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IV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA - ANPUH-BA HISTÓRIA: SUJEITOS, SABERES E PRÁTICAS. 29 de Julho a 1° de Agosto de 2008. Vitória da Conquista - BA. O INVENTÁRIO DA IGRE JA E DO SEMINÁRIO DE BETHLEM. NOTAS SOBRE COTIDIAN O ESCOLAR E RELIGIOS IDADE (CAPITANIA DA BAHIA, 1686-1759) 1 Lais Viena de Souza Mestre em História pela Universidade Federal da Bahia E-mail: [email protected] Palavras-chave: Cultura escolar. Catolicismo. Bahia séculos XVII - XVIII. Entre os anos de 1759 e 1760 foi ordenada a inventariação de todos os bens pertencentes ao Seminário de Belém 2 . Foram descritas as Imagens, os ornamentos, os objetos sacros e litúrgicos, o ouro e a prataria, as roupas (panos) e os “trastes” da Igreja, da Sacristia e das Congregações d o seminário fundado em fins do século XVII pela Companhia de Jesus no Recôncavo baiano. Neste artigo buscamos apresentar algumas notas s obre este Seminário de Belém, um internato para educação de meninos entre os 12 e 17 anos. Atentando principalmente para o seu cotidiano escolar e ambiência religiosa tendo como fonte principal este inventário e seus preciosos e curiosos detalhamentos. O Seminário de Belém teve principiada sua fundação no ano de 1686 nas proximidades do porto de Nossa Senhora do Rosário de Cachoeira por iniciativa do padre Alexandre de Gusmão (1629 -1724). Destacado religioso dos quadros da Companhia de Jesus foi provincial, vice -provincial, exerceu os c argos de professor de Filosofia, Mestre de Noviços e reitor em colégios no Estado do Brasil. Foi autor de obras de cunho ascético e moral, como História do Predestinado Peregrino e se u Irmão Precito (1682) e o tratado Arte de crear bem os filhos na idade d a Puerícia (1685). A respeito do Seminário de Belém, padre Alexandre de Gusmão deixou registrada s suas impressões sobre a fundação e o funcionamento em Rosa de Nazareth nas montanhas de Hebron (1715). Nas palavras do jesuíta: “A casa he a mayor, & mais fe rmosa do Brasil, capaz de receber duzentos meninos; a Igreja, & Sacristia a mais linda, & de ricas pessas, que o Brasil tem”. Narrou ainda o padre que os meninos viviam como religiosos, não diferindo destes além dos votos, vivendo em “em clausura ao som de campainha, com summa obediência, & sugeyçaõ aos Mestres” (GUSMÃO, 1715, p. 362). O regimento do Seminário de Belém foi escrito pelo padre Alexandre de Gusmão, remetido e aprovado pelo Padre Geral em Roma padre Alexandre de Gusmão (1694, 1696). 1 Este artigo é resultado da pesquisa de Mestrado financiada através da bolsa concedida pelo CNPq (2006 -2008). 2 Arquivo Histórico Ultramarino. Projeto Resgate. Fundo Eduardo Castro e Almeida. Bahia. Caixa 26, Doc. 4894.

Lais Viena de Souza - uesb.br Viena de Souza.pdf · Dos remotos tempos do seminário testemunha a Ig reja de Nossa Senhora de Belém no ... assim de ouro, como de prata, e de outra

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IV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA - ANPUH-BA HISTÓRIA: SUJEITOS, SABERES E PRÁTICAS.

29 de Julho a 1° de Agosto de 2008. Vitória da Conquista - BA.

O INVENTÁRIO DA IGRE JA E DO SEMINÁRIO DE BETHLEM. NOTAS SOBRE COTIDIAN O ESCOLAR E RELIGIOS IDADE

(CAPITANIA DA BAHIA, 1686-1759) 1

Lais Viena de Souza Mestre em História pela Universidade Federal da Bahia

E-mail: [email protected]

Palavras-chave: Cultura escolar. Catolicismo. Bahia séculos XVII - XVIII.

Entre os anos de 1759 e 1760 foi ordenada a inventariação de todos os bens

pertencentes ao Seminário de Belém2. Foram descritas as Imagens, os ornamentos, os objetos

sacros e litúrgicos, o ouro e a prataria, as roupas (panos) e os “trastes” da Igreja, da Sacristia e

das Congregações d o seminário fundado em fins do século XVII pela Companhia de Jesus no

Recôncavo baiano. Neste artigo buscamos apresentar algumas notas s obre este Seminário de

Belém, um internato para educação de meninos entre os 12 e 17 anos. Atentando

principalmente para o seu cotidiano escolar e ambiência religiosa – tendo como fonte

principal este inventário e seus preciosos e curiosos detalhamentos.

O Seminário de Belém teve principiada sua fundação no ano de 1686 nas

proximidades do porto de Nossa Senhora do Rosário de Cachoeira por iniciativa do padre

Alexandre de Gusmão (1629 -1724). Destacado religioso dos quadros da Companhia de Jesus

foi provincial, vice -provincial, exerceu os c argos de professor de Filosofia, Mestre de Noviços

e reitor em colégios no Estado do Brasil. Foi autor de obras de cunho ascético e moral, como

História do Predestinado Peregrino e se u Irmão Precito (1682) e o tratado Arte de crear bem

os filhos na idade d a Puerícia (1685).

A respeito do Seminário de Belém, padre Alexandre de Gusmão deixou registrada s

suas impressões sobre a fundação e o funcionamento em Rosa de Nazareth nas montanhas de

Hebron (1715). Nas palavras do jesuíta: “A casa he a mayor, & mais fe rmosa do Brasil, capaz

de receber duzentos meninos; a Igreja, & Sacristia a mais linda, & de ricas pessas, que o

Brasil tem”. Narrou ainda o padre que os meninos viviam como religiosos, não diferindo

destes além dos votos, vivendo em “em clausura ao som de campainha, com summa

obediência, & sugeyçaõ aos Mestres” (GUSMÃO, 1715, p. 362).

O regimento do Seminário de Belém foi escrito pelo padre Alexandre de Gusmão,

remetido e aprovado pelo Padre Geral em Roma padre Alexandre de Gusmão (1694, 1696).

1 Este artigo é resultado da pesquisa de Mestrado financiada através da bolsa concedida pelo CNPq (2006 -2008). 2 Arquivo Histórico Ultramarino. Projeto Resgate. Fundo Eduardo Castro e Almeida. Bahia. Caixa 26, Doc. 4894.

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Compôs-se em três partes – Regulamento do Seminário de Belém , Ordem para os que

assistem no Seminário de Belém e Ordem que se deve guardar no Seminário de Belém . Nestas

normas foram prescritos o funcionamento do seminário, disciplina, currículo escolar e

orientações para o cotidiano (LEITE, 1945, p. 180 -188).

Logo no primeiro parágrafo do Regulamento foi expressa uma idéia fundamental para

a compreensão de sua proposta educativa . Cito: “O fim deste Seminário é criar os meninos em

santos e honestos costumes, principal mente no temor de Deus e inclinação às coisas

espirituais afim de saírem ao diante bons cristã os”. E, “além disto, hão-de aprender a ler,

escrever, contar, gramática e Humanidades”. A proposta pedagógica/ moral do Seminário de

Belém, confluente à própria c onfiguração pedagógica da Companhia de Jesus, poderia ser

resumida na expressão do ensino das “letras e honestos costumes” (LEITE, 1945, p. 180;

FRANCA, 1952, p. 181; SOUZA, 2008, p. 113-117, grifos da autora ).

Literatos de princípios do século XVIII traça ram notas sobre o Seminário de Belém.

Nuno Marques Pereira (1739) no Compêndio narrativo do Peregrino da América (1ª edição –

1718) descreveu a passagem do andarilho pelo porto de Cachoeira, registrando elogiosas

notas sobre a Igreja de Nossa Senhora de Be lém. Nas palavras do Peregrino, o Templo de

Belém foi todo feito com “primor e arte”:

[...] traçado e fabricado por seu Fundador o venerável Padre Alexandre de Gusmão da Companhia de Jesus [...] tanto pelas medições e regras da Geometria, como pelas corre spondências do bem arrimado dos Altares, e Púlpitos: os quaes são feitos de luzida, e burnida de tartaruga com frisos brancos de marfim, que bem pudera apostar vantagens com o mais perfeito embutido da Europa, e do mais luzido jaspe de Genova, e polido de Italia. E está em tal proporção toda a igreja, que em nada se lhe póde pôr tacha; mas antes tem muito que se engrandecer, e louvar (PEREIRA, 1939, p. 76 , grifos da autora).

Sebastião da Rocha Pitta em sua História da América Portuguesa (1ª edição – 1730)

descreveu o seminário como “capacíssimo e perfeito”, no qual eram recolhidos meninos para

ensinar as primeiras letras e criá-los nas “virtudes, e exercicios christãos”. Pela época que

escrevia, afirmou o historiador que o Seminário crescia em ingresso de s eminaristas,

registrando já havia saído “muitos, e virtuosos sogeitos para o habito de S. Pedro, e para os

das outras Ordens Clautrais, e até para o século perfeitos Varões” (ROCHA PITTA, 1950, p.

278).

Destas descrições fica -nos a indagação sobre o cotid iano e funcionamento deste

Seminário de Belém além das prescrições traçadas pelo regimento. No que diz respeito à

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estrutura física do seminário, destaque para o desenho da planta do Seminário enviada em 4

de junho de 1687 pelo padre Alexandre de Gusmão ao Padre Geral em Roma, juntamente com

o pedido para a sua licença (LEITE, 1945, p. 190) .

Figura 1 - Cópia da planta do Seminário de Belém reproduzida por justaposição por Leite (1945, p. 190).

Dos remotos tempos do seminário testemunha a Ig reja de Nossa Senhora de Belém no

povoado que conserva ainda o nome de Belém de Cachoeira (Figura 2). O pequeno templo ,

que teve em sua frontaria erigido um cruzeiro, possui uma única torre adornada com louça de

atribuição oriental e a porta de almofadas (Figura 3). Patrimônio histórico artístico nacional, a

igreja passou recentemente por recuperação e restauro em que lhe devolveram alguns

elementos iniciais, como a pintura da Capela principal (Figura 4) e o completo restauro da

belíssima pintura de sua Sac ristia (Figura 5).3

3 Livro de Tombo de Belas -Artes, conforme resolução nº 0122 - T- 38, inscrição 140, de 17 de junho de 1938, e posterior Resolução do Conselho Consultivo da SPHAN, de 13 de agosto de 1985, referente ao Processo Administrativo nº 13/85/SPHAN).

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Figura 2 – Igreja de Nossa Senhora de Belém. Fonte: Acervo pessoal, 2006.

Figura 3 – Igreja de Nossa Senhora de Belém. Fonte: Acervo pessoal, 2006.

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Figura 4 – Forro do teto da Capela Principal. A direita detalhe das janelas que iluminam a igreja com luz natural. Fonte: Acervo pessoal, 2007.

Figura 5 – Forro da Sacristia. Fonte: Acervo pessoal, 2007.

Da estrutura do Seminá rio de Belém – do edifício e das acomodações para os

pequenos seminaristas , como o alojamento e as salas de aula que podem ser identif icados em

sua planta (Figura 1) – nada mais são observáveis em Belém de Cachoeira. N ão podem ser

encontrados nem ao menos indícios visuais, pois o povoado cresceu em redor da igreja,

suprimindo a antiga edificação.

Para contar a história da cultura material do semin ário podemos contar com preciosas

fontes documentais : o inventário de bens (1759-1760) que marcam o encerramento das suas

atividades educativas. Vale assinalar que além da listagem dos encontrados pelos avaliadores

em Belém foram ordenadas a consecução da lista e avaliação das terras e imóveis do

seminário, como casas de aluguel na cidade de Salvador e fazendas de g ado no sertão de

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Itapicurú (SOUZA, 2008, p. 147, Anexo III). Neste artigo atentaremos , sobretudo, para a

listagem dos bens encontrados em Belém em fins do ano de 1759.

A inventariação de todos os bens do Seminário de Belém atendia ao mandado da coroa

lusitana para o seqüestro dos bens das Ordens Religiosas que não portassem licença régia,

expedido pelo rei D. José I, sob ingerência direta do seu poderoso primeiro ministro,

Sebastião José de Carvalho e Mello, o Marquês de Pombal. A obrigatoriedade deste

consentimento da Coroa estava disposta desde as Ordenações Afonsinas (1466), e repetidas na

legislação lusitana subseqüentes, na Manuelina (1521) e Filipina (1603). A deflagração para a

ordem real, que culminou com a expulsão da Companhia de Jesus no mesmo ano de 1759,

pode ser compreendida na confluência, tais como, a riqueza que a Igreja de Roma, e de modo

mais específico que a Companhia de Jesus havia angariado no Reino português e em suas

possessões. Acrescenta -se a tentativa de regicídio, na qual os jesuít as foram acusados de

mentores, e os ventos do Absolutismo que sopravam sobre a Europa (SANTOS, 2002, p. 89 -

115).

O inventário do Seminário de Belém foi datado de 29 de dezembro de 1759, por

execução direta do desembargador Francisco de Figueiredo Vaz. Seg undo apontado pelo

escrivão Jozé Antunes Pereira, foi solicitado ao então reitor Francisco de Lago, e convocados

todos os padres e “súditos” para que apresentassem os bens da Igreja e da Sacristia . A entrega

foi designada pelo reitor ao padre Felix Viana, prefeito da Igreja, e ao irmão Manoel Lopes .

Ambos prestaram juramento sobre os Evangelhos com suas mãos direitas, para que “sem

dolo, nem malicia declarassem com distinção todos os bens, pertecentes a Sachristia, e Igreja

sem occultos couza alguma, assim de ouro, como de prata, e de outra qualquer specie, e

qualidade, que forem sub pena de inocorrerem nas de perjuro ” (AHU, Doc. 4894) .

Importante relato sobre a expulsão da Companhia de Jesus do Brasil e da Índia foi

dado pelo padre José Caeiro, contemporân eo a estes eventos. Descreveu o clérigo todo o

processo, desde a expedição da ordem para seqüestro dos bens, a prisão dos padres, irmãos e

noviços na Bahia, a acusação de atentando ao rei e o exílio e espoliação dos jesuítas destas

terras. Vale destacar se u relato sobre o modo que foi procedido o seqüestro dos bens do

Seminário de Belém, a prisão dos padres residentes, e a despedida desumana e grosseira aos

pequenos seminaristas.

O desembargador Francisco Figueiredo Vaz, nada afecto aos jesuítas, deu -se logo pressa a ir cumprir as ordens do Governador. Dirigiu -se ao seminário de Belém (Cachoeira); pôs guardas em volta da casa, e, com modo muito deshumanos e grosseiros, atirou para a rua os seminaristas. Aos jesuítas

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contava-os duas vezes ao dia. Até as cin zas de veneráveis finados as pos também no rol dos da casa; e aos padres obrigou -os com juramento a que não ocultassem dinheiro algum ou publico ou particular. E, depois de os ter maltratado durante trêse dias, mandou os sete padres, e dois escolásticos e dois coadjutores, que la moravam, para a cidade da Baía, escoltados por u m destacamento de força publica (CAEIRO, 1936, p. 99-100).

Nos dias 22 e 23 de janeiro de 1760 foi assinado o termo de concór dia e conferência

de todos os bens do seminário pelo des embargador Francisco de Figueiredo Vaz e pelo

Arcebispo Gonçalo de Souza Falcão. Neste documento foi registrado pelo escrivão Jozé

Antunes Pereira que então a “Igreja, fabrica a ella pertencente, à Sachristia, e à sua Capella

interior, vazos sagrados, orna mentos, e outros quais quer bens Ecleziasticos” seriam

transferidas para a posse do clero secular. A estes passaria à incumbência de administrar os

ofícios divinos, as obrigações quanto aos legados pios e a conservar o edifício do Seminário

(AHU, Doc. 4894).

O inventário foi composto de trinta e sete páginas , em que constam os termos e a

listagem extensa dos bens da Igreja, Sacristia e das Congregações. Seguidamente foram

listadas: (1) as Imagens; (2) Ouro e Prata; (3) Roupas, repartidas em brancas e de cor ; (4) e

separadamente os bens das Congregações. Em particular neste artigo destacaremos a

descrição física do seminário pelos avaliadores em um trecho em meio à lista de bens.

Deste modo foi descrita a Igreja de Nossa Senhora de Belém: “Hum Templo dedicado

a Nossa Senhora de Belém, com o frontispício para a parte do Nascente, e a porta principal de

almofadas, e duas janellas, com suas grades e seo adro, que occupa todo o lugar do mesmo

Templo, e com hua Torre com quatro sineiras”. Na data do inventário poss uía apenas uma

torre, contudo, conforme assinalado pelo padre Serafim Leite (1945, p. 192), havia

inicialmente duas, e uma ruiu ainda em suas primeiras décadas de funcionamento . No

inventário, a torre foi descrita com quatro sinos e um relógio grande muito velho, que não

dava mais as horas (AHU, Doc. 4894).

Adentrando as portas da pequena Igreja de Nossa Senhora de Belém os avaliadores

observaram os cinco nichos no altar -mor (Figura 6). O maior e central servia de “trono” para

as imagens da Sagrada Famíli a, Nossa Senhora, São José e o Menino Jesus, representando o

mistério do Nascimento do Salvador, devoção a qual foi dedicado o seminário e sua igreja.

Emoldurados no altar da Capela principal, iluminada pela luz natural de suas janelas, e

encimada por uma cúpula profusamente colorida representando a Natividade do Senhor, as

três imagens receberam ainda muitos ornamentos.

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Completando o cenário do altar -mor estavam as imagens do Padre Fundador da

Companhia de Jesus, Santo Inácio de Loyola, e do Apóstolo do O riente, São Francisco

Xavier, cada qual a um lado da Sagrada Família. Nos nichos superiores, estavam São João

Batista e São João Evangelista. Nos dois altares laterais estavam os “avós de Jesus”

completando assim a representação da Sagrada Família. Da part e do Evangelho (esquerda),

estavam as imagens de Santa Ana, um Senhor Crucificado, e uma Santa Quitéria com seu

pequeno relicário. Na parte da Epístola (direita) estava São Joaquim, com seu cajado de prata,

ao lado de São Benedito, e outra imagem do Senhor Crucificado. Ainda no altar -mor estavam

dispostos os objetos litúrgicos: cálices, âmbulas, castiçais e turíbulos com muitos marcos de

prata...

Figura 6 – Capela principal. Fonte: Acervo pessoal, 2007.

Segundo estava determinado no Regulamento do Seminário, nas Ordens que se

deviam guardar no Seminário de Belém , os meninos deveriam visitar ao menos duas vezes ao

dia a Igreja. Logo ao amanhecer fariam as preces e assistiriam a Missa. À noite, após a ceia,

ouviriam a lição espiritual, visitariam o Senhor e a Senhora no altar -mor, fariam breve exame

de consciência, e rezariam as preces noturnas. Foi expressamente orientado que a doutrina dos

meninos deveria ser feita todos os Domingos, para que assim aprendessem os “mistér ios da fé

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com inteligência”. Foi ainda indicado que o Padre ministrante dos ofícios religiosos não se

estendesse em exortações ao povo no sermão, mas que atentassem para “fazer a doutrina” aos

seminaristas, que era esta sua maior obrigação (LEITE, 1945, p. 180-188).

Em Rosa de Nazareth nas montanhas de Hebron , padre Alexandre de Gusmão, narrou

que todos os dias, ao findar as classes, tinham os meninos as práticas espirituais, nas quais

cuidavam “principalmente”, em suas palavras, em lhes intimar “o temor d e Deos, pureza da

alma, & mais bons costumes, com a devoção da Senhora”. Nos Domingos ouviam a Doutrina,

e comungavam nas festas de Cristo, e da Senhora. Todos os dias, na devoção da Senhora com

que eram criados, rezavam o terço em coros e Ladainhas. Desta cou o padre que os meninos

guardavam “sempre o bom costume de visitar o Senhor, & a Virge a santíssima ao ir, & vir da

classe” (GUSMÃO, 1715, p. 363).

Pelas portas laterais na nave da Igreja passamos à sua Sacristia, s egundo a descrição

do inventário, os nichos pintados de branco com singelas guirlandas de flores que adornam

suas laterais recebiam duas imagens de Nossa Senhora da Conceição. Da parte do Evangelho,

estava ainda uma Imagem de pedra do Senhor Ecce -homo. Da parte da Epístola, outra

Imagem do Nosso Senhor Crucificado, uma imagem de Nossa Senhora da Soledade, e outra

de São João, e uma caixa pequena com uma relíquia de São Ângelo. No i nventário foi listada

ainda uma imagem de Nossa Senhora das Dores, e diversas peças de presépio.

Descrita a igreja e a sacristia, o inventário, principiou a apontar as acomodações do

seminário. Localizada ao norte da Igreja estava a portaria, que tinha uma varanda, e logo na

entrada havia “hum altar de madeira feito de talha, ainda por pintar, em o qual se acha

collocada Nossa Senhora da Conceição” uma imagem de Nosso Senhor Crucificado pequeno

de ouro, e um retrato do Coronel Antonio de Aragão de Menezes, “insigne benfeitor” do

seminário. Somente nesta portaria teriam lugar as visitas autorizadas pelo Padre Reitor,

conforme prescrito no regulamento (LEITE, 1945, p. 182).

Segundo apontado pelo inventário, e coincidente com o desenho da planta, acima da

portaria estava “huma Câmara que serve para hospedes”. Rocha Pitta (1950, p. 278) afirmou

que havia sido edificado no Seminário “casas para peregrinos, e hospedes authorizados, que

naquelle sitio são frequentes”. O regimento ordenou que os familiares dos seminaristas

quando se agasalham como hóspedes no Seminário deveriam ficar acomodados “em cubículos

à parte para isso assinalado”, não sendo permitido nem que tomassem as refeições no

refeitório (LEITE, 1945, p. 183).

Seguindo ao norte da Cas a de Hóspedes, foi descrito no i nventário “hum salão, com

duas janellas, e seus arquibancos, e principiando no canto estão vários cu bículos com suas

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portas, para os corredores interior[es], e janellas, para a parte exterior”. Comparando com a

planta, estes cubículos provavelmente eram os reservados aos padres e assistentes no

Seminário, a Residência dos Padres.

Em um corredor ao lado da residência dos padres, apontou o inventário que estavam

“duas classes da primeira e da segunda”, as salas de aula. Consta no Regulamento que havia

“duas classes de Latim, além da classe de solfa” e segundo a capacidade dos ouvintes e “a

ordem das classe s da Companhia”, em uma classe se ensinaria Arte e na outra Latinidade e

Retórica (LEITE, 1945, p. 185).

Ao lado das salas das classes, segundo o inventário, havia “huma despensa rezervada”,

na qual não foi descrita o que se guardava. Na parte Norte, as sinalada na planta e segundo o

inventário estava a Casa da Livraria. Curiosamente, em um i nventário tão minucioso em que

se registraram até miudezas, não há menção da listagem de livros da Biblioteca. Encontramos

somente as indicações de um livro do padre Ale xandre de Gusmão, Eleyção entre o Bem e o

Mal Eterno (1720), avaliado em $200 réis, um livro de Ladainha e um missal “usado”, ambos

pertencentes à Congregação do Menino Jesus, e outros cinco missais com valores variados

pertencentes à Sacristia.

Havia no interior do Seminário a capela das Congregações marianas, que não foi

assinalada na planta, mas citada pelo padre Alexandre de Gusmão e descrita no inventário. No

regulamento do Seminário foi destacada a importância destes grupos, denominadas de

Congregações das Flores, “como meio muito eficaz para conservar a devoção da Virgem

Santíssima e os meninos no amor ás coisas de piedade” (LEITE, 1945, p. 184). Nos tempos

que escreveu Rosa de Nazareth nas montanhas de Hebron , informou o padre Alexandre de

Gusmão (1715, p. 363) que existiam duas Congregações das Flores, contando com cerca de

trinta estudantes “dos mais devotos, & modestos”.

No inventário foram listados os bens das três congregações então existentes – Menino

Jesus, Nossa Senhora e São José - e da capela particular, que segundo a descrição, parecia

seguir o modelo da Capela -Mor da Igreja de Nossa Senhora de Belém, com cinco nichos em

seu altar. No altar principal estava um “menino JESUS de estatura de palmo, e meyo, com

suas roupas de Seminarista”, e ao seu lado, as imagens de São João e Nossa Senhora. Havia

ainda imagens de Nossa Senhora da Conceição, São José, Senhor dos Passos, São Francisco

Xavier, Santo Ignácio, Senhor Crucificado.

Entre os bens das três Congregações registrou-se em comum algumas flores de papel.

Foram listados dezoito ramalhetes de flores de papel que foram somadas e avaliadas em

2$880 réis. As “várias” flores de papel encontradas nos caixões foram estimadas em “uzadas e

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sem valor”. Aos interesses dos inventariantes por certo não p oderia ser conferida qualquer

utilidade às flores de papel rotas. Padre Alexandre de Gusmão (1715, p. 363) em “Rosa de

Nazareth nas montanhas de Hebron” explicou o mistério da confecção destas flores: eram

sinais dos “vários actos de virtudes, & mortificaç ões” que os congregados ofereciam em

devoção à Senhora na festa promovida anualmente pelas Congregações.

Ao lado da Capela das Congregações, seguindo outro corredor, estavam “outros

cubículos na forma dos antecedentes”, ou seja, com portas internas e jane las exteriores. Este

era provavelmente o pátio dos estudantes, assinalado na planta, e segundo a avaliação do

padre Alexandre de Gusmão (1715, p. 362), suficiente para abrigar duzentos meninos . O

inventário não descreveu estes cubículos, e nem fez menção a o mobiliário.

Imprescindível no funcionamento de um internato era cozinha e o refeitório . Nas

ordens que os meninos deveriam guardar, estavam regulamentadas as atividades do dia. O

“almoço” às oito da manhã depois de terem feito as preces e assistido a M issa. Acabadas as

classes matutinas, deveriam ir á mesa e comer “em comunidade, com lição e silêncio”. Depois

das Ave-Marias, rezariam o terço, diriam a Ladainha, e então ceariam (LEITE, 1945, p. 187 -

188).

Saindo das acomodações internas, segundo assinala do pelo inventário estava um

cemitério “por acabar” próximo a Casa de Hóspedes. Nos fundos havia ainda “huma Caza,

que serve de guardar vários trastes da uzada Igreja, e Sachristia.” Nos limites do s eminário

havia “sanzalas, para habitação dos escravos, te ndo huma porta de carro para o ingresso, e

saída delles, e entrada de carros”. E por fim, estava o Seminário todo cercado por “hum

vallado, fundo, e Largo”, que servia de cerca.

A análise destes inventários apresenta -nos duas pertinentes contribuições. A primeira

constitui o lidar de uma documentação inédita para a escrita da história de uma instituição

educativa que até então não havia figurado muito significativamente na historiografia. O

segundo ponto diz respeito ao próprio caráter da fonte: as listage ns detalhadas dos pertences

deste Seminário de Belém. As principais notícias que temos sobre o edifício do Seminário de

Belém, e todas as suas acomodações. Entre as peças de ouro, alfaias, tecidos, imaginária, e até

mesmo de singelas flores de papel, podem ser depreendidas investigações em distintos

campos da investigação histórica, como História da Arte, História Econômica, História do

Cotidiano. Deste modo, acercamo -nos destes campos da História buscando observar estas

fontes como significativo contributo para a escrita da História da Educação em tempos de

colônia.

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Fontes e referências

Arquivo Histórico Ultramarino (AHU). Projeto Resgate. CD-ROM. Fundo Eduardo Castro e Almeida. Bahia. Caixa 26, Doc. 4894.

CAEIRO, José. Jesuítas do Brasil e da Índia na perseguição do Marquês de Pombal (século XVIII). Trad. de Padre Manuel Narciso Martins. Prefácio do Padre Luiz Gonzaga Cabral. Salvador: Escola Tipográfica Salesiana, 1936.

FRANCA, Leonel. O método pedagógico dos jesuítas. O “Ratio Studiorum”. Rio de Jan eiro: Livraria Agir, 1952.

GUSMÃO, Alexandre de. Arte de crear bem os filhos na idade da Puericia , Dedicada ao Minino de Belém, JESU Nazareno. Lisboa: Officina de Miguel Deslandes, 1685.

. Historia do predestinado Peregrino e seu irmam precito , E a qual de baxo de uma misterioza parabola se descreve o sucesso feliz do que se ha de salvar, & infeliz sorte do que se ha de condenar. Dedicada ao Peregrino celestial S. Francisco Xavier, Apostolo do Oriente. Lisboa: Officina de Miguel Deslandes, 1682.

. Rosa de Nazareth nas montanhas de Hebron , A Virgem Nossa Senhora na Companhia de Jesus, Dedicada a mesma soberana Virgem com sua gloriosa Assumpção. Lisboa: Officina Real Deslandesiana, 1715.

LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Lisboa: Livraria Portugália; Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1945 . Tomo V.

PEREIRA, Nuno Marques. Compêndio narrativo do Peregrino da América. 6. ed. Rio de Janeiro: Publicações da Academia Brasileira, 1939. v. 1.

ROCHA PITTA, Sebastião da. História da América Portuguesa: coleção de estudos brasileiros. 3. ed. Bahia: Livraria Progresso Editora Águia e Souza LTDA, 1950.

SANTOS, Fabrício Lyrio. Te Deum Laudamus . A expulsão dos jesuítas da Bahia (1758 - 1763). 2002. Dissertação (Mestrado em His tória) – Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2002.

SOUZA, Lais Viena de. Educados nas letras e guardados nos bons costumes. Os pueris na prédica do padre Alexandre de Gusmão S. J. (1629 -1724). 2008. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2008.