111
1 LUCY MIRANDA DO NASCIMENTO LA ESCRITURA O LA VIDA: AS CICATRIZES INDELÉVEIS DOS CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT Instituto de Linguagens – IL Cuiabá – MT 2011

LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

1

LUCY MIRANDA DO NASCIMENTO

LA ESCRITURA O LA VIDA: AS CICATRIZES

INDELÉVEIS DOS CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO

Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT Instituto de Linguagens – IL

Cuiabá – MT 2011

Page 2: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

2

LUCY MIRANDA DO NASCIMENTO

LA ESCRITURA O LA VIDA: AS CICATRIZES

INDELÉVEIS DOS CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO

Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Estudos de Linguagem do Instituto de Linguagens da Universidade Federal de Mato Grosso, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Estudos de Linguagem. Área de concentração: Estudos Literários Orientadora: Profª Drª Rhina Landos Martínez André

Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT Instituto de Linguagens – IL

Cuiabá – MT 2011

Page 3: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

3

Dados Internacionais de Catalogação na Fonte

Catalogação:Maurício Silva de Oliveira – B ibliotecário CRB/1-1860

N244e Nascimento, Lucy Miranda do.

La escritura o la vida: as cicatrizes indeléveis dos campos de concentração / Lucy Miranda do Nascimento, 2011.

xii, 101f. ; 30 cm (inclui figuras) Orientadora: Rhina Landos Martínez André. Dissertação (mestrado). Universidade Federal de Mato Grosso. Instituto de Linguagens. Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem, 2011.

Bibliografia: f. 93-101

1. La escritura o la vida. 2. Jorge Semprún. 3. Corpo dessacralizado. 4. Literatura de testemunho. I. Título.

CDU 82-94

Page 4: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

4

Page 5: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

5

A Deus, meu refúgio e minha fortaleza.

À minha mãe, Atilia, porque seu amor incondicional me ampara e me conforta.

Ao meu pai, João, porque seu exemplo de honestidade e seu amor protetor estarão para sempre em minha memória.

Ao Alex, porque “tudo como você fica mais bonito, bem mais colorido”.

Page 6: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

6

AGRADECIMENTOS

À professora Rhina, que desde a graduação me incentivou e me deu

forças para continuar os meus estudos.

À FAPEMAT, pela bolsa ofertada.

À Flaviane e à Paloma, amigas que durante o mestrado, e sempre,

foram motivações para eu seguir em frente.

À Rosane e à Naira, por terem “segurado as pontas” quando decidi

mudar o curso da minha vida.

À Gislei, pela amizade sincera e pela disponibilidade em me ouvir.

Aos professores do Mestrado que, com suas disciplinas e discussões,

esclareceram muitas dúvidas.

E ao Semprún, por fazer parte do meu amadurecimento.

Page 7: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

7

Eu presto atenção no que eles dizem, mas eles não dizem nada Toda forma de poder é uma forma de morrer por nada

Toda forma de conduta se transforma numa luta armada (uma cruzada) Se tudo passa, talvez você passe por aqui

E me faça esquecer tudo que eu vi O fascismo é fascinante, deixa gente ignorante fascinada É tão fácil ir adiante, esquecer que a coisa toda tá errada

A história se repete, mas a força deixa a história mal contada (inacabada) Se tudo passa, talvez você passe por aqui

E me faça esquecer tudo que eu vi (...) Humberto Gessinger

A experiência que vivemos é indelével. Ela nos marcou para o resto dos nossos dias. Guardamos as suas cicatrizes, nem todas aparentes. Nem são,

nem salvos.

Page 8: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

8

Edmont Michelet RESUMO

MIRANDA-NASCIMENTO, Lucy. La escritura o la vida: As cicatrizes indeléveis

dos campos de concentração.

Este trabalho indaga o modo como a narrativa testemunhal, La escritura

o la vida (1995), do escritor Jorge Semprún, agencia a dessacralização do

corpo nos campos de concentração nazistas. Para tanto, dialoga com as

contribuições teóricas de Merleau-Ponty (1971), Foucault (2009), Agamben

(2004), Bauman (1999), Arendt (2004), dentre outros, que problematizam

acerca do papel da corporeidade na era moderna, bem como sua relevância

durante o regime concentracionário nazista. Investiga-se como a escritura

sempruniana desvela as estratégias e os mecanismos utilizados pelos nazistas

para torturar o corpo e causar-lhe dores indizíveis. Com isso, pensa-se nas

cicatrizes que ficam no corpo do sobrevivente e o modo como elas são

representadas literariamente. Propõe-se que o testemunho engendra tanto em

sua forma como em seu conteúdo as experiências do sujeito atravessado pela

catástrofe, pondo em pauta o modo pelo qual Semprún perfila esteticamente

essas questões. Reflete-se acerca da rememoração do passado traumático e a

sua configuração na escritura, pensando nos novos saberes possivelmente

agregados ao sobrevivente mediante esse processo.

Palavras-chave : La escritura o la vida, Jorge Semprún, Corpo dessacralizado,

Fragmentação, Literatura de Testemunho.

Page 9: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

9

ABSTRACT

MIRANDA-NASCIMENTO, Lucy. La escritura o la vida: The indelible scars of

concentration camps.

This paper investigates how the narrative witness, La escritura o la vida

(1995), by writer Jorge Semprún, shows the demystification of the body in Nazi

concentration camps. To this end, dialogues with the theoretical contributions of

Merleau-Ponty (1971), Foucault, Agamben (2009) (2004), Bauman (1999),

Arendt (2004), among others, that deals about the role of under construction in

the modern age, as well as its relevance during the Nazi regime. Investigates

how scripture of Semprún reveals the strategies and the mechanisms used by

the Nazis for torturing the body and cause unspeakable pain. With this thought

in scars that remain in the body of the survivor and how they are represented l

in literary form. It is proposed that the testimony shows both on their way in your

content the experiences of the subject that experienced the disaster, discussing

how aesthetically Semprún presents these questions. Reflected on the

recollection of past traumatic and your configuration in Scripture, thinking in new

knowledge possibly survivor aggregates by this process.

Keywords: La escritura o la vida, Jorge Semprún, Desecrated body,

Fragmentation, Witness literature.

Page 10: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

10

SUMÁRIO

Dedicatória .................................................................................................. iv Agradecimentos .......................................................................................... v Resumo ....................................................................................................... vi Abstract ....................................................................................................... vii Introdução ................................................................................................... 01 1 Corpo moderno: o entre-lugar do poder e do prazer ............................. 06 1.1 O corpo para e no nazismo ................................................................... 18 2 Jorge Semprún: Fragmentação do corpo. Escritura fragmentada ........ 31 2.1 Despersonalização, tortura e dor: A dessacralização do corpo e os reflexos da barbárie ....................................................................................

36

2.2 Imagens metafóricas: Intertextos, elipses, anacronias. A representação fragmentada da catástrofe em La escritura o la vida ..........

54

2.3 ¿La escritura o la vida? ¿La escritura o la muerte?: Do retorno à escritura mortífera ao esclarecimento libertador .........................................

78

Considerações finais ................................................................................... 87 Referências Bibliográficas ........................................................................... 93

Page 11: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

1

Introdução

O nosso primeiro encontro com a obra La escritura o la vida (1995) de Jorge

Semprún, ocorreu alguns meses antes de iniciarmos as disciplinas do

mestrado; no decorrer da leitura vários aspectos dessa emblemática narrativa

chamaram-nos a atenção, mas nada foi mais perturbador do que a descrição

feita pelo escritor das violências que perpassaram tanto o seu corpo como o de

outros prisioneiros enquanto encontravam-se presos em um campo de

concentração nazista. O modo pelo qual Semprún trazia à baila a fragmentação

corporal, bem como sua aniquilação paulatina e os inúmeros mecanismos

usados pelos nazistas para exterminar e desmoralizar os deportados, intrigou-

nos ao ponto de propormos uma reflexão acerca da representação literária

desse corpo violentado e torturado exposto na narrativa de Semprún.

Cabe ressaltar, que Jorge Semprún, devido à sua militância anti-nazista,

aos dezenove anos foi capturado e encarcerado no campo de concentração

nazista de Buchenwald, ali ficou preso quase dois anos e pode constatar as

mais cruéis técnicas nazistas para despersonalizar e exterminar os corpos dos

prisioneiros. Após a libertação o escritor evitou dar o seu testemunho, pois para

ele, rememorar esse período traumático de sua vida era o mesmo que reviver

os horrores novamente. Entretanto, após quase cinqüenta anos de silêncio, ele

publicou o seu primeiro testemunho autobiográfico, o qual é perfilado na obra

em questão.

Depois de delimitarmos nossa proposta de estudo, buscamos a fortuna

crítica a respeito de Semprún e do que queríamos inquirir em sua narrativa.

Percebemos a existência de poucos estudos publicados sobre ele no Brasil,

principalmente, na região centro-oeste, e que a temática acerca do corpo

dessacralizado em suas obras não tinha sido ainda problematizada. Notamos

mediante as leituras críticas de Valéria de Marco (2004), Rhina Landos

Martínez André (2005) e Márcio Seligmann-Silva (2005), que o nome do nosso

escritor inseria-se nas pesquisas acerca da Literatura de Testemunho, gênero

literário que abarca os testemunhos de sobreviventes de regimes totalitários,

ditaduras, ou seja, de sistemas de dominação vinculados ao poder. Assim,

Page 12: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

2

essa literatura se torna um instrumento de denúncia do oprimido, para que ele

possa dar o grito que, em um dado momento, foi sufocado pelo opressor.

Segundo Valeria de Marco, em A Literatura de Testemunho e a violência

de Estado (2004), a literatura de testemunho é delineada por duas linhas

teóricas que procuram sistematizar o conhecimento dessa produção; sendo,

uma proveniente dos estudos dos testemunhos dos sobreviventes do

Holocausto, a Shoah, e a outra voltada às obras testemunhais latino-

americanas.

Dentro da corrente de testemunho latino-americano, Valeria De Marco

explana que há duas acepções distintas de testemunho que a concerne, a

primeira é oriunda do júri do Prêmio Casa das Américas, de 1969, que se

debruça sobre textos de cunho literário, documental ou jornalístico e retrata a

violência das ditaduras latino-americanas do século XX; a segunda emerge na

década de oitenta com o testemunho de Rigoberta Menchú1, inserindo-se no

espaço acadêmico norte-americano e de estudos culturais. Seus

pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley,

ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho ocorreu

em 1966 com a obra Biografía de um cimarrón, de Miguel Barnet.

Confluente, Márcia Romero Marçal, em sua tese Jorge Semprún: Forma

precária e Literatura de Testemunho (2008), explica que o testemunho latino-

americano

tem como elemento definidor de sua forma a existência de um narrador mediador, normalmente intelectual letrado, que recolhe o testemunho da “voz” do outro (MARÇAL, 2008, p.6) [aspas da autora].

A voz desse outro, é a voz do subalterno e/ou marginalizado que através

d’outro narrador, tece o seu testemunho que vai de encontro à História “oficial”.

Para Seligmann–Silva (2005), nesse caso, se engendra o contrário do

testemunho superstes – o qual ocorre na narrativa sempruniana-, ocorrendo o

testis, que é o testemunho mediado por outra pessoa.

Mesmo com mediações, cumpre seu papel de testemunho no sentido de ser

um contra discurso, distinto do oficial, e parte de uma minoria, narrando

1 A indígena guatemalteca, Rigoberta Menchú, denuncia em seu testemunho as opressões que o povo da sua etnia, a Maya-quiché, sofreu durante anos, por parte do governo de seu país. Por não dominar a língua espanhola, seu testemunho foi redigido por Elizabeth Burgos.

Page 13: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

3

aspectos que são universais e atemporais, como a violência e a deterioração

humana. Consonante, Rhina Landos Martínez André (2005), ao se dedicar aos

estudos da obra Miguel Mármol, do escritor salvadorenho Roque Dalton,

constata que:

Miguel Mármol... me llevó a descubrir el inmenso corpus de obras similares que como lágrimas se riegan por toda América Latina. Compruebo que la violencia es la marca continental y que estas lágrimas la literatura las absorbe y las cristaliza en pequeñas piedras-diamante para guardarlas como testimonio del dolor y la humillación: son las metáforas de la lucha por la libertad (ANDRÉ, 2005, p.16).

No que tangencia à linha de estudo da Shoah, Valeria De Marco (2004) diz

que há duas tendências contraditórias que a compreende: uma nega a

aceitação da legitimidade dos testemunhos dos sobreviventes, por crer que o

que foi vivenciado no Holocausto é indizível, irrepresentável, impossível de ser

assimilado esteticamente; a outra, compreende a possibilidade da

representação estética do evento. Semprún afirma que somente com a

literatura encontraria os artifícios artísticos para narrar o horror:

Sólo alcanzarán esta sustancia, esta densidad transparente, aquellos que sepan convertir su testimonio en un objeto artístico, en un espacio de creación. O de recreación [...] (SEMPRÚN, 1995, p.25).

Dos que defendem que a catástrofe é inenarrável, Irving Howe (1999)

aponta que a proporção traumática desse evento impossibilita que o

sobrevivente narre de forma coesa e racional e encontre parâmetros para

traçar comparações. Indo ao encontro dessas questões, temos a célebre frase

de Theodor Adorno, no ensaio Crítica cultural e sociedade (1998), que afirma

que:

A crítica cultural encontra-se diante do último estágio da dialética entre cultura e barbárie: escrever um poema após Auschwitz é um ato bárbaro, e isso corrói até mesmo o conhecimento de por que se tornou impossível escrever poemas (apud DE MARCO, 2004, p.53).

Page 14: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

4

Inversamente, há outra tendência que defende a representação da

catástrofe que advém da necessidade dos sobreviventes de falar sobre o

ocorrido, apesar da vontade de esquecer e de não encontrarem ouvintes

interessados no horror. Contudo, era essencial para os ex-prisioneiros dizer,

narrar com minúcia, tanto para compartilhar suas dores e aflições, quanto para

representar as vozes dos seus companheiros que sucumbiram nos campos. A

escrita foi um meio de materialização dessa vontade de contar, que canalizou a

culpa que muitos sobreviventes sentiam por terem sobrevivido e foi também

uma maneira de expurgar seus traumas.

A materialidade mediante a escritura foi uma maneira de colaborar para que

o Holocausto não se resguardasse no olvido e nem fosse escamoteado por

discursos históricos oficiais, que na maioria das vezes, como é explicado por

Zygmunt Bauman (1999), manifesta as “múltiplas tentativas de exorcizar ou

marginalizar o Holocausto como um episódio histórico único” (1999, p.27); é

único no sentido da sua abrangência mundial, porém, as questões racistas e de

dominação ultrapassam os limites territoriais. Eis a importância da literatura e

da escrita, que são rastros deixados por outrem, que vão além da sua

existência e do seu tempo, segundo diz Jeanne Marie Gagnebin no ensaio O

rastro e a cicatriz: metáforas da memória (2006):

Quando alguém escreve um livro, ainda nutre a esperança de que deixa assim uma marca imortal, que inscreve um rastro duradouro no turbilhão das gerações sucessivas, como se seu texto fosse um derradeiro abrigo contra o esquecimento e o silêncio, contra a indiferença da morte (GAGNEBIN, 2006, p.112).

A partir desse legado interpretativo verificamos o modo pelo qual Jorge

Semprún desvela a dessacralização do corpo, se o faz mediante recursos

estéticos e quais são utilizados. Para tanto, é necessário entendermos a priori

a relevância do corpo no tempo moderno, como suporte teórico para embasar

tais ideias, utilizamo-nos das contribuições filosóficas de Maurice Merleau-

Ponty (1971), Michel Foucault (2009), Jean-Jacques Courtine (2008), Miguel

Almir L. de Araújo (1998).

Posteriormente, indagamos qual é o papel do corpo para o Estado,

pensando sobre a relação corpo e poder e os meios utilizados para garantir a

Page 15: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

5

dominação, para tanto, contamos com os estudos de Michel Foucault (2009),

Michele Perrot (2010) e Vicente Deocleciano Moreira (1998). Depois refletimos

sobre a representação do corpo para o nazismo, indagando qual era o seu

papel nesse regime totalitário e quais eram as concepções e práticas nazistas

que o permeavam. São os nomes de Hannah Arendt (2004), Zygmunt Bauman

(1999), Giorgio Agamben (2004), Primo Levi (1988), que auxilia-nos nesse

processo.

No segundo capítulo, refletimos acerca da escritura sempruniana, quanto à

sua forma e conteúdo, a fim de pensar como é encenada a catástrofe e quais

os artifícios que o escritor usa para dar o seu testemunho, averiguando

também as cicatrizes que ficam no corpo do sobrevivente e qual é o reflexo

delas na feitura artística. Nesse sentido, Alfredo Bosi (2004), Mario Fleig

(2004), Márcio Selligmann-Silva (2000), Artur Nestrovski (2000), embasa-nos

para analisarmos essas questões. De igual maneira, buscando compreender os

recursos estéticos existentes na narrativa, nos apoiamos nos estudos de Claüs

Cluver (2006), Samira Chalhub (1998), Roland Barthes (1971), Maurice

Blanchot (1983). Para em um último momento, tendo em vista a barbárie dos

campos nazi, questionarmos se o processo de violência corporal ofereceu ao

ex-prisioneiro novos saberes sobre sua existência.

Page 16: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

6

1. Corpo moderno: o entre-lugar do poder e do praze r

O meu corpo sabe mais que me sei Carlos Drummond de Andrade

Qualquer abordagem acerca do corpo humano mobiliza diversas áreas

do saber científico devido à própria heterogeneidade do objeto que é um ponto

fronteiriço entre a natureza e a cultura, pertencendo, simultaneamente, aos

mundos natural e social, individual e coletivo. A sociedade modela e regula as

necessidades corporais, tais como, os gestos, a postura, a aparência, os

desejos e a linguagem, a fim de enquadrá-las num projeto de civilidade e de

controle.

Mudanças históricas e sociais fazem com que os investimentos sobre o

corpo também mudem conforme a dinâmica cultural, sempre visando o

entendimento e o controle da corporeidade, pois, para Michel Foucault2 (2009)

o corpo é concebido como alvo do poder, objeto modelado e corrigido por ele,

no qual a sujeição física também reflete uma consciência subjugada, com

constantes cuidados e pedagogias que o perpassam, ora para civilizá-lo, ora

para ensiná-lo a ser útil e higiênico. Carmen Lúcia Soares (2004), em

consonância com a concepção foucaultiana, aborda em seu artigo Corpo,

conhecimento e educação: notas esparsas, que “governar o corpo é condição

para governar a sociedade. O controle do corpo é indissociável da esfera

política” (2004, p.112).

Deborah Thomé Sayão (2003) no texto Corpo, poder e dominação: um

diálogo com Michelle Perrot e Pierre Bourdieu, foca o modo pelo qual, esses

dois autores percebem as relações de poder, tanto no âmbito dos Estudos de

Gênero, que abarcam as manifestações feministas contra a sociedade

patriarcal, como nos estudos que referem-se à importância sócio-cultural do

2 Tomamos tal concepção de seus livros: Microfísica do poder (1985) e Vigiar e punir – história da violência nas prisões (2009).

Page 17: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

7

corpo, e concluem que independente das questões, essas relações visa o

corpo, pois ele é o lugar

onde se inscrevem os elementos culturais presentes nas experiências que os sujeitos humanos vivem ao longo de sua existência, é a primeira forma de identificação dos homens e das mulheres e locus do exercício do poder, e, portanto, não poderia ficar alheio a este debate (2003, p.122) [itálico da autora].

Entretanto, as relações de poder que perpassam o corpo não são

oriundas da modernidade, elas sempre existiram com o intuito de discipliná-lo, -

ora por intenções de embelezamento, ora religiosas, ora capitalistas -, pois, o

mesmo representa uma peça fundamental no artefato de sociedade civilizada.

No que remonta ao tempo clássico, o corpo era concebido como um

túmulo, uma moldura da alma, que prendia a inteligibilidade humana. Era a

parte obscura do homem, enquanto a alma era a sabedoria e o que o conduzia

à luz da verdade. Miguel Almir L. de Araújo em Os sentidos do corpo (1998),

explica que para os gregos

a superioridade da contemplação do mundo das idéias, da órbita do espírito na descoberta da verdade, ocorre na medida em que a alma desencarnasse da prisão sombria do corpo (ARAÚJO, 1998, p.143).

Como também notamos no fragmento abaixo de A República (1949), de

Platão, a inferioridade do corpo em relação à alma:

A mim não me parece ser o corpo, por perfeito que seja, que pela sua excelência, torne a alma boa, mas, pelo contrário, a alma boa, pela sua excelência, permite ao corpo ser o melhor possível (PLATÃO, 1949, p.136).

Na idade média, o pensamento religioso católico enfatizou ainda mais a

dicotomia entre corpo e alma. O corpo era concebido como materialidade

pecaminosa, a “abominável veste da alma” (GELIS, 2008, p. 20), que

encaminhava o homem às tentações da carne. O homem cristão deveria banir

Page 18: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

8

as vontades carnais e voltar seu corpo para ações puras aos olhos da igreja,

almejando, consequentemente, a salvação divina.

A corporeidade, no início da era moderna, passou a ser observada como

objeto de investigação científica, tendo sua anatomia e fisiologia analisada e

dissecada em laboratórios por experiências médicas. No século XVIII, com as

contribuições do filósofo e matemático René Descartes (1596-1650), o sentido

e utilidade do corpo são associados ao funcionamento do relógio e da máquina,

concebido como objeto e/ou coisa direcionado à utilidade e à produção de

capital. Confluente, Araújo (1998) fala que a lógica mecanicista e capitalista

que rege a corporeidade desdobra-se em posturas destrutivas que

desqualificam a vida humana, pois, o corpo, lugar de prazer e identificação, se

reduz em

instrumento que funcionaliza leis e normas, que operacionaliza as máquinas. Confinado à condição de máquina, de coisa produtiva, o corpo é exilado de sua potência de prazer, mutilado de sua sensibilidade. É mercadejado e consumido nos mercados de transações econômicas. Mercantilizado no consumo das imagens, tornando-se mero simulacro (ASSMAN apud ARAÚJO, 1998, p.145).

Contudo, no século XX, o corpo foi reinventado teoricamente, na medida

em que é apresentado como uma substância relacionada com a alma, existindo

ambos interativamente, sendo o ponto de percepção do ser com o mundo e

com a cultura. Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) no livro Fenomenologia da

percepção (1971), defende que é através do nosso corpo que nos situamos e

nos pomos em contato com o mundo e com o outro; assim, não estamos no

corpo, mas somos consubstanciado à ele,

porque nosso corpo é para nós o espelho de nosso ser, a não ser por ser ele um eu natural, uma corrente de existência dada, de maneira que nunca sabemos se as forças que nos conduzem são as suas ou as nossas (MERLEAU-PONTY, 1971, p.182).

Portanto, o corpo na era moderna encontra-se num espaço entre a

coação e a liberdade; é princípio de libertação e de recusa, dois movimentos

distintos que dão ao corpo moderno um perfil específico. Não é mais uma

moldura da alma ou um pedaço de matéria, como era considerado pela filosofia

Page 19: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

9

antiga, mas sim, constituição da subjetividade, visto que o ser identifica-se no e

com o mundo através de seu corpo.

Jean-Jacques Courtine, na introdução de História do corpo 3 – As

mutações do olhar: século XX (2008), aponta que três nomes foram

fundamentais na recriação teórica a respeito do corpo. O primeiro lugar ficaria

com o fundador da psicanálise, Sigmund Freud (1856-1939), que ao observar a

exibição dos corpos mostrada pelo médico francês Jean-Martin Charcot (1825-

1893), decifrou a histeria e compreendeu o que constituiria o enunciado

essencial de muitas interrogações futuras: que o inconsciente fala através do

corpo. Fator fundamental que revelou a importância do somático e da imagem

do corpo na formação do sujeito, transformando o corpo humano no “berço

original de toda significação” (COURTINE, 2009, p.8). Para Maria Angélia

Teixeira (1998), o corpo que interessa à psicanálise distingue-se do organismo

e define-se “pela sua relação ao inconsciente estruturado como uma

linguagem” (1998, p.31), a qual, através do sintoma expressa uma “anatomia

significante”.

O segundo nome indicado por Courtine é o do filósofo Maurice Merleau-

Ponty que traduz a corporeidade como a encarnação da consciência que se

desdobra no tempo e no espaço como “pivô do mundo” (MERLEAU-PONTY

apud COURTINE, 2009, p.8). Segundo M.Ponty, é com o corpo próprio que

construímos a rede de significações da vida e é ele o nosso ponto de vista

sobre o mundo, ponto de abertura e revelação, sendo o corpo um todo que se

completa com todos os sentidos e percepções. E ele prossegue, dizendo que:

não estou diante do meu corpo, estou dentro do meu corpo, ou mais certamente, sou o meu corpo. Nem suas variações nem sua variante podem ser expressamente colocadas. Não contemplamos somente as relações dos segmentos de nosso corpo e as correlações do corpo visual e corpo tátil: somos nós mesmos aquele que ao mesmo tempo os vê e os toca (MERLEAU-PONTY, 1971, p.161) [grifo nosso].

O escritor e sobrevivente do Holocausto, Jorge Semprún, argumenta em

seu livro, O morto certo (2005), a importância das considerações do referido

filósofo a respeito do corpo:

Page 20: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

10

Dentre os filósofos franceses vivos, Merleau-Ponty era o mais original. A estrutura do comportamento era um livro inovador, pelo lugar dado ao corpo, à sua materialidade orgânica, à sua complexidade reflexiva, no campo da pesquisa fenomenológica (SEMPRÚN, 2005, p.143) [itálico do autor].

O terceiro e último nome mencionado é o do antropólogo e sociólogo,

Marcel Mauss (1872-1950), porque com seus estudos revela a importância do

corpo na primeira Guerra Mundial (1914–1918). Ao observar que o exército

britânico marchava diferente do francês e executavam as mesmas tarefas de

modo distinto, Mauss constata que o exército utilizava de técnicas corporais

durante os combates, usos que prosseguiriam durante a Segunda Guerra

(1939-1945). Essas técnicas mudavam conforme a sociedade e revelavam de

qual modo os soldados serviam-se de seus corpos. Stéphane Audoin-Rouzeau

(2008), com base nas pesquisas de Mauss, afirma que a postura ereta dos

soldados no combate, evidenciava que o mesmo enfrentava o perigo em pé,

postura importante para o combate, pois denunciavam que “no extremo perigo

do campo de batalha, fica-se de pé. Fisicamente, mas, ao mesmo tempo,

supõe-se moralmente” (AUDOIN-ROUZEAU, 2008, p.369).

Portanto, para Courtine, o corpo, na virada do século, foi “ligado ao

inconsciente, amarrado ao sujeito e inserido nas formas sociais de cultura”

(2008, p.8), o que desvela a importância da corporeidade no âmbito sócio-

cultural na contemporaneidade, a qual não é mais vista como apenas um

invólucro de ossos e tecidos, mas sim, a forma de expressão e de identificação

do indivíduo.

Podemos agregar a esses nomes o de Michel Foucault (2009), que

também problematiza acerca do lugar do corpo na sociedade e considera a

sexualidade como uma forma de produção de saberes e de estratégias

políticas de controle corporal. Para ele, o corpo é mediado tanto pelo prazer

como pelo poder, pois técnicas austeras regulam o indivíduo e a população, o

que é característica da sociedade moderna que produz sistemas de poder que

almejam o constante domínio do corpo social. Criam-se normas e instituições

para esquadrinhar o corpo e, consequentemente, o pensamento humano.

Desse modo, o controle corporal é um projeto para controlar uma cidade, uma

nação, de maneira metonímia, de uma parte individual para um todo social.

Page 21: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

11

Foucault explana que a sexualidade por fazer parte do corpóreo,

também encontra-se inserida no cenário sócio-político de controle, mesmo

porque a mesma sempre esteve relacionada à disciplina do corpo, imposta por

esse poder, tanto no que diz respeito ao adestramento de forças e ao

ajustamento de energias para o trabalho, como na regulação da natalidade

populacional. No seu primeiro volume da História da sexualidade – a vontade

do saber (2009), o autor explica que o controle que se exerce sobre a

sexualidade

dá lugar a vigilâncias infinitesimais, a controles constantes, a ordenações espaciais de extrema meticulosidade, a exames médicos ou psicológicos infinitos, a todo um micropoder sobre o corpo; mas, também, dá margem a medidas maciças, a estimativas estatísticas, a intervenções que visam todo o corpo social ou grupos tomados globalmente. O sexo é acesso, ao mesmo tempo, à vida do corpo e à vida da espécie (FOUCAULT, 2009, p.159).

O sujeito encontra-se circunscrito em espaços que cerceiam seu corpo e

seu prazer, adequando-os às normas e às posturas determinadas pelo controle

social de dominação. As investigações acerca do corpo encontram-se

relacionadas à constante ambição de controlá-lo e organizá-lo conforme

interesses pessoais e coletivos. Como bem coloca Foucault no livro Microfísica

do poder (1985) que, na atualidade, o bom soberano não é aquele que governa

o maior espaço territorial, mas o que possui a arte de governar e manipular o

maior número de habitantes de um determinado espaço, sendo aquele que cria

os corpos dóceis necessários para a geração de riquezas. Assim, para que

haja a docialização dos corpos, são construídas instituições totais que

configuram-se em prisões, escolas, conventos, espaços para domesticar o

indivíduo.

Vicente Deocleciano Moreira, no seu estudo sobre Graciliano Ramos e

Antonio Gramsci, intitulado Graça e Gramsci, corpos adoçados pelo amaro da

intolerância (1998), aponta que são inúmeras as instituições totais que rodeiam

o ser; elas estão por toda a parte, mascaradas como escolas, conventos,

hospitais, manicômios, quartéis, internatos, e outras extremamente fechadas

como prisões de guerra, penitenciárias e os campos de concentração. Para

Erving Goffman, citado por Moreira, tais instituições são caracterizadas por um

Page 22: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

12

mesmo perfil físico que visa o fechamento total do sujeito em relação ao social

e esse isolamento é simbolizado por construções que possuem as mesmas

características arquitetônicas com “portas fechadas, paredes altas, arame

farpado, fossas, água, florestas ou pântanos” (GOFFMAN apud MOREIRA,

1998, p.175). São espaços que cercam o ser e o seu íntimo com a finalidade

de fabricar corpos submissos; o que a concepção foucaultiana trata como

“corpos dóceis”, corpos disciplinados e treinados pelo poder, transformados em

objetos, em utilidade produtiva e animal dócil.

As prisões singularizam-se por utilizarem poderes punitivos que

prescrevem técnicas de intervenção sobre os corpos; é um campo político que

tem alcance imediato sobre o ser. São instituições que marcam, corrigem,

torturam, supliciam e sujeitam o corpo, impregnando-lhe traumas e marcas.

Acerca do papel das prisões na sociedade, Michel Foucault, em Vigiar e

Punir: nascimento das prisões (2009), as qualifica como atrozes e completas

no sentido de domesticação do homem, pois

a prisão deve ser um aparelho disciplinar exaustivo. Em vários sentidos: deve tomar a seu cargo todos os aspectos do indivíduo, seu treinamento físico, sua aptidão para o trabalho, seu comportamento cotidiano, sua atitude moral, suas disposições; a prisão, muito mais que a escola, a oficina ou exército, que implicam sempre numa certa especialização, é “onidisciplinar”. Além disso a prisão é sem exterior e sem lacuna; não se interrompe, a não ser depois de terminada totalmente sua tarefa; sua ação sobre o indivíduo deve ser ininterrupta: disciplina incessante (2009, p.222) [aspas do autor].

Confluente, Michele Perrot, em Os excluídos da história – operários,

mulheres e prisioneiros (2010), traça um interessante estudo sobre o sistema

penitenciário francês do século XIX. Ela aponta algumas características que

nos remetem tanto às prisões atuais como aos campos de concentração

nazistas, denunciando as influências existentes entre os mesmos e o

desenvolvimento cada vez mais acentuado de suas políticas excludentes, o

que vai de encontro às “intenções” iniciais das prisões, que visavam e visam à

reintegração do preso, pois esse sistema

longe de reintegrar, ele expulsa, evacua, suprime os irrecuperáveis. Mas ao mesmo tempo revela talvez sua

Page 23: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

13

finalidade oculta e verdadeira: defender a sociedade industrial burguesa fundada sobre a propriedade e o trabalho. A prisão é a ilusória válvula de segurança dessa sociedade (PERROT, 2010, p.266).

Por propósitos de segurança social, o sistema carcerário do século XIX

arquitetou vários procedimentos de exclusão total e de rompimento de

identidade do preso. De imediato, ele perdia o seu nome e ganhava no lugar

um número como identificação, não podia se comunicar com ninguém, sua

comida era reduzida a uma ração diária, a qual tinha sua porção regulada

conforme a sua produtividade nos trabalhos efetuados na prisão. Perrot

explana que essas estratégias, e tantas outras, são instrumentos

disciplinadores pertencentes à prisão, “espaço extralegal sujeito ao arbítrio do

poder”, que tem “por excelência o domínio da manipulação. Pelo seu caráter

secreto e reservado, ela constitui o primeiro elo das instituições

concentracionárias. É por isso que sua gênese atualmente nos assedia”

(PERROT, 2010, p.278).

Além das instituições totais que, desde a infância – escolas, igrejas,

hospitais -, encontram-se nas redondezas do ser, existem os micro-olhares do

poder, que vigiam constante e exaustivamente os passos do indivíduo, na

medida em que têm sob vigilância as ações dos homens, representando o olho

do poder que se dilui em todas as esferas sociais. São as cidades que

cerceiam e controlam, mantendo a disciplina idealizada, já que não se sabe

quem e de onde se observa. É o “panoptismo” (2009, p.190), que Foucault

considera como um artefato do Estado para aprisionar a alma e o corpo, as

vontades e os desejos do ser humano. Os indivíduos encontram-se observados

por inúmeras câmeras e olhos que sempre revogam uma ordem, uma lei, uma

dominação. A cidade metamorfoseia-se em uma grande disciplinadora, com

punições espalhadas por toda a parte:

Eis, então, como devemos imaginar a cidade punitiva. Nas encruzilhadas, nos jardins, à beira das estradas que são refeitas ou das pontes que são construídas, em oficinas abertas a todos, no fundo de minas que serão visitadas, mil pequenos teatros de castigos. Para cada crime, sua lei; para cada criminoso, sua pena. Pena visível, pena loquaz, que diz tudo, que explica, se justifica, convence: placas, bonés, cartazes, tabuletas, símbolos, textos lidos ou impressos, isso

Page 24: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

14

tudo repete incansavelmente o Código (FOUCAULT, 2009, p.109).

O panóptico insere-se com maior força nos espaços fechados, como

prisões e campos de concentração e desencadeia na despersonalização do

prisioneiro, já que o circunscreve e o vigia. Espaços esses, onde tudo é

coletivo, dormitórios, latrinas, trabalho, sendo impossível estar só para

satisfazer sua menor necessidade corporal. Os campos de concentração se

caracterizam por ser um espaço onde de tudo se fez para desumanizar o

preso. Assim como as prisões, os campos foram arquitetados para internar e

“reeducar” os opositores ao nazismo. Porém, não demorou para que as

máscaras caíssem e mostrassem o seu real propósito de crueldades inauditas.

Em um relatório sobre o campo de Buchenwald encontra-se escrito o seu

verdadeiro objetivo:

Missão do campo: uma fábrica de extermínio [...]. Meios de extermínio: a fome, à qual se somavam os trabalhos pesados, os insultos, as pancadas e as torturas, as barracas incrivelmente abarrotadas e as doenças (WOOD apud BECKER, 2009, p.419).

Jorge Semprún, sobrevivente do campo de Buchenwald, no seu

testemunho exposto em O morto certo (2005), perfila acerca dessa política

paulatina de extermínio de Buchenwald. Um dos aspectos torturantes

ressaltados pelo escritor é sobre a escassez de comida: “sempre havia muito

pouco pão para que eu me lembrasse dele. Tinha acabado, não podia me

lembrar” (SEMPRÚN, 2005, p.25). Num outro episódio desse livro, Semprún

descreve acerca do olhar panóptico que existia no campo. Relata que sentia-se

espetacularizado e invadido com a aglomeração de olhares, tanto dos

prisioneiros como dos soldados nazistas, que o observavam como se estivesse

num reality show, como ele próprio destaca:

Não sei si se pode medir, objetivamente, um dado desses. Medir as conseqüências do fato que nem um único ato da vida privada podia ser realizado de outro modo se não sob o olhar dos outros. Não importava que esse olhar fosse, por vezes, fraterno ou piedoso, era o próprio olhar que era insuportável. Não há nada pior do que a transparência absoluta da vida privada, onde cada um se torna o big brother do outro (SEMPRÚN, 2005, p.157) [itálico do autor].

Page 25: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

15

Como vimos, o panoptismo é um dos recursos do poder para cercear

tanto o corpo do prisioneiro como do cidadão comum, que juntamente com

outros mecanismos visam à dominação total do corpo e estão espalhados por

todos os lugares. Mediante isso, as instituições totais, sendo abertas ou

fechadas, são mecanismos do poder que em prol da legitimação da ordem

possuem o respaldo legal do Estado para profanar e despersonalizar o corpo, e

paulatinamente, eliminá-lo. Esse é o corpo encenado nos campos de

concentração nazistas. De um lado os corpos desprovidos de direito, a mercê

da própria sorte e resistência, e de outro, o corpo soberano nazista assegurado

por pensamentos racistas e progressistas.

É importante ressaltar, com base na historicidade do corpo e do seu

papel na sociedade, seja ela clássica, medieval ou moderna, que o rejunte

dessas épocas são as relações de poder que permeiam o corpo, que o

aprisiona, suplicia, martiriza, tortura, julga, menospreza, disciplina, treina,

domestica, e que produz um corpo dolorido, torturado, recalcado,

despersonalizado e dessacralizado. Para compreender como isso ocorre

durante o nazismo, é necessário inquirirmos quais foram os meios utilizados

pelos nazistas para impregnar no corpo dores e traumas, baseados nos

testemunhos de sobreviventes desse regime totalitário, que ficaram confinados

em campos concentracionários.

A arte, de modo geral, sempre representou o corpo, pois o mesmo pelo

seu caráter interdisciplinar e prenhe de significados, encena a metáfora que

agrega em si saberes individuais e coletivos, esculpida por valores, desejos e

culturas. Para Nietzsche (1844–1900), “o corpo é a grande razão, uma

multiplicidade dotada dum sentido único, uma guerra e uma paz, um rebanho e

um pastor [...]. Há mais razão no teu corpo do que na tua melhor sabedoria”

(apud NUNES FILHO, 1994, p.90). Assim, o corpo engendra as imagens que

se elaboram, dissolvem-se e se (re)constroem, juntamente com a história e as

influências sócio-culturais, configurando-se em artes, representações e

imagens.

Yves Michaud, no ensaio Visualizações. O corpo e as artes visuais

(2008), explica que no século XX o imaginário do corpo desfigurado têm sido

refletido constantemente nas artes, com colagens, pinturas, desenhos e

Page 26: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

16

montagens que mostram “corpos desmembrados, desarticulados, mutilados, e

rostos desfigurados e massacrados” (2008, p.549). Michaud menciona uma tela

de Francis Bacon, de 1946, que faz parte da sua tradição pictórica conhecida

como Crucificações, há nela um “olhar direto sobre o horror” e o mundo é posto

como um matadouro, pois Bacon pinta “uma figura humana torturada, retorcida

sobre si mesma, tendo ao fundo uma carcaça de boi pendurada em um gancho

de açougue” (2008, p.551). Esta imagem nos remete, por associação, a

algumas imagens narradas por Jorge Semprún, em La escritura o la vida

(1995), que figuram a animalização do corpo humano nos campos nazis, bem

como as tecnologias utilizadas nas salas de tortura para provocar a dor no

corpo. O fragmento abaixo refere-se a um episódio semelhante ocorrido logo

depois da evacuação do campo de Buchenwald, no qual Semprún mostra para

algumas mulheres militares as instalações dos campos e as leva para a sala do

crematório onde havia vários instrumentos utilizados pelos nazis para torturar

os presos, inclusive um gancho que pendurava o corpo do prisioneiro que o

deixava exposto como um animal para o abate. Ao descrever, Semprún repete

com um paralelismo anafórico a conjugação verbal “les enseñé”, que reflete a

agitação do narrador-personagem ao reavivar na memória e sentir no corpo as

experiências do campo, ao mostrar e explicar o que cada objeto significava e a

dor que cada um produzia:

Las hice entrar por la puertecita del crematorio, que llevaba al sótano. […] Les enseñé los ganchos donde colgaban a los deportados, pues el sótano del crematorio también servía de sala de tortura. Les enseñé los látigos y las porras. Les enseñé los montacargas que subían los cadáveres a la planta baja, directamente delante de la hilera de hornos (1995, p137).

Entretanto, as imagens do corpo desfigurado não são recorrentes

somente no século XX, Silke Kapp (2004), aponta que a representação da dor

e da tortura do corpo nas artes existiu em todas as épocas, como

comprovação, remete às manifestações artísticas tanto na Literatura como na

escultura, por exemplo: “na narrativa homérica de Polifemo devorando os

companheiros de Ulisses; [...] na arte cristã com seu ícone central do corpo

crucificado; na escultural luta de morte do Laocoonte [...]” (2004, p.247). Para

Page 27: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

17

Kapp (2004), todas essas manifestações artísticas estilizam a “dor do outro” e

causam no leitor ou no expectador uma repugnância e um mal-estar. Mal-estar

esse, que segundo Márcio Seligmann-Silva, em Arte, dor e Kátharsis ou

variações sobre a arte de pintar o grito (2004), é mediado pela identificação do

leitor/expectador com aquele que sofre, como se o mesmo vivenciasse

“imaginariamente a dor no próprio corpo”, que é transmitida pelo sensorial.

Essa arte da dor, do horror, do abjeto que têm o corpo representado, para

Seligmann-Silva, não pretende dar respostas aos dilemas do homem, mas

propõe um diálogo com a mesma, o que pode evidenciar não apenas as

fraturas das identidades dos indivíduos, mas,

pode ensinar a não esperar respostas completas e prontas para os desafios impostos pelo convívio em uma sociedade agredida pelas violências tecnológica, urbana e social e acuada pela questão da diferença e pelas duas vertentes mais irracionais da “solução” dessa questão: a da globalização – que nega as diferenças – e a do fundamentalismo – que reafirma a velha ontologia racista (2004, p. 80) [aspas do autor].

Um bom exemplo literário que metaforiza as relações de dominação que

atravessam o corpo é a obra Na colônia penal (1988), de Franz Kafka. O

escritor descreve um rastelo que gravava na pele de seus prisioneiros sua

sentença de morte. A punição ocorria de modo despersonalizado, pois era a

máquina que a realizava e tinha o corpo como alvo da tortura. Segundo Jeanne

Marie Gagnebin, em Escrituras do corpo (2006), tais aspectos sobre

a aplicação da sentença, refletem o caráter premonitório da narrativa de Kafka,

pois anuncia “os massacres anônimos do século XX, nos quais a matança se

torna uma operação técnica cada vez mais subtraída à intervenção direta dos

homens” (2006, p.141), e cada vez mais sofisticada e cruel.

Como vimos, o corpo, independente da época, é manipulado pelo poder

por inúmeros interesses, e a arte, como uma representação da sociedade,

problematiza e expõe os principais conflitos humanos, inclusive a desfiguração

e a despersonalização do corpo - que é a identificação primária do ser no

mundo - produzindo uma arte tensionada por essas questões, permeada pela

dor, pelo horror e pela morte. Conforme explana Theodor W. Adorno, em

Teoria Estetica (1980), “toda experiencia estetica depende del ambiente de la

Page 28: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

18

obra, de su concreto valor, de su lugar en sentido propio y metafórico” (1980,

p.453), ou seja, arte e sociedade são esferas indissociáveis, e é com esse

legado interpretativo que propomos refletir no próximo subcapítulo acerca da

fragmentação do corpo nos campos de concentração nazistas e os motivos que

garantiram essa ação atroz.

1.1. O corpo para e no nazismo

Os campos de concentração, de modo análogo às prisões, configuram-

se em espaços extralegais, criados pelo poder com intuito de prender os

indivíduos considerados uma ameaça ao progresso e à ordem social. No

entanto, os campos nazistas ultrapassaram todos os limites de crueldades já

formulados pelo Estado. A pretensão dos campos nazis não era apenas punir

seus prisioneiros, mas suprimi-los e exterminar o maior número possível,

aumentando cada vez mais o amontoado de corpos indesejáveis.

No campo a única meta era a morte, na maioria das vezes, ela ocorria

lentamente, o que também era uma das estratégias de tortura. Era necessário

que transparecesse como uma morte natural, entretanto, a verdade é que

inúmeras torturas, tanto físicas como psicológicas, foram elaboradas para

aniquilar a passos lentos. Torturas que desqualificavam o corpo e a alma,

provocando dores indizíveis nos deportados e são perfiladas por Jorge

Semprún, em La escritura o la vida (1995); essas diversas estratégias do

sistema serão analisadas mais adiante.

O escritor italiano Primo Levi, também sobreviveu aos horrores dos

campos. Em É isto um homem? (1988), expõe o reflexo desmoralizante das

inúmeras torturas que fragmentou o seu corpo, ao ponto de ele mesmo não se

reconhecer:

Aqui estou no fundo do poço. [...] Quinze dias depois da chegada, já tenho a fome regulamentar, essa fome crônica que os homens livres desconhecem; que faz sonhar, à noite; que fica dentro de cada fragmento de nossos corpos. [...] Já apareceram, no peito de meus pés, as torpes chagas que nunca irão sarar. Empurro vagões, trabalho com a pá, desfaleço na chuva, tremo no vento; mesmo meu corpo já não é meu; meu ventre está inchado, meus membros ressequidos, meu rosto túmido de manhã e chupado à noite; alguns de nós

Page 29: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

19

têm a pele amarelada, outros cinzenta; quando não nos vemos três ou quatros dias, custamos a reconhecer-nos (LEVI, 1988, p.35). [grifo nosso].

Nesse fragmento é desnudado o processo de desfiguração corporal que

conduzia pausadamente muitos para a morte; estágios mortais construídos

com minúcia no intuito de desmoralizar, e posteriormente, exterminar.

Os prisioneiros que não sucumbiram no campo ficaram com cicatrizes

impagáveis tanto no corpo como na memória, dessa maneira os campos

singularizam exemplarmente a crueldade das estratégias para manipular o

corpo e são erguidos, propositalmente, como um estado de exceção próprio da

guerra. Esse espaço de exceção ou estado de sítio é colocado fora do

ordenamento jurídico e penal, mas não fora dos limites de decisão do

soberano, no caso, Hitler. Cabe ressaltar que Hitler não foi o único líder que

construiu campos de concentração, e o mesmo, em nome da manutenção da

ordem e por medidas de controle, prende sob custódia, indivíduos

considerados perigosos. Esses prisioneiros, dentro desse espaço, tornam-se

homo sacer, que são seres considerados matáveis e que não merecem viver, e

por serem uma vida indigna de ser vivida, o seu homicida fica impune.

O espaço de exceção, ou melhor, os campos de concentração,

caracterizam-se por ser um lugar onde tudo é possível, segundo a fala do

filósofo italiano Giorgio Agamben em Homo sacer – o poder soberano e a vida

nua (2004):

Quem entrava no campo movia-se em uma zona de indistinção entre o externo e interno, exceção e regra, lícito e ilícito, na qual os próprios conceitos de direito subjetivo e de proteção jurídica não faziam mais sentido; além disso, se era um hebreu, ele já tinha sido privado, pelas leis de Nuremberg, dos seus direitos de cidadão e, posteriormente, no momento da ‘solução final’, completamente desnacionalizado. Na medida em que seus habitantes foram despojados de todo estatuto político e reduzidos integralmente à vida nua, o campo é também o mais absoluto espaço biopolítico que jamais tenha sido realizado, no qual o poder não tem diante de si senão a vida sem qualquer mediação (AGAMBEM, 2004, p.178).

Esse espaço, difícil de descrever com palavras, teve como alvo o corpo

dos prisioneiros, causando-lhes indescritíveis violências que objetivavam a

Page 30: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

20

anulação total de sua existência. Vários mecanismos de despersonalização

foram utilizados, citamos como um exemplo, a utilização de cercas nos

arredores do campo, que simbolizavam a domesticação dos presos. Eles eram

caçados, acuados, abatidos, domados e depois cercados como rebanhos como

nos mostra Stéphane Audoin-Rouzeau (2008):

O arame farpado inventado para cercar os animais, e depois modificado a fim de se tornar mais perigoso ainda para a fina pele humana, tornou-se, no século XX, e sobretudo na Europa, um dos meios simples para dar a entender aos seres humanos a sua transformação corporal em rebanho doméstico para o trabalho, a fome, a epidemia e, de modo geral, para a morte (AUDOIN-ROUZEAU, 2008, p.406).

Para entendermos a importância que o corpo tinha por sua contextura

física, pela cor e sua origem, durante o nazismo, é de suma relevância dizer

que no regime concentracionário existiam milhares de corpos envolvidos que

dividiam-se em dois conjuntos: de um lado estava o corpo ariano, formado por

alemães “puros”, os quais se consideravam um grupo étnico elevado; do outro,

o corpo semita, composto na grande maioria por judeus que eram apontados

como uma raça inferior e demoníaca, também faziam parte desse grupo os

homossexuais, ciganos, deficientes psíquicos e motores, anões e indivíduos

que eram contrários aos ideais nazistas. O corpo ariano para o nazismo era o

corpo superior e, ao mesmo tempo, era o corpo que inserido no campo de

concentração torturava, prendia, ordenava e matava, tornando-se o corpo do

torturador. Em contraponto, os que faziam parte do corpo semita eram

considerados como vermes, e no campo nazi sofriam violências atrozes,

compondo o corpo torturado.

A formação desses dois grupos corporais que se polarizam foi

fundamentada por ideias e situações sociais que serviram aos alemães para

consolidar e proliferar o ódio pelos judeus, ou seja, a judeofobia, e o objetivo

era exterminar o maior número possível de semitas. O anti-semitismo

acreditava que os judeus fomentavam a divisão das nações, em particular, a

alemã. Tal preconceito baseava-se em premissas raciais e econômicas que

diziam que os judeus exploravam os trabalhadores alemães e se enriqueciam

através deles. Em consonância, Anatol Rosenfeld (1993) diz que uma das

Page 31: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

21

causas do nazismo foi o fator econômico, pois “este fator encontrou e criou

uma situação psicológica especial, situação esta que não desapareceu com o

extermínio do nazismo e continua predominante em vastas camadas das

populações” (ROSENFELD, 1993, p.172).

Os dirigentes nazi basearam-se em uma política racista engendrada por

ideologias biologizantes e cientificistas que propuseram uma visão apocalíptica

do mundo, onde os judeus representavam o papel do demônio. Mediante tais

premissas, o nazismo apresentou um projeto de embelezamento do mundo

através da erradicação do feio, sujo, maléfico, impuro; a beleza e a harmonia

representavam os ideais da nova Alemanha. Para manter esse padrão de

beleza se impôs o ódio, a violência e a morte. Propôs-se um ideal de raça que

tinha como base a comunidade racial germânica, pois pensava-se a revolução

mediante a criação do homem novo – ariano -, em face dos judeus.

No topo da pirâmide social estavam os arianos e, no degrau mais baixo,

os judeus e todos que compunham o corpo “inimigo”. Para Hitler, as

diversidades étnicas e lingüísticas haviam enfraquecido a nação alemã, é por

isso que todas as ações nazistas promoviam a supremacia dos germânicos em

detrimento de outros povos. Pois, na sua teoria, as grandes nações foram

desenvolvidas pelas raças puras e saudáveis e, em contraponto, as nações

fracas eram compostas de raças mestiças, consideradas como subumanas,

“parasitas”, “bacilos” e “vermes” (BECKER, 2008, p.439).

Acerca da inferioridade imposta aos judeus pelos nazistas, Primo Levi

em Os afogados e os sobreviventes – os delitos, os castigos, as penas, as

impunidades (1990), em uma cena que detalha os maus tratos recebidos

inicialmente nos trens de deportação, mostra o tratamento que os judeus

recebiam e a concepção que os nazistas tinham dos mesmos:

Os SS da escolta não escondiam seu divertimento ao ver homens e mulheres agacharem-se onde podiam, nas plataformas, no meio dos trilhos; e os passageiros alemães exprimiam abertamente seu desgosto: gente como essa merece seu destino, basta ver como se comportam. Não são Menschen, seres humanos, mas animais, porcos; é evidente como a luz do sol (LEVI, 1990, p.67) [itálico do autor].

Page 32: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

22

Existem vários estudos que apontam diversas causas para o surgimento

do nazismo, mas nenhuma delas serve como justificativa para as barbáries e

os sofrimentos ocorridos nos campos. Theodor W. Adorno e Max Horkheimer,

em Dialética do esclarecimento (1985), tentam compreender “por que a

humanidade, em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano está se

afundando em uma nova espécie de barbárie” (1985, p.11). Para eles, quanto

mais esclarecido o homem se torna, simultaneamente, aumenta sua vontade

de dominação, tornando-se cada vez mais cego pelo poder. No fragmento

abaixo, Adorno e Horkheimer explanam sobre o caráter aleatório e inexplicável

do nazismo, onde qualquer um podia ser considerado como inimigo e ser

punido por uma pena que não cometeu:

Só a cegueira do anti-semitismo, sua falta de objetivo, confere uma certa verdade à explicação de que ele seria uma válvula de escape. A cólera é descarregada sobre os desamparados que chamam a atenção. E como as vitimas são intercambiáveis segundo a conjuntura: vagabundos, judeus, protestantes, católicos, cada uma delas pode tomar o lugar do assassino, na mesma volúpia cega do homicídio, tão logo se converta na norma e se sinta poderosa enquanto tal (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.160).

Tal sistema de poder com características inexplicáveis surge no final da

Primeira Guerra Mundial na Europa (1914-1918), pois com a Alemanha

derrotada estrutural e psicologicamente, cria-se o solo fértil para a proliferação

do mesmo, o que acarretaria no aumento da sede de vingança dos alemães e

do seu ódio pelos judeus, por acreditarem que eles boicotaram a Alemanha

durante a primeira grande guerra. Todavia, observa Hannah Arendt no livro

Origens do Totalitarismo (2004), que a teoria que considera os judeus como

bode expiatório durante a primeira guerra, foi uma das desculpas criadas pelos

nazistas para justificar a xenofobia judaica. Para a autora, ao mesmo tempo

que os judeus dispunham de muitas riquezas, eles eram um grupo impotente

dissolvido nos conflitos bélicos, que não opinavam e, segundo mostram alguns

registros, não influenciaram na derrota alemã, conforme ela exemplifica,

ironicamente,

Page 33: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

23

o melhor exemplo – e a melhor refutação – dessa explicação, que é tão grata ao coração de muitos liberais, está numa anedota contada após a Primeira Grande Guerra. Um anti-semita alegava que os judeus haviam causado a guerra. A resposta foi: “Sim, os judeus e os ciclistas?. “Por que os ciclistas?”, pergunta um. “E por que os judeus?”, pergunta outro (2004, p. 25).

Entretanto, o nazismo consolidou-se e, para tanto, era necessário o

surgimento de uma figura humana para representar essa multidão alemã

revoltada. O austríaco Adolf Hitler, um pintor fracassado, que em Viena

começou a ter contato com as ideias anti-semitas e, com o apoio do povo

alemão, deu voz às muitas tendências e crenças que borbulhavam na

Alemanha nesse período. Hitler estava convencido que os judeus comunistas

haviam feito propagandas contra a Alemanha, que foram disseminadas pela

imprensa semita e propagavam a derrota dos alemães na primeira guerra. Tal

suspeita aumentou o ódio de Hitler e do povo alemão pelos judeus, ódio que

ficou mais fortalecido com o fato dos judeus serem grandes empreendedores e

possuírem vários negócios na Alemanha.

O período que vai do fim da Primeira Guerra Mundial ao advento da

Segunda, foi uma época turbulenta devido às divisões étnicas e sociais

resultantes da primeira batalha. Vários países passavam por crises econômicas

e descontentamentos políticos, sendo governados por ditaduras; como alguns

exemplos temos: Portugal, Espanha, Rússia e Itália. Na Alemanha impôs-se o

nazismo, ou nacional-socialismo, que era um regime arbitrário e singular, pois

lançou o mundo numa outra guerra e criou campos de extermínios para

aniquilar populações consideradas indesejadas. Esse regime tinha

características típicas, tais como: nacionalismo radical com hierarquias

militares, uso incondicional da violência, culto de um líder carismático -que no

caso era o Hitler-, desconsideração dos direitos e das liberdades civis, postura

antidemocrática e antissocialista.

Segundo Zygmunt Bauman argumenta, em Modernidade e ambivalência

(1999), que o Estado moderno, imbuído dum projeto de nacionalidade, age

como um jardineiro que separa a população “em plantas úteis a serem

estimuladas e cuidadosamente cultivadas e ervas daninhas a serem removidas

ou arrancadas” (1999, p.29). Com a Alemanha impregnada por valores

Page 34: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

24

nacionalistas, não foi diferente, pois as populações que não se enquadravam

nesse projeto de nacionalidade, ou seja, os que faziam parte do corpo semita

eram banidos em prol da ordem e da construção do novo Estado alemão

ariano. Bauman coloca que, tanto o campo político como o intelectual, têm

papéis importantíssimos na formulação duma nova “ordem”:

A tarefa de duas pontas funde-se em uma: a de tornar clara e nítida a fronteira da “estrutura orgânica”, quer dizer, “excluir o meio”, e suprimir ou exterminar tudo que seja ambíguo, tudo que fique em cima do muro e portanto comprometa a distinção vital entre dentro e fora. Instaurar e manter a ordem significa fazer amigos e lutar contra os inimigos. Primeiro e antes de mais nada, porém, significa expurgar a ambivalência. No reino político, expurgar a ambivalência significa segregar ou deportar os estranhos, sancionar alguns poderes locais e colocar fora da lei aqueles não sancionados, preenchendo assim as “brechas da lei”. No reino intelectual, expurgar a ambivalência significa acima de tudo deslegitimar todos os campos de conhecimento filosoficamente incontrolados ou incontroláveis (BAUMAN, 1999, p.33) [aspas e itálico do autor].

O estado alemão encontrava-se amparado legal e politicamente para

expurgar os que eram considerados como inimigos, como os judeus e os anti-

nazistas, com a finalidade de instauração de uma Alemanha formada somente

por arianos. Walter Benjamin comenta em Para una critica de la violencia y

otros ensayos (1991), que o Estado usa da violência como um meio fundador e

conservador de direto, legitimando novas normas, assegurando estados de

exceção e violando os direitos civis de uma parcela da sociedade, por causa

dos interesses de uma outra. Mediante isso, possibilita-se o estabelecimento

de regimes totalitários que violentam cidadãos aleatoriamente e disseminam o

terror na sociedade, o que para Arendt (2004) é um instrumento que coage e

governa os corpos dóceis:

O terror, como conhecemos hoje, ataca sem provocação preliminar, e suas vitimas são inocentes até mesmo do ponto de vista do perseguidor. Esse foi o caso da Alemanha nazista, quando a campanha de terror foi dirigida contra os judeus, isto é, contra pessoas cujas características comuns eram aleatórias e independentes da conduta individual específica (ARENDT, 2004, p.26).

Page 35: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

25

A instauração dos campos de concentração denuncia como o poder

estatal tem se utilizado cada vez mais da vida natural como um mecanismo

e/ou estratégia para sua manutenção no poder, mostrando como a política

transformou-se, conforme explica Michel Foucault (2009) e Giorgio Agamben

(2004), em biopolítica, que é a destituição dos direitos do indivíduo, o que o

coloca numa situação de domínio e faz de sua vida um objeto nas mãos de

políticas arbitrárias e que imperam baseadas no terror.

Na esteira dessa reflexão muitos que aderiram ao nazismo não

atribuíam para si a culpa pelos atos de violência e de extermínio cometidos

contra os prisioneiros, pois, havia um estado de sítio que os amparava, bem

como, sancionaram-se leis que privavam os judeus de seus direitos políticos,

como as Leis de Nuremberg. Um exemplo é o caso de Otto Adolf, conhecido

também por Eichmann, ele era comandante nazista e em abril de 1961 foi

levado a julgamento em Jerusalém sob acusações de cometer crimes contra

judeus, contra a humanidade e crimes de guerra no período da Segunda

Guerra Mundial (1939 - 1945). Contudo, ele se considerava inocente. Na sua

concepção, conforme relata Hannah Arendt no livro Eichmann em Jerusalém –

um relato sobre a banalidade do mal (1999), ele estava somente cumprindo as

ordens de Hitler, o que para o sistema não era errado. Segundo Eichmann, as

“acusações não constituíam crimes, mas ‘atos de Estado’” (1999, p.33) e “era

seu dever obedecer”, pois, “somos condecorados se vencemos e condenados

à prisão se perdemos” (1999, p.33).

A partir da concepção de higienização étnica, os nazistas exterminavam

e faziam experimentações com os corpos indignos de vida com base em

premissas biológicas e teóricas criadas antes mesmo do nazismo. Bauman

(1999) destaca que é uma ilusão pensarmos que as maiores monstruosidades

ideológicas foram formuladas por monstros; ele explica que nem sempre a

violência surgiu do estado, e registra que toda e qualquer ideologia origina-se

de uma erudição, de um estudo acadêmico que, em muitos casos, é aceita pela

sociedade e legitimada como verdade. Não se pode desconsiderar que

pensamentos como os que defendem a supremacia de uma raça em

detrimento d’outra, foram gerados, muitas vezes, em espaços de discussões

intelectuais e em épocas anteriores às guerras, e que podem ressurgir a

qualquer momento, travestidos de outros discursos e objetivos, mesmo depois

Page 36: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

26

da queda de Hitler e do nazismo, assim como ocorreu na Alemanha, conforme

explica-nos Bauman:

O programa nazista de extermínio foi um prolongamento lógico de idéias sociobiológicas e doutrinas eugênicas que não tinham nada a ver especificamente com os judeus e que floresceram amplamente na Alemanha muitos anos antes do Terceiro Reich (BAUMAN, 1999, p.49).

Por meio do programa de eutanásia e de esterilização nazista, eram

realizadas experimentações médicas com os corpos de prisioneiros, fazendo-

lhes de cobaias e causando-lhes dores indizíveis em nome da ciência. Anões e

gêmeos eram os mais analisados dentro dos laboratórios nazis; e os judeus,

para não destruírem a pureza racial dos arianos, eram esterilizados. Segue-se

o relato de Miklos Nyiszli3, um dos assistentes que trabalhavam no laboratório

de Aushwitz4, relatando acerca das suas obrigações cotidianas no campo e a

finalidade:

Banhei os corpos de inválidos e de anões em uma solução de cloreto de sódio, e os cozi em cubas para que esses esqueletos, preparados nas regras das artes, pudessem chegar aos museus do III Reich, onde deveriam servir às gerações futuras, às quais provariam a necessidade de exterminar as raças inferiores (apud COURTINE, 2008, p.311).

Questões sobre raças superiores e inferiores são refletidas de modo

implícito por Semprún em suas narrativas. Os alemães, tanto os que

compunham o exército nazista como os cidadãos comuns, são descritos na

maioria das vezes com olhos brilhantemente azuis e compondo um nível de

superioridade em relação aos outros. Há um trecho na obra La escritura o la

vida (1995) em que ele narra um encontro que teve com um soldado alemão

antes de ser preso. O encontro ocorreu numa floresta, enquanto ambos eram

combatentes da Segunda Guerra, porém ocupando lados opostos.

3 Nyiszli fazia as dissecações dos corpos das cobaias no laboratório de Aushwitz e era assistente do doutor Mengele, um obcecado pela hereditariedade, pela raça e as transmissões das deformidades genéticas (COURTINE, Jean-Jacques. O corpo anormal – história e antropologia da deformidade. In: História do corpo III – as mutações do olhar. Século XX. Orgs. CORBIN, A., COURTINE, J.J., VIGARELLO, G. Trad. Ephraim Ferreira Alves. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 2008. 4 Auschwitz foi o maior e mais famoso campo de extermínio, com uma área de 30 km² na Alta Silésia e continha mais de cem mil prisioneiros, tanto judeus como não judeus.

Page 37: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

27

El alemán era joven, era alto, era rubio. Era absolutamente conforme a la idea de un alemán: un alemán ideal, a fin de cuentas. […] El alemán apareció en la parte alta de la orilla, en motocicleta. El motor de la máquina ronroneaba suavemente. […] a decir verdad estábamos esperando a ese alemán en concreto. A ese muchacho rubio de ojos azules. […] Estábamos esperando un alemán cualquiera, a alemanes. Los que fueran (SEMPRÚN, 1995, p.45).

O escritor, nessa obra citada, faz uso recorrente de imagens anafóricas

para destacar as características físicas do alemão, “era joven, era alto, era

rubio”; sua posição era de superioridade em relação ao Semprún, pois estava

situado na parte alta da margem do rio. Configurava um alemão em

conformidade com os ideais da raça ariana: branco, com traços marcantes e

vigor corporal, igual à grande maioria de alemães nazistas, o que é enfatizado

pelo autor ao destacar adjetivamente a condição física do alemão. Então, não

importava se era esse ou aquele alemão que estava refrescando-se no rio, o

que estava em questão era o fato de ser um alemão que enquadrava-se nos

padrões corporais arianos, para nos mostrar a anatomia e a cor da “temida

raza superior”.

A superioridade dos alemães em relação aos demais é retratada em um

outro trecho de La escritura o la vida, no qual Semprún refere-se aos olhares

dos Sturmführer S.S, os soldados nazistas que comandavam os campos; eles

são descritos em posicionamento predominantemente elevado e com

características egolátricas que os tornam impenetráveis e rígidos. Suas

imagens e seus corpos se iluminam no espaço obscuro do campo penetrado

pela neve e fumaça:

También estaban los S.S., sin duda. Pero no era fácil captar su mirada. Estaban lejos: macizos, por encima, más allá. Nuestras miradas no podían cruzarse. Pasaban atareados, arrogantes, destacándose en el cielo pálido de Buchenwald, donde flotaba el humo del crematorio (1995, p.36).

Primo Levi, químico e escritor italiano, em sua obra É isto um homem?

(1988), narra os momentos em que teve contato com os alemães enquanto

estava encarcerado em Aushwitz:

Page 38: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

28

Com estas nossas caras chupadas, com estes crânios raspados, com esta roupa que nos envergonha, prestar um exame de Química? É claro, em alemão. E teremos que nos apresentar a algum loiro ariano Doktor. [...] Pannwitz é alto, magro, loiro; tem olhos, cabelos, nariz como todos os alemães hão de tê-los, e está sentado, formidável, atrás de uma escrivaninha cheia de papeis. Eu, Häftling 174.517, estou de pé em seu escritório, que é realmente um escritório reluzente, limpo, bem arrumado; tenho a sensação de que, se tocasse em qualquer coisa, deixaria uma marca de sujeira (1988, p.105-106).

Diferentemente de Jorge Semprún, Levi era judeu e por conta disto, teve

um tratamento bem mais atroz. Para os alemães, ele não passava de um

parasita, ao ponto de ele próprio transfigurar para si a condição de imundo,

devido à sua degradação física: com “caras chupadas”, “crânios raspados” e

com trajes desajeitados. Não possuía mais um nome, uma identidade e sim,

um número tatuado no braço, “174.517”, era apenas mais um número em

Aushwitz. Tinha que usar a língua de seus verdugos para se comunicar, que

não era a sua língua materna. Ao ser prisioneiro, seus objetos pessoais foram

retirados e foi destituído de tudo aquilo que ele representava fora do campo. No

trecho, uma cadeia de adjetivos destacam as qualidades referentes ao alemão

denotando aspectos positivos, como: “formidável”, “alto”, “magro” é até mesmo

o uso do possessivo “seu”, em “seu escritório”, evidencia as marcações de

posse dos espaços de circulação: havia um espaço que favorecia o alemão,

pois era o “seu lugar” e um “não-lugar” para Primo Levi, o que o deixava em

uma situação de submissão.

Os espaços físicos também encenam os paradoxos da relação corpo

ariano versus corpo semita. O escritório alemão, segundo descrição detalhada

do ex-prisioneiro, era “limpo”, “reluzente” e não simplesmente arrumado, mas

“bem arrumado”; a expressão adverbial “bem” realça a organização. De modo

oposto, o autor descreve o paradoxo do espaço dos presos que consistiam em

lugares sujos, fétidos e sombrios, conforme ele relata ao descrever os locais

onde trabalhavam: “a fábrica é desesperadamente, essencialmente cinzenta e

opaca. Este emaranhado sem fim de ferro, cimento, fumaça e lama é a

negação da beleza” (LEVI, 1988, p.72), configurando a extensão da condição

imunda a qual os mesmos encontravam-se.

Page 39: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

29

O corpo ariano era o corpo supremo que ordenava e torturava. Na outra

margem, do outro lado da mesa, na parte baixa, na inferioridade da existência,

estava o corpo abandonado pela lei e pela sorte. Na marginalidade do caos e

do horror, encontravam-se os corpos que sofriam as imposições violentas dos

nazistas e, a cada dia de sobrevivência, era mais um dia de descomunal

resistência. Porém, muitos prisioneiros não suportaram as atrocidades e

sucumbiram nas súplicas de seus corpos feridos. Esses eram conhecidos no

Lager5 como “mulçumanos”, “judeus”, “morto-vivos”, “cadáveres ambulantes” e

representavam o corpo abandonado pela esperança, aquele ser que não tinha

mais o controle sob seu corpo. Giorgio Agamben, em O que resta de Auschwitz

(2008), explica que o campo no Terceiro Reich foi o reino onde todas as

barreiras ruíram; era um não-lugar no qual o mulçumano era algo indefinido

que transitava entre a humanidade e a não humanidade, entre a vida e a morte,

e sua existência evidencia exemplarmente os propósitos nazistas de extermínio

ao extremo, segundo expõe o filósofo:

O mulçumano encarna o significado antropológico do poder absoluto de forma particularmente radical. No ato de matar, de fato, o poder se auto-suprime: a morte do outro põe fim à relação social. Pelo contrário, ao submeter as suas vítimas à fome e à degradação, ganha tempo, o que lhe permite fundar um terceiro reino entre a vida e a morte. Também o mulçumano, como o amontoado de cadáveres, atesta o seu completo triunfo sobre a humanidade do homem: mesmo que se mantenha ainda vivo, aquele homem é uma figura sem nome. Ao impor tal condição, o regime encontra o próprio cumprimento... (SOFSKY apud AGAMBEN, 2008, p.55).

Em Um belo domingo (1982), Jorge Semprún descreve a figura dos

mulçumanos, com os corpos descarnados de tez amarelada que

perambulavam sem sentido, pisoteando com seus tamancos a neve, a lama, as

fezes, os restos, num tempo e num espaço residual à espera da única coisa

que lhes restavam: a própria morte. Podemos observar a condição subumana

dos mulçumanos e a sua infinita agonia de espera no fragmento abaixo da obra

supracitada:

5 A palavra alemã Lager é empregada para referir aos campos de concentração.

Page 40: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

30

Vendo-os assim, amontoados sob a chuva fina e persistente, podia-se imaginar sua paciência infinita, a espera resignada das catástrofes que a vida lhes reservara ferozmente. Não eram nada mais do que essa paciência infinita, essa resignação que nada mais pode ferir. Sua força vital não era mais do que essa fraqueza mortal de rebanho no redil. Não fizeram perguntas, não procuravam saber por que estavam agrupados lá, o que iam fazer com eles. [...] Estavam ali, desde então, não faziam perguntas, nem mesmo murmuravam entre si, esperavam. Tinham sido arrumados, manipulados, como se arranjam ou manipulam sacos de cimento, troncos de árvores, pedras. Uma centena por fileira, seis fileiras. Eram seiscentos, apertados uns contra os outros, esperando (SEMPRÚN, 1982, p.252).

O mulçumano reflete o estágio limite do indivíduo inserido em um

sistema de poder sem limites, tal como foi o regime nazista. Segundo registram

os estudiosos deste genocídio, as mais indescritíveis e inimagináveis violências

foram praticadas nos campos nazistas, todas elas se praticaram com o fim de

desumanizar, coisificar e animalizar os corpos dos prisioneiros. Aqueles que

não sucumbiram, ficaram marcados com tatuagens no corpo e na memória,

cicatrizes indeléveis que configuram todo o horror vivenciado durante o

encarceramento. Muitos foram libertos, mas a dor guardada em suas memórias

não parou de doer e mesmo querendo esquecer remetiam-lhes cotidianamente

para o espaço funesto dos campos.

A dessacralização do corpo, sua desfiguração paulatina, a tortura, a

aniquilação e os traumas são deixados ao descoberto em uma narrativa

carregada de ressentimento, dor e rancor na singular obra escrita por Semprún,

em La escritura o la vida (1995); sua experiência é exposta para nos mostrar

de que maneira o escritor sobrevivente configura artisticamente essa

fragmentação da existência no campo nazi.

Page 41: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

31

2. Jorge Semprún: Fragmentação do corpo. Escritura fragmentada

No capítulo anterior, à luz de Merleau-Ponty (1971), refletimos acerca da

relevância do corpo na contemporaneidade, que é considerado como ponto de

abertura do ser com o mundo e configura em seus gestos e posturas a

metáfora viva de uma existência histórica e cultural, sendo, ao mesmo tempo,

objeto do poder que o domina e manipula conforme interesses políticos e

econômicos. Com esse legado interpretativo compreendemos a importância da

corporeidade durante o regime totalitário nazista, que baseado em premissas

raciais e biológicas, exterminou e torturou o corpo daqueles considerados como

uma raça inferior e opositores ao “progresso” civilizatório e econômico da

Alemanha liderada por Hitler.

O escritor espanhol e sobrevivente do Holocausto, Jorge Semprún, em

sua obra, La escritura o la vida (2005), perfila o seu testemunho acerca da

traumática experiência vivenciada no campo alemão de Buchenwald. Por meio

desse testemunho apreendemos o modo como o corpo foi dessacralizado e os

mecanismos utilizados pelos soldados nazistas para fragmentar e exterminar,

de maneira paulatina, os corpos dos prisioneiros. Jorge Semprún é o exemplo

vivo desta experiência catastrófica que o transformou corporal e

psicologicamente, influenciando relativamente em sua relação consigo, com os

outros e com o seu fazer artístico.

Notamos nessa obra de Semprún, uma narrativa prenhe de lacunas,

constantemente entrecortada por outros textos e pelo fluxo da memória. Este

gesto encena que sua arte literária ficou marcada pelo passado de horror e de

dor, fazendo com que suas narrativas tenham uma singularidade estética, um

estilo próprio que reflete e revela as impressões e experiências do escritor.

Portanto, refletimos que sua escritura é uma extensão plástica de si, um corpo

que engendra através de vários recursos elípticos, a fragmentação do corpo

nos campos de concentração. Fragmentação exposta tanto na estrutura como

na temática da obra e que será analisada no desenvolvimento deste trabalho.

Page 42: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

32

La escritura o la vida (1995) desvela a cicatriz inscrita no corpo e na

memória do sobrevivente cindido pelo trauma. Trauma constante que

impossibilitou por quase cinqüenta anos a publicação dessa obra, a qual teve a

escritura iniciada e enlutada inúmeras vezes devido a um esquecimento

propositalmente projetado por Semprún, como um modo de sobrevivência. Isso

pode ser explicado pelo fato de que para o escritor espanhol o processo de

escritura o levaria de volta para a morte, da qual ele sempre tentava fugir.

Todavia, o escritor tinha consciência da importância de seu testemunho

na formação da memória coletiva acerca do Holocausto, sabia que competiria a

ele e aos outros escritores sobreviventes preservarem a memória da morte de

muitos companheiros. Ele próprio argumenta, em um episódio do texto acerca

de sua condição de sobrevivente:

Si yo no hubiera sido una parcela de la memoria colectiva de nuestra muerte, la pregunta no me habría irritado. En lo esencial, yo sólo era un resíduo consciente de toda esta muerte (SEMPRÚN, 1995, p.136).

Semprún compartilhou fraternalmente das mortes de seus companheiros

e inseriu-se nelas, pois, parte de si sucumbiu com eles. A outra parte restante,

o resíduo de uma existência traumatizada, deveria, na concepção do escritor,

fixar-se no tempo e no espaço como testemunho, representando as vozes

silenciadas no Lager. Seguindo essa perspectiva, Márcio Seligmann-Silva, no

artigo Testemunho e a política da memória: o tempo depois da catástrofe

(2005), descreve que a Literatura de Testemunho

possui um papel aglutinador de um grupo de pessoas [...] que constroem a sua identidade a partir dessa identificação em essa ‘memória coletiva’ de perseguições, de mortes e dos sobreviventes (SELIGMANN-SILVA, 2005, p.87).

Diante de tais considerações, observamos que o escritor publica sua

primeira obra, El largo viaje (1963), dezoito anos depois da sua libertação, na

qual ele narra episódios referentes ao campo de concentração. Todavia,

grande parte da crítica não a considera de cunho testemunhal, para o

pesquisador Seligmann-Silva, em Testemunho: entre ficção e o real (2005), a

grande maioria das obras de Semprún são romances, nos quais “a sua

Page 43: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

33

experiência é narrada em meio a um enredo que mistura ficção e realidade”

(p.384), e segue dizendo que existem aquelas com caráter de testemunho

autobiográfico como La escritura o la vida (1995), que foi publicada quarenta e

nove anos depois da sua soltura. Contudo, neste ínterim Semprún publicou

outras obras, algumas delas são: El desvanecimiento (1967), La segunda

muerte de Ramón Mercader (1969), Autobiografía de Federico Sánchez (1977),

Aquel Domingo (1980), La Algarabía (1981), La montaña blanca (1986),

Netchaiev há vuelto (1987), Federico Sánchez se despide de ustedes (1993),

Adiós, luz de veranos (1998), Viviré con su nombre, morirá con el mío (2001),

Veinte años y un día (2003).

Para Jorge Semprún, somente a arte poderia configurar a essência mais

atroz da barbárie nos campos nazi, pois com seus recursos estéticos, ela

transmitiria o inimaginável. Entretanto, o escritor negou diversas vezes sua

condição de testemunha na medida em que considerava que ao colocar-se em

narrador e personagem em sua narrativa de testemunho, era o mesmo que

estar envolvido novamente com a matéria mortífera de Buchenwald. Em

algumas publicações anteriores à de 1995, ele relata sobre o campo de

concentração, no entanto, evita narrar a respeito das atrocidades vivenciadas

no campo. Às vezes, o escritor inventa personagens e episódios e faz uso do

narrador em terceira pessoa para manter uma proposital e necessária distância

narrativa, conforme o próprio ressalta:

Me expulsé del relato. Retomé el orden previsto, la articulación narrativa cuya progresión ya tenía establecida previamente. Volví a la tercera persona de lo universal: al “él” del dios de las novelas y de las mitologías (SEMPRÚN, 1995, p.247).

Em Aquel domingo (1980), ao invés de mostrar o árduo cotidiano

semanal de Buchenwald, o escritor narra os dias de domingo, que eram os dias

em que os prisioneiros tinham “uma folga” dos trabalhos forçados e podiam se

reunir. O domingo é mostrado como um dia de possível fugacidade dos outros

seis dias de eternas torturas. Ao falar sobre os dias de domingo, Semprún

descreve as atividades culturais praticadas pelos presos, as divisões políticas

existentes em Buchenwald que favoreciam alguns e as formas encontradas por

cada um para “amenizar” a carência e a dor:

Page 44: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

34

- ¡La profundidad de los domingos! Está el burdel, para aquellos que tienen derecho a ello, que son pocos. Están los intercambios de todo tipo. Está el amor homosexual, con frecuencia relacionado con el interés o con el abuso de una posición de poder, pero no siempre… Fruto asimismo de la mera pasión, de la pasión pura. Están las canciones de Zarah Leander, las orquestras clandestinas, las representaciones teatrales improvisadas… Están las reuniones políticas, el entrenamiento de los grupos de combate de la Resistencia internacional (SEMPRÚN, 1995, p.181).

É importante ressaltar que a maioria de suas obras são, em certa

medida, potencialmente autobiográficas, pois, são produzidas por um eu

preenchido pelas suas impressões e experiências de vida, principalmente as

que foram vivenciadas nos campos nazi. O próprio autor argumenta que alguns

episódios descritos na obra de 1995, reaparecem em outras, embora quase

sempre de forma recriada e em contextos diferentes.

A pesquisadora Alba Olmi (2006), em um estudo que faz sobre a

escritora Virginia Woolf, explica que há uma confluência entre ficção e memória

nas narrativas da autora, onde a “ficção e o memorialismo se fundem como as

duas faces de uma mesma moeda, num binômio solidário em que a escritora

se realiza através de si mesma e da criação ficcional” (2006, p.107). Este

binômio é perceptível nas narrativas semprunianas, já que o mesmo não relata

ou documenta a sua experiência concentracionária, mas a traz permeada de

um cuidado estético para suscitar no leitor, através da imaginação, o que é

inefável. É no espaço literário que o escritor encontra os artifícios necessários

para plasmar o horror do Holocausto, segundo o mesmo afirma:

Me imagino que habrá testimonios en abundancia… Valdrán lo que valga la mirada del testigo, su agudeza, su perspicacia… Y luego habrá documentos… Más tarde, los historiadores recogerán, recopilarán, analizarán unos y otros: harán con todo ello obras muy eruditas… Todo se dirá, constará en ellas… Todo será verdad… Salvo que faltará la verdad esencial, aquella que jamás ninguna reconstrucción histórica podrá alcanzar, por perfecta y o omnicomprensiva que sea… la verdad esencial de la experiencia, no es transmisible… O mejor dicho, sólo lo es mediante la escritura literaria… (p.141).

Page 45: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

35

A partir dessas reflexões acerca da narrativa sempruniana e sobre o

papel da arte no processo de representação da catástrofe, verificaremos nos

próximos capítulos, de que modo são engendradas, esteticamente, essas

questões tanto na forma como no conteúdo da obra La escritura o la vida

(1995).

Page 46: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

36

2.1. Despersonalização, tortura e dor: A dessacrali zação do corpo e os

reflexos da barbárie

Como vimos, os campos de concentração nazistas foram espaços

especialmente arquitetados para profanar o que era mais sagrado no indivíduo:

o seu corpo. Não bastava prendê-lo ou matá-lo, mas sim causar-lhe dores

inauditas, por meio de vários mecanismos de torturas, que, a passos lentos,

desfiguravam o corpo do prisioneiro, ao ponto do mesmo, em poucos dias, não

se reconhecer mais no seu corpo. O corpo próprio, espaço de liberdade e

prazeres, dentro dos campos, tornava-se corpo-objeto, manipulado pelo ódio e

pela crueldade.

Nos campos, o mal foi totalmente banalizado, o extermínio era aleatório

e disseminava-se por toda parte, os prisioneiros aptos fisicamente eram

selecionados para o trabalho, enquanto os outros, morriam em furgões de gás

ou por envenenamento com monóxido de carbono. Até mesmo a retirada dos

cadáveres das câmaras de gás e dos fornos crematórios era realizada pelos

próprios prisioneiros. Eles recebiam ordens para extraírem os dentes e os

cabelos dos mortos, convertendo-se em carrascos de seus próprios

companheiros; os que executavam essa sórdida tarefa eram conhecidos como

Sonderkommando. Primo Levi, no livro Afogados e sobreviventes (1990), traz o

depoimento de dois sobreviventes que faziam parte do Sonderkommando e de

como foi para eles enfrentarem essa situação inexplicável:

Um deles declarou: “Ao realizar esse trabalho, ou se enlouquece no primeiro dia, ou então se acostuma”. Mas outro disse: “Por certo, teria podido matar-me ou deixar matar; mas eu queria sobreviver, para vingar-me e para dar testemunho. Vocês não devem acreditar que nós somos monstros, somos como vocês, só que muito mais infelizes” (LEVI,1990, p.28).

Os soldados nazistas, jogando com a existência dos detentos, os

colocavam em situações humilhantes. Semprún, em La escritura o la vida

(1995), relata que os SS ordenavam que os presos formassem duplas para a

Page 47: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

37

execução de trabalhos forçados, e debaixo de socos e pontapés, faziam os

carregamentos de pedras. Os pares eram sempre díspares, compostos por

homens com capacidades e resistências físicas distintas, um gordo com um

alto, um forte com um aleijado, o que tinha por finalidade dificultar as tarefas e

originar conflitos entre eles, o que fazia com que os sádicos soldados se

deleitassem com o espetáculo como se assistissem a uma peça teatral.

Os campos nazistas eram lugares onde os limites não existiam e

qualquer abjeção contra os deportados era permitida. Os presos eram

transformados em simples objetos-máquinas para o trabalho e marionetes para

a satisfação dos SS que sentiam prazer em observá-lo nessas condições.

Anatol Rosenfeld (1993) comenta que entre os nazistas havia um exacerbado

sadomasoquismo que refletia “a vontade doentia de poder e dominação, ligada

a uma ânsia, igualmente doentia, de submissão e autodiminuição”

(ROSENFELD, 1993, p.174). Para Maria Rita Kehl (2004), toda forma de

dominação e de tortura reduz o ser à vida nua e anula a sua condição de

sociabilidade e cidadania. Assim, ele rompe com a sociedade e teme outras

pessoas, pois todos se transformam em estranhos torturadores. A autora

reflete sobre o fato de que

alguém seja capaz de gozar do nosso sofrimento, por sadismo ou por identificação, já constitui uma lesão no laço que nos une, com maior ou menor intimidade, a um outro qualquer (2004, p.15).

A banalidade do mal era tão extrema que matava-se um preso como se

fosse um inseto, sem mais nem menos. Ele podia morrer a qualquer instante,

por fome, por debilidade física ou porque o campo estava superlotado.

Entretanto, às vezes ocorria a redução de mortes por receio do esvaziamento

dos campos, configurando-se em um lugar permeado pela dúvida e pela

aleatoriedade, prenhe de perguntas e não respostas. Hannah Arendt (1989)

aponta que é difícil traçar um paralelo de comparação entre os campos nazi e

outras formas de prisão ou escravidão, devido ao fato de que sua configuração

de horror transborda os limites da imaginação humana, só podendo “ser

descritos com imagens extraterrenas” correlacionadas às três fases

Page 48: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

38

correspondentes de uma vida após morte, as quais seriam “o Limbo, o

Purgatório e o Inferno” (ARENDT, 1989, p.496). E prossegue:

Os três tipos têm uma coisa em comum: as massas humanas que eles detêm são tratadas como se já não existissem, [...] como se já estivessem mortas e algum espírito mau, tomado de alguma loucura, brincasse de suspendê-las por certo tempo entre a vida e a morte, antes de admiti-las na paz eterna (1989, p.496).

A desmoralização e a violência era imediata à captura dos presos, a

própria precariedade dos vagões que os transportavam, indiciava o início da

projetada crueldade nazista, conforme retrata Levi:

Constante era o despojamento total dos vagões; as autoridades alemãs, para uma viagem que podia durar até duas semanas, [...] não providenciavam literalmente nada: nem víveres, nem água, nem esteiras ou palha no chão de madeira, nem recipientes para as necessidades corporais; e muito menos se preocupavam em advertir as autoridades locais, ou os dirigentes (quando existiam) dos campos de triagem, no sentido de providenciarem alguma coisa. Um aviso não custaria nada: mas, justamente, essa negligência sistemática se resolvia numa crueldade inútil, numa criação deliberada de dor como um fim em si mesma (LEVI, 1990, p.65).

Após longos e árduos dias de viagem, os deportados chegavam ao

Lager, cansados, assustados e sem compreender, segundo manifesta Levi. A

dessacralização do corpo iniciava-se nesse momento, pois recebiam ordens

para se despirem diante dos outros presos, seus objetos pessoais eram

tomados, seus cabelos e pêlos raspados e seus nomes eram trocados por um

número de matrícula. Em alguns campos, como em Auschwitz, o número era

tatuado no antebraço e o campo ficava inscrito no corpo. Evguenia Guinzbourg

relata que essas estratégias de desumanização eram praticadas com total

frieza e crueldade pelos soldados, como exemplo cita: “Um guarda que devia

atravessar o pátio nem se preocupou em contornar os montinhos de fotos e

pisou com o pé ali, bem no meio do rosto de nossos filhos” (apud BECKER,

2008, p. 431). A crise de identidade ocorria logo na chegada. Tamanha era a

Page 49: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

39

ofensa, que eles não conseguiam encontrar palavras para expressar tudo o

que lhes ocorrera. Primo Levi tenta dimensiona-lo ao leitor:

Imagine-se, agora, um homem privado não apenas dos seres queridos, mas de sua casa, seus hábitos, suas roupas, tudo, enfim, rigorosamente tudo que possuía; ele será um ser vazio, reduzido a puro sofrimento e carência, esquecido de dignidade e discernimento – pois quem perde tudo, muitas vezes perde a sim mesmo (2008, p.25).

A frieza dos SS é relatada por Semprún num trecho que refere-se ao

momento da chegada dos deportados nos campos. Literariamente, ele

configura o processo de zoomorfização dos soldados, na medida em que são

descritos emitindo sons de modo “gutural y primitivo” e comunicando-se com

palavras curtas, simbolizando a brutalidade dois animais selvagens. Isso

evidencia que os SS não se sensibilizavam com a humanidade fragmentada,

pois suas atitudes eram de desprezo e expressando ódio no olhar: “un odio

obtuso, bien es verdad, presa de un desasosiego perceptible” (SEMPRÚN,

1995, p.36). No trecho que segue, é desvelada a animalização dos SS, bem

como, a retirada dos objetos e das roupas também é narrada com bastante

detalhe, o que mostra o início intempestivo da ruptura de identidade daqueles

que entravam nos campos:

Teníamos que desnudarnos, dejar todas nuestras ropas, nuestros objetos personales encima de una especie de mostrador. Los individuos que impartían las órdenes, en un alemán gutural y primitivo, casi monosilábico, eran jóvenes (SEMPRÚN, 1995, p.97).

O fato de ficar nu diante de outros representava a profanação do que era

mais sagrado para o preso, o seu corpo, pois afrontava o seu pudor e o seu

caráter, ao passo que era ridicularizado e humilhado. O corpo próprio de

outrora, que alude á existência, tornava-se corpo-objeto, exposto, manipulado e

infligido, causando-lhe, pouco a pouco, a despersonalização e a desfiguração.

Jorge Semprún tece, mediante seu testemunho, a exposição do corpo

desnudado e usa uma expressão hiperbólica, “en cueros vivos”, para referir-se

à nudez a que se expunha aos outros prisioneiros e, concomitantemente,

mostrar a condição animalesca imposta aos detentos:

Page 50: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

40

Allí, unos peluqueros, armados con esquiladoras eléctricas cuyos cables colgaban del techo, nos afeitaban con rudeza el cráneo, todo el cuerpo. […] Ni tenía uno tiempo de morirse de risa o de asco, al contemplar el espectáculo que ofrecían todos esos cuerpos en cueros vivos (SEMPRÚN, 1995, p.98).

A partir desse gesto rude e violento de raspagem dos cabelos que sofreu

o mesmo autor, pode-se imaginar a despersonalização que começaram a

sofrer os deportados, mais ainda, com a repartição das roupas para serem

usadas como uniforme de presidiário, que na maioria das vezes, não eram

compatíveis às suas medidas ou estavam rasgadas, causando-lhes

desconforto e vergonha, já que partes de seus corpos ficavam sempre

desnudadas aos demais. Semprún descreve que os sapatos que recebiam

eram tamancos rudimentares de madeira, desconfortáveis e dificultavam a

locomoção para realizar os trabalhos: “correr por la nieve con semejante

calzado era un auténtico suplicio” (SEMPRUN, 1995, p.100). Consoante, Levi

narra que os próprios tamancos já eram instrumentos de tortura, pois após

algumas horas de uso eles criavam feridas e inchaços nos pés, o que

atrapalhava nas tarefas:

a gente, então caminha como se tivesse uma bola de ferro amarrado nos pés [...]; sempre chega por último, e sempre apanha” (1988, p.33).

Com o passar dos dias de detenção o corpo ia, progressivamente,

desfigurando-se, padecia de maneira permanente às violências que alteravam

o seu funcionamento, ao ponto do preso não tê-lo mais sob controle. Muitos

perdiam o controle de si e não discerniam mais entre o bem e o mal, apenas

transitavam com o corpo enfraquecido pela fome, pela insônia, pelo trabalho

exaustivo, pelas infinitas torturas físicas e psíquicas que os transformavam em

“zumbis”, “cadáveres ambulantes”, “mulçumano”, perambulando entre a vida e

a morte, sem nenhuma esperança. Acerca dos “mulçumanos”, Semprún explica

que esse estágio a que muitos presos chegavam, era desalentador; era

deprimente observar seus companheiros nessa forma subumana,

movimentando-se com enorme sofrimento e esforço, extremamente magros e

débeis:

Page 51: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

41

Los había visto en el edificio de las letrinas, en las salas de la enfermería, despavoridos, desplazándose con infinita lentitud, a modo de cadáveres vivientes, semidesnudos, de interminables piernas esqueléticas, colgándose de los montantes de las literas para progresar paso a paso, con un movimiento imperceptible de sonámbulos (SEMPRÚN,1995, p.58).

A prisão diminuía o espaço de locomoção do corpo, atrofiava-lhe os

movimentos e a liberdade. O corpo emagrecia e se encolhia, rapidamente,

devido à sobrecarga de trabalho, a desnutrição, a sede e os maus tratos; em

poucas semanas, jovens viravam velhos, com corpos esqueleticamente

magros, com a pele flácida, amarelada e o rosto descarnado. Um dos maiores

tormentos era a fome. Os presos eram reduzidos a uma dieta mínima a base

de pão preto e sopa muito rala conhecida no campo como ração. Tal dieta não

oferecia a nutrição necessária para manterem-se vivos e, tampouco, para

executarem os trabalhos. A pouca e desnutrida comida não saciava a fome que

se tornava crônica, ao ponto de ocasionar, em muitos, a perda do paladar.

Conta-nos Semprún, que sempre havia muita fome para tão pouca comida:

Por mucho que se masticara lo más lentamente posible la rodaja de pan negro, cortada en pedazos diminutos, siempre llegaba el momento en el que se acababa. Era como si nada hubiera ocurrido: se había acabado el pan negro, la boca seguía vacía y el estómago también. Nada, sino el hambre que volvía en el acto (SEMPRÚN, 1995, p.219).

Estudos afirmam que a ração dos campos tinha menos de 200 calorias;

calcula-se que, com uma dieta dessa e sem se esforçar fisicamente, uma

pessoa consiga viver no máximo oito meses. Porém, muitos prisioneiros

ultrapassaram os limites da ciência, sobreviveram mais do que o previsto

simbolizando a resistência além do limite. Devido a fome e a falta de vitaminas

muitos sofriam de pelagra, ou também conhecida como a doença dos 3 D’s,

que consistia primeiro no surgimento de uma inflamação na pele, a dermatite, e

recorrentemente, a diarréia e a demência. O poeta russo, Varlam Chamalov em

A luva (2003), descreve essa doença que atingia a pele e a despedaçava: “Era

curioso ver a própria pele soltar-se da carne em placas inteiras, ver as costas

Page 52: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

42

se esfolhando, o ventre, as mãos” (apud BECKER, 2008, p.423). A pele do

homem, tecido que pela espessura e consistência diferencia-se do animal, era

o primeiro elemento que no campo fragmentava-se devido à flacidez e às

inflamações, colocando-o na fronteira da animalização.

A distribuição de comida era outro ato de tortura. Muitas vezes o guarda

derramava, propositalmente, a sopa no chão, fazendo com que o faminto

deportado ficasse de quatro patas e rastejasse para lamber, utilizando a mão

como colher. Além de bestializá-lo, pondo-o em condição submissa de animal

selvagem, feria sua dignidade de homem. A tortura do corpo também ocorria

durante o trabalho nas pedreiras. Com a ausência de ferramentas todos os

procedimentos de cavação, retirada de árvores e mineração eram realizados

usando a força física dos prisioneiros. A falta de talheres era também uma

forma de torturar. Levi relata-nos que comer a sopa sem a colher era outro

suplício, o mesmo denuncia que após a libertação, foram encontradas nos

depósitos nazistas milhares de colheres de todos os tipos, o que revela que a

falta não se tratava de uma questão econômica, mas, de mais um recurso de

humilhação:

A mesma sensação debilitante de impotência e de destituição era provocada, nos primeiros dias de confinamento, pela falta de uma colher: é este um detalhe que pode parecer marginal a quem está habituado desde a infância à abundância de apetrechos de que dispõe até a mais pobre das cozinhas, mas marginal não era. Sem colher, a sopa cotidiana não podia ser consumida senão sorvendo-a como fazem os cães (LEVI, 1990, p.69).

A abstinência de comida imposta aos presos causou-lhes sérios

distúrbios, muitos, mesmo depois da libertação, morreram por causa da

comida, não da sua falta, mas do seu excesso. Semprún conta a história de

Morales, ex-companheiro de Buchenwald, descrito como bravo combatente,

sobrevivente de vários perigos, inclusive os do campo, que por alimentar-se

adequadamente após liberto sofreu um desajuste intestinal que o levou à

morte. Sobre a morte do amigo o escritor registra o fato com uma expressão

irônica e hiperbólica “no hay derecho, morirse tontamente de cagalera, tras

tantas ocasiones de morir empuñando las armas” (1995, p.207). O autor

indignado com a morte do companheiro alude a esse momento para mostrar

Page 53: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

43

que mesmo depois de libertos, muitos padeciam com enfermidades oriundas

dos maus tratos dos campos:

Cuando se le ofrecía otra vez la ocasión de morir empuñando las armas, en la guerrilla anti-franquista, en España, como testimonio de libertad, precisamente, era estúpido morir de una disentería fulminante provocada por una alimentación que de repente se había vuelto demasiado abundante para su organismo debilitado (1995, p.208).

Dentre todas as táticas de profanação usadas pelos SS a tortura era

uma das mais brutais, tanto as físicas como as psicológicas visavam à

completa aniquilação do sujeito através do sofrimento. Na maioria das vezes

eram utilizadas para conseguirem informações sobre os inimigos, como nomes,

refúgios e planos do adversário. Muitos presos, apesar das dores indizíveis,

suportavam e não entregavam seus companheiros, mesmo que isso lhes

custasse a vida; mas, outros confessavam e sofriam ainda mais por delatar

segredos que faziam parte de sua existência. A tortura, abrupta e

simplesmente, dilacerava o ser deixando-lhe marcas visíveis no corpo para que

fossem sempre rememoradas. Para Ivete Keil (2004), a tortura causa a ruptura

do sujeito, pois o seu corpo é invadido e torturado por outro corpo, o que rompe

a sua relação com as outras pessoas e consigo mesmo. Conforme a ensaísta

coloca: “o corpo torturado é lugar de ruptura, da mais radical estranheza, mas

é, sobretudo, lugar de encontro com o mal” (KEIL, 2004, p.58).

O corpo aniquilado pela tortura produz em si um mundo permeado pelo

medo e pela dor, no qual existe apenas a imagem do torturador e do torturado.

Dicotomia que encena a ação do poder com suas tecnologias, estratégias e

instrumentos para infligir a dor, como uma repressão necessária e legitimada a

fim de propósitos de instauração da ordem ou da manutenção da mesma. Para

a autora, “o discurso do poder penetra em toda a sociedade, e cada indivíduo

passa a ser o seu próprio torturador e o torturador de seu próximo” (KEIL,

2004, p.59), refletindo que é através da tortura que o poder se mostra.

A tortura, como um dos instrumentos do poder, sempre existiu nas

sociedades, prescrevendo no corpo do prisioneiro as punições. O corpo torna-

se alvo por ser o ponto de percepção sócio-cultural de sua existência, que

Page 54: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

44

encena uma metáfora viva de agregar em si sinais de uma essência e de uma

identidade. É por isto que o sofrimento se dimensiona mais intenso. O corpo

invadido pela dor, abala-se e aniquila-se, lentamente, pois fragmenta suas

estruturas físicas e psicológicas, causando o deterioração total.

Para Mario Fleig (2004) a dor corporal é aquela provocada pela lesão

dos tecidos, algo que fere o físico, enquanto que a dor psíquica é oriunda de

um rompimento do laço íntimo com a imagem de si mesmo, a partir do

momento que a pessoa não se reconhece mais naquela imagem desfigurada

de seu corpo. É através da dor que conhecemos nosso corpo, as suas queixas

denunciam a presença de estímulos prejudiciais; entrar em contato com a dor é

“um caminho de se experimentar e de se conhecer, sentir a densidade da

existência, de si mesmo e do outro” (FLEIG, 2004, p.134).

Jorge Semprún, ao relatar as torturas que sofreu, demonstra que as

dores que dilaceravam suas entranhas e seu íntimo, fizeram-lhe conhecer a

autoridade do seu corpo, sua importância e a sua ligação com ele. Pois,

mediante a dor paulatina da tortura, seu corpo pedia-lhe para que confessasse,

como o descreve através de imagens metafóricas e sinestésicas que revelam o

estranhamento e o subterrâneo que ocasiona a tortura ao travar uma luta

interior para separar o narrador-personagem de seu próprio corpo:

Había descubierto mi cuerpo de nuevo, su realidad por sí misma, su opacidad, también su autonomía en sublevación, a los diecinueve años en Auxerre, en un chalet de la Gestapo, en el transcurso de los interrogatorios. De repente mi cuerpo se volvía problemático, se despegaba de mí, vivía de esta separación, para sí, contra mí, en la agonía del dolor. Los esbirros de Haas, el jefe de la Gestapo local, me colgaban en el aire, con los brazos estirados hacia atrás y las manos sujetas en la espalda por unas esposas. Me sumergían la cabeza en el agua de bañera, que ensuciaban deliberadamente con desperdicios y excrementos. (SEMPRÚN, 1995, p.126).

O autor expõe que para sobreviver às torturas era necessário romper

com o corpo para não sucumbir nas suas súplicas, e esse suplício e

rompimento era cotidiano, pois viver nos campos nazi era o mesmo que

sobreviver aos mesmos maus tratos para estar pronto para outros sofrimentos.

Esse processo de ruptura entre o sujeito e o seu corpo frente às torturas

Page 55: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

45

cotidianas do Lager, foi o modo de sobrevivência encontrado por muitos.

Todavia, muitos ficaram com seqüelas corporais e mentais, marcas que

singularizam a condição fragmentada desse indivíduo sobrevivente do

Holocausto.

Segundo Selligmann-Silva e Nestrovski (2000), a palavra holocausto6,

que em grego significa “oferenda sacrifical”, designa a barbárie nazista também

conhecida como “catástrofe”, que em grego quer dizer “virada para baixo”,

“desabamento”, ou “desastre” (2000, p.8), ou podendo ser substituída pela

palavra hebraica, Shoah, que têm o mesmo sentido e é mais apta ao contexto.

Todas elas remetem ao horror do campo nazista e às seqüelas deixadas por

ele mesmo depois do fim da guerra. Após ter atravessado a catástrofe e, ao

mesmo tempo, ter sido atravessado por ela, o sobrevivente traz em si cicatrizes

que se manifestam através de traumas, conduzindo-o sempre para o passado

aterrorizante dos campos. Com a vida “virada para baixo”, o sobrevivente

torna-se um outro, um desconhecido, regressa com traumas e esvaziado de

identificação, pois, conforme explica o psiquiatra mexicano Nestor Braunstein

(2002):

O trauma corta a vida em duas partes: antes e depois. Só que aquele que se foi não é o mesmo de antes. Um morreu; outro ficou em seu lugar (apud OLMI, 2006, p.38).

Semprún explica que após a libertação sentia-se um outro, ao ponto de

comparar-se a um fantasma por ter atravessado e vivido tantas morte. Como

se ele próprio fosse uma assombração que saiu do túmulo, o que causava

espanto em quem o mirava, escreve:

He comprendido de repente que tenían razón esos militares para asustarse, para evitar mi mirada. Pues no había realmente sobrevivido a la muerte, no la había evitado. No me había librado de ella. La había recorrido, más bien, de una punta a otra. Había recorrido sus caminos, me había perdido en ellos y me había vuelto a encontrar, comarca inmensa donde chorrea la ausencia. Yo era un aparecido, en suma. Siempre asustan los aparecidos (1995, p.27).

6 Estima-se, aproximadamente, que dezoito milhões de pessoas foram exterminadas no holocausto, o número de mortos divide-se em seis milhões de judeus e doze milhões de não-judeus.

Page 56: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

46

Sobre o trauma deixado nos sobreviventes do Holocausto, Jeanne Marie

Gagnebin (2006) reflete que ele é a “ferida aberta na alma, ou no corpo, por

acontecimentos violentos, recalcados ou não” (2006, p.110), os quais não

conseguem ser elaborados pela linguagem. A autora conclui que “depois das

duas Guerras Mundiais e, sobretudo, depois da Shoah, a temática do trauma

torna-se predominante na reflexão sobre a memória” (GAGNEBIN, 2006,

p.110) [itálico da autora].

Para o sobrevivente do Holocausto, Jorge Semprún, o trauma

simbolizava a cicatriz indelével, os resquícios da violência que marcou o seu

corpo e sua memória. A qualquer momento, mesmo depois de liberto, ele se

sufocava com as lembranças das imagens, os sons e o odor do campo,

provocando distúrbios psíquicos oriundos de sua experiência inscrita na

memória, provocando-lhe o subterrâneo dos campos. Mario Fleig explica que:

“Além da dor física há a dor que se origina no íntimo e da qual não há como

fugir, pois invade os pensamentos, os sonos, as imagens e o próprio corpo”

(2004, p.134).

Semprún narra que em seus sonhos suscitavam sempre imagens de

Buchenwald, permeadas por neves e fumaças. Imagens embaçadas e

cinzentas que metaforizam a nebulosidade existente em sua vida após a

liberdade, como se o espaço do campo fosse algo impenetrável, ou algo que o

escritor não quisesse penetrar, deixando-o velado pela neblina da dor. Alfredo

Bosi, em O ser e o tempo da poesia (2004), explica que a experiência da

imagem é anterior à palavra e fica enraizada no corpo; o olho, por ser “o mais

espiritual dos sentidos” (p.24), captura “o objeto sem tocá-lo, degustá-lo,

cheirá-lo, degluti-lo” (p.24) e constrói a imagem por semelhanças e analogias.

Na narrativa, a construção imagética do campo ocorre por analogias opacas

que plasmam a obscuridade que permeia o sujeito ao não conseguir mais

reconhecer-se depois do trauma e que transita entre a incompreensão, a

dúvida e a tristeza. Após quase um mês de liberto, Semprún é surpreendido

por um conjunto de imagens antitéticas que o fazem retornar para o passado

sombrio da morte e com uma expressiva prosa poética descreve a vertigem

que provocam as lembranças:

Page 57: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

47

Una especie de vértigo me arrastró consigo en el recuerdo de la nieve en el Ettersberg. La nieve y el humo en el Ettersberg. Un vértigo perfectamente sereno, lúcido hasta el desgarramiento. Me sentía flotar en el futuro de ese recuerdo. Siempre había ese recuerdo, esa soledad: esta nieve en todos los soles, este humo en todas las primaveras (SEMPRÚN, 1995, p.156)

As antíteses “nieve” e “soles”, “humo” e “primaveras”, encenam a

dicotomia do narrador-personagem, que mesmo liberto, encontrava-se preso

em Buchenwald, representando os paradoxos que perfilam em sua vida, como:

vida e morte, lembrança e esquecimento, escrita e silêncio, todas elas

formando uma organização imagética que tangencia entre a luz da libertação e

a escuridão da morte, um jogo lusco-fusco que o persegue constantemente.

Segundo Bosi, “a imagem amada e a temida tendem a perpetuar-se:

virará ídolo ou tabu e a sua forma nos ronda como doce ou pungente

obsessão” (2004, p.20). Em outro trecho literário, Semprún retrata a

perpetuação da imagem defumada dos campos, que quinze anos depois de

regressar à “vida”, mesmo com todas as tentativas de esquecimento e

distanciamento da morte, eram involuntariamente evocadas em seus sonhos,

causando-lhe profundo mal-estar. Através de figuras oníricas mesclam-se as

imagens opacas do Lager e a do período em que ele foi repatriado. As

bandeiras brancas e a data citada fazem analogia ao 1º de maio de 1945, dia

do trabalhador e dia que os sobreviventes desfilaram na praça central de Paris.

Esta data marcou a memória do narrador, pois foi neste dia que ele sentiu pela

primeira vez a vertigem em rememorar os dias de prisão. Em meio à

festividade da data e da alegria do regresso, ele sentiu que apesar de estar na

França, seus pensamentos continuavam permeados pela neve e pela fumaça

de Buchenwald:

Una noche, de repente, tras una dilatada semana de relatos de estas características, se puso a nevar en mi sueño. La nieve de antaño: nieve profunda sobre el bosque de hayas que rodeaba el campo, deslumbrante en la luz de los reflectores. Tormenta de nieve sobre las banderas del 1 de mayo, a la vuelta, perturbador recuerdo del horror y del valor. La nieve de la memoria, por primera vez desde hacía quince años (SEMPRÚN, 1995, p.259).

Page 58: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

48

Acerca da imagem suscitada pelo sonho ou pela reminiscência, poderia

ser explicada nos termos de Alfredo Bosi:

A imagem, fantasma, ora dói, ora consola, persegue sempre, não se dá jamais de todo. A aparência, desde que vira semelhança, sela a morte da unidade (2004, p.21).

Outra imagem que persistia em sua lembrança é a que se refere a

experiência permanente de conviver com os corpos desfigurados e com os

cadáveres de companheiros amontoados no pátio dos campos. O choque

visual pelo espetáculo do cadáver ou do corpo desmembrado projetava no

preso a antecipação do futuro de seu próprio corpo. O corpo nu, da mesma

maneira, figurava a imagem do corpo profanado, violado pelo outro e

desnudado de identificação. As imagens dos cadáveres denunciam a

grandiosidade do horror nos campos, impactando o expectador.

O modo pelo qual Semprún descreve os corpos, com os olhos

arregalados e os corpos retorcidos, numa cadeia de metáforas descritivas

reflete a agonia e o pavor desses prisioneiros na hora da morte

Los cuerpos descarnados, cubiertos de harapos, yacían estirados en los tres niveles superpuestos de los camastros. Estaban imbricados unos dentro de otros, a veces petrificados en una inmovilidad aterradora […]. No quedaban supervivientes en aquel barracón del Campo Pequeño. Con los ojos abiertos de par en par, desmesuradamente abiertos al horror del mundo, las miradas dilatadas, impenetrable, acusadoras, eran ojos apagados, miradas muertas (SEMPRÚN, 1995, p.39).

Essas imagens abjetas figuram todo o horror que circunscrevia

Buchenwald; suscitam o desespero e lembram sempre a barbárie; elas dizem

por si próprias e singularizam de modo explícito a dessacralização do corpo

nos campos. A forma como ficavam expostos chocava qualquer um que as

visualizasse, como se houvesse uma identificação e uma compaixão por

aquele monte de cadáveres desconhecidos.

Há dois trechos que mostram o choque visual dessas imagens e as

reações suscitadas no expectador, registradas numa série de imagens

sinestésicas. O primeiro trecho relata o momento que Semprún mostra as

Page 59: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

49

imagens para militares femininas que queriam conhecer o interior do campo.

Ele não explica nada sobre o cotidiano concentracionário, apenas expõe, e

espera que as mesmas elaborem suas opiniões. No segundo, as imagens

funestas são mostradas para um soldado, que ao visualizá-las fica transtornado

e busca um consolo em orações, como podemos verificar abaixo:

Casi no les hablaba. Les nombraba sencillamente las cosas, sin comentarios. Era necesario que vieran, que trataran de imaginar. Después las hice salir del crematorio, al patio interior rodeado de una alta empalizada. Una vez ahí, ya no dije nada, nada en absoluto. Las dejé que vieran. Había, en medio del patio, un amasijo de cadáveres que superaba con mucho los tres metros de altura. Un amasijo de esqueletos macilentos, torsionados, con ojos de espanto (SEMPRÚN, 1995, p.137). […] me había fijado en un jovencísimo soldado americano. Su mirada, dilatada por el horror, estaba clavada sobre el montón de cadáveres que se apilaban a la entrada del edificio de los hornos. Un montón de cuerpos descarnados, macilentos, torcidos, de huesos puntiagudos bajo la piel áspera y tensa, de ojos desorbitados. Había observado la mirada despavorida, sublevada, del joven soldado americano, cuyos labios habían empezado a temblar. De repente, a unos pasos de distancia, le había oído susurrar. En voz baja pero clara, en español, se había puesto a rezar. “Padre nuestro que estás en los cielos…” (SEMPRÚN, 1995, p.117).

As imagens abjetas das montanhas de corpos causavam desconforto

em quem as observava, como se a partir da visualização do cadáver fosse

projetado na mente do observador a imagem de seu próprio corpo, pois,

conscientizava-se de sua finitude e compreendia que o mesmo corpo,

constantemente cuidado e adornado, teria num futuro, próximo ou não, a

mesma figura esquelética dos cadáveres vistos. Além da visão, a audição de

grande parte dos prisioneiros ficou com seqüelas. Muitos despertavam durante

o sono com vibrações sonoras referentes aos campos; a audição saturava-se

com os gritos desesperados dos companheiros, com latidos de cães e com as

vozes dos soldados nazistas.

Semprún retrata em vários momentos o seu despertar traumático com as

vozes dos SS dando ordens, o que retornava-lhe a impressão de ainda estar

no campo e que, o sonho invadido pelas vozes alemães, era a sua verdadeira

Page 60: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

50

realidade. Todas as vezes que o narrador-personagem rememorava esses

sons, um imenso vazio lhe sufocava, ao ponto de sentir-se sozinho e perdido,

indo ao encontro, no meio da madrugada, de alguma fugacidade que

apaziguasse por alguns instantes sua dor. Sua amiga de faculdade, Claude-

Edmonde Magny, era seu apoio e lhe ajudava sempre que era solicitada sua

solidariedade. Jorge Semprún explica que a procurava porque ela não

incomodava-lhe com perguntas sobre os campos e não o submergia em seu

passado de horror, apenas o acolhia.

Ao descrever as vozes nazistas em seus sonhos, o escritor as constroe

com atributos que refletem a brutalidade dos soldados; eram vozes altivas e de

dominação que ditavam as regras e as verdades dentro do campo. Faz uso

também de paralelismos sintáticos como: “que jamás había salido de allí”, “que

jamás saldría de allí”, para enfatizar a constante presença do campo em sua

vida pós-campo. As reiterações do advérbio “allí” denotam a proximidade

espacial de Buchenwald na memória do narrador mesmo com o passar dos

anos, pois para ele, sua existência era uma incógnita.

Me desperté sobresaltado a las dos de la madrugada […]. “Krematorium, ausmachen!”, decía la voz alemana. “¡Crematorio, apaguen!” Una voz sorda, irritada, imperativa, que resonaba en mi sueño y que, curiosamente, en vez de hacerme comprender que estaba soñando, como suele ocurrir en los casos semejantes, me hacía creer que por fin me había despertado, otra vez – o todavía, o para siempre – en la realidad de Buchenwald: que jamás había salido de allí, a pesar de las apariencias, que jamás saldría de allí, a pesar de los simulacros y melindres de la existencia (SEMPRÚN, 1995, p.169).

Dentre todas as agressões sensoriais, as que se direcionavam as

sensações olfativas são as mais intensas no decorrer da narrativa

sempruniana. Os odores de Buchenwald recorrentemente ressurgiam na

lembrança, o que lhe suscitava muito temor, pois, a maioria dos cheiros,

configurava o “odor da morte”. Certos odores causavam-lhe atitudes de raiva,

como os dos soldados que circulavam diariamente ao aludir à presença

imperativa do poder nazista. O cheiro espalhado pelos nazistas é representado

na obra por uma serie de imagens metonímicas pelo odor dos objetos que os

mesmos usavam: “olor a cuero y a colonia de los Sturmführer SS” (SEMPRÚN,

Page 61: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

51

1995, p.55). O cheiro da fumaça do crematório para o narrador era um cheiro

indescritível, pois, somente quem o sentiu, conheceu a sua verdadeira

essência, era um cheiro de carne queimada, que segundo Semprún, espantou

até mesmo os pássaros que sobrevoavam Buchenwald. Era um odor “dulzón,

insinuante, com tufos acres, propriamente nauseabundo” (1995, p.18),

descrição do escritor que denota a estranheza desse odor que lhe invadia a

qualquer momento, como notamos na narração abaixo:

Bastaría con cerrar de los ojos, aún hoy. Bastaría no con un esfuerzo, sino todo lo contrario, bastaría con una distracción de la memoria, atiborrada de futilidades, de dichas insignificantes, para que reapareciera. Bastaría con distraerse de la opacidad irisada de las cosas de la vida. Un breve momento bastaría, en cualquier momento. […] Bastaría con un instante de autentica distracción de propio ser, del prójimo, del mundo: instante de no-deseo, de quietud de más acá de la vida, en el podría aflorar la verdad de ese acontecimiento antiguo, originario, donde flotaría el extraño olor sobre la colina del Etterberg, patria extranjera a la que siempre acabo volviendo (SEMPRÚN, 1995, p.18).

A palavra “bastaría” nesse trecho é reiterada seis vezes, destacando,

através do uso de anáforas a invasão involuntária do odor e a sua presença na

memória do narrador-personagem; desvela, além da involuntariedade do odor,

a saturação que essa invasão lhe causou. Ao repetir “bastaría... bastaría…

bastaría...”, denota-se o cansaço de alguém que não tinha paz, que a todo o

momento era fisgado pela dor que nunca tinha fim. Acerca do constante odor

ele continua: “El extraño olor surgiria en el acto en la realidad de la memória.

Renacería en él, moriría por revivir en él. Me abriría, permeable, al olor a limo

de ese estuario de muerte, mareante” (SEMPRÚN, 1995, p.18). Percebemos

no texto que o sujeito narrativo é permeado de modo reiterado pelo odor, pois o

prefixo “re” representa a persistência do odor e a fragmentação que produzia.

Para o sobrevivente o odor do crematório personificava a morte, porém, outros

odores a identificavam, como o cheiro de putrefação dos cadáveres e o do

desfalecimento do corpo em fezes, devido às intermináveis diarréias que

sinalizavam a proximidade do fim de algum companheiro.

Jorge Semprún ao narrar o episódio em que visitava Maurice

Halbwachs, - renomado filósofo que além de companheiro de infortúnio no

Page 62: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

52

campo, foi professor de Semprún antes de ambos serem capturados -,

reconhece a chegada da morte de Maurice pelo cheiro que emanava dele. Era

o sinal da decomposição de seu corpo, resultante das fortes disenterias, o que

refletia sua debilidade corporal. O forte odor metaforiza os efeitos corrosivos da

morte, que de modo análogo ao de uma planta carnívora, devora as entranhas

do ser. Entretanto, diferentemente da maioria das plantas, essa exala o odor

repugnante e obsessivo da morte que ao nascer no ser o destrói:

Lo tomé entre mis brazos, acerqué mi rostro al suyo, quedé sumergido por el olor fétido, fecal, de la muerte que crecía dentro de él como una planta carnívora, flor venenosa, deslumbrante podredumbre (SEMPRÚN, 1995, p.55).

Adorno e Horckheimer (1985) afirmam que de todos os sentidos, o ato

de cheirar é o mais atrativo e o que mais proporciona a identificação entre os

seres, pois, “ao ver, a gente permanece quem a gente é, ao cheirar, a gente se

deixa absorver” (1985, p.172). Contudo, com Semprún os cheiros eram o

paradoxo da vida, pois ao sentir os odores mortais do campo identificava-se

com eles por configurarem as mortes de seus companheiros: “El tiempo pasó,

Halbwachs estaba muerto. Yo había vivido la muerte de Halbwachs” (1995,

p.57). É dessa maneira que o odor da morte foi absorvido por Semprún,

impregnando seus pulmões e seu cérebro, eternamente.

Através da narrativa sempruniana, em La escritura o la vida (1995),

podemos sentir, quase vivenciar na pele, o que foi feito ao homem e ao seu

corpo nos campos nazi, em prol de uma ideologia doentia e perversa. O corpo

dessacralizado no Holocausto regressa prenhe de cicatrizes. O trauma é essa

cicatriz que não some. Fica ali presente, mesmo pertencendo ao passado.

Assim como Ulisses é reconhecido pela criada através da cicatriz que têm na

perna, o sobrevivente dos campos é reconhecido pelas cicatrizes que traz na

memória, após liberto. Nem todas são visíveis, mas estão em seu corpo

encenando o sinal de reconhecimento de uma existência cindida pelo trauma.

Traumas que manifestam-se nos sonhos, na casualidade do cotidiano, nas

reminiscências da memória, através de imagens, sons e odores que levam o

escritor para o passado da morte, da dor e do horror. Para Freud, as

constantes repetições que permeiam o traumatizado, é devido ao fato de que

Page 63: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

53

“a história do trauma, é a história de um choque violento, mas também de um

desencontro com o real” (apud SELLIGMAN-SILVA, 2005, p.49).

O corpo nos campos foi banalmente dessacralizado, torturado, ferido,

massacrado, para reduzi-lo, subjugá-lo, profaná-lo, desfigurá-lo, e deixá-lo com

cicatrizes que nunca cessaram de doer. Jorge Semprún é esse sujeito que

volta com marcas no corpo e fragmentado pela violência nos campos. Sua vida

após regressar da morte, é um doloroso e permanente rememorar; torna-se um

assombrado, um desconhecido para si próprio. Encontra-se preso no nebuloso

passado do campo e apesar da sua “libertação”, a morte não termina, tal como

uma cicatriz que fica inscrita no corpo, na memória, e consequentemente, na

sua arte.

Page 64: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

54

2.2. Imagens metafóricas: intertextos, elipses, ana cronias. A

representação fragmentada da catástrofe em La escritura o la vida

Conforme dito, no decorrer do nosso trabalho, verificaremos quais os

recursos estéticos utilizados por Jorge Semprún para plasmar a verdade

essencial do horror em La escritura o la vida (1995), considerando sua forma e

seu conteúdo como um conjunto mediador da barbárie dos campos de

concentração nazistas. No que concerne à estrutura observamos que a versão

em espanhol, possui trezentas e trinta páginas e está dividida em três partes. A

primeira está organizada em cinco capítulos, a segunda, dois e a terceira, três.

Os capítulos são nomeados sequencialmente em: 1. La mirada; 2. El Kaddish;

3. La línea blanca; 4. El teniente Rosenfeld; 5. La trompeta de Louis Armstrong;

6. El poder de escribir; 7. El paraguas de Bakunin; 8. El día de la muerte de

Primo Levi; 9. Oh estaciones, oh castillos… ; 10. Retorno a Weimar.

Refletiremos acerca de algumas cenas de alguns capítulos, no intuito de

demonstrar a questão acima problematizada, é pertinente ressaltar que nessa

narrativa não há uma seqüência cronológica entre os capítulos, tampouco,

linearidade narrativa entre os episódios, o que denota inicialmente aspectos

importantes a serem analisados sobre a estruturação da obra em questão. A

desconexão linear é figurada mediante o uso de anacronias, que segundo

Gérard Genette, em Discurso da Narrativa (1979), são as rupturas temporais

que ocorrem no decorrer da narrativa. Essas mudanças anacrônicas são

constituídas pela prolepse e pela analepse, sendo a primeira na concepção de

Genette:

Toda manobra consistindo em contar ou evocar de antemão um acontecimento ulterior e, por analepse, toda ulterior evocação de um acontecimento anterior ao ponto da historia em que se está (GENETTE, 1979, p.38).

Logo no primeiro capítulo, La mirada, notamos o caráter emblemático da

obra, pois, ao invés do narrador-personagem começá-la seguindo as ordens

cronológicas dos fatos, ele inverte o tempo. O impacto da mirada de uns olhos

azuis devolve intempestivamente as imagens da vivência no campo. Começa

Page 65: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

55

com a lembrança das humilhações sofridas no momento de sua libertação, e

todo um acúmulo de experiências retornam a sua memória, o que denota que a

organização da narração não se dá pelo tempo cronológico, mas pelo da

memória. A narrativa, cronologicamente, inicia-se com a chegada, em doze de

abril de 1945, dos soldados norte-americanos no campo de Buchenwald para

evacuá-lo e repatriar os sobreviventes. Contudo, os soldados se chocaram com

as imagens desfiguradas dos prisioneiros e evitavam olhar diretamente para

eles. Incômodo tanto para quem observava, como para os que eram

observados, devido ao fato de que muitos presos não dimensionavam o estado

deplorável de seus corpos.

Semprún sentiu-se interrogado com os olhares de espanto dos soldados,

sua imagem refletida na retina de outrem espelhou a monstruosidade de sua

condição subumana, conforme narra: “están delante de mí, abriendo los ojos

enormemente, y yo me veo de golpe en esa mirada de espanto: en su pavor.

Desde hacía dos años, yo vivía sin rostro. No hay espejos en Buchenwald”

(1995, p.15). O narrador-personagem explica que durante os banhos ele via a

deformação paulatina de seu corpo pela “su delgadez creciente” (p.15), com

“ningún rostro, sobre ese cuerpo irrisório. Con la mano, a veces, reseguía el

perfil de las cejas, los pómulos prominentes, las mejillas hundidas” (p.15).

Apesar de notar a sua desfiguração corporal e sentir a transformação de sua

face, foi o pavor espelhado nos olhares dos soldados que o fez compreender o

seu estado.

Na descrição desse episódio inicial o narrador não usa o tempo pretérito,

e sim verbos no presente do indicativo, como se o fato ocorresse

paralelamente à narração, evidenciando que o choque visual entre o narrador e

os militares mantém uma proximidade em sua memória e em seu presente.

Para os soldados havia uma opacidade nas imagens que os impossibilitava de

defini-las como humanas, ao ponto do próprio narrador-personagem não se

reconhecer no seu reflexo. O não reconhecimento configura a ruptura da

identidade do narrador que se torna um outro após a libertação; a narração no

presente, mostra que essa ruptura ainda persiste no momento da escritura,

quase cinqüenta anos depois do fim dos campos nazis.

O narrador-personagem, como um meio de compreender a perplexidade

dos soldados, inicia um diálogo com os mesmos. Entretanto, no devaneio do

Page 66: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

56

encontro, percebem a estranheza do silêncio, pois nem os pássaros se ouvem

cantar. Semprún conta aos soldados que a ausência de pássaros é devido ao

cheiro da carne queimada e da fumaça dos crematórios que os espantou ou os

exterminou: “se sobresaltan, se miran unos a otros. Con un malestar casi

palpable. Una especie de hipido, de náusea” (p.17). A partir dessa cena, há

uma suspensão narrativa e mediante o uso da analepse, o narrador divaga

sobre o “extraño olor” de Buchenwald e o seu constante reaparecimento na sua

memória. Nesse momento, o narrador volta a nove dias anteriores ao dia

12/04, para explicar que os deportados sabiam da derrota de Hitler antes

mesmo da chegada da tropa aliada, e que os soldados nazistas planejavam a

aniquilação total dos presos antes da liberação, porém, devido à vinda da

tropa, não conseguiram executar. Há um corte narrativo, que traz o narrador-

personagem de volta para o presente da narrativa acerca da liberação, que

com base na concepção de Gérard Genette, em Discurso da narrativa (1979),

trata-se da narrativa primeira, a qual possui vários episódios subordinados a

ela, que serão perfilados no decorrer da narrativa pelas anacronias. O narrador

chama a atenção do leitor sobre o corte narrativo:

No voy a contar nuestras vidas, no tengo tiempo. Por lo menos, no el de entrar en los pormenores, que constituyen la sal del relato. Pues los tres oficiales con uniforme británico están ahí, plantados delante de mí, con los ojos desorbitados (SEMPRÚN, 1995, p.20).

O uso do advérbio de lugar “ahí” denota a presença desse episódio na

memória do narrador, o que faz com que ele regresse de suas divagações e

continue a narração. Essa cena, apesar do estranhamento pelo confronto

visual entre Semprún e os soldados, é crucial para o personagem, pois, trata-

se de um dia que para ele foi, simultaneamente, sonhado e considerado como

impossível: o dia da liberação.

Sobrevivir, sencillamente, incluso despojado, mermado, deshecho, ya habría constituido un sueño un poco disparatado. Nadie se habría atrevido a soñar eso, es verdad. No obstante, de repente era como un sueño: era verdad (SEMPRÚN, 1995, p.22).

Page 67: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

57

Há uma euforia por parte do narrador ao descrever a lembrança do dia

12/04, pois, após passar durante dois anos por inúmeras torturas físicas e

psicológicas, ele tinha conseguido sobreviver: “yo reía, me daba risa estar vivo”

(p.22). Mesmo invadido pela alegria da sobrevivência, o espanto e o

desconforto dos olhares dos soldados, continuava a lhe intrigar:

Están a unos pasos de mí, silenciosos. Evitan a mirarme. Hay uno que tiene la boca seca, se le nota. El segundo tiene un tic nervioso en el párpado. En cuanto al francés, está buscando algo en el bolsillo de su guerrera militar, cosa que lo permite desviar la mirada (SEMPRÚN, 1995, p.22).

A cena que remete aos oficiais da tropa aliada é reiterada no decorrer da

narrativa, suspendendo outros episódios tanto posteriores, quanto anteriores a

ela, não havendo um desfecho para a mesma, ficando suspensa, tal como ficou

na memória do narrador. Sua (re)tomada narrativa, bem como, sua construção

no presente do indicativo, recupera uma sensação que apesar de pertencer ao

passado, é ao mesmo tempo, constante e presente. Afirma Alfredo Bosi (2004),

que a “partícula re vale não só para indicar que algo se refaz, mas também

para dar maior efeito de presença à imagem, e conduzi-la à plenitude” (p.42), o

que (re)significa a proporção traumática dessa experiência para Semprún e a

impossibilidade de esquecê-la. Afinal, os soldados norte-americanos foram as

primeiras pessoas, fora de Buchenwald, vistas por Semprún, sendo também,

os primeiros que viram a sua condição de desmoralização.

Desse modo, o narrador-personagem relembra a exposição de seu

corpo desfigurada e o seu reflexo perturbador nos olhares dos soldados que

encena o desconforto e a vergonha existente em sua memória. Na concepção

de Bosi, o ato de reiterar representa uma operação dupla que perfila entre o

progressivo-regressivo e vice-versa, operação essa, existente na narrativa

sempruniana, que ondeia entre idas e vindas anacrônicas, representando o

trauma deixado por esse episódio. Pois, reflete Bosi, “as exigências da situação

em que age ou sofre o sujeito regem também o andamento da elocução” (2004,

p.82) [itálico do autor].

Além do estranhamento da exposição, as miradas dos oficiais, mediante

a prolepse, projetam outros questionamentos ao sobrevivente que concernem

Page 68: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

58

no contar ou não contar sua experiência após a saída do campo, já que o terror

nos olhares, mostrou à Semprún a dificuldade de encontrar ouvintes para o

relato de tantas mortes e sofrimentos:

¿Pero puede oírse todo, imaginarse todo? ¿Podrá hacerse alguna vez? ¿Tendrán la paciencia, la pasión, la compasión, el rigor necesarios? La duda me asalta desde este primer momento, este primer encuentro con unos hombres de antes, de afuera – procedentes de la vida -, viendo la mirada espantada, casi hostil, desconfiada al menos, de los tres oficiales (SEMPRÚN, 1995, p.26).

Tais questionamentos fizeram com que Semprún pensasse sobre o

modo que deveria contar sua experiência, e de quais estratégias narrativas

utilizaria para fazê-lo. Nesse sentido, trazemos a consideração de Valeria De

Marco, em La escritura o la vida: a impossibilidade de ver (2010), segundo a

qual o escritor-sobrevivente se adentra em aspectos que problematizam acerca

da representação do Holocausto. Confluente, De Marco explica que o fato de

Semprún defender que somente a arte é capaz de transmitir a verdade

essencial do horror dos campos, vai de encontro às correntes que entendem

ser impossível representar a barbárie por ela tocar no domínio do inefável. Para

muitos artistas e teóricos, somente no campo estético encontram-se os

artifícios ideais para a transmissibilidade da catástrofe, conforme expõe Jorge

Semprún:

No obstante, una duda me asalta sobre la posibilidad de contar. No porque la experiencia vivida es indecible. Ha sido invivible, algo de todo diferente, como se comprende sin dificultad. Algo que no atañe a la forma de un relato posible, sino a su sustancia. No a su articulación, sino a su densidad. Sólo alcanzarán esta sustancia, esta densidad transparente, aquellos que sepan convertir su testimonio en un objeto artístico, en un espacio de creación. O de recreación (SEMPRÚN, 1995, p.26).

Apesar da necessidade dos sobreviventes de narrar a traumática

experiência, eles se encontravam incapacitados, por crerem na impossibilidade

de representação da catástrofe. Para muitos, devido ao caráter de

inverosimilhança do vivenciado, a narração dessa realidade inenarrável

somente seria enfrentada através do uso da imaginação, pois, “só com a arte a

Page 69: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

59

intraduzibilidade pode ser desafiada – mas nunca totalmente submetida”

(SELIGMANN-SILVA, 2005, p.46). Em consonância, afirma Semprún:

[...] La verdad que tenemos que decir (en el supuesto de que tengamos ganas, ¡muchos son los que no las tendrán jamás!) no resulta fácilmente creíble… Resulta incluso inimaginable… […] - ¿Cómo contar una historia poco creíble, cómo suscitar la imaginación de lo inimaginable si no es elaborando, trabajando la realidad, poniéndola en perspectiva? ¡Pues con un poco de artificio! (SEMPRÚN, 1995, p.140-141).

Os que sobreviveram ficaram com feridas impossíveis de serem

assimiladas pela linguagem. Pôr o Holocausto em perspectiva é um processo

que não se dá sem tensões, justamente devido ao choque deixado por ele nos

sobreviventes. Segundo Jeanne Marie Gagnebin, em Memória, História e

Testemunho (2006), a concepção freudiana aponta que a impossibilidade de

assimilação do choque pela fala cotidiana, ocorre porque o trauma, “por

definição, fere, separa, corta ao sujeito o acesso ao simbólico, em particular, à

linguagem” (GAGNEBIN, 2006, p.51). Muitos sobreviventes regressaram

emudecidos dos campos, porque o que vivenciaram não era análogo a

nenhuma outra experiência, era algo único que a objetividade dos relatos

documentais e históricos não alcançava.

Walter Benjamin argumenta no texto Experiência e Pobreza (1996), que

a troca de experiências comunicativas está perdendo espaço no tempo

moderno; segundo ele, após tantas guerras, tragédias e desmoralizações, os

homens tornaram-se cada vez mais “pobres em experiências comunicáveis, e

não mais ricos” (p.115). Em outro texto, O narrador: considerações sobre a

obra de Nikolai Leskov (1996), Benjamin esclarece que a natureza da

verdadeira narrativa tem sempre um aspecto utilitário, que pode consistir em

um “ensinamento moral” ou “numa sugestão prática”, pois, “o narrador é um

homem que sabe dar conselhos”, contudo, ele ressalta que aconselhar alguém

na atualidade é algo defasado, porque “as experiências estão deixando de ser

comunicáveis” (1996, p.200). O próprio Jorge Semprún sabia que o seu

testemunho teria uma utilidade social, pois denunciaria o horror vivenciado, e

consequentemente,

Page 70: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

60

ao transmitir o inenarrável poderia manter viva a memória dos sem-nomes, ser fiel aos mortos que não puderam ser enterrados. [...] Tarefa altamente política: lutar contra o esquecimento e a denegação é também lutar contra a repetição do horror (que, infelizmente, se reproduz constantemente) (GAGNEBIN, 2006, p.47).

Porém, o escritor preferiu o silêncio após a libertação. Mesmo crendo

que o uso da imaginação e da arte, em certa medida, auxiliaria na composição

do seu testemunho, emudeceu-se por quase cinqüenta anos. Para ele,

escrever era reviver a sua morte e as de seus companheiros de Lager, visto

que havia penetrado e sido penetrado por ela:

He tenido una idea, de golpe – si puede llamar idea a esta bocanada de calor, tónica, a este aflujo de sangre, a este orgullo de un conocimiento del cuerpo, pertinente -, la sensación, en cualquier caso repentina, muy fuerte, no de haberme librado de la muerte, sino de haberla atravesado. De haber sido, mejor dicho, atravesado por ella. De haberla vivido, en cierto modo. De haber regresado de la muerte como quien regresa de un viaje que le ha transformado: transfigurado tal vez (SEMPRÚN, 1995, p.27).

O fato de ter atravessado a morte, fez com que o narrador-personagem

acreditasse por muitos anos na sua imortalidade. Para ele, o passar dos anos

não lhe aproximaria da morte, mas o afastaria dela. Teve sua vida cortada em

duas partes, uma se refere ao dia do seu nascimento em 10 de dezembro de

1923, e a outra, ao dia 12 de abril de 1945, que inaugura a sua mais nova

identidade, a de sobrevivente: “tal vez no me había limitado a sobrevivir

tontamente a la muerte, sino que había resucitado de ella: tal vez fuera inmortal

desde ese momento” (SEMPRÚN, 1995, p.27).

Semprún, ao afirmar que vivenciou as mortes de seus companheiros,

mostra a fraternidade existente entre os mesmos, independente de etnia e

classe social. No episódio El Kaddish, o narrador-personagem descreve a sua

busca incansável e a de seu companheiro judeu Albert para salvar um

sobrevivente após a libertação. Em uma das rondas que ambos faziam nos

interiores dos barracões de Buchenwald para encontrarem possíveis

sobreviventes, escutaram um murmúrio e procuraram entre os amontoados de

cadáveres quem pronunciava os sussurros agonizantes: “oía aquella voz

Page 71: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

61

inhumana, aquel sollozo canturreado, aquel estertor curiosamente

acompasado, aquella rapsódia del más allá” (SEMPRÚN, 1995, p.41). Após

muitas buscas, eles encontraram um judeu muito debilitado e em fase terminal

que murmurava o Kaddish, a oração dos mortos, conforme Semprún descreve:

Me inclino hacia él, le ausculto. Me parece que algo late todavía en el hueco de su pecho. Algo muy apagado y muy lejano: un rumor que se agota y se esfuma, un corazón que se para, me parece (SEMPRÚN, 1995, p.50).

Simultâneo a esse episódio, o personagem-narrador regressa a um

outro, anterior a sua entrada em Buchenwald. Conforme explicado, escritor faz

diversos usos da anacronia na composição de sua narrativa, ocasionando um

movimento de vaivém na mesma, na qual não há a preocupação com as

marcações temporais de passado, presente ou futuro. Ao leitor cabe o

reconhecimento dessas mudanças anacrônicas.

A suspensão narrativa citada se dá por intermédio de uma analepse,

pois o narrador-personagem volta a um encontro que teve com um soldado

alemão antes de ser preso. O encontro ocorreu numa floresta, enquanto ambos

eram combatentes da Segunda Guerra, porém ocupando lados opostos. O

narrador tece a descrição do soldado alemão, “era joven, era rubio. Era

absolutamente conforme a la idea de un alemán: un alemán ideal” (SEMPRÚN,

1995, p.45), e destaca a questão dos ideais de superioridade da raça ariana.

Entretanto, mesmo com a presença onipotente do soldado alemão, um fato fez

com que Semprún não conseguisse atirar nele. De repente, o soldado que

ainda não tinha percebido a presença dos inimigos ao refrescar-se num rio,

começa a cantar uma canção nostálgica para o narrador-personagem: La

paloma, o que traz à tona as lembranças de sua infância na Espanha, seu país

de origem.

De modo análogo à cena do livro Em busca do tempo perdido (2006), do

escritor Marcel Proust, o qual ao sentir o gosto do biscoito Madeleine molhado

no chá, sente aflorar, involuntariamente, a lembrança da cidade em que

passava as férias quando criança, o que suscita a emoção das recordações

ressurgindo na memória do narrador, o tempo perdido da infância e o ambiente

dessa época. Como o fio de Ariadne, a canção La paloma conduz Semprún

Page 72: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

62

para um tempo imperado pela inocência do cotidiano infantil. Inocência essa,

que o narrador-personagem transfere para o seu inimigo alemão, que assim

como ele, lutava por ideais que acreditava: “tal vez aquel joven soldado no

tuviera nada que reprocharse, nada salvo el haber nacido alemán en la época

de Adolf Hitler” (SEMPRÚN, 1995, P.46). Assim, o jovem soldado alemão “con

su hermosa voz rubia” (p.46), traz ao narrador:

La infancia, las criadas que cantan en los lavaderos, las músicas de los kioscos de música, en los parques sombreados de los lugares de veraneo, ¡La paloma! ¿Cómo no iba a sobresaltarme escuchando esa canción? […] Me está pasando La paloma, eso es todo: la infancia española que me golpea en pleno rostro (SEMPRÚN, 1995, p.46-47) [itálico do autor].

Apesar das recordações suscitadas pela canção, Semprún não poderia

deixar o alemão fugir, e ele com seu companheiro de combate, Julien, atiram

no soldado, matando-o. Infelizmente, eles eram protagonistas de uma guerra

sanguinária, na qual, um perdia para outro ganhar. Dessa maneira, a frieza

dessa constatação fez com que o narrador-personagem fosse penetrado pela

revolta: “me desmorono, hundiendo el rostro en la hierba fresca, pegando

rabiosos puñetazos sobre la roca plana que nos protegia. -¡Mierda, mierda,

mierda!” (SEMPRÚN, 1995, p.47). No desfecho desse episódio acerca da

canção, o autor faz uso de uma prolepse ao projetar uma cena ocorrida anos

depois de sua libertação. Semprún explica que o episódio do soldado que

cantava La paloma já foi narrado por ele numa outra obra sua chamada El

desvanecimiento (1967). Porém, o narrador-personagem ressalta que na obra

de 1967, ao invés de colocar o real personagem que acompanhou-lhe, que no

caso era o soldado de Borgoña chamado Julien, ele inventou um personagem

fictício chamado Hans, um alemão judeu que na narrativa “encarnaba a mis

amigos judíos reales” (SEMPRÚN, 1995, p.49).

Esse feito narrativo de Semprún mostra seu posicionamento ideológico

que como combatente da Resistência francesa acreditava na igualdade e na

fraternidade entre os homens, sendo eles judeus ou não. Ao inventar um

personagem fictício judeu após o fim do nazismo, ele evidencia que a sua luta

contra ideais de dominação continua, não mais com armas, mas com as letras:

Page 73: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

63

“Habríamos inventado a Hans, está escrito, como la imagen de nosotros mismos, la más pura, la más cercana a nuestros sueños. Habría sido alemán porque éramos internacionalistas: en cada soldado alemán liquidado en una emboscada no apuntábamos al extranjero, sino a la esencia más mortífera y más llamativa de nuestras propias burguesías, es decir, a unas relaciones sociales que tratábamos de cambiar nosotros mismos. Habría sido judío porque queríamos aniquilar cualquier opresión y el judío era, incluso pasivo, resignado incluso, la figura intolerable del oprimido…” Ese es el motivo por el que inventé a Hans, por el que lo coloqué a mi lado el día de aquel soldado alemán que cantaba La paloma (SEMPRÚN, 1995, p.50) [aspas e itálico do autor].

Outra cena que denota o comprometimento político do escritor trata-se

de uma que narra os encontros dos presos nas latrinas coletivas de

Buchenwald. Nesse espaço insalubre, eles faziam reuniões clandestinas do

grupo comunista que havia dentro do campo, e concomitantemente, trocavam

informações, folhinhas de tabaco, recordações, comida contrabandeada, risos,

qualquer gestos ou objetos que, de alguma maneira, renovassem suas

esperanças. É descrito como um espaço onde os deportados experimentavam

a liberdade. Devido o seu odor de podridão, os soldados nazistas tinham pavor

aos barracões das latrinas por receio de contrair alguma enfermidade,

singularizando o refúgio ideal das espreitas nazistas, conforme Semprún narra:

En esas letrinas colectivas, en el ambiente deletéreo donde se mezclaban las pestilencias de los orines, de las defecaciones, de los sudores malsanos y del áspero tabaco de machorka, nos encontramos, a causa y alrededor de una misma colilla compartida, de una misma impresión de irrisión, de una idéntica curiosidad combativa y fraterna (SEMPRÚN, 1995, p.53) [itálico do autor].

Ao falar sobre os cadáveres e os “mulçumanos”, o narrador busca

parâmetros de comparação para elaborar a descrição da desfiguração corporal

desses personagens. É na arte plástica que o escritor encontra as figuras

necessárias para suscitar na imaginação do leitor essas imagens humanas

inimagináveis. Mediante esse recurso, notamos uma interação entre duas artes

distintas, o que Claüs Cluver, em Inter Textus/ Inter Artes/ Inter Medias (2006),

explica como Intermidialidade. Clüver aponta que as obras de arte são

compreendidas como uma estrutura prenhe de significações, “o que faz com

que tais objetos sejam denominados ‘textos’, independente do sistema sígnico

Page 74: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

64

a que pertençam” (2006, p.15), e segue: “portanto, um balé, um soneto, um

desenho, uma sonata, um filme e uma catedral, todos figuram como ‘textos’

que se ‘lêem’” (2006, p.15). A intermidialidade propõe um estudo entre artes

que independente “dos tipos de textos e das formas de relacionamento

envolvidos” (p.14), refletem a comparação e a analogia existente nessa

relação. Para Clüver:

Quando se trata de obras que, seja lá em que forma, nas Artes Plásticas, na Música, na Dança, no Cinema, representam aspectos da realidade sensorialmente apreensível, sempre existe nos processos intertextuais de produção e recepção textual um componente intermidiático - tanto na Literatura quanto, frequentemente, nas outras artes. Aos poucos isso passa a dizer respeito a fenômenos mais abstratos, como, por exemplo, a narratividade e a critérios de forma e estilo (CLUVER, 2006, p.15).

O narrador-personagem ao buscar outros textos, doa para a sua

narrativa, - reflexo dessa relação interartes -, novos sentidos que são

absorvidos pelo leitor no ato da leitura. Processo de relação que opera

metalinguisticamente, pois, faz referência a uma linguagem anterior. Samira

Chalhub em A meta-linguagem (1998), afirma que “tratando-se de literatura

haverá sempre esse diálogo intertextual” (1998, p.52), figurado pela

metalinguagem que “é sempre um processo relacional entre linguagens” (p.52).

Assim, Semprún traz à baila na sua narrativa a possibilidade de uma leitura

intermidiática, que através do uso de analogias entre artes distintas, propicia

uma reinterpretação imaginativa. É à arte pictórica, que o narrador-personagem

alude primeiramente na tessitura da imagem dos cadáveres:

Los cadáveres, contorsionados como personajes del Greco, parecían haber reunido sus últimas fuerzas para reptar hasta los tablones de los camastros más próximos al pasillo central del barracón, por donde podría haber surgido un último socorro (SEMPRÚN, 1995, p.41) [grifo nosso].

As imagens dos cadáveres descritas pelo narrador-personagem,

compostas com enormes pernas e braços contorcidos recorrente a magreza, e

com a pele em coloração acinzentada devido a sua flacidez, correspondem às

figuras de El Greco, Doménikos Theotokópoulos, pintor e escultor que nasceu

Page 75: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

65

na Grécia em 1541 e faleceu na Espanha em 1614. É conhecido no campo

pictórico como um dos principais representantes do Maneirismo, movimento

artístico do século XVI. A analogia das figuras realiza-se porque aquelas estão

desenhadas com formas tortuosas e alongadas, com alguns pontos de

luminosidade, deixando-as levemente opacas. El Greco também se destaca

por colocar tons dramáticos e expressivos em suas obras, o que marca os

gestos e as posturas de suas figuras. Na tela Laocoonte (Figura1:

http://www.artehistoria.jcyl.es/genios/cuadros/1737.htm), as figuras expressam

com seus olhares voltados para cima e com a tortuosidade de seus corpos, a

agonia de uma luta. Assim como, a agonia expressada pelos cadáveres

“contorsionados como personajes del Greco” descritos na obra, que com

las miradas muertas, heladas por la angustia de la espera, habían acechado sin duda hasta el fin alguna llegada súbita y salvadora. La desesperación que se leía en aquellos ojos estaba a la altura de esa espera, de esa violencia última de la esperanza (SEMPRÚN, 1995, p.41).

Desespero expressado de igual maneira na tela supracitada de El Greco

na Figura 1:

Fig. 1: El Greco (1541 – 1614)

Laocoonte c. 1610/1614

Page 76: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

66

Óleo sobre tela, 137.5 x 172.5 cm

O personagem-narrador também traça paralelos com as esculturas do

artista suíço Alberto Giacometti (1901-1965) para metaforizar a debilidade e a

desfiguração dos corpos de muitos prisioneiros, denominados em Buchenwald

como “mulçumanos”, “cadáveres ambulantes” e/ou “morto-vivos”. Giacometti é

conhecido por representar o corpo humano em suas esculturas, as quais

possuem os membros esticados e finíssimos como os de um esqueleto.

Timothy Mathews, estudioso da relação entre obras literárias e artes visuais, no

artigo Reading W.G. Sebald with Alberto Giacometti (2007), afirma que devido

à influência de Jean-Paul Sartre, as obras de Giacometti traduzem, em meios

expressivos, o existencialismo. Desse modo, a verticalidade das figuras

alongadas confronta-se com o posicionamento horizontal do mundo, e

expressam o individualismo e o desencontro do homem com o mundo

moderno. Aspectos existenciais igualmente encenados na narrativa

sempruniana, mediante a composição imagética dos “cadáveres vivientes,

semidesnudos, de interminables piernas esqueléticas” (1995, p.57), que

conforme o narrador destaca: “jamás podré contemplar las figuras de

Giacometti sin acordarme de los extraños paseantes de Buchenwald:

cadáveres ambulantes en la penumbra azulada del barracón” (1995, p.57-58).

Os prisioneiros que chegavam a esse estágio de larga agonia a espera da

morte, tinham seus corpos abandonados pela força e dominados pelo

sofrimento, caminhavam a passos contados para poupar o pouco de vida que

restavam-lhes:

[…] Contar los pasos, en efecto, contarlos uno a uno para ahorrar fuerzas, para no dar ni uno de más, cuyo precio sería demasiado elevado; alinear los pasos despegando los zuecos del barro, de la gravedad del mundo que tira de las piernas, que aspira hacia la nada (SEMPRÚN, 1995, p.59) [grifo nosso].

A infinita lentidão dos mulçumanos que pisoteavam a lama configura o

vazio de uma existência esquecida pela esperança. As esculturas com pernas

alongadas de Giacometti, assim como os andantes de Buchenwald, são

Page 77: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

67

imagens emblemáticas “de mirada indiferente dirigida hacia unos cielos

indecisos, infinitos” (1995, p.59), que com pernas esqueléticas e envoltos à

solidão, caminham “nonada”, rumo a um futuro incerto, o que vai ao encontro

da teoria existencialista.

A caráter de compreensão, segue uma das esculturas mais famosas de

Giacometti (Figura 2: http://www.dec.ufcg.edu.br/biografias/AlbGiaco.html):

Figura 2: “L’Homme Qui Marche I ,” (“Homem que Caminha I” de 1961) do

artista Alberto Giacometti (1901-1965).

Walter Moser, em As relações entre as artes: por uma arqueologia da

intermidialidade (2006), defende que as relações entre artes, que são

encenadas pelos artistas, desenvolvem uma “função heurística na medida em

que dá a ver e a conhecer a midialidade da arte” (2006, p.63), possibilitando

novas modalidades de representação, expressão e narração. O processo

intermidiático na narrativa sempruniana, que funde conceitos da arte visual com

a linguagem, cria uma expressividade metafórica mais ampla. Explana Paul

Ricoeur, no livro A metáfora viva (1975), que a metáfora engendrada à

linguagem libera o poder da ficção de reescrever a realidade, e que ela se

apresenta, como “uma estratégia de discurso que, ao preservar e desenvolver

a potência criadora da linguagem preserva e desenvolve o poder heurístico

desdobrado pela ficção” (RICOEUR, 1975, p.13).

As imagens expressivas dos “mulçumanos” e dos cadáveres,

metaforizam a aniquilação total dos prisioneiros, que com os olhos abertos para

Page 78: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

68

o horror dos campos e os corpos desfigurados pelas torturas físicas e

psicológicas, padeciam, pouco a pouco, à espera de uma saída, fosse ela para

a vida ou para a morte.

As desfigurações corporais e as inúmeras torturas mostram como que

nos campos o mal foi banalizado em prol de uma ideologia perversa e doentia.

Antes da evacuação de Buchenwald, Semprún ao dialogar com um funcionário

do campo sobre o fim do nazismo, obtêm uma resposta fundamental que o faz

refletir: “–¡El fin del nazismo no significará el fin de la lucha de clases!”

(SEMPRÚN, 1995, p.71). O narrador-personagem compreende que a essência

do mal pode ser encontrada em qualquer experiência. Nos campos ela foi

crucial e devoradora, mas não única, pois, “el Mal no es lo inhumano, por

supuesto... O entonces el lo inhumano en el hombre” (1995, p.104), podendo

ressurgir a qualquer instante já que o Mal faz parte de “uno de los proyectos

posibles de la libertad constitutiva de la humanidad del hombre… De la libertad

en la que arraigan a la vez la humanidad del ser humano” (1995, p.104).

No quinto capítulo, intitulado La trompeta de Louis Armstrong, o

narrador-personagem descreve os seus primeiros passos, após vivenciar, por

dois anos, o Mal absoluto. Esse episódio ocorre alguns dias depois da

libertação, numa festa entre os sobreviventes. Ao contrário dos passos

pausados e sem força de outrora, os passos nessa cena, são alegres e

dançantes ao som da música On the sunny side of the street (No lado

ensolarado da rua), do cantor americano Louis Armstrong (1901-1971).

Novamente notamos a relação entre diferentes artes na narrativa de Semprún,

pois, através dum processo de intermidialidade, o narrador recorre ao jazz,

para encenar o ritmo alegre e febril do corpo liberto. Assim como o eu-lírico da

canção sai da obscuridade, conforme é refletido em um de seus trechos: “I

used to walk in the shade/ With my blues on parade/ Now i'm not afraid” (Eu

costumava andar na sombra/ Com minha tristeza em desfile/ Agora eu não

tenho medo), o narrador-personagem sai das trevas do Lager, rumo à luz da

liberdade. Na narrativa, o prazer provocado pela música embalava os

movimentos do corpo do ex-prisioneiro, que a partir desse instante, sentiu-se

livre para novas redescobertas corporais. Assim, o corpo torturado de

Buchenwald refaz a sua sensualidade e seu prazer: “la voz de cobre de Louis

Page 79: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

69

Armstrong abría avenidas de deseo infinito, de nostalgia ácida y violenta”

(SEMPRÚN, 1995, p.123).

Walter Moser (2006) ao analisar as interações da música na literatura de

Ernst Theodor Wilhelm Amadeus Hoffmann (1776-1822), aponta que em um

conto de Hoffmann, o personagem ao escutar o som de uma música sente-se

impregnado por ela, pois, “mesmo mal tocada, ela provoca nele uma energia

emotiva que escolherá seu corpo para se exprimir” (MOSER, 2006, p.51).

Expressividade diluída no texto, que para figurar a intensidade da energia, faz

uso de um “vocabulário que se condensa em uma verdadeira isotopia

energética: ‘viva’, ‘furor’, ‘inflamar’, ‘fogo’, ‘brilham’, ‘delira’, ‘sacudir

convulsivamente’” (MOSER, 2006, p.51). De modo análogo a Hoffmann,

Semprún, intermidiaticamente, transpõe o sentimento interior de liberdade na

descrição dos movimentos corporais ao dançar o jazz. Moser justifica que esse

recurso é possível porque é “confiado como objeto de representação à obra

literária, objeto que lhe é acessível graças ao semantismo de sua mídia” (2006,

p.51).

Além da utilização do jazz para metaforizar a alegria rítmica do corpo

liberto, o narrador-personagem na procura de uma forma capaz de expressar o

“Mal radical” dos campos, encontra na música elementos que auxiliariam na

transposição literária de sua experiência. Anos depois de sua saída de

Buchenwald, em um bar em Paris, Semprún ao escutar o repertório de

Armstrong, reflete que o jazz, “esta música de libertad, violenta y tierna, de una

fantasía rigurosa” (SEMPRÚN, 1995, p.174), estruturaria a escritura do livro

que ele iniciara por diversas vezes:

Esta música, estos solos desolados o irisados de trompeta y saxo, estas baterías apagadas o tónicas como los latidos de una sangre vivaz, se situaban paradójicamente en el centro del universo que yo quería describir: del libro que quería escribir (SEMPRÚN, 1955, p.174).

O narrador-personagem ressalta que vários estilos musicais

configurariam a sua narrativa, e conclui: “construiría el texto como una pieza de

música, ¿por qué no? Estaría inmerso en la atmósfera de todas las músicas de

esta vivencia, no sólo la de jazz”. As diferentes músicas ritmariam o desenrolar

da narrativa, que seria ora pausada, ora acelerada, conforme a emoção

Page 80: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

70

suscitada no relato, revelando a essência da atroz experiência. Confluente,

Valéria De Marco explica que

a analogia com a música constrói uma metáfora da estrutura da narração: a voz solitária, a dissonância e a descontinuidade da improvisação, sempre retomando o mesmo tema, a mesma frase. À semelhança da espiral, os ecos do solo poderiam representar o movimento da voz narrativa, o andamento da narração (DE MARCO, 2010, p.4 ).

Porém, mesmo crendo que havia encontrado a forma ideal para o seu

livro, com base nas músicas de sua experiência, o escritor não conseguiu

escrever, pois, a lembrança de Buchenwald era excessivamente traumática

para ser absorvida pela escritura. Escrever era o mesmo que despertar suas

dores e sofrimentos, segundo narra:

Cuando me despertaba a las dos de la madrugada con la voz del oficial S.S. en el oído, con la llana anaranjada del crematorio cegándome los ojos, la armonía sutil y sofisticada de mi proyecto se hacía añicos entre brutales disonancias (SEMPRÚN, 1995, p.175).

Muitos sobreviventes do Holocausto conviveram com a polaridade entre

o viver e o esquecer, às vezes, colocada sem deixar opção de escolha, e o

silêncio caminhava junto com a vida do ex-prisioneiro. Em A História como

trauma (2000), Márcio Seligmann-Silva, coloca que “libertação significa luta

pela sobrevivência, pelo ver-se livre do passado e por liberar esse passado da

sua terrível presença e literalidade” (2000, p.90). Assim, Jorge Semprún

escolhe o esquecimento deliberado e evita falar ou escrever sobre o seu

trauma. Para ele, escrever era como recusar a nova vida que tanto lhe custara

e regressar para a morte:

En Ascona, pues, bajo un sol de invierno, decidí optar por el silencio rumoroso de la vida en contra del lenguaje asesino de la escritura. Lo convertí en la elección radical, no cabía otra forma de proceder. Escogí el olvido, dispuse, sin demasiada complacencia para con mi propia identidad, fundamentada esencialmente en el horror de la experiencia del campo, todas la estratagemas, la estrategia de la amnesia voluntaria,

Page 81: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

71

cruelmente sistemática. Me convertí en otro para poder seguir siendo yo mismo (SEMPRÚN, 1995, p.244).

Tzevetan Todorov, em Los abusos de la memoria (2002), explica que o

esquecimento de Semprún “en un momento dado, lo curó de su experiencia en

los campos de concentración” (2002, p.25), cabendo ao escritor decidir quando

deverá rememorar o passado, pois, “la recuperación del pasado es

indispensable; lo cual no significa que el pasado deba regir el presente, sino

que, al contrario, éste hará del pasado el uso que prefiera” (TODOROV, 2002,

p.25).

Um fato fez com que Semprún repensasse acerca da retomada da

escritura e saísse do proposital esquecimento: a morte do escritor italiano e ex-

prisioneiro de Auschwitz, Primo Levi. Relatado no capítulo El día de la muerte

de Primo Levi, o suicídio de Levi, ocorrido em 12 de abril de 1987,

coincidentemente, quarenta e dois anos depois da libertação, marcou o

narrador-personagem, pois, nesse momento ele percebeu que não era imortal

como pensou no ato da libertação: “comprendí que la muerte volvía a estar en

mi porvenir, en el horizonte del futuro” (SEMPRÚN, 1995, p.266). Não

adiantava fugir da escritura que o remetia para o passado da morte, já que a

mesma estava no seu futuro e no seu presente, pois, constantemente, ele era

“agarrado” pelas recordações traumáticas do Lager. O narrador-personagem

sabia do seu comprometimento com a memória coletiva do Holocausto, que

cabia a ele e aos outros sobreviventes, evitar o esquecimento da catástrofe. A

escritura do seu testemunho seria o rastro que “inscreve a lembrança de uma

presença que não existe mais e que sempre corre o risco de se apagar

definitivamente” (GAGNEBIN, 2006, p.44).

No rastro dessas reflexões, Michael Pollak argumenta no artigo

Memória, esquecimento, silêncio (1989), que existem inúmeras razões que

defendem o esquecimento da catástrofe, uma delas é de caráter pessoal, pois

muitas famílias querem poupar os filhos de crescerem na lembrança das

cicatrizes dos pais. Porém, com o passar dos anos, essas razões cruzam-se

para romper o silêncio “no momento em que as testemunhas oculares sabem

que vão desaparecer em breve, elas querem inscrever suas lembranças contra

o esquecimento” (POLLAK, 1989, p.6).

Page 82: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

72

No mês de março de 1992, o narrador-personagem tomou uma atitude

que foi fundamental em seu retorno para a escritura. Após muita insistência de

um programa de televisão, ele regressou à Buchenwald para gravar uma

entrevista sobre sua experiência, episódio relatado no último capítulo, intitulado

Retorno a Weimar. Nunca mais ele tinha visitado ou visto imagens dos campos,

mas em uma noite anterior ao convite, Semprún teve um sonho que interpretou

como um bom presságio. Ao invés de sonhar com as vozes imperativas dos

nazistas, como era de costume, ele sonhou com a voz de uma cantora que ele

escutava em Buchenwald:

Una hermosa voz de mujer, un poco ronca, dorada: la voz de Zarah Leander. Cantaba una canción de amor. En cualquier caso, jamás ha cantado sino canciones de amor la hermosa voz cobriza de Zarah Leander. Por lo menos en Buchenwald, por el circuito de altavoces de Buchenwald, los domingos… […] Oía en mi sueño la voz de Zarah Leander en vez de aquélla, sin embargo esperada, habitual, repetitiva y lancinante, del Sturmführer S.S. ordenando apagar el horno crematorio. La oía proseguir su canción de amor, como tantos domingos de entonces de Buchenwald. Entonces me desperté. Había comprendido el mensaje que me enviaba a mí mismo, en este sueño transparente (SEMPRÚN, 1995, p.299) [itálico do autor].

Buchenwald não refletia a nebulosidade de horror de quase cinqüenta

anos atrás, mas a renovação da esperança. Os pássaros tinham voltado a

sobrevoá-lo, e com a demolição dos barracões, a floresta cresceu, cobrindo

grande parte do campo. O narrador-personagem teve a estranha sensação de

ter voltado para casa, só que não era mais como antigamente, a neve que caia

sobre ela, era diferente daquela que invadia de modo repentino sua memória.

Buchenwald de 1992, ao mesmo tempo que guardava a terrível memória da

catástrofe, encenava a restauração com o passar do tempo. Restauração que

ocorre imediatamente com Semprún, pois a partir desse retorno, decidiu voltar

à escritura do seu testemunho autobiográfico, que por diversas vezes foi

iniciado e interrompido: “me imponía a mí mismo la orden de concluir el libro

tanto tiempo, tan a menudo pospuesto [...]” (SEMPRÚN, 1995, p.299). Dessa

maneira, o narrador-personagem reconcilia-se com a escritura e com o seu

passado traumático, refletindo a possibilidade de libertar-se interiormente:

Page 83: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

73

No puedo decir que estuviera emocionado, el término es demasiado débil. Supe que volvía a casa. No era la esperanza lo que tenía que abandonar, en la puerta de este infierno, sino todo lo contrario. Abandonaba mi vejez, mis decepciones, los fracasos y los errores de la vida. Volvía a casa, quiero decir al mundo de mis veinte años: a sus iras, a sus pasiones, a su curiosidad, a sus risas. A su esperanza, sobre todo. Abandonaba todas las desesperaciones mortales que se van acumulando en el alma, a lo largo de una vida, para recobrar la esperanza de mis veinte años que la muerte había arrinconado (SEMPRÚN, 1995, p.311).

Sigrid Weigel (1999), com base nos estudos de Walter Benjamin, afirma

que a transformação da existência em escritura, dá-se mediante o processo

figurativo de “la vuelta”, o que vai ao encontro da escritura sempruniana, em La

escritura o la vida, a qual inicia-se com a saída do narrador-personagem de

Buchenwald e termina com o seu retorno para o mesmo espaço, desvelando

uma volta à origem: “volvía a casa”. Essa volta ao começo, sugere o novo início

que Semprún deseja dar a sua vida, como também mostra o efeito circular do

tempo, no qual as lembranças de Buchenwald não somem, estão sempre

voltando, assim, o personagem fica preso nesse círculo mnemônico da

catástrofe, não conseguindo sair do mesmo. Com isso, sua narrativa é

constantemente entrecortada pelo círculo da memória, representado pelo uso

da anacronia, que através da analepse e da prolepse, traça um ziguezague

narrativo. Tal como observamos logo no início da obra, pois, a partir da

narrativa principal do relato do dia da libertação, irrompem-se inúmeras cenas

rememorativas, tanto anteriores como posteriores a ela, algumas tendo um

desfecho e outras não. A cada nova lembrança surgida o autor deixa um

espaçamento duplo na página, fazendo uso estético do espaço disponível para

encenar as lacunas do esquecer e do lembrar, conforme explica Jô Gondar em

Lembrar e esquecer: desejo de memória (2000):

Pensar implica em esquecer, segregar, excluir. Não devemos, pois, nos iludir com a pretensão do pensamento à universalidade: há, em todo pensar, uma segregação envolvida, o que torna impossível a constituição de qualquer universal. É preciso admitir essa segregação, mas não devemos deixar de entender o motivo que nos impede de realizá-la (GONDAR, 2000, p.35).

Page 84: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

74

As elipses, as lacunas e os espaçamentos em branco existentes na

estrutura e no conteúdo da narrativa, metaforizam os lapsos da memória, bem

como, as pausas da dor e as fugas da mesma, já que a reaproximação com o

evento traumático, está metaforizada na narração. O campo é representado

como um espaço impenetrável, fechado pela opacidade da neve e da fumaça e

pelas recordações de sofrimento, conforme é exposto na obra:

Mi problema, que no es técnico sino moral, es que no consigo, por medio de la escritura, penetrar en el presente del campo, narrarlo en presente… Como si existiera una prohibición de la figuración en presente… De este modo, en todos mis borradores la cosa empieza antes, o después, o alrededor, pero nunca empieza dentro del campo. Y cuando por fin he conseguido llegar al interior, cuando estoy dentro, la escritura se bloquea… Me alcanza la angustia, vuelvo a sumirme en el vacío, abandono… Para volver a empezar de otro modo, en otro lugar, de forma distinta… Y el mismo proceso vuelve a repetirse… (SEMPRÚN, 1995, p.182).

Consonante, Romar Rudolfo Beling, em sua dissertação Uma poética da

memória: o holocausto na obra de Jorge Semprún (2007), explica que a

memória de Semprún tece um sinuoso jogo de lembranças, o que quebra a

lógica do enredo, deixando de lado a linearidade para render-se ao fluxo da

memória. Segundo Márcia Romero Marçal (2008), a forma precária do enredo

em La escritura o la vida, representa a debilidade do sujeito cindido pelo

trauma. No âmbito desse legado interpretativo pensamos que a obra em

questão é oriunda dum estilo próprio do escritor sobrevivente, engendrado

pelas suas impressões e pelas suas experiências.

Para Roland Barthes (1971), o estilo, juntamente com as imagens, o

fluxo verbal, o léxico, ou seja, todos os artifícios estéticos escolhidos na feitura

de uma obra “nascem do corpo e do passado do escritor e tornam-se pouco a

pouco os próprios automatismos de sua arte” (1971, p.20). Dessa maneira, o

estilo elíptico sempruniano metaforiza o narrador-personagem invadido pela

catástrofe e que regressa “aos pedaços” da mesma. Maurice Blanchot (1983),

explica que não é o sujeito que fala do desastre, mas é o desastre que fala

através do sujeito, ainda que seja pelo seu esquecimento ou pelo seu silêncio.

Igualmente, consideramos a escritura como uma das possibilidades de

linguagem, seja ela fragmentada e não linear, pois, “cuando todo está dicho, lo

Page 85: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

75

que queda por decir es el desastre, ruína del habla, desfallecimiento por la

escritura, rumor que murmura: lo que queda sin sobra (lo fragmentário)”

(BLANCHOT, 1983, p.35). “Lo fragmentario” no enredo, também evidencia a

reordenação dos cacos de uma existência por intermédio da escrita, sendo a

mesma parte do processo de reconstituição do narrador-personagem.

Portanto, o percurso da composição artística é lançado na própria

narrativa, refletindo o duplo itinerário de (re)construção do sujeito escritor e do

sujeito sobrevivente. Recurso estético operado pela metalinguagem, que pensa

acerca da linguagem através de si mesma, expondo e desnudando o fazer

artístico: “o que a metalinguagem indica é a perda da aura, uma vez que

dessacraliza o mito da criação, colocando a nu o processo de produção da

obra” (Chalhub, 1998, p.42) [itálico da autora], trazendo à baila, de modo

análogo, a desnudação e a dessacralização do corpo do narrador sobrevivente

no campo nazista. As escolhas feitas, a forma desejada, os modelos a serem

seguidos, os fatos a serem retratados, ou seja, o passo a passo artístico é

mostrado ao leitor, o que reflete a dificuldade do escritor em encontrar uma

forma que conseguisse plasmar a catástrofe, e a impossibilidade do narrador

de regressar ao passado traumático.

Chalhub (1998) afirma que a estética moderna considera o

leitor/receptor um relevante colaborador na construção de sentidos do objeto

artístico. É pertinente ressaltar, que na narrativa de Semprún o leitor é

recorrentemente incluso, tendo um papel ativo na ação criadora, já que o

mesmo necessita atentar-se às rupturas da linearidade e ao jogo anacrônico do

enredo para compreendê-lo. O narrador-personagem, diversas vezes, transpõe

o leitor para a narrativa ao usar o presente verbal e advérbios, como: “hoy”,

“ahí”, “ahora”, dando a impressão que escritor e leitor vivenciam no mesmo

instante a cena. Em outros momentos, as chamadas são diretas, como

percebemos em dois fragmentos:

Hablamos en alemán, Rosenfeld es un oficial del III Ejército de Patton, pero hablamos en alemán. Desde el día en que nos conocimos, hemos hablado en alemán. Traduciré nuestra conversación para la comodidad del lector (SEMPRÚN, 1995, p.93) [grifo nosso].

Page 86: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

76

[…] Después llegaré al Ettersberg, al azar que condujo a Blum, prisionero de la GESTAPO, al lugar exacto donde se desarrollaron las conversaciones de Goethe con Eckermann, y eso me llevará algún tiempo, justo el que necesito para presentarles al teniente Rosenfeld (SEMPRÚN, 1995, p.112) [grifo nosso].

A intermidialidade da Literatura com outras artes: a pintura, a escultura e

a música, é uma performance narrativa que visa dar ao leitor a noção imagética

e sensorial do fato narrado, criando metáforas para que o mesmo as

decodifique e desvele os seus sentidos. Outro recurso estético de Semprún

refere-se ao diálogo que ele traça com outros autores, sejam eles literários ou

filosóficos. São inúmeros os nomes de pensadores citados na narrativa,

pontuamos alguns: Kant, Heidegger, Theodor Adorno, Hannah Arendt, Max

Horkheimer, Sartre, e tantos outros da literatura: Kafka, René Char, Baudelaire,

Goethe, Paul Celan, André Malraux, Proust, Mallarmé, Bertolt Brecht, Victor

Hugo, André Breton. Tendo também variados trechos literários recitados no

decorrer do enredo, bem como, a reflexão do narrador sobre muitos livros que

leu, e alusões às outras obras suas. Diálogo intertextual que denota o

repertório da memória poética e filosófica do narrador-personagem e o seu

posicionamento crítico sobre os fatos narrados. A intertextualidade evidencia a

resistência às lembranças do Holocausto, o que faz com que o narrador-

personagem preencha o seu testemunho com outros textos e outras obras,

encenando a impossibilidade da escritura da experiência. De modo mais

aprofundado, também compreendemos esse recurso de inclusão de vários

trechos de diversas obras e de variadas línguas, como um conjunto de vozes

que representam os gritos dos vários companheiros de campo de Semprún,

pertencentes a nacionalidades distintas, e que ecoam na memória do escritor.

As interferências artísticas e textuais, juntamente, com o estilo elíptico

sempruniano, compõem um relato desconexo e fragmentário, processo que

não interfere na validação de seu testemunho. Segundo Izidoro Blikstein

(1995), por mais que o discurso apresente falhas em sua estrutura, uma

coerência interna pode ser detectada com a análise minuciosa de outros

detalhes, “como os lapsos, as confusões, as observações ‘insignificantes’, as

vacilações e o não-dito, distribuídos de maneira um pouco descosturada no

enunciado” (1995, p.149). É preciso apreender os sentidos do que,

Page 87: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

77

aparentemente, não tem sentido, pois, os recursos utilizados revelam um estilo

que

mergulha na lembrança fechada da pessoa, compõem sua opacidade a partir de certa experiência da matéria. O estilo é sempre um segredo. Seu segredo é uma lembrança encerrada no corpo do escritor (BARTHES, 1971, p.21).

Confluente, Anatol Rosenfeld (1996), explica que, quanto mais há o

envolvimento do narrador na situação narrada, “mais os contornos nítidos se

confundem; o mundo narrado se torna opaco e caótico” (1996, p.92). Com isso,

a arte moderna desvela, tanto no seu conteúdo como em sua forma, “a

precariedade da posição do indivíduo no mundo moderno” (1996, p.97). A

ruptura da linearidade, o enredo circular, a intermidialidade, os intertextos, o

efeito anacrônico, a narrativa e a estrutura elíptica, o fluxo da memória, são

adaptações estéticas de Semprún para representar a sua condição de sujeito

fragmentado, o qual teve o corpo desfigurado e violentado no campo de

concentração e regressou com cicatrizes impossíveis de serem olvidadas.

Fragmentos narrativos que metaforizam a fragmentação de uma existência.

Page 88: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

78

2.3 ¿La escritura o la vida? ¿La escritura o la mue rte?: Do retorno à

escritura mortífera ao esclarecimento libertador

Mas voltarei a essa lembrança, como se volta à vida. Voltarei a essa lembrança, deliberadamente, nos momentos em que precisar tomar

novamente pé, recolocar o mundo em questão, e eu mesmo no mundo, repartir, relançar a vontade de viver esgotada pela opaca

insignificância da vida Jorge Semprún

Em 1992 ao regressar à Buchenwald, Semprún resolveu retornar ao livro

que foi iniciado em 1987, - no dia da morte de Primo Levi -, o qual, por diversas

vezes, teve a escrita sufocada pela dor. Para ele, voltar ao campo através da

escritura era algo necessário, mesmo que não sobrevivesse a ela, visto que

seria a possibilidade de reconciliar-se com o passado e falar por aqueles que

foram silenciados pela morte.

Processo duplo de dor e de cura que refletimos à luz dos pensamentos

filosóficos de Theodor W. Adorno e Max Horkheimer que analisam em Dialética

do esclarecimento (1985), o desenvolvimento do esclarecimento na sociedade

e buscam no passado mitológico as suas origens. É na narrativa de Homero,

especificamente em Odisséia (2008), que os filósofos traçam suas reflexões,

para eles, os infortúnios enfrentados pelo personagem Ulisses ao regressar

para casa, ilustram a constituição do sujeito, que para tornar-se emancipado e

esclarecido racionalmente, enfrenta e domina os mitos estabelecidos e se

transforma em senhor de si mesmo, processo de desencantamento do mundo,

que mediante a ruptura da magia mitológica, o ser constrói o saber.

Esclarecimento também de mão dupla, visto que ocorre, dialeticamente, a

libertação e a dominação, pois para libertar-se o homem trava uma luta para

dominar tanto a natureza externa como a natureza interna, ocorrendo a

autodominação de si próprio. Segundo explana Adorno e Horkheimer:

No sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo de investi-los na posição de senhores. Mas a terra totalmente esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal. O programa do esclarecimento era o desencantamento do mundo. Sua meta era dissolver os mitos

Page 89: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

79

e substituir a imaginação pelo saber (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.19).

A calamidade instaura-se na medida em que saber é poder, e ambos

não conhecem nenhuma barreira. O uso dos mesmos “está a serviço de todos

os fins da economia burguesa na fábrica e no campo de batalha, assim

também está à disposição dos empresários, não importa sua origem”

(ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.20), configurando-se num uso aleatório

baseado em interesses próprios, onde não importa o prazer dos novos

saberes, mas a sua utilização para obtenção de novos poderes, pois,

o que os homens querem aprender da natureza é como empregá-la para dominar completamente a ela e aos homens. Nada mais importa. Sem a menor consideração consigo mesmo, o esclarecimento eliminou com seu cautério o último resto de sua própria autoconsciência. Só o pensamento que se faz violência a si mesmo é suficientemente duro para destruir os mitos (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.20).

Conforme dito, é por meio de episódios da viagem de Ulisses, dos

cantos da Odisséia (2008), que os autores exemplificam o caminho percorrido

pela racionalidade na história. O primeiro trecho escolhido para exemplificar

essas questões é o que descreve as artimanhas de Ulisses para enganar o

ciclope Polifemo. Ao encontrar-se sob o poder de Polifemo, Ulisses arquiteta

um plano para fugir, dessa maneira, embriaga o seu inimigo que antes de

dormir pergunta o seu nome e ele responde ardilosamente: “Ninguém”. O

personagem nota que o ciclope dorme e aproveita para ferir com uma estaca o

seu único olho; ele desperta urrando de dor e solicita a ajuda dos outros

ciclopes, mas quando os outros chegam à caverna para ajudar, eles perguntam

quem o tinha ferido e quem estava lá com ele, e têm como resposta:

“Ninguém”. Sem entenderem, os ciclopes vão embora, deixando Polifemo

agonizando de dor, com isso, no dia seguinte Ulisses e seus companheiros

conseguem fugir da caverna do ciclope. Para Adorno e Horkheimer, a

artimanha de Ulisses para enganar o ciclope, foi “uma transparente

racionalização”, pois ao se autodenominar como Ninguém, ele nega a sua

própria existência, o que o “transforma em sujeito e preserva a vida por uma

imitação mimética do amorfo” (1985, p.71).

Page 90: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

80

Negação também operada pelo narrador-personagem em La escritura o

la vida, que para resistir às violências de Bunchenwald refuta o seu corpo-

próprio e transforma-se em corpo-objeto para sobreviver, embate entre o

sujeito e seu corpo que Semprún mostra ao relatar uma das torturas sofridas

enquanto esteve preso:

Mi cuerpo se ahogaba, se volvía loco, pedía piedad, innoblemente. Mi cuerpo se afirmaba a través de una insurrección visceral que pretendía negarme en tanto que ser moral. Me pedía que capitulara ante la tortura, lo exigía. Para salir vencedor de este enfrentamiento con mi cuerpo, tenía que someterlo, dominarlo, abandonándolo al sufrimiento del dolor y de la humillación (SEMPRÚN, 1995, p.126).

Esse trecho da narrativa sempruniana é confluente ao conceito de

esclarecimento defendido por Adorno e Horkheimer, tendo em vista que para o

sobrevivente não dizer as informações que os torturadores nazistas queriam, e

consequentemente, não entregar-se aos mesmos, ele renega o seu ponto de

percepção no mundo: o seu próprio corpo. Notamos que ele pune e domina

violentamente o seu corpo fragilizado, para conseguir dominar o inimigo e

resistir a ele. Desse modo, a liberdade e a autopunição fazem parte do mesmo

processo de salvação.

Semprún narra que antes de ser preso, convivia bem com seu corpo,

para ele, o físico e a alma eram uma única matéria que conviviam

harmoniosamente: “yo estava dentro de mi cuerpo como pez en el água.

Estaba metido en él con toda mi alma, si se me permite ser tan categórico”

(SEMPRÚN, 1995, p.126), porém, depois que entrou em Buchenwald e teve

que enfrentar vários tipos de esgotamentos, ele desvinculou-se de seu corpo-

próprio para conseguir sobreviver às torturas impostas pelo inimigo, ou seja,

desvincula-se da sua identidade primeira e identifica-se com a não existência

para salvar sua vida.

Num outro episódio, o autor relata que ao chegar a Buchenwald teve

uma febre alta causada por uma furunculose, no entanto, havia um ditado entre

os veteranos que dizia que quem entrava na enfermaria do Lager, saía pela

chaminé do crematório; mediante a essa constatação fatal, ele novamente

desprezou as súplicas de seu corpo: “pedí a un compañero francés, médico del

Page 91: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

81

Revier, que me abriera los furúnculos que invadían mis axilas, y continué mi

vida de trabajo reglamentario. Todo volvió al orden” (SEMPRÚN, 1995, p.127)

[itálico do autor], para que ele não entrasse na lógica mortal do campo,

elaborou racionalmente sua condição violenta de auto-conservação. Portanto, o

corpo, ponto de ligação entre a natureza e a cultura, é renunciado pelo

narrador-sobrevivente, suas dores e seus extintos são repreendidos,

prefigurando a dominação tanto da natureza externa quanto da interna. Jorge

Semprún na medida em que repreende seu corpo, que o renega e domina seus

desejos internos, ele o faz para conservar sua existência e ludibriar a morte

que tentava dominá-lo.

Outro trecho da obra de Homero, ressaltado pelos filósofos, é o do

encontro de Ulisses com as sereias. Ao retornar à ilha de Circe, Ulisses recebe

instruções da mesma para prepará-lo para os novos infortúnios que enfrentaria

na volta para casa. Ela o alerta que em alto mar existe uma ilha habitada por

sereias que com suas canções sedutoras, atraem os marinheiros para a morte.

Devidamente precavido, Ulisses tampou os ouvidos da tripulação com cera,

enquanto ele próprio foi amarrado ao mastro, de modo que pudesse passar a

salvo pelo perigo e ainda ouvir a canção. Jeanne Marie Gagnebin (2006),

aponta que a vitória de Ulisses sobre as sereias, não representa somente a

vitória da racionalidade sobre os encantos do mito, mas também significa

a consagração de Ulisses como narrador de suas aventuras. Primeiro, porque se ele não tivesse passado incólume ao lado das sereias, mas tivesse se deixado seduzir e devorar por elas, ninguém teria sobrevivido para recordar a beleza do seu canto. Ulisses precisa não se entregar à sedução do canto para dele poder falar, para poder perpetuar a memória de sua beleza (GAGNEBIN, 2006, p.36).

De modo análogo o narrador-personagem, em La escritura o la vida

(1995), recusa o insidioso chamado da morte, que configuraria um possível

refúgio do espaço infernal do campo. Isso porque, em Buchenwald, a morte

estava por todos os lados, nos corpos desfigurados e esqueléticos dos

“mulçumanos”, nos odores de putrefação dos corpos e de carne queimada que

diluíam-se na fumaça do forno crematório, nas imagens dos amontoados de

corpos tortuosos, nos últimos suplícios dos companheiros, ou seja, a morte era

Page 92: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

82

carnal, palpável, sentida e penetrante, figurava para muitos, o destino certo e a

única saída do campo. Submergidos nessa atmosfera mortal, muitos

prisioneiros, após passarem por diversas violências, cansavam de resistir e

entregavam-se aos encantos da morte e aos seus chamados: “la muerte ha

callado, ya no hay modo de orientarse hacia la fuente de aquella salmodia.

Pero siempre vuelve a empezar: inagotable, la voz de la muerte, inmortal”

(SEMPRÚN, 1995, p.43).

No entanto, Semprún não se deixa conduzir pelo canto fúnebre para

poder transmitir os horrores do campo e perpetuar a sua memória de morte.

Confluente à reflexão feita por Gagnebin acerca das peripécias de Ulisses,

pensamos que a negação da identidade do narrador-personagem, bem como,

a auto-repressão para fugir e dominar o mito da morte metaforizam a

configuração do sujeito moderno esclarecido, que a partir do violento processo

de renúncias, agrega novos saberes sobre si e sobre seu corpo. Tal como a

volta do viajante, do sujeito errante, que, ao regressar para casa, traz na

bagagem de suas lembranças, novas experiências para serem compartilhadas.

Segundo Adorno e Horkheimer, “onde há o perigo, cresce também o que salva”

(1985, p.56), assim, mediante as estratégias arquitetadas pelo narrador-

personagem para dominar o inimigo e a si mesmo, ele se torna senhor de si:

O saber em que consiste sua identidade e que lhe possibilita sobreviver tira sua substância da experiência daquilo que é múltiplo, que desvia, que dissolve, e o sobrevivente sábio é ao mesmo tempo aquele que se expõe mais audaciosamente à ameaça da morte, na qual se torna duro e forte para a vida (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.56).

O escritor recusa as súplicas do corpo dolorido com a finalidade de

ganhar a libertação e contar o que vivenciou. Ao contrário de Ulisses, que

descreve para os seus a beleza do canto sedutor das sereias, Semprún

transmite os horrores vistos e vividos no Lager, uma tarefa árdua por tratar-se

de uma experiência indescritível e que se configurou num trauma em sua

memória. Assim, o holocausto caracteriza-se por ser inefável e exceder os

limites da imaginação, o que o projeta para a “estética do irrepresentável, do

indizível, ou do sublime” (GAGNEBIN, 2006, p.79). Para o filósofo Longino

(213-273 d.C), em Do Sublime (1996), a estética do sublime “exige força e

Page 93: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

83

mesmo violência, juventude, agilidade” (p.10) no ato artístico, o qual trata “de

situações limites e radicais” (p.21), que não são conseguem ser assimiladas

por imagens ou signos, sendo assim, o sublime é “a percepção disso” (p.21),

dessa “violência que desequilibra” (p.37). De algo que causa desconforto no

observador ou no leitor, pois, “o choque surpreende o julgamento e faz-nos sair

de nós mesmos, mergulha-nos no êxtase. É grande o que nos tira o fôlego, de

emoção e de surpresa. O que se admira, sempre, é o inesperado” (LONGINO,

1996, p.37) [itálico do autor].

Esse objeto obscurecido pelo horror, que “vai além dos ‘limites’ de nossa

percepção e torna-se para nós, algo sem forma” (SELIGMANN-SILVA, 2000,

p.84), é encenado na narrativa sempruniana. Uma arte impactante que não

designa a beleza esplêndida, entretanto, refere-se ao baixo, ao subterrâneo do

ser e ao que causa temor. Para Edmund Burke (1757), o “sublime é tratado

como pertencente ao campo do medo: medo da perda total do eu, da morte, do

inconcebível” (apud SELLIGMAN-SILVA, 2000, p.83). O escritor sobrevivente

enquanto esteve preso, vivenciou o que é mais temido pelo ser: a morte. Ela

habitava todos os espaços de Buchenwald, sendo desvelada na narrativa

através das imagens dos corpos magérrimos dos “mulçumanos”, dos

cadáveres descarnados com olhos arregalados, dos ambientes fétidos das

latrinas coletivas, das torturas desumanas, da nudez dos corpos, do corpo

dolorido; ou seja, são imagens que chocam por retratar o que é temido pelo ser

e que apesar de serem elaboradas ficcionalmente, fazem parte de uma

experiência de um corpo real que foi impregnado por essas mortes e por essas

dores. Gagnebin explana que o sublime não abarca somente aquilo que se

encontra além do homem, mas também questões que fazem parte do homem e

de suas atitudes, o que de modo paralelo “delineia uma outra região, escura e

ameaçadora, que gangrena o belo país da liberdade e da dignidade humanas.

Um ‘sublime’ de lama e de cuspe, um sublime por baixo, sem enlevo nem

gozo” (2006, p.79).

Seligmann-Silva (2000) afirma que muitas vezes na história das artes

associou-se a representação da dor ao sublime, vínculo que é perfilado em La

escritura o la vida (1995), pois as imagens citadas são reflexos de uma dor e

causam no leitor um desequilíbrio, pois, de certa maneira ele identifica-se com

o sofrimento. Essa narrativa desconcertante é oriunda do espaço marginal do

Page 94: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

84

campo, onde o que é desprezível, enojador e subliminar é escancarado pelo

escritor com a finalidade de expor a baixeza e a monstruosidade humana.

Mediante isso, o narrador-personagem da obra em questão, é a alegoria,

segundo a concepção de Walter Benjamin (1975), da figura do trapeiro, o qual

encontra “na rua o lixo da sociedade e a partir dele faz sua crítica heróica”

(BENJAMIN, 1975, p.15). Jorge Semprún apanha o que é ignorado tanto pelos

ouvintes despreparados como pela história oficial, para elaborar sua arte: “é o

passo do poeta que erra pela cidade procurando rimas; também deve ser o

passo do trapeiro, que a todo instante pára no seu caminho, apanhando os

lixos que encontra” (1975, p.16). Portanto, os excrementos, os cadáveres, as

dores, as mortes por exaustão, o odor de podridão, a fome enlouquecedora, as

montanhas de ossos e cabelos, enfim, tudo que remete ao horror do Lager faz

parte da feitura do testemunho de Semprún.

No entanto, o resgate desses resíduos de dor e de morte nas

lembranças, foi um processo doloroso para Jorge Semprún, já que as cicatrizes

que ficaram em sua memória impediram-lhe por muito tempo seu retorno à

escritura, conforme o escritor expõe:

Cual un cáncer luminoso, el relato que me arrancaba de la memoria, trozo a trozo, frase a frase, me devoraba la vida. Mi afán de vivir, por lo menos, mis ganas de perseverar en esta dicha miserable. Tenía el convencimiento de que llegaría a un punto último, en el que tendría que levantar acta de mi fracaso. No porque no consiguiera escribir: sino porque no conseguía sobrevivir a la escritura, más bien. Sólo un suicidio podría rubricar, concluir voluntariamente esta tarea de luto inacabada: interminable. O entonces la propia falta de conclusión le pondría término, arbitrariamente, mediante el abandono del libro en curso (SEMPRÚN, 1995, p.211).

Nesse fragmento literário percebemos a dificuldade do sobrevivente em

escrever; a metáfora antitética “cáncer luminoso”, encena que apesar da

escritura relampejar na mente do escritor, ela era para o mesmo a configuração

da morte. Há nessa metáfora o paradoxo luz versus sombra que representa a

polaridade da escrita, que tangenciava entre a possibilidade de libertação e a

morte definitiva. Através da reiteração de “trozo a trozo, frase a frase”, o

escritor enfatiza o processo lento de composição da narrativa, bem como seu

efeito corrosivo que teria como assinatura a morte voluntária de Semprún.

Page 95: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

85

Em 1987, numa das tentativas de elaboração de seu testemunho, o

narrador-personagem escolhe o nome que daria ao livro iniciado e interrompido

muitas vezes: “habitualmente, mis libros tardan en encontrar un título

satisfactorio. Este lo tuvo de antemano. Lo escribí con un rotulador de punta

gruesa: LA ESCRITURA O LA MUERTE...” (SEMPRÚN, 1995, p.249).

Contudo, não há no decorrer da narrativa algo que explique a não escolha

desse título e o porquê da mudança para La escritura o la vida, mediante isso,

interpretamos nesse processo de troca de nomes, um outro momento de

esclarecimento para o narrador-personagem.

Para Jorge Semprún, escrever era o mesmo que morrer, pois, o ato da

escritura singularizaria o retorno ao passado da morte. Porém, ele enfrentou

novamente o mito da morte, não mais a morte que rodeava Buchenwald, mas

aquela que invadia sua memória causando-lhe dores infinitas e a que ele

tentava constantemente esquecer, como ele afirma num outro momento que

justifica o seu silêncio: “tenía que escoger entre la escritura o la vida, había

escogido ésta. Había escogido uma prolongada cura de afasia, de amnesia

deliberada, para sobrevivir” (SEMPRÚN, 1995, p.212). Ao rememorar os

horrores de Buchenwald e ressuscitar seus fantasmas, o narrador-personagem

ignora seus traumas e suas cicatrizes e engendra o autodomínio para vencer a

morte. De igual maneira que renega o silêncio do seu presente para voltar para

ao passado turbulento, encena a reconstituição do sujeito esclarecido, que

através da escritura dolorosa do tempo pretérito (re)elabora o seu presente.

A escritura para Semprún foi uma tentativa de apaziguamento da dor,

um modo de descarregar a memória e compartilhar seus sofrimentos. Dessa

maneira, ela foi uma medida terapêutica, pois, segundo Walter Benjamin citado

por Fernandes Vaz (2004), o ato de narrar é uma comunicação que pressupõe

presenças corpóreas, havendo uma cumplicidade virtual, assim, a “narrativa é

capaz, até mesmo, de curar” (p.59), visto que ao trazer ao nível da consciência

as suas dores, a narração compõe processos de cura e libertação. Além da

cicatrização de suas feridas, o narrador-personagem constrói novos saberes

sobre si e sobre a humanidade, percebe a dimensão da monstruosidade

humana, que na busca de poder legitima ideologias asquerosas e doentias. Ao

fim, o narrador-personagem repudia sua condição de militante comunista, e

Page 96: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

86

conclui que ela era impulsionada por pensamentos que eram contrários aos

seus ideais de um mundo igualitário e pacífico:

Una especie de malestar, como una leve náusea, se apodera de mí hoy cuando evoco ese pasado. Los viajes clandestinos, la ilusión de un porvenir, el compromiso político, la fraternidad auténtica de los militantes comunistas, la moneda falsa de nuestro discurso ideológico: todo eso, que constituyó mi vida, que también habrá sido el horizonte trágico de este siglo, todo esto parece hoy harto trasnochado: vetusto e irrisorio (SEMPRÚN, 1995, p.275).

Para Semprún a libertação e os novos saberes são conquistados através

da reescritura do passado de dor, retorno ao tempo perdido, que inicialmente

mostrava-se irrealizável. A mudança do nome do livro para La escritura o la

vida, não foi involuntária, na medida em que a palavra “escritura” em ambos os

títulos singularizaria a morte. A primeira opção, La escritura o la muerte,

representaria o fracasso do escritor que voltou a morte e sucumbiu a ela, seria

a não sobrevivência da escrita que teria como conclusão o suicídio do escritor.

Todavia, o segundo e acertado nome, metaforiza a vitória do escritor, que para

lograr novos saberes e reconciliar-se com o passado, sacrifica a si próprio e

vence mais uma vez a morte.

Page 97: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

87

Considerações Finais

Os pousos se parecem uns com os outros. São necessários ao fôlego do viajor,

mas na marcha cada passo, mesmo o que leva

ao pouso, é um novo passo Alfredo Bosi

No início deste trabalho nos propomos a demonstrar de que modo o

escritor Jorge Semprún representava literariamente a dessacralização do corpo

durante o nazismo, na obra A escritura o la vida. No desenvolvimento da obra o

autor nos revela quais os mecanismos e os instrumentos operados pelos

nazistas para torturar, despersonalizar e exterminar o corpo dos prisioneiros.

Para tanto, tracejamos um percurso teórico para refletir sobre o que é e qual é

o papel do corpo no tempo moderno. De tal modo, constatamos que o corpo

moderno não é mais considerado como um “pedaço de matéria” ou “o invólucro

da alma”, mas sim, a identidade primeira do indivíduo, é através dele que

percebemos e sentimos o outro e o mundo. Porém, esse ponto de percepção

do ser é, ao mesmo tempo, um espaço de libertação e prazer e de dominação

e repressão, o que denota que o corpo é constantemente permeado por

relações de poder que visam manipulá-lo conforme interesses ideológicos e

capitalistas.

Baseados nesses pressupostos, verificamos o que representava o corpo

para o regime totalitário nazista, com isso compreendemos que dentro da

lógica perversa e doentia do nazismo o corpo foi dividido em corpo superior e

corpo inferior, concepção essa, com base em teorias raciais e científicas.

Portanto, todos os corpos contrários a essa lógica de superioridade, como o

corpo dos judeus e dos anti-nazistas, eram corpos indignos de terem vidas.

Esses corpos dentro dos campos de concentração nazistas sofreram cruéis

torturas e milhões foram exterminados.

O escritor espanhol, Jorge Semprún, por quase dois anos ficou preso no

campo de concentração nazista de Buchenwald, em 1994 publicou, em La

escritura o la vida (1995), o seu testemunho autobiográfico sobre sua

experiência no Lager. Para ele, somente a arte conseguiria representar os

Page 98: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

88

horrores do Holocausto, daquilo que ultrapassava os limites da compreensão

humana por ser algo indizível. Por essas questões o escritor ofereceu-nos as

impressões necessárias para refletirmos sobre esse corpo torturado durante o

nazismo, entretanto, era necessário verificarmos de que modo o escritor

perfilava essa violência em sua narrativa e se a mesma era configurada através

dos recursos estéticos.

Portanto, no segundo capítulo realizamos uma leitura analítica tanto do

conteúdo como da estrutura da obra em questão, pensando ambos como um

conjunto que desvela as impressões e experiências do escritor, configurando-

se em um estilo, ou seja, uma “voz decorativa de uma carne desconhecida e

secreta” (BARTHES, 1971, p.20), carne essa, que traz em si cicatrizes e dores

de uma experiência inesquecível. A respeito da influência do meio externo na

expressão artística, Michel Foucault (1990) explica que é de extrema

dificuldade haver uma linguagem que seja fiel, pois “todo o discurso puramente

reflexivo corre o risco, com efeito, de devolver a experiência do exterior à

dimensão da interioridade” (FOUCAULT, 1990, p.27). Dessa maneira,

concebemos que todos os recursos utilizados por Semprún na feitura de sua

narrativa testemunhal refletem e representam a catástrofe vivida.

Vimos que através de metáforas e figuras de construção o escritor

consegue expor a essência da crueldade dos soldados nazistas de

Buchenwald. Ele descreve a dessacralização do corpo dos deportados que

começava a partir do momento que eles chegavam ao campo, o que ocorria

com a troca de seus nomes por números, a retirada de seus objetos, a

raspagem brutal de seus cabelos e pêlos, os xingamentos, as violências

físicas, ou seja, com todas as estratégias possíveis para desmoralizar e

despersonalizar o prisioneiro. Após esse processo inicial, os presos conviviam

diariamente com torturas físicas e psicológicas que tornavam-se cada vez mais

atrozes. O escritor reflete sobre este momento ao narrar sobre as salas de

torturas, os instrumentos utilizados pelos nazistas para ferir o corpo causar-lhes

dores indizíveis.

A fome, o trabalho exaustivo, a insônia, o frio eram outros tipos de

torturas enfrentadas, mostrando que a aniquilação não ocorria de imediato,

mas a passos lentos, até o momento que não suportassem mais e se

entregassem à morte. Os que chegavam a esse estágio de entrega total são

Page 99: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

89

denominados por Semprún como “mulçumanos”, “cadáveres ambulantes”, e

são detalhados pelo escritor com uma construção imagética que metaforiza a

condição subumana desses prisioneiros que transitavam entre a vida e a

morte. Através da intermidiliadade com as artes visuais ele dimensiona ao leitor

a desfiguração corporal. Faz uso da arte pictórica para expressar o desespero

e a angústia desses homens, e da arte escultórica para plasmar a magreza de

seus corpos.

Com imagens anafóricas e reiterativas são figuradas as cicatrizes que

ficaram no corpo e na mente do sobrevivente, pois as utiliza para enfatizar o

constante retorno das imagens, dos odores e dos sons de Buchenwald em sua

memória. Toda essa vexação constitui-se em traumas que agrediram suas

percepções e os transformaram em um outro após a libertação, pois sempre se

sentia invadido pela morte que o atravessou no Lager.

É configurada, também, como a proporção traumática do Holocausto

impedia que o escritor sobrevivente regressasse à escritura, o qual criou

deliberadamente estratégias para tentar esquecer o horror vivenciado. Com

isso, o seu testemunho foi propositalmente evitado por quase cinqüenta anos, o

que só foi retomado após a morte de Primo Levi e do seu retorno à

Buchenwald. O próprio processo da elaboração de seu testemunho é

metalinguisticamente encenado no decorrer de sua narrativa, o que denota,

duplamente, a dificuldade do escritor em rememorar o passado, e que cada

passo e cada pausa desvelados no decorrer da narrativa, eram os fôlegos

necessários para que o mesmo alcançasse o seu objetivo de concretizar o seu

testemunho com vida.

As pausas e as elipses existentes tanto na forma como no conteúdo,

bem como, o efeito ziguezague funcionalizado pela anacronia, reflete a

interferência do fluxo da memória durante o processo de composição artística,

pois seu testemunho parte da rememoração de seu passado traumático.

Michael Pollak (1992), assim como Tzevetan Todorov (2000), abordam que a

memória é seletiva, onde “nem tudo fica gravado, nem tudo fica registrado”

(POLLAK, 1992, p.4), já que a mesma também sofre “flutuações que são

funções do momento em que ela é articulada, em que ela está sendo expressa.

As preocupações do momento constituem um elemento de estruturação da

memória” (POLLAK, 1992, p.4), assim, as flutuações e as seleções

Page 100: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

90

mnemônicas influenciaram na estruturação e na composição da narrativa

sempruniana, sendo figuradas por recursos elípticos.

Outro aspecto observado é o uso da intertextualidade, pois o autor traça

um diálogo com vários escritores literários e filosóficos, trazendo para dentro do

enredo fragmentos literários de obras diversas, o que representa os ecos dos

gritos e das vozes dos companheiros do campo que ficaram gravados em sua

memória, como também, um modo de preencher as lacunas do processo

dialético do lembrar e esquecer, que ocorre durante a feitura de seu

testemunho. A inserção recorrente do leitor é um modo também de construir

um interlocutor presente e disposto em escutá-lo, visto que os sobreviventes

não encontravam ouvintes preparados para os seus relatos de sofrimentos e

horrores inimagináveis, podendo assim, ter com quem, mesmo que de modo

ficcional, compartilhar o peso da dor existente em sua memória.

Portanto, é com um enredo entrecortado por outros textos e pelo jogo

anacrônico composto com uma narrativa fragmentada por elipses e lacunas na

estrutura e no conteúdo, e um discurso engendrado por metáforas, imagens e

figuras, que Semprún representa esteticamente o corpo dessacralizado nos

campos nazis. Processo de dessacralização que fez com que a composição de

sua narrativa fosse tecida mediante fragmentos, aos poucos e às pausas,

composição artística que reflete a fragmentação do corpo daquele que

regressou da morte.

Além de todas essas questões extremamente importantes, ele traz como

que se deu o processo de rememoração desse passado traumático e da sua

configuração em testemunho, o que encena a dificuldade do escritor em

publicar essa obra. Como uma reflexão final sobre esse singular escritor e essa

emblemática narrativa, pensamos na representação desse retorno de Semprún

à escritura, considerando que para o mesmo esse regresso era algo

necessário, porém, impossível. Mas, ele consegue a liberação mental para

deixar o registro.

A partir das reflexões de Adorno e Horkheimer, em Dialética do

esclarecimento (1975), pensamos que Jorge Semprún, como tantos outros

sobreviventes do Holocausto e de outros sistemas opressores do poder,

metaforizam o indivíduo moderno que para tornar-se emancipado

racionalmente renega sua própria identidade e se sacrifica para lograr novos

Page 101: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

91

saberes. Esclarecimento que ocorre primeiramente com Semprún através da

negação de seu próprio corpo, tendo em vista que enquanto esteve

encarcerado, por diversas vezes, ele exerceu um autodomínio sobre o seu

corpo na medida em que ignorou as suas súplicas de dor para não entregar-se

a morte, alcançando novos conhecimentos sobre si e resistindo ao inimigo.

Dessa maneira, evidencia-se o incessante interesse do poder de manipular o

corpo dos indivíduos, principalmente durante o nazismo, pois, conforme

demonstra Adorno e Horkheimer, a história do progresso de um país está

associada à história de dominação do corpo:

Sob a história da Europa corre, subterrânea, uma outra história. Ela consiste no destino dos instintos e paixões humanas recalcados e desfigurados pela civilização. O fascismo atual, onde o que estava oculto aparece à luz do dia, revela também a história manifesta em sua conexão com esse lado noturno que é ignorado tanto na legenda oficial dos Estados nacionais, quanto em sua crítica progressista. Essa espécie de mutilação afeta sobretudo a relação com o corpo (Körper) (ADORNO; HORKHEIMER, 1975, p.216) [itálico dos autores].

Num outro momento, após a libertação, ele novamente se sacrifica e

ignora suas dores e angústias para dar o seu testemunho, o que lhe

proporcionou a reconciliação com o seu passado traumático, um novo

entendimento acerca de seu presente e a renovação das esperanças para o

seu futuro. Processo de (re)elaboração e reconstrução mnemônica altamente

política que pôde manter viva a memória dos que não regressaram para contar

e ser uma maneira de “também lutar contra a repetição do horror” (GAGNEBIN,

2006, p.470). Infelizmente, como aponta André (2005), “no hay fronteras para

la impunidad, la aniquilación masiva y sistemática de la población”. No entanto,

afirma que

en momentos históricos como estos, tan brumosos y permeables de vida coloreada por tonalidades grisáceas y rojizas, las voces prematuramente enmudecidas se elevan en la belleza lírica de la poética testimonial, en esta “era de las catástrofes” (ANDRÉ, 2005, p. 30).

Page 102: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

92

O seu testemunho configurou-se em um novo rastro sobre a história do

Holocausto que se opõe as teses revisionistas, as quais buscam apagar todos

os rastros e provas sobre a aniquilação dos judeus e não judeus. Semprún não

traz em sua narrativa as estatísticas da quantidade de mortos durante o

nazismo, tampouco, a precisão das datas sobre essa catástrofe, pois segundo

ele, “acordarse y memorizar fechas no es lo mismo. [...] No se trata meramente

de una fecha para manuales escolares” (SEMPRÚN, 1995, p.129). Ao recordar

os momentos infernais vivenciados, ele imprime em suas páginas a morte e o

sofrimento impregnados em sua memória, plasma com minúcia a frieza dos

nazistas, reflete plasticamente a dor e o pavor dos deportados na agonia da

morte e com êxito relata-nos, de modo metafórico, a desestruturação paulatina

dos corpos no Lager.

Ao transmitir esteticamente todas essas questões inenarráveis, ele nos

transforma em novas testemunhas, pois não “fechamos o livro ao horror

relatado e prefiguramos também um rastro que busca juntamente com a arte,

humanizar o presente” (GAGNEBIN, 2006, p.57). Desse modo, contribuímos

para que esse passado de morte seja retomado de modo consciente,

colaborando na perpetuação dessa memória de horror que se configurou em

uma ferida aberta na memória coletiva da humanidade.

Page 103: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

93

Referências Bibliográficas

ADORNO, Theodor W. Teoria estetica . Trad: Fernando Riaza. Espanha: Taurus, 1980. _______. ¿Qué significa renovar el pasado? In: Intervenciones – Nueve modelos de crítica . Trad: Roberto J. Vernengo. Caracas: Monte Avila Editores, 1963. ________ ; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos . Trad: Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. ALBERTI, Verena. Literatura e autobiografia: a questão do sujeito na narrativa. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v.4, n.7, 1991. AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer – O poder soberano e a vida nua . Trad: Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004. _______. O que resta de Auschiwitz. Trad: Selvino J. Assmann; Prefácio: Jeanne Marie Gagnebin. 1.ed. São Paulo: Boitempo, 2008. ANDRADE, Carlos Drummond de. Corpo . Rio de Janeiro: Record, 1987. ANDRÉ, Rhina Landos Martínez. Testimonio. Catástrofe. Representación: Roque Dalton . São Paulo: Letraviva, 2005. ANDRÉ, Rhina Landos Martínez; OLIVEIRA, Ariagda dos Santos. Dos mujeres: El tatuaje de la violencia . Signótica – Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística/ Faculdade de Letras. Goiás, v. 20, n. 1, 2008. ARAÚJO, Miguel Almir L. Os sentidos do corpo. In: O corpo ainda é pouco – II Seminário sobre a contemporaneidade . CABEDA, Sonia T. Lisboa; CARNEIRO, Nádia Virginia B.; LARANJEIRA, Denise Helena P. (Orgs.). Feira de Santana: NUC/UEFS, 1998. ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal . Trad: José Rubens Siqueira. 5 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. _______. Origens do totalitarismo: o anti-semitismo, imperia lismo, totalitarismo . Trad: Roberto Raposo. 5 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. AUDOIN-ROUZEAU, Stéphane. Massacres – O corpo e a guerra. In: História do corpo 3 – as mutações do olhar. O século XX . CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges (Orgs.). Trad: Ephraim Ferreira Alves. 2ª. Ed. Petropolis: Vozes, 2008.

Page 104: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

94

AUERBACH. Erich. A cicatriz de Ulisses. In: Mimesis . 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 1976. BECKER, Annete. Extermínios – O corpo e os campos de concentração. In: História do corpo 3 – as mutações do olhar. O sécul o XX. CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges (Orgs.). Trad: Ephraim Ferreira Alves. 2 ed. Petropolis: Vozes, 2008. BARTHES, Roland. O grau zero da escritura . Trad: Anne Arnichand. São Paulo: Editora Cultrix, 1971. BAUMAN, Zygmunt. O escândalo da ambivalência. In: Modernidade e Ambivalência . Trad: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 1999. BELING, Romar Rudolfo. Uma poética da memória: o Holocausto na obra de Jorge Semprún . (Dissertação) Santa Cruz do Sul: UNISC, 2007. BENJAMIN, Walter. A modernidade e os modernos . Trad: Heindrun Kriecer Mendes da Silva; Arlete de Brito; Tânia Jatobá. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1975. _______ . Para una critica de la violencia . Trad: Roberto Blatt. Espanha: Taurus, 1991. _______ . A imagem de Proust. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura – obras esco lhidas v.1 . Trad: Sérgio Paulo Rouanet. 7ª. Ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. _______ . Experiência e pobreza. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura – obras esco lhidas v.1 . Trad: Sérgio Paulo Rouanet. 7.ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. _______ . O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre lit eratura e história da cultura – obras escolhidas v.1 . Trad: Sérgio Paulo Rouanet. 7 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. BLANCHOT, Maurice. La escritura del desastre . Trad: Pierre de Place. 2 ed. Caracas: Monte Avila Editores, 1990. BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia . 7 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. BRAUNSTEIN, Nestor A. Sobrevivendo ao trauma . Trad: Marylink Kufeberg, do original Surviving trauma. Tempo Psicanalítico. Rio de Janeiro: SPID (Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle), n. 35, s.d. Disponível em http://nestorbraunstein.com/trauma.html. Acesso em: Dez. 2010.

Page 105: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

95

CARVALHO, Yara Maria de. Corpo e História: O corpo para os gregos, pelos gregos, na Grécia Antiga. In: Corpo e História . SOARES, Carmen Lúcia (Org.). 2 ed. Campinas: Editora Autores Associados, 2004. CANETTI, Elias. Massas e Poder . Trad: Sérgio Tellaroli. 1 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. CANGI, Adrián. Imagens do horror. Paixões tristes. In: História, memória , literatura: testemunho na Era das Catástrofes . SILVA-SELIGMANN, Márcio (Org.). Campinas: Unicampo, 2005. CAPELATO, Maria Helena Rolim. Nazismo e a produção de guerra. In: Revista USP. São Paulo, Junho/Agosto, 1995. CARUTH, Cathy. Modalidade do despertar traumático (Freud, Lacan a ética da memória). In: Catástrofe e Representação. NESTROVSKI, Arthur; SELIGMANN-SILVA, Márcio (Orgs.). Catástrofe e Representação. São Paulo: Escuta, 2000. CAVALCANTI, Diego Rocha Medeiros. O surgimento do conceito “corpo”: implicações de modernidade e do individualismo . CAOS – Revista eletrônica de ciências sociais, 9 ed., set. 2005 (versão impressa). CHALHUB, Samira. A meta-linguagem . 4 ed. São Paulo: Editora Ática, 1998. CLÜVER, Claus. Inter textus/ inter artes/ inter media. Aletria, Jul-Dez. 2006. Disponível em http://www.letras.ufmg.br/poslit. Acessado em Jan. 2011. CORBIN, Alain. Dores, sofrimentos e misérias do corpo. In: História do corpo 2 – Da revolução à Grande Guerra . CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges (Orgs.). Trad: Ephraim Ferreira Alves. 2 ed. Petropolis: Vozes, 2008. COURTINE, Jean-Jacques. O espelho da alma. In: História do corpo 1 – Da Renascença às luzes . CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges (Orgs.). Trad: Ephraim Ferreira Alves. 2 ed. Petropolis: Vozes, 2008. _______ . O corpo anormal – História e antropologia culturais da deformidade. In: História do corpo 3 – as mutações do olhar. O sécul o XX. CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges (Orgs.). Trad: Ephraim Ferreira Alves. 2 ed. Petropolis: Vozes, 2008. CYTRYNOWICZ, Roney. O silêncio do sobrevivente: Diálogos e rupturas entre memória e história do Holocausto. In: História, memória , literatura: testemunho na Era das Catástrofes . SILVA-SELIGMANN, Márcio (Org.). Campinas: Unicampo, 2005.

Page 106: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

96

DE MARCO, Valeria. A Literatura de Testemunho e a violência de Estado . São Paulo: Lua Nova, 2005. _______ . La escritura o la vida: a impossibilidade de ver . Revista Cultura Crítica/09. São Paulo: APROPUC, 2010. Disponível em http://www.apropucsp.org.br/. Acessado em Jan. 2011. DREIZIK, Pablo. Figuras del cuerpo rememorado. In: O corpo torturado . KEIL, Ivete; TIBURI, Márcia (Orgs.). Porto Alegre: Escritos, 2004. “El triunfo de los deportados”. Entrevista com Jorge Semprún. El país . Disponível em http://www.vespito.net/historia/sempru.html. Acesso em: 20/07/09. FLEIG, Mario. O mal-estar no corpo. In: O corpo torturado . KEIL, Ivete; TIBURI, Márcia (Orgs.). Porto Alegre: Escritos, 2004. FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder . Trad: Roberto Machado. 5 ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985. _______. O pensamento do exterior . Trad: Nurimar Falci. São Paulo: Princípios, 1990. _______. Vigiar e Punir – História da violência nas prisões . Trad: Raquel Ramalhete. 36 ed. Petrópolis: Vozes, 2009. _______. História da Sexualidade Vol. 1 – A vontade do saber . Trad: Maria Thereza da Costa Albuquerque; J. A. Guillhon Albuquerque. 19 ed. São Paulo: Graal, 2009. _______. História da Sexualidade Vol. 2 – O uso dos prazeres . Trad: Maria Thereza da Costa Albuquerque; J. A. Guillhon Albuquerque. 13 ed. São Paulo: Graal, 2009. _______. História da Sexualidade Vol. 3 – O cuidado de si . Trad: Maria Thereza da Costa Albuquerque; J. A. Guillhon Albuquerque. 10 ed. São Paulo: Graal, 2009. FULGENCIO, Leopoldo. A noção de trauma em Freud e Winnicott . São Paulo: Natureza Humana. 6(2), dez/2004. GAGNEBIN, Jeane Marie. Após Auschwitz. In: História, memória , literatura: testemunho na Era das Catástrofes . SILVA-SELIGMANN, Márcio (Org.). Campinas: Unicamp, 2005. _______. O rastro e a cicatriz: metáforas da memória. In: Lembrar escrever esquecer . 34 ed. São Paulo,2006. _______.Homero e Dialética do Esclarecimento. In: Lembrar escrever esquecer . 34 ed. São Paulo,2006.

Page 107: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

97

_______.Verdade e memória do passado. In: Lembrar escrever esquecer . 34 ed. São Paulo, 2006. _______.Memória, história, testemunho. In: Lembrar escrever esquecer . 34 ed. São Paulo, 2006. _______. Escrituras do corpo. In: Lembrar escrever esquecer . 34 ed. São Paulo, 2006. _______. O que significa elaborar o passado?. In: Lembrar escrever esquecer . 34 ed. São Paulo, 2006. GARCIA, Wilton. O corpo espetacularizado. In: Corpo e cultura . LYRA, Bernadette; GARCIA, Wilton (Orgs.). São Paulo: ECA USP, 2001. GELIS, Jacques. O corpo, a Igreja e o Sagrado. In: História do corpo 1 – Da Renascença às luzes . CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges (Orgs.). Trad: Ephraim Ferreira Alves. 2 ed. Petropolis: Vozes, 2008. GENETTE, Gerard. Discurso da narrativa . Trad: Maria Alzira Seixo. Lisboa: Arcádia, 1979. GRECO, El. Laocoonte . Artehistória – genios de la pintura. Disponível em http://www.artehistoria.jcyl.es/genios/cuadros/1737.htm. Acessado em Jan.2011. GONDAR, Jô. Lembrar e esquecer: desejo de memória. In: Memória e espaço . GONDAR, J.; COSTA, J.J.M. (Orgs.). Rio de Janeiro: 7 Letras, 2000. HARTMAN. Groffrey H. Holocausto, testemunho, arte e trauma. In: Catástrofe e Representação. NESTROVSKI, Arthur; SELIGMANN-SILVA, Márcio (Orgs.). Catástrofe e Representação. São Paulo: Escuta, 2000. HOMERO. Odisséia . Trad: Jaime Bruna. 18 ed. São Paulo: Cultrix, 2008. HOWE, Irving. A escrita e o holocausto. In: Cadernos de língua e literatura hebraica . São Paulo: USP, No 2, 1999. KAPP, Silke. A dor dos outros. In: O corpo torturado . KEIL, Ivete; TIBURI, Márcia (Orgs.). Porto Alegre: Escritos, 2004. KEHL, Maria Rita. Três perguntas sobre o corpo torturdo. In: O corpo torturado . KEIL, Ivete; TIBURI, Márcia (Orgs.). Porto Alegre: Escritos, 2004. LEVI, Primo. É isto um homem? . Trad: Luigi Del Re. Rio de Janeiro: Rocco, 1988.

Page 108: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

98

_______. Os afogados e os sobreviventes . Trad: Luiz Sergio Henrique. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. LLOSA, Mario Vargas. La verdad de las mentiras . Argentina: Algaguara, 2002. LONGINO. Do sublime . São Paulo: Martins Fontes, 1996. MACIEL, Sheila Dias. A literatura e os gêneros confessionais . In: Em diálogo: estudos literários e lingüísticos. Campo Grande: Editora UFMS, 2004. _______. Memória espacial e deslocamento em O caminho de San Giovanni de Ítalo Calvino . Grogoatá, Niterói, n.17, 2º Sem., 2004. MARÇAL, Márcia Romero. Jorge Semprún: Forma precária e Literatura de Testemunho . (Tese) – São Paulo: USP, 2008. MATHEWS, Timothy. Reading W. G. Sebald With Alberto Giacometti . Disponível em http://www.ucl.ac.uk/opticon1826/archive/issue1/sebald.pdf. Acessado em jan.2011 MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção . Trad: Reginaldo Di Piero. 1ª. Ed. São Paulo: Livraria Freitas Bastos, 1971. MICHAUD, Yves. A violência . Trad: L. Garcia. São Paulo: Editora Ática, s.d. _______. O corpo e as artes visuais. In: In: História do corpo 3 – as mutações do olhar. O século XX . CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges (Orgs.). Trad: Ephraim Ferreira Alves. 2 ed. Petropolis: Vozes, 2008. MOREIRA, Vicente Deocleciano. Graça e Gramsci, corpos adoçados pelo amaro da intolerância. In: O corpo ainda é pouco – II Seminário sobre a contemporaneidade . CABEDA, Sonia T. Lisboa; CARNEIRO, Nádia Virginia B.; LARANJEIRA, Denise Helena P. (Orgs.). Feira de Santana: NUC/UEFS, 1998. MOSER, Walter. As relações entre as artes: por uma arqueologia da intermidialidade . Aletria, Jul-Dez. 2006. Disponível em http://www.letras.ufmg.br/poslit. Acessado em Jan. 2011. NUNES FILHO, Nabor. Eroticamente humano . Piracicaba: UNIMEP, 1994. OLMI, Alba. Memória autobiográfica e pensamento narrativo. In: Memória e memórias: Dimensões da literatura memorialista . Santa Cruz do Sul: ENUNISC, 2006. _______. Memorialismo e ficção: quando a vida é um romance. In: Memória e memórias: Dimensões da literatura memorialista . Santa Cruz do Sul: ENUNISC, 2006.

Page 109: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

99

PAULA, Júlio César Machado de. Mímesis entre espinhos: uma leitura de “O cacto”, de Manuel Bandeira. Todas as musas, ano 1, No. 2, jan-jul 2010. Disponível em http://www.todasasmusas.org/02Julio_Cesar.pdf. Acessado em jan. 2011. PERROT, Michele. Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros . Trad: Denise Bottmann. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2010. PLATÃO. A República . Trad: Maria Helena da Rocha. 9 ed. Lisboa: Fundação Calonste Gulbenkian, 1949. POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio . Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, No. 3, 1989. _______ . Memória e identidade social . Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992. PROUST, Marcel. No caminho de Swann: Em busca do tempo perdido . Trad: Mário Quintana. 3 ed. São Paulo: Editora Globo, 2006. RICOEUR, Paul. A metáfora viva . 2ª Ed São Paulo: Edições Loyola, 2005. RODRIGUES, José Carlos. O tabu do corpo . Rio de Janeiro: Edições Achiamé Ltda, 1975. ROSENFELD, Anatol. As causas psicológicas do nazismo. In: Texto/Contexto II. São Paulo: Perspectiva, 1993. _______. Reflexões do romance moderno. In: Texto/Contexto I . São Paulo: Perspectiva, 1996. SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. Corpo e história. In: O corpo ainda é pouco – II Seminário sobre a contemporaneidade . CABEDA, Sonia T. Lisboa; CARNEIRO, Nádia Virginia B.; LARANJEIRA, Denise Helena P. (Orgs.). Feira de Santana: NUC/UEFS, 1998. SAYÃO, Débora Thomé. Corpo, poder e dominação: um diálogo com Michelle Perrot e Pierre Bourdieu . Perspectiva. Florianópolis, v.21, n.01, p. 121-149, jan./jun.2003. Disponível em http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/perspectiva/article/viewFile/10210/9437 Acessado em Dez.2010. _______. É possível realizar uma história do corpo? In: Corpo e História . SOARES, Carmen Lúcia (Org.). 2.ed. Campinas: Editora Autores Associados, 2004. SEMPRÚN, Jorge. A grande viagem . Trad: Celina Luz. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.

Page 110: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

100

_______. Um belo domingo . Trad: Aulyde Soares Rodrigues. 2ª Ed.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. _______. La escritura o la vida . Trad: Thomas Kauf. Barcelona: Fabula Tusquets, 1995. _______. A escrita ou a vida . Trad: Rosa Freire D’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. _______. O morto certo . Trad: Eloísa Araújo Ribeiro. São Paulo: Arx, 2005. SILVA, Ana Márcia. A natureza da physis humana: indicadores para o estudo da corporeidade. In: Corpo e História . SOARES, Carmen Lúcia (Org.). 2 ed. Campinas: Editora Autores Associados, 2004. SILVA-SELIGMANN, Márcio. A história como trauma. In: Catástrofe e Representação. NESTROVSKI, Arthur; SELIGMANN-SILVA, Márcio (Orgs.). Catástrofe e Representação. São Paulo: Escuta, 2000. _______. Arte, dor e kátharsis ou variações sobre a arte de pintar o grito. In: O corpo torturado . KEIL, Ivete; TIBURI, Márcia (Orgs.). Porto Alegre: Escritos, 2004. _______. Testemunho: entre ficção e o real. In: História, memória , literatura: testemunho na Era das Catástrofes . SILVA-SELIGMANN, Márcio (Org.). Campinas: Unicamp, 2005. _______. Reflexões sobre a memória, a história e o esquecimento. In: História, memória , literatura: testemunho na Era das Catástrofes . SILVA-SELIGMANN, Márcio (Org.). Campinas: Unicamp, 2005. _______. Catástrofe, história e memória em Walter Benjamin e Chris Marker: a escritura da memória. In: História, memória , literatura: testemunho na Era das Catástrofes . SILVA-SELIGMANN, Márcio (Org.). Campinas: Unicamp, 2005. _______. Testemunho e a política da memória: o tempo depois das catástrofes. Proj. História , São Paulo, No 30, 2005. SOARES, Carmen Lúcia. Corpo, conhecimento e educação: notas esparsas. In: Corpo e História . SOARES, Carmen Lúcia (Org.). 2 ed. Campinas: Editora Autores Associados, 2004. TODOROV, Tzvetan. Los abusos de la memoria . Barcelona: Editora Paidós, 2000. TAVARES, Hênio. Teoria Literária . 12 ed. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2002.

Page 111: LA ESCRITURA O LA VIDA : AS CICATRIZES … · pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley, ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho

101

VALLS, Álvaro L.M. O corpo torturado. In: O corpo torturado . KEIL, Ivete; TIBURI, Márcia (Orgs.). Porto Alegre: Escritos, 2004. VALVERDE, Monclar. Corpo e sensibilidade. In: O corpo ainda é pouco – II Seminário sobre a contemporaneidade . CABEDA, Sonia T. Lisboa; CARNEIRO, Nádia Virginia B.; LARANJEIRA, Denise Helena P. (Orgs.). Feira de Santana: NUC/UEFS, 1998. VAZ, Alexandre Fernandez. Memória e progresso: sobre a presença do corpo na arqueologia da modernidade em Walter Benjamin. In: Corpo e História . SOARES, Carmen Lúcia (Org.). 2 ed. Campinas: Editora Autores Associados, 2004. VELLOSO, Rita de Cássia Lucena. O outro si que retorna da viagem. In: O corpo torturado . KEIL, Ivete; TIBURI, Márcia (Orgs.). Porto Alegre: Escritos, 2004. WEIGEL, Sigrid. Cuerpo, Imagen y espacio em Walter Benjamin – una relectura . 1ª Ed. Barcelona: Paidós, 1999.