27
capítulo 5 Não deixa de ser uma curiosa ironia o fato cie que o re- lato de Sahlins da mitopráxis havaiana atualmente esteja na moda entre os antropólogos parisienses. Talvez eles estejam com saudades da época gloriosa em que o estruturalismo e o marxismo franceses estavam fio centro de toda discussão an- tropológica e, por conseguinte, acolhem de bom grado o re- florescimento dessas teorias pelas mãos de um expoente da .antropologia americana. Eles deveriam lembrar-se de que Lévi- Strauss demonstrou cie sobejo que embora os mitos possam viajar longas distâncias, eles são transformados no processo. j 258 capítulo 6 admirável mundo novo Em dezembro cie 1910, ou por volta dessa 1 época, o caráter cio ser humano mudou.' l 'irginia \\"oolf A . geração de antropólogos americanos que entrou na maturidade (e conquistou uma posição definitiva) na década de 1980 havia passado pela faculdade durante "os anos 60", uma década marcada por políticas de protesto e grandes ma- nifestações que tiveram início com o Movimento pela Liberda- de de Expressão no campus da Universidade de Berkeley, em 1964, e terminaram com a retirada cias tropas norte-america- nas cie Saigon, em 1974. Certamente, nem todos se deixaram envolver pelo arrebatamento da época, e seria absurdo rotu- lar indiscriminadamente todos os estudantes dos anos 60 como dissidentes, revolucionários, anarquistas ou milenaris- tas. No entanto, eles pareciam realmente ser muito diferentes 1. A passagem continua: "A mudança não foi súbita e definida... Mesmo assim, houve uma mudança; e, como 'deve-se ser arbitrário, vamos datá-la em torno de 1910... Todas as relações humanas mu- daram - as relações entre patrões e empregados, entre maridos e esposas, entre pais e filhos. E quando as relações humanas mudam ocorrem ao mesmo tempo mudanças na religião, na conduta, na política e na literatura. Vamos dizer que uma dessas mudanças ocorrçjj em torno cie 1910." Virgínia Woolf, extraído cie uma pales- tra no Heretics Club em Cambridge, realizada em 1924, "Mr. Ben- ner anel Mrs. Brown". Publicada em seu livro CotlectedEssays. Lon- dres: Chatto anel Windus, 1971. Citações das p. 320-1. v. I. 259 i

Kuper, Adam - Cap 6 e 7

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Cap 6 e 7

Citation preview

Page 1: Kuper, Adam - Cap 6 e 7

capítulo 5

Não deixa de ser uma curiosa ironia o fato cie que o re-lato de Sahlins da mitopráxis havaiana atualmente esteja namoda entre os antropólogos parisienses. Talvez eles estejamcom saudades da época gloriosa em que o estruturalismo e omarxismo franceses estavam fio centro de toda discussão an-tropológica e, por conseguinte, acolhem de bom grado o re-florescimento dessas teorias pelas mãos de um expoente da.antropologia americana. Eles deveriam lembrar-se de que Lévi-Strauss demonstrou cie sobejo que embora os mitos possamviajar longas distâncias, eles são transformados no processo.

j 258

capítulo 6

admirável mundonovo

Em dezembro cie 1910, ou por volta dessa1 época, o carátercio ser humano mudou.'

l 'irginia \\"oolf

A. geração de antropólogos americanos que entrou namaturidade (e conquistou uma posição definitiva) na décadade 1980 havia passado pela faculdade durante "os anos 60",uma década marcada por políticas de protesto e grandes ma-nifestações que tiveram início com o Movimento pela Liberda-de de Expressão no campus da Universidade de Berkeley, em1964, e terminaram com a retirada cias tropas norte-america-nas cie Saigon, em 1974. Certamente, nem todos se deixaramenvolver pelo arrebatamento da época, e seria absurdo rotu-lar indiscriminadamente todos os estudantes dos anos 60como dissidentes, revolucionários, anarquistas ou milenaris-tas. No entanto, eles pareciam realmente ser muito diferentes

1. A passagem continua: "A mudança não foi súbita e definida...Mesmo assim, houve uma mudança; e, como 'deve-se ser arbitrário,vamos datá-la em torno de 1910... Todas as relações humanas mu-daram - as relações entre patrões e empregados, entre maridos eesposas, entre pais e filhos. E quando as relações humanas mudamocorrem ao mesmo tempo mudanças na religião, na conduta, napolítica e na literatura. Vamos dizer que uma dessas mudançasocorrçjj em torno cie 1910." Virgínia Woolf, extraído cie uma pales-tra no Heretics Club em Cambridge, realizada em 1924, "Mr. Ben-ner anel Mrs. Brown". Publicada em seu livro CotlectedEssays. Lon-dres: Chatto anel Windus, 1971. Citações das p. 320-1. v. I.

259 i

Page 2: Kuper, Adam - Cap 6 e 7

capítulo 6 admirável mundo novo

cia coorte cio período Imediatamente após a guerra, a quemDavicl Riesman retratou como conformistas "voltados parafora", adultos precoces e resignados com seu futuro como ho-mens de organização.2

Sem dúvida alguma, havia várias razões para as mudan-ças que ocorreram no estado de espírito e no estilo cios jo-vens. O próprio campas estava mudando, à medida que asuniversidades se expandiam, que a "multiversidade" nascia eque o corpo estudantil ficava mais diversificado. No entanto,o descontentamento não era apenas em âmbito local. Haviauma enorme sensação de que a metamorfose das universida-des coincidia com um momento decisivo cios interesses da na-ção e, até mesmo, de todo o munclo. O imperialismo travavasuas derradeiras batalhas. Sua morte apressaria a crise final docapitalismo. Afinal de contas, Nkrumah - ou seria Lênin? -afirmara que o imperialismo era o último estágio do capitalis-mo. De acordo com a Teoria do Sistema Mundial, o tema es-sencial da história moderna era a expansão cio capitalismopara todos os cantos cio mundo, tendo como veículo transmis-sor o colonialismo. A escola da dependência da América Lati-na alegava que o imperialismo transformara-se no esteio es-sencial do sistema capitalista, provendo as empresas multina-cionais com um proletariado distante que podia ser explora-do sem restrições. Quando os impérios europeus finalmentesucumbiram, os Estados Unidos começaram a intervir no Con-go, na Indonésia e, acima de tudo, na Indochina; mas o "im-perialismo americano" também estava fadado ao fracasso. Tal-vez -o imperialismo e o capitalismo, correndo o risco cie extin-ção, estivessem unidos num desesperado abraço final.

Essa crise global não podia ser ignorada nas torres demarfim. Os estudantes estavam sendo convocados para com-bater em guerras capitalistas/coloniais nos arrozais cio sudes-te asiático. No campiis, cientistas e engenheiros trabalhavampara o complexo militar/industrial. As ciências sociais repre-sentavam os instrumentos de Wall Street e do Pentágono. Aantropologia havia sido serva cio colonialismo. O livro Oríen-

2. RIESMAN, Davicl ; DHNNEY, Rcuel ; GLAZER, Nathan. The LonelyCmwd. New Haven: Yale University Press, 1950.

i 260

^

talismo de Eclwarcl Said, publicado em 1978, afirmava que to-das as "ciências coloniais" têm um estrutura comum: elas di-cotomizam os povos cio munclo em dois gaipos, nós e os ou-tros, nós e eles. Os outros arquetípicos, os nativos de lugaresexóticos, são representados como um grupo indiferenciado,caracterizado por suas diferenças em relação a nós, uma dife-rença sempre desfavorável para eles - que são irracionais esupersticiosos, obstinadamente conservadores, movidos pela.emoção, sexualmente descontrolados, propensos ã violência,e assim por diante. Essas diferenças, portanto, motivam, oujustificam, o colonialismo. O orientalisíno é "um tipo cie pro-jeção ocidental sobre o Oriente e o desejo de governá-lo".5 Es-sas conexões sórdidas entre o meio acadêmico e o imperialis-mo eram expostas em um sem-número de congressos ou se-minários organizados por estudantes, que tomaram o lugardas palestras acadêmicas tradicionais. Teve início, então, alonga marcha através das instituições. Logo, as reuniões daAssociação Americana de Antropologia foram sacudidas pordebates sobre a conivência de antropólogos em projetos con-tra-insurreição no Chile e na Tailândia.

Dizem que ninguém que passou pelos anos 60 conseguese lembrar deles. Certamente, é difícil recapitular a atmosferadaqueles anos sem deslizar para a caricatura. De qualquermodo, meu interesse é mais específico. Estou preocupadocom os jovens antropólogos que cursavam a faculdade naque-le período. O que representou .para eles? Segundo Sherry Ort-ner, uma expoente da nova geração:

A antropologia cia década de 1970 estava muito mais clara etransparentemente ligada aos eventos do mundo real do que operíodo precedente... movimentos sociais radicais emergiramem larga escala. Primeiro veio a contraçultura, depois os pro-testos contra a guerra e, depois, um pouquinho mais tarde, omovimento Feminista: esses movimentos não apenas afetaramo mundo acadêmico, na verdade eles se originaram, em gran-de parte, em seu seio. Tudo o que fazia parte cia ordem' vigen-te era questionado e criticado.'

3. SAID, Edward. Orientalisin. New York: Pantheon, 1978. p. 95.í. ORTNER, Sherry. Theory in Anthropology since the Sixties.Comparatiue Studies in Society and Histoiy, v. 26, p. 126-66, 1984.

261

Page 3: Kuper, Adam - Cap 6 e 7

capítulo 6

Renato Rosalclo, outra figura de destaque na coorte, lem-bra que

surgiram grupos cie discussões marxistas e cie outras vertentes.As questões de consciência política e ideologia ficaram em pri-meiro plano. A forma como as pessoas fazem suas próprias his-tórias e u interação entre dominação e resistência pareciammais atraentes do que as discussões sobre manutenção do sis-tema c teoria cio equilíbrio dos livros didáticos. Fazer uma an-tropologia engajada fazia mais sentido cio que tentar manter aficção do analista como observador isolado e imparcial. O queantes pareciam questões arcaicas cia emancipação humana ad-quiriram um apelo premente.4

Aqueles dias inebriantes marcaram essa geração paratoda a vida. Ortner afirma que "ainda estamos concluindomuitas cias mudanças que foram iniciadas nos anos 60".°

Ela lembra que jovens críticos radicais começaram a ex-por a ligação de culpa entre a antropologia e o colonialismo,mas eles "passaram rapidamente para a questão mais profun-da cia natureza das nossas estruturas teóricas, especialmente ograu com que elas incorporam e levam adiante as pressupo-sições da cultura burguesa ocidental". Rosalclo comenta queo verdadeiro arrebatamento começou quando os esttidantesreconheceram que o projeto imperial operava dentro do pró-prio Estados Unidos. A Nova Esquerda, explica ele, estimula-va "grupos imperializados internamente" a organizarem "aquie ali formas' cie opressão baseadas em gênero, preferência se-xual e raça''." Esse projeto cie emancipação exigia novas teo-rias, e as idéias mais acalentadas pela antropologia çram des-cartadas como demasiadamente rigorosas e até mesmo perni-ciosas. A própria noção cie cultura era questionada. Como re-sume Rosalclo, a "noção herdada de cultura como imutável e

5. ROSALDO, Renato. Cnlture and Tmth: The Remaking ot SocialAnalysis. Boston: Beacon Press, 1989. p. 37.6. ORTNER, Sherry. Reading America. In: FOX, Richard. (Ed.). Re-ctt[)tiiring Anlhropology: Working- in the Present. Santa Fe, N.M.:School ot American Research Press, 1991.7. ORTNER. Theory in Anthropology since the Sixties. p. 138.8. ROSALDO. op. cit. p. 35.

(262

admirável mundo novo

homogênea além de equivocada era irrelevante (para usaruma palavra bastante em voga na época)"."

De que tratava, então, a nova antropologia engajada? Quemétodos empregava? Que teorias motivavam seus projetos? Km1984, Sherry Ortner publicou um importante ensaio intitulado"TbeoryinAntropology since the Sixties", que traçava o curso in-telectual da nova antropologia americana. A geração que en-trou para a área depois da Segunda Gtierra Mundial havia fler-tado com o funcionalismo britânico e com o estaituralismofrancês, mas retrocedeu para assuntos mais tradicionais relacio-nados com "cultura", e não com "sociedade". Eles também es-tavam divididos entre as duas velhas vertentes da antropologia,eyolucionista e relativista, rebatizaclas na década de 1960 como"ecologia cultural" e "antropologia simbólica". Os evolucionis-tas, a ala da ciência, escreviam sobre adaptações culturais ás ne-cessidades biológicas e às pressões ambientais. Para a ala doshumanistas, cultura era uma forma de vicia e não uma máqui-na para a vida, uma fonte de significados e não de proteínas, eera guiada por idéias e não por genes. A cultura devia ser in-terpretada, e não-explicada. Mas, na opinião de Ortner, atémesmo os que militavam nos dois campos tinham uma sensa-ção íntima cie que nenhum dos paradigmas era apropriado. Ne-nhum cios dois era "capaz de lidar com o que o outro lidava(os antropólogos simbólicos ao renunciarem a todas as exigên-cias de 'explicações' e os ecologistas culturais ao esqueceremas estruturas de significado dentro dos quais a ação humana serealiza)".10 Além disso, "ambos eram fracos naquilo que ne-nhum dos dois fazia, que representava boa parte de qualquersociologia sistemática", o campo que os funcionalistas europeushaviam cultivado com seus implementos primitivos.

Na década de 1970, os paradigmas estabelecidos na an-tropologia cultural eram vulneráveis, e seus expoentes esta-vam mal equipados para resistir ã crítica marxista que os acu-sava de ignorar a história e o conflito e, talvez involuntaria-mente, servir ao imperialismo. O marxismo que ficou popularentre os cientistas sociais norte-americanos era sensivelmente

9. kl., ihid.. p. 36.U). ORTNER. Theory in Anthropology since the Sixties. p. 134.

263!

Page 4: Kuper, Adam - Cap 6 e 7

capítulo 6

diferente do "marxismo vulgar" do conflito cie classe e deter-minismo tecnológico. Todavia, apesar cie sua linguagem abs-trata e de seu tom idealista, esse marxismo cultural difuso ain-da oferecia um meio capaz de ligar o estudioso ao ativista po-lítico. "Em vários aspectos era o veículo perfeito para os aca-dêmicos que haviam sido treinados numa época anterior", ob-serva Ortner, "mas que na década de 1970 estavam sentindoa influência do pensamento crítico e cia ação que explodia emtoda a sua volta"." Porém, na década de 1980, o ímpeto radi-cal cio início havia se dissipado. C) marxismo não era mais derígiieiir, embora ainda conseguisse passar certa credibilidadepopular ao vocabulário crítico. Escrevendo em 1984, Ortnerdescreveu um campo às raias de uni tipo de esgotamento ner-voso. "Parece haver uma apatia de espírito",1- escreveu ela."Não trocamos mais insultos. Não estamos mais certos decomo os laclos devem ser formados e cie onde nos colocaría-mos se pudéssemos identificar os lados.''

A própria Ortner profetizou uma virada em direção à so-ciologia da ação, mas uma virada calcada em Bourdieu e nãoem Parsons. Ocorre, entretanto, que a nova antropologia queemergia, em muitos aspectos, era bastante semelhante à velha.Seu ponto de partida era a etnografia interpretativa cie CliffordGeertz. Rosalclo observou que na década de 1970 Geertz pre-gava a extinção cias fronteiras clisciplinares, a "refiguraçào dopensamento social", e de forma bastante excêntrica afirmouque havia uma conexão entre a defesa que Geertz fazia cia et-nografia interpretativa e a adoção pela Nova Esquerda de umacoalizão cie várias causas cias minorias. Na opinião cie Rosalclo,"a própria reorientaçào da-antropologia fazia parte de uma sé-rie de movimentos sociais e reformulações intelectuais muitomais amplos1'.11 Seja como for, os trabalhos de Geeitz haviamformado a nova geração de antropólogos, tanto quanto os fler-tes deles com a Nova Esquerda. Os que preferiram seguir umacarreira acadêmica elaboraram, prudentemente, etnografias in-terpretativas convencionais. Mas a defesa cie Geertz cia teoria

1 1 . kl., ibid., p. l t i .12. kl., ibid., p. 127.13. ROSALDO. op. cit. p. 36.

264

admirável mundo novo

literária não oferecia uma abertura para urna reorientaçào maisradical. De forma bastante providencial, começaram a surgirnovas teorias literárias interessantes à medida que a "descons-taição" tomou conta dos departamentos de literatura. Por con-seguinte, não surpreende de todo que a virada seguinte cia an-tropologia norte-americana fosse em direção a um relativismoe culturalismo extremos, o programa de Geertz, porém despi-do de toda e qualquer reserva.

Essa nova tendência foi introduzida em 1986, com umlivro - ao mesmo tempo um manifesto e anais do congresso- intitulado Writing Culture." Seus onze colaboradores eramantropólogos e teóricos literários, todos mais ou menos damesma geração, na faixa dos quarenta e poucos anos, umgrupo cie amigos, vários dos quais haviam estudado no De-partamento de Relações Especiais de Harvarcl no início da dé-cada de 1970, bem na época em que a síntese parsoniana co-meçou a se desintegrar em suas partes componentes. Numdesafio inesperado ao Zeitgeist, o grupo, com uma única ex-ceção, era formado por homens. (Logo observou-se que a fo-tografia que serve como frontispício, mostrando um dos co-laboradores em campo cie caneta em punho, foi tirada peirsua esposa. Exatamente como nos velhos tempos, comenta-ram algumas feministas.)

A tentativa de chamar esse grupo de escola e o uso dotermo "antropologia pós-modernista" foram bastante discuti-dos por amigos e inimigos. Havia alguns indícios cie institu-cionalização. Foram organizados seminários fechados, e a As-sociação Americana de Antropologia criou uma seção espe-cial, para a qual propôs-se inicialmente que os membros fos-sem admitidos apenas por intermédio de convites. O novogrupo lançou um periódico, Cultural Anthropology, publicadode 1986 a 1991 por um dos editores de Writing Culture, Geor-ge Marcus, que era bastante habilidoso na orquestração dessetipo cie empreendimento. As citações exibiam uma tendencio-sidacle amistosa para com os membros cio círculo. (Escritoresfranceses da moda, entretanto, também eram generosamente

14. CLIFFORD, James ; MARCUS, George E. (Eds.í. Writing Cultn-re: The Poetics anel Politics of Ethnography. Berkeley: University ofCalifórnia Press, 1986.

2651

Page 5: Kuper, Adam - Cap 6 e 7

capítulo 6

reconhecidos.) Clifforcl Geertz foi aclamado como pai do em-preendimento, embora rivalidades edipianas fossem livremen-te expressadas, e muitas vezes ele foi acusado cie ter recuadopara as fronteiras da terra prometida.1''

A despeito das diferenças cie ênfase, os colaboradores doWriting Culture exploravam temas comuns e tomavam pre-missas fundamentais como certas, embora nem todas fossemexpressas cie forma clara. A preocupação primordial, a "tare-fa" do grupo cie Writing Ciilture, de acordo com George Mar-cus, "era introduzir uma consciência literária na prática etno-gráfica, mostrando as várias formas de interpretar e escreveretnografias".Iu Geertz havia perguntado, retoricamente: "O queo etnógrafo faz?"r e respondido: "Ele escreve". Os colabora-dores do Writing Culture concentravam a sua atenção nesseato cie escrever. C) etnógrafo clássico apresentara-se como umautêntico observador científico que cru/ava barreiras culturaisao mesmo tempo em que conservava um afastamento herói-co, e que reportava os fatos numa linguagem objetiva. Kssaimagem agora podia ser exposta como uma ilusão. Recorren-do aos recursos cia teoria crítica moderna, as artimanhas retó-ricas de autoria ("autorização") podiam ser reveladas. Assimcomo qualquer escritor, os etnógrafos estavam escrevendo"ficçòes", e essas ficçòes não eram inócuas.1" Um etnógrafo

15. Por exemplo: "Embora Geeit/. às vezes reconhecesse a inevita-biliclade de-fazer ficção, ele jamais explorou muito essa idéia." Ouentão: "Geeitz se curva à auto-referencialidade (estabelecendo,dessa forma, uma dimensão da svia autoridade) e depois (em nomeda ciência) gogc às suas conseqüências." RABINOW, Paul. Repre-sentations Are Social Facts. In: Writing Culture. p.. 243-4.16. MARCUS, George. Afterword: Ethnographic Writing and Antli-ropological Careers. In: Writing Culture. p. 262.17. GEERTZ. 'lhe Interpretation ofCultures. p. 19.18. Clifford Geeitz introduziu os antropólogos pós-moclernistas nosignificado antiquíssimo de algo inventado, raiz latina "fictio (TlicInterpretation ofCultures, p. 15). Os pós-moclernistas entenderamisso como uma licença literária para equiparar etnografias (e ou-tros trabalhos científicos) a romances é peças de teatro. Pode-secontestar, alegando que se uma lista telefônica, por exemplo, foruma ficção nesse sentido, ainda assim ela lhe fornece a informa-ção cie que você precisa para telefonar para alguém.

266

admirável mundo novo

não falava apenas por si mesmo. Interessados pelos projetos1'coloniais dos grandes poderes, os etnógrafos clássicos esta-vam todos preocupados em impor ordem ao verdadeiro caosde vozes, perspectivas e situações que enfrentavam no traba-lho de campo - para registrar um ponto de vista na história.

. Dessa forma, eles serviam aos interesses de uma classe políti-ca que desejava impor uma ordem alheia a assuntos coloniaisno estrangeiro, ou às minorias em seu próprio país.

E preciso dizer que as interpretações de etnografias emque a crítica se baseava, de modo geral, eram bastante tênues.Algumas colocam um ponto final logo que identificam um mo-tivo político torpe. Outras ficam satisfeitas em revelar que umetnógrafo empresta, aqui e ali, alguns clichês cie anotações cieviagem. Vale observar também que várias monografias clássi-cas são revistas com freqüência - The Nuer, de Evans-Prit-chard, é a favorita. Ambientes históricos, em particular situa-ções coloniais, e até mesmo debates acadêmicos, sãp esboça-dos apenas de forma superficial ou totalmente negligenciados.O-livro Works and Lives: The Anthropologist as Anthor, -cie Clif-ford Geert?. (1988), representa o mais sofisticado desses exer-cícios, mas até mesmo ele faz apenas tentativas superficiais decontextualizar as monografias que discute, ou de acompanhara influência que um etnógrafo pocle ter sobre estudiosos e ad-ministradores ou sobre os assuntos que eles tratam.

De qualquer modo, a lógica da crítica Indicava que de-veria haver uma maneira melhor de escrever etnografias.Como não existiam perspectivas privilegiadas, nenhuma nar-ração neutra deveria ser tolerada. O escritor de um novo tipode etnografia era instruído a aparecer em pessoa, como ator -não como diretor ou câmera, muito menos como um anjo es-criba. Os etnógrafos eram instados a experimentar, a brincarcom gêneros e modelos, a usar de ironia, a revelai'e, até mes-mo, a solapar suas próprias pressuposições. A etnografia de-veria representar uma variedade de vozes discordantes, semtrégua e sem jamais (um dos termos ofensivos preferidos) "es-sencializar" um povo ou um modo de vicia, insistindo numarepresentação estática cio que, por exemplo, "os balineses"pensam, crêem, sentem ou fazem — ou até mesmo cio que sig-nifica a "cultura balinesa". Alguns antropólogos insistiam quehavia outro dever, o novo fardo do homem branco, que era

2671

Page 6: Kuper, Adam - Cap 6 e 7

capítulo 6

ouvir com atenção especial as vozes mudas dos tiranizados,de falar em nome dos oprimidos. (Afinal de contas, talveznem todas as vozes fossem iguais.)

Os colaboradores do Wríting Culture não pregavarti ape-nas uma renovação metodológica. Eles acreditavam que esta-va começando uma nova era histórica e que o próprio objetoda etnografia estava sendo transformado. As outras culturasnão estavam mais isoladas cia nossa. O Ocidente (ou ^alvez ocapitalismo) havia expandido seus tentáculos para todos oscantos do mundo. No entanto, os cidadãos dos Estados pós-coloniais simplesmente não sucumbiram à ocidentalizaçào. Osnativos estavam retrucando. Eles rejeitavam as representaçõesque fazíamos deles e se recusavam a continuar imóveis dian-te das câmeras dos etnógrafos. Eles estavam envolvido? emseus próprios projetos culturais sincréticos. Conseqüentemen-te, não havia mais culturas conservadoras e limitadas a seremdescritas por observadores nesse tempo verbal atemporal, opresente etnográfico. Todo local cultural regurgita com o mo-vimento. A história está sendo feita por projetos culturais con-flitantes, e a cultura agora é uma quermesse cosmopolita queas pessoas esquadrinham em busca dos meios necessáriospara moldar novas identidades. "Cultura é contestada, tempo-ral e emergente", proclamou James Clifford.1"

Houve uma grande divisai.) histórica entre a época atual ea passada, mas a antropologia convencional nada tinha a dizera respeito da revolução cósmica que estava em curso. Na intro-dução de Wríting Culture, James Clifford invocou essa impor-tante transformação histórica no jargão da profecia milenaristã:

Ocorreu uma mudança conceptual e "tectônica". Nós coloca-mos as coisas, atualmente, numa terra em movimento. Não hámais nenhum lugar de onde se possa ter uma visão panorâmi-ca (topo cie montanha), do qual mapear os modos de vida doser humano, nenhum ponto arquimecliano do qual representaro mundo. As montanhas estão em movimento constante. Omesmo acontece com as ilhas: pois não se pocle ocupar, semambigüidade, uni mundo cultural limitado e daí iniciar uma jor-

19. CLIFFORD, James. Introduction. Wríltng Culture. p. 19.

1268

admirável mundo novo

nada e analisar outras culturas. Os modos cie viver do ser hu-mano cada vez mais se influenciam, dominam, parodiam,transferem e subvertem entre si. A análise cultural está sempreenredada em movimentos globais cie diferença e poder... um"sistema mundial" agora une as sociedades do planeta numprocesso histórico comum.-'"

A conclusão Inevitável era que a velha antropologia ha-via ficado obsoleta.

Esses eram temas comuns do novo movimento, mas tal-vez não baste, até mesmo cie uma forma preliminar, essencia-lizar as contribuições de Wríting Culture em termos tão gerais.Havia variações em termos de ênfase e de tom entre os auto-res. Eles se baseavam, com graus distintos de compromisso,num grande leque de perspetivas críticas, incluindo a teoria li-terária, as críticas "subalternas" da ciência colonial, o marxis-mo e a Teoria do Sistema Mundial - e não é preciso dizer quenenhuma dessas correntes de pensamento representa um úni-co corpo de dogma monolítico. Alem do mais, os caminhosdivergiram nos anos que se seguiram. E só prestar atençãonos textos mais extensos escritos nos anos seguintes pelas fi-guras centrais da equipe de Wríting Cultnre.

Em 1988, James Clifford, co-editor de Wríting Culture,publicou Tbe Predicament of Culture, uma série de ensaiosque surgiram originalmente entre 1979 e 1986. Clifford estáafiliado ao Programa Interclisciplinar de História da Conscien-tização da Universidade da Califórnia, Santa Cruz, e ele mes-mo não é um antropólogo, mas sim (segundo suas própriaspalavras) "historiador e crítico de antropologia".-'1 Ao mesmotempo teórico literário e historiador intelectual, ele interpretaos textos etnográficos do século 20 nas entrelinhas, e achaque o que eles revelam não é a natureza de outras culturas,como fazem crer, mas sim o que ele chama de dilema da cul-tura. Clifford desenvolve esse conceito a partir de vários pon-

20. Id., ibicl.. p. 22.21. kl. 'lhe Predicament of Culture: Twentieth-Century Ethno-graphy, Literatura, and Att. Cambridge, Mass.: Ilarvard UniversityPress, 1988. p. 289.

269!

Page 7: Kuper, Adam - Cap 6 e 7

capítulo 6

tos, mas a proposição central parece resumir-se em uma úni-ca conclusão: o mundo mudou. O Ocidente abarcou os pe-quenos mundos do Resto e ficou, por sua vez, exposto à pre-sença maciça cie imigrantes. Cultura e, portanto, identidadeestão em fluxo constante; não sà_o estáveis e concedidas, masfluidas e mais ou menos construídas de forma consciente. Elasnão podem mais ser desprezadas. "Meu tópico basicamente éuma condição difusa de excentricidade num mundo de siste-mas de significados distintos, um estado de estar na culturaenquanto se olha para a cultura, uma forma de automoclela-gem pessoal e coletiva. Esse dilema - que não está limitadoaos estudiosos, escritores, artistas ou intelectuais — responde acamadas de tradições sem precedentes do século 20."22

Entretanto, as diferenças culturais persistem nesse mun-do em constante transformação, e podem ficar ainda maisacentuadas. "Modos distintos de vicia que antes estavam des-tinados a fundirem-se com 'o mundo moderno' reafirmavamsuas diferenças, cie novas maneiras.'"-' Lima guerra culturalcósmica estava em curso, mas o Ocidente não tinha garantiasde vitória em seus próprios termos. "É cedo demais para cli-zer se esses processos de mudança vão resultar em homoge-neização global ou em uma nova ordem cie diversidade."-4

Clifford escreve (na voz impessoal que ele prefere, de formaum tanto estranha ciada a sua insistência em afirmar que oautor eleve estar sempre no palco) que seu livro "não vê omundo como se fosse povoado por autenticiclades ameaça-das de extinção... Pelo contrário, ele abre espaço para cami-nhos específicos através da modernidade"..2'1

Os três termos cio argumento cie Clifford, entrelaçadosinextricavelmente, são "cultura", "identidade" e seu registro na"etnografia". Cultura e identidade estão em -fluxo constante.Conseqüentemente, a etnografia está em crise, e sua base teó-rica precisa ser reconstituída. Primeiro, a noção problemáticacie cultura deve ser historicizacla. O conceito moderno cie cul-

22. kl., ibid., p. 9.23. kl., ibid., p. ò-"7.2-1. kl., ibid., p. 272.25. kl., ibjcl., p. >.

1270

admirável mundo novo

tura surgia como uma reposta liberal a ideologias mais anti-gas. Era pluralista e relativista, inovações que (assim comoStocking) Clifford atribui a Matthew Arnold e não a Tylor, em-bora ele esteja inclinado a retirar de Nietzsche a reivindicaçãode pai oculto - genitor se não pater - da concepção relativis-ta de cultura. De forma um tanto misteriosa, dada essa pater-nidade, Clifford afirma que a idéia moderna de cultura tam-bém era democrática, pelo menos no sentido de que a cultu-ra passou a_scr considerada não como uma propriedade ex-clusiva da elite, mas sim como algo usufruído por todos, emtodos os níveis cia sociedade. Entretanto, pressuposições insi-diosas do velho paradigma foram mantidas, particularmente odogma cie que uma cultura era um todo orgânico. Essa noçãoromântica cie integridade cultural não podia sobreviver à frag-mentação do mundo moderno.

Os artistas, aparentemente, foram os primeiros a sentir asmudanças que estavam ocorrendo. Super atentos ao Zeitgeist,eles se viram num mundo que havia perdido sua forma fami-liar. Os surrealistas, retornando das trincheiras após a 'Primei-ra Guerra Mundial, "começaram com uma realidade que esta-va sendo amplamente questionada".* Do outro lado cio Atlân-tico, um jovem médico e poeta, William Carlos Williams, re-fletia com apreensão sobre seu empregado, "uma pessoa am-bígua de origem duvidosa",2' que no entanto penetrara no queClifford descreve como "espaço doméstico burguês" de Wil-liams, que morava num bairro de classe média alta de NovaJersey. Os antropólogos reconheceram tardiamente essastransformações (caracterizadas por Clifford como pós-Primei-ra Guerra, pós-colonial e pós-moderna). A ficção cie conjun-tos culturais completos foi finalmente abandonada. Os etnó-grafos aprenderam que fronteiras culturais são incertas e es-tão sujeitas à negociação, e que todas as fabricações culturaissão contestadas do seu interior. No entanto, Clifforcl acreditaque embora tenhamos abandonar a pressuposição de queuma cultura é um todo duradouro e de que seus valores são

26. kl., ibid., p. 120.27. kl., ibid., p. 6.

271

Page 8: Kuper, Adam - Cap 6 e 7

capítulo 6

compartilhados por todos, devemos nos apegar ao conceitoda própria cultura. "Cultura é uma idéia profundamente tran-sigente, sem a qual, no entanto, não consigo viver."2"

A razão pela qual ainda precisamos de uma noção decultura é cie ordem moral ou política. O conceito de culturanos fornece a única forma que conhecemos para falar sobreas diferenças entre os povos cio mundo, diferenças que per-sistem a despeito do processo de homogeneização. E diferen-ça cultural tem um valor moral e político. Devemos cultivá-la,fazendo um compromisso político com o poder que a culturatem de resistir à ocidentalizaçào (ou modernização, ou globa-lização, ou, simplesmente, representação incorreta). Essepocle ser considerado um salto de fé', e Clifford reflete que seulivro (uma vez mais parecendo um ser autônomo com menteprópria) pode ter um preconceito utópico, e que sua '"espe-rança obstinada na réinvenção da diferença corre o risco denão dar a devida importância aos efeitos destrutivos e homo-geneizantes da economia global e da centralização cultural".31

À medida que a ilusão - antes talvez a realidade - cieculturas fixas e coesas se dissolveu; o mesmo aconteceu coma certeza de que as identidades eram fixadas por nascimento,enraizadas num sistema cie status estabelecido. Novamente,Clifford tenta situar essa mudança na história, dessa vez umpouco mais cedo, "por volta de 1900".* Mas qualquer que te-nha sido o momento da ruptura, no período moderno (oupós-moderno, ou pós-colonial), tanto o nativo como o etnó-grafo travaram uma luta para descobrir sua própria composi-ção, para encontrar uma identidade no caos do mundo con-vergente em transformação, Ao longo cio livro de Clifford, osíndios americanos, os aldeões melanésios e o empregado his-pânico cio poeta de Nova Jersey aparecem no mesmo papel,reunidos indiscriminadamente como pessoas deslocadas, ta-teando em busca de identidades ã medida que enfrentam o

28. Id, ibid., p. 10.29. kl., ibid., p. 15.30. Clifford continua: "Quero... historicizar a afirmação-de que oselfé constituído culturalmente analisando um momento em tornode 1900, quando essa idéia começou a adquirir o sentido que elatem hoje". 'lhe Predicament ofCulture. p. 92.

(272

admirável mundo novo

ocidente ameaçador. Mesmo estando na metrópole ficamosinquietos (como Williams Carlos Williams) com seu olhar, enão mais tranqüilos em casa. Viajantes e migrantes — e etnó-grafos - obviamente ficam completamente desnorteados. Jo-seph Conracl e Bronislaw Malinowski, dois intelectuais polo-neses independentes, são retratados por Clifford como refu-giados intelectuais paradigmáticos viajando por locais exóti-cos numa tentativa fracassada cie se encontrar.

Como as culturas estão em fluxo constante, e identidadeé uma questão de vale-tudo, dificilmente deve-se imaginarque a etnografia esteja em crise. Ela própria uma invençãocultural, a etnografia é "uma atividade híbrida"31 que "aparececomo escritos, coleta de ciados, colagem modernista, poderimperial, crítica subversiva". O modelo acadêmico dominantede organização etnográfica é, entretanto, um texto escrito quemodela os objetos de análise e persuade o leitor. Sua propos-ta não declarada é criar "uma estratégia específica de autori-dade. Sua estratégia sempre envolveu uma reivindicação nãoquestionada de aparecer como transmissor da verdade no tex-to".3- Mas os insights transmitidos pelos etnógrafos são, na me-lhor cias hipóteses, contextuais: "As verdades cia descrição cul-tural são significativas para comunidades interpretativas espe-cíficas em circunstâncias históricas restritas."33 O processo decomposição, e não de coleta de dados - a forma cia etnogra-fia, não o seu conteúdo - é de interesse especial. Deve-se,portanto, interpretar uma etnografia a fim cie expor as manei-ras com que uma determinada perspectiva é imposta e queuma reivindicação de autoridade é estabelecida.

A história bastante condensada cie Clifford sobre a etno-grafia do século 20 sugere uma progressão, ou pelo menosuma sofisticação crescente. Inicialmente, os papéis do etnó-grafo e cio antropólogo eram distintos. Um cientista - umTylor, um Prazer ou um Mauss - dirigia a coleta do trabalhorealizado por amadores no local a ser estudado e selecionavadados para ilustrar seus próprios esquemas teóricos. A profis-sionalização cio trabalho de campo etnográfico, do qual Mali-

31. Id, ibid., p. 13.32. Id., ibid., p. 25.33. kl., ibid., p. 112.

2731

Page 9: Kuper, Adam - Cap 6 e 7

capítulo 6

nowski foi o pioneiro, levou o especialista para o campo. Oetnógrafo passou a reivindicar a autoridade dupla do cientis-ta, que sabe o que procurar e como procurar. Mas essas erambasófias sem fundamento, pois o método malinowskiano deobservação participativa era inevitavelmente subjetivo. A au-toridade do etnógrafo baseava-se em sua experiência indivi-dual, mas, agindo de má fé, ele revelava pouco ou nada danatureza dessa experiência para o leitor. Clifforcl Geertz intro-duziu uma abordagem hermenêutica mais sofisticada baseadana "interpretação" de "textos". Ele revelou os "processos cria-tivos e poéticos pelos quais objetos 'culturais' são inventadose tratados como significativos".14 Ficou claro que um etnógra-fo constrói dados num diálogo com os informantes, que são,eles mesmos, intérpretes. Mas Geertz não foi longe o suficien-te, de acordo com Clifford. Os autores nativos desses textospermaneceram anônimos, figuras indiferenciaclas - "os baline-ses". Além clisso, Geertz não se expôs; ele não colocou suaidentidade em risco. Se uma etnografia é elaborada por meiode trocas entre o etnógrafo e os informantes nativos, o textodeveria descrever os mecanismos desse processo, as mano-bras e os artifícios, reconhecendo que os nativos podiam es-tar fabricando e montando os textos com tanta impetuosiclaclequanto um etnógrafo. Assim como o romance ideal de Bakh-tin, o etnógrafo de vanguarda deve representar uma conversacom vozes múltiplas e ficar especialmente atento a reinven-çòes subversivas cie cultura e identidade. "Paradigmas de ex-periência e interpretação", conclui Clifford, "estão produzindoparadigmas discursivos de diálogo e polifonia".-"

O subtítulo do livro de Clifforcl é "Twentietb-CenturyEthnography, Litemture, and AH", e ele trata a etnografiacomo- um gênero literário. Ele torna isso mais fácil para simesmo ao excluir a tradição positivista da etnografia e o pro-jeto de comparação entre culturas que era destinado a servir.*

34. kl., ibicl., p. 38.35. kl., ibid., p. 41.* Na página 22 cie Tlie Predicament of Culture, há uma surpreen-dente nota cie rodapé em que Clifford qualifica o corpo da etno-grafia que vai abordar (como sempre, na voz passiva, como se es-tivesse curvando-se à necessidade): "Presume-se... na tradição an-

274

admirável mundo novo

As etnografias interessam a Clifforcl como formas de escrever,não como representações cie algo que pode (ou não) existir.Conseqüentemente, ele não demonstra interesse no que osantropólogos acreditam ter descoberto, e não pergunta atéque ponto seus relatórios são válidos. Por exemplo, ao escre-ver sobre Malinowski, o fundador da moderna pesquisa etno-gráfica, Clifforcl se concentra em seus problemas de identida-de e auto-representaçào, e na "poética" de Argonautas do Pa-cífico Ocidental, escrito por Malinowski em 1922. Seu traba-lho inspirou Mareei Mauss a escrever Essay on tbe Gift em1924, um clássico cia sociologia generalizante que ainda é ci-tado regularmente com grande respeito por antropólogos detodas as escolas, mas Clifforcl ignora esse tipo cie desenvolvi-mento intelectual: as etnografias estão relacionadas apenascom biografias altamente seletivas cia imaginação do autor.

Enquanto Clifforcl é um crítico de trabalhos etnográficos,Renato Rosalclo é um etnógrafo consumado, e interessa-semais pelo tipo cie conhecimento que pode ser obtido pormeio do trabalho de campo. Em seu livro Culture and Truth,publicado em 1989, cie também rejeita apelos à autoridadecientífica, mas insiste na integridade da experiência. Os Ilon-got, entre os quais ele trabalhou como etnógrafo, disseram-lhepor que costumavam sair para caçar cabeças: era a única for-ma cie liclar com a raiva e a dor provocadas pela perda de umente querido. Obviamente, Rosalclo registrou essa explicação,mas depois tentou descobrir uma explicação sociológica maissatisfatória para a caça a cabeças. Mas apenas quando passou

tipositivista de Wilhelm Dilthey, que a etnografia seja um proces-so de interpretação, e não de explicação. Modelos de autoridadebaseados em epistemologias naturais-científicas não são discutidos.Em seu enfoque na observação do participante como um proces-so intersubjetivo no coração da etnografia do século 20, essa dis-cussão restringe o número cie fontes de autoridade- que contri-buem: por exemplo, o peso cio conhecimento 'arquivável' acumu-lado sobre determinados grupos, de uma perspectiva comparativaentre culturas e de trabalho de pesquisas estatísticas." (Notas de ro-dapé são uma característica particular da análise clesconstrucionis-ta; portanto, é com um prazer especial que dedico essa nota de ro-dapé a uma nota de rodapé.)

275 (

Page 10: Kuper, Adam - Cap 6 e 7

capítulo 6admirável mundo novo

pela percla trágica cia esposa, que morreu num acidente en-quanto ele realizava um trabalho de campo nas Filipinas, foique ele avaliou a dor e a raiva sentidas por um caçador cie ca-beças Ilongot e foi levado a aceitar suas explicações.

A moral cia história ("Grief and a Headhunter's Rage") éque a percepção intuitiva é resultado da experiência pessoal.Só se pode compreender a experiência dos outros quando sepassou por experiência semelhante. A boa etnografia deve ba-sear-se na empatia. Se um etnógrafo descreve a dor cie umaperda, ele deveria ser obrigado a explicar se já passou poressa experiência. E os sentimentos importam. Rosalclo criticaum cios fundadores da antropologia social britânica, A. R. Rad-cliffe-Brown, por sua clássica análise do pranto cerimonial nasilhas Anclaman. Segundo Radcliffe-Brown, os andamaneseschoram em ocasiões durante rituais realizados em épocas decrises. Ele interpreta o pranto como um ato simbólico, umaconvenção. Rosalclo faz objeção, dizendo que essa análise ig-nora e desvaloriza as emoções dos andamaneses, da formacomo eles lidam com acontecimentos trágicos.

Se o conhecimento cie outros povos é obtido pela formacomo vivenciamos as próprias emoções, então os apelos àcondição de ciência da antropologia devem ser rechaçados.Não há garantias para a autoridade especial cie qualquer pers-pectiva cultural em particular. O argumento cie ser objetivo éum movimento em uma luta por autoridade, uma manobraideológica. "Termos como objetividade, neutralidade e impar-cialidade referem-se a posições de sujeito que antes eram in-vestidas de grande autoridade institucional", escreve Rosalclo,"mas não são, discutivelmente, nem mais nem menos válidoscio que os atores sociais mais engajados, porém igualmenteperceptivos e cultos'1.* E havia mais uma razão para abando-nar as velhas ciências. O mundo mudara: tinha-se tornado pós-colonial. "Posturas analíticas desenvolvidas durante o períodocolonial não podem mais ser mantidas... Apesar cia intensifica-ção do imperialismo norte-americano, o Terceiro Mundo' im-plodiu dentro da metrópole.''3" Num mundo em que todas as

36. ROSALDO. op. cit. p. 21 .37. kl., ibid, p. 44.

culturas eram híbridas, todas as fronteiras culturais derrubadase contestadas, as concepções tradicionais de cultura não fa-ziam mais sentido. "Toclos nós habitamos um mundo interde-pendente no final do século 20, marcado por empréstimosatravés de fronteiras nacionais e culturais porosas que estão sa-turadas de desigualdade, poder e dominação."*

Os argumentos de Rosalclo sobre história, ciência e cultu-ra são semelhantes aos apresentados de forma mais elaboradapor Clifford. Quando se trata de identidade, entretanto, Rosal-do toma um rumo diferente. Para Clifford, a identidade ficoumais descentralizada e fraturada. Ela é fabricada a partir ciequaisquer apoios que estiverem à mão, não é concedida, masuma questão de opção agonizada, na melhor cias hipóteses umato imaginativo de resistência ao poder. O herói pós-modernode Clifford é incapacitado pela incerteza quando se trata cie co-nhecer, julgar e escolher. Hle é o WASP* que perdeu o rumo.O caso do próprio Rosalclo é muito diferente. Seu pai era umprofessor estrangeiro de espanhol nos Estados Unidos, e ele seconsidera um chicano. Isso lhe clá não apenas uma identida-de, mas também uma comunidade e uma base firme para fa-zer opções políticas e teóricas. "Na minha opinião, como chi-cano, as questões cie cultura não emergem apenas da minhadisciplina, mas também de uma política de identidade e comu-nidade mais pessoal."•* Como chicano, Rosaldo também se so-lidariza com os povos oprimidos do mundo, e seu dever é cla-ro: promover a "crítica social feita a partir de posições social-mente subordinadas, oncle se pocle trabalhar cie uma formamais voltada para a mobilização de uma resistência cio quepersuadindo os poderosos".* Essa crítica deve ser motivadapela "dor e raiva dos caçadores de cabeças", ou melhor, pelasvariantes intelectuais dessas emoções primordiais, que "variamcia raiva implacável de Fanon para a raiva modulada de Frakeaté os modos mais evasivos cie Marx e Hurston, onde se tor-

38. kl., ibid., p. 217.* Acrônimo cie White AngloSaxon Protestant: branco, anglo-saxão,protestante, membro da classe privilegiada dominante cios EstadosUnidos. (N.T.)39. kl., ibid., p. x-xi.40. Id., ibid., p. 195.

276 _ 2771

Page 11: Kuper, Adam - Cap 6 e 7

capítulo 6

na... uma arma para ser usada em conflitos sociais". Com seusproblemas cie identidade resolvidos, Rosalclo pode ser subjeti-vo sem sucumbir a um relativismo paralisante. Sua experiêncialhe confere uma orientação autêntica para a raiva que as pes-soas (verdadeiras, oprimidas) sentem. Identidade, política eteoria formam uma rede sem costura.

O argumento de Anthropology as Cultural Critique'deGeorge Marcus e Michael Fischer (publicado em 1986) come-ça com a observação cie que o momento revolucionário ciosanos 60 já passou. O mundo está mudando mais uma vez, esão necessárias novas perspectivas para representar as novasrealidades. Atualmente, as questões polêmicas são metodoló-gicas.. "Em seu nível mais amplo, o debate contemporâneo ésobre como um mundo pós-moclerno emergente deve ser re-presentado como um objeto para o pensamento social em suasvárias manifestações disciplinares atuais."41 Para os antropólo-gos, a questão mais premente é como escrever sobre outrospovos, e Marcus e Fischer identificam dois modelos de etno-grafia que surgiram de debates recentes. As "etnografias cia ex-periência" falam sobre a vida interior do antropólogo de cam-po que as etnografias interpretativas convencionais deixaramde fora. Assim como Rosaldo, seus autores tentam lidar comemoções e com a psicoclinãmica cio self. Mas até mesmo os in-terpretativistas mais sensíveis e mais reflexivos podem negli-genciar questões de pocler e -exploração econômica e passarpor cima cia disseminação insi.diosa do capitalismo global. Ogênero alternativo, "etnografias político-econômicas" retratamcom uma pequena análise as formas específicas em que a for-ça irresistível cio capitalismo "afetou, e até mesmo moldou, asculturas cie temas etnográficos em quase todo o mundo".42

Diante clisso, essas cluas abordagens pareceriam incom-patíveis. O projeto de uma escola político-econômica consis-te em fornecer Lima Importante narrativa universal. Num con-traste total, Marcus e Fischer admitem que "a antropologia in-terpretativa contemporânea nada mais é do que o relativismo

41. MARCUS, George E. ; FISCHER, Michael M. J. Antbropologv asCultural Critique: An Experimental Monient in the Ilunian Scien-ces. Chicago: University of Chicago Press, 1986. p. vii.42. Id., ibid., p. 44.

1278

admirável mundo novo

rearmado e fortalecido para um período de efervescência in-telectual",^ No entanto, eles acreditam que, de alguma forma,a "etnografia da experiência" relativista e subjetiva possa sercompatível com uma sociologia neomarxista - apesar de real-mente admitirem que uma "antropologia interpretativa querealmente prestasse contas de suas implicações históricas epolítico-econômicas... ainda não foi escrita".44 A abertura paraa "economia política" lhes oferece, entretanto, uma solução al-ternativa para o problema ético e político do pós-modernista.Eles não podem, como Rosaldo, reivindicar uma identidadecom os oprimidos, mas estão livres para voltar suas armaspara os opressores. O papel cia antropologia é oferecer uma"crítica cultural'' do Ocidente, expor a natureza factícia e inte-resseira de suas ideologias dominantes da forma como elas seapresentam na arte, na literatura, no corpo de conhecimentos,na mídia e, obviamente, na etnografia.

Apesar das diferenças cie ênfase, todos esses autores re-tornam a uns poucos temas centrais. No cerne cie seus argu-mentos existem três proposições perfeitamente compatíveis en-tre si, e todas são vulneráveis ã crítica em seus próprios termos.A primeira proposição é que houve uma mudança histórica emtodo o mundo nos termos cie comércio cultural. A segunda éque não é mais possível (se é que alguma vez foi) constaiir re-latos objetivos de outros modos cie vida. A- terceira é que háuma obrigação moral cie louvar as-diferenças culturais e defen-der aqueles que estão resistindo à ocidentalizaçào,

Embora esses escritores concordem que esteja ocorren-do uma transição histórica em âmbito mundial, as datas narealidade são um tanto incertas. Para Virgínia Woolf é 1910.Clifford propõe várias datas importantes, como 1900, 1918 c1950, enquanto seus colegas acham que os anos 60 foram osanos críticos. O que mudou exatamente também não está cla-ro, mas não há dúvidas cie que algo bastante expressivo estáocorrendo. "A nossa época definitivamente é pós-colonial",afirma Rosaldo.<s "A sociedade americana, e talvez."., as socie-dades ocidentais de forma global", segundo Marcus e Fischer,

l , /43. kl., ibid., p. 33.44. td., ibid., p. 86.45. ROSALDO. op. cit. p. 44.

2791

Page 12: Kuper, Adam - Cap 6 e 7

capítulo 6

"parecem estar passando por uma profunda transição"/" Amedida crucial cia mudança é a tcansição cie identidades cul-turais seguras para um estado cie fluxo cultural. Os eventosque precipitaram a mudança aparentemente são o fim do co-lonialismo e a globalização da cultura.

Existem muitas objeções a serem feitas contra essa his-tória, mesmo que ela seja apresentada num estilo poético ealusivo que a torne difícil de ser definida. Uma objeção quevem à mente é que não é assim que ela se mostra para os na-tivos, pelo menos no Ocidente. Onde estão os grandes even-tos da geração passada que dominaram a nossa consciência?1

A Segunda Guerra Mundial ficou para trás, e com ela o holo-causto. A Guerra Fria 'é ignorada, e com ela o stalinismo, aRevolução Cultural cie Mão e o impasse nuclear. Por quasemeio século depois cia Segunda Guerra Mundial, os america-nos contrastaram sua própria sociedade com a cia União So-viética. Na Europa Ocidental, o Outro relevante na geraçãopassada foi o leste europeu, ou talvez o próprio Estados Uni-dos. O Oriente aparecia sob o disfarce de OPEP, ou como umconsórcio cie "tigres" protecionistas que fabricavam carros eartigos eletrônicos, enterrando a British Motors e até mesmoameaçando Detroit.

E, no entanto, quaisquer que sejam as excentricidades, orelato pós-moclernista cia história (ou pelo menos essa versãoantropológica) não é tão novo quanto possa parecer. Trata-sebasicamente cie uma história cultural de um tipo familiar emodernista. Seu tema é a disseminação da ciência, da tecno-logia e cios valores utilitários à custa das pequenas tradições,das nações envolvidas em combate da periferia. É evolucio-nista, mas seu tema pocle ser a modernização, a ocidentaliza-ção, o imperialismo ou o capitalismo. Essa visão da históriaera tradicionalmente discutida por dois partidos: o partido Ilu-minista, que acolhe o progresso de valores universais à custacios costumes e cias superstições locais, e o partido Românti-co, que defende a resistência à essa civilização imperial. Clif-ford, Marcus e companhia são, obviamente, da ala Romântica,embora representem uma facção pós-moclerna. Eles não valo-

46. kl., ibicl., p. 9.

(280

admirável mundo novo

rizam a integridade de tradições milenares e se colocam aolado das minorias e não das nações. Não obstante, como ob-serva Ernest Gellner, toclo o confronto entre os pós-moclernis-tas e seus oponentes

pode ser encarado como um tipo de reprise do duelo travadoentre classicismo e romantismo, o primeiro associado à domi-nação cia Europa pela corte francesa, por seus costumes e pa-drões, e o último à reação final de outras nações, que afirma-vam os valores de suas próprias culturas populares... Além dis-so, em nossa época houve não apenas a libertação de ex-colô-nias, mas também o movimento feminista e vários outros deauto-afirmação das minorias ou de grupos oprimidos.1"

Essa versão cia visão romântica cia história está ligada aoseu segundo tema comum: os românticos repudiam os ape-los a verdades científicas invariáveis ou a valores humanoscomuns. O conhecimento é culturalmente construído e cultu-ralmente relativo. Não existem conhecimentos absolutos ouuniversais. A própria ciência eleve ser tratada como um dis-curso cultural que possui um propósito ideológico. O positi-vismo é a ideologia clesumanizadora de uma classe capitalis-ta, imperialista e patriarcal. Suas reivindicações de objetivida-de e autoridade, entretanto, não se apoiam em nada maissubstancial cio que a retórica. As invocações cie ciência estãodisfarçadas de jogos de pocler, estratégias para a imposiçãode um conjunto de valores em toclo o mundo. Ernest Gellneroferece um resumo satírico:

O colonialismo estava associado ao positivismo, a descoloni-zação à hermenêutica, culminando no pós-modernismo. O po-sitivismo é uma forma de imperialismo, ou talvez seja o con-trário, ou ambos. Apresentados de forma lúcida, os fatos (su-postamente) independentes representavam os instaimentos e aexpressão do domínio colonial; em contrapartida, o subjetivis-mo significa igualdade e respeito interculturais.'"

47. GELLNER, Ernest. Poslmodernism, ReasonandReligion. Londres:Roútledge, 1992. p. 26-7.48. ld,, ibicl., p. 26.

281

Page 13: Kuper, Adam - Cap 6 e 7

capítulo 6 admirável mundo novo

Existe uma contradição óbvia entre essa epistemologiarelativista e a alegação de ser capaz de apontar com precisãouma crise cultural cósmica. "Se disséssemos que o mundo mu-dou", salienta Gellner, "pareceríamos estar cie posse cie algu-ma informação objetiva sobre ele, afinal cie contas".4" Há ou-tra contradição entre a negação de que o conhecimento obje-tivo pode ser alcançado e o firme tom moral que esses auto-res .empregam habitualmente. Eles podem não ter certeza denada, mas sabem exatamente do que gostam. Eles não estãocio lado dos povos que resistem ã "ociclentalização", ou "mo-dernização" ou "globalização". Mas baseado em quê podemtomar partido? O que garante sua afiliação política? Em nomede que princípios, eles podem nos convocar para as armas?

Em estilo caracteristicamente romântico, Clifford criticaseveramente Eclward Saicl pelo que ele chama de humanismoinsípiclo. Saícl insiste em valores universais, e está apreensivoem relação à'política cie identidade. "Será'que a noção de umacultura distinta (ou raça, ou religião, ou civilização) é útil?"*pergunta ele, "ou será que ela sempre fica envolvida em au-tocongratulação (quando se discute a própria cultura) ou hos-tilidade e agressão-(quando se discute a 'outra' cultura)?" Eleressalta que apelos à identidade cultural podem ser usadospara "mobilizar paixões de forma atávica"/1 convocando aspessoas para a guerra. Segundo Clifford, Said insiste tanto emvalores humanos comuns que acaba ficando sem vocabuláriopara escrever sobre diferença cie maheira decente. Todavia, opróprio Clifford tem uma dificuldade semelhante com a espe-cificação do que as pessoas têm em comum. "Frisar... a natu-reza paradoxal do conhecimento etnográfico", admite ele,"significa questionar quaisquer fundamentos estáveis ou es-senciais de similaridade humana".s- Clifford opta pela diferen-ça e espera que as conseqüências sejam benignas. Ele estápreparado para questionar "quaisquer fundamentos estáveis

49. Id, ibid, p. 41.50. SAID. Orientalism. p. 325.51. Id. Culture and Imperlalism. Londres: Chatto and Windus.1993. p. 42.52. CLIFFORD. The Predicament of Culture. p. 145.

282

.

ou essenciais cie similaridade humana", para enfatizar diferen-ças à custa do que ele chama com escárnio de cosmopolita-nismo (um termo ofensivo que tem sua própria origem sinis-tra nos discursos totalitários modernos). Mas Clifford fica semuma boa razão para tomar partido das vítimas da globalização.

Há uma dificuldade relacionada, que pode ser descritacomo problema de legitimidade. Quem pode falar pelo Outro?A esquerda européia tradicionalmente conferia autoridade es-pecial aos líderes que se originavam da classe trabalhadora. Natradição cio nacionalismo romântico, apenas o nativo pode fa-lar em nome cio nativo. Se a briga é entre imperialistas e suasvítimas, e se apenas a identidade pode conferir autoridadepara falar, então a palavra deve ser dada às pessoas que po-dem afirmar que têm a mesma origem das vítimas. Essas pres-suposições obviamente são problemáticas, e não apenas por-que existem nativos e nativos, facções e poita-vozes rivais - in-cluindo, com freqüência, os velhos adversários, o moderniza-clor e o tradicionalista. Pode haver, certamente, diferença entrefalar sobre e falar em nome de; entre alegar estar representan-do outra pessoa mais num contexto político e oferecer uma re-presentação das suas crenças ou dos seus atos.

Essa oposição maniqueísta entre nativos e colonialistas,oprimidos e opressores, também pode impor uma uniformida-de factícia sobre todos os povos pós-coloniais, essencializan-do-os, coaginclo-os a desempenhar o papel de vítima estereo-tipada numa representação ocidental da Paixão de Cristo. E opapel que lhes oferecem certamente tem seus inconvenientes.Para começar, apesar cias esperanças de Gandhi, a resistênciaà ciência e à tecnologia não é de forma alguma universal nomundo pós-colonial. Pelo contrário, Lévi-Sjrauss frisou na ge-ração passada que os governantes dos Novos Estados clama-vam por mais tecnologia ocidental/3 Tampouco a ênfase sobrediferença cultural é necessariamente bem-vinda nas sociedadespós-coloniais. Em muitos lugares, as experiências históricas ge-raram ceticismo, até mesmo hostilidade, em relação à celebra-ção da diferença cultural, que muitas vezes era exploradanuma política de divisão e controle. Na África cio Sul, a língua

53. LÉVKSTRAUSS, Claudc. Race and Hislory. Paris: UNESCO, 1952.

283

Page 14: Kuper, Adam - Cap 6 e 7

capítulo 6

cia identidade cultural, a ideologia cio destino cultural, apoiavauma tirania odiosa. Os imigrantes do Ocidente também podemestar incomodados com a exortação para alimentar e desenvol-ver suas diferenças, quando eles talvez quisessem ter a opor-tunidade cie se tornar cidadãos não hifenizados.

O que o profeta cia diferença tem a clizer sobre aqueles"que resistem ao imperialismo mas pregam um humanismouniversal? Edwarcl Said, por exemplo, inquieto em relação aosapelos cie diferença e identidade, manifesta-se contra a pres-suposição de que "apenas as mulheres podem compreendera experiência feminina, apenas os judeus podem compreen-der o sofrimento dos judeus, apenas os ex-colonizados podemcompreender a experiência colonial"."1"1 Lila Abu-Lughod, quese identifica como uma feminista e uma "meio-a-meio" (meioamericana, meio árabe), resiste ã ênfase na diferença culturalem termos semelhantes, alegando que a afirmação de diferen-ça carrega consigo uma afirmação de hierarquia, e "sempretraz em. seu bojo a violência de reprimir e ignorar outras for-mas cie diferença".w (Gênero, por exemplo, pode ter um cará-ter diferente entre as culturas.) Ela conclui que "talvez os an-tropólogos devessem refletir sobre estratégias para escrevercontra cultura", e ela os conclama a apresentarem "semelhan-ças em todas as nossas vicias".

Deixando de lado seus problemas lógicos, o movimentopós-modernista tem exercício um efeito paralisante na discipli-na da antropologia. Ele nega a possibilidade cie uma antropo-logia comparativa entre culturas. O movimento promete umaguinada na etnografia, e surgiram algumas etnografias pós-mo-dernistas imaginativas e bem-suceclidas, mas seu principal efei-to tem sido deixar os jovens etnógrafos tão nervosos que difi-cilmente eles serão persuadidos a entrar para o campo. Eles sesentem "acossados", observa Clifford "Geertz, "por grandes in-certezas interiores, quase um tipo de hipoconclria epistemoló-

54. SAID. Culture and Imperialism. p. 35.55. XBU-LUGHOD, Lila. Writing Against Culture. In:. HOX, Richard.(Ed.). Recaptimng Antbropology: Working in the Present. Santa Fé,N.M.: School of American Research Press, 1991. p. 140, l Í7, 157.

284

admirável mundo novo

gica, em. relação a como se pode saber se o que qualquer umdiz sobre outros modos de vida é realmente verdade".*

Por que, então, esse movimento intelectual foi tão bem-sucediclo? Uma possibilidade, muito debatida, é cie que o pós-modernismo constitui uma ideologia cie opção do consumi-dor, mas isso dificilmente está de acordo com a hostilidade ré--flexa dos pós-modernistas em relação ao Sonho Americano.Joel Kahn afirma que "talvez o mais impressionante em todoesse debate sobre cultura e diferença é como ele parece estarpouco relacionado com o mundo de fora da academia, e oquanto ele parece se concentrar em questões como currículo,seleção de estudantes, práticas de contratação, promoção,permanência no cargo, e assim por diante, que representam apreocupação geral cios acadêmicos".^ Foi feita a sugestão ig-nóbil cie que o programa pós-modernista serviu como umpropósito útil às batalhas acadêmicas por promoção e poder."Essas afirmações devem ser vistas como jogadas políticasdentro da comunidade acadêmica",w na opinião cie Paul Rabi-now (numa eventual contribuição subversiva para WritingCulture). A platéia para a qual Clifford e os outros estão es-crevendo está perto de casa; é "o meio acadêmico da décadacie 1980. Logo, apesar cie não ser exatamente falso, situar a cri-se de representação dentro do contexto da ruptura da desco-lonização está... basicamente fora de questão". Como ErnestGellner resume seu argumento, "Sturm imd Dmng* e Estabi-lidade podem muito bem ser seu slogan".*'

Sem dúvida alguma, essas considerações são relevantes,mas podem aplicar-se a qualquer novidade acadêmica. Elas

56. GEERTZ, Clittbrd. Works and Lives: The Anthropologist as Au-thor. Stanforcl: Stanford University Press, 1988.57. KAHN, Joel. Culture, Multiculture, Postculture. Londres: Sage,1995.58. RABINOW, Paul. Representations are Social Facts. In: WritingCulture, p. 252.* Movimento literário pré-romântico ocorrido na Alemanha emfins do século 18, que enaltecia os ideais de liberdade artística epolítica e a natureza, procurando derrubar o nacionalismo doIluminismo. (N.T.)59. GELLNER, Ernest. Postmodernism, Reason and Religion. p. 27.

285!

Page 15: Kuper, Adam - Cap 6 e 7

capítulo 6

em nada contribuem para explicar por que ocorreu esse mo-vimento na antropologia. É melhor começar relembrando osucesso que Geertz obteve na reorientação cia antropologiacultural nos Estados Unidos como uma disciplina dentro dasciências humanas. Quando os ventos sopraram em uma nova

•direção nos departamentos de filosofia e literatura, obvia-mente os antropólogos ficaram inclinados a agir de acordocom as novas regras. Se a cultura é um texto, então a inter-pretação da cultura depende do que os especialistas dizemque é um texto realmente. Geertz esperava que a antropolo-gia reformasse as ciências humanas, mas o efeito desse pro-grama foi subordinar as preocupações teóricas cia antropolo-gia cultural às cias principais disciplinas das ciências huma-nas. Todas tratavam do mesmo assunto, todas estavam nomesmo jogo: a interpretação da cultura. E a forma canônicacia cultura era a literatura e a arte.

Mas o pós-modernismo americano também foi sustenta-do por um movimento social em que as "diferenças" (identi-dade étnica, gênero, orientação sexual e até mesmo deficiên-cias) tornaram-se a base para uma reivindicação de direitoscoletivos. Havia uma lógica comum a todas essas reivindica-ções: não se tratava cie acasos de biologia, mas de identida-des culturais que faziam a diferença, e a identidade cultural ti-nha de ser afirmada e respeitada. A ortodoxia dominante dasociedade não passava de uma posição cultural, que ficaramais hegemônica. A civilização ocidental era simplesmente acultura preferida de uma determinada elite branca e masculi-na. Enquanto na Europa o pós-moclernismo constituía um la-mento para o fim do marxismo, nos Estados Unidos tornou-seuma fonte de apoio ideológico para política de identidade,um movimento que estabelecia seus centros nervosos nas fa-culdades de ciências humanas das universidades americanas.

1286

i capítulo 7

cultura, diferença,identidade

A característica mais extraordinária do caráter intelectual leioChefe Basoto] é seu talento para generalizações. Enquanto Mr.•Casalis lê para ele algum trecho de história milenar ou moder-na, a seu pedido, sua mente divaga sobre a filosofia do assun-to. E passando a mão direita na coxa e se recostando no sofácio missionário, como um homem que descobriu um novoprincípio ou as novas provas que vinha procurando paraapoiar aquela que ele deseja que seja mais firmemente estabe-lecida, às vezes ele se expressa com sentimentos que beiramao êxtase. "Casalis", cliz ele, "vejo que os homens sempre fo-ram os mesmos em todas as épocas. Gregos e romanos, fran-ceses, ingleses e Basotos. todos possuem a mesma natureza".

Relatório de um missionário sobre o Chefe Basoto,Moshoesboe, escrito em 1843.'

H,

.

em clia os antropólogos ficam extremamentenervosos quando discutem cultura - o que é surpreendente, ajulgar pelas aparências,' uma vez que a antropologia da cultu-ra cie certa forma representa uma história de sucesso. Enquan-to outros conceitos respeitáveis em sua maioria desaparece-ram do discurso das ciências sociais, até mesmo um pós-mo-dernista pocle falar sem constrangimento sobre cultura (com

1. Apuei THOMPSON, Leonard. Sunnvalin Tu<o Worltis: Moshoeshoeof Lesotho, 1786-1870. Oxford: Clarendon Press, 1975. p. 81.

287!

Page 16: Kuper, Adam - Cap 6 e 7

capítulo 7

citações, se necessário, mas ainda assim... Comparar o desti-no de personalidade, estrutura social, classe, ou mais recente-mente, cio gênero). Na verdade, a cultura está mais em vogado que nunca. Outras disciplinas a acolheram, e uma nova es-pecialidade, os estudos culturais, dedica-se inteiramente a ela.

Até há bem pouco tempo, havia também um grandeconsenso acerca do assunto. Até mesmo hoje em dia uma lis-ta cie hipóteses sobre cultura poderia ser elaborada, e amaioria dos antropólogos ficaria feliz em cQnferi-la (se pelomenos pudessem fazer observações sobre suas reservas pes-soais na margem). Em primeiro lugar, cultyj^jriào_J_umaquestão de raça. Ela é aprendida, e não. transrnitic[a_^O£_ge-nes. (Esse ponto será prontamente admitido, embora atual-mente alguns círculos demonstrem maior interesse em saberqual é o papel exato dos genes.) Em. segundo, essa culturahumana comum evoluiu. Estamos falando aqui cie um~pênb-clo bastante longo, em que o progresso sem dúvida foi irre-gular e sujeito a reveses, mas que tem registrado avanços tec-nológicos irreversíveis num ritmo acelerado. O progressotécnico pode ser mensurado, e seus efeitos traçados na ex-pansão e no crescimento da população humana, bem comono desenvolvimento de sistemas sociais cada vez mais com-plexos e em escala cada vez maior. (Esse ponto talvez seja omais difícil cie admitir, e somente depois de ficar bem claroque o que alguns podem acolher como uma nova alvorada,para outros pode representar uma catástrofe.)

Em terceiro lugar, existe um consenso geral sobre o sig-nificado do termo cultura no sentido em que a maioria ciosantropólogos culturais americanos vem utilizando, escrevendosobre a cultura kwakiutl ou até mesmo americana, e não so-bre uma civilização global. Cultura aqui é essencialmente umaquestão de idéias e valores, uma atitude mental coletiva. Asidéias, os valores, a cosmologia, a estética e os princípios mo-rais são expressados por intermédio cie símbolos e, portanto,- se o meio é a mensagem - cultura poclia ser descrita comoum sistema simbólico. Os antropólogos americanos tambémsalientam que esses símbolos, essas idéias e esses valores apa-recem numa gama de formas quase infinitamente variável.Sob um aspecto, essa é uma proposição empírica (povos di-

(288

cultura, diferença, identidade

ferentcs, cadências diferentes). Entretanto, um relativismo filo-ji sófico absoluto muitas vezes é acompanhado da observaçãode que não apenas os costumes, mas também os valores sãoculturalmente variáveis. Por conseguinte, não existem padrõesválidos, de modo geral, pelos quais as práticas e os princípiosculturais poclem ser julgados. (Para entender esse argumentoé bom dar menos importância ao quê as pessoas têm em co-mum, exceto, obviamente, sua capacidade de desenvolverculturas bastante distintas.)

Essa é a concepção de cultura que se tornou popular, enão apenas nos Estados Unidos. Os antropólogos naturalmen-te acolheram cie bom grado a popularização de suas idéias, oque, acreditavam eles, só podia estimular uma. maior tolerân-cia, mas ainda esperavam ser reconhecidos como autoridadesacadêmicas no assunto. Todavia, embora hoje em dia culturaseja .um tema amplamente discutido, as pessoas ainda nãobuscam a orientação dos antropólogos. Não é fácil aceitarisso. "Os antropólogos queixam-se de que estão sendo igno-rados pelas novas especialidades acadêmicas no campo da'cultura', como os estudos culturais, e por outras manifesta-ções acadêmicas e extra-acadêmicas de 'multiculturalismo'",-escreve o antropólogo Terence Turner. "A maiõriã~dê~nos estásentada de braços cruzados como tantos intelectuais desola-dos, tomando um chá de cadeira, esperando ser solicitados apartilhar sua sabedoria superior, e um tanto ressentida porqueos convites nunca chegam."

Essa é uma imagem cultural bastante ultrapassada. Nãoconsigo ver meus colegas como se eles estivessem tomandoum chá cie cadeira num baile, embora ás vezes eles realmen-te relembrem os donos de uma delicatessen antiquada funcio-nando no canto obscuro de um shopping center. Mas Turneridentificou com precisão o que levou os antropólogos a per-derem sua fatia no mercado. O debate sobre cultura voltou ater um caráter político. "Miilticnlturalismo, ao contrário cia an-tropologia", salienta Turner, "é sobretudo um movimento,para

2. TURNER, Terence. Anthropology and Multiculturalisin: What Is• , Anthropology rliat Multiculturalists Sliould Be Mindful of It? Cultu-

ral Antbmpolog)', v. 8, n. 4, p. 411, 1993.

289)

Page 17: Kuper, Adam - Cap 6 e 7

capítulo 7

mudança".' Algo semelhante aconteceu antes, mais de umavez, na história intelectual da teoria da cultura, pois esse temasempre levou vida dupla. Isolada em grande parte nas .livra-rias e nas salas de conferências, a cultura está sempre com osouvidos atentos, ao clamor vindo das barricadas, e às vezespercle-se em sonhos cie guerra ou revolução. Talcott Parsons,Clycle Kluckhohn e Alfrecl Kroeber tentaram fazer da culturauma ciência objetiva na década cie 1950, e na geração seguin-te, Clifforcl Geertz chamou a atenção pamjjxua.liermenêuticacerebral é Tso1aTtg^ta~gntfüra. Mas o sábio Dr. Jekyll bebeu suapoção mais uma vez, e o subversivo M r. I lyde foi para as ruas.Na década de 1990, teoria cultural nos Estados Unidos mal po-dia ser distinguicla de política cultural. Inevitavelmente, os an-tropólogos foram postos de lado. Para uma geração politiza-da, ensaios sobre rinhas balinesas parecem exóticos, muitodistantes cia ação.

Km resposta, alguns antropólogos americanos exortaramseus colegas a entrarem para a arena política, a levarem suasidéias sobre antropologia para serem debatidas em público.Afinal de contas, os grandes escritores sobre cultura, de Her-cler a Nietzche, Adorno, Gramsci, Elias e Williams, jamais du-vidaram de que cultura fosse uma questão política. Na antro-pologia, Boas, Malinowski, Meacl e Lévi-Strauss não hesitaramem abordar grandes questões políticas. Até mesmo o antropó-logo cético descobre que .o atual discurso politizado- sobrecultura provoca reflexões apreensivas sobre asjmplicações dateoria antropológica.

l Im importante desafio é apresentado pela nova discipli-na acadêmica de "estudos culturais]'. "Cultura nessa disciplinainclui belas artes, literatura e conhecimentos, as matérias re-gulares cio currículo das ciências humanas, mas abrange tam-bém as artes negras da mídia e a esfera vagamente demarca-da da cultura popular (um misto do que costumava ser cha-mado cie folclore e arte proletária, mais os espoites). Essasformas cie cultura são valorizadas de maneiras bastante distin-tas. Grosso modo, a alta cultura oficial é "questionada, e a cul-tura produzida pela massa, condenada como falsa, ou como

l3. kl., ibicl, p. 412.

i 290

cultura, diferença, identidade

irremediavelmente corrompida (embora certo prazer banalpelas novelas seja permitido), mas a cultura popular é tratadacom simpatia.

Os acadêmicos radicais não consideram a alta culturacomo um bem comum, quê deve ser conservado e transmiti-do para outras gerações. Pelo contrário, a "cultura" cie elitedeve ser compreendida como uma forma cie consumo mani-festo, um sinal cie status. Ela reforça o poder opressivo daclasse dirigente, e sua fetichizaçào enfraquece o poder e silen-cia a maioria. Na América multicultural, diz-se que os cursos (de Civilização Ocidental alienam os estudantes de outras ori-gens. Mas o intelectual crítico está ainda mais incomodado jcom o poder cultural exercido pelos meios de expressão demassa. O instaimento do capital, a mídia, não vende apenas;refrigerantes, mas também falsas aspirações. Revendo uma im-portante antologia sobre estudos culturais, Stefan Collini co-menta as desconfianças quase paranóides«que corroem os crí>ticos de produção cultural:

Suspeita-se que a maior parte cias formas de atividade culturalseja essencialmente um disfarce para o fato cie que Fulano estáTentando Ferrar Sicrano... dificilmente uma página clesse grossovolume é virada sem que nos digam que alguém que detém al-gum tipo cie poder... está tentando 'dominar', 'suprimir', 'ocluir','mistificar', 'explorar', •marginalizar'... outra pessoa, e o deverdos que estão engajados em Estudos Culturais é 'subverter', 'des-mascarar', 'contestar', 'des-legitimizar', 'intervir', 'combater'.'

A maior esperança em relação a essa resistência é repre-sentada pela cultura popular e, conseqüentemente, ela setransformou no enfoque inicial dos estudos culturais. Comoessa disciplina foi criada nas universidades britânicas na déca-da de 1960, inspirada por Raymoncl Williams, com suas raízesna Nova Esquerda britânica, a cultura popular era o assuntocio momento. Não que essa cultura popular fosse necessaria-

4. Stefan Collini, "Baclly Connected: The Passionate Intensity ofCultural Srudies". Victorían Stitdies. p. 457, verão 1993. Essa é umaampla revisão cie GROSSBERG, Lawrence ; NELSON, *Cary ;TREICHLER, Paula A. (Eds.). Cultural Sttidies. Londres: Routledge,1992.

291

Page 18: Kuper, Adam - Cap 6 e 7

capítulo 7

mente considerada isenta de risco, como recorda Stuart llall,um dos pioneiros no campo - havia sempre o perigo de queela fosse encampada a serviço dos poderosos. "Em parte, énesse ponto que surge a hegemonia, e onde ela é mantida."Por outro lado, na medida em que essa cultura popular pocleser controlada pelo próprio povo, "é um dos locais onde o so-cialismo pode ser constituído"."

Quer louvando a cultura popular ou fazendo sua partepara combater a hegemonia, os estudos culturais sempre fo-ram ao mesmo tempo uma aspiração acadêmica e um movi-me^njojjojítico. As críticas culturais e políticas unem-se no es-tudo cie filmes, programas de televisão e esportes, e a mensa-gem opressiva da mídia é contestada pela propaganda políti-ca de ativistas de classe, raça e gênero. A página de rosto doperiódico Cultural Studies declara que ele é "dedicado à no-ção de que o estudo dos processos culturais, sobretudo ciacultura popular, é importante e complexo, bem como teóricoe politicamente recompensaclor". Na Europa, pelo menos, osque se dedicam aos .estudos culturais normalmente são consi-derados cie esquerda. "Todas as pressuposições básicas dosestudos culturais são marxistas" escreve John Storey." C) mar-xismo exerceu menos influência nos Estados Unidos, mas osestudos culturais caraterizam-se neste país pela tradicional re-lutância em separar a teoria da prática. O especialista culturalpocle comodamente cledicar-se a ambos sem deixar sua sala,que provavelmente fica no departamento cie literatura ou cieeducação de uma universidade. Questões políticas iminentesimportantíssimas exigem a participação dos estudantes e docorpo docente, bem como da definição cio cânon.

Pode-se alegar que a antropologia deveria ser incorpo-rada aos estudos culturais, se realmente fosse seu dever cí-vico desmascarar o inimigo (capitalismo, hegemonia ociden-

5. I1ALL, Stuart. Notes on Deconstíucting "the Popular". In: SA-MUEL, R. (Ed). People's History and Socialist Theoiy. Londres:Routledge and Kegan Paul, 1981.6. STOREY, John. Cultural Studies. In: KtIPER, Adam ; KUPER, Jessi-ca. (Ecls.). 'lhe Social Science Kncvclopedia. 2. ed. Londres: Routledge,1996. p. 160.

292

cultura, diferença, identidade

tal, patriarcado). Esse foi o grande argumento cie Antbropo-logy as Culture Critique de Marcus e Fischer, e em um en-saio publicado em 1992, George Marcus defendeu a idéia deque a antropologia cultural deveria ser classificada como umramo dos estudos culturais." Vários estudantes cie antropolo-gia responderam ávidos a esse apelo, achando moralmentemenos problemático, e talvez mais fácil, estudar programasde televisão na sala de estar cia sua casa cio que se aventu-rarem em territórios alheios.

No mínimo, os antropólogos são pressionados a aceitaras proposições centrais dos estudos culturais: de que a culturaserve ao poder e de que ela c (e deve ser) contestada. Está cla-ro que há algo importante aqui. Mesmo que cultura não sejaexatamente o mesmo que ideologia, com certeza existe um lu-gar para o relato crítico dos mercadores de cultura. Não obs-tante, muitos antropólogos se sentirão ludibriados pelo progra-ma de estudos culturais. A objeção óbvia é de que, quando acultura é restringida às artes, à mídia e ao sistema:educacional,ela lida apenas com alguns aspectos do que os antropólogosentendem por cultura, e cie uma perspectiva bastante peculiar.Poucas instituições destacam-se como produtoras de cultura. Aprincipal preocupação, portanto, é quem está pagando a elas,e a que interesse elas servem? Além do mais, a tradicional ca-ridade cultural cie um antropólogo não tem lugar nesses exer-cícios. Todo produto cultural é julgado, não a partir de bases

'estéticas, mas aplicando-se o teste simples do radicalismo. Elenão é opressivo nem liberador. Esse envolvimento ativista tam-bém alimenta uma tendência lamentável cie endossar certos ti-pos de censura (bastante ridicularizada por seus adversárioscomo atitude politicamente correta).

Por fim, o modelo para a operação da cultura baseia-senuma compreensão do que está ocorrendo na||>ciedacle deconsumo ocidental. Quando olham para o estrangeiro, o quenão fazem com muita freqüência, o que os escritores especia-lizados em estudos sociais vêem é um processo cie americani-zação (chamado de globalização). O resto cio mundo aparen-

7. Introdução a MARCUS, George. (Ed.). Rereading Cultural Anth-ropology. Durliam, N.C.: LXike University Press, 1992.

2931

Page 19: Kuper, Adam - Cap 6 e 7

capítulo 7

temente está condenado a repetir a peça de teatro cultural queestreou na metrópole. Sujeito à mesma mídia, o mundo todoirá encenar as mesmas lutas. Lamentavelmente, o etnógrafotradicional, que sabe como é a vida em algumas aldeias, pou-co tem a dizer sobre tudo isso. As monografias sobre os acon-tecimentos das aldeias, portanto, permanecem nas prateleiras,enquanto os editores disputam relatos de como a populaçãourbana cia Indonésia interpreta as novelas mexicanas.

Se os antropólogos norte-americanos encaram ansiosa-,mente os estudos culturais como uma ameaça ao seu mono-pólio acadêmico, muitos consideram o multiculturalismo uma--joportunidade. No entanto, este último pode representar umdesafio mais subversivo, uma vez que se trata cie uma tradu-ção política cie algumas idéias centrais>_açerca cieeu] tu rã comas quais os antropólogos podem concordar, cie uma forma li-geiramente diferente. Portanto, o multiculturalismo levantaquestões inquietantes sobre as implicações das teorias dospróprios antropólogos.

Há que se admitir prontamente que o multiculturalismonão representa um movimento social coeso. Alguns simpati-zantes desprezariam o rótulo. Entre os que se considerammulticulturalistas estão escolas, facções e tendências. TerenceTurner, por exemplo, contrasta um multiculturalismo de dife-rença (que deve ser deplorado) com um multiculturalismocrítico, que ele admira.K O multiculturalismo cie diferença évoltado para dentro, atende aos próprios interesses e é infla-do de orgulho acerca da importância de determinada culturae de sua alegação de superioridade. O multiculturalismo críti-co, em contrapartida, é voltado para fora e está organizado demodo a desafiar os preconceitos culturais cia classe social do-minante com o propósito cie expor a parte vulnerável cio dis-curso hegemônico. Esse multiculturalismo crítico, na verdade,é fortemente*influenciado pelos estudos culturais, e os estu-dos culturais mais expressivos, nos Estados Unidos adotaramboa parte do programa multicultural. (Essa tendência foi reve-lada também na Inglaterra. O programa de mestrado em estu-

8. TURNER. Anthropology and Multicuituralism.

|294

cultura, diferença, identidade

dos culturais na Universidade de Leecls abrange "questões depolítica de representação, sexualidade e gênero, raça e idéiassobre diferença''.) Os dois movimentos ficaram tão estreita-mente ligados que Lawrence Grossberg, editor do influenteperiódico Cultural Studies, chama a atenção para "uma ten-dência clara de igualar os estudos culturais com a teoria e aspolíticas cie identidade e.diferença"."

Entretanto, a despeito cias verdadeiras- distinções que po-dem ser feitas entre suas várias modalidades, todas as formasde multiculturalismo têm algumas premissas em comum. Eapesar de seus teóricos acadêmicos citarem filósofos europeuse de sua influência ter-se expandido através cio Atlântico, so-bretudo para a Inglaterra, as pressuposições subjacentes domulticulturalismo são essencialmente americanas. Baseado nosdepartamentos de ciências humanas cias universidades, o mul-ticulturalismo representa a crítica mais recente e mais america-na da ideologia cio esiablisfyment, Ele ecoa os discursos ante-riores de dissensào que estiveram em voga no campas, exigin-do o fortalecimento cultural dos fracos e a sua emancipação.

O propósito comum consiste em substituir a ideologia daconfluência de raças pelo que representa na verdade uma ideo-logia antiassimilaçào. Os multiculturalistas rejeitam a idéia deque os imigrantes devam assimilar a cultura americana predomi-nante, e negam até mesmo que exista uma cultura preclominan-

'9. GROSSBERG, Lawrence. Identity and Cultural Studies. In; I-IALL,Stuart ; GAY, Paul du. (Eds.). Quesíions of Cultural Identity. Lon-dres: Sage, 1996. p. 87. Terence Turner observa que o desenvolvi-mento dos estudos culturais "influenciou diretamente a ascensãocio multiculturalismo. Essa disciplina também se preocupa com assubculturas, com a mídia e com os gêneros de representação degrupos que estão à margem das classes hegemônicas e cios gruposcie status das sociedades britânica e americana. Assim como o mul-ticulturalismo, os estudos culturais representam um movimento dedescentralização no estudo e no ensino da cultura, e os conceitoscie cultura que desenvolveu influenciaram diretamente o multicul-turalismo. Os dois movimentos envolveram essencialmente as mes-mas matérias acadêmicas (principalmente a literatura inglesa e ou-tras literaturas modernas) e se mostraram indiferentes à antropolo-gia à medida que desenvolveram suas próprias abordagens à cul-tura", TURNER. Anthropology andMulticutíuraltm. p. 420.

295;!

Page 20: Kuper, Adam - Cap 6 e 7

capítulo 7

te de que toei os os americanos corretos elevam ter os mesmosideais e as mesmas aspirações. Pelo contrário, a nação america-na cios multiculturalistas é culturamente fragmentada. Eles nãoconsideram isso um problema propriamente dito. A questão nãoreside na existência ele diferenças, mas sim no fato de elas se-rem tratadas com desprexo, como desvios cia norma. Lima cul-tura hegemônica (branco, anglo-saxão, classe média, homem,heterossexual) impõe suas regras a todos. O restante da popu-lação é estigmatizada por ser diferente. Suas diferenças os defi-nem: eles não são brancos, não são anglo-saxões, não perten-cem à classe média, não são homens nem heterossexuais.

Sob um aspecto, o grupo dominante simplesmente im-pòe suas próprias características ideais como normas definido-ras e tacha qualquer um que seja diferente como fora cio pa-drão. Sob outro aspecto, essas minorias constituem grupos au-tenticamente diferentes elo ponto de vista cie seus própriosmembros. Eles são o que são porque cada grupo tem sua pró-pria cultura. O grupo dominante os oprime negando igualda-de - ou equivalência - aos valores e símbolos de suas cultu-ras. Ele se recusa a reconhecer suas diferenças, ou as desva-lorizam. Os multiculturalistas transferem essas proposiçõespara um programa político, confirmando o direito de ser dife-rente e o valor ela diferença. Todo grupo cultural deve ter di-reito a um nível significativo de autonomia e ser ouvido nosassuntos cie interesse coletivo.

O multiculturalismo está distantemente relacionado comcertos discursos contra-iluministas sobre identidade étnica. Nãoadmira que sua inimiga hereditária, a visão iluminista ele umacivilização humana comum, apoiada por uma nação cie van-guarda, também persista nos Estados Unidos. Na verdade, essavisão floresce. Sua premissa é de que a nação só pode ser for-te e unida se houver consenso cultural. A crítica multiculturalis-ta aflige os americanos conservadores, pois a exaltação da di-ferença enfraquece os valores comuns e ameaça a coesão na-cional. Além elo mais, os conservadores concordam que a cul-tura é transmitida por intermédio da educação e da mídia, eeles se preocupam com o fato de que os multiculturalistas es-tejam entrincheirados em posições cie poderem muitas escolas,universidades, jornais e estações cie TV, onde são colocados deforma estratégica para fomentar a idéia ele diferença. Na mecli-

1296

cultura, diferença, identidade

da em que forem bem-Sucediclos, os multiculturalistas vão co-locar em risco a liderança americana nos interesses mundiais.Isso seria uma catástrofe, uma vez que os Estados Unidos assu-miram o fardo ela civilização universal (algumas vezes grossei-ramente descrito por seus adversários como o fardo do homembranco). Reafirmando o projeto neo-iluminista, Samuel Hun-tington diz que a América deve ficar unida se quiser unir as for-ças ela Civilização Ocidental na luta contra a barbárie."'

O protagonista na luta multicultural não é o trabalhadorou o cidadão, mas sim o ator cultural. As políticas são ditadaspela identidade cultural e tratam elo controle da cultura. A no-ção de identidade é fundamental para esse discurso, mas em-bora muitas vezes seja considerada óbvia, ela não é fácil deser identificada. Ao que parece, o termo identidade c um oxí-moro quando usado em relação a um indivíduo, pois comopode um indivíduo corresponder - ser idêntico - a ele mes-mo? Na psicologia, identidade pode referir-se ã manutençãode uma personalidade com o tempo: a pessoa é idêntica (maisou menos) ao que costumava ser. Mais comumente, entretan-to, a noção ele identidade está ligada à idéia de que o selftemcertas propriedades essenciais e algumas eventuais. Existe umeu verdadeiro, que talvez não corresponda ã pessoa que eupareço ser. Eu posso escolher, ou ser forçado a, disfarçar ele-mentos elo meu verdadeiro self, que permanecem ocultos aomundo. Talvez "eu não seja capaz de encontrar minha própriavoz ou de me reconhecer nas representações que me cercam.

Esse agrupamento moderno de idéias traz em seu bojouma carga moral que pode ter inspiração protestante. Segun-do a tradição protestante, existe uma voz interior, a voz elaconsciência, cjue elimina o ruído elo mundo e precisa ser ou-vida. Trata-se da forma pela qual Deus se comunica conos-co. A doutrina romântica afirma que essa voz interior repre-senta a verdadeira natureza ela pessoa. Portanto, temos aobrigação moral ele mergulhar fundo dentro de nós mesmospara descobrir quem realmente somos. De acordo com Char-les Taylor, essa noção cio verdadeiro self "surge junto com

10. HUNTINGTON, Samuel P. Tbe Clasb of Cwtlizalions and lheRemaking of World Orcier. Nova York: Sinion c Schuster, 1996.

297 i

Page 21: Kuper, Adam - Cap 6 e 7

capítulo 7

um ideal o ideal cie ser verdadeiro comigo mesmo e com omeu modo peculiar de ser... Caso contrário, minha vida nãotem sentido; eu nào consigo compreender o que o ser hu-mano representa para mim"."

Mas identidade nào é apenas um assunto pessoal. Elaprecisa ser vivida no- mundo, num diálogo com outros. Segun-do os construcionistas, é nesse diálogo que a identidade é for-mada. Mas nào é dessa maneira que ela é vivenciada. De umponto de vista subjetivo, a identidade é descoberta dentro ciaprópria pessoa, e implica identidade com outros. O eu inte-rior descobre seu lugar no mundo ao participar cia identidadecie uma coletividade (por exemplo, uma nação, uma minoriaétnica, uma classe social, um movimento político ou religio-so). Essa Identificação muitas vezes é expressada em termosmísticos exaltados. O verdadeiro eu (minha alma, diriam al-guns - embora, obviamente, nào os sociólogos) está unido àvicia espiritual de uma comunidade, ("orno disse George Sim-mel na virada do século 20, expressando-se na linguagem ciogrande idealismo: "A cultura só ocorre cjuando os conteúdosabsorvidos tia esfera suprapessoal parecem, como que poruma harmonia secreta, desenvolver na alma apenas o queexiste em seu interior como sua própria tendência instintiva ea prefiguraçào interna cie sua perfeição subjetiva.''12 Em termosmais prosaicos, a idéia é que "a identidade é concretizada pormeio da participação na cultura". "Os conceitos de construçãocie identidade e de cultura", observa Zygmunt Bauman, "nas-ceram juntos, e nào podia ter sido de outra forma".'i

11. TAYLOR, Charles. Miilticultumlism: Examining the Politics ofRecognition. Editado e introduzido por Amy Gutnian. Princeton:Princeton University Press, 1994. p. 28. Essa é uma versão amplia-da da palestra proferida por Taylor em 1992, "Multiculturalism and'the Politics of Recognition'", juntamente com comentários.12. Apuei RINGER, Fritz K. The Decline of lbi> German Mandarins:The German Academic Community, 1890-1933. Cambridge, Mass.:Harvard University Press, 1969. p. 107.13. BAUMAN, Zygmunt. Erom Pilgrim to Tourist - or a Shoit His-tory of Identity. In: HAI.L, Stuait ; GAY, Paul clu. (Eds.). Questionsof Cultural Identity. Londres: Sage, 1996. p. 19.

298

cultura, diferença, identidade

A identidade cultural anda de mãos dadas com a políti-ca cultural. Uma pessoa só pode ser livre na arena culturalapropriada, onde seus valores são respeitados. Toda nação,portanto, deve ser independente. Numa sociedade multicultu-ral as diferenças culturais devem ser respeitadas, e até mesmoestimuladas. A sobrevivência cultural representa o resultadodessa política. Tudo isso, obviamente, parte cie uma certa tra-dição européia liberal, mas inevitavelmente levanta um pro-blema para outra tradição política liberal predominante nosEstados Unidos, que se baseia no princípio de q.ue todos oscidadãos são iguais perante a lei. Charles Taylor tentou encon-trar uma base para conciliar essas duas tradições liberais, masessa é uma tarefa inglória. Isso ocorre nào somente porque apolítica cultural na verdade exige uma discriminação positiva,embora esse problema exista, mas também porque exige con-formidade. Uma vez estabelecida uma identidade cultural, apressão passa a ser viver de acordo com ela, mesmo que istosignifique sacrificar a própria individualidade.

K. Anthony Appiah contesta o argumento cie Taylor, ale-gando que ele nào leva em conta o custo cie definir identida-de em termos culturais. Pode ser que o indivíduo nào estejadisposto a aceitar um papel estereotipado, ou a seguir uma li-nha de partido. No entanto, ao se declarar homossexual ouapoiar a causa de outros negros americanos, a pessoa desco-bre que a sociedade espera que ela corresponda a expectati-vas rígidas sobre a sua própria maneira de se comportar. "Exi-gir respeito aos negros e homossexuais automaticamente im-plica em seguir algumas formas pré-estabeleciclas de ser afro-americano ou cie ser uma pessoa que tem atração pelo mes-mo sexo.. Haverá formas apropriadas de ser negro e homos-sexual, expectativas a serem atendidas, exigências a seremcumpridas. É nesse ponto que alguém que leva a autonomiaa sério vai perguntar se nós nào substituímos um tipo cie tira-nia por outro."14 Em suma, Appiah rejeita a política de reco-nhecimento exatamente por ela se chocar com o individualis-mo liberal, como aliás deveria.

14. APPIAIl, K. Anthony. Identity, Authenticity, Survival. In: TAY-LOR. Multiculturalism. p. 162-3.

299Í

Page 22: Kuper, Adam - Cap 6 e 7

capítulo 7

Pocler-se-ia alegar que esse dilema existe apenas nas so-ciedades ocidentais modernas que dão um grande valor ao in-dividualismo. Mas, no entanto, esse é um problema sério nes-sas sociedades. Os Estados Unidos, em particular, sempre va-lorizaram o direito cie auto-realização individual. Ao mesmotempo, para o imigrante ou membro de um grupo que perten-ce à minoria, as identidades coletivas são importantes. ErikErikson comentou em um ensaio autobiográfico que quandoele começou a usar os termos "identidade" c "crise de identi-dade", nas décadas cie 1930 e 1940, "eles pareciam natural-mente fundamentados na experiência cie emigração, imigra-.ção e ainericãntzaçãon."

Pesando esses dois valores, identidades coletivas contraidentidades pessoais, o sacrifício da individualidade em prolcia solidariedade cultural parece uma perspectiva nem umpouco atraente, até mesmo repugnante. Pode haver tambémuma razão estratégica para dar prioridade aos direitos indivi-duais ao lidar com o aspecto mais amplo cia sociedade. Naprática, os membros cie grupos da minoria tendem a ser maisafligidos por discriminação racial, religiosa ou legal cio quêpor uma negação mais sutil cie reconhecimento cultural. Emvez de reivindicar o direito cie ser diferente, parece mais sen-sato nesse caso insistir no direito a um tratamento igual e se-melhante. No que diz respeito aos Estados tinidos, MichaelWalzer no final opta pelo liberalismo culturalmente cego ciedireitos iguais "em parte, pelo menos, pois acho que os imi-grantes em sociedades como essa já fizeram a mesma opção...as comunidades que eles criaram aqui são diferentes cias queeles conheciam antes exatamente nesse sentido, de que elesestão adaptados, de que foram moldados significativamentepela idéia liberal de direitos individuais".10

Os debates sobre cultura e identidade nos Estados Uni-clos antigamente eram influenciados por preocupações acercacie imigração. Nas décadas de 1950 e 1960, esse debate gira-

15. ERIKSON, Erik H. "Identity Crisis" in Autobiographic Perspecti-ve. In: Lije Ilisíoiy and tbe Historícal Momenl. Nova York: Norton,1975. p. 43.16. WALZER, Michael. Comment. In: TAYLOR. Multiculturalism.p. 103.

(300

cultura, diferença, identidade

vá em torno de raça e não de imigração, particularmente so-bre o lugar dos negros americanos na sociedade. Foram le-vantadas questões incômodas a respeito das realidades cios di-reitos civis nos Estados Unidos e a disposição da maioria cieassimilar as minorias. Aventou-se a hipótese de que talvez osnegros americanos devessem decidir-se como uma nação se-parada. Mas as políticas culturais das décadas de 1980 e 1990estavam mais preocupadas com categorias de pessoas quesão, a julgar pelas aparências, muito diferentes cios gruposimigrantes, dos índios ou dos negros americanos: grupos de-finidos por gênero, por exemplo, por orientação sexual, defi-ciências ou convicções religiosas.

Tentou-se afirmar que todas essas minorias, velhas e no-vas, estão numa situação semelhante, embora ser negro nosEstados Unidos possa parecer bem diferente cie ser judeu, his-pânico ou lésbica. De qualquer modo, uma característica dis-tintiva dessas minorias autoclefiniclas é que apenas recente-mente, elas conseguiram ser reconhecidas, embora às vezesafiíme-se que categorias como "homossexuais", por exemplo,ou "muçulmanos negros", existiam antes que elas fossem re-conhecidas, até mesmo por seus integrantes. Uma segunda ca-racterística da nova política cultural é que a identidade pare-ce ser uma questão de opção, embora a crença subjacenteseja de que assim como a coletividade tem uma identidadeautêntica que vai aflorar com o tempo, o indivíduo tem umaidentidade necessária com uma determinada coletividade cul-tural, mesmo que ela ainda não tenha sido descoberta, talvezdepois de um período de negação. Portanto, embora a noção

•americana popular de identidade cultural tenha extrapoladode grupos étnicos para outros tipos de minorias, ela ainclapermanece duplamente essencialista: uma pessoa tem umaidentidade essencial, que deriva cio caráter essencial cia cole-tividade à qual ela pertence. A admissão num grupo só pocleser estabelecida após um processo demorado de auto-analise,mas não se pocle fugir cia própria identidade. Ela é fixada poralgo aincla mais essencial: a própria natureza.

Os antropólogos contemporâneos estão apreensivoscom o essencialismo implícito nessa teoria popular cia cultu-ra. Os estudiosos sofisticados que Terence Turner chama de

301 i

Page 23: Kuper, Adam - Cap 6 e 7

capítulo 7

multiculturalistas críticos (para distingui-los cios essencializa-clores ingênuos) evitam tirar conclusões cie que a identidadeé primordial, herdada e até mesmo transmitida biologicamen-te. Seu discurso sobre identidade é dirigido contra o determi-nismo biológico e todo o tipo de essencialismo. Eles são con-tra discriminações baseadas em raça, sexo e idade. Além dis-so, eles insistem que cultura e identidade são compostas, in-ventadas, fabricações discursivas instáveis. Toda cultura éfragmentada, contestada internamente e possui fronteiras po-rosas. A busca de identidade representa uma luta existencialdesesperada para criar um estilo cie vicia que pode ser susten-tado pelo menos por um breve momento.

E, no entanto, eles estão comprometidos com o valor dadiferença e não conseguem ficar sem algo como as idéias ciecultura e identidade. James Clifforcl, por exemplo, descreve asi mesmo como "alguém em busca de um conceito que pos-sa preservar as funções que diferenciam a cultura enquantoconcebe identidade coletiva como um processo híbrido,^amiú-cle descontínuo e inventivo".'" Roger Keesing queixa-se, entre-tanto, cie que, "na prática, os antropólogos pós-modernistasamericanos, com suas raízes na tradição construcionista inter-pretativa/cultural, muitas vezes invocam retoricamente umaalteridade radical",18 c partem cio pressuposto cie que identi-dades distintas estão enraizadas numa diferença cultural pre-existente. Como prova, ele cita passagens de Anthropology asCultural Critique cie Marcus e Fischer, em que os autores "fa-lam sobre 'as experiências mais íntimas da individualidade ...características de determinadas culturas' e cia 'masculiniclaclemarroquina' como apenas 'superficialmente semelhante aoconceito de masculinidade de outras culturas'. 'E [perguntameles] se as pessoas cie outras culturas agirem com base em di-ferentes concepções cio individual?"'

17. CLIFFORD. The Predicament of Culture. p. 10.18. KEESING, Roger M. Theories of Culture Revisited, In: BO-ROFSKY, Robeit. (F.d.). Assessing Cultural Anlbropologr. NovaYork: McGraw-Hill, 1994. p. 302. As citações embutidas na segun-da citação de Keesing foram extraídas de Antbropology as CulturalCritique, p. 62 e -ó.

302

cultura, diferença, identidade

Os antropólogos contemporâneos norte-americanos re-pudiam as idéias populares de que diferenças são naturais ede que identidade cultural deve fundamentar-se numa identi-dade primordial e biológica, mas uma retórica que colocagrande ênfase- em diferença V identidade não é apropriadapara contrapor essas idéias. Pelo contrário, a insistência deque os povos apresentam diferenças radicais serve para sus-tentá-las. Isso logo fica evidente após uma revisão dos argu-mentos feitos sobre um grande leque cie tópicos sensíveiscomo, por exemplo, os que afirmam que os tesouros culturaiselevem ser devolvidos ã terra natal, ou os que contestam aidéia de um catedrático branco ser diretor cie um programa cieestudos afro-americanos. Pois como saber se a identidade cul-tural cie uma pessoa é autêntica? Apenas partindo cio princí-pio de que a identidade é fixada pela .descendência.

.Nos Estados Unidos, esse tipo de lógica geralmente éaceita com naturalidade no discurso popular. Não surpreen-de, portanto, que cultura muitas vezes sirva como um eufe-mismo politicamente correto para raça. Walter Benn Mi-chaels demonstrou como esses conceitos são inseparáveisaté mesmo em discursos bastante sofisticados. Os escritoresamericanos que invocam identidade cultural e diferençasculturais não abandonam necessariamente a idéia de raça emfavor cia cultura. Em vez disso, tendem a pressupor que"apenas quando sabemos cie que raça somos podemos dizerqual é a nossa cultura".1'*

Não há nada de novo nisso, tampouco pocle ser facil-mente descartado como vulgarização cie uma idéia mais sutile mais aceitável. Embora Michaels se atenha especialmenteem fontes literárias, ele mostra que os antropólogos EclwardSapir e Melville Herskovits elaboraram um argumento essen-cialista nessa linha cie pensamento. Quando Sapir descreveuum índio americano como tendo "saído do abraço cáliclo deuma cultura para o ar frio de uma existência fragmentária", eleestava pressupondo que a pessoa nasce para uma cultura,mesmo que não a tenha. Michaels afirma que:

19. MICHAELS, Walter Benn. Ou r America: Nativism, Modernism,and Pluralism. Durham, N.C.: Duke University Press, 1995. p. 15.

303

Page 24: Kuper, Adam - Cap 6 e 7

capítulo 7

se a cultura cio índio fosse simplesmente idêntica ao seu com-portamento e não estivesse relacionada em nenhum aspectocom sua raça, ele jamais poderia sair do seu abraço cálido. Paraque uma cultura seja perdida, portanto, ela tem de ser separa -vel cio comportamento verdadeiro da pessoa e, para isso, elaeleve poder ancorar-se na raça. A crítica que Sapir faz de raçapor meio da cultura na realidade é a continuação cia raça atra-vés cia cultura.-"

O caso de Herskovits é bastante diferente. Ele começoucomo um boasiano tradicional, para quem cultura era algo ad-quirido, mutável, formado por empréstimos. Memória racialera um mito. Os costumes africanos ancestrais não persistiamna América cio Noite. A cultura afro-americana em pouco tem-po ficara claramente americana. Quaisquer diferenças que pu-dessem ser observadas no Harlem simplesmente relletiamtransferências da vida rural no Sul. Mas em TheMytb ofthe Ne-gro Pa st (1941), o argumento de Herskovits era bem diferen-te. Ele insistia que em certos aspectos os negros americanospossuíam uma cultura africana, mesmo que aparentemente ativessem perdido. "As coisas que o negro africano costumavafazer representam o passado do negro americano'", comentaMichaels, "apenas porque tanto o africano como o americanosão 'o Negro'".-1 Obviamente, os motivos de Herskovits po-diam ser tudo, menos racistas. No entanto, como observa Mi-chael, seu "culturalismo anti-racista" parece exigir um "com-promisso com a identidade racial".

"O conceito moderno de cultura não é... uma crítica ao ra-cismo", conclui Michael, "mas sim uma forma de racismo. E, naverdade, à medida que o ceticismo em relação à biologia daraça aumentou, ele se tornou - pelo menos entre os intelectuais- a forma predominante de racismo".- O mesmo argumento seaplica à identidade: "o que está errado com a identidade cultu-ral é que, sem recorrer à identidade racial que (em suas mani-

20. kl., ibicl., p. 121-2. A citação de Sapir foi extraída de "Culture,Genuine and Spuriòus". 1924. p. 318.21. MICHAELS. Our America, p. 127.22. kl., ibicl., p. 129.

304

cultura, diferença, identidade

festaçôes atuais) repudia, ela não fax sentido".-' Os anti-racistasexaltam a identidade dos americanos de origem mexicana e de-fendem seus direitos, mas esses direitos só são concedidos parauma pessoa qtie nasceu para ser um chicano. Embora Michaelsnão faça essa afirmação, um argumento semelhante poderia.serfeito com referência a alguns discursos feministas. Apesar de in-sistir que "gênero" (construído culturalmente) não deriva dire-tamente da biologia cio "sexo", os apelos à solidariedade do gê-nero originam-se, na prática, cia pressuposição cie que a identi-dade depende da biologia. Talvez isso explique por que algunsativistas homossexuais estão prontos a acreditar que deve ha-ver um gene para honfbssexualidade.

Uma alternativa a esse resvalo para o essencialismo con-siste em transformar a identidade cultural num constructo cul-tural. A cultura, então, confere identidade a uma pessoa. Masisso significa transformar a cultura (ou discurso) no único po-der sobre a terra, e um poder aparentemente sem qualquer jus-tificativa independente. Ele apenas existe, ou melhor, apenasse forma. Stuart Hall ressalta, além disso, que uma vez queesse passo foi dado, o analista fica sem meios de explicar porque determinada pessoa acaba tendo uma identidade específi-ca.-'1 As dificuldades são multiplicadas quando se alega quetanto cultura quanto identidade são livremente inventadas, quecada pessoa cria sua própria identidade ao optar por ficlelicla-cles, convicções e valores. Identidade - "o processo híbrido,amiúcle inventivo e descontínuo" de James Clifford - então éuma questão de estilo cie vida, escolhida por capricho, ou,numa interpretação mais pessimista, ditada pela moda.

Esse constitui um movimento popular nos textos recen-tes dos estudos culturais. Davicl Chaney, por exemplo, insis-te que pensemos sobre estilos cie vida como "estruturas inter-pretativas" que "facilitam a adaptação criativa", "uma exem-plificação específica de uma estética cie representação".-" Mas

23. kl., ibid., p. M2.24.,HALL, Stuart. Who Neecls Identity? In: Icl. : GAY, Paul clu. (Eds.).Questions of Cultural hlentity. Londres: Sage, 1996. p. 1-17.25. CHANEY, Davicl. ne Cultural Turn. Itondres: Routleclge, 1994.p. 208.

305!

Page 25: Kuper, Adam - Cap 6 e 7

capítulo 7

por mais que se ressaltem os atos criativos e imaginativos, aanálise logo tende a introduzir novamente noções conven-cionais cie cultura e comunidade. (Você pode decidir ser umvegetariano radical, mas tem de fazer compras no mesmo su-permercado que todo mundo faz, seguir as receitas do livrode culinária vegetariana e se justificar para a sua mãe.) C)próprio Chaney admite prontamente que "cultura representasempre a ponte entre os indivíduos e suas identidades cole-tivas". Um estilo de vida, portanto, é apenas uma forma devestir (ou alimentar) uma identidade. Chaney faz a alegaçãobastante vaga de que os estilos de vicia "fornecem uma me-diação apropriadamente ambígua, para a sociedade pós-mo-derna, entre individualidade e comunidade", mas é difícilperceber o que essa tortuosa fórmula acrescenta à idéia con-vencional de identidade.

Outro aspecto problemático do multiculturalismo consis-te no culto cia diferença, que às vezes parece ser o único va-lor incontestaclo. Para James Clifforcl, cultura representa "a ca-pacidade permanente que os grupos têm cie fazer uma verda-deira diferença".-" É por essa razão que devemos preservar "asfunções diferenciais e relativistas do conceito" e evitar "a pres-suposição cie essências cosmopolitas e denominadores co-muns humanos".

Existem muitas objeçòes a serem feitas a esse ponto cievista. Lévi-Strauss, por exemplo, afirmava que a maioria ciaspessoas insiste em sua singularidade e em sua diferença dosoutros, e tencle a considerar os costumes alheios como mons-truosos e escandalosos e a achar que aqueles que os têm nãosão totalmente humanos. Logo após a descoberta cia América,os espanhóis enviaram delegações para averiguar se os nati-vos tinham alma ou não, enquanto os,próprios nativos esta-vam bastante ocupados afogando prisioneiros brancos paraverificar se seus corpos estavam sujeitos à putrefação. Essa féna diferença e na superioridade pocle ser uma ilusão útil, masnão deixa de ser uma ilusão. Um bárbaro "é primeiramente ohomem que acredita em barbárie".-" Lévi-Strauss fez um ape-

26. CLIF1-'ORD. 'lhe Precicament ofCiilture. p. 27i-5.27. LÉVI-STRAUSS, Claude. Race and Culture. 1971 '(reimpresso emsua coletânea de ensaios, The Viewfrom AJar. Oxford: Blackwell,1985. p. 330). • .

i 306

cultura, diferença, identidade

Io para que os antropólogos demonstrassem que as diferençasentre os povos' não devem ser medidas numa única escala,pois os valores variam cie cultura para cultura, e ao mesmotempo afirmassem que as diferenças cios seres humanos sãoerguidas sobre uma base comum. A medida da uniformidadehumana é a nossa capacidade comum de aprender, fazer em-préstimos e assimilar. As grandes conquistas históricas foramfeitas em diferentes partes do mundo. Toda cultura é multicul-tural: "todas as culturas são resultado de uma miscelânea, deempréstimos e misturas que ocorreram, embora em ritmos di-ferentes, desde os primórdios da humanidade",-" De certa for-ma, é o que temos em comum que produz as diferenças en-tre nós, o que, por sua vez, depende dos nossos inter-relacio-namentos. "A diversidade é mais uma função das relações queunem os grupos do que do seu isolamento."

Outra objeção ao culto cia diferença, objeção essa quedeve ser mais incômoda para seus defensores, é que não é as-sim que as coisas parecem, em geral, para as pessoas que têmde vencer entre estrangeiros. A despeito cio que é considera-do como realidade inevitável da ajteridade e cia força do de-terminismo cultural, o fato é que imigrantes, refugiados e co-merciantes em geral parecem se sair muito bem, quando têmoportunidade, em seu novo lar - sem se esquecerem de suasorigens, mas sempre adaptáveis. Eles sabem o que estão fa-zendo, eles ensinam suas,táticas aos inexperientes e escrevempara casa a fim de transmitir suas experiências. (Seus sucessosconcretos devem persuadir os etnógrafos perplexos com o di-lema do determinismo cultural cie que eles podem aprenderoutro moclo de vida assim como muitos imigrantes, e escreversobre isso tão bem quanto eles.) Como Gerei Baumann de-monstrou tão bem, os imigrantes (como os etnógrafos) tam-bém podem aprender a manipular os discursos predominan-tes sobre cultura com bastante desenvoltura, se lhes convier.29

O sucesso depende cie aprender um idioma, afirmar interes-ses comuns e compreender similaridades e, ao mesmo tempo,

28. LÉVI-STRAUSS. #rt«? and llktory.29. BAUMANN, G. Contestlng Ctdture. Cambriclge: Cambridge Uni-versity Press, 1996.

307!

Page 26: Kuper, Adam - Cap 6 e 7

capítulo 7

cie aprender a reconhecer onde residem as diferenças signifi-cativas e o que elas significam, ainda que apenas para mini-mizá-las ou lidar com elas.

Em suma, ao contrário do que a teoria profetiza, a expe-riência de passar de um contexto cultural para outro não real-ça necessariamente a sensação de diferença. Revendo a teoriamoderna sobre cultura de uma forma em geral receptiva, Ro-ger Kessing foi levado a insistir que suas próprias experiên-cias no campo não lhe imprimiram a natureza radical cie di-versidade. "I lá pouco tempo passei algumas semanas imersonum bate-papo com um jovem Kwaio brilhante (Ilhas Salo-mão), que ainda pratica sua religião ancestral e vive em ummundo onde magia, ritual e conversas com os mortos fazemparte da rotina diária", escreveu ele.30

A alteridade cultural cie Macnaa'adi talvez seja tão radicalquanto qualquer outra cio mundo no início cia década cie 1990(embora ele também viva nas colagens cia nossa época, andan-do de ônibus e conferindo as horas em seu relógio quandovem à cidade). Ele acredita piamente que se sua sombra fosseprojetada no local onclc o corpo cie uma vitima de lepra foi ati-rado, ele morreria de lepra. Ele tem certeza cie que toda noitesua sombra encontra as sombras de seus ancestrais, que o avi-sam cie acontecimentos iminentes. Ele recita palavras mágicasvárias vezes por clia, e tem convicção cie que elas vão funcio-nar. Obviamente, não estou dizendo que o munclo cie expe-riência cie Maenaa'adi e o meu constituem variantes menoresum do outro: é muito mais cio que isso. No entanto, não vejorazão, em todos os textos, para inferir que a forma pragmáticacom que ele conduz sua vicia é qualitativamente diferente daforma como eu conduzo a minha, ou que suas percepções cul-

- totalmente construídas de individuação e iniciativa (ou indivi-dualidade, ou causalidade ou o que quer que seja) são extre-mamente diferentes das minhas.

Esse foi o último depoimento de um etnógrafo extraor-dinário que dedicou tocla uma vida ao estudo cio Kwaio. Issonão eleve ser uma surpresa. Os bons etnógrafos, assim comoos imigrantes de sucesso, amiúcle ficam espantados com as se-

30, KEESING, Roger. Theories of Culture Revisited. p. 304.

308

cultura, diferença, identidade

mclhanças entre o ambiente mais exótico onde estão realizan-do seu trabalho cie campo e suas próprias cidades natais. Acerra altura, provavelmente eles param cie se preocupar como fato de que a compreensão da cultura está fora do seu al-cance e começam a pensar se por algum acaso infeliz eles fo-ram parar em uma sociedade difícil de descrever, uma vez que'ela é tão clesconcertantemente familiar e prosaica.

As teorias modernas sobre cultura reciclam as anteriorese se prestam a propósitos políticos semelhantes. Cada umadelas também confronta as velhas objeçòes que são apresen-tadas por suas rivais. Formuladas em termos ambíguos e fra-cos, todas as teorias dizem algo que agora está bem evidente,dificilmente extraordinário, mesmo que a luz difusa que elasemitem algumas vezes possa ajudar. Elas só detêm o poder dechocar, até mesmo de interessar, quando são colocadas emtermos bastante fortes - mas então suas reivindicações pare-cem passar da conta, não corresponderem ao que sabemospor meio cias nossas próprias experiências. Além cio mais, sus-peitamos que não façam bem à saúde.

Essas teorias também possuem pontos fracos funda-mentais em comum. Noções complexas como cultura ou dis-curso inibem uma análise das relações entre as variáveis queagrupam. Até mesmo nas formulações modernas sofistica-das, a cultura - ou discurso - tende a ser representada comoum sistema único, apesar de matizado com argumentos e in-consistências. Entretanto, para compreender cultura precisa-mos primeiro desconstruí-la. Convicções,religiosas, rituais,conhecimentos, valores morais, arte e gêneros retóricos, en-tre outros, devem ser separados e não agrupados num sim-ples pacote rotulado como cultura, ou consciência coletiva,ou superestrutura, ou discurso. Separando esses elementos,a pessoa é levada a explorar as configurações em transfor-mação em que a língua, os conhecimentos, as técnicas, asideologias políticas, os rituais, as mercadorias e assim pordiante estão relacionadas entre si.

Pocle-se contestar, dizendo que a abstração de um siste-ma de processos culturais constitui uma exigência puramentemetodológica. A esfera cultural pode ser tratada apropriada-mente como se fosse um todo autônomo, ainda que apenas

3091

Page 27: Kuper, Adam - Cap 6 e 7

capítulo 7

para fins de análise. Mas os problemas retornam, ainda maiscontundentes, quando essa estratégia é transformada (geral-mente de forma implícita) em pressuposição cie que a culturapode ser explicada em seus próprios termos, um lance quedeve invalidar outras análises. Tentei mostrar que os princi-pais estudos de casos etnográficos de Geertz, Schneider e Sah-lins podem ser tratados como experimentos importantíssimosno determinismo cultural. Esses antropólogos fracassam quan-do excedem a si mesmos e partem do princípio cie que a cul-tura governa, e de que outros fatores poclem ser excluídos doestudo de processos culturais e do comportamento social.

Uma estratégia bem estabelecida consiste em tratar a cul-tura cie uma forma preliminar como se ela fosse um sistemaúnico (um subsistema, em termos parsonianos). Ela então éencaixada junto com uma análise de processos sociais ou bio-lógicos. Deixando de lado as imagens problemáticas de siste-mas e subsistemas, isso ainda significa tratar cultura como umtodo, que está relacionada como um toclo a algo mais. Entre-tanto, se os elementos de uma cultura forem desagregados,em geral não é difícil demonstrar que as partes estão separa-damente ligadas a arranjos administrativos específicos, pres-sões econômicas, restrições biológicas e assim por diante."Portanto, a melhor forma cie ver uma 'cultura'", conclui EricWolf, "é como uma série de processos que constróem, recons-troem e desmantelam materiais culturais, em resposta a deter-minantes identificáveis"."

Para Roy D'Andracle, uma característica fundamental damoderna antropologia cognitiva foi precisamente

a fragmentação cia cultura em partes... unidades cognitiva men-te formadas - características, protótipos, esquemas, proposi-ções, teorias, etc. Isso torna possível uma teoria de cultura par-ticulada, ou seja, uma teoria sobre as "peças" da cultura, sobresua composição e .suas relações com outras coisas."

31. WOLF, Eric. Europe and tbe People without History. Berkeley:University of Califórnia Press, 1982. p. 387.32. D'ANDRAOE, Roy. ne Development ofCognitive Anthmpologv.Cambriclge: "Cambriclge University Press, 1995. p. 247.

310

cultura, diferença, identidade

A concepção cie D'Anclrade é psicológica - está "namente" - mas pode-se chegar a uma conclusão semelhante sea cultura for concebida como um discurso público, compará-vel à linguagem. Earia sentido ainda quebrá-la em partes ever se os elementos na mistura complexa de cultura podemter suas próprias "relações específicas com outras coisas"(embora não fixas). Talvez o parentesco e a divisão de traba-lho por sexo tenham algo a ver, afinal cie contas, com a bio-logia cia reprodução; ou, como insistia Foucault, o conheci-mento eleva ser compreendido em relação ao poder; ou,como escreve Bourdieu, a arte deva ser analisada com refe-rência aos recursos financeiros e ao prestígio que elas em-prestam ao connoissenr; e a identidade cultural possa sercompreendida apenas quando ela é colocada no contexto deum determinado sistema eleitoral.

Em resumo, separar uma esfera cultural e tratá-la emseus próprios termos não constitui uma boa estratégia. Par-sons tentou fazer uma síntese entre teoria cultural, teoria so-cial e psicologia. Ele fracassou espetacularmente, mas se nãosepararmos os vários processos que estamos agrupando indis-criminadamente sob o título de cultura e olharmos além docampo cia cultura para outros processos, não iremos muitolonge na nossa compreensão de cultura. Pela mesma razão, aidentidade cultural jamais pocle fornecer uma orientação ade-quada para a vicia. Todos nós temos identidades múltiplas, emesmo que eu admita ter uma identidade cultural primária,pode ser que eu não queira me ajustar a ela. Além disso, nãoseria muito prático. Eu opero no mercado, vivo por meio domeu corpo, luto com outros. Se eu me considerar apenas umser cultural, deixo muito pouca margem para manobra oupara questionar o mundo em que me encontro. Finalmente,existe uma objeção moral à teoria cia cultura. Ela tende a des-viar a atenção cio cjue temos em comum em vez de nos esti-mular a nos comunicarmos através de fronteiras nacionais, ét-nicas e religiosas, e a nos aventurarmos além delas.

311