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    Locke, Liberdade,Igualdade e Propriedade

    Rolf Kuntz

    Texto disponvel em www.iea.usp.br/artigosAs opinies aqui expressas so de inteira responsabilidade do autor, no refletindo necessariamente as posies do IEA/USP.

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    Locke, Liberdade, Igualdade e Propriedade*

    Rolf Kuntz**

    Robert Dahl comea um livro sobre a democracia econmica perguntando se a

    igualdade inimiga da liberdade. Ele no inventou a pergunta. O problema pelo menos

    to velho quanto a filosofia liberal, se o ponto inicial do liberalismo for situado em Locke.

    A questo inversa foi muito menos freqente desde o final do sculo 17. Rousseau foi um

    dos poucos, antes de Marx, a inverter a perspectiva, mostrando como difcil ser livre

    numa sociedade formada por desiguais. Os doisDiscursos rousseaunianos, porm, estavam

    to fora do padro comum que muitos leitores no os levaram a srio, enquanto outrossimplesmente no foram capazes de entend-los. Com o pensamento lockiano, liberdade e

    propriedade se haviam convertido em termos quase indissociveis. Afinal, no havia Locke

    englobado a vida, a liberdade e o patrimnio no conceito de propriedade? Rousseau foi

    uma exceo, no sculo 18. No 19, o pensamento poltico e econmico permaneceu

    dominado pela perspectiva burguesa. Houve algumas vozes dissonantes, mas s um autor,

    Marx, avanou o suficiente para sustentar que a desigualdade capitalista, baseada no

    controle dos meios de produo, dependia da igualdade formal dos participantes domercado. Essa igualdade jurdica s se havia tornado possvel com o fim da servido, isto

    , com a liberao da fora de trabalho.

    De certo modo, Marx matou a charada, mostrando a correspondncia entre

    liberdade formal e desigualdade material. Sua concluso podia ser muito engenhosa,

    teoricamente, mas envolvia um considervel problema prtico: a reconciliao entre

    liberdade e igualdade, em termos materiais e formais, s seria possvel noutro sistema.

    Nem todos estavam preparados para aceitar essa implicao, tanto no seu tempo quanto

    nos cem anos seguintes. Rejeitada a resposta, o problema permaneceu: em que sentido, e

    at que ponto, os homens poderiam, se que poderiam, ser livres e iguais no mundo

    capitalista e com base em valores liberais? Esta ltima separao pode parecer estranha,

    primeira vista, mas s para quem aceitar a identificao entre capitalismo e liberalismo tal

    como feita no Brasil, mas no s no Brasil: se o regime capitalista, liberal. S essa

    identificao permitiu que tantas pessoas se intitulassem liberais e, ao mesmo tempo,

    * Texto da conferncia realizada por Rolf Kuntz no IEA em 11 de abril de 1997.** Professor do Departamento de Filosofia da FFLCH/USP.

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    aplaudissem o regime do general Pinochet. Liberalismo, nesse caso, simplesmente se

    confunde com a defesa incondicional da propriedade e, pelo menos at certo ponto, do

    livre mercado. Nada tem que ver com a igualdade, nem com o pleno exerccio da

    cidadania. O problema da conciliao s existe quando se considera que os dois valores,

    liberdade e igualdade, balizam a tradio das democracias constitucionais do Ocidente e

    permanecem relevantes. Essa tradio a grande moldura da reflexo rawlsiana. Ele no

    pretendeu construir uma teoria da justia para qualquer sociedade, mas uma capaz de

    expressar, com o maior equilbrio, certos valores consolidados na cultura ocidental

    moderna, especialmente a partir da Reforma. Esses valores incluem tanto a igualdade

    quanto uma noo nova da liberdade individual. Tolerncia e respeito pluralidade dos

    fins pessoais e das concepes de bem podem ser considerados mera especificao desses

    temas. fcil perceber como os dois valores balizam essa cultura. Tente-se imaginar uma

    questo constitucional, mesmo relativa segurana do Estado e soberania, que no seja

    redutvel a um debate sobre liberdade, no sentido moderno, ou sobre igualdade.

    Rawls vincula suas idias, em vrios momentos, tradio kantiana. Ele se refere a

    Locke principalmente como a origem de uma das grandes vertentes do liberalismo, aquela

    associada, sobretudo, defesa da liberdade dos modernos. Mas o problema bsico

    enfrentado em Uma Teoria da Justia pode ser identificado, sem dificuldade, na

    construo do pensamento lockiano.

    No preciso aceitar a interpretao de McPherson sobre a viso lockiana da

    cidadania para perceber o problema. A defesa da acumulao como compatvel com o

    direito natural, no captulo 5 do Segundo Tratado, uma forma de legitimar a

    desigualdade. Alm disso, a contribuio de Locke ao projeto de constituio da Carolina,

    assim como suas propostas para o emprego dos pobres, mostram limites polticos e

    econmicos do seu igualitarismo. Tudo isso facilmente visvel. No entanto, esse

    igualitarismo, embora restrito, pea fundamental da concepo lockiana do poderpoltico. Mais que isso, um componente bsico de sua teoria do direito natural e um fator

    limitante da apropriao legtima. Por isto, Robert Nozick se v forado a examinar a

    teoria lockiana da aquisio. Que o pensamento de Locke seja examinado criticamente,

    nesse trabalho de Nozick, ao lado de obras contemporneas, como as de Amartya K. Sen e

    John Rawls, apenas ressalta a importncia duradoura dos argumentos em jogo no Segundo

    Tratado.

    Tambm no preciso aceitar as noes de lei natural e direito natural parareconhecer o problema como legtimo, nem para avaliar suas implicaes polticas. Tal

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    como formulada por John Rawls, por exemplo, a questo da justia no implica nenhum

    compromisso com o jusnaturalismo. Rawls, porm, pode tomar como um dado o material

    ideolgico fornecido pela tradio. Seu problema a combinao desse material. Mas esse

    estoque de valores tem uma histria filosfica e essa histria inclui o debate sobre a lei e o

    direito naturais. Foi esse o ponto de partida lockiano, na construo de sua teoria poltica, e

    no se pode entend-lasem comear por a.

    A exposio sobre o estado natural, no captulo 2 do Segundo Tratado, tem uma

    funo bem clara, na ordem da argumentao. O objetivo de Locke, no livro, discutir a

    natureza e os limites do poder poltico, tal como se anuncia no captulo inicial. A crtica do

    pensamento de Filmer, desenvolvida no Primeiro Tratado e resumida no comeo do

    Segundo, produz mais que uma rejeio da doutrina do direito divino dos reis. Embora a

    obra filmeriana seja o alvo imediato e o mais explcito, a argumentao atinge uma rea

    mais ampla, como um bombardeio de limpeza. Locke mostra no s a fragilidade, mas

    tambm a irrelevncia prtica da doutrina de Filmer e, alm disso, estabelece no mnimo os

    seguintes pontos:

    a) no h por que supor uma hierarquia natural entre os homens, nem pela

    paternidade, que s diferencia os indivduos transitoriamente, na relao familiar, nem por

    qualquer outro ttulo;

    b) no h por que afirmar um vnculo entre a propriedade e o direito de governar.

    Entenda-se: trata-se aqui de negar um direito originrio, que pudesse diferenciar os

    homens, naturalmente, como pretendentes legtimos ou no ao poder poltico. Esta

    restrio nada tem que ver com os diferentes direitos polticos de proprietrios e no-

    proprietrios, tais como estabelecidos, por exemplo, nas Constituies da Carolina ou na

    prtica inglesa do sculo 17. A crtica da teoria filmeriana cuida de fundamentos. Trata-se

    apenas de fixar a distino entre domnio privado e poder poltico, isto , pblico. Como

    proprietrios, argumenta Locke no captulo 7 do Primeiro Tratado, Abel e Caim notinham por que interferir no patrimnio do outro. Se esse direito existisse, um deles no

    teria de fato domnio privado. Em outras palavras, a condio de ambos, como detentores

    de direitos particulares, era de igualdade. Este ponto de extrema importncia. Locke no

    est apenas afirmando, como Aristteles, a distino radical entre dois tipos de associao,

    a famlia e a plis, mas insistindo num componente essencial da modernidade: a separao

    entre os atributos e faculdades privados e o poder tpico do estado. Vale a pena, desde

    logo, indicar algumas implicaes desse argumento. A separao tem conseqnciasimportantes em dois sentidos. De um lado, estabelece um fosso entre o domnio privado e a

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    dominao poltica. Duas condies so necessrias para a transposio desse fosso. A

    primeira o surgimento de um tipo de associao diferente da rede de intercmbios

    privados. Estes intercmbios so ainda parte do mundo natural. A associao poltica tem

    funes prprias e meios prprios. A segunda a seleo de um homem ou de homens

    para o exerccio dessas funes. Esta seleo s pode ser feita segundo critrios fixados

    especialmente para esse tipo de associao. De outro lado, a distino estabelece limites

    para a atuao do poder poltico. Exemplo: se os meios privados e os meios pblicos so

    distintos, o poder poltico s pode apropriar-se, para seus fins, dos bens concedidos

    livremente pelos proprietrios. Isto impe limites ao poder de tributar, assunto discutido

    por Locke no captulo 11 do Segundo Tratado. (A contrapartida evidente a interdio,

    para os agentes privados, de avanar nos bens pblicos. Este ponto, no Brasil, tem sido

    considerado muito menos bvio);

    c) se no h como traar a genealogia dos governos at uma deciso de Deus, nem

    como legitimar o poder pela paternidade ou pelo domnio material, o problema do governo

    e o da relao natural entre os homens ficam reabertos. A crtica do pensamento de Filmer

    no esclareceu a natureza do poder poltico, nem forneceu uma viso completa do que

    possa ser a condio natural dos homens. Comear pelo exame dessa condio parece,

    portanto, o procedimento mais defensvel. Se for bem sucedido, abrir caminho para

    esclarecer tambm o fato poltico.

    No pensamento de Locke, assim como no de Hobbes, a descoberta do natural se faz

    pela reduo da idia de homem a um mnimo inteligvel. No preciso supor o estado de

    natureza como historicamente determinado e reconstituir, para cada sociedade poltica, um

    momento de criao. O natural est diante ns, o tempo todo, nas manifestaes comuns da

    psicologia, nas operaes da razo (embora a prpria razo se desenvolva) e nas situaes

    em que falta a proteo oferecida pelo poder comum. Nisso, pelo menos, no h diferena

    entre a concepo lockiana e a hobbesiana. A crtica da obra de Filmer forneceu um pontode referncia: no h por que imaginar as relaes estveis de comando como naturais.

    Como Hobbes, Locke constri o cenrio a partir de uma negao: para expor a natureza,

    preciso eliminar a autoridade poltica, o poder de legislar positivamente, o controle da

    fora e o tribunal comum. Com esta operao, apaga-se a figura da hierarquia. Ao

    contrrio de Hobbes, porm, Locke no concebe o homem natural como guiado apenas por

    seus apetites, temores e clculos. A rigor, nem Hobbes precisa dessa concepo radical

    para descrever a condio do homem fora da ordem poltica. Fundamentais para a noohobbesiana de estado natural so trs pontos: 1) a igual vulnerabilidade violncia, quando

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    no h um poder comum para regular o uso da fora; 2) a igual expectativa de xito na

    busca dos objetivos individuais; 3) a insaciabilidade dos apetites. Em termos breves: no

    h, no homem, sociabilidade natural. A vida coletiva antes de tudo represso. Se os

    homens fossem habitualmente guiados pela razo, limitariam o campo de suas pretenses e

    criariam, mediante concesses mtuas, condies de vida pacfica e segura. Mas a razo

    individual no basta. Na viso de Hobbes, dois polos balizam a vida humana. Um deles a

    vida poltica, dependente do controle da violncia por uma instncia acima dos indivduos

    e dos grupos privados. O outro a aventura individual num mundo sem lei e sem

    segurana, com o interesse prprio como nico guia. Esse interesse no morre quando se

    institui a vida poltica. Mas a presena do poder comum permite controlar, restringir e

    compatibilizar os diferentes projetos individuais. No h meio termo entre a

    individualidade sem regra e a participao na comunidade poltica. No h, pelo menos,

    condio intermediria que seja relevante para o raciocnio hobbesiano. Lei natural, para

    Hobbes, apenas um teorema da razo, pelo qual se descobre o caminho da paz. Mas nada

    garante, na vida natural, que esse caminho seja seguido.

    Em Locke, a norma natural pode ser entendida como lei no sentido forte. A lei

    positiva no mais mandatria que a da natureza. mais garantida quanto execuo,

    mas nem por isso a lei natural desprovida de eficcia. Este ponto, discutido adiante, ,

    provavelmente, a diferena mais importante entre Locke e Hobbes. A maior parte do

    contraste entre as duas obras polticas decorre da. Mas convm voltar um passo para um

    exame mais claro do estado de natureza.

    Na condio natural, escreve Locke, os homens vivem num estado de perfeita

    liberdade para ordenar suas aes e para dispor de suas posses e pessoas como julguem

    adequado, dentro dos limites da lei de natureza, sem pedir autorizao ou depender da

    vontade de qualquer outro homem (ST, pargrafo 4). Esse tambm, segundo Locke,

    um estado de perfeita igualdade, no qual so recprocos todo poder e toda jurisdio,ningum tendo mais [desses atributos] que qualquer outro. A condio natural se

    identifica imediatamente, portanto, pela indiferenciao do poder. Mas preciso prestar

    ateno a um pormenor especial: aa idia de jurisdio recproca. Esta noo s se

    esclarece adiante, quando se descreve a lei natural. Depois de introduzir, dessa forma, a

    noo de igualdade, Locke procura justificar seu ponto-de-vista. Nesse estado, argumenta:

    nada mais evidente que criaturas da mesma espcie e da mesmaordem, nascidas promiscuamente [no sentido prprio: sem distino]

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    para as mesmas vantagens da natureza e para o uso das mesmas

    faculdades, devam tambm ser iguais umas s outras, sem

    subordinao ou sujeio, a menos que o senhor de todas eleve uma

    sobre outras, por uma declarao manifesta de sua vontade, e lhe

    confira, por indicao evidente e clara, um indubitvel direito ao

    domnio e soberania.

    No se conhece, porm, tal manifestao do Senhor: isto Locke procurou mostrar no

    Primeiro Tratado, ao criticar a doutrina de Filmer. Lembrar este ponto a funo do

    tpico inicial do Segundo Tratado: Tendo sido mostrado no discurso precedente... etc.

    Um pormenor deve ser desde j observado. Locke menciona a liberdade um

    pargrafo antes de introduzir a noo de igualdade. Mas a condio livre dos homes

    meramente descrita, sem uso de argumento. A liberdade, este o ponto importante,

    explicitada como poder de agir, dentro da lei de natureza, sem depender da autorizao de

    outra pessoa. Embora Locke se refira ao estado de natureza como condio tambm de

    igualdade, os dois atributos, de fato, no so apresentados como independentes. A idia

    de liberdade se explicita com a noo de igualdade, isto , de indiferenciao de poder.

    necessrio conceber os homens como iguais para v-los como livres. H um vnculo entre

    as duas idias, e a da liberdade s compreensvel por uma referncia outra.

    A noo de igualdade se explicita, portanto, em pelo menos dois componentes

    essenciais. Um deles, descrito positivamente, a comunidade da espcie e das faculdades

    caractersticas de cada um de seus indivduos. O outro, indicado de forma negativa, a

    ausncia de subordinao transitiva, do tipo A manda em B, mas B no manda em A (

    preciso no esquecer a idia de jurisdio recproca, que ser retomada frente). Hobbes

    acentuou de forma especial outro aspecto negativo: nenhum indivduo dependente s dos

    prprios meios pode julgar-se invulnervel violncia dos demais. Mesmo os mais fortes emais espertos tm de dormir, em algum momento. Alm disso, uma aliana temporria

    pode dar a vrios homens uma vantagem ocasional sobre qualquer inimigo isolado. Na

    exposio hobbesiana, este o argumento decisivo. A aproximada igualdade de foras e de

    inteligncia entre os homens vale mais como introduo do raciocnio do que como

    argumento final. A idia da vulnerabildade como condio geral dispensa Hobbes de se

    emaranhar em detalhes menos relevantes e mais complicados. A igualdade de expectativas

    basta para criar a condio favorvel ao conflito, quando um objeto atrai o interesse de doisindivduos. A experincia e o clculo projetam o conflito para diante, prolongando-o, e a

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    insatisfao desloca o objeto do desejo, abrindo novas oportunidades de confronto. Mas o

    fator que impede qualquer soluo duradoura, fora da vida poltica, a vulnerabilidade.

    Hart percebeu esse ponto com excepcional clareza, ao discutir o ndulo de bom senso

    das teorias do direito natural.

    Em Locke, a noo de igualdade envolve mais componentes. Os indivduos, como

    na teoria hobbesiana, partilham a condio de racionais e tm acesso, pela razo, s normas

    de comportamento necessrias paz. Essas normas so a lei de natureza. A razo, que

    essa lei, ensina a toda a humanidade, bastante que [os homens] a consultem, que, sendo

    todos iguais e independentes, ningum deve prejudicar a outrem na sua vida, sade,

    liberdade ou posses. Os homens so criaturas de Deus, a ele pertencem, nisso se igualam e

    devem durar segundo o desejo do criador e de ningum mais. Os homens partilham de uma

    comunidade de natureza,

    no se podendo, portanto, supor nenhuma subordinao entre ns,

    que possa autorizar-nos a destruir um ao outro, como se fssemos

    feitos para uso dos demais, como as criaturas inferiores so feitas

    para o nosso.

    Trata-se de uma identidade da espcie e, portanto, a lei de natureza serve preservao da

    humanidade, no mera defesa dos indivduos. O criminoso se afasta da condio humana

    e s por isso pode ser destrudo sem violao da lei natural. Por isso, o poder de fazer leis

    com a pena de morte e, conseqentemente, com todas as penalidades menores,

    caracterstico do poder poltico, como est indicado no fim do captulo 1, derivado da

    natureza, isto , da razo comum.

    Mas, assim como o crime pode ser definido no quadro da vida natural, e no s no

    mundo da norma positiva, a punio existe, em sentido prprio, no estado de natureza.Segundo Locke, a razo aponta no s a lei, mas tambm os meios de faz-la observar.

    Para a preservao de toda a humanidade, a execuo da lei de natureza , naquele

    estado, posto nas mos de cada homem. Assim, cada qual tem o direito de punir o

    transgressos em grau suficiente para impedir a violao. Aqui, a marca diferenciadora do

    pensamento lockiano:

    Pois a lei de natureza, como qualquer lei concernente ao homemneste mundo, seria em vo, se ningum, no estado de natureza,

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    tivesse opoderde execut-la e assim preservar o inocente e reprimir

    os ofensores.

    Locke no rejeita uma das condies hobbesianas: a lei deve estar vinculada ao poder de

    punir. Mas diverge de Hobbes ao afirmar a existncia desse poder na condio natural.

    Rousseau, mais fiel a Hobbes do que a Locke, repete, no entanto, a frmula usada no

    Segundo Tratado:

    Portanto, para que o pacto social no seja um formulrio vo, ele

    encerra tacitamente o compromisso - o nico que pode dar fora aos

    outros - segundo o qual quem quer que se recuse a obedecer

    vontade geral a isso ser constrangido por todo o corpo.

    Este compromisso se refere, porm, a uma norma positiva, caracterstica da soberania,

    como em Hobbes. Em Locke, a idia de punio legtima independe da noo de contrato

    poltico. A condio de igualdade no incompatvel com a da justia penal. A resposta ao

    aparente problema a idia de jurisdio recproca. O crime rompe o equilbrio. Como

    executor da lei natural, um homem pode vir a ter poder sobre outro, como se afirma no

    pargrafo 8 do Segundo Tratado, mas no um poder absoluto ou arbitrrio para impor ao

    criminoso um castigo sem limite. A razo deve prescrever a pena proporcional ao crime. A

    punio, tambm na condio natural, pode ser repressiva ou compensatria. Represso e

    reparao, argumenta Locke, so as duas nicas razes pelas quais um homem pode

    impor um dano a outro.

    A pena, importante lembrar, sempre se refere a um crime contra a espcie, seja

    um delito de morte ou uma violao patrimonial. Embora Locke faa uma referncia

    especial ao dano (injury) causado a um particular, assim como ao direito de reparao deledecorrente, a violao da lei sempre envolve uma ruptura na relao com a humanidade.

    Em qualquer caso, a ameaa contra a paz e a segurana e a punio se baseia no direito

    de preservar a humanidade em geral. Represso e reparao correspondem, porm, a dois

    direitos distintos. Cabe a qualquer homem aplicar a pena repressiva, mas a reparao s

    pode ser cobrada por quem sofreu a injria. Da deriva uma limitao do poder do

    magistrado. Este, ao dispor da faculdade comum de punir o criminoso, dispe tambm,

    quando o bem pblico o requeira, de autoridade para suspender a punio. Mas o direitode dispensar o ofensor da reparao, no caso do dano privado, s cabe ao ofendido. Ora, se

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    essa discriminao tem fundamento natural, parece evidente que Locke introduz no estado

    de natureza uma distino legal semelhante dos domnios pblico e privado.

    A distino pode parecer estranha, quando se parte da perspectiva hobbesiana. Em

    Hobbes, todas as leis naturais enunciadas no Leviat, nos captulos 14 e 15, se referem a

    obrigaes e direitos privados. A injustia definida como o no cumprimento de um

    pacto. O problema da segurana e da paz solucionado, nos teoremas da razo, com a

    construo do conceito de contrato e das normas dele decorrentes. Mas nem esse direito

    privado sustentvel fora da vida poltica. S o poder comum converte os teoremas em leis

    propriamente ditas. Em outras palavras: o poder pblico, em Hobbes, a condio de

    garantia do direito privado. O contrato pode ser a justificativa racional, mas no o

    fundamento, nem a origem, desse direito. Se a lei positiva e a lei natural se contm

    mutuamente, como est escrito no captulo 26 do Leviat, porque a razo, de um lado,

    exige a criao do poder comum como garantia da segurana, enquanto esse poder, de

    outro, confere efetividade s normas de convivncia. Hobbes nunca explica, porm, como

    a razo individual poderia criar aquele poder. A implementao do contrato exigiria pelo

    menos um breve intervalo de total confiana entre os homens - mas isso seria incompatvel

    com a prudncia no estado de natureza, como se mostra no captulo 14. Em Hobbes, a

    idia de contrato s fundante num sentido: corresponde soluo que todo indivduo

    poderia reconhecer, pelo clculo racional, como a melhor garantia da paz. Proporciona,

    portanto, a justificativa mais convincente para a obedincia civil. Mas s pode ser

    construda a partir da vida civil. Estas questes, porm, devem ser discutidas noutra

    ocasio. Importa, agora, o contraste com o pensamento lockiano.

    A concepo de Locke est livre dessas dificuldades do contratualismo hobbesiano.

    Na construo lockiana, as dimenses pblica e privada esto presentes, de alguma forma,

    no estado natural. O interesse da humanidade o equivalente da dimenso pblica. Em

    Hobbes, a ordem poltica uma alternativa autonomia dos indivduos. Em Locke, umrecorte numa sociedade maior, formada pelo conjunto dos homens. Ao descrever os dois

    principais poderes do homem no estado natural, no pargrafo 128, ele estabelece:

    O primeiro [o poder de] fazer o que considere adequado para

    preservar-se e aos outros, dentro do que permite a lei de natureza,

    pela qual, comum a todos, cada um e todo o resto da Humanidade

    so uma comunidade, formam uma sociedade distinta de todas asoutras criaturas.

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    No fosse pela corrupo e pelo carter vicioso de alguns, continua Locke, nenhuma

    necessidade haveria, para os homens, desta grande e natural comunidade e, por meio de

    acordos positivos, combinar-se em associaes menores e divididas. O outro poder, o de

    punir os crimes, abandonado e transferido a magistrados especialmente constitudos,

    quando o homem se incorpora numa sociedade poltica particular, isto , numa

    comunidade separada do resto da humanidade.

    Na descrio lockiana, os indivduos aparecem ou ligados a um grupo, ou

    humanidade ou a Deus, mas nunca soltos num vazio moral. Esse dado obscurecido pelo

    hbito, reforado a partir de Macpherson, de associar Locke ao paradigma individualista. O

    sujeito lockiano est sempre subordinado a uma ordem que A idia de uma comunidade ou

    sociedade humana fornece a Locke uma ordem que transcende a individualidade. Por isso,

    a oposio estado civil-estado natural no corresponde alternativa entre a ordem legal e a

    atomizao agentes livres de qualquer norma, ou desobrigados de responder a qualquer

    autoridade. preciso levar isso em conta para bem avaliar a crtica lockiana do poder

    tirnico. H dois pontos nessa crtica. Em primeiro lugar, esse poder no se confunde com

    o poltico. Este se caracteriza pela existncia de um juiz comum. Se no h juiz comum

    entre o sdito e o governante com poderes ilimitados, no h sociedade poltica. Melhor,

    portanto, viver no estado de natureza, em que os homens no so obrigados a submeter-

    se vontade injusta de outrem. Segundo ponto: no estado de natureza, quem julga

    erradamente, no seu ou no caso de qualquer outro, responsvel perante o resto da

    humanidade. Isto no mera retrica. Embora os homens tendam a julgar mal, quanto

    tratam da causa prpria, a possibilidade de correo maior, no estado de natureza, do que

    quando um homem dispe de poder para comandar uma multido.

    Nos Ensaios sobre a Lei da Natureza, um trabalho de 1660, parte da argumentao

    enfatiza a origem divina dos mandamentos naturais. Dessa origem decorre, segundo Locke,seu carter vinculante. Mas como se pode conhecer a norma e a obrigao? Pelo emprego

    das faculdades naturais do homem - esta a resposta. A referncia razo, contida tanto no

    Segundo Tratado quanto nos Ensaios, pode levar o leitor a um equvoco. A identificao

    entre razo e lei natural, presente nos dois livros, tem origem, claramente, numa noo

    ciceroniana convertida em lugar comum. No se trata, neste caso, da faculdade do

    entendimento, mas da recta ratio, isto , de certos princpios de ao definidos dos quais

    decorrem todas as virtudes e tudo que necessrio para a adequada conformao da moral

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    (ELN, p.111). No se deve confundir esses princpios com meros ditados da razo. A lei

    natural, na concepo lockiana, tem outro tipo de objetividade, porque provm de Deus:

    ... esta lei de natureza pode ser descrita como um decreto da vontade

    divina, discernvel pela luz da natureza e indicativa do que e do

    que no conforme natureza racional e, por esta razo, mandatria

    (commanding) ou proibitiva. A mim parece menos corretamente

    denominada, por algumas pessoas, ditame da razo, pois a razo no

    tanto estabelece e pronuncia essa lei de natureza quanto a procura e a

    descobre como lei estabelecida por um poder superior e implantada

    em nossos coraes (idem).

    Tambm esta expresso (pectoribus nostris insitam) pode ser enganadora, assim como a

    concluso do segundo argumento mencionado no primeiro ensaio: Esta lei, portanto, no

    escrita, mas inata, isto , natural. Nas duas passagens, o tema de Locke no a forma de

    conhecimento da lei natural. Nas pginas iniciais do livro, ele se limita a mostrar como os

    homens se referem a uma ordem moral adequada sua natureza e como so levados a

    aceitar sua existncia. O debate epistemolgico s comea no captulo seguinte, isto , no

    segundo ensaio. No o caso de reproduzir, aqui, toda a argumentao. O ponto de vista

    lockiano o mesmo que ser defendido em obras posteriores: a razo produz o

    conhecimento moral ordenando e compondo a matria fornecida pela experincia sensvel.

    No se trata, agora, da reta razo, mas da faculdade discursiva que procede das coisas

    conhecidas para as desconhecidas, argumentando de uma coisa para outra numa ordem

    definida e fixa de proposies (ELN, p. 151).

    Locke aponta no mesmo captulo a ordem necessria investigao. Para se

    descobrir vinculado a uma lei, o homem deve saber, em primeiro lugar, se existe umlegislador, isto , algum poder superior ao qual, de direito, ele seja subordinado.

    Conhecer a vontade e os comandos desse legislador o segundo passo. A investigao

    passa, portanto, por uma prova da existncia de Deus. Comea com o exame da natureza

    sensvel e de sua regularidade, prossegue com a busca de sua origem e alcana a idia de

    um ser superior, criador de todos os seres animados e inanimados. No h novidade na

    argumentao, mas a marca lockiana clara e acentuada pelo autor: no se recorre nem ao

    testemunho da conscincia nem concepo de uma idia inata de Deus. O passo seguinte reconhecer que esse criador, no apenas poderoso, mas tambm sbio, deve ter

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    produzido o mundo com algum propsito. Isso vale no s para o conjunto, mas para cada

    categoria dos seres criados, includa a criatura racional, o homem. O raciocnio, aqui, se

    bifurca. As obrigaes devem ser derivadas em parte da finalidade comum a todas as

    coisas - a glria de Deus - e em parte das caractersticas da espcie. Sua constituio e suas

    faculdades o impelem, por meio da experincia, no s auto-preservao, mas tambm

    vida em sociedade. Ele tem, portanto, obrigaes com Deus, consigo e com os

    semelhantes.

    Esse percurso pode parecer surpreendente. Em primeiro lugar, por envolver no

    debate sobre a lei natural uma investigao sobre a existncia de Deus. Em segundo, pelo

    uso de um raciocnio teleolgico. Locke parece, em boa parte desses ensaios, mergulhar na

    tradio escolstica, misturando velhos argumentos cristos a respeito da existncia de

    Deus com o finalismo aristotlico. Uma pergunta parece inevitvel: no seria suficiente,

    para a construo da idia de lei natural, o recurso noo de natureza humana? Em outras

    palavras: Locke no ter sido antieconmico, empregando mais do que o material

    necessrio para resolver o problema?

    Em relao a esse contexto, a resposta deve ser negativa: h uma funo precisa

    para a idia de Deus, nesse raciocnio. As noes de Deus e da imortalidade da alma

    devem ser necessariamente pressupostas, est escrito no quinto ensaio, se a existncia da

    lei natural for admitida. Pois no h lei sem legislador, e a lei no tem propsito sem

    punio. O vnculo, acrescenta Locke no captulo seguinte, deriva do domnio e do

    comando que um superior tem sobre ns e sobre nossas aes. Se no h lei sem punio,

    esta no basta, porm, para caracterizar a obrigao de obedecer. a conscincia desta

    obrigao, e no apenas o temor, que fundamenta a obedincia poltica. O mero temor

    poderia caracterizar a submisso a um tirano, mas no o dever de sujeio ao magistrado

    civil. Por isso, a fora vinculante da lei civil dependente da lei natural. Esta

    dependncia permite diferenciar o poder poltico do mero poder da fora, exercido portiranos, ladres e piratas.

    Deus aparece, portanto, como elemento fundante no s da lei natural, mas tambm

    da lei positiva. Essa funo justifica, logicamente, o percurso imposto argumentao na

    maior parte dos Ensaios sobre a Lei Natural. Mas Locke poderia ter evitado esse caminho,

    se no caisse, desde logo, numa armadilha conceitual. Essa armadilha uma concepo de

    lei totalmente hobbesiana. Trata-se, em primeiro lugar, de uma concepo voluntarista: a

    norma expressa a vontade, ou comando, de uma entidade superior. Essa entidade, alm detudo, personificada. Em segundo lugar, a definio inclui a punio como elemento

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    essencial. Uma lei sem punio, argumenta Locke, no tem propsito, embora o vnculo da

    obrigao decorra no do temor, mas da apreenso racional do que correto (ELN, p. 185).

    Se o autor aceita essas condies, a idia de lei natural impe a afirmao da existncia de

    uma divindade, ou algo semelhante (?), dotada de vontade legisladora. Locke no comete,

    claro, a grosseria de um raciocnio circular. H uma demonstrao da existncia de

    Deus e isso garante a sustentao do edifcio. A lei natural, nesse caso, s se distingue da

    lei positiva divina por ser conhecida por meio da luz da natureza, isto , da razo, e no

    pela revelao (ELN, p. 187).

    No Segundo Tratado, a argumentao se desenvolve de outro modo. A idia de

    humanidade ganha um sentido normativo: no a fonte da lei, mas em seu nome que a

    lei se aplica. Tambm se d um novo tratamento ao problema da sano. Continua a existir,

    certamente, uma divindade legisladora. Locke se refere ao desgnio divino mais de uma

    vez, para vrios propsitos. Na discusso sobre a propriedade, por exemplo, a

    transformao da natureza pelo trabalho valorizada como cumprimento de uma ordem do

    Senhor. Deus deu o mundo aos homens, em comum, mas no para permanecer

    inexplorado: deu-o para o uso dos industriosos e racionais (e o trabalho deveria ser seu

    ttulo para isso), no para a fantasia ou cobia dos encrenqueiros e criadores de caso. a

    tica puritana, se se quiser, convertendo a prosperidade em signo de virtude. Mas Deus e

    seus comandos - nisto consiste a mudana - deixam de ser essenciais cadeia de razes. A

    argumentao no desaba, se for eliminada a figura do legislador divino. No Segundo

    Tratado, cumprir e fazer cumprir a lei natural so obrigaes desempenhadas em nome da

    humanidade. Esta obrigao evidente para quem quer que procure usar corretamente o

    entendimento, caracterstica da espcie. A razo, regra e medida comum dos homens,

    pode ser um dom concedido por Deus, mas a descoberta da norma e do dever no tem de

    passar, necessariamente, pelo reconhecimento da divindade. Locke no faz esta restrio,

    nem precisaria faz-la. Simplesmente, ele fornece ao leitor os meios para entender a lei esuas implicaes sem recurso idia de Deus.

    O caminho para isso foi aberto, de fato, j nos Ensaios sobre a Lei de Natureza. O

    ensaio nmero oito, o ltimo, tem o ttulo: O interesse prprio de cada homem a base da

    lei de natureza? No. A discusso comea com duas definies.

    Primeiro, por base de lei natural ns entendemos algum tipo de

    alicerce sobre o qual so construdos e do qual, de alguma forma,todos os demais e menos evidentes preceitos daquela lei so

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    construdos e podem ser derivados, dele adquirindo, assim, toda a

    sua fora vinculante, na medida em que estejam de acordo com

    aquela, por assim dizer, lei primria e fundamental que o padro e

    a medida de todas as outras dela dependentes.

    Em segundo lugar, a questo da preeminncia do interesse prprio reposta da seguinte

    maneira:

    Ser verdadeiro que aquilo que cada indivduo, em cada

    circunstncia, julga vantajoso para si e para seus negcios concorda

    com a lei natural e, assim, para ele no apenas legal, mas tambm

    inevitvel, de tal modo que nada, na natureza, seja vinculante, exceto

    se trouxer consigo alguma vantagem pessoal imediata?

    A argumentao sustentada principalmente pelas idias de base e de vinculao.

    No se trata, como desde logo se ressalva, de saber se o homem deve ou no cuidar dos

    interesses privados, mas de examinar se esses interesses devem ser o objeto central de suas

    preocupaes e o ponto de referncia, direto ou indireto, de todos os seus deveres. Os

    argumentos consistem essencialmente nos seguintes pontos: 1) se essa lei for o fundamento

    de toda obrigao, a maioria, se no a totalidade, dos atos tradicionalmente considerados

    virtuosos no passar de perversidade. Patriotismo, generosidade, altrusmo e equidade

    sero o contrrio do que bom por natureza; 2) impossvel todos cumprirem a obrigao

    de obter o mximo para si. Sendo os bens limitados, a disputa sem regra inevitavelmente

    deixar alguns, talvez a maioria, desprovidos de quaisquer benefcios. Essa norma s

    compatvel com o estado de guerra, pois no admite a confiana, que o cimento da

    sociedade; 3) se os homens viverem com base nessa lei, no se poder falar em direito depropriedade, nem, portanto, em justia (genericamente, no se poderia falar em direito, a

    no ser no sentido hobbesiano: o poder de realizar os prprios fins, mesmo custa da vida

    alheia, o que tambm excluiria a idia de justia).

    A questo central o problema da composio. Agentes empenhados no

    cumprimento da mesma lei no podem estar em oposio, e muito menos em guerra, se

    essa norma, como se supe, for universal. Hobbes havia percebido esse ponto claramente.

    Por isso, sua primeira lei de natureza, base de todas as demais, ordena, em primeiro lugar,a busca da paz, e, se isso no for possvel, o uso de todos os meios para lutar e sobreviver.

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    Mesmo da perspectiva estritamente individualista, como entendida por Thomas Hobbes, o

    resultado timo s se obtm pela conciliao dos interesses. Ao discutir o interesse privado

    como objeto principal da obrigao, Locke s considerou, obviamente, a segunda parte da

    primeira lei natural hobbesiana.

    Ao discutir a verso radical do individualismo, Locke fez muito mais que refutar

    uma doutrina dificilmente sustentvel. O importante no o resgate, de fato desnecessrio,

    das virtudes tradicionalmente reconhecidas, mas o tratamento sociolgico de questes

    morais e legais. Seu comentrio sobre a confiana como fator de coeso social pode

    parecer uma banalidade. um indicativo, porm, da enorme distncia entre a sua teoria

    social e a hobbesiana. Hobbes tem uma teoria poltica e uma concepo do indivduo e de

    seu mecanismo psicolgico. Para Locke, ao contrrio, a poltica apenas uma das formas

    ou uma das dimenses da vida coletiva. Entre os dois extremos, a sociedade poltica e a

    vida individual, possvel conceber e identificar formas diversamente complexas de

    associao. Mesmo a ordem poltica aparece descrita como varivel, historicamente, de

    acordo com a importncia dos problemas, segurana externa ou interna, por exemplo, e

    com a experincia acumulada. Ao insistir no contedo emprico da idia de contrato -

    transferncia de poder pelo consentimento de homens livres -, Locke explicita, com

    exemplos, a noo de estado de natureza.

    A referncia, no pargrafo 103, ao grupo que deixou Esparta com Palanto, no

    sculo oitavo antes de Cristo, e estabeleceu livremente um governo tem sobretudo valor

    didtico: deixa clara a distino entre o poltico e o no poltico e ressalta a imagem da

    independncia entre indivduos.

    A lista contm exemplos mais informativos sobre as concepes lockianas do

    estado de natureza e da vida coletiva. A citao do livro de Jos Acosta,A Histria Natural

    e Moral das ndias, de 1604, menciona ndios vivendo em grupos, na Flrida, no Brasil e

    noutras partes das Amricas, sem rei certo, mas escolhendo seus capites de acordo comas condies da paz ou da guerra (ST, 102). Vale a pena notar que a noo de

    comunidade poltica, para Locke, no envolve necessariamente a idia de Estado territorial,

    nos moldes europeus. Para ele, a sociedade poltica se distingue de qualquer outra pela

    existncia de um juiz comum, isto , de um poder superior capaz de estabelecer a justia

    entre os interesses particulares (ST, 87 entre outros). Mas isso no quer dizer que o

    aparecimento das funes de governo esteja vinculado sempre, e antes de mais nada,

    necessidade de um juiz.

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    Historicamente, segundo Locke, a origem da funo de chefia est associada, com

    freqncia, defesa contra o inimigo externo. Ele recorre tanto a exemplos da histria e da

    etnografia quanto ao relato bblico. Em Israel, est escrito no pargrafo 109, a ocupao

    principal dos juzes e dos primeiros reis parece ter sido a de capites na guerra e de lderes

    de exrcitos. Embora trate do mesmo assunto, o pargrafo 108 contm, no entanto,

    elementos adicionais de especial interesse:

    Vemos, assim, que os reis dos ndios na Amrica, ainda um padro

    das primeiras eras na sia e na Europa, enquanto os habitantes eram

    muito poucos para o pas e a escassez de pessoas e de dinheiro no

    davam aos homens nenhuma tentao de ampliar suas posses de

    terra, ou de envolver-se em disputa por uma extenso maior de solo,

    so pouco mais que generais de seus exrcitos. E, embora comandem

    de forma absoluta na guerra, exercem pouco domnio em casa e em

    tempo de paz e tm uma soberania muito limitada, cabendo as

    resolues de paz e de guerra, habitualmente, ou ao povo ou a um

    conselho. A guerra, no entanto, que no admite pluralidade de

    governantes, naturalmente devolve o comando autoridade nica do

    rei.

    Esta passagem mostra, em primeiro lugar, uma concepo de etapas do

    desenvolvimento social. As mesmas fases podem ser observadas na evoluo de diferentes

    povos, em diferentes continentes. Os grupos da Amrica oferecem o interesse especial de

    mostrar, ao vivo, estgios h muito superados pelas civilizaes da Europa e da sia. No

    sculo seguinte, essa noo de etapas seria lugar comum no pensamento social. Estaria

    presente em Rousseau, em Adam Smith, em Adam Ferguson e em David Hume, para citars alguns nomes de excepcional importncia. Para Locke, assim como para os autores do

    sculo 18, h uma correspondncia entre condies demogrficas e econmicas e formas

    de organizao legal e institucional. Essas formas de organizao respondem,

    funcionalmente, a problemas caractersticos de cada fase. Assim, a funo judicial tem

    pouca importncia nas primeiras etapas, quando a populao pequena, a propriedade

    privada ainda no se desenvolveu, a ambio moderada e as ocasies de conflito interno

    so raras.

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    A referncia s funes de chefia, muito importantes na guerra e quase

    insignificantes na paz, tambm seria lugar comum na literatura antropolgica uma

    informao reiterada pela observao de muitas sociedades indgenas. Com todo o seu

    refinamento conceitual e metodolgico, pesquisas do sculo 20 com freqncia apenas

    confirmam as anotaes dos primeiros visitantes da Amrica. Personagens como Lry,

    Acosta e Soares de Sousa permanecem como exemplos invejveis de argcia e preciso.

    um dos mritos de Locke ter sido capaz de valorizar e processar a informao fornecida

    por esses observadores. Ele no era apenas um pensador atualizado em matria de cincias

    naturais. Era igualmente, embora este ponto seja pouco apreciado por seus comentadores,

    um filsofo social bem munido de material histrico e etnogrfico.

    No pargrafo 107, ao discorrer sobre a evoluo do comando familiar para o

    governo monrquico, Locke menciona outra caracterstica das sociedades pequenas e

    simples: os liames afetivos.

    Confinando seus desejos nos estreitos limites da pequena

    propriedade de cada um, a igualdade de modo de vida simples e

    pobre causou poucas controvrsias e, assim, nenhuma necessidade

    de muitas leis para decidi-las: no se carecia de justia onde havia

    poucas violaes e poucos ofensores. Pois s se pode supor que

    aqueles que se estimavam o bastante para unir-se em sociedade

    tivessem alguma familiaridade (acquaintance) e amizade e alguma

    confiana mtua.

    Seria natural, portanto, escolherem o tipo de governo mais adequado a seu principal temor,

    o do inimigo externo. Seu chefe deveria ser algum capaz de lider-los na guerra.

    H um abismo entre esta representao e a viso hobbesiana. Hobbes nodesprezou, preciso reconhecer, as crenas e valores como elementos importantes na vida

    poltica. No foi por outro motivo que ele inscreveu entre os direitos de soberania o

    controle das opinies e das doutrinas ensinadas aos sditos. Mas ele se ocupou sobretudo,

    se no exclusivamente, com o exame de como esses fatores enfraquecem ou reforam a

    lealdade poltica. Da a preocupao, reencontrada em Rousseau, com o poder paralelo

    representado pela religio crist, especialmente a romana, pregada por uma igreja com

    pretenso de universalidade. No caso de Locke, o interesse pelas crenas e valores tem

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    outro sentido. Ele os percebe como fatores de interao social, tanto mais eficazes quanto

    menor o grupo e mais simples o seu modo de vida.

    H uma correspondncia entre a complexidade econmica e o desenvolvimento das

    formas de propriedade (isto mostrado no captulo 5 do Segundo Tratado). Isso altera as

    relaes entre os homens, multiplicando as ocasies de conflito e tornando indispensvel a

    instituio do juiz comum. A criao desse juiz, com a centralizao do poder de

    represso, representa uma alterao qualitativa. Mas essa alterao no corresponde

    imposio de uma forma a um conjunto de agentes atomizados. Para Locke, a

    independncia natural consiste simplesmente na relao igual entre os indivduos, sem

    subordinao regular. Essa independncia no deve ser entendida como isolamento e muito

    menos como guerra de todos contra todos. A criao do governo responde a uma exigncia

    criada pela vida coletiva, num determinado nvel de complexidade. Pode ser difcil, em

    certas passagens, determinar uma fronteira entre os dois estgios, o natural e o poltico.

    Essa dificuldade ocorre a Peter Laslett, ao comentar um trecho da Terceira Carta sobre a

    Tolerncia, em que se menciona a organizao mnima de uma sociedade indgena, com

    chefe, mas sem juizes nem leis internas. Esse texto, escreve Laslett, uma exposio

    interessantssima da viso lockiana do estado de natureza, ou de tal estado misturado com

    o estado de sociedade. Um amante da elegncia lgica de Hobbes talvez possa lamentar

    certas imprecises de Locke. E no sem motivo respeitvel. Passar do Leviat para o

    Segundo Tratado como sair de um caminho spero e difcil, mas bem demarcado, para

    uma estrada s vezes mais suave, mas sem a mesma sinalizao e com algumas

    ramificaes inesperadas. Se h alguma vantagem, est nas descobertas que a m

    sinalizao e os desvios podem proporcionar.

    Uma dessas descobertas a riqueza da interao social. O agente lockiano no o

    indivduo apenas competitivo, nem o maximizador de benefcio dos modelos

    microeconmicos mais puros. A propsito, o individualismo terico de Locke no maisradical que o de Adam Smith. Cita-se com demasiada freqncia, especialmente na

    literatura dita liberal, a viso smithiana do interesse prprio como grande motor do

    comportamento. Como de costume, ignora-se o conjunto das idias: por trs do mercado,

    como de qualquer outro sistema de relaes interindividuais, h uma rede formada por

    valores e pela percepo do outro como um semelhante. Quando se gasta o tempo

    necessrio com a Teoria dos Sentimentos Morais e com as Lies de Jurisprudncia, a

    Riqueza das Naes aparece como foi concebida por seu autor: no como obraindependente e muito menos como um elogio incondicional do mercado e da competio,

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    mas como parte de um projeto abrangente de investigao social. H muito mais, no

    mercado, que a presena das foras impessoais da oferta e da procura.

    Ora, entre Locke e Smith h um salto, lembrar algum. No importa o rtulo

    imposto Teoria dos Sentimentos Morais, psicologia social ou sociologia, no h dvida

    de que ali se encontra teoria sociolgica da mesma espcie que se se v, por exemplo, na

    Diviso do Trabalho Social. David Riesman, em seu deliciosoAdam Smiths Sociological

    Economics, perfeitamente convincente quanto a isso. Em Locke, o arranjo do material

    muito menos satisfatrio. Ele reconhece, obviamente, a existncia de regras nos vrios

    grupos naturais, isto , no polticos, mas s consegue nomear, fora das sociedades

    polticas, um sistema normativo universal, a lei de natureza. Os indivduos naturais no so

    independentes no sentido hobbesiano: obedecem a padres de confiana e de afetividade,

    mas esto legalmente vinculados humanidade (ou a Deus), e no ao grupo imediato. S

    com a poltica se estabelece um recorte na humanidade, embora, se reconhea a realidade

    histrica de grupos e de naes - a expresso de Locke, ao mencionar o selvagens

    americanos.

    Embora as idias de igualdade e independncia, no estado natural, sejam

    sustentadas com exemplos da histria, da Bblia e dos relatos de viagem, os homens so

    ditos iguais por sua humanidade comum, e no por pertencerem a grupos determinados.

    em nome da comunidade humana que o indivduo pode julgar o transgressor da lei natural

    e fazer-se executor da sentena. No h, em todo o tratamento desse direito de sano,

    referncia autoridade do grupo. A literatura sobre os selvagens da Amrica j relata, na

    poca, a vingana regulada, isto , a punio descentralizada e imposta por sujeitos

    privados ou por familiares da vtima. O tema aparece, por exemplo, no captulo 18 da

    Histria de uma Viagem na Terra do Brasil, de Jean de Lry, dedicado ao que se pode

    chamar leis e administrao civil entre os selvagens. O livro de Lry aparece numa

    relao das provveis fontes de Locke, na edio dos Tratados preparada por Laslett. Esse,no entanto, apenas um dos autores que descreveram, nos sculos 16 e 17, as prticas

    penais dos ndios.

    Para Locke, seja como for, uma das implicaes da igualdade a jurisdio

    recproca dos indivduos, na condio natural. Assim ele resolve, no Segundo Tratado,

    o outro problema associado noo de lei, a associao necessria entre a norma e a

    sano. A jurisdio individual no quer dizer que uma pessoa, e no um grupo, deva

    ser sempre o agente da justia. Mas basta um homem para o exerccio legtimo dafuno judicial, quando no h apelo possvel a um magistrado terreno. Essa

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    tambm a base evidente do direito de rebelio contra o tirano. Esse direito pode

    envolver uma questo adicional, a da quebra da confiana atribuda pelo povo ao

    governante. O governo, segundo Locke, apenas um comissrio - em ingls, um

    trustee - da sociedade. Rompida a confiana, e se a infidelidade for muito grave, cabe

    ao povo afastar o governo e retomar, integralmente, a autoridade que por direito lhe

    pertence. Mas essa cobrana, que se faz ao governante em estado de guerra contra o

    povo, tem como base a lei de natureza, que permite ao indivduo destruir quem lhe

    faa guerra ( par. 16). E aquele que, no estado de sociedade, tirasse a liberdade

    pertencente aos membros da sociedade ou comunidade, tambm se deve supor que

    pretendesse tirar-lhes tudo mais, devendo, assim, ser visto como em estado de guerra

    (par. 17). Essa argumentao repetida, com acrscimos, no captulo final do

    Segundo Tratado, onde se mostra como o governante, ao violar a confiana de quem o

    constituiu como magistrado, se torna inimigo do povo.

    Pelo contrato, portanto, o indivduo no s transfere sociedade o poder de legislar,

    de julgar e de punir as transgresses, mas tambm o de destituir o governo, quando este

    viola gravemente o direito e se torna ameaa para os sditos. Esse , essencialmente, o

    mesmo poder exercido legitimamente pelo indivduo na condio natural. Tambm este, e

    no s o corpo social, tem o direito de se defender do abuso da fora, como lembrado no

    pargrafo 232:

    Quem quer que use a fora sem direito, como faz quem a usa, em

    sociedade, sem a lei, se pe em estado de guerra com aqueles contra

    os quais ele a usa. Nesse estado, todos os vnculos anteriores so

    cancelados, todos os outros direitos cessam, e cada um tem o direito

    de defender-se e de resistir ao agressor.

    Qual o fundamento desse direito, que a sociedade recebe pelo pacto e que o

    indivduo reassume, contra um particular qualquer ou contra o govenante, quando no h

    autoridade para proteg-lo? S pode ser a mesma igualdade que a cada um converte em

    magistrado e executor da lei, na condio natural.

    A igualdade natural nunca deixa de existir, portanto, como fonte de direito

    autodefesa e, tambm, de resistncia tirania. Mas que outros direitos esto associados a

    essa igualdade? O mais evidente o da igual proteo pelo poder pblico. No final do

    captulo 11 do Segundo Tratado, Locke resume os limites do poder legislativo das

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    sociedades. A primeira exigncia, ou restrio, governar por meio de leis promulgadas,

    estabelecidas e invariveis em casos particulares, devendo haver uma regra para os ricos e

    para os pobres, para o favorito na corte e para o campons no arado. Mas esta uma

    igualdade, por assim dizer, passiva. Locke no discute, nesse livro, os direitos da cidadania

    ativa, isto , de participao nas assemblias e na escolhe de seus membros. No projeto das

    Constituies Fundamentais da Carolina (no plural, porque cada um dos 120 artigos

    chamado constituio), toda funo pblica, legislativa, executiva e judiciria,

    reservada aos proprietrios de terras. Mas esse no um texto terico ou doutrinrio, pelo

    qual o autor se possa responsabilizar integralmente: um trabalho de encomenda,

    preparado, em 1669, para atender s convenincias da poltica colonial. No pode sequer

    ser considerado, como alguns escritos econmicos, uma proposta que envolva, mesmo

    contra a opinio dominante, o ponto de vista lockiano.

    Locke talvez desejasse um novo padro de participao poltica, mais aberto e mais

    igualitrio, mas isso no est claro nos seus escritos. Nas Constituies, como noutros

    textos, ele parece conformar-se com a representao restrita e com a seleo econmica

    dos participantes das funes de governo. Ao escrever o prefcio aos Dois Tratados, um

    vigoroso elogio da revoluo e de Guilherme de Orange, Locke parece aceitar o

    Parlamento da Conveno como adequado representante do povo, embora, como comenta

    David Wooton, s uma minoria tivesse o direito de voto. Tudo isso conjectura.

    Muito mais clara a disposio de Locke de justificar a desigualdade econmica. A

    justificativa, produzida no captulo 5 do Segundo Tratado, envolve duas tarefas. A

    primeira mostrar como pode surgir uma legtima propriedade privada. A segunda

    explicar como essa propriedade pode crescer, alm de certos limites, sem violar os

    preceitos da lei natural.

    O ponto de partida a condio de igualdade: o mundo foi dado aos homens em

    comum, por Deus, para o sustento de todos e para seu conforto. Os bens naturais nopertencem, originalmente, a nenhuma pessoa em particular. A natureza, tal como criada,

    oferecida a todos. Mas como podem os homens sobreviver sem se apropriar de pores

    dessa natureza? O comum se torna prprio, a cada instante, pelo mero esforo de

    sobrevivncia. Basta o gesto simples de coletar e comer uma fruta. Em que momento

    ocorre a diferenciao? Neste ponto, Locke introduz uma questo de valor na descrio de

    um ato biolgico: o consumo da substncia naturalmente disponvel se converte em

    apropriao, em sentido no s moral, mas tambm legal. Ao introduzir o problema, Lockedetermina o curso de uma parte, pelo menos, do raciocnio. A converso do comum em

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    prprio s pode resultar do ato de coleta, isto , do esforo do agente. Ao agir sobre a

    natureza, o homem acrescenta ao objeto algo que lhe prprio, que parte de sua

    individualidade livre: o labor de seu corpo. O sujeito, por assim dizer, se projeta sobre as

    coisas que o seu esforo modifica. Seja o que for que ele remova do estado em que a

    natureza o proveu e deixou, mistura-lhe seu trabalho, acrescenta-lhe algo que lhe prprio

    e assim o converte em sua propriedade (par. 27).

    Isso define a apropriao como inevitvel, pelo menos num grau mnimo, e fornece

    um critrio para explicar como o comum se torna prprio. A idia de um meu e de um

    teu fica associada, a partir da, condio natural de sobrevivncia. Esse direito no

    depende, nem poderia depender, de um consentimento. Se esse fosse o caso, o homem teria

    morrido de fome no meio da fartura (par. 29). Logo, a propriedade no depende, para ser

    legtima, de um contrato. No , portanto, uma instituio da sociedade poltica, mas uma

    condio natural. Este ponto, estrategicamente, muito importante.

    Marca uma enorme diferena em relao ao pensamento de Hobbes. Para este,

    nenhum direito, em sentido legal ou moral, identificvel na condio de natureza. A

    noo hobbesiana de direito natural corresponde, simplesmente, ao impulso de

    sobrevivncia e a tudo que da decorre - includa a violncia irrestrita contra os adversrios

    imediatos ou potenciais. Mas isso vale para todos e esse direito, portanto, ao ser

    exercido, envolve a negao de igual direito a todos os demais. A propriedade s pode

    ser, portanto, produto da lei positiva: s um poder comum pode dar sentido prtico

    reivindicao de direitos. No caso de Locke, no. Para ele, a eficcia da lei natural permite

    falar significativamente em direitos naturais. O problema, portanto, determinar se a

    propriedade se enquadra nessa categoria. A resposta positiva. Deve ser, portanto, uma

    condio inviolvel pelo poder poltico. Mesmo para proporcionar a segurana e outros

    servios caractersticos de uma sociedade poltica, o governo s pode recolher, como

    tributo, o que for consentido pelos sditos (par. 140 e outros).Mas demonstrar a legitimidade natural da propriedade no o maior problema. A

    grande questo surge em seguida: sendo os homens portadores de iguais direitos vida e

    ao bem-estar, o direito de apropriao deve ser limitado. Estamos, de novo, diante do

    problema da composio. A norma deve ser universal, isto , deve vlida para todo

    homem, de tal forma que no resulte em excluso. Ao direito de apropriao exercido por

    alguns no pode corresponder a diminuio do direito de outros. Locke se move,

    claramente, no mundo moral e legal caracterizado no ltimo captulo dos Ensaios sobre a

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    Lei de Natureza. O interesse privado, como ficou estabelecido naquela discusso, no pode

    ser a base da lei de natureza, nem, portanto, do direito natural.

    preciso, portanto, que a apropriao seja compatvel com a norma de deixar o

    suficiente e igualmente bom, em comum, para os outros. A questo crucial no a coleta

    de frutos ou a caa. Locke supe, nos estgios primitivos, uma situao de abundncia.

    Nessa condio, a natureza tende a repor, espontaneamente, os meios necessrios vida e

    oferecidos, em comum, humanidade. O problema se complica, porm, quando se trata da

    terra. Ao cercar uma rea, o indivduo subtrai ao domnio comum no s o fruto e a caa

    consumidos, porm renovveis, mas um pedao da prpria natureza (par. 32). O direito ao

    produto da lavoura decorre do trabalho, tanto quanto o direito ao fruto coletado ou caa

    abatida. Mas a situao diferente, sob um aspecto, e isso justifica uma dvida: quando se

    retira da posse comum a prpria terra, no se viola o preceito de reservar aos outros o

    suficiente e de igual qualidade?

    A argumentao mais complexa na aparncia que na estrutura. Desenvolve-se em

    duas etapas. Na primeira, considera-se a apropriao para mera subsistncia.

    Originalmente, a extenso da terra convertida em propriedade corresponde capacidade

    individual de lavrar. Havendo grande extenso disponvel, no se causa prejuzo aos

    demais. A apropriao legitimada pelo esforo. O trabalho justifica no s a posse do

    produto, mas tambm do solo: ao lavr-lo, o indivduo lhe acrescenta algo seu, o esforo,

    impondo sua marca a uma parcela da natureza. Mas Locke, obviamente, no est

    preocupado com esse tipo de atividade. preciso dar conta da agricultura mercantil, que

    ultrapassa de muito a extenso e a produo necessrias sobrevivncia individual. Dois

    pontos, essencialmente, so estabelecidos. Em primeiro lugar, a apropriao da terra para a

    agricultura no resulta, necessariamente, numa subtrao. Pode ser, e normalmente ,

    segundo Locke, exatamente o contrrio. Adequadamente lavrado, o solo produz muito

    mais do que a natureza, espontaneamente, poderia oferecer. A agricultura multiplica,portanto, os bens necessrios manuteno da vida e ao conforto. Um acre cultivado pode

    proporcionar, observa Locke, dez vezes a produo de uma rea igual deixada em comum

    e sem cuidado. Assim, quem se apropria de um acre e o cultiva, no o subtrai, mas oferece

    nove acres humanidade (par. 37). Isso tanto mais verdadeiro, obviamente, quanto maior

    a eficincia do agricultor.

    Essa mudana, porm, s pode ocorrer com o desenvolvimento do comrcio. Sem a

    troca, o indivduo no teria por que produzir mais que o suficiente para si. No poderia,portanto, oferecer humanidade o benefcio da multiplicao dos frutos da terra. Com o

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    comrcio, um mundo novo aparece. Especializam-se as funes, multiplicam-se os bens

    em quantidade e em variedade e uma nova trama de relaes se estabelece entre os

    homens. Vamos deixar de lado, aqui, a discusso sobre o trabalho como origem do valor,

    fonte de muita controvrsia e de muito malentendido sobre o pensamento lockiano. O tema

    no essencial, neste momento. possvel, sem passar por a, cuidar apenas da questo do

    direito de propriedade e dos seus limites. O problema seguinte, naturalmente, o da

    acumulao, e isto envolve o segundo ponto do argumento.

    O preceito de reservar o suficiente e igualmente bom para os demais inclui, na

    formulao inicial, a regra do no desperdcio. A parcimnia no uso dos bens comuns

    uma forma de respeitar o igual direito alheio. Essa norma transferida para o universo

    mercantil. O que se troca, supostamente, no se desperdia. O excedente de um acaba

    servindo, pelo intercmbio, para suprir a necessidade de outro. Mas isso pode no valer

    para o que se acumula. A maior parte dos bens de consumo perecvel e melhor que

    evitar que se deteriore. Quem acumule bens perecveis no s causa um dado

    humanidade, por subtrair de circulao, inutilmente, bens necessrios, mas ainda comete

    uma tolice. possvel, no entanto, acumular o equivalente a bens de qualquer natureza sem

    retir-los do mercado. Esse equivalente, a moeda, o mesmo instrumento inventado pelos

    homens para facilitar a troca. Materiais durveis, como o ouro e a prata, so normalmente

    usados, lembra Locke, para essa funo de representar as mercadorias:

    Com a moeda, surgiu algo duradouro, que as pessoas poderiam reter

    sem estragar, e que, pelo mtuo consentimento, os homens

    aceitariam em troca dos verdadeiros, mas perecveis, sustentos da

    vida (par. 47).

    Sendo no s um meio de troca, mas tambm reserva de valor, a moeda resolve o problemada acumulao, permitindo uma nova forma de expanso da propriedade. Os homens

    diligentes, fiis ao preceito divino de ocupar a terra e transform-la, para dela extrair o

    mximo benefcio, podem, assim, diferenciar-se dos demais, enriquecendo sem sem violar

    os limites do direito natural.

    Se a igualdade no fosse um componente fundamental de seu pensamento, Locke

    no teria sido forado a esse percurso. Sem a noo de direitos bsicos iguais, o problema

    da composio no se impe. Essa noo est vinculada no s identidade da espcie,mas a uma determinada concepo de lei natural. Essa lei mandatria, isto , no consiste

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    s em teoremas da razo, universal. Os indivduos no so, portanto, apenas livres: so

    igualmente livres e isso implica certos direitos inviolveis.

    A idia de igual liberdade permeia o pensamento poltico de Locke e influencia,

    com nitidez, muitos de seus pontos mais importantes, como o direito de resistncia ao

    governo tirnico. Mas no implica restrio desigualdade econmica, embora estabelea

    condies para a apropriao e para a acumulao. Tampouco envolve, a no ser de modo

    muito limitado, o socorro aos pobres. Ao propor um esquema para emprego dos pobres, em

    1697, Locke explica o aumento da mendicncia pelo relaxamento da disciplina e a

    corrupo dos costumes. No se trata, segundo ele, de desemprego involuntrio, porque a

    economia, argumenta, no deixou de proporcionar atividade e fartura. Enquanto

    interpretao, isto no serve para caracterizar a atitude poltica e moral de Locke: ele se

    expressa como economista. O importante outro ponto: para reduzir a mendicncia, ele

    sugere fortes medidas repressivas, como, por exemplo, o engajamento forado, para

    servio no mar, de mendigos de cidades litorneas. Para as crianas o tratamento no

    mais suave. Deve-se recolh-las e educ-las, mas fazendo-as trabalhar para o custear pelo

    menos parte das despesas. Os pobres so descritos como um peso para os outros, e sua

    multiplicao resulta em mais impostos para que se possa mant-los. Reduzir esse peso a

    justificativa inicial da proposta - recusada, alis, pelo Bord of Trade, que tinha uma opinio

    diferente sobre o desemprego.

    Pode ser precipitado, a partir desta anlise, formular concluses firmes a respeito de

    como Locke deu origem a uma ou outra vertente do liberalismo. Provisoriamente, porm,

    uma sugesto pode ser formulada. Em termos muito simplificados, a vertente representada

    por John Rawls poder ser ligada aos fundamentos da teoria lockiana, por causa do vnculo

    entre liberdade e igualdade: no se pode conceber a primeira sem a segunda. As concluses

    da teoria da propriedade, assim como o tratamento da questo dos pobres, tm toda

    semelhana, no entanto, com o liberalismo de Nozick. Dois Lockes, portanto? Certamenteno. Tambm no resolve o problema apelar para a idia de contradio, como se o

    pensamento lockiano, de repente, e de forma quase imperceptvel, houvesse mudado de

    trilhos e de rumo por uma falha lgica. Ao invs de buscar essa falha, vale a pena examinar

    como a teoria pode acomodar, em aparente harmonia, o igualitarismo fundamental e a

    aceitao da desigualdade capitalista. A primeira observao pode ser sobre a idia de

    propriedade. Locke atribui mera coleta de um fruto uma dimenso moral e legal,

    passando da idia simples de captura de um objeto natural noo complexa depropriedade. No h um nico argumento para justificar essa passagem. Por meio dessa

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    identificao, a propriedade privada se converte em direito natural, associado ao direito

    bsico de sobrevivncia.

    O segundo ponto a legitimao da propriedade mercantil, isto , destinada

    produo de um excedente comercivel. Que a posse estvel permita aumentar a produo

    e a produtividade parece claro, mas essa estabilidade no implica a apropriao privada,

    nem a produo destinada ao mercado. Locke passa por cima desses pormenores. A

    multiplicao dos produtos da terra, pela cultura regular e exercida de forma competente,

    fica vinculada, assim, ao controle privado de parcelas da natureza. O proprietrio diligente

    pode ser descrito, portanto, como algum que oferece aos outros muito mais do que

    poderiam obter da terra deixada em comum.

    Legitimar a acumulao poderia ser mais complicado, se a riqueza acumulada

    consistisse apenas de bens diretamente utilizveis - de modo especial, de produtos

    perecveis. A soluo encontrar uma reserva de valor que no seja ela mesma um bem

    consumvel. Essa resposta, porm, s vale plenamente sob uma condio: que a desigual

    distribuio da riqueza, representada pela terra e pelo estoque de capital, no prive alguns

    homens das condies mnimas necessrias a uma vida decente. Locke argumenta como se

    essa condio ocorresse. Mais que isso, raciocina como se a regra deixar o suficiente e

    igualmente bom para os demais estivesse cumprida.

    Em parte, a divergncia entre os liberais ocorre na interpretao dessa regra. Trata-

    se de saber, no fundo, em que altura se deve traar a linha do mnimo compatvel com a

    dignidade humana, ou mesmo se alguma linha deve ser traada. Mas essa , talvez, a

    diferena menos importante. No fundo, a grande questo saber se o atendimento dos

    direitos mnimos uma responsabilidade coletiva. Desta perspectiva, o grande problema

    no se o poder pblico deve ou no intervir em certos assuntos, mas, ao contrrio, se a

    omisso seria legtima. Este o ponto fundamental perdido em boa parte da discusso

    contempornea. A grande questo no se o mercado pode ou no fornecer certos bens eservios, como assistncia mdica, educao e previdncia, mas se esses temas devem ser

    tratados apenas como negcios ou, pelo menos dentro de certos limites, como

    responsabilidades pblicas. No se trata apenas de um problema financeiro, mas, antes de

    mais nada, de um tema tico e poltico. Locke abriu caminho para este debate ao perguntar,

    no ltimo dos ensaios sobre a lei de natureza, se o interesse privado a base dessa lei. Sua

    resposta, negativa, ainda vale alguma reflexo, a menos que se acredite que a

    responsabilidade coletiva, se houver alguma, deve ser deixada para uma suposta moinvisvel do mercado.

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    NOTAS:

    As citaes do Segundo Tratado aparecem com as iniciais ST. Os Ensaios sobre a Lei de Natureza soindicados pela sigla ELN. A edio dos Ensaios aquela preparada por W. von Leyden (Oxford, ClarendonPress, 1954).

    Outros textos lockianos so citados da edio dos Two Treatises of Government, preparada por Peter Laslett,e do volume dos Political Wrigtings editados por David Wotton.

    1. Segundo David Wootton, Filmer, e no Locke, inventou o liberalismo. Isto mais que uma brincadeira:Locke no s atacou as posies que Filmer havia defendido; ele sistematicamente defendeu os pontos devista que Filmer havia atacado. Em outras palavras, o autor do Patriarca de certo modo estabeleceu ascaractersticas e a pauta do que viria a ser conhecido como pensamento liberal.

    2. H. L.A. Hart, The Concept of Law, pg. 184 a 195 (Clarendon Press, Oxford, 1991).

    3. J.-J. Rousseau,Du Contrat Social, in Oeuvres Compltes, vol. 3, pg. 364 (Bibl. de la Pliade).

    4. John Dunn, The Political Thought of John Locke, pg. 235 e 236, incl. nota 5 da pg. 235 (CambridgeUniversity Press, 1982).

    5. Draft of a Representation Containing a Scheme of Methods for the Employmend of the Poor, in JohnLocke - Political Writings, ed. David Wootton, Penguin Books, Londres, 1993, pg. 447.