

Os comerciantes de escravos favoreciam não apenas um aniquilamento da família

como o dos pertencentes de uma mesma região. Obrigavam-nos a usarem só português já que as

regiões possuíam dialetos diversos. No que concerne às famílias, a destruição iniciava-se no

momento da captura porque a preferência recaía sobre os homens como força de trabalho. Se

ocorria a captura de famílias inteiras ou dois ou três membros dela, eram separados ou no

momento do embarque por serem vendidos a senhores distintos, ou se acontecia virem no

mesmo porão infecto, iam sendo dizimados por inanição, suicídio etc. No caso de

permaneceram junto, nos translado raro, chegando aos mercados de revenda, eram leiloados a

senhores diversos, com destino diferentes.

A extinção da família de Kehinde inicia-se ainda em Savalu, sua cidade natal

quando a mãe e o irmão são assassinados por guerreiros nativos, conforme já foi mencionado

antes. Ela, a irmã e a Avó mudam-se para Uidá, em cujo porto eram embarcados escravos para

vários países. As gêmeas afastaram-se da avó e no porto foram capturadas para serem enviadas

para o Brasil. A Avó as encontra no momento do embarque e se oferecesse para seguir com as

netas. Na travessia do atlântico morrem a irmã e a avó. Ela, Kehinde, com apenas seis anos fica

só e as companheiras de viagem aproximam-se mais dela. Desse modo, as perdas de familiares

53

da personagem central tem começo na África e as seguem por toda a vida, só que espaço de

tempos maiores. Perdas por morte como a do filho mais velho e da segunda mãe; perda por

venda do filho mais novo e outras que aconteceram no decorrer da sua vida. Entretanto, a

presença dos mortos amados rodeam-na ao longo da existência principalmente em situações

difíceis. A presença mais constante de todas era a da irmã gêmea, a outra metade de sua alma:

“Eu e a Taiwo tínhamos nascido com a mesma alma e eu precisava dela sempre por perto para

continuar por inteiro” (GONÇALVES, 2008, p. 60).

Talvez devido aos desvinculamentos familiar e regional, imposto pela escravidão,

os negros procuram se reunir e reconstruir minimamente as relações humanas fraternais

perdidas.

54

CAPÍTULO III

A SAGA DE KEHINDE

A Saga da Vida é a saga da inquietude. O homem vive inquieto. Em todos os seus

poros sua marca registrada parece ser a inquietação. É inquieto sobre sua verdadeira origem,

inquieto sobre seu destino último.

Santo Agostinho uma vez escreveu que o Coração humano só descansa quando

encontra a Deus. Mas Agostinho que me perdoe: pra mim até mesmo a busca de Deus é

recheada de inquietações.

Mas por que então o homem vive inquieto?

Por que ele vive fora do seu eixo, descentrado. Buscando fora aquilo que está bem

dentro dele.

Eugênio Christi

55

Os povos africanos migravam, às vezes, dentro do próprio continente devido às

questões políticas, tribais ou outras causas, como ocorreu com a personagem central do corpus.

Contudo, na época da escravidão foram obrigados a emigrar para terras americanas e europeias.

No caso do Brasil, foram os portugueses que trouxeram à força, os negros para trabalharem nas

fazendas e casas de brasileiros e portugueses. E mais tarde, apesar das medidas tomadas pela

Inglaterra, para acabar com o trafico de escravos, pouco adiantou porque o comércio ilícito

continuou ao longo do século XIX.

A autora de UDC, Ana Maria Gonçalves, de modo muito original narra a história

dos povos africanos vindos para o Brasil. Sua protagonista, Kehinde, apresenta-se como uma

mulher símbolo na medida em que sintetiza o processo de escravização e, e ao mesmo tempo,

os hábitos e costumes desse povo. O livro, como já mencionado, tem um enredo linear o que

facilita a compreensão desta metaficção historiográfica, que figura a um longo romance-carta

memorialista. No início do romance, o leitor se depara com o conluio entre portugueses e chefes

africanos para aquisição de negros para o trabalho escravo no porto de Uidá. É justamente aí

que começa a saga da protagonista, “empurrada” da terra natal em virtude da trágica morte da

mãe e do irmão.

A protagonista é apresentada desde criança como alguém que já demonstra

iniciativa e curiosidade pelo novo. É ela que incentiva a ver o que estava ocorrendo no porto

com navios chegando e saindo. Por esses acasos, ela e a irmã gêmea são capturadas justamente

por isso, por serem gêmeas. A partir de então, o seu destino muda e a irmã não resiste à

travessia do atlântico; há uma sequência de acontecimentos, em sua maioria, imprevisíveis,

como são ali, de todos os negros escravizados, já que perderam a liberdade. Ela se torna, então,

como os outros capturados que vão ser comercializados. Apenas parte de um conglomerado de

seres humanos “(...) em um ambiente onde, sabe-se lá há quanto tempo, acumulavam-se os

cheiros de sangue, de urina e de merda, que venciam facilmente a terra jogada por cima do

buraco cavado no chão quando precisávamos fazer as necessidades” (GONÇALVES, 2008,

p.41), a espera do dia. Este fato podia ocorrer logo em dias para que fosse completa a cota de

venda.

Haviam se passado alguns dias quando uma noite “a porta se abriu e entraram mais

capturados, todos homens (...) àquela altura, eu já achava que a Tanisha estava certa e que

éramos prisioneiros e seríamos trocados por mercadorias no estrangeiro” (GONÇALVES, 2008,

p.41). Estes dois trechos tratam dos primeiros desconfortos físicos da protagonista ainda em

56

solo africano. E a partir, em particular, do início da obra que se começa a observar como a

autora principia “as manipulações da memória, que serão evocadas mais adiante, devem-se a

intervenção de um fator inquietante e multiforme que se intercala entre a reivindicação de

identidade e as expressões públicas da memória. Trata-se de um fenômeno ideológico”

(RICOUER, 1999, p.95), como será visto adiante.

Deixa entrevir de modo opaco “o fenômeno ideológico [que] parece mesmo

constituir uma estrutura intransponível da ação, uma vez que a mediação simbólica (Kehinde, a

mulher) faz a diferença entre as motivações da ação humana e as estruturas hereditárias dos

comportamentos geneticamente programados” (RICOUER, 1999, p.95) como costumes,

religiões, língua, tudo isto nos remete a uma representação historiadora do passado.

A etapa seguinte da saga de Kehinde, em solo brasileiro, aumentando o rol de

perdas - mãe, irmão, avó e irmã -inicia no desembarque quando a protagonista, que estava

sempre próximo a ela, a amiga Tanisha, foi levada para outro destino. A primeira agressão a sua

tradição aconteceu, ainda, na ilha dos Frades, onde ficou alojada como uma espécie de

quarentena. Este fato foi a imposição do nome e um batismo cristão, dos quais ela foge

atirando-se no mar. Adota depois, por convivência, um nome de Luisa Gama. Ao se recusar a

aceitar os rituais católicos, a protagonista-narradora deixa claro a primeira forma de resistência

dos escravos em defesa de suas crenças religiosas. Estas vão se estruturar em oposição

camuflada à religião oficial por meio do sincretismo. A resistência é uma defesa da própria

cultura.

Após a “ilha dos Frades”, ela, Kehinde, e os outros são levados ao mercado para

serem novamente vendidos. Ela - e também um grupo de escravos - foi comprada por um

fazendeiro em Itaparica. A sua escolha se deve ao fato do senhor ter uma filha com idade

equivalente à dela, da protagonista. Era costume nas casas-grandes coloniais, os senhores darem

aos seus filhos “um escravo de seu sexo e de sua idade, pouco mais ou menos, por

camaradagem, ou antes, para seus brinquedos. Crescem juntos (...)” (FREIRE, 2002, p.439). Foi

com este intuito que ela foi comprada. Pensando de outro modo, é possível também dizer que a

compra da escrava pequena para fazer companhia era uma maneira de afirmar a autoridade dos

brancos e confirmar a submissão dos escravos.

Na fazenda o primeiro contato foi com negros de diferentes etnias e falando o

português. Foi acolhida por uma preta mais velha, Esméria, que a alimentou, olhando-a “com

57

pena e carinho”, como se estivesse prevendo os dramas, o sofrimento que a esperava na vida de

escrava. Após alimentá-la disse-lhe em iorubá que ela tinha de aprender logo o português:

Pois o senhor José Carlos não permitia que se falassem línguas de preto em suas terras e que qualquer coisa de que eu precisasse era pra falar com ela (...) e que também era para eu ficar com ela na cozinha até o anoitecer quando me levaria para a senzala pequena, onde dormiam os escravos que trabalhavam na casa. (GONÇALVES, 2008, pp.74-75).

A divisão senzala grande e senzala pequena tinha o intuito não só de manter “os

escravos que trabalhavam na casa”, longe dos outros da senzala grande, mas principalmente

para ter os que trabalhavam na casa à disposição dos senhores por vinte e quatro horas.

A infância da protagonista ocorreu quase sem sobressaltos. O companheirismo que

existiu desde o início dela com a sinhazinha Maria Clara, filha de seu senhor, cresceu e

transformou-se em amizade sólida por toda a vida de ambas. Na fazenda, conheceu também

dois garotos escravos, Tico e Hilário, com idades equivalentes à dela. Os quatro, nas horas que

tinham folga, iam brincar e se divertir. Em certa ocasião foram para o mato procurar ninho de

pássaros. Contudo, com a ida da sinhazinha para o colégio interno na capital, terminam as

brincadeiras de criança e as aulas. Kehinde passou, então, a ajudar na cozinha, embora ela

continuasse, às escondidas, a estudar nos livros ganhados pelo “professor”, Fatumbi, negro

mulçumano. Ela treinou a escrita. Um dia cansada de ler, começou a fazer a boneca de pano

como a avó havia feito antes. Por azar, a sinhá Ana Felipa julgou que a protagonista estava

fazendo um bruxedo, e mandou que queimasse aquilo e que tirassem a menina diante dos seus

olhos, pois não queria ver aquela boneca “preta, feita por feiticeira”. Este incidente determinou

sua ida para a senzala grande e passou a trabalhar na fundição. Ela tinha apenas 10 anos.

Todavia, ao ser mandada para a senzala grande, a protagonista tem seu primeiro real

conhecimento da escravidão:

Talvez se eu tivesse ficado trabalhando apenas na casa-grande e morando na senzala pequena, não teria sabido realmente nada sobre a escravidão e a minha vida não teria tomado o rumo que tomou. Mesmo para uma criança de dez anos, ou, talvez, principalmente para uma criança de dez anos, era enorme a

58

diferença entre os dois mundos, como se não soubesse da existência do outro (GONÇALVES, 208, p.111).

Ainda na infância, a protagonista presencia uma das cenas mais dramática e cruel

gerada por ciúme ou sentimento de posse, índice o que lhe irá acontecer em nível mais terrível,

uns dois anos depois. A sinhá Ana Felipa soube por intermédio de uma escrava preferida

naquele momento, pelo senhor, que a mesma achava-se grávida dele. Estando só na fazenda

com os escravos, ordena-lhes que lhe traga a escrava, uma mulata muito bonita, de olhos verdes

e bem mais jovem do que ela. Dirige-se então, ao quintal. Fez com que segurassem a escrava e

arranca-lhe os olhos, dizendo que era para que não visse o filho (do senhor).

Ao destacar essa atrocidade feita com a mulata, a autora denuncia a ação de

desrespeito e desumanidade que não poupava nem mesmo crianças. E como a protagonista,

havia outras crianças de idade similar: essa exploração infantil nos diz que, a prática desse

trabalho escravo, de crianças, tão comum nos grandes canaviais no interior do Brasil nos dois

últimos séculos, vem da época da escravidão. Hoje acrescida da premência da pobreza extrema

que leva famílias inteiras a trabalhos escravos ou semiescravos. Esta cena mostra também que,

se por um lado, os senhores compram escravos os mais variados tipos: de trabalho no campo,

valem-se dos conhecimentos técnicos, da leitura e escrita e como reprodutor para aumentar o

número de escravos; por outro, como afirma Gilberto Freire, há outros interesses:

Não há escravidão sem depravação sexual. É da essência mesmo do regime. Em primeiro lugar, o próprio interesse econômico favorece a depravação criando nos proprietários de homens e moderados desejos de possuir o número possível de cria (...) Nada nos autoriza a concluir ter sido o negro quem trouxe para o Brasil a pegajenta luxúria em que nos sentimos todos prender, mal atingida a adolescência (FREIRE, 2002, pp.425-426).

Assim, há uma inter-relação da metaficção historiográfica com a história da

escravidão no Brasil. Gonçalves desmente a propalada depravação e a luxúria como próprias da

raça negra e nos deixa perceber que ela pode tanto existir tanto no negro como no branco. No

primeiro capítulo da obra, tem um exemplo dessa luxúria, quando a mãe de Kehinde é estuprada

59

por um grupo guerreiros negros nativos e mais adiante se verá a cena semelhante praticada por

um branco.

Outro fato que esta metaficção historiográfica desnuda é a constante revolta e fuga

de negros das fazendas que os romances do século XIX mascaravam. Davam a impressão de

que a vivência entre negros e brancos era pacífica e que aqueles aceitavam tranquilamente a

condição de escravos. Em UDC a autora relata a fuga de um grande número de escravos da

fazenda próxima à do senhor da protagonista. Isto o inquieta muito. Embora “fosse comum

acontecerem fugas: ”Preocupado com a própria fazenda, o senhor José Carlos resolve remanejar

os escravos da fundição, entre eles, Kehinde, para o engenho onde podiam ser melhor vigiados”

(GONÇALVES, 2008). Com esta mudança, em uma das visitas do senhor José Carlos ao

engenho percebe a presença da protagonista, uma adolescente de treze anos “que já tinha corpo

de mulher” (GONÇALVES, 2008, p.151), despertando a concupiscência de seu senhor. Em

função disso, ela é levada de volta à senzala pequena passando a trabalhar na casa grande, onde

estaria mais ao alcance de suas investidas libidinosas. No entanto, logo ela descobre o interesse

de Lourenço, o novo escravo, comprado da fazenda vizinha da leva de fujões. Pois tal

descoberta decreta e apressa a sentença da degradante humilhação dos dois.

Os namorados, Kehinde e Lourenço, estavam sendo vigiados pelo capataz a mando

do senhor José Carlos; apesar deste, os dois faziam planos de casamento e fuga. Durante o dia,

às vezes, quando estavam trabalhando, esbarravam-se dentro da casa e trocavam olhares.

Mesmo assim, a protagonista estava confusa com as “sensações ruins” que vinha sentindo: a de

não pertencer a lugar algum e o medo de me unir a alguém que depois partiria por um motivo

qualquer“ (GONÇALVES, 2008, p,164). Apesar disso, ela resolve fugir com ele, e depois fugir

dele, o que não se concretiza, porque os acontecimentos são desencadeados de maneira

vertiginosa. O senhor José Carlos ordena ao capataz que a leve para uma cabana no meio do

mato. Esta cabana, longe da casa grande, é um lugar onde o senhor costuma ter os seus

encontros sexuais com outras escravas. Este espaço é cheio de papéis e caixas que funciona

como escritório. Muitas outras vítimas já passado por lá. Na presença de Kehinde, ela ordena a

ela que tire a roupa e que se deite sobre a esteira coberta com um lençol. Nu, o senhor José

Carlos, deita-se sobre ela e neste instante entra Lourenço, que a puxa para um canto e empurra

seu senhor. Saem correndo, Lourenço e Kehinde, e fogem:

60

O sinhô José Carlos chamou pelo Cipriano, mas quem entrou foi o Lourenço, que o empurrou para um canto antes que ele tivesse qualquer reação, e depois me puxou pelo braço, fazendo com que eu me levantasse da esteira com tal rapidez que mal tivesse tempo de juntar e a bata jogada ao lado. (GONÇALVES, 2008, p.169)

Desta maneira, o senhor José Carlos se sente duplamente frustrado e sentindo-se

ofendido pela agressão convoca seus escravos e pede reforço da polícia da vila para

perseguirem um escravo fujão e perigoso. Depois de capturado, o escravo é levado para a

mesma cabana do intento frustrado de estupro para que fosse punido de seu ato contra seu

próprio dono: “O escravo tinha os olhos vazios (...). tinha a pele preta toda nua e coberta de

crestas de sangue e cortes feitos pelo fio da chibata” (GONÇALVES, 2008, p.171). É isto o que

vê Kehinde quando é levada para o mesmo cômodo. Ali dá-lhe um tapa ferindo-a na boca,

derrubando-a na esteira, onde a estupra, de fato, com violência às vistas do namorado. Neste

momento, vem-lhe à mente o estupro da mãe ocorrido na África. A seguir, estupra o escravo

“dizendo que aquilo era para acabar com a macheza dele” (GONÇALVES, 2008, 172). Findos

os estupros, ordenou-lhe que os dois homens segurassem Lourenço de frente e “cortou fora o

membro dele” (GONÇALVES, 2008, p.172). Foi uma cena de crueldade sem limites. Nesta

parte da narrativa, é interessante refletir sobre o poder de mando dos senhores, o poder de

decisão que eles, os brancos, exerciam sobre os negros. A vida deste era totalmente controlada e

seguia o rumo decidido por aqueles. A cena de Lourenço nos faz pensar, fundamentalmente,

que até as questões mais pessoais, como a relações afetivas ou sexuais sofriam a intervenção

dos brancos autoritários. Essa destituição aviltante sobre a vida dos escravos era desumana,

nociva e destoa de toda e qualquer ideia sobre respeito ou dignidade humana.

Cenas tão dramáticas e cruéis como o duplo estupro e o arrancar de olhos de uma

escrava pela sinhá Ana Felipa só são possíveis pela imagética ficcional levando-se em conta

alguns aspectos. O primeiro é o compromisso ideológico da autora como afro-brasileira e,

portanto, sem pejo de assumir discursivamente o desvendar dos possíveis sofrimentos, torturas e

humilhações de uma raça em uma fase dos 300 anos de cativeiro. Um outro, desde 1980, é o

assumir da própria negritude procurando desmistificar em prosa ou em verso, o que ocorreu na

literatura feita por brancos e, ao mesmo tempo, os enfoques de grande parte da história oficiais.

Ambas, literatura e história estão comprometidas. A primeira com seus pares que foram ou são

os filhos, netos e bisnetos de senhores de escravo. A segunda busca passar para outras nações, a

61

imagem de um país humano, sem preconceitos e como uma “democracia racial”: falácia. Há

ainda mais um aspecto que não pode ser esquecido: a imaginação criadora da autora que foi

alimentada por alguns livros de história e que criam um construto de universo diegético.

Algumas obras de história só seguidas por ela, mencionado antes.

Alguns meses depois, Kehinde sentiu o filho mover-se no ventre e mais ou menos

na mesma época, no meio da noite, o senhor José Carlos teve “o membro picado por uma cobra

que tinha se alojado entre as cobertas” (GONÇALVES, 2008, p.174). Nenhum remédio

conseguiu neutralizar o veneno da cobra. O local picado inchou em demasia e a região peniana

começou a apodrecer em vida entre dores intensas. Morre em pouco tempo. Após a morte do

proprietário, a fazenda é vendida e a sua senhora, com alguns escravos mais antigos e Kehinde,

muda-se para Salvador e compra uma mansão (solar vitória). Termina, então, uma etapa da

longa saga da protagonista, alegre e despreocupada, por algum tempo de infância dolorosa nos

primeiros anos da adolescência.

O destino de um escravo não lhe pertence. Está nas mãos de seu senhor. No período

são muitas as tentativas para fugir de tal situação – fugas, revoltas, quilombos – eles, os negros,

tentavam sempre buscar uma brecha para comandar o seu próprio destino. Uma dessas

aberturas, por exemplo, os quilombos, incomodavam os senhores como outras. No entanto, ela

tinha uma agravante ao poder vigente, daí:

A destruição de um quilombo representava, portanto, uma luta contra a “agitação subversiva”, uma vez que os negros livremente congregados constituíam num flagrante desafio ao regime vigente - todo ele articulado com o sistema escravista. O objetivo do escravo em sua fuga era a liberdade. Ao sistema caberia evitar que isso ocorresse. E é claro que o escravo não fugia apenas porque e quando era submetido a maus tratos, rebelava-se contra a sua condição de escravo (PINSKY, 1988, pp.86-87).

Desta maneira, os quilombos eram espaços que se dedicavam à economia de

subsistência muito raramente ao comércio, uma vez que os negros tinham que se preocupar com

a sobrevivência em primeiro lugar, alguns quilombos tiveram sucesso, como por exemplo, o

quilombo dos Palmares em Alagoas. Aqueles que, escondidos no meio das matas, prosperaram

62

se transformaram em aldeias. Há muitos registros de quilombos por todo o país, principalmente

nos estados de Alagoas, Bahia, Pernambuco, Goiás, Mato Grosso e Minas Gerais.

A principal razão pela qual os quilombos se posicionavam nas matas era

estratégica: dificultar o acesso. Os que se situavam próximos a estradas garantiam pequenos

saques e, por consequência, a sobrevivência dos seus moradores. Neste sentido, a história nos

diz que quilombos não abrigavam não só escravos, mas também índios e pessoas procuradas

pela justiça, uma vez que assim como estes, aqueles também eram marginalizados dentro da

sociedade em que o branco ditava as regras. Os habitantes dos quilombos, chamados

“quilombolas”, eram escravos fugidos de seus senhores desde as primeiras fases do período

colonial. A maioria dos quilombolas sofria com a perseguição dos donos de terras, pois havia

interesse em retomar um escravo fugitivo e puni-lo como exemplo para os demais. Em UDC,

principalmente na etapa da vivência de Salvador, e contra esta “condição de escrava”, é que se

rebela a protagonista. No início é imperceptível, mas progressivamente vai ganhando força até

culminar em uma participação na revolta dos malês.

A mudança para Salvador, para Kehinde, teve um significado tão ou mais marcante

do que sua estada na senzala grande quando realmente passa a compreender o que é ser, de fato,

escravo, com trabalho de dezesseis horas diárias, alimentação escassa e precária e ter

conhecimento das fugas ou do projeto delas. “Em Salvador já é mais adulta apesar de seus 13

anos para 14 e com um filho bebê”, começa a se indispor com sua senhora, Ana Felipa, devido

ao apego excessivo desta pelo seu filho”. É então colocada como escrava de ganho, ou seja,

passa a trabalhar fora. Este foi o castigo por ter ficado fora de casa por muito tempo. No

entanto, a ausência dela foi para a iniciação da criança nos rituais dos ritos africanos. Era a

cerimônia do nome ligando-o aos antepassados e prevendo o futuro da criança. Foi então que,

Kehinde, foi alugada à família dos Clegg, ingleses que moravam perto da casa de sua sinhá.

Com eles, aprende a falar inglês e a fazer biscoitos, “cookies”, os quais vão lhe valer muito

posteriormente. Pois foi com este aprendizado sobre “tal quitute” que ela, a narradora,

posteriormente, começa a ter mais relações sociais.

Às noites, ela saltava o muro da casa da sinhá para ver o filho e em uma noite, foi

presa pela polícia; sua primeira prisão. A sinhá ficou furiosa, Kehinde volta para casa desta e é

mandada para trabalhar na rua, depois de ter sido devolvida pela família dos ingleses; e grande

parte dos lucros que obtinha com a venda dos biscoitos era dada à sinhá. Este pagamento era um

tipo de imposto chamado “jornal”. Com isto, ampliava-se não só o espaço, mas o conhecimento

63

de outras realidades dos escravos, e dos livres também. A protagonista faz novos amigos, de

diferentes etnias e com afro-brasileiros. Começa então a pensar na compra de sua liberdade, do

filho e da Isméria, a segunda mãe, bem como dos amigos de infância Tico e Hilário. Participa

de uma cooperativa com este intuito. Porém, vendo que seus esforços na venda dos “cookies”

não eram suficientes para angariar todo o montante para compra de todas as cartas, ela, já

sabendo que sua sinhá tinha decidido ir morar em Portugal e vendê-la. Kehinde ficou

desesperada e pediu ajuda aos deuses: roga a Oxum, o orixá o qual, ela possuía uma imagem e

resolve fazer uma rifa desta. No instante em que vai pegar a estátua para entregar ao ganhador,

esta se parte e salta delas ouro em pó e pedras preciosas, conforme já foi dito anteriormente. É

com este recurso que ela consegue comprar, preparando uma cilada para a sinhá, as cartas de

alforria dela, do filho, de Isméria, Sebastião, e dos amigos de infância Tico e Hilário.

Após a conquista da liberdade, ela, a protagonista, vai morar com uma amiga,

Claudina, feita nas andanças pela cidade. Recomeça a ampliar o comércio dos “cookies” que

são vendidos em uma escala maior. Nesta época, conhece um português, Alberto, o qual tem o

seu segundo filho. Morre o primeiro filho. Ela envolve-se com os muçurumins, negros

mulçumanos, os quais prepararam a revolta dos malês, acontecimento histórico de destaque na

Bahia em 1835. Os organizadores do levante eram malês, termo pelo qual eram conhecidos na

Bahia da época, os africanos mulçumanos. De acordo com João José dos Reis, esta revolta

acontece na noite do dia 24 para 25 de janeiro de 1835, quando um grupo de africanos, escravos

e libertos, ocupou as ruas de Salvador, Bahia, e durante mais de três horas, enfrentou soldados e

civis armados e:

Embora durasse pouco tempo, apenas algumas horas, foi o levante de escravos urbanos mais sério ocorrido nas Américas e teve efeitos duradouros para o conjunto do Brasil escravista. Centenas de insurgentes participaram, cerca de setenta morreram e mais de quinhentos, numa estimativa conservadora, foram depois punidos com pena de morte, prisão, acoites e deportação. (REIS, 2009, p. 9).

Logo após o levante, a protagonista consegue se esconder no porão do convento das

Mercês por alguns dias. A Bahia se torna um pandemônio e muito castigo é dado aos negros.

Outro fato importante foi a “cemiterada”, ato este em que os moradores negavam a ter seus

64

mortos enterrados fora do terreno santo, que era como consideravam o solo das igrejas

católicas. Kehinde, ao ir ver este acontecimento, é presa pela segunda vez.

Em função disto, ela é obrigada a migrar para evitar ser deportada, já que a revolta

era vista como subversiva e atentava contra o regime escravista, embora fosse contra a condição

de escravo. A personagem principal, então, vai para São Luís do Maranhão e lá passa um bom

tempo. Quando volta é surpreendida pela venda do filho, nascido livre, pelo amante português,

Alberto, pai do menino.

Se a vivência no espaço de Salvador, primeiro como escrava, depois como pequena

comerciante, em especial, de charutos, atividade que adotou após ter deixado a venda dos

“cookies” e por ser aquela atividade realizada pelos muçurumins, amplia não só a consciência

comercial, mas também a política e deu início em seu deslocamento geográfico, contudo com a

venda do filho. O que vem à tona é o lado materno. Nesta busca, torna-se incansável à procura

do filho. Para isto, deixa parte do capital acumulado com o marido da amiga de infância,

sinhazinha Ana Clara, para que ele, o advogado marido da amiga, tenha recursos suficientes

para ajudar na busca, com quem Kehinde contou até o final da vida. Ela, a protagonista, sempre

aguardou por notícias do filho perdido. Porém, apesar da ser um “símbolo da raça negra” pelas

lutas em favor do seu povo, é mister levantar um contraponto: ela, Kehinde, apesar de ter

procurado o filho por muito tempo, não é necessariamente um modelo de mãe, idealizado pela

sociedade por ter feito escolhas pessoais em função da lutas de seu povo.

Começa, então, com isto, a antepenúltima jornada de sua saga. Como em todas as

jornadas anteriores, estavam sempre consigo as imagens dos orixás: Oxum, Ibêjis, Xangô e

outros, bem como alguns livros. Parte então para o Rio de Janeiro. Hospeda-se em uma pensão,

num bairro mais ou menos perto do centro. Ali conheceu outros negros e amigos. Alguns foram

solidários com ela. “Os pretos de São Sebastião eram diferentes dos de São Salvador, por causa

da procedência. Para São Salvador, iam principalmente os da região de onde eu tinha saído, os

fons, os eves, os iorubás e mais outros, que, por lá, eram todos chamados de minas, porque

embarcavam na Costa da Mina” (GONÇALVES, 2008, p.648).

Na ex-capital do Brasil, ela recomeçou a sua peregrinação em busca do filho.

Percorreu várias ruas, mercados de escravos, os portos, além de procurar notícias nos jornais de

onde estavam sendo vendidos os escravos. Como se trata de romance-carta ao filho vendido, a

protagonista diz:

65

Procurando por você, eu percorria regularmente todos os principais mercados onde os empregados já me conheciam e avisavam que não tinha aparecido nenhum moleque do jeito que eu estava querendo. O que causava maior desespero era saber que existiam tantos mercados clandestinos, por onde você poderia ter sido vendido ou onde ainda poderia estar esperando comprador, sem que eu sequer tomasse conhecimento deles (GONÇALVES, 2008, p.675).

Aos domingos, praticamente todos que moravam na casa de cômodos saiam para se

divertir e num destes domingos, ela foi ao morro com um capoeirista, com o qual se envolveu

amorosamente. O morro era ainda uma região meio selvagem com muitas árvores e animais.

Dias depois, foi ver a festa de coroação do imperador D. Pedro II. A referência à coroação é um

dos muitos acontecimentos históricos que se entrelaçam à saga de Kehinde. Fala ainda da

atuação dos liberais por antecipar a maioridade de D. Pedro II e das rebeliões que estavam

ocorrendo:

Rebeliões federalistas que estavam acontecendo nas províncias do Maranhão e do Rio Grande. Atentei para o nome das províncias, a do Maranhão porque eu tinha saído de lá, e a do Rio Grande, ouvi quando citaram o Bento Gonçalves, o general que tinha ficado preso no Forte do Mar, em São Salvador (GONÇALVES, 2008, p. 679).

As referências históricas ratificam a opção da autora pela metaficção

historiográfica.

A permanência de Kehinde em São Sebastião, Rio de Janeiro, rendeu-lhe

conhecimentos variados, mas foi frustrante em relação à busca do filho. Durante este período

esteve em contato por cartas com os amigos de São Salvador, especialmente com a amiga

sinhazinha Maria Clara e também com o seu marido, que ficou encarregado de procurar o filho

através de seus contatos dentro e fora de Salvador. Como não teve êxito no Rio de Janeiro,

resolve seguir de São Sebastião do Rio de Janeiro Santos. A viagem foi tranquila “em um

pequeno paquete que leva mais carga do que passageiros” (GONÇALVES, 2008, p.710). Na

cidade foi procurar o armazém que lhe haviam indicado. Lá soube que havia mudado de dono e

o novo que ali conheceu estava viajando para São Paulo e só voltaria para a semana seguinte.

Na semana da chegada do proprietário do armazém pegou “suas coisas e ficou frente à casa dele

66

escrevendo, virou atração (...) uma preta que sabia escrever e se exibia em locais públicos. E se

sentiu orgulhosa de mostrar que sabia fazer coisa que não era comum nem entre os brancos”

(GONÇALVES, 2008, p.711). Como isto não era comum nem entre os brancos, a autora coloca

em evidência um fato histórico: o pouco conhecimento de leitura e escrita entre os brancos e no

caso dos negros, era inusitado.

Com a chegada do proprietário do armazém, ela, Kehinde, precisou se apresentar

como a mando de seu senhor “que procurava um escravo fujão pelo qual ele estava disposto a

pagar uma boa recompensa” (GONÇALVES, 2008. p.712). O dono do estabelecimento

Procurou saber mais alguns detalhes sobre o suposto dono: Ao sair da Bahia, o amigo, Dr. José Manoel, havia lhe conseguido “uma espécie de carta” como se ela fosse escrava dele, para que pudesse entrar no Rio de Janeiro sem problemas, uma vez que os negros livres procedentes da Bahia eram impedidos de desembarcar devido ao receio de serem um dos participantes de rebeliões (GONÇALVES, 2008. p. 635).

Desta maneira, ela, a protagonista, disse ser o Dr. José Manoel o seu dono, com

escritório em Salvador. Então respondeu-lhe, o proprietário, que voltasse dali a dois dias. Ao

retornar, recebeu a primeira notícia que lhe parecia auspiciosa. Soube que o filho havia sido

vendido para Campinas. Ele a informou, ainda, que o melhor seria ir até São Paulo e depois

procurar saber qual o melhor caminho para Campinas. Avisou-lhe também que havia uma tropa

que sairia em poucos dias para São Paulo. Se na primeira vez, o proprietário a recebeu com má

vontade, já da segunda vez foi atencioso, deixando-a meio intrigada. Não lhe comprou nada,

embora tudo o que lhe deu foram pistas que poderiam levar ou não à descoberta do filho.

Porém, como raramente as pessoas fazem um favor gratuito, principalmente no caso dela, uma

mulher negra, só anos depois ela soube que o Dr. José Manoel havia pagado pelas pistas. Ela

não pôde agradecer ou repor o dinheiro. Ele estava morto.

Após a difícil viagem com os tropeiros, ela chega a São Paulo. Ao chegar nesta

cidade, ficou sabendo de uma tropa que sairia para Campinas em quatro ou cinco dias.

Chegando a Campinas os tropeiros a deixam em frente ao armazém que lhe tinham indicado: o

dono, um português a recebeu com simpatia e foi atencioso. Checou os livros que se referiam às

datas fornecidas por ela, disse-lhe que cinco meses depois de tê-lo recebido, o filho de Kehinde

foi devolvido para São Paulo. Acrescentou: “que achava que até sabia quem era você, um

67

mulatinho calado e com cara de inteligente que foi mandado de volta para o mercado de São

Paulo depois de ser considerado mercadoria encalhada” (GONÇALVES, 2008. p.720).

O desapontamento foi grande, contudo, teve que esperar uma semana por outra

tropa para retornar a São Paulo com endereço de uma hospedaria no centro da cidade para onde

o filho tinha sido mandado, embora já não esperasse encontrá-lo naquele lugar. Lá foi muito

mal recebida. O comerciante ameaçou de mandar prendê-la. Só depois de ter feito muitas

perguntas e ela disse que estava ali “por conta de uma busca a mando de seu dono, que tinha

ficado em São Salvador” (GONÇALVES, 2008. p.721), então, resolveu contar que “tinha

recebido você de volta do comerciante de Campinas e o tinha tomado como criado na própria

hospedaria, de onde você tinha fugido não havia nem um mês (...)” (GONÇALVES, 2008.

p.721).

Na hospedaria consegue alugar um pequeno quarto que servia de depósito, pois

estava cheia com hóspedes fixos. À noite, um estudante à procura e conta-lhe sobre o filho, o

qual havia ensinado o menino a ler e a escrever, devido ao interesse que mostrara em relação

aos livros de Direito. Ele disse-lhe que era tão inteligente que “nem parecia preto e recebi isso

com um grande elogio” (GONÇALVES, 2008. p.723) e relatou também que você disse que

seria advogado. Após aprender ler, ele, filho, descobre no escritório do seu senhor que tinha

nascido livre. Resolve fugir e vai despedir-se do estudante e agradecer-lhe o por ter ensinado-o

a ler, pois sem isto, o filho jamais teria saído de tal situação.

Volta a Santos de onde embarca para São Salvador. Na cidade reencontra os

amigos, Tico e Hilário principalmente. Todos se surpreendem com sua volta sem o filho. Na

casa onde morava com os filhos e Isméria encontra o Tico, um amigo de infância; depois a

amiga também de infância, a sinhazinha e o marido desta. Contar-lhes que as suas peripécias e

frustrações a deixavam triste e cansada e, mesmo a estada em São Sebastião do Rio de Janeiro,

a qual teve alguns momentos de convivência agradáveis e onde demorou mais. Permanece em

São Salvador por seis meses, os quais lhe pareciam “mais longos por causa da grande

movimentação dos três meses anteriores” (GONÇALVES, 2008. p.724). Neste espaço de tempo

em São Salvador, ia todos os dias sentar-se em alguma murada no porto em companhia do Tico,

cuja esposa morrera e conversam enquanto olhavam os barcos que chegavam, na esperança de

que o filho descesse de algum dele. Foi numa dessas conversas com o Tico em que comentou

que sempre teve vontade de conhecer a África, devido o que ela contava sobre lugares e

pessoas. Lembrou-se de Uidá e da família da Titilayo, primeiros amigos dessa cidade. Tais

68

lembranças despertaram interesse dela em voltar à África. O primeiro indício dessa vontade de

voltar às origens surge, ainda, no Rio de Janeiro, quando a protagonista se lembra “bastante da

África, das pessoas, dos lugares, dos acontecimentos, e não era raro ser acometida por uma

grande vontade de voltar” (GONÇALVES, 2008. pp.713-714).

A volta à África é a penúltima jornada da saga de Kehinde. Após quase um mês de

viagem, desembarca no porto de Uidá onde tinha partido trinta anos antes. A viagem foi oposta

da saída de Uidá, capturada com a irmã e a avó e colocada no porão infecto de um navio

negreiro. Agora viajava sozinha, senhora de um destino, com vultosa bagagem. Ocupava um

alojamento com oito pessoas entre homens, mulheres e crianças. Tal alojamento tinha cama

com esteiras grossas e correntes para prender a bagagem, para que não fosse jogada de um lugar

para outro. Os companheiros deixam-na ocupar as “três camas sobrepostas, no canto, para que

tivesse mais privacidade e se dividiram nas outras seis” (GONÇALVES, 2008. pp.732-733).

Além do pessoal do alojamento coletivo, viajavam mais oito passageiros, alojados

em cômodos duplos ou triplos. Os viajantes eram ingleses ou pessoas que trabalhavam para os

britânicos como John, mulato escuro, que ela conheceu nesta segunda travessia. Este procurava

saber de quem era a mercadoria embarcada. Kehinde e John começam um relacionamento que

se estende para além da viagem. Ele fica com a mercadoria dela para vender. Após concordar,

ela ficou muito preocupada, pois mal o conhecia:

Durante a travessia, o navio foi abordado pela “Royal Navy”, apesar da bandeira inglesa, porque muitos navios de outras nações usavam-na para tentar ludibriar a marinha inglesa, fiscalizadora do tráfico ilícito. A fiscalização era fruto de um acordo entre Inglaterra e Brasil, mas pouco respeitado por este e outros países (GONÇALVES, 2008. p.722-733).

Kehinde desembarcou em Uidá onde residiam as únicas referências de amizade de

Titilayo. Logo que foi reconhecida, receberam-na com alegria. A amiga da avó, Titilayo, havia

morrido, outros que foram companheiros de infância moravam ou trabalhavam longe. Foram

avisados e logo vieram para vê-la, inclusive a grande amiga Aina, a quem contou que estava

grávida e lhe falou do Jhon, o pai do seu filho; e também das dúvidas sobre as mercadorias que

e, Kehinde, tinha deixado com ele.

69

Quatro meses depois, ele, Jhon, voltou e contou o que fez com o dinheiro dela,

juntamente com o dele, comprando pólvora e arma, o que lhes daria um lucro bem maior.

Falou-lhe então que descobriu que estava grávida de gêmeos; ele ficou feliz e decidiu, após

resolver alguns negócios, se fixar em Uidá. Kehinde alugou uma casa e mudou com Aina e os

dois filhos. A amiga ajudava e recebia remuneração. O companheiro continuou as viagens com

compras e vendas de pólvoras e armas. John voltava sempre. Ela fez amizade com brasileiros22

Ao voltar de uma viagem pelo interior, John avisou que tinha comprado uma

fazenda de palmas, de cujos frutos extraiam o azeite. Ela, Kehinde, queria um negócio só seu.

,

a qual se prolongou por todo tempo que estava na África.

Depois, a protagonista mudou-se pela terceira vez para uma casa maior com o

intuito de esperar os gêmeos. Pouco tempo depois, eles nascem e recebem os nomes de Maria

Clara e João. Após o parto, sentindo disposta, resolveu assumir os negócios em Uidá para não

deixar toda a responsabilidade ao companheiro, mas para se sentir mais segura. Vai, assim,

retornando aos poucos a suas atividades comerciais, como havia feito em São Salvador, com

uma grande diferença, tinha mais capital e um companheiro também comerciante e confiável.

O negócio seguinte foi a construção da própria casa, para a qual mandou trazer

material, do Brasil, e o amigo de infância Tico. Arranjou um bom artesão em madeira para os

móveis, portas e janelas. A casa foi construída à maneira dos sobrados brasileiros. Mesmo antes

de estar pronta, já atraía o interesse de muitos que queriam uma casa igual. A construção de

casas foi uma atividade, tão lucrativa, quase, como o de compras e vendas de armas e pólvoras.

Para cuidar dos gêmeos, contratou Jacinta, a qual vem com a filha pequena

conhecida também na viagem de retorno. A criança, em casa de Kehinde, acidentou-se e perdeu

alguns dedos da mão direita. Como os filhos, Maria Clara e João, Ela, Geninha, estudou em

colégio francês. A filha de Jacinta resolveu ser freira, mas desistiu quando, já mais velha,

Kehinde começa a ficar cega. Os filhos vão completar os estudos em Paris. E certa vez faz

alusão aos conflitos na “cidade luz”, ocorridos entre as décadas de 1830 e 1850, em

consequências dos problemas gerados com a revolução industrial e os maus governos,

ocasionando instabilidades sócio-político-econômicas.

22 Eram considerados brasileiros, na África, não só os nascidos no Brasil, mas qualquer uma que

falasse muito ou pouco, o português aprendido noBrasil.

70

Mais tarde, ele os levou, ela e os filhos, para conhecê-la. Desde, então, passou a ficar “mais

tempo na fazenda do que em qualquer outro lugar” (GONÇALVES, 2008. p.861). Lá se

envolveu com algumas mulheres e pegou uma doença incurável, morrendo em poucos meses,

apesar de todos os esforços para curá-lo.

Após a morte do companheiro, mudou para Lagos, cidade maior e mais

movimentada do que Uidá. Faz amizade com outros brasileiros. Naquela cidade já era

conhecida pelas casas que foram construídas por ela. Com o tempo e a volta dos filhos de Paris,

delega a atividade de construção a administradores e depois ao filho e ficava mais em casa.

Com os filhos casados com seus negócios, a filha tinha uma escola depois de ter se formado

professora. O filho tornou-se responsável pelo negócio de construção de casa. Já quase aos

oitenta anos, resolveu voltar para o Brasil, depois de ter morado pela segunda vez na África.

Ao longo das etapas desta longa jornada, a protagonista conduz consigo como

força, como algo vital, a lembrança dos filhos, do morto e do vendido. E dos orixás e também

dos amigos. Em relação aos orixás, ela sempre os carregava consigo. Chegando à África, nas

casas por ela morada, tanto em Uidá quanto em Lagos, eles, os orixás, tinham um espaço

separado para que pudessem ser cultuá-los. No entanto, Kehinde, manteve o sincretismo

religioso com o catolicismo não por imposição de outrem, mas por razões diversas. Uma para

estar em concordância com os novos amigos brasileiros. A outra, ela e os novos amigos “o que

nos fazia católico era a lembrança do Brasil e a superioridade sobre os selvagens e não a fé”

(GONÇALVES, 2008. p.895). Dentro desta perspectiva católica, ela, Kehinde, batizou os

filhos. Eles estudaram em colégios religiosos, pois também eram os únicos existentes naquela

cidade. E, ainda, por convivência social e comercial na África usavam mais os nomes cristãos,

porém modificados, ao invés de Luísa Gama, passou a se chamar Luisa Andrade e Silva.

Os filhos foram deixados no Brasil. O primeiro por morte e segundo pelo pai ter

vendido. O último foi motivo de suas buscas em diferentes estados do Brasil e de certo modo,

em função da frustração das buscas, o responsável pela sua volta à África. Nesta procura pelo

filho, ou não, chama a atenção do leitor, além da imbricação de fatos históricos ao enredo, a

descrição da topografia das cidades onde ela, Kehinde, morou: São Sebastião do Rio de Janeiro,

apenas uma estada de dois anos, Uidá, Lagos ou nas cidades percorridas como Santos, São

Paulo, Campinas (inclusive das regiões). Fornece-nos assim, um conhecimento físico das

cidades correlacionando aos fatos urbanos nos diferentes níveis: sociais, atividades dos brancos,

dos negros livres e afro-brasileiros, do escravo de ganho ou não. Em São Paulo faz referência à

71

presença de estrangeiros de diferentes países em função das plantações de café que começavam

a surgir, nas cidades africanas, Uidá e Lagos, a presença dos estrangeiros está ligada, em geral,

ao comércio de escravos e armas.

A procura do filho vendido tornou-se o motivo preponderante de grande parte ou,

talvez, da maior parte da trama do corpus. Nem a presença nem o amor pelos filhos, nascidos na

África fez com que fosse esquecido e a prova disto é este longo romance-carta reminiscente. A

intenção da carta surgiu com a ideia de fazer um relato ao filho vendido nos três dias que

aconteceram a viagem, com a auxilio da Geninha, já que estava cega. Antes mesmo de viajar, o

relato estava enorme e continuou durante toda a viagem. Tentaram impedi-la de realizar a

última etapa de sua saga, mas não conseguiram, embora ficassem:

Argumentando que eu não aguentaria a viagem, que não teria como te encontrar e nem sabia se você estava vivo ou morando no mesmo lugar, em São Paulo. Mas nada disso teve importância, pois eu tinha certeza de que precisava vir, precisa te contar tudo que estou contando, agora. (GONÇALVES, 2008. p.945).

Viajou, então, com a mesma incerteza das procuras: estaria o filho vivo e iria

encontrá-lo. No entanto, o destino pregou-lhe uma grande peça: similar a que ocorreu ao

personagem de “Cantigas esponsais”, em que o músico passa a vida tentando encontrar uma

nota para suas cantigas esponsais e só descobre ao estar morrendo. O ponto crucial do problema

está na busca entre a técnica e inspiração na arte. O personagem principal, Mestre Romão,

apesar de toda técnica, não possuí nenhuma inspiração para compor nem ao mesmo uma cantiga

de esponsais, que pode se comparada a outros tipos de música e considerada relativamente

simples. Além disso, o protagonista, apesar de todos os esforços é apenas um intérprete, pois

não consegue dizer algo no que se refere à habilidade musical com o ato de compor.

Assim, não muito diferente ao que aconteceu no conto de Machado de Assim, em

que o personagem passou boa parte da vida em busca de algo (da nota), Kehinde, quando estava

dentro do navio, resolveu abrir uma caixa com o nome do filho vendido, esquecida há anos em

um escritório de Lagos. Geninha, sua companheira de viagem, abriu a caixa:

72

Viu três cartas remetidas de São Paulo, todos do mesmo ano, um mil oitocentos e setenta e sete, com intervalo de três meses entre uma e outra. A primeira era mais um aviso (...) que tinha encontrado (...). Na segunda carta, ele dava mais detalhes de você (...) que você era amanuense e que também advogava em favor dos negros (...).

Desta maneira, no final da obra UDC, a autora nos mostra que, de fato, a narrativa é

um romance-memorialista e confirma-se o sentido da busca da personagem, pelo filho e este, de

certo modo, também deu continuidade à luta da mãe, Kehinde, símbolo da raça negra.

73

CONCLUSÃO

A obra Um defeito de cor, em suas linhas constitutivas da trama – fatos da história

do Brasil, escravos e orixás – tece por meio destes elementos de maneira criativa a história da

escravidão em nossos pais, levando o leitor a refletir sobre esta realidade, talvez pouco pensada

em seus meandros mais desumanos: vendas, compras, tentativa de aniquilamento da identidade,

agressões etc. A autora toma como representação desta realidade, uma mulher, Kehinde, que

encarna a raça negra em busca de liberdade e melhores condições de vida.

A narrativa é longa, marcada por descrições, as quais, em um primeiro momento,

parecem minudentes demais, porém, no decorrer da leitura pode-se reconhecer a importância

delas. Permitem ao leitor ter uma visão detalhada no tempo do romance, mas também dos

espaços percorridos pela personagem central em sua saga ao longo do século XIX. Talvez aqui

não seja absurdo inferir que ela, como protótipo da raça negra, figura em suas andanças em

tempo-espaços diferentes, os diversos lugares em que foram desembarcadas as várias etnias

africanas. Na obra, a autora deixa claro isso mostrando que, na Bahia, predominam povos da

região da protagonista, enquanto que, no Rio, os de outras regiões da África.

Ela, Kehinde, representa a exclusão étnico-social da raça negra. Contudo, a autora,

por meio desta mulher símbolo, procura mostrá-la com um ser que não se deixa abater pelas

contradições de sua vida de escrava. Surge aos olhos do leitor, como alguém que conseguiu

fissurar a esfera social, conquistando uma posição como mulher, na época, de destaque pelos

conhecimentos de leitura, escrita e noções básicas de inglês. Torna-se assim, um exemplo de

persistência para o ser humano em geral, em especial para a raça e mulher negra. Neste último

caso, a autora desmistifica a ideia corrente desde o século XVIII ao século XIX, a propalada

inferioridade intelectiva do negro.

Chama ainda a atenção do leitor, as formas de defesa do negro para conservar sua

identidade, algumas destruídas como a família, regiões, que vão sendo reconstruídas dentro da

nova realidade pela constituição de novos laços afetivos. Outros, como culto aos orixás,

permanecem camuflados aos santos da religião do vencedor. A luta, ainda, é uma atitude de

resistência a favor de tudo isto e em particular de um direito inalienável ao ser humano: a

liberdade. Os mecanismos apresentados pela autora, utilizados pelos negros em função da

74

liberdade vão do suicídio à fuga de fazendas, bem como a formação de quilombos, espaços de

liberdade e cooperativismo.

Todos estes aspectos aliados aos fatos históricos que se entrelaçam ao longo da

narrativa dão ao universo diegético um tom de verossimilhança quer pelas localidades, espaços

urbanos ou rurais, quer pelos acontecimentos históricos que vão tecendo de maneira original a

obra.

Ler Um Defeito de cor é um levantar de véus de muitos ângulos que ficaram

encobertos pelas literaturas do século XIX e parte do XX e que vão sendo desvelados por meio

das descrições detalhadas. Por tudo isso, é um “documento” importante dentro da literatura

brasileira. Vale a pena lê-lo.

75

BIBLIOGRAFIA

REFERENCIAL LITERÁRIO (CORPUS)

GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor. RECORD. Rio de Janeiro, 2008.

REFERENCIAL TEÓRICO

ANDRÉ, Maria Consolação André. O ser negro – A constituição de Subjetividades em Afro-

descendentes. Estações. Brasília, 2008.

ASSIS, Machado de. Cantigas de Esponsais. In: Obras completas, conto e teatro. Volume II.

Org. Afrânio Coutinho. Nova Aguilar. Rio de Janeiro, 1983.

ARRUDA, Angela (ORG). Representando a alteridade. VOZES. Petrópolis-RJ, 1998.

AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. Escala. Rio de Janeiro, 2003.

BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e estética. UNESP. São Paulo 1998;

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes: 2006;

BORDIEU, Pierre. O poder simbólico. Bertrand Brasil: Rio de Janeiro 1989.

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. Vozes. Volume I. Rio de Janeiro, 1994.

CARRIZO, Silvina.1. História de amor, geografias de encontros. In Fronteiras da imaginação.

2. Os românticos brasileiros: mestiçagem e não. EDDUF, 2001.

76

CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. José Olympio. Rio de

Janeiro: 2006.

CHIAVENATO, Júlio. O negro no Brasil. Editora Braziliense. São Paulo, 1986.

COSTA, Sérgio. Dois Atlânticos: Teoria social, anti-racismo, cosmopolitismo. Humanitas.

BH, 2006.

DUARTE, Eduardo de Assis. Literatura Política Identidades. UFMG. Belo Horizonte, 2006.

ELIADE, Mircea. Aspectos do mito. Edições 70. Rio de Janeiro, 1989.

FRANCHINI, A.S e SEGANFREDO, Carmen. As melhores histórias da mitologia africana.

Artes e ofícios. Porto Alegre, 2008.

FREIRE, Gilberto. 1.Casa-Grande e Sezala. 2. Sobrados e Mucambos. . Nova Aguilar. Rio de

Janeiro, 2002. Volume I. Intérpretes do Brasil, coordenação, seleção de livros e prefácio de

SANTIAGO, Silviano.

FREIRE, Gilberto. Casa-Grande & Sezala. Global Editora. São Paulo, 2003.

HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-modernismo. IMAGO, Rio de Janeiro, 1987.

JOAQUIM, Maria Salete. Construção da identidade negra. Pallas. São Paulo, 2001.

LAMBERT: Jean-Marie. História da África Negra. KELPS. Goiânia, 2001.

LOPES, Ney. Bantos, malês e identidade negra. Autêntica. Belo Horizonte, 2011.

LOPES, Ney. Enciclopédia brasileira da diáspora africana. Selo negro. São Paulo, 2004.

MACEDO. Joaquim Manuel de. A moreninha. FTD. São Paulo, 2004.

77

MACEDO. Joaquim Manuel de. As Vítimas-Algozes: quadro da escravidão. Zouk. Porto alegre:

2006.

MUNANGA, Kabengele. Negritude: Usos e sentidos. Ed Autêntica. Belo Horizonte, 2009.

OJO-ADE, Femi. Negro: raça e cultura. EDUFBA. Salvador, 2006.

PINSKY. Jaime. A escravidão no Brasil. São Paulo: CONTEXTO, 2006.

REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a História do Levante dos Malês em 1835. São

Paulo: Companhia das Letras, 2003.

RICOEUR. Paul. A memória, a história, o esquecimento. UNICAMP. São Paulo, 2005.

VERGER, Pierre Fatumbi. Orixás, deuses iorubas na África e no Novo Mundo. Trad. Maria

Aparecida da Nóbrega. Corrupio. Salvador, 1997.

SILVA, Amauri Rodrigues. Presença e silêncio, da colônia à pós-modernidade: sina-is do

personagem negro na literatura brasileira. ícone, gráfica e editora. Brasília, 2010.