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Agenda 2008 Lampião, Virgulino e o mito 70 anos do fim do Cangaço KAROLINA GOMES, MONIKA HACKMAYER E VIRGINIA PRIMO A parceria inabalável de Lampião e Maria Bonita a madrugada de 28 de julho de 1938, um grupo da polícia liderado pelo tenente João Bezerra, surpreendeu Lampião e seu bando na fa- zenda Angico, em Sergipe, onde estavam assentados. O Rei do Can- gaço Lampião, sua esposa Maria Bonita e outros 10 cangaceiros foram degolados e tiveram suas cabeças expostas como troféu nas escadarias da Igreja de Santana do Ipanema. Setenta anos depois, a data é lembrada como o marco do fim do Cangaço e o início de sua consagração como um mito.

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Agenda 2008 ��

Lampião, Virgulino e o mito70 anos do fim do Cangaço

Karolina goMes, MoniKa hacKMayer e virginia PriMo

A parceria inabalável de Lampião e Maria Bonita

a madrugada de 28 de julho de 1938, um grupo da polícia liderado pelo tenente João Bezerra, surpreendeu Lampião e seu bando na fa-zenda Angico, em Sergipe, onde estavam assentados. O Rei do Can-gaço Lampião, sua esposa Maria Bonita e outros 10 cangaceiros

foram degolados e tiveram suas cabeças expostas como troféu nas escadarias da Igreja de Santana do Ipanema. Setenta anos depois, a data é lembrada como o marco do fim do Cangaço e o início de sua consagração como um mito.

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Tido por muitos como um justiceiro social e por ou-tros como um bandido que matava a sangue frio, Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, foi o can-gaceiro que mais acendeu a imaginação popular. Uma das lendas que explica seu apelido diz que ao se apresentar ao bando de cangaceiros, aos 17 anos, Virgulino usou um truque que transformava um fu-zil em metralhadora. A mágica consistia em amarrar ao mesmo tempo um lenço no cotovelo e na peça do disparador, de modo que quando acionasse o gati-lho, o fuzil se armasse. Até hoje no Nordeste esse feito é conhecido como o “pulo do Lampião”.

“Minha mãe me dê dinheiro/ Pra comprar um cin-turão/ Pra viver melhor no mundo/ É andar mais Lampião”. Esses versos, cantados pela população ser-taneja da época, representavam a visão popular que tinha o cangaceiro como uma alternativa ao vazio de poder deixado pelo Estado.

O próprio Virgulino afirmava não confiar na ação da justiça pública, razão pela qual decidiu entrar para o movimento, em 1916. O sertanejo pretendia vingar o assassinato de seu pai, morto em uma bus-ca policial: “Não perdi tempo e resolutamente arru-mei-me e enfrentei a luta”, afirmou em entrevista histórica concedida na época ao jornalista Octacílio Macedo.

Vera Ferreira, neta do cangaceiro, complementa: “Muita gente desconhece os motivos que o levaram (Lampião) a entrar no cangaço, preferindo julgar sem conhecimento, pois é mais fácil julgar pelo que ouviu a buscar conhecer a história.”

A idéia de que Lampião teria sido um Robin Hood sertanejo, que tirava dos ricos para dar aos pobres, é contestada por muitos, pois a revolução social que Virgulino aparentava defender, estava conivente com a própria elite agrária, que precisava dos ban-dos e de sua “valentia” para estabelecer a ordem so-cial na então República Velha.

Segundo Carlos Rostand de Medeiros, pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Vir-gulino agia como um guerrilheiro popular sem cau-

sa: “Na verdade, se Lampião tinha alguma causa, no início era a vingança, mas depois foi apenas a ganância por dinheiro e poder”, afirma Rostand, bis-neto do falecido coronel Quincó da Rajada.

O pesquisador, que visitou diversas cidades nordes-tinas onde se estabeleceram grupos de cangaceiros, confirmou que a morte de Lampião e de Maria Bonita

��Julho / Dezembro 2007

“O cangaceiro é um personagem que se enraíza na história, mas que consegue se descolar dela. Por isso se transformou em um mito”

Hernani Heffner

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deixou seus companheiros sem orientação de como seguir adiante, marcando a morte do Cangaço na sua forma tradicional. Segundo ele, muito se publicou após a morte do Rei do Cangaço: “a esquerda puxou Lampião para a idéia de contestação do poder público, tornando sua figura apreciada entre os intelectuais”.

Mas sua figura não foi só apreciada por intelectu-ais e marxistas. Embora Lampião e o bando tivessem tido as cabeças cortadas na emboscada em Sergipe, “suas ações criaram fortes raízes no imaginário do povo que, carente de heróis, ergueu, com dinheiro público, uma estátua para ele, em uma colina de Ser-ra Talhada”, acrescentou Evandro Domingues, pro-fessor e colecionador de material sobre o Cangaço.

Até os próprios coronéis necessitaram da aprecia-ção popular das ações de Lampião para justificar a impunidade dos cangaceiros, conforme explica o jornalista e escritor, Júlio José Chiavenato, no livro Cangaço – A força do coronel.

Como explicar a vitória de um pequeno bando so-bre a polícia de oito estados se não pelos “superpo-deres” dos cangaceiros? Ou seja, a própria polícia, muitas vezes subornada pelo movimento, superva-lorizava a “valentia” cangaceira para encobrir sua deficiência.

“Não é muito diferente do que vemos nas favelas brasileiras atualmente...”, comentou o colecionador Evandro Domingues.

A permanência na atualidade de um poder para-lelo, da corrupção policial e da conivência popular com a criminalidade têm origem na herança do co-

ronelismo e do Cangaço, afirma também o pesquisa-dor Rostand de Medeiros. Para ele, o que estava em jogo era o interesse econômico: “Sua organização era baseada no dinheiro, na propina dada aos policiais e autoridades que lhe forneciam armas. No Rio de Ja-neiro, traficante não dura muito, por que então Lam-pião viveu 18 anos no Cangaço? Serão apenas suas habilidades guerreiras? Sua invencibilidade? Corpo fechado? Nada disso, apenas grana”, pontuou.

Terra sem lei A grande seca de 1877 é o pano de fundo para o

surgimento do Cangaço. A seca arrasou o Nordeste, criou uma massa de flagelados, além de tumultos em várias regiões: vilas eram invadidas e os saques eram freqüentes. O banditismo se revelou uma re-volta espontânea contra a situação social. Assaltos a fazendas, seqüestros e grandes roubos a comboios e armazéns faziam parte deste cenário.

Nesse sertão desestruturado, vários coronéis perde-ram o poder. No sul do Ceará, no Vale do Cariri, em 1901, os coronéis usaram pela primeira vez, de modo organizado, bandos de sertanejos para impor a “or-dem social”. Dos retirantes que se refugiaram no Vale do Cariri, em busca da proteção do Padre Cícero sur-gem grupos rebeldes que, além de agir sob a vontade dos coronéis, partiam para o crime como forma de so-brevivência e revolta contra as classes dominantes.

O fanatismo religioso reuniu grupos que entoavam cantos e ladainhas, à espera de um milagreiro. Figu-ras como Padre Cícero, Antônio Conselheiro e José

Agenda 2008��

Coiteiros: a polícia chama de “coiteiros” todas as pessoas que, de alguma forma, ajudam os cangaceiros. Os residentes no interior do sertão – moradores, vaqueiros e criadores, por exem-plo – se inserem, também, nessa categoria.

Quem era quem no Cangaço?O coronel: o dono da terra; represen-ta o legítimo árbitro social, mandando em todos (do padre à força policial), com o apoio integral da máquina do Estado. Contrariar o coronel, portanto, é algo a que ninguém se atreve.

Jagunços ou capangas: aqueles assalariados que trabalham para os “coronéis” como vaqueiros, agricultores ou mesmo assassinos, defendendo com unhas e dentes os interesses do patrão, de sua família e de sua propriedade.

Volantes: para combater o Cangaço, esse novo fenômeno social, o Poder Público cria as “volantes”. Nestas forças policiais, os seus integrantes se disfarça-vam de cangaceiros, tentando descobrir os seus esconderijos. Logo, ficava bem difícil saber ao certo quem era quem. Do ponto de vista dos cangaceiros, eles eram, simplesmente, os “macacos”.

ilustRaçõEs flavio colin

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Maria surgiram na história como uma forma de con-fortar a massa de sertanejos, desolada pela dificulda-de de acesso à terra.

Assim como Virgulino Ferreira, o primeiro líder cangaceiro entrou para o Cangaço por vingança. Je-suíno Alves de Melo Calado, o “Jesuíno Brilhante”, famoso por sua pontaria, começou a agir em 1870, após o episódio em que seu irmão levou uma surra de policiais.

“A índole do nordestino é, normalmente, humil-de, pacífica e cordata. É um sujeito bonachão, alegre e divertido, embora duro e rude em suas maneiras. Mas quando resolve dizer não, o nordestino vira leão e grita sua revolta na cara da minoria opressora”, afirma o texto da jornalista Vera Ferreira, neta de Lampião, no site oficial que mantém sobre o avô.

O último dos cangaceiros, que herdou o poder de Lampião, foi Corisco, o “Diabo louro”, interpretado por Othon Bastos no filme Deus e o diabo na terra do sol (1964), de Glauber Rocha. Corisco e sua esposa

Dadá pertenceram ao grupo de Lampião. Corisco foi assassinado dois anos após a morte do Rei do Canga-ço e também teve a cabeça decepada e exposta.

Cangaço cultural Com exceção do pioneirismo romântico de Franklin

Távora, que escreveu em 1876 O cabeleira, a literatu-ra brasileira chega ao tema do Cangaço com certo atraso. O romance Os cangaceiros, de José Lins do Rego, e a peça Lampião, de Rachel de Queiroz surgem 15 anos após a emboscada de 1938. A literatura po-pular, por sua vez, já se dedicava ao assunto desde a virada do século: o mais antigo folheto sobre um cangaceiro – A vida de Antônio Silvino, de Francisco das Chagas Batista – foi publicado em 1904.

A literatura de cordel, praticada, sobretudo, em Pernambuco, Paraíba e Ceará, tratava de forma fantasiosa as façanhas de Lampião, ora refletindo o medo ora a admiração da mentalidade popular. Descompromissados, satíricos e muitas vezes sádicos

��Julho / Dezembro 2007

“Uma vez numa cidadeLampião apareceuCinco rapazes pegouE de punhal abateuTirando o sangue de um delesUm de seus cabras bebeu.

Um rapaz que estava noivoNum esteio ele amarrouA noiva fez ficar nuaCom ferro em brasa a marcouE ao noivo desesperadoO criminoso castrou”.

(Combate e morte de Lampião, de Zé Vicente)

“Logo nos primeiros tirosNosso povo esmoreceuCinco morreram na balaE quarenta e quatro correu...”.

(O que me disse um soldado que milagrosamente escapou das unhas de Lampião, de João Martins de Ataíde)

“O vigia foi e disse A Satanás no salão: — Saibo vossa senhoria Que aí chegou Lampeão Dizendo que quer entrar E eu vim lhe perguntar Se dou-lhe o ingresso ou não. — Não senhor, Satanás disse Vá dizer que vá embora Só me chega gente ruim Eu ando muito caipora Eu já estou com vontade De botar mais da metade Dos que tenho aqui p’ra fora”.

(Chegada do Lampião ao inferno, José Pacheco)

“Mas quando resolve dizer não, o nordestino vira leão e grita

sua revolta na cara da minoria opressora”

Vera Ferreira

Histórias de Lampião

Fotos de Lampião

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com as matanças dos cangaceiros, os autores de cor-déis improvisavam versos a serem distribuídos em feiras e botequins, impressos sempre com as famosas ilustrações de xilogravura.

No cinema, o atraso se repete. É tardiamente e tam-bém pela via popular que o Cangaço chega às grandes telas. Em O cangaceiro (1954), ao som de Olê, mulher rendeira, a figura do cangaceiro alcança a crítica in-ternacional. Premiado no Festival de Cannes, o filme de Lima Barreto mostra o cangaceiro como represen-tação de uma identidade tipicamente brasileira.

“O que se vê no filme é o cangaceiro idealizado como um sujeito corajoso, raçudo, ético, violento, mas com uma violência que segue uma lógica. Como um sujeito que se afirma a partir da condição de au-tonomia perante a lei, perante a polícia, perante a sociedade”, explica Hernani Heffner, professor de ci-nema da PUC-Rio e conservador da Cinemateca do Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro.

A essa visão folclórica, Glauber Rocha acrescentou a visão do Cangaço como resistência popular, ao di-rigir, em pleno ano de 1964, Deus e o diabo na terra do sol. Inspirado na linguagem metafórica da literatura de cordel, Glauber afirma seu discurso de revolução popular através da frase repetida no filme: “O sertão vai virar mar, o mar vai virar sertão”.

A partir da década de 1960, filmes com a temá-tica sobre Cangaço tornam-se um gênero comercial do cinema nacional. Ao transportar a linguagem do Western americano, o cinema brasileiro cria o gênero Nordestern, de forte apelo sobre o público.

Em 1965, entretanto, com Memórias do Cangaço, Paulo Gil Soares traça uma consideração mais real sobre esse acontecimento. No filme, ele recupera as únicas imagens filmadas sobre Lampião e seu ban-do, feitas pelo fotógrafo Benjamin Abrahão na déca-da de 1930, reinserindo o cangaceiro dentro de um circuito histórico e social.

Essa visão minuciosa sobre o mito foi retomada em filmes mais recentes, como Baile perfumado (1997), de Paulo Caldas e Lírio Ferreira, que mostra a de-cadência de Lampião pouco tempo antes de sua morte. Sobre a permanência da atração cultural pelo tema, o pesquisador afirma: “O cangaceiro é um personagem que se enraíza na história, mas que consegue se descolar dela. Por isso se transfor-mou em um mito. O mito pode servir para qual-quer discurso, sobretudo quando você tem valores positivos para associar a ele. O cangaceiro é o jus-to, o corajoso, quando a situação propicia a isso. Quando não, ele simplesmente aplica a lei dele, que é a lei do direito natural”.

Agenda 2008��

Lampião, o Rei do Cangaço (1936) – Benjamim

Abrahão

O cangaceiro (1954) – Lima Barreto

A morte comanda o Cangaço (1961) - Carlos Coimbra

Três cabras de Lampião (1962) – Aurélio Teixeira

O lamparina (1963) - Glauco Mirko Laurelli

Deus e o diabo na terra do sol (1964) – Glauber Rocha

Memória do Cangaço (1965) – Paulo Gil Soares

Maria Bonita, Rainha do Cangaço (1968) - Miguel

Borges

Corisco e Dadá (1996) – Rosemberg Cariry

Baile perfumado (1997) – Paulo Caldas e Lírio Ferreira

10 filmes para conhecer o Cangaço

Corisco, o diabo loiro no filme de Glauber Rocha